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1 INTRODUÇÃO

[...] não há como negar o fato histórico. Esta é a terra de muitos intelectuais – escritores, cantores, pintores, artistas – que a nossa cultura vem, há talvez 400 anos, entregando ao acervo da cultura nacional. Não há como negar que a cultura brasileira seria incrivelmente mais pobre sem a contribuição maranhense, definitiva, por si mesma, em quase todos os campos da cultura e do saber acadêmico, literário, artístico, ou de qualquer outra natureza. Não vejo razão para esquecermos quem fomos, pois é justamente em nossa genealogia, como diria Michel Foucault, que se encontra a raiz de quem somos e quem seremos. (Ricardo Leão).

Perseverando na temática de abordagem, proposta no nosso projeto inicial de doutorado, apresentado quando do concurso para o Dinter Uema/UFRJ (fevereiro de 2010), confirmamos nosso empenho em enfocar a Literatura Maranhense (universo hoje um tanto quanto ignoto, obscuro), fazendo-a emergir das águas do esquecimento, como num tributo a nossa memória cultural e literária, e muito a propósito deste momento comemorativo dos quatrocentos anos de fundação de São Luís (setembro de 2012), a perpassar este nosso período de doutoramento. “Ninguém ama aquilo que não conhece e ninguém esquece aquilo que ama” – é um velho dito popular. Conhecer para amar a nossa literatura é situar-se num contexto de virtualidades e plurivalências, com significativas incursões no panorama que o reveste: raízes e origens, história, processo formativo, influxos e reflexos, folclore, tradições... É o que se nos propomos nesta empreitada: conhecer (para amar) e revelar (para que seja amado) este patrimônio linguístico-literário, memorial da cultura maranhense em seus quatro séculos de trajetória, considerando que: documento representativo e transmissivo da experiência humana, através das gerações, a literatura flagra e detém visões de mundo, ideologias, sempre pronta a refletir os matizes de um imaginário (individual e/ou coletivo), assim habilitando o leitor a sintonizar-se com o pensamento, a imaginação do outro, a perceber/apreender outras vozes, outros universos, a descobrir novos caminhos, destacando-se, entre suas inúmeras funções, a expansão da cultura e do conhecimento do mundo; o testemunho histórico de uma época, o compromisso social (implicando, mesmo, o exercício de contestação e denúncia). A relevância dessa área do conhecimento é, pois, indiscutível. No que respeita à Literatura Maranhense, adentrar estes domínios é seguir os próprios caminhos da literatura nacional, posto que: se, no âmbito das letras brasileiras, o legado de cada região se faz imprescindível, na composição do Todo, o Maranhão, nesse mister, tem somado com representantes de primeira linha, num itinerário que, de Antônio Vieira a Ferreira Gullar, se vai projetando além fronteiras do tempo presente, não se restringindo, esse contributo, a um simples folclore local ou a outros influxos culturais próprios desse contexto 11

histórico-geográfico, mas ultrapassando-o, integrando a produção literária do País. Por outro lado, é também sentir pesar, ao constatar a triste verdade de que estamos perdendo a memória das nossas mais caras tradições; de que desconhecemos o nosso cânone literário, no qual figuram grandes representantes das letras nacionais. E aqui vale lembrar o professor e escritor Ricardo Leão1(2012) que, evocando o epíteto pelo qual nossa cidade ficou nacionalmente conhecida, desde o século XIX, por conta do então famoso Grupo Maranhense, diz que São Luís é hoje meramente uma Atenas sem Panteão. E a assertiva do maranhense suscita, no mínimo, uma reflexão: por onde anda o nosso panteão (paulatinamente subtraído e/ou recolhido, do seu local de referência, nas últimas décadas e do qual, em termos concretos, parece restar apenas a praça, em frente à Biblioteca Pública Benedito Leite – e assim mesmo, nominalmente esquecida e confundida com a Praça Deodoro, como é popularmente conhecido e denominado, atualmente, todo aquele sítio). Sim, que é do nosso outrora tão admirado “Pantheon Maranhense” – configurado nos bustos de bronze, representativos/rememorativos dos construtores de um acervo cultural que se foi edificando, ao longo de nossa história, desde a chegada dos franceses a esta terra, deixando-nos obras eméritas, reveladoras da Upaon-Açu de antanho, da passagem do Padre Antônio Vieira (aqui produzindo parte significativa dos seus admiráveis sermões). Convenhamos: o Maranhão é berço de grandes representantes da intelectualidade brasileira, dignos de serem eternizados na nossa memória (jamais esquecidos). E não seria, não é mesmo, para nos sentirmos honrados, orgulhosos de ser maranhenses? – conterrâneos de Odorico Mendes, Sotero dos Reis, João Lisboa, Antônio Henriques Leal, Benedito Leite, Gonçalves Dias, Sousândrade, Maria Firmina dos Reis, Arthur e Aluísio Azevedo, Raimundo Corrêa, Teófilo Dias, Maranhão Sobrinho, Adelino Fontoura, Coelho Neto, Humberto de Campos, Graça Aranha, Teixeira Mendes, Nina Rodrigues, Viriato Corrêa, Jerônimo de Viveiros, Josué Montello, João Mohana, Odylo Costa, filho, Ferreira Gullar... A verdade é que fomos perdendo a consciência (e temos que lembrar, a cada nova geração) de que esta terra já erigiu monumentos da cultura e da literatura brasileira e de língua portuguesa, cuja memória poderia, poderá ser evocada periodicamente, em colégios, academias, universidades... instituições que, a propósito, deveriam impor-se como baluartes de uma cultura detentora de insignes representantes da nossa história, da nossa literatura, da inteligência brasileira. Enfim, investir-se da missão difusora desses valores eternos (LEÃO 2012).

1 - maranhense, doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp. 12

Muitos, aqui (sobretudo em se tratando das mais novas gerações), não têm ideia do pioneirismo, em gêneros representativos da produção pedagógica, literária e artística, cultural, nas suas mais variadas expressões, de que se faz dotar o nosso Estado, através de intelectuais como Sotero dos Reis (São Luís-Ma-1800/1871), nosso primeiro latinista e gramático brasileiro – e nesse mister, outros dados ainda nos surpreendem, se não vejamos: dez, das dezoito gramáticas de Língua Portuguesa, em circulação pelo Brasil, no século XIX, eram de autores maranhenses; o primeiro gramático negro, da nossa Língua, também um dos primeiros professores afrodescendentes, do Colégio Pedro II (selecionado/aprovado aos 20 anos de idade) e da Escola Militar (Rio de Janeiro), Hemetério José dos Santos 2 (1858-1939 – considerado um dos maiores conhecedores da Língua Portuguesa no seu tempo), saiu daqui de São Luís. E ainda mais: a primeira obra didática, para crianças, O Livro do Povo3 (1861), durante mais de vinte anos lido e estudado por gerações, em todo o Nordeste, em sucessivas reedições, é obra do maranhense Antônio Marques Rodrigues (São Luís-1826/1873); a matriarca do romance feminino brasileiro, de temática afrodescendente, é a nossa Maria Firmina dos Reis (São Luís-1825/Guimarães-Ma-1917); Celso Magalhães (Viana-Ma- 1849/São Luís-1879 – poeta, contista, novelista, romancista, teatrólogo, promotor de justiça, antecipador do nosso Realismo) foi considerado, por intelectuais e estudiosos da estirpe de um Sílvio Romero, o precursor dos estudos do folclore e da poesia popular no Brasil. E não poderíamos deixar de mencionar, neste parágrafo, pelo menos dois dos nossos geniais poetas românticos brasileiros, Gonçalves Dias (Caxias-Ma.1823/Baixios dos Atins-Guimarães 4 - 1864) e Sousândrade (Guimarães-Ma-1833/São Luís-1902) – este último considerado, sobretudo pelos irmãos Campos (Augusto e Haroldo de), um dos grandes precursores do modernismo (nos moldes de Ezra Pound). Tampouco, ignorar que os maranhenses, Odorico Mendes5 (São Luís-1799/1864, também tradutor de Virgílio) e Carlos Alberto Nunes (S.Luís- 1897/Sorocaba-SP-1990), foram os dois maiores tradutores de Homero, em Língua Portuguesa; que o nosso Oswaldino Ribeiro Marques 6 (São Luís-17.10.1916/Brasília-DF- 13.05.2003, músico, pintor, poeta, poliglota autodidata, idealizador do Cenáculo Graça Aranha e um dos fundadores da União Nacional dos Estudantes-UNE; professor, em universidades brasileiras e do exterior, merecendo, em Wissconsin-EUA, o título máximo, no magistério) foi, aqui no Brasil, o primeiro tradutor de Walt Whitman e um dos primeiros

2 - autor de Gramática da Língua Portuguesa (1879), dentre outras obras, como: Livro dos Meninos e Contos Brasileiros. 3 - São Luís Tipografia Frias, 1861. 4 - antiga baia de Cumã, Guimarães (naufrágio do navio francês Ville de Boulogne). 5 - o patriarca da Literatura Maranhense 6 Inteligência das mais lúcidas (no universo intelectual maranhense e brasileiro), no domínio da teoria e da crítica literária, bem como poeta, dramaturgo, ensaísta tradutor e professor catedrático. 13

representantes da crítica literária modernista; que Raimundo Teixeira Mendes (Caxias-Ma- 1855/1927) – filósofo e matemático, um dos líderes do Positivismo no Brasil, movimento que culminou com a Proclamação da República, é o autor do dístico ordem e progresso, bem como do traçado definitivo da bandeira brasileira; que Celso Antônio Silveira de Menezes7 (Caxias-Ma-1896/Rio de Janeiro-RJ-1985) foi um grande artista plástico (pintor e escultor modernista). Outros nomes importantes e memoráveis no seio da nossa cultura: a atriz de teatro Apolônia Pinto8 (São Luís-1854/Rio de Janeiro-RJ-1937); o músico Antônio Rayol 9 (São Luís-Ma.1855/RJ-1905); o vate sertanejo, cantor, compositor, músico e seresteiro Catulo da Paixão Cearense (São Luís-Ma.1863/RJ-1946); a poetisa, contista, conferencista e professora, Laura Rosa (São Luís-1884/1976), primeira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Maranhense de Letras e que publicava seus poemas em jornais e revistas de sua época sob o pseudônimo de Violeta do Campo; a professora de música, piano, canto orfeônico, idealizadora e patrona da Escola de Música do Estado do Maranhão-EMEM, Lilah Lisboa de Araújo (São Luís-1898/1979); o escultor Newton Sá (Colinas-Ma.-1908/SãoLuís-1940); o compositor de toadas e cantador de Boi, Bartolomeu dos Santos, o popular Coxinho 10 (Vitória do Me.-Ma.1910/São Luís-1991) a cantora, compositora, professora de canto e música, a conhecida rainha do acordeom, Dilu Mello (Viana-Ma.1913/RJ-2009); o jornalista, editorialista, cronista e crítico literário José de Ribamar Franklin de Oliveira11 (São Luís-Ma.- 12.03.1916/RJ.06.06.2000); o cantor e compositor (mais de trezentas músicas), também funcionário público e sargento do exército, Antônio Vieira 12 (São Luís- 09.05.1920/07.04.2009); os pintores Floriano Teixeira (Cajapió-Ma.1923/Salvador-Ba.2000) e Antônio Almeida (Barra do Corda-Ma.1922/São Luís-2009); o cantor, compositor e produtor cultural Nonato Buzar 13 (Itapecuru Mirim-Ma. 28.08.1932/Rio de Janeiro-RJ. 02.02.2014); o poeta do povo, João do Vale (Pedreiras-Ma.1934/São Luís-1996) – valendo ressaltar ainda outros nossos contemporâneos, como: Luís Costa Lima – professor emérito da PUC-RJ e escritor (autor premiado de vários livros de teoria e crítica literária – toda uma carreira de mais de cinquenta anos dedicada à investigação da literatura, em sua natureza);

7 - prof. da Escola Nacional de Belas-Artes e do Instituto de Artes da antiga Universidade do Distrito Federal, ao lado de Cândido Portinari. Autor de esculturas famosas como: Monumento do Café (Praça Pará-Campinas-SP); Moça reclinada (MEC); Maternidade (Praia de Botafogo-RJ). 8 - conhecida como a maior intérprete das paixões humanas da ribalta nacional. 9 - formado em Milão-Itália, professor de canto e música, compositor e cantor lírico, “uma das mais belas vozes de barítono do Brasil”, no dizer de Renato Almeida. 10 - o maior cantador de Bumba-meu-boi da Baixada Maranhense. 11 - conhecido como Franklin de Oliveira, redator de O Globo. 12 - que teve uma de suas composições (letra e música), inclusa na trilha sonora da novela Da cor do pecado, trama de João Emanuel Carneiro (Rede Globo-2004). 13 - compositor de temas diversos pra novelas da Globo. 14

Turíbio Santos (músico, pianista e violonista); Airton Marinho (artista plástico, inspirando-se na cultura maranhense, expressando-a, difundindo-a, através da xilogravura); Alcione Nazaré, Rita Ribeiro, Rosa Reis, Cecília Leite (cantoras); Claudio Fontana, César Teixeira, Roberto Brandão (cantores); José de Ribamar Viana (o grande cantor e percussionista Papete); José de Ribamar Coelho Santos (o famoso Zeca Baleiro); Aldo Leite e Tácito Borralho (teatrólogos), as irmãs Nascimento: Leila, Leda e Lúcia (atrizes dramáticas); Sandra Cordeiro (atriz circense), dentre tantas outras personalidades desta terra. Fato digno de ressalte é ainda que São Luís foi detentora, no Século XIX, do mais avançado e bem aparelhado parque editorial e tipográfico nacional, onde se editavam as traduções de livros e romances mais tarde publicados e difundidos pelo resto do País. Hoje, mesmo dispondo de excelentes empresas do gênero, nossa cidade passa por uma crise de decadência nesse setor – contendo, ainda, um número considerável de gráficas, mas poucas editoras14, num mercado distribuidor deveras insuficiente. Nunca será demais ressaltar: a partir do Século XIX, o Maranhão se tem destacado (dentro e fora do País), como terra pródiga em valores literários. Poetas, romancistas, historiadores, ensaístas, jornalistas, cronistas, abordando os mais variados temas da cultura local, fazem o nosso rico patrimônio do gênero. E é de se perquirir o segredo, o carisma de uma arte surgida nos albores do século em referência, num estado provinciano, distante das grandes metrópoles. O que a fez repercutir além-fronteiras do seu território local (e até nacional)? Comprovável, é ainda que o nosso Estado passa a ter literatura própria só a partir dessa época quando, em São Luís (já sob o epíteto de Atenas Brasileira), tem destaque o Grupo Maranhense (1832-1868), aqui iniciando-se, então, uma vida literária de importância considerável: não mais os europeus, em registros e observações sobre nossa terra e nossa gente, mas os escritores e poetas maranhenses a erigirem um patrimônio literário, numa unidade federativa que, emancipando-se politicamente, fa-lo-á, também, nas letras e artes e com o brilhantismo do já citado Grupo, liderado pelas figuras excelsas de Odorico Mendes, Gonçalves Dias, Sotero dos Reis, João Lisboa e integrado por intelectuais de respeitável cultura humanística e dignos da mais autêntica admiração nacional. No entanto, em nossos dias, quem, dentro ou fora dos parâmetros universitários, conhece, pelo menos em termos de autores ou títulos de obras (salvo como topônimos e/ou patronímicos), esse componente significativo da nossa cultura? Um reduzido número de interessados, com certeza. E podemos inferir, entre a comunidade acadêmica, ainda que se

14 - Edufma (da Universidade federal do Maranhão); Eduema (da Universidade estadual do Maranhão); Café & Lápis (particular). 15

tratando do corpo docente (mesmo nos Cursos de Letras das nossas universidades públicas e privadas), nossa literatura local (em toda a sua repercussão nacional) ainda é precariamente conhecida. Ressalte-se: só de uns poucos anos para cá, ela vem sendo reivindicada como objeto de estudo e pesquisa ou de inclusão nos currículos15, na iniciação científica ou na extensão universitária. Origem, processo de formação, etapas evolutivas, movimentos e agremiações, gêneros, autores e obras, tudo isso, em termos de Literatura Maranhense, ainda se nos é matéria hermética, área da nossa cultura a ser explorada. Mais: se esse continente em alusão é pouco conhecido, um seu conteúdo há, que se faz ainda mais ignoto, requerendo, pois, urgente e continuamente, a afirmação de sua existência: o romance. Poetas e poetisas maranhenses têm logrado uma certa visibilidade entre nós, alguma projeção nacional, nos meios de comunicação e na comunidade acadêmica. O mesmo não tem acontecido com os nossos romancistas que, em sua maioria, permanecem ignorados, ilustres desconhecidos – ainda que autores de obras de surpreendente mérito literário, algumas (muitas) até premiadas, em nível local e/ou nacional. Assim, inscrevendo-se na área de concentração Teoria Literária, vinculando-se à Linha de Pesquisa Teoria Crítica da Modernidade (que propõe um estudo sobre modernização e modernidade, a partir da Teoria da Cultura, da Teoria Literária e da Sociedade), num viés com Estudos Culturais, Memória e História e numa postura inter/transdisciplinar, este trabalho terá como centro de interesses o romance e os romancistas maranhense do século XX, numa visão crítica/analítica/contextualizada e numa abordagem sincrônico-diacrônica do gênero – que o perspectivará, em termos gerais, das suas origens à contemporaneidade; e específicos, no que respeita ao contexto sócio/político, cultural da época e seus respectivos precursores e autores, reservando um capítulo para autoria feminina. Nesta oportunidade, estamos vinculando à literatura maranhense o romance escrito por autores naturais do Estado, ainda que ambientado em outro espaço geográfico, outro meio sócio/cultural, enfocando e panoramizando outras realidades distantes e diversas – como por exemplo os romances de Coelho Neto, Graça Aranha, José Louzeiro, Ronaldo Fernandes, tendo (em geral) como espaço narrativo o Rio de Janeiro 16 ; e o eventualmente escrito por autor estrangeiro, maranhense por adoção, mas produzido em São Luís, enfocando aspectos da nossa realidade,

15 - Este ano de 2014, marca a inclusão da disciplina Literatura Maranhense na grade curricular do Curso de Letras da Uema – um dos motivos que justificam este trabalho. 16 - à exceção de Canaã, de Graça Aranha (ambientado em Porto Cachoeiro-ES, onde o autor exerceu alguns anos de magistratura) e Aracelli, meu amor, de José Louzeiro, que transita em Rio de Janeiro, Vitória-ES, alguns (poucos) de Josué Montello, A Faca e o Rio de Odylo Costa Filho, que se ambienta no Piauí, com trânsitos pelo Maranhão (enfim, um romance nordestino). 16

em um determinado momento de nossa história (tal é o romance A Crise do português Manuel de Béthencourt). Ao optar por esta área de estudos e respectiva linha de pesquisa e na visão acima delineada, pretendemos retraçar o perfil histórico/evolutivo da nossa literatura, situando e privilegiando, nesse contexto, o romance maranhense do século XX, em sua origem e primórdios, seus precursores e autores da época em referência; auscultar essa produção do gênero – signo cultural denotativo/conotativo do homem como ser de linguagem, nas várias etapas da sua história – em seus pulsos/impulsos expressivos/comunicativos/representativos, atentar para essas vozes em interação e em contínuo devir (que se vão impostando, a partir do Século XIX, propagando-se, ao longo do Século XX, e já transitando para o XXI), na sua estetização ficcional, na síntese e estruturação de seus enredos e enunciados narrativos, na abordagem de seus temas, na composição de suas personagens. Vozes que, dos idos do Século XIX (em suas raízes) ou da contemporaneidade, vão texturizando um vasto painel histórico- literário, que singulariza a nossa terra e nossa gente, refletindo-a, projetando-a, em sua toponímica, em suas características identitárias. E num processo de leitura que poderá perspectivar a matéria em estudo como documento de uma época; e seus personagens narradores como testemunhas, à medida que, num olhar, digamos, mais holístico, o testemunho pode sugerir o marco memorial, ponto de partida para o resgate do passado esquecido. Possivelmente, auferir como esses romances, nos seus aspectos temáticos, linguísticos, estilísticos, configuram a realidade ficcionada; como representam São Luís, o Estado do Maranhão, em termos de memória histórica, regionalismo, identidade cultural, visto que: índice das “relações de força” que movem uma sociedade (GINZBURG, 2002), a literatura não só absorve muito da forma como seu autor com esta interage, como da história, da cultura, do imaginário social, podendo ser vista como um dos lugares de memória de uma coletividade. Interessa-nos, sobretudo, explorar esse desconhecido e trazer, dessa noite para o dia claro, o romance maranhense, contribuindo para que este venha a ser mais visível e acessível ao nosso público em geral e, por excelência, nos meios educacionais (escolas, universidades); perspectivá-lo em sua temática de abordagem, seu contexto ficcional e dialógico – e aqui vale lembrar Maingneau (2001), para quem o texto é um entrecruzamento de trocas enunciativas que o situam na história, sugerindo, para seu exame, a determinação de um espaço de interação semântica que explique, ao mesmo tempo, os fundamentos dos discursos que se interseccionam e a tensão que se vai estabelecendo entre eles; e Ricoeur (2010), para quem o texto-obra pode ser concebido como entidade complexa, do discurso ou da frase, não devendo 17

ser entendido, tão somente, como escritura (malgrado a escritura coloque, por si só, questões originais, que interessem, diretamente, ao destino da referência) mas, prioritariamente, como sede de trabalho de composição que faz de um poema ou de um romance uma totalidade irredutível à simples soma de frases. Ainda considerando que o Modernismo surge um tanto quanto tardiamente, na nossa literatura, a partir dos anos 40/45 do século XX (período pós-guerra, propício ao surgimento de uma estética de reação, de busca de uma liberdade expressiva, no aprofundamento do regionalismo), com Bandeira Tribuzzi (poesia) e Josué Montello (romance) e ainda que a maioria dos romances do referido século ergue-se a partir dos anos 50, quer se nos parecer coerente atentar para os signos da modernidade, por ventura transparentes nessa produção, ou seja: como o modernismo brasileiro (em termos de temática, estética literária, ideologia, contexto histórico, social e político) nela se reflete, percebendo as possíveis convergências entre o contexto histórico/ficcional do autor – o projeto de modernização do País, então em vigor – e a proposta estética do escritor e sob vários olhares, o texto literário como um documento e como escritura da memória. Como se pode deduzir, este nosso trabalho tem um propósito, um sentido muito mais historiográfico do que propriamente crítico/analítico. Em verdade, é o que pretendemos: uma pequena historiografia da Literatura Maranhense. Partindo-se da delimitação temática e do recorte teórico, no âmbito da Teoria e da Crítica Literária, a metodologia aqui adotada é a pesquisa bibliográfica pertinente ao assunto em perspectiva, contatos com os nossos escritores, participação/apresentação em colóquios, conferências, seminários, consulta a bibliotecas e centros acadêmicos, em paralelo à leitura da produção romanesca específica (partindo sempre da heurística para a hermenêutica). No que se refere à História/Cultura/Literatura Maranhense, em sua origem, contexto e trajetória, recorremos aos autores nacionais (Sílvio Romero, José Veríssimo, Massaud Moisés, Alfredo Bosi, Antônio Cândido, Jacyntho José Lins Brandão...) e aos nossos autores locais (Jerônimo de Viveiros, Antônio Lobo, Antônio Lopes, Mário Meirelles, D. de Abranches, Clovis Ramos, Jomar Moraes, dentre muitos outros, como veremos, e sobretudo ao nosso projeto de pesquisa de Iniciação Científica, BIC-Uema/Fapema Teares da Literatura Maranhense, iniciado em 2002 e em vigência até 2012). No que tange ao romance, em sua gênese e percurso diacrônico, convocamos teóricos da estirpe de George Lukács, grande estudioso da crítica – de Kierkgaard a Hegel (assim construindo uma teoria apta a fundamentar a sua crítica da cultura tradicional, na concepção de que o tempo é um processo de “absoluta degradação”) – em sua A Teoria do Romance, 18

obra de referência a outros teóricos, como Benjamin (no célebre ensaio O Narrador/1936, no ilustrar das diferenças no estatuto histórico das formas artísticas) e Adorno (em A Posição do narrador no romance contemporâneo – em que defende a necessária capitulação do romance ante o superpoderio da realidade, então passível de transformação na práxis e não mais transfigurada na imagem), obra em que fundamenta a sua argumentação na categoria da totalidade; Ian Watt, em A Ascensão do romance – resgate sobre a origem e sedimentação desse gênero literário que, na instância da classe média, do individualismo econômico, da visão inovadora de Descartes e Locke, enfim, todo um contexto de mudanças verificáveis no público leitor, bem como no papel social da mulher, vem a ser, na Inglaterra (a partir da primeira metade do século XVIII), o mais apreciado e consumido; Paul Ricouer, em Tempo e Narrativa (vol. 2 – a configuração do tempo na narrativa de ficção) – consistente debate entre tempo e narrativa, em que o autor discute as relações e tensões recorrentes entre o tempo da narrativa, o da vida e o da ação efetiva, numa interdisciplinaridade, através da qual interagem: a fenomenologia do tempo, a historiografia, a teoria da narrativa de ficção, sobretudo. Mikhail Bakhtin 17 , para quem o romance moderno eleva-se num internunciar-se de vozes, em simultaneidade, personagens indefinidas que se contradizem e relativizam, em discursos que sabem a “verdadeiros conjuntos filosóficos”. Franco Moretti (org.), em A cultura do romance (trad. de Denise Bottman), obra que, numa mescla de história e crítica literária, reconstitui todo o processo da ascensão, do apogeu e da crise do romance, em paralela à história do indivíduo – trajetória que o gênero formaliza em suas vicissitudes, embates, incongruências (VASCONCELOS, 2010), além de Irene A. Machado em O romance e a voz – a prosaica de Mikhail Bakhtin, dentre outros.

17 - em Problemas da poética de Dostoievski (1997) e Epos e romance (1998). 19

2 DA LITERATURA MARANHENSE: origem, primórdios, trajetória

O Maranhão [...] é terra que, com Gonçalves Dias, libertou a poesia brasileira; com João Lisboa, pregou o direito à revolução; com Aluísio Azevedo, incorporou o povo ao romance e pulverizou todos os preconceitos raciais de seu tempo; com Nina Rodrigues, criou a antropologia brasileira; com Gomes de Sousa, renovou a nossa matemática; com Sousândrade, ao fim do século XX, criou formas poéticas que somente eclodiram quase na segunda metade do século XX; com Viveiros de Castro, elaborou uma visão socialista do direito penal; com Franco de Sá, criou uma fonologia estética. (Franklin de Oliveira)

O Maranhão, ao longo de sua história, se vem demonstrando uma seara rica em produção literária, onde predominam os poetas, superando estes, sobejamente, os prosadores. Em verdade, é justo na poesia que os nossos literatos mais se têm revelado, numa incidência deveras impressionante. A poesia, aqui, como que estaciona em cada esquina, perpassa escadarias e becos, itinera pelas ruas e avenidas, ergue-se pelas praças, passeia pelos bares, articula-se nos teatros, instituições sindicais, comunitárias e/ou religiosas, estampa-se, grafada, pelos muros e paredões18, indumenta-se de ritmos e melodias nas escolas-de-samba, nos blocos carnavalescos, é entoada no canto coletivo do Bumba-meu-boi... E, do senso crítico, para o “senso comum”, costuma-se ouvir (aqui e lá fora) o que já virou jargão popular: “o Maranhão é terra de poetas”. E corre na boca do povo que, por estas plagas, onde estão reunidas duas, três pessoas, pelo menos uma destas escreve e/ou recita versos de sua própria lavra. Mito, lenda, jargão ou verdade das mais puras, com efeito, vale lembrar: desde os primórdios de sua fundação (atribuída aos franceses – 1612), na Ilha de São Luís (a Upaon- Açu dos Tupinambás), este pedaço de Brasil vê-se bafejado com o sopro da palavra-arte, respirando, transpirando literatura, pretexto e inspiração que foi para o surgimento das primeiras produções escritas nesta terra das palmeiras, onde canta o sabiá, na pena dos cronistas franceses Claude D‟Abbeville e Ives d‟Evreux – frades cenobitas, colonizadores/evangelizadores, integrantes da comitiva de Daniel de La Touche (Senhor de La Ravadière) e François de Rasilly (Senhor de Aumelles). O primeiro, ilustrado monge gaulês, natural de Abbeville, na Normândia (data e prenome de nascimento incertos – Clément? Firmin?), do tronco genealógico dos Foullons (família sensivelmente católica), falecido em Rouen, na França, em 162619 ou 163220 (após 23 anos de vida monástica), é autor de Histoire de la mission de pères capucins en l’Isle de

18 - como serve de exemplo o que podemos convencionar poesia mural, de tônus proverbial, do escritor/poeta Emylio Ayoub. 19 - segundo Ferdinand Denis In: Viagens ao Norte do Brasil, de Ives d‟Evreux – prefácio da obra. 20 - segundo Jean-Crétian Hoeffer In: Nouvelle Biographie Généralle. 20

Maragnan et terres circonvoisines (1614), primeira crônica, no gênero literatura de viagens, sobre a fundação da cidade. Em linguagem simples, objetiva, o autor vai narrando a tentativa de implantação da pretensa França Equinocial em terras maranhenses: a viagem, os primeiros contatos com os indígenas, num enfoque todo especial na primeira missa celebrada em terra firme, após o levantamento da cruz. O segundo (Simon Michellet, em seu prenome de origem), nascido em Normanville, provavelmente em 1557 e falecido em 1632 ou 1633 (no priorado de Saint-Eloy, próximo a Gisors), dando continuidade ao trabalho do compatrício, é autor de Suitte de l’histoire de choses plus mémorables advenues en Maragnan les années 1613 et 1614. Narrativas contendo episódios, os mais significativos, sobre a chegada e permanência dos franceses no Maranhão, contendo cenas variadas do cotidiano dos indígenas. Ambos historiadores/exploradores e entomologistas (com trabalhos interessantes no gênero, legados à cultura maranhense), ressalte-se, são patronos do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão (IHGM – criado em 1925, por iniciativa de Antônio Lopes), respectivamente das cadeiras de nº. 01 e 02 – aquela, fundada por Monsenhor Joseph Marie Lemercier e posteriormente ocupada por Monsenhor Ladislau Pop; esta, pelo geógrafo, professor e pesquisador (maranhense de Viana) Raimundo Lopes, autor (dentre outras produções relevantes) de Uma região tropical (1973). Como se pode ver, a tradição literária, um dos traços indeléveis da nossa cultura é, primordialmente, um legado dos franceses, os considerados fundadores da cidade, que já deixam, à terra, uma certidão de nascimento marcada por livros, uma produção escrita, uma referência literária. Pode-se dizer, pois, os missionários franceses supra referidos são os pioneiros na arte de fazer da região maranhense motivo de representação poética, ainda que em estilo de crônica informativa. São eles os primeiros a observarem/estudarem a natureza circundante, em suas pródigas e exuberantes fauna e flora, deixando um relato de grande importância histórica para as gerações pósteras. Mais tarde, é a vez dos Jesuítas, em missão catequética/evangelizadora, com destaque para o Padre Antônio Vieira (Lisboa-1608/Colégio da Bahia-1697), português de nascimento, chegado ao Brasil (Salvador-Ba.) aos seis anos de idade, portanto, cultural e literariamente brasileiro (baiano e maranhense), a aportar por estes rincões. Como se sabe, aqui no Maranhão, um dos grandes centros de cultura jesuítica no Brasil, toda ela, por excelência, literária, o representante da Companhia de Jesus, “imperador da Língua Portuguesa” – epíteto 21

de Fernando Pessoa (1972, p. 92), no poema Antônio Vieira21, do livro Mensagem – escreveu muitas das suas célebres Cartas, participou de lutas e contendas em favor da evangelização, da defesa dos indígenas, da moralização da Província. Dali, do púlpito da Igreja de Santo Antônio22, ele proferiu alguns dos seus famosos e eruditos Sermões. Dentre estes, o da Primeira Dominga da Quaresma (1653), o do Quinto Domingo da Quaresma (1654) e, na sequência de uma disputa com os colonos portugueses, o alegórico, memorável, Sermão de Santo Antônio aos Peixes (1654) – peça a revelar a surpreendente imaginação, habilidade oratória e a verve satírico/literária de Vieira que, em notável construção retórico/argumentativa, faz a apologia das virtudes e a censura rigorosa dos vícios humanos, na simbologia dos peixes. De forma que: a marca maranhense, na obra de Vieira, este grande precursor do diálogo entre culturas, “se faz notar com firmeza”, aponta Brandão (1979, p.25), acrescentando que o pregador “que sobe nos púlpitos de São Luís, difere daquele que sobe nos da Capela Real, em Lisboa, ou do Sacro Colégio em Roma”, posto que, ali, no interior daqueles templos europeus, tem-se o orador mais empenhado em seduzir o ouvinte – seja pelos voos conceptistas, pelas formalidades cultistas ou ainda pelos recursos de retórica; ao passo que, “o pregador que enchia com sua voz as naves das igrejas maranhenses, sabia se fazer entender por quem o ouvia” (id. ibid.), numa desenvoltura de quem se sentia em casa, com liberdade, portanto, para se dirigir aos ouvintes, apontando-lhes as faltas, corrigindo-lhes os defeitos, enfim, dizendo-lhes verdades. “Tenho dito tantas verdades, com tanta liberdade, a tão grandes ouvidos” (apud BRANDÃO, op. cit. p. 25) – eis o que se pode tomar como um elogio do pregador aos seus ouvintes, naquele tempo, neste lugar. Trata-se, pois, de um Vieira maranhense, o que se nos permite credenciar este nosso Estado como berço de parte significativa de sua obra (dele), influenciada esta, efetivamente, por determinadas e determinantes circunstâncias próprias desta região. A propósito, nessa “luta de Vieira a favor dos índios, podemos identificar o gérmen da vocação indianista do Maranhão. Seria por puro acaso que o nosso maior poeta indianista sairia justamente dessa messe que Vieira cultivou quase dois séculos antes? [...]” infere, perquirindo, Brandão (op. cit. p. 20-21). Até aqui, produções no/ou sobre o Maranhão. Não ainda o traçado caligráfico ou tipográfico da verve maranhense, nessas obras ainda projetadas no espelho d‟além-mar, refletindo a cultura lusitana.

21 - o céu „strella o azul e tem grandeza/ Este que teve a fama e a glória tem/ Imperador da Língua Portuguesa/ Foi-nos um céu também./ No imenso espaço seu de meditar,/ Constelado de forma e de visão,/ Surge, prenúncio claro do luar,/ El-rei D. Sebastião./ Mas não, não é luar: é luz do ethéreo./ É um dia; e no céu amplo de desejo,/ A madrugada irreal do Quinto Império/ Doira as margens do Tejo. 22 - na praça homônima, margeada pelo Seminário Santo Antônio e pela Escola Modelo Benedito Leite (Ensino Médio) – Centro. 22

Verdade é que, desde o século XVII, o sol da poesia já brilhava, no céu da pátria maranhense, em liras proscritas das quais não ficaram uma só obra que as testemunhasse, que atravessasse as gerações. Fato que, para José Veríssimo (1915, cap. XI, p. 120), explica-se na “existência de devassas contra os homens versistas, autores de sátiras contra os governantes”. Ei-lo a informar:

Bequimão, o cabeça dos motins de 1664, possuía e lia livros de histórias de revoluções. Mais de um dos fidalgos portugueses que governaram o Maranhão, além de Berredo23, o autor dos seus Anais, era homem culto e ainda de letras; e de outros funcionários coloniais portugueses como Guedes Aranha, Henriarte, há documentos preciosos do que chamo neste livro literatura de informação. Fosse qual fosse a constituição da sociedade maranhense nos tempos coloniais, tivesse ela no extremo norte a primazia da prosápia, da riqueza ou da cultura, e demais, um sentimento cívico mais apurado pelas suas lutas com o estrangeiro invasor, ou brigas intestinas que muitas foram e que, bem como aquelas, poderiam concorrer para lhe aguçar o entendimento, o certo é que, nesse período, não concorreu o Maranhão sequer com um nome para engrossar o nosso cabedal literário. Não há, com efeito, um só maranhense entre os escritores do período colonial (VERÍSSIMO, 1915, p.120).

Assim, arte literária, lavra dos escritores desta terra, mesmo, vem a despontar só mais tarde, no século XIX (já bem distante de um ideal catequético, pautado na educação indígena), com o advento do chamado Grupo Maranhense (1832-1864) – responsável, este, pela incursão e permanência do nosso Estado na literatura nacional, com os maranhenses destacando-se “nas mais importantes tendências das letras brasileiras” (BRANDÃO, op. cit. p. 15).

2.1. Grupos, movimentos, agremiações 2.1.1 O Grupo Maranhense em seu contexto histórico e literário

O século XVIII, pode-se dizer, é um tempo de consolidação dos ideais iluministas, por todo o Ocidente, em detrimento de uma prática de Estado e, por conseguinte, econômica (o Absolutismo e o Mercantilismo) que, vinculada à acumulação e a um fluxo de captação de reservas no mundo colonial, faz-se avessa a uma dinâmica de rendimentos, em novas modalidades da burguesia comercial e industrial europeia. A partir, pois, da Revolução Industrial (desencadeada na Europa, pela Inglaterra), se vai tornando perceptível o choque entre as forças produtivas, no trânsito da manufatura (voltada às reservas de mercado tipicamente coloniais) para a maquinofatura (propícia à flexibilização do acesso aos mercados, pela competitividade direta).

23 - Bernardo Pereira de Berredo e Castro (capitão de cavalaria (1718-22) que governou o Estado em 1718, usou dos seus conhecimentos na descrição e narrativa histórica, pormenorizando, com denodo e experiência, os fatos ocorridos na Província – à guisa de conferir, com inovação técnica, um tratamento quase que literário à sucessão dos seus dias no governo. 23

E eis delineado um quadro de crise, nas forças produtivas tradicionais, sobre a qual circunscreve-se a natureza do sistema colonial (crise já previsível, seja pela saturação de reservas econômicas via monopólio, assentado, este, na maturação dessas economias que, certamente, viriam a se chocar com tal prática exploratória; seja por força da nova orientação liberal, pautada na flexibilização econômica), agora não mais representando um signo de desenvolvimento, mas ainda viável para as nações inaptas à boa nova do liberalismo econômico, quanto ao livre comércio, à livre iniciativa e concorrência, como serve de exemplo o caso Portugal e Espanha. Daí, tornar-se, a Inglaterra, a grande arquiteta da emancipação colonial americana. Nesse contexto, duas alternativas impõem-se: o definitivo abandono das práticas coloniais (típicas da América espanhola); a flexibilização do mercantilismo (visando à preservação das reservas coloniais, típica da América Portuguesa). Na esteira da Ilustração, a reforma do Estado Absolutista traz a esse cenário (de crise do antigo sistema colonial) a figura do Marquês de Pombal – grande artífice da flexibilização do Estado Português e das inovações que reverteram o quadro da economia do Maranhão, no panorama da economia colonial brasileira. Mas, como reorganizar e recuperar a economia lusitana e ainda retardar a emancipação colonial? Urgem, a priori, algumas providências, tais como: a racionalização do orçamento (evitando os desperdícios, equacionando os gastos com a nobreza, limitando as atividades não tributáveis dos inacianos...); a diversificação da produção nos redutos coloniais, assim promovendo essa balança de deficitária a superavitária (em relação ao mercado europeu); a transformação dos estancos em companhias de comércio (outrora detentoras do monopólio, mas descumpridoras dos contratos então firmados); a desvalorização, o desestímulo da produção, no que tange a companhias que pudessem investir no revigoramento da exportação – contribuindo, assim, na dinâmica de reconstrução das manufaturas portuguesas. Eis o alicerce em que se institui a Companhia Geral de Comércio do Maranhão e Grão Pará – criada em 1756, no intuito de polarizar economicamente a região Norte do Brasil, trazendo para o Estado Português o controle do comércio e do tráfego, financiando, com o capital empregado pelos seus acionistas, a construção de navios, a importação de instrumentos agrícolas e assistência técnica, além do transporte de escravos24 da África, indispensáveis,

24 - que, na Costa africana, orçava entre 11$000 e 13$000, bastante oneroso, pois,sem contar os tantos óbitos ocorridos nas viagens, o que motivava a venda a crédito, dos escravos aos fazendeiros (id. ibid.) 24

estes, nas lavouras de arroz, algodão, cana-de-açúcar (MARQUES, 1970) e de outras culturas que também se desenvolvem no período, como cravo, café, cacau. É a partir desse momento que se vai abrindo e estabelecendo, no Maranhão, um período de escravidão25 africana sem precedência. Segundo Mesquita (1987), a companhia trouxe, aqui para o Estado, mais de 12.500 escravos, solucionando, assim, o problema da falta de braços. A prosperidade econômica (sobretudo graças ao algodão) e à admirável conquista de um status político, junto à metrópole, também se vai delineando e num clima a favorecer outros setores do conhecimento humano e científico, capaz de elevar a Província a um patamar de destaque, no campo das artes, especialmente das letras, com os maranhenses crescendo e aparecendo, em âmbito nacional. Enfim, um tempo em que se fundam sociedades recreativas, proferem-se conferências, vem a lume a Festa dos Remédios, em todo o seu dinamismo, inaugura-se o Liceu Maranhense (24.06.1838), afloram e multiplicam-se as gráficas (atendendo-se à demanda de serviços do gênero, de todo o País), consolida-se o jornalismo literário. Digno de registro, entretanto, é o fato de que, antes mesmo de consolidar as suas artes/atividades gráficas, com uma imprensa oficial, o Estado já dispõe, em 1821, de uma folha manuscrita e informal (à moda das outrora circulantes nos internatos e que, tempos depois, vêm a ser adotadas nos cursos superiores, difundindo-se, por toda a capital, em cópias e mais cópias). Ao final desse mesmo ano, passa, esse folhetim caligráfico/manuscrito, à impressão, sob o mesmo título original de O Conciliador Maranhense, a rever “o generoso intuito de empecer as demasias da agitação nacionalista, já bem começada contra os reinóis” (VERÍSSIMO, op. cit., p. 120). É, portanto, O Conciliador Maranhense o sêmen gerador da nossa jornalística, que se vai desenvolvendo, com o passar dos anos, dando ensejo (a partir de 1825) ao surgimento de publicistas, como Odorico Mendes e Sotero dos Reis (dois dos mais importantes representantes daquele Grupo), seguindo-se João Lisboa (a partir de 1832), destacável no meio da imprensa, devotando-se, pelo resto da vida, a essa atividade, escritor dos mais zelosos e apurados no uso da língua. O jornalismo literário, por seu turno, inicia-se um pouco mais tarde (1840), ainda com Sotero dos Reis, na sua Revista – uma “folha político-literária” (conforme indicado no próprio subtítulo), a veicular matérias do gênero, numa tônica doutrinal, estilo altissonante, linguagem elegante.

25 - ressalte-se que os africanos começam a chegar no Maranhão a partir de 1680. Em 1685, é enforcado, no local que se tornou a sua praça homônima, Manuel Beckman, por liderar uma revolta contra Portugal, rebelando-se contra os abusos da política econômica imposta à Colônia. Em 1709, surgiu o primeiro quilombo, seguindo-se de outros, sempre perseguidos pelos governos representativos de Portugal. 25

É nesse contexto que surge o Grupo Maranhense – contemporâneo da primeira geração romântica, de origem e/ou residência fluminense – uma força diversa na dinâmica do Romantismo, até mesmo por suas formas de produção, congregando escritores a exemplo de Odorico Mendes, “o mais acabado humanista que já tivemos”, no dizer de José Veríssimo (op. cit., p. 188) e João Lisboa, destacável, no meio jornalístico de sua época, publicando em seu Jornal de Tímon; Sotero dos Reis, Gonçalves Dias, Henriques Leal, Gomes de Sousa, Trajano Galvão, Sousândrade, César Augusto Marques e ainda outros de menor repercussão, como Frederico José Corrêa, Lisboa Serra, Cândido Mendes, Nunes Leal, Belarmino de Matos, Gentil Braga, Franco de Sá, Dias Carneiro, Joaquim Serra, dentre outros. Nesse interlúdio de vigência do Grupo Maranhense, vale ressaltar a instância da Associação Literária Maranhense (presidida por Alexandre Teófilo de Carvalho Leal, dileto amigo do poeta Gonçalves Dias), da qual fizeram parte: o próprio G. Dias, o biógrafo Antônio Henriques Leal26, o pesquisador Antônio Rego, o historiador Luís Antônio Vieira da Silva, o crítico José Frederico Corrêa, o educador Pedro Nunes Leal, o poeta vitoriense Augusto César dos Reis Rayol. Criada em 1844, por estudantes do Liceu, a entidade, precursora da Academia Maranhense de Letras, edita importantes periódicos científicos e literários, como o Jornal de Instrução e Recreio (1845) e o Archivo (1846). (CANTANHEDE, 1999). No traçar de um panorama da São Luís dos meados do século XIX, Yves Mérian (apud BORRALHO, 2011), confirmando o exposto acima, dá conta de que, a essa época, na cidade, já funcionavam gráficas modernas, favorecendo o estabelecimento de uma imprensa apta à publicação de jornais literários (de circulação semanal ou quinzenal) e de livros, com excelente qualidade tipográfica – ainda que alguns escritores maranhenses preferissem que seus livros viessem impressos da Europa, mais especificamente da França (Paris) e de Portugal (Lisboa e Porto). Exemplares da Literatura Portuguesa e Francesa (dentre outras), ocupavam as prateleiras das livrarias ludovicenses da época. E os leitores, por ventura impossibilitados de adquiri-los, poderiam lê-los (ou tomá-los de empréstimo) na Biblioteca Pública (fundada em 1829, sediada no Convento do Carmo) e/ou no Gabinete Português de Leitura, criado em 1852, numa iniciativa do comerciante luso David Gonçalves de Azevedo – pai dos irmãos Azevedo, Arthur e Aluísio, grandes representantes da nossa literatura e dramaturgia nacional. Com efeito, o “movimento editorial era de tal ordem, em São Luís, que José de Alencar teve um dos volumes de seus discursos parlamentares editados lá”, diz Maia (1981, p. 10),

26 - o nosso Plutarco, autor de Pantheon Maranhense (Lisboa, Imprensa Nacional, 1878)– obra magna de nossa literatura, escrita em quatro tomos, contendo a biografia de dez dos nossos autores mais tradicionais, fundadores da nossa Literatura. 26

acrescentando que: “Grandes Revistas Literárias, um jornalismo extremamente vivo e atuante, grandes livrarias, tudo isso suscitou no Maranhão, durante pelo menos meio século, uma ebulição intelectual realmente singular” (id.ibid) – polaridade cultural que se explica e justifica, ainda segundo o autor referido, na posição geográfica do Estado, em pleno período colonial. Ei-lo a inferir:

O Maranhão estava mais perto da antiga metrópole do que dos outros centros culturais brasileiros. Depois da independência, esses contatos não cessaram as linhas de navegação que uniam São Luís a Lisboa e a outros portos europeus em que contribuíram para conservar e desenvolver os mesmos contatos intelectuais e sociais com o velho mundo, daí resultando o fato de que boa parte da geração de doutores maranhenses, no século XIX, é de formação europeia sobretudo Coimbra (MAIA, op. cit. p. 10). Sobre esse momento importante, no contexto da formação da nossa historiografia literária, ainda a impressão de José Veríssimo (op. cit., p. 188), que expressa:

Quaisquer que tenham sido as suas determinantes, existia, já, nessa época de independência, o gosto literário no Maranhão. Prova-o o apuro com que ali se estudava e escrevia a língua nacional em contraste com o desleixo com que era tratada no resto do Brasil e a parte que ali se dava no mesmo jornalismo político à literatura. Provam-no mais outros fatos. Em 1845, uma sociedade literária, composta de nomes não de todo obscuro nas nossas letras, funda um Jornal de Instrução e Recreio que, além de versar assuntos didáticos e pedagógicos, era revista de literatura amena. Outro grupo de homens de estudo e letras, no qual se encontram alguns do primeiro, fundou, no ano seguinte, uma Sociedade Filomática, a qual, também, publicou uma Revista e iniciou, antes de ninguém mais, no Brasil, as conferências literárias. Caso talvez mais notável, desde 1847, tinha o Maranhão uma imprensa capaz de imprimir com decência que lhe podia invejar a Corte, obras volumosas como os Anais de Berredo. Nessa oficina, aprendeu Belarmino de Matos, talvez o melhor impressor que já teve o Brasil, e dela saiu para montar uma própria, onde nitidamente imprimiu bom número de obras, com acabamento então único e ainda hoje raro excedido. Não menor testemunho desse pendor maranhense, a possibilidade ali de livros como os de Sotero dos Reis e de publicações como o Jornal de Tímon. A essas alturas, portanto, não mais os europeus, em suas memórias e impressões da terra e seu povo, mas o próprio maranhense, a tecer uma arte literária “que logo se fará digna de admiração nacional, pela cultura e talento dos que a produzem” (MORAES, 1976, p. 89), pelo espírito revolucionário, inovador e renovador de escritores aptos a erigir uma obra monumental, a caracterizar-se “pelo vanguardismo que sempre colocou nossos homens de letras à frente dos debates, das novas ideias e da renovação dos padrões estéticos” (id.ibid) – mérito que se faz realçar na lira maviosa de um Gonçalves Dias, nas “harpas de oiro” de um Sousândrade, na plasticidade da prosa aluisiana, na sátira poética, prosaica e dramatúrgica de Arthur Azevedo, na sonetística parnasiana de Raimundo Corrêa e Adelino Fontoura, no Simbolismo de Maranhão Sobrinho, na crônica artística de Humberto de Campos, na prosa admirável de Coelho Neto, no espírito controverso e modernista de Graça Aranha e, em 27

termos mais remotos, no pioneirismo de Maria Firmina dos Reis27. Em tempos mais recentes (sec. XX), na romanesca primorosa de autores como Josué Montelo, João Mohana, Bernardo Almeida, Odylo Costa, filho, Waldemiro Viana, Ribamar Galiza... na contemporaneidade transcendente e inovadora de poetas como Bandeira Tibuzzi, José Chagas, Nauro Machado, Arlete Nogueira, Ferreira Gullar, Laura Amélia Damous, Lenita de Sá, Luís Augusto Cassas... Outro aspecto a corroborar a importância dessa Literatura é a sua presença e permanência, confirmadas no panorama das letras nacionais, ao longo de sua história/trajetória, notadamente em quase todos os gêneros e estilos de época. Com efeito, para cada estilo (com exceção do Arcadismo) e gênero literário (da oratória ao teatro, da poesia à prosa de ficção), como ainda o ressalta Brandão (op. cit.,p.19), “ergue- se uma voz maranhense de destaque”, a começar pelo barroquismo de Vieira, seguindo-se o romantismo de Gonçalves Dias; o realismo de Aluísio e Arthur Azevedo; o parnasianismo de Raimundo Corrêa; o simbolismo e pré-modernismo de Graça Aranha; o modernismo de Josué Montello e João Mohana; a literatura infanto-juvenil de Viriato Corrêa... Pode-se dizer que esse já referido Grupo Maranhense, progênie ilustrada de eruditos humanistas e intelectuais – educadores, gramáticos, jornalistas, poetas, romancistas, teatrólogos, biógrafos, críticos, historiadores, tradutores, matemáticos, músicos, pintores – contemporâneo da primeira geração romântica, vem oportunizar ao nosso Estado o dotar-se de uma autêntica, autônoma e respeitável literatura. Com a vigência desse Grupo, podemos falar num período áureo, tanto para as nossas Letras – a contar, de 1832, com a publicação, no Rio de Janeiro, de Hino à tarde, de Odorico Mendes28, a 1868, ano em que surge a Revista Literária, de Joaquim Serra, e suspende-se o Semanário Maranhense29, publicando-se, a seguir, os Frutos Selvagens (poesia-1893) de Xavier de Carvalho (1871-1944) – como para a nossa agricultura. É quando a São Luís provinciana do século XIX, cujo perfil (ainda aristocrata/escravocrata) nos é retraçado por Aluísio Azevedo, n’O Mulato (1881); por Nascimento Moraes (1882-1952), em Vencidos e Degenerados (1915) e Neurose do Medo (1923); por Dunsche de Abranches (1867-1941), em A Setembrada – ou revolução de 1831 em Maranhão (1933), A Esfinge do Grajaú (1940) e O Cativeiro – memória (1941); por Jerônimo de Viveiros (1884-1965), em História do Comércio do Maranhão (1954 – em 3 vols-1612/1934), transparece (também) no depoimento do norte-americano Revdo. Pe. Daniel Kidder (em visita a nossa capital, nos anos 40 do referido século) como “[...] a cidade [...] de

27 - a “matriarca” do romance maranhense – posto que o nosso romance é “um filho da Mãe”. 28 - nosso Virgílio brasileiro, tradutor da Eneida, “o mais acabado humanista que já tivemos”, ainda no dizer de José Veríssimo (Rio de Janeiro, 1915) 29 - é a divisão didática de Reis Carvalho, apud MORAES, 1976, p. 50. 28

melhor construção que qualquer outra no Brasil” (apud MORAES, 1976, p. 53), ostentando “um aspecto de progresso que raramente se nota em outras cidades do Império” (id. ibid). E, prosseguindo em suas impressões, o referido clérigo dá conta de que:

Nenhuma de suas igrejas é de grande porte ou por demais suntuosa; entretanto, muitas residências são de fina construção, estilo elegante e aparência sólida. As paredes são fortes, construídas de pedra britada ou cimento. Conquanto o casario não seja denso, a cidade espalha-se por uma grande área. [...]. Os maranhenses alegam possuir, e não sem razão, um grau de desenvolvimento intelectual e moral comparável ao de seus patrícios das maiores cidades do Império. Se perseverarem em seus esforços, continuarão a merecer a admiração e o respeito de seus concidadãos como dos estrangeiros (KIDDER, apud MORAES, op. cit., p. 53).

É um novo tempo para o nosso Estado – agora descortinando novos horizontes, num panorama diverso daquele vislumbrado no período colonial. São Luís, ora projetando-se num novo visual, não é mais aquele “burgo podre” onde os seus habitantes vestiam-se em “camisões de algodão bruto, tingidos de preto, como se todos portassem permanente luto por sua miséria” (MEIRELLES, 2001, p.33). O século XIX, pois, afigura-se como uma época de prosperidade econômica, advinda do grande latifúndio, tendo no algodão30, no arroz e no açúcar, os produtos que alavancam tal desenvolvimento. É quando a topograficamente bela Província (que, pelos gritos de Manuel Beckman e da maior parte da população, protestara contra a política da primeira Companhia de Comércio do Grão Pará e Maranhão), passa a ser o lar de ricos proprietários de casarões ricamente mobiliados e revestidos de belos azulejos portugueses. Casarões, em cujo interior, as mulheres ornamentam-se com joias finas, ungem-se com perfumes da melhor qualidade (adquiridos de representantes comerciais franceses e ingleses). Num retrospecto cronológico e num breve tour pelo centro comercial e histórico da São Luís desses idos do século XIX (primeira e segunda metade), em seu perímetro urbano, focalizado, da Rampa Campos Melo ao ancestral Campo d‟Ourique, com o seu primitivo Largo do Quartel 31 (área hoje ocupada pelas Praças Pantheon, Deodoro e adjacências, agregando a Biblioteca Pública Benedito Leite, o Sesc/Senac, o Liceu Maranhense, o Ginásio Costa Rodrigues), cortado pela linha do Bond, podemos ver de perto o alto comércio, representado pelos armazéns de fazenda, de ferragens e de estivas. Descendo à Praia do Caju (correspondendo ao trecho, ainda hoje, conhecido como Reffsa) e arredores, na Avenida Beira-Mar (onde funcionou a antiga estação de trem), próximo à Ponte do São Francisco – e

30 - o algodão, a propósito, chega a ser responsável por 70% no nosso índice de importação. 31 - porque fronteiro ao antigo Quartel do 5º. Batalhão de Infantaria (1797), possivelmente o primeiro edifício militar do Brasil, construído segundo Carta Régia de 27.06.1792 e Portaria de 12.09.1793. 29

que, nos anos 70 e 80 do século XX próximo passado, incluía o já extinto, mas então famoso “Baixo Leblon32”, ora destacando-se, por ali, o Plantão Central da Polícia Civil, a Praça Maria Aragão...), tem-se a Estrada de Ferro São Luís-Caxias (idealizada em 1809), para onde se está dirigindo o Cais da Sagração (iniciado em 1841), transmudando a paisagem beiramarinha de então, conforme expresso nesta quadrinha de Euclides Farias (apud VIVEIROS,1964, p.93): “Também gostei n‟outro dia/ de passear pelo cais;/ tapou-se tudo de areia/ a maré não volta mais;/ quem vem lá do baluarte/ e quer ir a outra parte/ não precisa ir pela rampa;/ porque sem molhar o pé,/ sobe a Rua dos Barqueiros/ vai sair atrás da Sé”. É a São Luís de outrora, dos casarões/sobradões, dos palacetes de azulejos portugueses com carruagens à porta, puxadas por elegantes parelhas de cavalos, a trafegar, por sobre as pedras de cantaria das ruas coloniais, conduzindo a socialite da época, pretensamente aristocrática, admirável, portanto, no modus vivendi rotineiro, na educação esmerada, na granfinesse dos gestos, na elegância do vestir e do falar. A capital mimeticamente europeizada, de centro comercial prolífero em lojas francesas (para o glamour das jovens ludovicences de então), a concorrerem com as populares Casa Inglesa e Casa Brasileira – a primeira, por sinal, destacável, em suas vendedoras simpáticas e cativantes, no trato para com a clientela, além de um sortimento sempre renovado em Paris e trovadorescamente divulgado (sobretudo em época natalina), como se pode apreciar a seguir, ainda nestas das tantas quadrinhas rimadas de Euclides Farias (id. ibid., p.22 a 24): Se quiseres ver de perto/ Numa perfeita Babel/ Vai à Caza Brasileira/ visitar o Ezequiel// Chapéus, capotas, mantilhas/ Rendas bordados e fitas/ Nas lojas da Caza Ingleza/ Vendem caixeiras bonitas// Na Havaneza, que brincos!/ Que cortes de enfeitiçar!/ Só tu os vendo, menina/ Poderás acreditar. A São Luís próspera, do apogeu da agricultura maranhense, do afluxo das riquezas provindas do cultivo do algodão, do arroz, da cana-de-açúcar e do bem sucedido comércio interno/externo desses produtos. Tempo em que, como bem o lembra Viveiros (1956, p.05), “as exportações do Maranhão ultrapassaram as de Pernambuco, ombreando-se com a Bahia, então maior centro econômico do Brasil” – comércio de relações exteriores que vem conferir à Província “o status de uma elite econômica e cultural, promovendo-a à categoria de 4ª. cidade brasileira, justificando-lhe, pois, o codinome de Athenas do Norte” (SIMONSEN, 1976, p. 34). Vale lembrar que a capital maranhense ostenta, ao longo de mais de um século, a coroa de Athenas Brasileira, epíteto advindo dos méritos literários conquistados pelo Grupo

32 - recanto noturno de poetas, intelectuais e artistas, estudantes secundaristas e universitários, no final da década de 70, para os anos 80, início de 90... 30

Maranhense, ecoando por todo o território nacional e num tempo em que a eclosão do Romantismo, simultaneamente a nossa independência política, vem a emancipar a nossa literatura. É justamente a essa época que se dá a inclusão do nosso Estado na comunidade das demais províncias nacionais, com a brilhante participação e atuação nos movimentos de renovação intelectual, através do já citado Grupo Maranhense, liderado por excelsos homens de letras, como os já supramencionados e ainda outros poetas considerados menores, mas significativamente importantes, como: Frederico Corrêa, Cândido Mendes, Trajano Galvão, Gentil Braga, dentre tantos outros a integrarem essa excepcional agremiação de intelectuais humanistas, dignos da mais viva admiração nacional, a reunir-se, quase sempre, na casa de Gentil Braga – “um vasto imóvel sito à Rua Grande, esquina da do Passeio, e encimado por uma torre de azulejos, no alto da qual existia um mirante onde o tradutor de Eloá escreveu as páginas delicadas do seu Entre o Céu e a Terra” (ABRANCHES, 1992, p. 105-106) e que vem conferir, às nossas letras, um colorido eclético, num misto de tendências humanísticas e de estilos variados. A propósito, Fran Paxeco33, em sua Geografia do Maranhão (1923, p. 222)34, referindo- se a nossa lavoura, à época (sec. XIX), diz que as “tradições agrícolas do Maranhão chegaram a emparelhar-se-lhes às tradições literárias. Eram dois predomínios que nenhuma zona brasileira lhe requestava, porque se criara um tom uníssono em torno dessas verdades axiomáticas”. Segundo Moraes (1976), não se tratando de uma escola literária ou estilo de época, mas de exemplo edificante de uma geração talentosa que, sensível a estéticas diversas, constrói o seu espaço no cenário literário nacional, este primeiro ciclo da Literatura Maranhense desdobra-se em duas vertentes: uma conservadora (neoclássica) e outra renovadora (romântica), assim confrontando-se uma velha-guarda a uma juventude arejada pelos ventos da modernidade, consciente dos dilemas da época, voltada, pois, aos grandes temas do momento: a consolidação do caráter nacional, a avaliação histórica do passado, a abolição da escravatura, os ideais republicanos. Grupo, “cujas preferências temático/estilísticas refletem, romanticamente, na paisagem poética, a cor local da Terra Enfeitada e Rica35” (CORRÊA, 2008, p. 86), presentifica-se, distinguindo-se, na literatura nacional brasileira, sobrelevando-

33 - Manuel Francisco Pacheco – português, radicado no Maranhão; professor de Português, Aritmética, Geografia, História, Literatura e Francês. 34 - ed. de 1923. São Luís: Tip. Teixeira, p. 222. 35 - livro do escritor Astolfo Henrique de Barros Serra (Matinha-Ma. 22.05.1900/Rio de Janeiro, 19.02.1978), publicado em 1941. 31

se, pela “sua mais clara inteligência e a sua maior largueza espiritual” (VERÍSSIMO, apud MORAES, op. cit., p. 50). Como já foi dito acima, o Maranhão marcou (e ainda marca) a Literatura Brasileira, deixando, em cada estilo de época (com exceção do Arcadismo), o estigma de sua presença. Mas, é a partir do Romantismo, que se veem alargados os horizontes de nossas Letras, com um lavor poético a elevar-se nos acordes líricos/indianistas dos Primeiros Cantos gonçalvinos; da Harpa de Oiro e do Guesa Errante sousandradinos; dos silentes Cantos à Beira-Mar firminianos. Na prosa de ficção, ainda que relegada ao esquecimento, à desatenção local e nacional (como despercebida, também passou, com sua poesia), é ainda Maria Firmina dos Reis36a se fazer “presente”/(ausente) e no pioneirismo do seu romance de tônus abolicionista, Úrsula. Seguem-se, já na segunda metade do século e no trânsito para o século XX, os irmãos Azevedo: Aluísio (a introduzir, ao lado de Machado de Assis, o Realismo/Naturalismo nas letras brasileiras) e Arthur (com o seu riso jocoso e vibrante, na poesia, no conto e, sobretudo, no teatro). É, pois, sob os auspícios de tendências estéticas, as mais variadas, que o Maranhão se vai harmonizando e legando, à Literatura Brasileira, o inconteste exemplo de uma geração tão operosa quanto talentosa, a repercutir, na nossa memória histórico-literária, na tonalidade do Grupo Maranhense. No final do século XIX (1870-90), já na virada para o século XX, outra onda de inspirados intelectuais insurge-se na nossa literatura, renovando o seu ambiente cultural de origem, tais como: Celso Magalhães, Teófilo Dias, Adelino Fontoura, Euclides Farias, José Ribeiro do Amaral, Teixeira Mendes, Hugo Leal, Nina Rodrigues, dentre outros – como Domingos Quadros Barbosa (São Bento-Ma-08.11.1880/RJ-26.12.1946, jornalista, político, orador e por excelência prosador)37, com seus livros de contos: Os Mosaicos (1908), O Dominó Vermelho (1909), Contos da Minha Terra (1911). O tempo passa, as coisas mudam e essa contingência da vida verifica-se, também, na história/trajetória da Literatura Maranhense que, atravessando uma fase de declínio (em similaridade a uma outra crise de decadência na economia do Estado), vem a inaugurar uma promissora fase de renovação intelectual, com o surgimento da nova geração dos atenienses, em 1899, que permanece até 1930. Intervalo em que se destacam intelectuais e homens de

36 - descoberta e retirada das páginas dos jornais, em seus escritos, na década de 70 (sec.XX p/p) e, enfim, visibilizada em livros, em contos (Gupeva) cantos (Cantos à Beira mar – poesia) e romance (Úrsula), pelo escritor Nascimento Moraes Filho. 37 - Domingos Quadros Barbosa Álvares, contista apreciado e orador de largos recursos, fundador da cadeira de nº. 2, da AML, patroneada por Aluísio Azevedo). 32

letras, como os supra referidos, além de Raimundo Correia, Coelho Netto, Graça Aranha, Nina Rodrigues, Dunsche de Abranches, Barbosa de Godois, Antonio Lobo, Maranhão Sobrinho, dentre tantos a surgirem posteriormente e que muito honraram o Maranhão na Academia Brasileira de Letras. E algo de memorável, com repercussões na vida cultural e na literatura maranhense, vem sinalizar o alvorecer desse tempo de renovação: a visita de Coelho Neto, em 08 de junho de 1899 (em recepção organizada por Antônio Lopes, com a participação de Sousândrade), para orgulho e euforia dos seus compatrícios – evento que se faz registrar nas Memórias de Humberto de Campos, donde o excerto (apud. MEIRELLES, 1958, p. 64-05):

O Maranhão ressonava, desde o crepúsculo vesperal da monarquia, quando havia emigração para o sul e para o norte dos mais belos espíritos que a província então produzira, num fundo sono, vizinho da morte. De súbito, aparece-lhe, cercado de sua glória risonha e nascente, em visita ao berço natal, em 1899, Coelho Neto. À sua voz de pastor, as ovelhas se levantaram. A juventude maranhense, vencida, antes de combater, toma-se de coragem. Um sopro ardente de vida e de esperança congrega os atenienses, que já haviam esquecido os grandes vultos da pátria. E funda-se a “Oficina dos Novos” que deslinda a operar num milagre, a ressurreição do espírito literário e que vem oferecer efetivamente, ao Maranhão, a sua última geração de escritores com projeção fora do Estado. E assim é que, em 1900 (28 de julho), é instituída e legalizada, a Oficina dos Novos, abrindo uma época de grande efervescência intelectual, em São Luís, que se estende até 1908. Extinta a Oficina, outra geração de jovens escritores organiza a sociedade Renascença Literária – durante cuja vigência seus integrantes veem-se motivados a fundar uma Academia de Letras, a surgir pouco depois, agremiando intelectuais de estirpe. E o grande arquiteto desse projeto que, no seu caráter de permanência, muito tem contribuído no desenvolvimento da nossa cultura e literatura, não poderia ser outro que o (hoje um tanto quanto esquecido) professor, jornalista, escritor poeta, ensaísta, tradutor 38 , romancista e cronista39, Antônio Francisco Leal Lobo (1870-1916 – donde o epíteto “A Casa de Antonio Lobo”, para o sodalício) – sobre o qual diz um outro Antônio40 (Lopes) seu conterrâneo e admirador:

O alto espírito de Antônio Lobo sintetizou e completou o Maranhão intelectual contemporâneo e isto hão de reconhecer não só os seus amigos, mas também os homens que lhe moveram guerra. Foi ele a figura central da nossa atividade literária ao redor da qual se desenvolviam, animados de sentimentos diversos, como os astros se movem à volta dos sóis por virtude de forças de atração e repulsão, todos os elementos, todas as correntes do nosso pensamento. [...].

38 - de Stenkiwiez (Debalde-romance); Bisson (O juiz sem juízo-comédia, em parceria com Fran Paxeco); François Coupée (Henriqueta- romance). 39 - A carteira de um neurastênico (romance-1903); Pela rama (crônicas-1912). 40 - Antônio Lopes da Cunha – advogado, professor, jornalista, ensaísta, folclorista, primeiro Secretário Geral da Comissão Maranhense de Folclore do Maranhão (órgão vinculado à Unesco), membro da Academia Maranhense de Letras, fundador do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão. 33

[...]. Tinha o seu espírito como qualidades primaciais: a clareza, a faculdade de apreender as ideias integralmente, concebendo-as sem nebulosidade sempre de maneira mais positiva, o que lhe imprimira pendor especial para as ciências e fez dele um homem de letras doublé de um cientista, de um pensador, desviando-lhe a atenção da literatura para a biologia, a lógica, a pedagogia, a sociologia, a filosofia, o direito e outros domínios do saber que perlustrou com insaciável curiosidade (LOPES, 1973, p.66-67).

2.1.2. Os Novos Athenienses, A Oficina dos Novos e a Renascença Literária no Maranhão entressecular (1890-1910): perfil ideológico e literário.

Na visualização da época em referência, dois eventos fazem-se imprescindíveis, como ponto de partida, na reflexão deste contexto em análise: a libertação da escravatura41 e a proclamação da república. Recordemos, pois, aquele 13 de maio de 1888, quando a “redentora” (Princesa Isabel), no uso de suas atribuições legais/regimentais, no exercício interino do Governo Imperial, assina a Lei Áurea (de nº. 3.355), composta, unicamente, de dois artigos:  1º. – é declarada extinta a escravidão no Brasil;  2º. – revogam-se as disposições em contrário. E eis que o Sol da LIBERDADE, em raios fúlgidos, reabriria as suas asas sobre nós. No Maranhão, entretanto, assim como em todo o Nordeste brasileiro, o contingente de recém- libertos (como que ainda despreparado para essa conquista, quiçá, influenciado/condicionado pela ideologia e postura dos seus ex-senhores, para os quais era o ócio, o magno privilégio da liberdade) não alçou o voo sublime, ou seja, não se aventurou em novas investidas, não ousou novos empreendimentos, preferindo, em sua maioria, permanecer como e onde estava ou ainda a perambular, de fazenda em fazenda, ou destas para o engenho e vice-versa – até porque o sertão já se estava povoando e a cidade a despertar/alimentar a doce ilusão de uma vida melhor. É de se convir, nessa situação, todos os setores econômicos da Província desarticulam-se, na falta do braço escravo. Vale ressaltar que, desde 1846, a população escrava já descambava para outras províncias, tornando-se a exportação de escravos um novo ramo de comércio rentável, no Maranhão. De tal forma que, em 1853, o Presidente Eduardo Olímpio Machado (apud VIVEIROS, 1978, p. 51) manifesta:

Introduzem-se os braços que vão faltando, pela aquisição de colonos estrangeiros; pela civilização das tribos de índios selvagens; pelo melhoramento da raça escrava, que bem precisa de leis que lhe aperfeiçoem a condição; abrem-se novas vias de comunicação e melhoram-se as existentes; regularize-se o sistema de imposição, que deve recair com igualdade sobre todos os ramos da produção; dê-se maior desenvolvimento à navegação por vapor; e procure-se transformar os hábitos ociosos

41 - cuja repercussão entre os maranhenses, em São Luís é tema do romance Vencidos e Degenerados (1915) de Nascimento Morais. 34

do trabalhador rural, isentando-o da Guarda Nacional e do recrutamento, e dando-lhe datas e terras de 5.000 braças, com casas, ferramentas e sementes, e não demoraria muito que se visse a agricultura da Província, cuja sorte não considero ainda desesperada, reconquistando a posição que perdeu. E tudo ficando apenas nas belas intenções

... a liberdade dos escravos e o advento da República, uma desorganizando o trabalho agrícola e o outro criando novas obrigações para o Estado, determinaram, no Maranhão, uma tremenda crise econômica, que se prolongou por um lapso de tempo de cerca de um quarto de século (id. ibid. p. 51). As preocupações com a atividade de sustentação da economia maranhense (o trabalho agrícola, já entrando em declínio nos meados do século XIX), como se pode deduzir, a partir das entrelinhas do excerto, já tiram a paz, não só da cúpula governamental, como da intelectualidade da época, instigada, esta, a levantar hipóteses, a apontar soluções à problemática econômica e social do Estado – decorrente, não só de um processo desumano de escravidão, que levava o recém-liberto à apatia e à indiferença, como da falta de homens instruídos e dispostos a promover o bem estar social; e ainda de capital para o investimento em novas técnicas de cultivo e, sobretudo, de tino industrial – causa esta, associada à ideologia liberal burguesa, tão apologizada na sociedade da época. E vamos ao segundo evento do século, que se faz marcar no calendário em 1889, precisamente a 15 de novembro: a Proclamação da República – a cujos arroubos juntara-se o descontentamento dos militares, culminando com um manifesto redigido por Rui Barbosa e assinado pelo Marechal Manuel Deodoro da Fonseca, em defesa da honra militar. Recorde-se que a invalidez de D. Pedro II (por conta do diabetes e do impaludismo, no risco de ter que passar, definitivamente, a Coroa à Princesa Isabel, indo esta, possivelmente, alojar-se na cabeça do estrangeiro Conde d‟Eu), viria a reunir os vários grupos de republicanos tradicionais: a juventude civil (então a vibrar nos tons do Positivismo e da Maçonaria); os insatisfeitos militares (jovens e senhores, instigados pela convivência com as forças armadas argentinas e uruguaias, na Guerra do Paraguai); os antigos monarquistas escravocratas (descontentes com Abolição da Escravatura); e ainda parte do clero (no ressentimento da Questão Religiosa). De modo que, ao difundir-se a notícia da prisão de Deodoro da Fonseca e Benjamim Constant, arvoram-se os republicanos e, na madrugada do dia 15 de novembro, saem à rua com a tropa e prendem o Barão de Ladário, então Ministro da Marinha. Livre, Deodoro vai ao Palácio, onde está reunido o Gabinete Ouro Preto e, no fervor dos acontecimentos, proclama a República – num “brado retumbante”, a fazer coro aos vivas (Viva a República!!) gritados 35

pelos militares às janelas do Quartel-General. Chamado às pressas, de Petrópolis, D. Pedro já chega tarde: a República fora mesmo proclamada. Assim foi no Rio de Janeiro – o palco desse acontecimento. Outro é o clima em São Luís do Maranhão, onde o efeito da Proclamação da República42 fica limitado à arruaça de um grupo de ex-escravos (desavisados de que o novo regime traria de volta a escravatura), à porta do Jornal O Globo, de Paula Duarte e Casemiro Júnior. Diga-se de passagem: inexpressivo, no Maranhão, o movimento republicano reúne poucos adeptos, contando quase só com Paula Duarte, Tasso Fragoso e Enes de Souza. Importante ainda, a notar, é que o governo maranhense continua em poder do Partido Conservador, ora disfarçado em republicano, sob a legenda de Partido Federalista. É a antiga burguesia escravocrata, ressentida com o trono – não propriamente pela libertação dos escravos, mas pela expectativa, então frustrada, da indenização pretendida e esperada, em decorrência da perda daqueles braços fortes e operosos, na lavoura e no engenho de açúcar. Acima de toda a lealdade ao Imperador, pois, sobrepõe-se o interesse particular, donde a indiferença dos Conservadores à derrocada do Império. Nesse panorama, é que surge, destacando-se na política, a figura de Benedito Leite, representante federalista, a inspirar esta notação de Mário Meirelles (1960, p. 27): “Os antigos liberais, agora republicanos, haviam caído e perdido a sua grande oportunidade; mandavam e passariam a mandar, os antigos conservadores, agora federalistas”. O ano de 1895 registra o advento do Parque Industrial Maranhense (há anos sugerido como salvação para a economia decadente do Estado), totalizando, este, vinte e sete fábricas, dezessete destas de sociedades anônimas e dez particulares, assim disseminadas: dez de fiação de tecidos de algodão, uma de cânhamo, uma de lã, uma de malha, uma de fósforos, uma de pregos e chumbo, uma de calçados, uma de cerâmica, quatro de pilar arroz e fazer sabão, uma de sabão e duas de açúcar e aguardente (VIVEIROS, 1964). O operariado dessas fábricas compõe-se, em sua maioria, de mulheres. E a pressão dos patrões sobre os empregados, incentivando-os a residirem o mais próximo possível do local de trabalho, resulta no surgimento dos primeiros bairros proletários, sanluisenses, à época, como Areal (hoje Monte Castelo), no Caminho Grande; Madre de Deus, Camboa. Um continuado processo de expansão urbana, iniciado já, no período pombalino, vai delineando bairros como Remédios e São Pantaleão. A Praia Grande, consolidando-se como bairro comercial, por excelência, “foi deixando de ser apenas um centro militar e administrativo,

42 - tema do romance Vencidos e Degenerados (1915) de Nascimento Moraes. 36

tornando-se também um centro comercial, promovendo um considerável aumento e diversificação de sua população” (FARIA, 1998, p. 78). Assim, com a abolição da escravatura e mesmo antes, com as Lei Áurea, do Ventre Livre e dos Sexagenários, os negros, na sociedade maranhense (como em todo o Brasil), veem-se como que empurrados para a indigência e marginalidade. Agravando, mais ainda, essa situação, intensifica-se o declínio do cultivo do algodão, do arroz, da cana-de-açúcar – produtos tipicamente nordestinos e valorizados nos períodos monárquico e imperial, em detrimento das culturas do café e da pecuária leiteira do Sul e Sudeste brasileiro. Em suma: a criação de fábricas, visando à industrialização dos produtos manufaturados (fator perspectivado como revitalizador da economia maranhense), vem a fracassar. E com a falência dos grandes engenhos e das fábricas têxteis, mergulha, o Maranhão, nas trevas da decadência econômica, social e, consequentemente, intelectual. Mário Meirelles em Panorama da Literatura Maranhense (1955) esboça, aos seus leitores, um quadro dessa época, donde este breve olhar:

O Maranhão não era mais aquele centro humanístico onde haviam pontificado um Tímon e um Sotero, e tão pouco os seus grandes poetas do momento revelavam, como Odorico Mendes e Gonçalves Dias, o desejo nostálgico de dormir o último sono sob as palmeiras onde cantam sabiás! Adelino Fontoura, Teófilo Dias, Hugo Leal, Aluísio Azevedo, Euclides Farias, Teixeira de Sousa, Coelho Neto, Artur Azevedo, Nina Rodrigues, Teixeira Mendes, Graça Aranha, João de Deus, todos se haviam ido de uma vez para sempre e já haviam morrido alguns ou morreriam todos, em terras estranhas, sem nunca pensarem em voltar ao berço natal – eram essencialmente literatos nacionais (MEIRELLES, 1955, p. 53).

De modo que, lutando bravamente contra a degradação intelectual do agora Estado (não mais Província), a Oficina dos Novos, constituída pelos neoatenienses (também identificados por simbolistas e/ou decadentistas), situados, cronologicamente, entre a última década do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX, dá continuidade, a partir dos seus projetos literários, à problematização da realidade maranhense – seja na produção de obras específicas, em ramos diversos do conhecimento, seja através da imprensa, da política ou da administração – constituindo-se, pois, num grupo de estudiosos e escritores eruditos, a expressar, através de suas obras, a sensação de impotência, geradora de cenários enervantes (para uns) e paralizantes (para outros). Como ainda considera Meirelles (op. cit., p. 53), “mera reação local” (esboçada e efetivada, mas efêmera), à guisa de instaurar, em São Luís, uma atmosfera intelectual, “à sombra das glórias de um século antes, que permitia aos novos conservar para a terra a forma 37

Athenas Brasileira que aqueles maiores para ela haviam conquistado e que a emigração em massa havia partido” (id. ibid.). Para melhor captação do perfil ideológico da Oficina dos Novos e compreensão da sua proposta literária, mister se faz um contato com Os Novos Atenienses – subsídios para a História Literária do Maranhão (1970), de Antônio Lobo – que, pode-se dizer, é pioneiro, em termos de teoria e crítica literária aqui entre nós. Obra em que o autor “analisa o renascimento da cultura e da literatura maranhense, procurando resgatar o momento literário de então, bem como a vida e a obra dos escritores que se destacaram na primeira década do século XX” (CARNEIRO FILHO, 2004, p. 15) e estabelece um roteiro cronológico para a literatura maranhense, em sua origem, primórdios e evolução, periodicizando-a, em três segmentos ou gerações, sendo a última (a sua geração), vista como a da renascença cultural e literária no Maranhão de entre séculos. Para referir-se a essa fase imediatamente finissecular, Antônio Lobo recorre aos seus predecessores, fundadores da Literatura Maranhense, evocando, pois, o Grupo Maranhense (aqui já retrospectivado), que chega a termo com a extinção do Semanário Maranhense, periódico no qual “colaboraram todos os espíritos superiores da época” (LOBO, 1970, p. 13) e que “foi o canto de cisne da brilhante geração literária que, em meados do século findo, no Maranhão viveu e trabalhou, explorando com maestria e fulgor, quase todos os variadíssimos departamentos da produção mental” (id. ibid.). Essa segunda geração, a que se refere o autor, na sua obra, compreende os intelectuais militantes nas nossas frentes culturais e literárias, entre as décadas de 70 e 90 do século em apreço (XIX), abarcando alguns representantes das primeiras décadas do século XX. Uma plêiade de escritores a diferir, em muito, da anterior, em especial pela problematização dos temas em abordagem, nas suas obras, e pela maneira como se posiciona na sociedade sua contemporânea. Grande número desses eruditos, por sinal, ressentindo-se dos obstáculos que se lhes interpõe essa mesma sociedade, emigra para a metrópole (Rio de Janeiro) – caso dos irmãos Azevedo, acirradamente criticados por suas produções, desveladoras, estas, de injustiças sociais e tradutoras de uma realidade em nada auspiciosa. Como o dá fé ainda Antônio Lobo:

Ainda em 1881, quando Aluísio Azevedo publicou O Mulato, houve um jornal maranhense que, por entre ápodos e agressões, lhe deu de conselhos que trocasse a pena por um sacho e fosse capinar roças no interior: “A lavoura, meu bruto, que de braços para a lavoura é que andamos crescendo”, clamava irado o foliculário indígena a patrono do algodão e do arroz (LOBO, op. cit., p. 14-15).

38

À espera do novo século, pois, com os novos ares bafejados pela República, uma terceira geração (à qual se inclui o autor), integrada por expressivo contingente de jovens intelectuais, literariamente atuantes, está na iminência de surgir, para impor-se, logo nos primórdios do século XX (a partir da primeira década), reservando-se a missão de enfrentar e superar “os anos de apatia e marasmo que se seguiram à brilhante e fecunda agitação literária de que foi teatro a capital deste Estado, nos meados do século findo, e que ficará marcado para honra e glória nossa uma das mais fulgentes da vida intelectual brasileira” (id., ibid., p. 04). A terceira geração, pois, surge no imperativo de “reatar as riquíssimas tradições das nossas letras, que a muitos se afiguravam, já, totalmente perdidas” (id. ibid., p. 05), considerando que, a partir da segunda geração, inicia-se, no Maranhão, essa “tristíssima e caliginosa”, interminável noite, na qual “viveram imersas as suas letras, noite cortada, por vezes, pelo clarão fugidio de algum astro errante, que para logo se ia eclipsar na morte, ou perder-se na distância a que era impelido pelas inelutáveis fatalidades de sua trajetória” (id. ibid., p. 14). A periodização proposta por Lobo

chancelou, pois, três momentos distintos, mas intercambiantes, na história intelectual maranhense: o da constituição e atuação do Grupo Maranhense e a instituição do singular epíteto de Athenas Brasileira para São Luís; o da morte de representantes expressivos da geração anterior e, especialmente, da emigração, decorrente de promessas, de intelectuais para a Amazônia e, principalmente, para o Rio de Janeiro, visando a dar melhor sequência a projetos que a realidade inclusiva invalidava; e o de franca atividade de jovens intelectuais, essencialmente regionais, objetivando restabelecer a dignidade do mito ateniense, seriamente ameaçado pela descontinuidade geracional, pela distância geográfica, pelas contingências materiais, que envolveram seus membros mais salientes (MARTINS, 2002, p.33).

Nesses termos, pretendia Lobo conclamar os seus coetâneos à revigoração das “riquíssimas tradições” intelectuais da Athenas Brasileira, ainda assim considerada tão somente por conta de alguns raros escritores da terra, emigrados para a capital federal, ali permanecendo como “depositários fiéis de nossas tradições” (LOBO, 1970, p. 15), constituindo-se nos “continuadores impretéritos da grande obra do nosso passado, os herdeiros do nosso nome literário, os únicos que nos asseguravam ainda incontestado direito ao realçante cognome de Athenas Brasileira” (id. ibid, p. 16). O autor propõe-se a retraçar, em sua referida obra, um roteiro singular, na história da Literatura Maranhense, destacando o esforço de sua geração, empenhada numa renovação (moral e material), na reversão de uma realidade que ele próprio diagnosticara corrompida, 39

em suas entranhas, decadente, enfim. Augúrio desconfortante, a mestres e discípulos, posto que “nunca se vira em condições tão desastrosas, tão falto de recursos” (Revista Crise, 31.07.1902, apud MARTINS, op. cit. p. 33), na contingência de apresentar à contemporaneidade e legar à posteridade um movimento insignificante, a ser tomado como um “entreposto abandonado”, muito diferente do passado, quando fora visto como “o centro da vida do Brasil do Norte” (id. ibid.). Respaldado nas avaliações daquele contexto movediço, propõe-se Antônio Lobo à edificação de uma “obra imparcial e justa, como o devem ser todas aquelas que se destinam a transmitir ao futuro a memória presente, para que do máximo brilho e esplendor se revista sempre a reputação intelectual da terra que nos serviu de berço e onde sempre temos vivido [...]” (LOBO, op. cit. p. 10). Em verdade, uma das características da geração dos novos atenienses é ter, a maioria dos seus membros, permanecido na terra natal, nela interagindo de forma diferenciada das anteriores e empenhada na reinvenção de uma cultura apta a reatar os laços supostamente rompidos com as suas mais antigas tradições de fausto econômico, de proeminência política, de requinte social e cosmopolitismo cultural. Como o observa Carneiro Filho (2004), o grande mérito d‟Os Novos Atenienses, de Antônio Lobo, reside no espírito de novidade e autenticidade, a emanar desse documento para a sua época e para a hodiernidade. É por entre as suas páginas que o leitor vem a se deparar com uma pluralidade de olhares que pode descortinar um universo semântico a refletir, simultaneamente, aquele momento presente (na grande noite negra que a precedera), o passado glorioso e ainda o futuro. Inquestionavelmente, um manifesto, um documento referencial e único, fundador (paralelamente) de uma teoria e de uma crítica literária, testemunho de uma época, obra pioneira no gênero, portanto, a registrar/resgatar os movimentos e agremiações culturais de antanho, a elencar os jornais e revistas literárias que atravessaram o final do século XIX para início do século XX – no vislumbre de uma literatura maranhense ainda tacanha em suas concepções parnasianas. Com Os Novos Atenienses, damo-nos conta de um escritor no convívio da sua geração de agremiados, à qual, por necessidade e acima de tudo por mérito, impõe-se ícone e mentor intelectual. Obra a fazer justiça aos que transitam do passado para o presente, para o futuro, a salvá-los do Lethe do esquecimento, a eternizá-los na memória da nossa historiografia literária. A leitura da obra em referência leva-nos a perceber, “nas entrelinhas”, que os “verdadeiros eleitos” do seu autor vêm a ser os que a elite cultural da sua época vem a taxar 40

de malditos, decadentes ou manqués – ele próprio, no seu considerado mais belo poema (Por Amor de uns Olhos), paradoxal e contraditoriamente, pontua-se como um legítimo simbolista, contrariando os cânones parnasianos (ainda tão em voga, porém já retrógrados, para os poetas da estirpe dos excêntricos, como Maranhão Sobrinho, Inácio Xavier de Carvalho, Luís Carvalho e Alfredo de Assis, dentre outros, que viveram o tempo cronológico de sua geração e muito além desta). Vale ainda ressaltar: no umbral do novo século, sob os novos ares bafejados pela República e nos moldes da Academia Francesa, surge, como força institucionalizadora da nossa literatura nacional, a Academia Brasileira de Letras, a irradiar seus influxos e reflexos, motivando, por todo o território federal, a criação de Casas de Letras. No Maranhão, na efervescência de uma luta incansável contra a degradação intelectual e em prol de uma vívida atividade literária no agora Estado (não mais Província, reiteremos), institui-se, em 10 de agosto de 1908 (data do aniversário do poeta Gonçalves Dias), a Academia Maranhense de Letras, por iniciativa de Antônio Lobo e Fran Paxeco, juntamente com: Alfredo de Assis Castro, Astolfo Marques, Barbosa de Godóis, Clodoaldo Freitas, Corrêa de Araújo, Domingos Barbosa, Godofredo Viana, Ribeiro do Amaral, Xavier de Carvalho, Vieira da Silva, coexistindo, ao lado de outras agremiações culturais do gênero, como a própria Oficina dos Novos (1900) e a Renascença Literária (1901), liderada, esta, por Nascimento Moraes. Nunca será demais repetir que o Maranhão tem marcado sua presença na literatura nacional, em quase todos os estilos de época. De forma, que temos Gonçalves Dias como uma das primícias da poesia brasileira, seguindo-se Raimundo Corrêa (conferindo um tônus dramático, até então incipiente, na sonetística parnasiana). Reiteremos a importância de Aluisio Azevedo, como um dos principais representantes do Realismo/Naturalismo no Brasil, de Arthur Azevedo, que garante a presença do Maranhão na dramaturgia nacional, ao lado de Coelho Neto e Viriato Corrêa. Enfatizemos, ainda, o nome de poetas/escritores do nível de Celso Magalhães, Teófilo Dias, Xavier de Carvalho, Adelino Fontoura que, como todos os demais já citados, colocam o Maranhão num patamar elevado. E mais: no transe do Simbolismo para o Modernismo, a figura de Graça Aranha – autor do célebre Canaã que, pela sua originalidade, dá o toque Pré-Modernista e inaugurador do romance de ideia na Literatura Brasileira. A propósito, foi ele (Graça Aranha), a emprestar o seu apoio aos jovens escritores em eclosão e que se tornariam os grandes nomes do nosso Modernismo. Convém (a)notar: os maranhenses, salvo Graça Aranha e Coelho Neto, não participaram ou tiveram pouca relevância na Semana de Arte Moderna, em São Paulo (1922) – distantes que se viam dos principais polos culturais brasileiros, sobretudo no que respeita às artes. 41

Assim, o Modernismo se faz introduzir com mais ou menos 20/26 anos de atraso, aqui na pátria gonçalvina, exatamente na década de quarenta, com Janelas Fechadas (romance de Josué Montello-1941) e Alguma Existência (livro de poemas de Bandeira Tribuzzi43-1948). Outros nomes de destaque no Modernismo maranhense: José Chagas, Nauro Machado, Arlete Nogueira, Ferreira Gullar.

2.1.3. Do século XX no Maranhão: panorama cultural e literário

A partir de 1930, no entanto, podemos fazer referências a instituições a despontarem, aqui no Maranhão, imbuídas de um espírito cultural, capaz de agitar a cidade com suas novas ideias, tais como: o Cenáculo Graça Aranha – de breve duração, surgido ainda sob os influxos de Antônio Lobo e sob a liderança de Oswaldino Marques (que ali organiza a Semana de Arte Moderna Maranhense), numa proposta deveras iconoclasta do antigo, em prol de uma verdadeira renovação literária, a culminar com debates sobre temas atuais e de interesse do Maranhão – o Ressurgimento e a Renovação (1930), respectivamente agremiação, revista e suplemento literário. Na década de 40, além de um outro novo movimento a que também se chamou Renovação (1940 – cujo principal objetivo era mesmo a ressurreição pura e simples da Athenas Brasileira, com seus adeptos aspirando reconquistar a importância literária do Maranhão de outrora, empenhados, portanto, na busca de novas e pioneiras soluções como as viabilizadas no século anterior) surgem: o Centro Cultural Gonçalves Dias e o Grupo da Movelaria Guanabara (1945). Já no final da década, organizado por Lucy Teixeira e Ferreira Gullar, surge o Congresso Súbito de Poesia (1949), que resulta no Movimento Antiquentíssimo (1949). E ainda a Sociedade de Cultura Artística do Maranhão (SCAM – fundada em 1950 pela professora de canto e música clássica, Lilah Lisboa) e a Revista Ilha. Integrado e liderado por estudantes da rede pública de ensino (Nascimento Moraes Filho, Milton Bogéa, Cristóvão Soares Cavalcante, Agnor Lincoln da Costa, Dagmar Desterro e ainda outros intelectuais mais experientes, como orientadores dos jovens, a exemplo de Luso Torres, Manuel Sobrinho, Clodoaldo Cardoso, Bacelar Portela e Nascimento Moraes)44, o Centro Cultural Gonçalves Dias (patroneado pelo poeta maior), cuja sessão de inauguração acontece no Palácio da Educação (o Liceu Maranhense), sob a direção do Professor Mata Roma (1896-1959) e com uma estrutura organizacional semelhante à de uma Academia de Letras, propõe-se (também) à renovação intelectual do Estado. E, pode-se dizer,

43 - nome artístico do poeta José Tribuzzi Pinheiro Gomes. 44 - pai do também escritor Nascimento Moraes Filho. 42

numa vigência relativamente breve, mas positiva e com méritos dignamente conquistados, ainda que não conseguindo romper com o passado, tratando-se, pois, segundo J.H. de Paula Borralho de

...uma sociedade civil, consagrada de utilidade pública, com práticas de cursos, debates e formação de departamentos específicos de conhecimento como o Direito, História, Sociologia Psicologia, Jornalismo, etc. [...], estendendo suas ações para o ensino/aprendizado da oratória, participação em programas de rádios, motivando, assim, o surgimento de outras instituições culturais (BORRALHO, 2011, p. 82).

A propósito, “enquanto existirem moços como Nascimento Moraes Filho e seus companheiros de ideal do Centro, jamais se extinguirão, em nossa terra, a tradição que deu ao berço de Odorico Mendes o cognome de Athenas Brasileira” – é o que diz Walfredo Machado em O Imparcial (16.01.1947, p. 04, apud. BORRALHO, 2011, p. 83). Eleito, quatro vezes consecutivas presidente da agremiação, Nascimento Moraes Filho, reconhecendo o clima de letargia que se instalara na sociedade maranhense de então, explica esse fato na segunda guerra mundial – que silenciara a juventude nos Estados Unidos e fizera-a céptica, na Europa (CASSAS, 1983). Em verdade, formado logo após a segunda grande guerra, o Centro

...era uma renovação e renascimento da crença na arte e nos homens. A guerra, antiteticamente, havia arrastado a história para a velocidade das máquinas. Na verdade, a guerra e as máquinas é que eram consequência, filhas diretas da velocidade que havia arrastado a história. As artes, a ciência e a política também demonstravam, a seu modo, formas distintas de conceberem a representação da história, não mais de forma linear, cadenciada, mas multidirecional, desreguladora de cadências e ritmos anteriores num movimento frenético e veloz (Ferreira, 1966b, p 41). A guerra ecoou em terras timbiras, causou impacto, entretanto, no plano das letras e artes, a mudança foi mais cadenciada, menos frenética (BORRALHO, 2011, p.84).

Movimento eclético, de visão ampla, promotor de debates e conferências, despertando novas ideias, contribuindo para o revigoramento da nossa seiva intelectual, o Centro Cultural G. Dias também ressentiu-se de uma orientação superior, que ordenasse os resultados de permanência dos grandes valores de qualquer estilo de época e que apontasse novas tendências. Assim, pode-se dizer, a repercussão da Semana de Arte Moderna (1922), foi inexpressiva, aqui no Estado. Os maranhenses nela envolvidos haviam (há muito) emigrado para a metrópole e lá fixado residência. Os Novíssimos, pois, dotados de um espírito renovador da arte moderna, visando a um sentido social, tentavam reagir contra o academicismo aqui então imperante. 43

Na década de 50, podemos apontar, como novos movimentos e agremiações, os Centros Culturais: Coelho Neto, Graça Aranha, Machado de Assis e Benedito Leite; o Centro Liceísta; a Agremiação Literária João Lisboa; o Grêmio Cultural e Recreativo Luís Rego45e ainda: o Teatrinho dos Novos; o Prêmio Cidade de São Luís; as Revistas e Suplementos Literários: Sacy; Jornal das Letras da Província; Afluente; Legenda. As décadas seguintes marcam-se pela participação do governo no auxílio à editoração e publicação de livros de escritores já consagrados (sobretudo na terra de origem), como Josué Montello, Bandeira Tribuzzi, José Chagas, Ferreira Gullar, Nauro Machado... bem como noites de autógrafos, organizadas à base de um mecenato divulgador das obras editadas. Vale ressaltar, nessa geração representante da segunda metade do século XX, ou do trânsito deste para a atualidade, os nomes de Josué Montello (romancista) e Franklin de Oliveira (José de Ribamar Franklin de Oliveira, ensaísta e crítico literário), dentre os que residiram na terra (por algum tempo, para esta sempre voltando, sem perder o contato com o meio de origem) e firmaram os seus nomes nas esferas literárias nacionais (sobressaindo-se o primeiro) e ainda o de Conceição Aboud, com o seu livro de contos Grades de Azulejos (publicado em capítulos na já extinta revista O Cruzeiro), além de Erasmo Dias, Bernardo Almeida, João Mohana, Lago Burnet, Ferreira Gullar, José Sarney, Fernando Moreira, que também representam essa fase. É, sobretudo, dos ano 40 em diante (século XX), que o Maranhão volta a contar com um expressivo contingente de escritores de boa qualidade, logrando a resgatar parte do antigo prestígio de que o Estado desfrutara em dias pretéritos. A partir da segunda metade do século XX – período pós-guerra, em que, de um modo geral, pode-se observar, na literatura, em primeiro plano, a ficção regionalista, o ensaio social e o aprofundamento da lírica moderna, oscilando entre o fechamento e a abertura do eu à sociedade, à natureza – precisamente dos anos 60, 70, entretanto, é que a intelectualidade, a expressão artístico-literária maranhense vai ganhando novos timbres e tonalidades, na composição de uma literatura engajada, configurando-se e revelando, numa consonância com o momento histórico, a realidade sócio- política então vigente no País. A propósito, vale lembrar: dos anos 50 a 55, a ideologia do desenvolvimento como que passa a dominar o nosso espaço mental e a década de 60, em sua fase inicial, vai colocando o Brasil num emaranhado de acontecimentos políticos e sociais promotores de mudanças inesperadas e de grande significado na nossa história, com reflexos negativos, contundentes,

45 -Horizonte, Jornal Informativo Cultural e Artístico. Órgão da Agremiação Literária João Lisboa. São Luís, 1950. 44

na vida do povo brasileiro. A inauguração de Brasília (então promovida de sertão a capital); em consequência, o deslocamento do governo federal, do Rio de Janeiro para a recém- construída cidade (nos traços arquitetônicos de Oscar Niemayer); a eleição (expressivamente vitoriosa) de Jânio Quadros para a presidência da República, seguindo-se a sua renúncia, em poucos meses de investidura no cargo; a tumultuada posse do vice-presidente João Goulart e sua deposição (21.03.1964), por conta de um golpe militar, transformam (para pior) o cenário nacional. A mudança da Capital Federal (contrária à vontade geral dos brasileiros, à época), por sinal, é motivo para o surgimento de muitas e variadas criações musicais, sendo uma das mais populares 46, o coco Mudança de Capital, gravado por Zé do Norte (1957): “Pode levar, seu doutor pode levar/ Lá pra nova capital/ O Governo Federal/ Mas a beleza deste Rio de Janeiro/ Coração do brasileiro ninguém pode carregar/ Copacabana, Corcovado, Pão de Açúcar/ Botafogo e Paquetá ninguém tira do lugar” (de memória).

O cadinho em que estas mudanças foram gestadas teve, em verdade, duas naturezas, possuindo características de dublé de corp onde, com a mesma força e a mesma intensidade, em campos políticos opostos, mas de certa forma paralelos e equivalentes, desenvolveram-se atividades de direita e de esquerda. O País, vindo dos anos 50, do governo de Juscelino Kubitschek – quando a economia fora aberta, ostensivamente, ao capital estrangeiro e os empréstimos, vultosíssimos, tornaram-se prática comum e consentida ad nauseum – estava a braços com uma grande incógnita, sem saber que males poderiam advir, ou se os atos cometidos pelo governo iriam produzir (ou não) o tão esperado progresso (FEITOSA, 2002, p. 31).

E vale também retraçar, num flash, à guisa de rememoração47e partindo-se do geral (o contexto nacional) para o particular (o contexto local), esse momento, digamos, trágico/dramático da nossa política brasileira (1964-1984), que tolheu direitos humanos, castrou a liberdade de um povo e se refletiu nas nossas letras e artes, numa constante reivindicação de dignidade, respeito e cidadania, num largo sentimento de identidade com as classes oprimidas e marginalizadas do convencionado Terceiro Mundo. Uma geração ferida pelas correntes opressoras da ditadura militar e ainda marcada pelas reminiscências da grande guerra, a hecatombe, e ainda pelo trauma repercutivo de Auschwitz, Hiroschima, Nagazaki. Momento que nos traz à mente, como referencial histórico, o já referido golpe militar de 1964 e a deposição do governo reformista de João Goulart, quando se inicia uma fase de intransigente censura e repressão, caracterizada por torturas, execuções sumárias, prisões,

46 - cantadas pelo Nordeste, entre os maranhenses do interior 47 - considerando, mesmo, os cinquenta anos desse período de ditadura militar, recordado neste anos de 2014, também a perpassar este nosso período de doutoramento, em sua etapa final. 45

exílios... forçando (no campo das artes), o surgimento do Grupo Opinião, no Rio de Janeiro, a encenar peças de contestação, dentre as quais: Opinião (de Oduvaldo Viana Filho e outros) e Liberdade liberdade (de Millôr Fernandes e Flávio Rangel). É quando, instigados pelo anseio de se contraporem à ditadura militar (que passa a governar a nação brasileira a partir de 1964), os escritores (poetas, romancistas, contistas, cronistas), em expressiva quantidade, empenham-se na construção de uma literatura de denúncia sócio-política, de enfrentamento do cercear da liberdade de expressão, do direito de ser, estar, fazer e acontecer – como numa aliança ideológica, celebrada com dramaturgos, diretores de teatro e cinema, compositores, artistas plásticos, jornalistas, cantores... Uma nata de compositores de música popular, que se vai associando a escritores, pintores, teatrólogos. E surge, no campo da música, o movimento Tropicália ou Tropicalismo (1968) e no nível das artes plásticas, o movimento Nova Objetividade. Enfim, reiterando, todo um expressivo contingente de intelectuais, artistas de todas as acepções, educadores, cientistas sociais, políticos de esquerda. Um universo de pensadores, autores e ativistas, que as forças repressivas (do governo) enquadram sob a pecha de subversivas. Nesse contexto, por sinal, com a edição do Ato Institucional de no 5 (AI-5) e do 147 e a instituição de uma política governamental pautada sob uma forte censura (com os órgãos de segurança e informação, federais e estatais vigiando, incessantemente, para detectar, condenar e punir qualquer manifestador de ideias contrárias às desse Poder), as artes, como se pode deduzir do que já foi dito, acabam: tornando-se reféns dessa camisa-de-força imposta; ou buscando (e encontrando) novas formas de expressão. A literatura, o teatro, a música (através da canção popular) são, talvez, das manifestações artísticas, as que mais se pronunciam nesse enfrentamento de ideologias e de ocupação de espaços. A poesia, com seus ilimitados recursos figurativos, contando com o riquíssimo universo das metáforas e outras figuras de igual importância, torna-se um veículo poderoso e eficaz, seja na própria questão de sobrevivência da arte, seja na resposta que o cidadão brasileiro queria e deveria endereçar, como mensagem de resistência, ao regime militar. Avançando mais, nesse período memorável, temos que, a partir de 1968, e sob a influência, tanto dos Estados Unidos como da França, intensificam-se os movimentos de contracultura, ensejando o cinema e a literatura marginal e, simultâneo aos movimentos de resistência, se vai afirmando o teatro de combate, notadamente com Dias Gomes, Oduvaldo Viana Filho, Paulo Pontes, Chico Buarque. Antonio Callado, que vinha tentando o romance político, há dez anos (desde o final dos anos 50), publica Quarup (1967 – a saga de Nando, 46

no Brasil do último governo Vargas, estendendo-se à posse e renúncia de João Goulart e ao golpe militar de 1964, em suas consequências imediatas: repressão e luta armada) e Ariano Suassuna deflagra o Movimento Armorial, em busca de raízes medievais e nordestinas na criação brasileira, publicando A Pedra do Reino (1971 – verdadeiro monumento literário, impregnado da cultura sertaneja/nordestina, marcada pelas tradições ibéricas, aqui implantadas pelos nossos colonizadores e transformadas ao longo das gerações). Prosseguindo, chegamos a 1974 e vemos que, após o mandato do General Médici, tem início um período de democracia (relativa), continuada e favorecida pelo General Geisel, descortinando-se, enfim, um tempo de “abertura” democrática, com o General Figueiredo no poder, em 1979. Essa fase, que se pode aventar de retorno à palavra, permitiu a encenação de peças e de espetáculos teatrais como: Um grito parado no ar e Ponto de partida (de Gianfrancesco Guarnière – teatro de resistência, com reflexões e denúncias da violência da ditadura militar); Gota d’água (musical de Chico Buarque e Paulo Pontes – enquadrando o mito de Medeia numa favela do Rio); O último carro (de João Neves – onde, num cenário fantástico, o espectador como que se via ante os sacrifícios impostos à população trabalhadora, obrigada a passar horas do seu dia nos meios de transportes precários); Papa Highirth e Rasga Coração (de Oduvaldo Viana Filho – impressionante análise dos mecanismos do poder nas Repúblicas latino-americanas; amplo quadro da evolução política e moral da classe média brasileira no último século); Patética (de João Chaves – descrição alegórica do caso verídico da morte do jornalista Wladimir Herzog, numa prisão de São Paulo); A resistência (de Maria Adelaide Amaral – onde um grupo de jornalistas faz, individualmente, o seu respectivo exame de consciência nesse momento de tensão); Campeões do Mundo (de Dias Gomes – análise da resistência armada, dos anos 70, a partir de uma livre versão do episódio do sequestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil). Em São Luís-Ma., já tendo emocionado plateias do Rio e de São Paulo, Tempo de Espera (de Aldo Leite – onde o vazio de uma família, em sua miséria, é representado em gestos e expressões corporais, sem uma palavra articulada) faz sucesso no Festival de Nancy, na França, onde vem a ser premiada. Verifica-se, pois, um crescente interesse pela ficção de caráter histórico e memorialista, como num resgate aos recentes anos de acirrada opressão ditatorial, ao mesmo tempo em que essa abertura vai oportunizando o desabrochar de movimentos ecológicos e feministas e se vão desenvolvendo ações em defesa dos indígenas e dos negros. Toda uma geração de poetas, 47

escritores de ficção, ensaístas, vê-se empenhada em dar uma nova orientação à Literatura Brasileira, comungando, na dor e na Esperança, aquele mesmo Cálice48. No Maranhão, ainda que não estivessem tão solidamente estabelecidos os vínculos entre os escritores locais e os movimentos de contestação do eixo Sul-Sudeste nacional (não obstante algumas conexões isoladas), ocorrem, também, inúmeras manifestações de resistência, luta, denúncia do arbítrio e da calamidade social. Escritores politizados, poetas 49 engajados (taxados de subversivos, esquerdistas, marxistas, comunistas, vanguardistas, marginais, undergrounds, malditos, denunciadores, críticos, contestadores do sistema), no ritmo de um ideário marxista, ledores de Gullar, partícipes de entidades estudantis (sobrelevando-se as universitárias, as entidades classistas, as comunitárias, facções da Igreja Católica progressista, entre outros movimentos), passam a se manifestar através de livros, jornais e revistas (mimeografados ou impressos) de bolso, veiculados em sacos ou sacolas. Frases, versos, poemetos, veem-se estampados em camisetas, murais, panfletos. Peças teatrais, recitais de poesia (improvisados ou organizados), são encenados em logradouros públicos (especialmente na escadaria do Beco do Silva e em outra já extinta, contígua à Praça Gonçalves Dias, na descida para a Beira-Mar50). Festivais de poesia e música, missas temáticas, cartazes de visual muito bem idealizado e outros portadores textuais, também se destacam nesse contexto. A propósito, aqui abrindo um parêntese para mais uma outra breve retrospectiva, poetas como Bandeira Tribuzzi, Ferreira Gullar, Nascimento Moraes Filho, já vinham assumindo, em décadas anteriores, um lavor poético transmissor de inquietação social. Assim, quando a maioria dos poetas, ainda pouco esclarecida ou até mesmo ignorante dos fatores e circunstâncias que deram à luz a Semana de Arte Moderna (São Paulo, 1922) e, consequentemente, da produção artística advinda dos movimentos por ela suscitados, Tribuzzi51 (São Luís-Ma.-1927) chega de volta à terra natal (1946) e modifica esse quadro, influenciando seus conterrâneos de forma contundente. Como o informa o poeta Alex Brasil:

Reconhece Ferreira Gullar que, somente com a chegada de Bandeira Tribuzzi ao Maranhão, tomou conhecimento de um novo tipo de linguagem poética, já um tanto longe das tradições romântico-parnasiano-simbolistas. De fato, tendo estudado em Coimbra e, naturalmente, lendo poetas do quilate de Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro e José Régio, trouxe para a província brasileira uma nova mentalidade, o

48 - metáfora do “Cale-se” repressivo, sorvido e amargado pelo povo brasileiro, e liricamente (de)cantado pelo grande poeta, compositor, e cantor Chico Buarque. 49 - grassam pela capital e adentram pelo interior, unindo suas lira de protesto, dentre as quais sobressaem-se: Cunha Santos Filho, Ribamar Feitosa, Zé Maria e Juarez Medeiros, Arimatéa Coelho, Antonio José Gomes... 50 - antiga escadaria unida à Praça G. Dias, que descia para a Beira-Mar (antiga Praia do Caju), antes de ser construída a Praça Maria Aragão – hoje apenas ladeira por onde descem os veículos. 51 - egresso de Portugal, para onde fora levado pelos pais (1927), ainda menino, para a terra dos seus ancestrais. 48

lado poético do homem sensível e o interesse social do ser engajado em seu tempo (BRASIL, 1994, p. 169).

Seu livro de estreia, publicado em 1948, “criou estranheza entre os tradicionalistas e certo entusiasmo entre os jovens” (id. ibid.). Segundo Jomar Moraes (1985, p. 30), “não seria exagerado afirmar que igualmente Alguma existência tornou-se pedra angular da nova poesia maranhense, imediatamente revelada por diversas obras, a exemplo de Um pouco acima do chão, de Ferreira Gullar ou de Estrela do céu perdido, de Lago Burnett”. De inspiração multivalente, pode-se dizer, todavia, o eixo da lírica tribuzziana firma-se na perplexidade do poeta diante do mundo, num discurso em perfeita sintonia com o contexto sócio-cultural refletido – texto e contexto articulando-se numa dialética essencial, universal. E vale a pena um breve tour por esse contexto histórico-literário, a bordo da nave de alguns poetas apresentados a seguir, começando por Tribuzzi e Nascimento Moraes Filho, à guisa de confirmação do observado acima.

Alguma Existência

Um cão ladrou na noite escura tremores frios de inanição A mulher magra esperou cansada que a carne exausta fosse chamariz. [...](Bandeira Tribuzzi, 1946)

José Nascimento Moraes Filho, na década de 40, já se demonstra em condições de apreciar e assimilar as propostas literárias de renovação (em termos de forma e conteúdo), trazidas e introduzidas por Bandeira Tribuzzi e Ferreira Gullar. Entretanto, a estreia desse poeta se dá apenas

...em 1955, com Clamor da Hora Presente, um livro inflamado, discursivo e veemente, onde prega a Revolução contra a miséria e a injustiça. Mas nem por isso os seus poemas são panfletários, superficiais. Como disse Clóvis Ramos, o poeta “não cantou, na sua lira, as amadas impossíveis e irreais. Sua poesia é libertação” (BRASIL, 1994, p. 139).

Discursivo, prosaico, por vezes, sim, mas muito à vontade, ao elevar o seu canto, numa verve condoreira, como se fora um Castro Alves dos tempos modernos, ei-lo a (con)clamar:

Poetas, meus irmãos, acompanhai meu grito! – Eu sou o sofrimento dos sem nome. 49

– Eu sou a voz dos oprimidos! Não tanjo a lira mágica de Orfeu De que as aves se acercavam para ouvi-la E lhe vinham lamber os pés as próprias feras! [...] a liberdade, meus irmãos, tem a forma simbólica da cruz e a cor do sangue! – o Sangue é o apanágio da Conquista. (In: Brasil, 1994, p. 139).

Fechando o parêntese e retomando o fluxo, pode-se dizer, se o golpe militar de 1964 deixara intimidados os literatos, os poetas e demais produtores de arte no Brasil, em pouco tempo estes reagem e voltam a criar e a se manifestar, e agora no expressar de um potencial criativo e numa lira capaz de fazer toda uma diferença. No panorama da Literatura Maranhense dessa época, todavia, é Ferreira Gullar, o único a granjear o mérito de um poeta enfaticamente produtor de uma literatura de denúncia sócio-política:

Auto-reconhecido devedor da influência intelectual de Bandeira Tribuzzi, Ferreira Gullar (José Ribamar Ferreira), após o primeiro livro Um pouco Acima do Chão (1949), tomou seu próprio rumo, e já em 1954 lança um livro polêmico e revolucionário, A luta Corporal, onde, pela desarticulação da linguagem normativa, a experiência concretista, cujo movimento, de que participou, seria lançado em 1956 (BRASIL, 1994, p. 201). Mais:

Ferreira Gullar, que como Bandeira Tribuzzi e Lago Burnet, tinha preocupações sociais, entre a crise do neoconcretismo e os novos poemas, vai fazer reverências ao cordel, publicando, pelo Centro de Cultura Popular da União Nacional dos Estudantes (então foco de rebeldia estudantil/1962), os poemas João Boa Morte, Cabra Marcado para Morrer e Quem Matou Aparecida? (id. ibid).

Mas, é o Poema Sujo (publicado em Buenos Aires, em 1975 e no Rio de Janeiro, em 1976), a obra que mais define a produção literária desse artista da palavra, como alternativa, no sentido underground, transgressor do sistema horizontal bem-comportado da estética vocabular, passando a sua composição poética a ser extremamente coloquial, mas muito ousada, no expressar de uma realidade digamos nua e crua, em acordes poéticos, o que já fora demonstrado no referido Poema. Nessas circunstâncias, vem a se tornar (Ferreira Gullar), uma referência, uma espécie de líder qualificado, merecedor de toda a consideração entre os nossos poetas engajados, sendo- lhe auferido o crédito de maior intelectual partícipe e difusor das ideias políticas mais progressistas. Seus poemas de conotação política têm, pois, uma acolhedora, empática recepção entre os seus compatrícios – declamados e/ou citados, amiúde (que ainda o são), 50

tomados como exemplo ou ponto de partida para o surgimento de uma poesia de denúncia e comprometimento com o social. E vão surgindo – até mesmo por necessidade de acompanhar o eflúvio, a agitação nacional, por aqui chegando, no remanso – poetas de boa concepção literária, seguindo pela vereda, o clarão forte dos nossos astros nacionais. Assim, os vates maranhenses, mais eloquentemente assumidos e reconhecidos como engajados, vão adotando a mesma postura dos companheiros das grandes cidades, nada ficando a dever aos bem sucedidos escritores do Centro Sul e Sudeste brasileiro. Influxos de Maiakovski, saudáveis ressonâncias à Karl Marx, tributos a Sartre, Foucault... mesclando-se a sintonias a transitarem de Che Guevara a Pablo Neruda, de John Lennon a Mahatma Gandhi, de Rimbaud a Garcia Lorca, dão a tônica desse verbo poético que se ergue, condoreiramente, na lírica maranhense, nesse lastro de tempo. Ecos das vozes de D. Pedro Casaldáliga, Agostinho Neto, Pedro Tierra, Mercedes Sosa, Violeta Parra, D. Hélder Câmara, Thiago de Mello (então, lidos, comentados, discutidos, recitados, imitados, enfim, cultivados de mil formas), também são perceptíveis, no vibrar dessa lira, em cujos acordes soam os timbres nostálgicos a Saint-Exupèry (O Pequeno Príncipe) e Michel Quoist (Poemas para rezar), presentes em autores como Ribamar Feitosa e João Alexandre Júnior. Ressalte-se, ainda, a evocação contínua de T. S. Elliot, Augusto dos Anjos, Pagu e Simone de Bouvoir na poesia de Paulo Melo Sousa. Dentre os escritores maranhenses, pois, que mais se destacaram na segunda metade do século XX, próximo passado, merecendo o reconhecimento local e nacional (alguns deles quiçá aqui repetidos) citamos: Odylo Costa, filho, Josué Montello, Ferreira Gullar, José Louzeiro, Oswaldino Marques, João Mohana, Nauro Machado, Lago Burnet, José Chagas, Jomar Moraes, Mário Meireles, Domingos Vieira Filho, Bandeira Tribuzzi, entre os (digamos) mais antigos; Luís Augusto Cassas, Viriato Gaspar, Raimundo Fontenele, Rossini Corrêa, Alberico Carneiro, Arlete Nogueira, Laura Amélia Damous, Paulo Melo Sousa, Lenita de Sá, Roberto Kenard, Celso Borges, Herbeth Santos, Wanda Cristina, Cunha Santos Filho, Chagas Val, Alex Brasil, Salgado Maranhão (entre os representantes da geração dos mais jovens), cuja produção tem alcançado um patamar elevado, sobressaindo-se no contexto maranhense e alçando voos a espaços mais distantes, na esfera nacional. De qualquer forma, pode-se afirmar, a poesia maranhense vem mantendo o seu caráter denunciador, já por longo tempo, perpassando diversas fases ou entendimentos históricos, mas sempre – nestes últimos 50, 60 anos – revestindo-se de força e coragem para solidarizar- 51

se com o povo, captando, desvelando e revelando os problemas que afligem os menos favorecidos. Certo é que não se pode reduzir, simplesmente, o grande contingente de poetas, o grande volume de poemas, elaborados sob a pulsação política, como arte de segunda ou terceira categoria, só por conter uma mensagem de solidariedade para com os mais fracos, só por conter a denúncia social. Óbvio, há os poemas menos elaborados; há os poetas menos inspirados, os livros distantes das obras-primas (como sempre existiram em todos os momentos ou escolas literárias). Assim, dentre os mais expressivos poetas do período em reflexão, destacam-se (com suas respectivas obras): Cunha Santos Filho (Meu calendário em pedaços, 1978; O esparadrapo de março, s/d; A madrugada dos alcoólatras, s/d); Rossini Corrêa (canto urbano da silva, 1984; sinfonia do polidor de estrelas, 1991; almanaque dos ventos, 1991); João Alexandre Júnior (Em te brigar te amando, 1979; Camburão de cena, 1980); Viriato Gaspar (Manhã portátil, 1984; Onipresença, 1986; A lâmina do grito, 1988; Sáfara safra, 1994); Luís Augusto Cassas (República dos becos, 1981; A paixão segundo Alcântara, 1985; Rosenbud, 1990; O retorno da aura, 1994); Edmilson Silva e Raimundo Fontenele (Chegada Intemporal, 1969; As mãos do dia, 1971; Presença, 1980; Pelos caminhos pelos cabelos, 1988) – estes dois últimos que partiram para os Estados do Centro-Sul-Sudeste e somente o Fontenelle tem voltado, esporadicamente, para compartilhar suas últimas produções. A poesia de denúncia social, na sua dicção forte e contundente, cresce e aparece, mesmo, é na voz de um Cunha Santos Filho, quer nos livros publicados à moda tradicional, quer naqueles produzidos de forma artesanal. De O esparadrapo de março (mimeografado nos subterrâneos da UFMA, numa época muito fremente da vida do escritor), o excerto:

Quando, mamãe, Os homens me vierem buscar Montando nas suas fardas verdes, Não chore, nem fale com eles como falava para mim.

Se eles tiverem armas nos coldres ou nas mãos, não os condene: estas foram as únicas flores que lhes deram. (Função do medo)

Rossini Corrêa (poeta e ensaísta) tem sido outro cultor da palavra a voltar-se para a questão política, em seus dois primeiros livros – embora expressando-se num certo hermetismo, revestido de neologismos e de vocábulos de conotação híbrida, como que à guisa 52

de simular a sua postura ideológica. Seus livros posteriores já sugerem uma conformação mais filosófica e subjetiva. Ei-lo, em um poema do seu canto urbano da silva (1984):

O‟ pêndulo carcereiro do tempo Padecendo (em dor) sentenças: Ave-mar de gente escoiceada nas Escarpas marinhas da tortura

No regaço e na ribeira, oceano Espesso e vermelho, pororoca...

(elétricos instrumentos cultivam a química reação do morticínio) (O Carcereiro Presidiário ou a Dialética das Contorções)

João Alexandre Júnior, Luiz Augusto Cassas, Raimundo Fontenele e Francisco Tribuzzi já se revelam mais existencialistas, reflexivos ou como que imbuídos de uma preocupação dicotômica homem/universo, eu/realidade, numa, digamos, mais discreta contundência na denúncia sócio-política. Naturalmente, que não se pode esperar que determinado poeta só escreva poemas densamente politizados e que só produza obras cem por cento engajadas. O poeta é um ser humano que traz consigo, inerente, o estigma da arte e, como tal, trabalha com inúmeras opções de inspiração social e ao mesmo tempo pleno de subjetividade. Esse é um tempo em que a poesia maranhense assume um compromisso político- ideológico, reagindo contra as injustiças sociais, a opressão, o cerceamento da liberdade, a perseguição, prisões, espancamentos, torturas... questionando os desaparecimentos de pessoas taxadas de subversivas, lamentando, revoltando-se contra os exílios e assassínios praticados contra o povo brasileiro durante os longos anos de ditadura militar (1964-1984). Tempo em que, setores intelectualizados da sociedade local passam a impulsionar, a servir de espaço promovedor de arte, surgindo, daí, um abundante material incentivador dos interesses, das propostas e das atividades de grupos, movimentos, entidades, e de partidos políticos de inspiração socialista – a Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e sua Associação de Professores; o Laborarte, o Grita e o Tea, grupos de teatro e de arte, em geral; a Rádio Educadora do Maranhão, a Pastoral Universitária e alguns sindicatos de trabalhadores. Tudo a nutrir-se de vozes poéticas denunciadoras. Na UFMA, mais especificamente no DCE (Diretório Central dos Estudantes), produzem-se jornais alternativos (Veja Isto), revistas (Parenthesis), panfletos, cartazes, 53

camisetas, shows, passeatas. O Laborarte52, o Grita, o Tea, encenam peças de forte conteúdo político. A Rádio Educadora lança programas de jovens, apresentados por jovens de corajoso envolvimento com os problemas dos lavradores, do homem do campo, num apoio ao trabalho das CEBs, disseminadas pelo interior do Estado. A Igreja Católica, em seus setores mais progressistas, orienta, apoia, e estimula a produção de arte denunciadora das injustiças sociais. Alguns sindicatos de trabalhadores, tudo e todos pulsando num mesmo ideal libertário. É quando passeatas e outras manifestações 53 populares/estudantis animam-se, cadenciadas no ritmo de composições (antes caladas pela censura), como: Arueira (Gilberto Gil); Pra não dizer que não falei de flores (Geraldo Vandré); Que será que será e Cálice (Chico Buarque de Holanda); Irene (Caetano Veloso); Viola enluarada (Marcos Vale); Você também é responsável (Dom e Ravel); Oração Latina (César Teixeira – maranhense). Surge, então, um grande número de poetas jovens, um tanto quanto irreverentes, demolidores, animados pelo fervor revolucionário, a alardear seus poemas aos quatro cantos da capital maranhense, em qualquer ocasião oportuna, tendo sempre, no mimeógrafo, no pincel atômico, no papel jornal, na cartolina, no spray e no megafone, seus instrumentos de editoração e expressão. Bares, restaurantes, igrejas, salas e salões, comícios, passeatas, encontros, seminários, congressos, retiros espirituais, missas, programas de rádio, praças, teatros, cinemas, ônibus... tornam-se espaços de noites de autógrafos ou de apresentação verbalizada dessa safra poética experimental, mas ousadamente inovadora, no âmbito da literatura local, afinada no diapasão modernista/pós-modernista, condicionada pelos muitos ismos circunstantes à época (Cubismo, Futurismo...). Não obstante o timbre meramente panfletário de algumas dessas elaborações poéticas, todas emanam um sentido político, uma mensagem de denúncia da opressão, um compromisso com as lutas dos oprimidos, numa contestação ao regime militar. Como versejadores mais evidentes desse razoavelmente extenso período, incluindo aí, os escritores de livros publicados e os que, de alguma forma, ousam expor, ainda que de forma muito restrita, seus poemas ao conhecimento público, ressaltam-se: Cunha Santos Filho, Ribamar Feitosa, Antonio José Gomes, Paulinho Lopes, Nonato Pudim, Joãozinho Ribeiro, Ângela Ferreira, Ivanhoé Leal, Celso Borges, Resende Filho, Fernando Abreu, Luiz Carlos Cordeiro, João Nascimento Sousa, Leonaldson Santos, Antônio Alvim, Iramir Araújo, João Almiro, Francisco Baía, Ribamar Silva, Cláudio Terças, César

52 - e vale lembrar o grupo precursor do Laborarte, o Tefema (Teatro de Férias do Maranhão – 1969, fundado por Tácito Borralho), o primeiro a encenar, no Arthur Azevedo, sob a direção de Tácito Borralho, a peça Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. 53 - por essa época, ressalte-se, a intelectualidade maranhense “de esquerda” organizava-se, em passeatas e outros movimentos de protesto, ante a iminente instalação, em S. Luís, das multinacionais: Alcoa, Alumar e Vale do Rio Doce, tendo à frente, o poeta e professor de Latim, Nascimento Moraes Filho. 54

Teixeira, Kiko Consulin, Joana Costa, Kênia Regina, Rita de Cássia Oliveira, Alterê Bernardino, Lúcia Brandão, Fernando Nascimento, Chico Poeta, Samuel Filho, entre outros. Notadamente, sobressaem-se, da relação supracitada, as figuras de Cunha Santos Filho (já referido), Celso Borges (Cantando), este último, por sinal, tendo desenvolvido ampla atividade literária na Universidade Federal do Maranhão e participado da chamada Academia dos Párias, ajudando a editar a Revista Uns e Outros, transfere-se, depois, para São Paulo, onde continua a publicar, retornando a São Luís anos e anos mais tarde. Antônio José Gomes (precocemente falecido), ativo militante político estudantil, participante do Movimento Arte e Vivência e que publica seus versos nos órgãos alternativos que surgem à época; Paulinho Lopes, outro ativista político, dentro e fora da Universidade, poeta de frases contundentes, numa intersecção entre o panfletário e o lírico, em poemas publicados em jornais e revistas alternativas (dentre as quais a Revista Arte e Vivência); Nonato Pudim, poeta cordelista, teatrólogo, partícipe de inúmeros grupos e manifestações populares, fornecedor de textos para o Laborarte, desenvolvendo intensa atividade artística junto à política de esquerda; Cláudio Terças, integrante dos Párias, colaborador da Revista Uns e Outros, concorrente dos festivais de Poesia Falada (UFMA), premiado várias vezes e autor do livro Correspondência de Guerra; Arimatea Coelho, também com obras premiadas em concursos, que opta por estabelecer-se em sua pequena cidade do interior (Vitória-do-Mearim, sua grande musa inspiradora), como professor estadual e municipal, de Ensino Fundamental e Médio. Finalmente, destacam-se os poetas surgidos mais recentemente, no trânsito dos anos 80 para a década de 90, a bem dizer no ocaso do século XX para o alvorecer do século XXI. Poetas que denotam, em suas composições poéticas, a incorporação de teorias literárias da vanguarda brasileira e mundial, como que abastecendo-se na fonte da moderna poesia norte- americana, dos hai kai japoneses – poetas que se empenham na performance de uma temática enraizada na teoria da aldeia minha/universal, ou acompanham, de perto, as posturas mais up-to-date da arte mundial – a exemplo de Adelson Luís Ribeiro, Edvan Caldas, Moranno Portela, Lúcia Santos, Batista Soares, Edmundo Primo, Luís Kleber, Luís Inácio Araújo, Joe Rosa, dentre outros e outros ainda mais recentes, como: Antônio Hailton, Bioque Mesito, Dil Pires, Hagamenon de Jesus, Ricardo Leão. Vale ressaltar/reiterar que é, também, a partir da década de 70, sob os auspícios dessa já empolgante tradição literária, bem como de entidades federais e/ou estaduais, fomentadoras da cultura e das artes (como Universidades, e órgãos e instituições governamentais), sem esquecer as facilidades advindas com o avanço dos meios de comunicação de massa, numa como que aliança entre as mídias e as artes, no atingir do grande público, que se nota um 55

crescente aumento nas publicações e reedições de obras de autores renomados, nos mais variados gêneros (romance, ensaio, história, poesia). Em São Luís, por excelência, começam a surgir os Festivais, com destaque para o Festival de Poesia Falada da UFMA (estreado em 1977 e ainda vigente) e para o Festival Geia de Literatura (2005 – idem). Os Concursos Literários (como o Autores Maranhenses/UFMA-1975 – já extinto); o Concurso de Folclore do Maranhão, da SECMA (anos 70-80, também já extinto); o Plano Editorial Secma/Sioge (hoje Plano Editorial Secma – ainda vigente); o Prêmio Cidade de São Luís (da Secretaria Municipal de Cultura, nas categorias arte e erudição – tradicional) e, ultimamente, a partir de 2008, a Feira do Livro de São Luís (FeliS). Continuam a surgir as novas agremiações e grupos literários, as revistas, os suplementos jornalísticos, a se destacarem, atualmente, entre estes: o Caderno Alternativo do Jornal O Estado Maranhão; o Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante (Jornal Pequeno); O Cantos à Beira-Mar, Encarte Cultural e Literário Uema- Notícias; o Folha da AVL (da Academia Arariense-Vitoriense de Letras) e o Ilha Virtual (edições on-line) – projeto do Professor escritor José Neres (Fama/Pitágoras).

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3 DO ROMANCE – teoria, referenciais, generalidades

O romance é a epopeia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida não tornou- se problemática, mas que ainda assim tem a intenção da totalidade. (George Lukács)

É possível pensar o mundo moderno sem o romance54?... O romance seria concebível sem o mundo moderno55?... Com estes questionamentos, partindo de uma visão dedutiva do fenômeno (do geral para o particular), em seu percurso diacrônico – origem, primórdios, trajetória – trazemos à reflexão/discussão este gênero do modo narrativo, eclético e complexo, herdeiro direto da epopeia clássica e que, em seu permanente fazer-se, inovar e renovar-se, sem contudo perder a própria essência – pelo seu desapego às convenções, sua capacidade de diálogo e intersecção com outras artes e áreas (linguagem, história, psicanálise, política, sociologia, pintura, cinema...), sua modalidade receptiva às variadas formas discursivas (literárias ou não – memorialismo, jornalismo, historiografia, epistolografia, ensaio) – abre-se, pois, às mais diversas esferas da experiência humana, desafiando, desestabilizando o convencional, conjugando continuidades/descontinuidades, reinventando-se, permitindo ao ficcionista a liberdade de expressão, a recriação de formas, a proposição de novos caminhos. Forma dramatizada da poesia oral (contendo os princípios da oralidade por origem e transmissão), o romance vem a se tornar o “gênero escrito-impresso” da chamada literatura. Signo maior, da cultura letrada, desenvolvendo-se em paralela à evolução da escrita, com a delimitação das funções desta, passando, em sua trajetória, pelas medievas novelas de cavalaria56, esse gênero, tal o conhecemos hoje, surge aqui no Ocidente entre meados do século XVI e início do século XVII e por excelência na Espanha, difundindo-se pela Inglaterra, França e Alemanha, firmando-se, no século XVIII, como a mais popular de todas as formas literárias – aquela que, sempre focada no aspecto temporal e histórico da humanidade, tem no mundo, na vida (enquanto história), o seu objeto de referência. Um dos seus precursores, aqui no Ocidente, é Miguel de Cervantes (com o D. Quijote de la Mancha) – que, no intuito de parodiar a novela de cavalaria já decadente (e que viria a se extinguir no século XVIII, com o advento da era industrial), produz um dos grandes clássicos da literatura, inaugurando a nova modalidade, a convencionada “epopeia burguesa moderna”, ou “do cotidiano”, que substituirá a forma ancestral57.

54 - questionamento (título de artigo) de M. . Lhosa (In: Moretti org., 2009,p.19 a 32). 55 - Idem. Cláudio Magris. Id. ibid. pp.1013 a 1028. 56 - de origem mais imediatamente francesa e inglesa e resultantes de um processo de prosificação das canções de gesta, que vão deixando de ser cantadas para serem contadas, lidas... 57 - para lembrar Hegel (início do séc. 19), para quem “o romance é a epopeia de um mundo sem deuses”. 57

Em paralela à épica, vejamos o que muda, nesse trânsito, nesse processo de evolução e consolidação do romance:  a metrificação (o verso) dá lugar à prosa de tom relativamente coloquial, característica da (nova) linguagem narrativa;  estruturando-se, a partir da dissolução da epopeia clássica e do declínio das novelas pastoris, galantes e de cavalaria, o romance não adota regras fixas ou reproduz modelos (rompendo com a tradição), tornando-se, assim, a mais aberta de todas as formas literárias;  as personagens não mais representarão a aristocracia guerreira, o grande homem de aventuras e conquistas, com seus rígidos códigos de honra, seus típicos valores de nobreza, mas seres comuns, de origem burguesa ou plebeia, em seus dilemas corriqueiros;  as ações, ora protagonizadas por essas personagens, não mais giram em torno da fama e do poder, mas de fatos relativamente insignificantes, comuns à maioria das pessoas (problemas sentimentais, sociais e financeiros). Romances como Moll Flandres (Daniel Defoe), Germinal (Émile Zola), Os ratos (Dionélio Machado), são exemplos desse enfoque no cotidiano;  a sondagem interior (mais tarde análise psicológica) se vai instaurando à medida que as personagens se vão apresentando como seres complexos (não mais como personalidades inteiriças), de vida interior dissociada da aventura, alma fragmentada, entre os desejos íntimos e a realidade quase sempre hostil;  os conflitos, que na epopeia clássica põem em confronto a personagem, apenas com a realidade exterior, no romance, acontecem, também, no interior das próprias personagens (conflito interior). Ainda se observa o choque do eu individual com o mundo, patente, sobretudo, na luta deste contra as intempéries (normas e preconceitos) sociais.

Dentre esses, outro ponto importante a considerar e que contribui, sobremaneira, para que o romance venha a ser uma das formas mais solicitadas para o entretenimento e desvelamento da sociedade, é a questão da verossimilhança (elemento regulador da mimese) ou talvez, melhor dizendo, a tensão realidade/ficção (sempre o mote das discussões, ao se tratar da relação romance/representação do real) – que parece mover a maioria dos escritores no sentido de convencer o leitor de que o enredo, a trama narrativa, é um espelho da 58

realidade. Daí, o empenho, sempre constante, numa convincente descrição de aspectos humanos. Ressalte-se que, desde o seu surgimento, o romance apresenta (em maior ou menor grau), uma certa densidade realista, à medida que seus autores buscam sintetizar, na estrutura narrativa, os elementos fundamentais do gênero: personagens (protagonizando acontecimentos imaginários); contexto histórico e circunstâncias reais (em que se movem essas personagens). Para Watt (2010), o modelo de realismo, patente no romance, é de raiz locke/cartesiana, no que tange à concepção do realismo, no pressuposto de que o indivíduo pode ter acesso à verdade pela via sensorial (através dos sentidos), numa busca pessoal, incessante. O romance, diz o referido autor, “é a forma literária que reflete mais plenamente essa reorientação individualista e inovadora”. (id. ibid, p.130). E vale lembrar que as formas e gêneros literários que o precederam, já espelhavam a tendência geral de suas respectivas culturas, em conformidade à prática tradicional do principal teste da verdade: “os enredos da epopeia clássica e renascentista, por exemplo, baseavam-se na história ou na fábula e avaliavam-se os méritos de tratamento dado pelo autor segundo uma concepção de decoro, derivada de modelos aceitos no gênero” (id. ibid). E, do romance, que adotara como critério basilar a fidelidade à experiência individual (sempre nova, posto que igualmente única), ressalte-se, é que partiu esse primeiro e grande desafio a esse tradicionalismo (WATT, 2010). A propósito (e já é senso comum): tendo o romance suas origens fortemente arraigadas no tempo histórico e em contextos socioculturais específicos, ainda que nos seus mais densos transes de fantasia ou voos de imaginação, não se furta a um refletir da verdade – a atestar, sempre, o seu alto potencial de revelação, como instrumento de “descoberta e interpretação da realidade”, para lembrar Antônio Cândido (1977, p. 193). Pode-se dizer que é através desse novo olhar que elementos do enredo narrativo se vão reconfigurando, no sentido de dar vazão ao caráter individualista, assumido pelo novo gênero, então reorientado pelo cogito ergo sunt cartesiano, para o enfoque dos objetos, em particular (elementos do enredo, por exemplo), considerando que as imagens reais se fazem alcançar, tão somente, pela virtude que têm de se tornarem entidades puramente individualizadas. A caracterização das personagens, pois (perceptível no processo de nomeação destas, conferindo uma identidade peculiar a cada uma), e a representação do ambiente são características próprias do romance. De encontro à epopeia, o romance contrapõe-se às formas mais antigas de narração, numa ruptura com a tradição oral e declamatória, adaptando-se às formas concretas da escrita. Processo (de adaptação) que lhe concede o atestado de gênero inacabado, único criado à 59

imagem e semelhança das modernas transformações do mundo, às quais se vê interligado, refletindo-as – ao contrário da já superada epopeia, compromissada com a exaltação do passado épico nacional, deste alimentando-se, distanciando-se do presente, da contemporaneidade, em seu percurso diacrônico, através das eras. O romance é a epopeia de uma época em que “a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade. [...]” (LUKÁCS, 2000, p. 218). E enquanto “a epopeia dá forma a uma totalidade de vida fechada a partir de si mesma, o romance busca construir, pela forma, a totalidade oculta da vida” (id. ibid.). Produto da dissonância metafísica que se vai estabelecendo (como resultado do conflito, de um estranhar de sensibilidade atribuída ao mundo), envolvendo o ser humano, o romance é a forma da virilidade madura (contrariamente à puerilidade da epopeia) – o que vale dizer que a “completude do mundo, sob a perspectiva objetiva, é uma imperfeição e em termos da experiência subjetiva, uma resignação” (id., ibid). Por seu turno, contrapondo-se a Lukács, Bakhtin (1998) propõe três características essenciais ao romance – circunscritas, estas, nas forças históricas que liberam a sociedade europeia de um mundo fechado, que se abre para as relações internacionais e os novos contatos linguísticos – distinguindo-o, pois, dos outros gêneros literários. Vejamos:  a tridimensionalidade estilística de um gênero que se interliga à consciência plurilíngue nele em manifestação58;  a transformação radical das coordenadas temporais das representações libertárias (em relação à epopeia, cujo interesse é a representação do mundo no passado, o romance atêm-se aos elementos vivos da palavra e do discurso social);  uma nova arte de estruturação da imagem literária, justamente o espaço de contato com o contemporâneo, no seu aspecto inacabado. Antenado às sucessivas transformações da sociedade, o romance vincula-se ao presente, na sua incompletude, garantindo, assim, a reinterpretação e a reavaliação do mundo em sua constante renovação. No seu todo estrutural, pois, o romance abre-se à variabilidade e diversidade das sequências de acontecimentos que se vão desencadeando/complementando, instaurando a exegese do texto. Os organismos vivos, ali presentes, dimensionando-se ao elemento espaço, permitem ao autor o deslocar de suas personagens e da própria narrativa. De maior

58 - ora, a mostra artística, constituía-se na fala (dialetos literários coexistentes no mundo no universo restrito das línguas nacionais; com o novo quadro evolutivo da sociedade, o plurilinguismo ativou-se, enquanto as línguas nacionais entraram em processo de mutação e esclarecimento, reverberadas, pois, na estilística do romance). 60

complexidade, o tempo (histórico, psicológico, metafísico), é outro elemento a anteparar as ações das personagens, por sua vez também categorizadas em sua respectiva tipologia. E o pacto de verossimilhança autor/leitor parece evidente, a partir do exposto. Pacto que (segundo os estudiosos do assunto), só vem a ser descurado quando do Romantismo e na emergência do convencionado romance gótico (roman noir – Inglaterra), marcado pelo terror, o mistério, o sobrenatural, a desafiar a razão e a lógica do mundo – a exemplo d‟O castelo de Otranto (1764 – ambientado na Itália, na alta Idade Média), do aristocrata inglês Horace Walpole, muito apreciado no final do século XVIII para início do XIX, num sucesso que continua com seguidores do gênero, como Edgar Allan Poe, Bram Stoker, Dafne du Maurier, Ann Radclift, Emily Brönthe... A modernidade do romance (é consabido), passa pela pena de um Balzac, evoluindo sempre mais e mais, com escritores como Marcel Proust, James Joyce, William Faulkner – que o vão guarnecendo, consolidando com inovações tais, como o fluxo de consciência, as livres associações literárias, conferindo-lhe o selo de maturidade. É então (a partir dessa tríade) que o gênero vai adquirindo novos contornos, observando-se, nesse contexto de mudanças, a categoria tempo desconstruindo-se, assumindo, já, outras configurações, na fusão dos conceitos passado/presente/futuro – questão, por sinal, muito bem estudada por Mendilow (1972) que, vendo na manipulação do fator tempo um dos aspectos fundamentais do romance, centraliza a temática de uma de suas obras na ontologização do tempo (relação entre ser e tempo – o conhecimento do ser, o sujeito individual, na percepção do si mesmo ante o tempo a decorrer – no enredo narrativo). A propósito do tempo, na ficção romanesca, vale lembrar que este só se faz constitutivo se apto a estabelecer uma relação com a transcendência, posto que, só ele (o tempo) pode desvincular o sentido e a vida, o essencial e o temporal, podendo-se inferir, mesmo, que: toda a ação interior, nesse espaço, resume-se na luta contra o poder do tempo – embate do qual afluem as experiências temporais verdadeiramente épicas: esperança e reminiscência (LUKCÁS, apud BENJAMIN, 2008). Só o enredo narrativo está apto a promover a reminiscência criadora, capaz de alcançar o seu objeto e transformá-lo. E para ultrapassar o dualismo da interioridade e da exterioridade, o sujeito tem que perceber a unidade de toda a sua vida, na corrente vital do passado, circunscrita na reminiscência (id. ibid). E perceber essa unidade é intuir o (inexprimível) sentido da vida. Retomando: é por esses tempos modernos, ressalte-se, que escritores como Kafka e Dino Buzzati, dentre outros, introduzindo, em suas obras, elementos simbólicos, míticos e alegóricos (em que a realidade factual não mais é filtrada linearmente, forçando o leitor a 61

traduzir o universo literário de sugestões para o seu próprio universo concreto), vêm como que pôr em xeque a narrativa realista. E um novo olhar sobre essa “epopeia da burguesia” (contudo, já desprovida daquela antiga grandeza, visto que o poeta não mais pode ser o mesmo cantor de uma coletividade, posto que a sociedade em que vive ora divide-se em classes mutuamente contraditórias, em seus interesses divergentes), epopeia do desencanto, encarnação da modernidade, vislumbra-a, na objetivação do hiato entre o eu e o mundo, na proposição de autores como Hegel e Lukács – este último que, pensando-a, na esteira dos condicionamentos que lhe são conferidos pela época que a viu desenvolver-se (como forma literária do mundo burguês), a tem na conta de concepção do mundo, num determinado tempo (LUKÁCS. 2000). Assim é que, podemos dizer, o romancista é artista literário incansável, nos seus incessantes desafios temáticos, estilísticos e formais. No romance oitocentista, por exemplo, o burguês transparece num individualismo de quem se reconhece o sujeito da história (constituindo-se, pois, numa subjetividade). A partir do Romantismo, o gênero já pode ser visto como “um excelente índice dos interesses da sociedade culta e semiculta do Ocidente. A sua relevância, no século XIX se compararia, hoje, à do cinema e da televisão”, diz Bosi (1995, p. 97). Mas, num mundo cada vez mais refém de uma civilização industrial, o que se verá (e que o romance irá retratar, como testemunho de uma época) é o contínuo e progressivo desvinculo desse indivíduo consigo mesmo e sua comunidade. A partir da segunda metade do século XIX, pois, tem-se a desagregação desse eu subjetivo e sua dispersão na Babel urbana. No crepúsculo desse mesmo século, o romance russo aflora, com Turgunieff, Gogol, Tolstoi, Dostoievski, numa continuada vertente que se vai inovando, em termos de prospecção psicológica. Uma nova subjetividade a conferir às narrativas uma certa densidade e percepção da sensibilidade humana e que, inserindo-se na corrente literária, transforma-se em método expressivo, adotado por prosadores de todo o mundo. E o romance, diga-se de passagem, vem sendo, desde as suas origens, o espaço de reflexão dessa fratura, o palco onde assistimos, encenada, a via crucis desse homem solitário, que já se sente um estranho em seu próprio ninho (como podemos ver na obra de um Saramago59). A reconstrução dessa totalidade perdida é empenho do romancista (em sua árdua tarefa de restabelecer o sentido de uma vida, num mundo já sem sentido), através de uma forma,

59 - Ensaio sobre a cegueira (alegoria/analogia à “cegueira branca” da humanidade; à degradação da vida civilizada, na Babel da violência); A Caverna (outra alegoria/analogia à cidade – caverna da modernidade, polis despolitizada, sob o fascínio, a sedução das imagens, num mundo de simulacros). 62

como num resgate (na época moderna) de algo que se perdera, na narrativa épica, em termos de qualidade, e numa tentativa de reconciliação entre matéria e espírito, vida e essência. Empreendimento que se foi configurando, cada vez mais difícil. Matéria primordial do gênero, o eu fraturado, numa sociedade fraturada, configura-se como o tema, por excelência, principalmente do romance modernista, trazendo consequência para a forma romanesca, que também se estilhaça e se refrata na perda da onisciência ou na multiplicação da voz narrativa, na interiorização dos conflitos e na quebra do encadeamento casual no âmbito do enredo. A crise da experiência do indivíduo contemporâneo encontra rebatimento numa forma também em crise, obrigando o romancista a reconfigurar seus materiais e técnicas para dar conta de novos conteúdos, a aventurar-se em novos experimentos formais (VASCONCELOS, 2010). Proteiforme – como se vem impondo e manifestando, desde a sua eclosão como gênero, o romance moderno tem sido alvo de uma sempre nova (e em constante mutação) demanda social, assim constituindo-se, ao longo de pelo menos três séculos, num prodigioso campo de experimentação, no que tange aos elementos de sua composição narrativa – tempo, espaço, intriga, personagens em ação, foco narrativo. Em plena eclosão dos movimentos de vanguarda (século XX, primeira metade) – que alteram o horizonte das artes no período, na crista das radicais transformações por que passa o homem e o mundo, naquele momento, o romance vem a captar algumas das soluções possíveis, no instaurar de uma outra configuração narrativa do real. Questão que, indo além da desconstrução da forma tradicional, implica, também, a questão do sujeito (em termos de representação, ausência e desagregação). Percepção que, a propósito, Virgínia Wolff (1985, p. 86) reflete, ao expressar, num ensaio (1924): “em ou por volta de dezembro de 1910, o caráter humano mudou” – como que se referindo a novidades como o Pós-Impressionismo, cuja exposição, naquele ano, fora um dos prenúncios do fim de um período de estabilidade e que, para a autora, forçara o artista a sintonizar-se com o novo molde, o novo modo de apreensão do caráter humano, e que irá imprimir, em Miss Dallowaay (seu novo romance – 1925) – uma concepção da personagem em sua percepção do mundo (numa visão exterior e interior), da vida em seu ininterrupto fluir. A partir da segunda metade do século XX, intensifica-se a discussão em torno de uma possível crise do romance, supostamente extinto, por volta dos anos 50. Autores como Alain Robbe-Grillet, Claude Simon, Robert Pinget, Nathalie Sarraut, Marguerite Duras, Michel Butor, dentre outros, opõem-se à ideia do romance, na mera função de contar uma história e delinear as personagens, segundo as convenções realistas do século XIX e postulam a 63

transgressão de outros valores do romance tradicional, tais como: tempo, espaço, ação, verossimilhança, etc. Todavia, há os que acreditam que esses escritores estão mesmo é contribuindo para a renovação do romance, sobretudo graças à influência do cinema. Surge, pois, o nouveau roman 60, sacudindo a poeira dos tempos. Em 1936, vale retomar, os Estados Unidos vivem a época clássica do cinema falado. Mas, surpreendentemente, antes de sofrer os influxos da sétima arte, o romance a influencia. Tanto que, nos anos 30 e 40, os filmes narrativos são muito valorizados e grandes romancistas são contratados para elaboração de roteiros. Francis Scott Ftzgerald é um dos que, notando que o cinema está sobrepondo-se ao romance – este como que subordinando-se a uma arte mecânica, em que as imagens como que sobrepõe-se às palavras – ainda aposta no gênero como arte sempre superior e meio mais eficaz e flexível na transmissão do pensamento e da emoção entre os seres humanos. Antes, na década de 20, quando da publicação de Ulisses (James Joyce), já se acreditara ter o romance atingido o seu apogeu, vindo a se constituir, mesmo, a obra em referência, na sua (do romance) paródia final, em consonância à previsão de Kierkegaard (1991), para quem toda fase histórica culmina com a sua própria paródia. É também por essa época (décadas de 50 e 60), justo em meio às dúvidas sobre se a ficção romanesca estaria mesmo ficando superada, esgotando-se, em seus recursos, que surge, na América do Sul, o chamado realismo mágico (forma deveras singular de realismo), com romances abordando temáticas inverossímeis, mas com absoluto teor de verossimilhança (premonições, mortos redivivos...): Pedro Páramo (Juan Rulfo – 1955), Grande sertão: veredas (João Guimarães Rosa – 1956), A morte de Artemiro Cruz (Carlos Fuentes – 1962), O jogo da Amarelinha (Julio Cortazar – 1963), Batismo de fogo e A casa Verde (Vargas Llosa – 1963/07), Três tristes tigres (Cabrera Infante – 1965), Cem anos de solidão (Gabriel García Marques – 1967)... – que fazem o boom da literatura latino-americana, focalizando realidades do interior deste lado do continente, ainda não alcançado pela modernidade. Aqui no Brasil, a época se faz marcar pelo sucesso do gênero. Em 1956, são editados: O encontro marcado (Fernado Sabino), Doramundo (Geraldo Ferraz), Vila dos Confins (Mário Palmério), Grande sertão: veredas (Guimarães Rosa). Em 1958, é a vez de Gabriela, Cravo e Canela (Jorge Amado) e da trilogia O tempo e o vento (Érico Veríssimo), que ganha o seu primeiro volume.

60 - (école du regard), designação própria da renovação ocorrida no romance francês, por iniciativa de um grupo de romancistas de vanguarda, nas décadas de 50 e 60 do século XX, contrários aos padrões tradicionais do enredo romanesco, num descompromisso típico da literatura de pós-guerra. 64

Comentários sobre a crise do romance são bem antigos. Em 1880, por exemplo, procedendo-se, na França, um estudo sobre o assunto, Jules Renard anuncia-lhe o fim. Em contrapartida (há que se observar), à época, estão em plena operosidade: Zola, Gide, Valery, surgindo mais tarde: Proust, Joyce, Kafka, Robert Musil, Eça de Queirós, Machado de Assis, Aluísio Azevedo, entre outros. Para Gabriel García Marques (em entrevista), quem acredita na morte do romance é que está, deveras, morto. Com efeito, filho da Revolução Industrial, o romance esteve sempre por um fio, concorrendo com outros gêneros que vão surgindo: o jornal, o cinema, o rádio, a TV, os computadores, a Internet – rivais que, não obstante, têm mais é se transformado em seus aliados, colaboradores, divulgadores (o jornal escrito, divulga a literatura; o cinema, nela se inspira; a internet é hoje o meio eletrônico de divulgação da arte da palavra). Para Michel Butor (1974) – que, no seu ponto de vista circulante e no afã de conciliar a forma tradicional com o ideal de representar o mundo contemporâneo, torna-se adepto do nouveau roman – o gênero em apreço é o laboratório da narrativa, não havendo espaço mais apropriado para novas experiências. De modo que, uma literatura que pretenda representar o mundo, a vida, só consubstanciará esse feito mediante o acompanhamento das mudanças, cada vez mais dinâmicas, da sociedade contemporânea. Assim, ainda que se perca a própria noção de romance; que se desconstrua a velha estrutura (marcada pela coerência interna, de onde se espera extrair o sentido da narrativa), o que está em crise é a pretensão em alcançar significados coerentes. Na contemporaneidade, assiste-se ao esgotamento das ideologias e à falência, tanto da sociedade burguesa, quanto da socialista. O romance clássico (construído sobre as ruínas do sistema feudal) representaria, pois, o registro de um estilo de pensamento ultrapassado pela racionalidade histórica pós-moderna. Não obstante, se o romance vem sofrendo desgastes, através das épocas; se em torno dele continuam os preconceitos; se a “epopeia da burguesia” ou “epopeia burguesa moderna” (HEGEL, 1964, p. 254) – que “pressupõe uma realidade já prosaica e no domínio da qual procura, na medida em que este estado prosaico do mundo o permite, restituir aos acontecimentos, assim como às personagens seus destinos, a poesia de que a realidade o despojou” (id. ibid., p. 254-255) – não mais desfruta do prestígio que logrou até os albores do século XX, basta observar e constatar: o romance continua vivo, captando, interpretando, revelando a experiência humana, deleitando, instruindo, seus leitores com outras visões de mundo, não mais como epopeia da burguesia, mas como a saga da classe média, da plebe, da sociedade contemporânea, enfim, manifestando-se em outras formas, em outras linguagens, posto que gerado e concebido no seio da literatura – força alentadora, sempre viva, 65

imperecível. Continuará, pois, fecundo e fecundante, crescendo e multiplicando-se, ao longo das eras. E quem sabe, um dia, não muito distante, daremos à telenovela, o verdadeiro título de telerromance. A propósito, como o infere Butor (1974), todo empreendimento literário, hoje em dia, produz-se num contexto já profusamente impregnado de literatura. Para Barthes (2011), a crise do romance só se pode instaurar, verdadeiramente, se o escritor se fizer repetitivo ou se desistir da arte de escrever. E o romance moderno – que cresce e aparece e numa releitura do romance realista, que se constrói, quase que numa perspectiva de transparência, reproduzindo, no enredo narrativo, a realidade social de uma época, pautando-se numa burguesia decadente. Romance moderno, aqui vislumbrado como a ficção romanesca produzida a partir da segunda metade do século 20 aos nossos dias. Romance moderno (ou pós-moderno, para alguns); polifônico (nos moldes conceituais bakhtinianos), da nossa contemporaneidade, a flagrar um novo espírito de época a desencadear um novo modo de verossimilhança e representação do sujeito – num discurso constitutivamente permeado pelo seu outro, numa polifonia a inscrever-se num ambiente de afirmação do heterogêneo, do diferente, do outro (diríamos, mesmo do polêmico), das várias vozes que integram o projeto de fala do sujeito comunicante, na cena enunciativa proposta por ele – argumentando, movimentando os actantes do processo de enunciação, vivificando os conteúdos discursivos, através da palavra, esse elemento-chave da comunicação. Nesse contexto em referência, vale ressaltar, caiu, já, por terra, a pretensa lógica racionalista, esteirada nas concepções positivistas/deterministas. E o processo de criação, agora, não é mais aquele que se compraz na busca de soluções lógicas, verdades pretensamente acabadas, enredo linear (em conexão com o Positivismo, a ciência exata, experimental, do século 19), mas aquele que põe em questão (ou leva a refletir sobre) a verdade impalpável de um sujeito constantemente eclipsado, que se subdivide ou pluraliza, em ângulos diversos, como simulacro de um mundo em continuado processo de composição/decomposição/recomposição. Observemos, com Cordiviola (2004, p. 08), que

[...] Desde o formalismo russo a Derrida, o estatuto da escrita, a especificidade literária, a ordem do discurso e a noção de texto têm sido amplamente discutidos nos estudos da área. Da mesma forma, de Barthes a Lacan a Stuart Hall e Homi Bhabha, a implosão do sujeito, os descentramentos do eu, os entrelugares de enunciação, mediados por sujeitos heterogêneos, e em desequilíbrio, conformam uma das temáticas mais instigantes do pensamento teórico contemporâneo. [...].

E com Vasconcelos, (2010, p. 183) para quem: 66

De Rainer Maria Rilke a Mikail Bulgakov, passando por Luigi Pirandello, Louis Aragon, Mário de Andrade e Vladislav Vancura, vemos como diferentes autores, de origens e tradição diversas, fizeram implodir a estrutura narrativa que o romance realista do século XIX havia erigido em modelo. Por meio de soluções inovadoras para o tratamento do tempo e do ponto de vista, do recurso à livre associação de ideias, o monólogo interior e ao fluxo da consciência, entre outras providências, eles puseram em xeque as próprias fundações do gênero, possibilitando, com isso, sua renovação. Os romances que esses escritores nos legaram são exemplo do esgarçamento da experiência e da “fratura do senso de continuidade” de que fala Enrico Testa a respeito de Pirandello...

O romance moderno, pois, constrói-se num internunciar-se de vozes, em simultaneidade, personagens indefinidas que se contradizem e relativizam, em discursos que semelham a verdadeiros conjuntos filosóficos, no entender de Bakhtin (1998) – para quem o romance é um gênero polifônico, por natureza, posto que apresenta diferentes vozes sociais que se defrontam e se entrechocam, manifestando diferentes pontos de vista coletivos sobre um dado objeto. Neste ponto, na emergência de suspender este fluxo discursivo, talvez valha retomar o questionamento inicial, com que abrimos estas transitórias considerações sobre o romance, à guisa de uma resposta, que só poderia (e só poderá) ser NÃO. Não é possível pensar o mundo moderno sem o romance, tampouco o romance pode ser concebível sem o mundo moderno. Convenhamos com Magris (2009, In: MORETTI, org., 2009, p. 1016): “o romance é o mundo moderno, não apenas não poderia existir sem este, como a onda sem o mar, mas por alguns aspectos identifica-se com este, é a mutável expressão dele, como o olhar e o contorno da boca são a expressão do rosto. [...]”. Tendo discorrido sobre o romance, em sua gênese e percurso histórico (e sob os fundamentos dos autores convocados), situaremos, também, em linhas gerais, o gênero, em sua origem, primórdios, coordenadas históricas, percurso evolutivo, aqui no Brasil e, finalmente, no Maranhão, acervo ainda tão pouco conhecido e divulgado, mesmo em termos locais, requerendo, portanto, especial atenção nesse mister. Vamos aos fatos.

3.1. Da eclosão do gênero na Literatura Brasileira: primórdios e precursores

É no século XIX, com o romance oitocentista, portanto, que se inicia e desenvolve esse gênero narrativo na Literatura Brasileira – numa adaptação do romance europeu, reproduzindo-lhe a estrutura folhetinesca, conservando, desta, a linearidade (começo, meio, fim, segundo a ordem cronológica dos fatos, no enredo). O filho do pescador (1843), de Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa (1812-1881), tem sido apontado como o primeiro romance brasileiro. Estilo “sentimentalóide”, trama confusa, 67

avesso, pois, à linha adotada pelo nosso Romantismo, vem, entretanto, a ceder essa coroa de pioneirismo a A Moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo que, caindo no agrado do público leitor, satisfazendo-lhe, pois, as expectativas, pode ser considerado o primeiro romance brasileiro propriamente dito. Vale lembrar que, ao lado da poesia e do teatro, a prosa de ficção (conto, novela, romance) está entre os gêneros preferidos do público-leitor, na vigência do Romantismo, na nossa Literatura Brasileira, assumindo (quiçá, mais que a poesia) a função de instrumento de nacionalização das nossas letras e de construção da nossa identidade cultural. No mister de “redescobrir” o País, o romance brasileiro como que está empenhado em projetar os espaços nacionais – a mata nativa, o meio rural e o citadino, que darão origem, respectivamente, às vertentes indianista e histórica; a regional e a urbana. Assim considerando, é José de Alencar a merecer o epíteto de patriarca do romance brasileiro, pelo que se pode falar, nesse universo, em um antes e depois do cearense de Mecejana – a quem, de fato, deve-se a introdução de novos estilos na nossa prosa romântica. Com efeito, os espécimes que precederam as narrativas alencarinas, pode-se constatar, enfocam, basicamente, a vida, o ambiente urbano do Rio de Janeiro e num recorte ainda muito superficial da sociedade brasileira da época. Com Alencar, surgem os tipos: indianista (Iracema, O Guarani, Ubirajara); regionalista (O Sertanejo, O Tronco do Ipê); histórico (As Minas de Prata), ao lado do urbano ou citadino já existente (Lucíola, Encarnação...) passando, assim, esse gênero, a ser mais crítico e realista. Vale ressaltar, todavia, a existência já, nesse panorama de gestação e eclosão das letras nacionais, dos ditos precursores cronológicos da nossa prosa romanesca ou seja: publicações pretensamente do gênero, antes de O Filho do Pescador, podendo-se, nesse sentido, elencar obras como:

 A História do Predestinado Peregrino e de seu irmão Precito – espécie de novela alegórica, escrita no Brasil (publicada em Lisboa, em 1682 e em Évora em 1685), de autoria do Pe. Alexandre de Gusmão61. Produzida no Brasil, mas sem qualquer traço de brasilidade, pode-se dizer que se trata de uma parábola de tônus pedagógico e moralizante, a ressaltar a importância da educação num projeto de vida (SILVA E MASSIMI, 1997), à medida que os irmãos Predestinado e Precito optam, cada qual, pelo seu próprio caminho: aquele, frequentando a Escola da Verdade e tomando por esposa a Razão, segue para o para o Bem – alegorizado na cidade de Jerusalém;

61 - pedagogo, literato, fundador do Colégio de Belém (Salvador-Ba.), autor, dentre outros, do tratado: A arte de bem crear os filhos na idade da puerícia (1685). 68

este, adepto da Escola da Mentira e esposando a própria Vontade, segue para o mal – por sua vez, alegorizado na cidade de Babilônia. E é de se reconhecer, na temática de abordagem, a peregrinação, na simbologia da existência humana, legado medieval retomado pelo Barroco luso-brasileiro.  Compêndio Narrativo do Peregrino da América, de Nuno Marques Pereira, publicado em Lisboa (1728), dotado, todavia, de elementos identificadores do contexto brasileiro e que vem a ser considerado, por Afrânio Peixoto, como o nosso primeiro romance. Para José Veríssimo (1915), entretanto, não se trata de romance ou novela mas, escrito em prosa, fora a primeira obra de ficção (ou imaginação), aqui produzida por um brasileiro, falando de coisas da terra, em seus habitantes, usos e costumes. Para Moisés (2006, p.321), essa obra

...que alcançou grande popularidade no século XVIII e na qual se quis, infundadamente, ver o início da ficção brasileira, é uma longa e enfadonha coleção de narrativas de cunho religioso e edificante, centrada nas andanças de um peregrino por terras do Pernambuco e Bahia.

 As Aventuras de Diófanes (inspirado no Telêmaco de Fénélon), composto de cinco capítulos, também publicado em Lisboa (1752), na pseudo autoria de Doroteia Engrássia Tavareda Dalmira, a encobrir o nome de Margarida da Silva e Orta (São Paulo 1711 ou 12/Portugal 1793) – que se vai, aos cinco ou seis anos, com a família, para Portugal, não mais retornando ao Brasil. Obra que, “pregando a resignação com a adversidade e louvando a vida simples”, num “racionalismo místico, didático e reformador”, próprio do Setecentos, mas em estilo “pesado, afetado e confuso”, sumarizando-se num barroquismo de mau gosto, trata-se, segundo Moisés (2006, p. 62), da primeira novela brasileira, “desde que se adote o discutível critério de considerar pertencentes a nossa literatura todas as obras de autores aqui nascidos”.  Statira e Zoroastro (1826) de Lucas José de Alvarenga, de 58 páginas e classificação duvidosa, entre novela e romance, movendo-se, segundo Moisés (2006, p. 32), “no perímetro da novela”, filiando-se ao gosto clássico e categorizando-se como ficção alegórica (ainda que nada tenha acrescentado ou inovado nesse domínio), credenciando-se como o primeiro livro do gênero no Brasil, narrando, num tônus didático-moralizante, os amores impossíveis entre Zoroastro (príncipe tibetano) e Statira (vestal) – que, ao subir ao trono da Lícia, institui a república das mulheres e modifica as leis para casar-se com o seu amado, 69

falecendo pouco depois. Ainda segundo Moisés (ibid), “[...] só lhe cabe a importância histórica de ter sido a primeira tentativa de novela entre nós, numa altura em que predominava a poesia, e em que ainda mal se pronunciava o surgimento da prosa de ficção, ocorrido alguns anos mais tarde”.  Crônica do descobrimento do Brasil (1840) de Francisco Adolfo de Varnhagem – embora a crítica lhe negue o caráter de romance, dado suas falhas de ordem estética, em termos de concepção e forma, conferindo-lhe, pois, um diminuto valor literário.  As duas órfãs (1841) de Joaquim Norberto de Sousa e Silva (mestiço de Cabo Frio- 06.06.1820/R.J.-14.05.1891), é outro pretenso romance que vem conferir ao seu autor precedência histórica sobre O filho do Pescador, de Teixeira de Sousa. Por outro lado, Romances e Novelas, desse mesmo autor, é obra que contribuiu na elaboração e evolução das espécies narrativas, nas letras brasileiras, ao apresentar uma distinção didática entre novela e romance, abrindo, pois, caminho para uma teoria do gênero, entre nós.

E o romance brasileiro prossegue, nos estilos de época que se vão descortinando (realismo, naturalismo, pré-modernismo, modernismo, a ficção contemporânea) e nos autores que vão formando o cânone brasileiro do gênero (Machado de Assis, Euclides da Cunha, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Rachel de Queirós, Guimarães Rosa, Josué Montello, Clarice Lispector... dentre muitos e muitos outros).

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4. DO ROMANCE MARANHENSE do século XX – origem, primórdios, precursores, trajetória, autores/obras

O romance maranhense é sempre visto com pouca simpatia pelo maranhense. Tem- se a impressão de que fora Josué Montello ninguém mais é capaz de construir uma obra de ficção neste campo de arte literária. Vítima dessa visão exclusivista foi Ribamar Galiza, que deixou alguns romances de excelente construção literária, mas nem sequer aparece, como deveria aparecer, nas mais elementares Enciclopédias de escritores que circulam no país. Poucos, nesta cidade, devem conhecer um escritor maranhense chamado Ronaldo Fernandes e raros são os que já tomaram conhecimento da existência de Ariel de Morais 62 e J. Ewerton Neto. (Ubiratan Teixeira)

[...] o maranhense rejeita seus artistas, em preferência às manifestações culturais de outras regiões, mesmo que espúrias, destituídas de engenho e arte. Quem, nesta cidade de tantos bons escritores, [...] não fica hipnotizado por qualquer nome estrangeiro? (Bernardo Coelho de Almeida)

Em se tratando desse gênero da ficção narrativa, Gonçalves Dias (Caxias-Ma.- 1823/Baixios dos Atins-Guimarães-Ma63-1864) poderia ter sido o seu introdutor, na Literatura Maranhense, ou mesmo um dos seus precursores no universo das Letras Brasileiras, posto que, antes mesmo de Teixeira e Sousa, já escrevera, em Coimbra (1841-42), numa perspectiva realista e em estilo autobiográfico, as Memórias de Agapito Goiaba, posteriormente destruído (queimado, em 1852), pelo próprio autor e do qual circularam alguns trechos no Maranhão, em 1846. Sobre a referida obra, informa José Veríssimo:

Era um livro de memórias e recordações pessoais travestidas e idealizadas, à moda da Nova Heloísa64, e só por isso seria certamente curioso. Apesar deste exemplo ilustre, se não estava ainda na despudorada literatura pessoal, cujo criador foi exatamente Rousseau. À delicadeza de Gonçalves Dias, repugnou publicá-lo e o destruiu mais tarde. Pelo que dessa tentativa nos resta, presumimos que, além do sainete das reminiscências e confidências disfarçadas num romance vivido, teria este sobre os dos criadores do gênero aqui, aquilo que totalmente lhes faltou, virtudes de composição e de expressão. [...]. (VERÍSSIMO,1915, cap. XI, p.121).

De forma que, só no raiar da segunda metade do século 19 (trânsito da primeira para a segunda década – 1859) e ainda sob a aura do Romantismo, O Maranhão ganha a sua primeira ficção romanesca: Úrsula65, composta em estilo romântico e na abordagem de um tema abolicionista, em que a autora Maria Firmina dos Reis 66 (São Luís-Ma.1825/Gimarães- Ma.1917) – verdadeiramente a matriarca do nosso romance, em nível local, e provavelmente, a

62 - contista. 63 - naufrágio do Ville de Boulogne. 64 - de Rousseau. 65 - pioneiro no gênero romance abolicionista, aqui no Brasil e considerado, por muitos críticos e historiadores da nossa literatura, como o primeiro romance de autoria feminina na Literatura Brasileira. 66 - primeira professora primária concursada no Maranhão. 71

primeira romancista67 em âmbito nacional – mostra-se preocupada com a história e as raízes negras, consciente, pois, das questões que movem o Brasil de então, no vislumbre da democracia. Escrito na juventude da autora (nos seus pouco mais de 30 anos de idade), num momento em que a nossa prosa de ficção começa a dar os seus primeiros passos, mas publicado em livro somente em 1975 68 , inaugura o romance abolicionista brasileiro de expressão feminina, à medida que o negro escravo é presença constante e marcante e a voz narradora denuncia a violência do sistema escravista, pondo em questão a sua legitimidade, numa circunstância em que os escravos, separados de suas famílias e de sua terra natal, eram trazidos aqui para o Brasil (em navios negreiros), sem qualquer respeito humano, para trabalhar sem descanso, alimentação, roupas ou moradia adequada. Trata-se, pois, de uma obra romântica, com ares de denúncia social, tendo o amor (impossível) entre Úrsula e Tancredo como pano de fundo na temática abolicionista. Duas almas generosas é o capítulo que dá início à narrativa, pondo em cena o socorro prestado por Túlio (jovem escravo) ao jovem bacharel Tancredo (branco, burguês), vítima de um acidente, durante um passeio a cavalo. Título que, por si só, já sugere a solidariedade humana superando preconceitos entre dois seres socialmente distantes, dando a entender que a escravidão humilhante/revoltante, não endurecera o coração daquele escravo que cuida do branco e abastado Tancredo, vendo-o, tão somente, como alguém necessitado de ajuda. A autora como que intenciona mostrar, em sua obra, o coração generoso, amoroso, do negro (malgrado as injustiças sofridas). Empatia humana, capacidade de amar, que chega a comover Túlio, o jovem branco, livre e rico que, experimentando, gratificado, a bondade do seu salvador, compra-lhe a carta de alforria. E o enredo prossegue, linearmente, em seu desenrolar. O escravo acolhe o cavaleiro ferido na casa da sua senhora (Úrsula – coincidentemente, prima de Tancredo). A situação promove o encontro dos dois jovens aparentados, despertando-lhes a paixão que os transporta a breves momentos de felicidade, para resultar no infortúnio. Úrsula cuida da mãe doente, que fora traída pelo próprio irmão (tio da jovem), o Comendador – que, por ser contrário ao casamento da irmã, vem a assassinar o cunhado (pai de Úrsula) e a apossar-se dos bens da família. Constituindo-se no típico vilão da história, é figura sádica do senhor cruel, que explora a mão de obra escrava, até miná-la nas suas forças. O desfecho de tudo se dá com o assassinato de Tancredo (pelo tio da noiva), à porta da Igreja, na noite do seu casamento,

67 - a primeira mulher, autora de um romance, na literatura brasileira.. 68 - pelo escritor Nascimento Moraes Filho, que o encontra e coleta das páginas do Semanário Maranhense. 72

seguindo-se o recolhimento de Úrsula ao convento, o tardio remorso do assassino, a consequente libertação dos seus escravos e a loucura, tudo se concluindo com a morte do algoz arrependido. Em 1866, é a vez de A Casca da Caneleira (Steeple-Chase – por uma boa dúzia de Esperanças), outra investida do gênero, produção coletiva (possivelmente espelhado em La Croix de Benny – romance francês, coordenado por George Sand). Coescrita por onze autores dos mais conhecidos no cenário literário maranhense da época e organizada por Joaquim Serra (também coautor) a obra, “inicialmente planejada e executada com o simples intuito de divertir leitores, através de uma historieta romântica, toma o sentido de uma reação à Questão Coimbrã pelo cunho chocarreiro que lhe dá Joaquim Serra. [...]”, como o infere Moraes (1980, p. XI). São onze capítulos, identificados sob pseudônimos, camuflando o nome dos seus respectivos autores, a saber: Gentil Braga: Flávio Reimar (cap. I – A Luz); Joaquim Serra: Pietro de Castelmare (cap. II – Mais Luz); Raimundo Filgueiras: Pedro Botelho (cap. III – Histórias do Neves); Antônio Marques Rodrigues: Rufo Salero (cap. IV – Bem que prega Frei Tomás); Trajano Galvão de Carvalho: James Blumm (cap. V – Cousas do Arco da Velha); Francisco Sotero dos Reis: Nicodemos (cap. VI – Um Coração de Mulher); Antonio Henriques Leal: Judael de Babel-Maned (cap. VII – Uma Cena no Alcazar); Francisco Dias Carneiro: Stephens Van-Ritter (cap. VIII – Tertius Gaudet...); F. G. Sabbas da Costa: Golodron de Bivac (cap. IX – Quase que se pegam...); Caetano Cândido Cantanhede: Ivan Orloff (cap. X – É Tarde!... ); Joaquim de Sousa Andrade, o Sousândrade: Conrado Rotenski (cap. XI – Em Cartas). Cada autor expressando-se livremente, em seu peculiar estilo, iniciando/continuando um enredo narrativo que traz à cena duas personagens femininas: Júlia e Clara, encerrando-se num Caleidoscópio Final, à guisa de epílogo, donde o excerto a seguir:

Os leitores desta fantasia romântica entraram em uma floresta literária, virgem, nova, sedutora e luxuriante como nunca foram as tão preconizadas do continente americano. Viram o coração humano palpitar-lhes debaixo dos dedos e sem dúvida alguma bateram aplausos em honra dos profundos espíritos que conceberam a história retro, cheia de lindas descrições, de importantes estudos de caracteres, de pinturas reais e arrebatadoras, de intrigas bem tecidas, de cenas surpreendentes, de abafos de sentimentos e desabafos de palavras. Amou-se, aí nas folhas anteriores, de mil modos; assinalou-se uma época, falando de um teatro; houve lágrimas, suspiros, confissão e casamento. [...]. Em verdade, nada de comum existe entre os amores de D. Júlia e D. Clara; da filiação do Comendador Neves; das rapaziadas do Sr. Carlos e do Sr. Américo; do alcazarismo do Major Salustiano, da agiotagem do Sr. Eustáquio, e tudo o mais do texto a que nos reportamos – e a delicada denominação de – Casca da Caneleira – posta no frontispício da fantasia. Mas, esta inconcussa verdade só existe para o leitor que não estiver iniciado nos mistérios da escola coimbrã dos Srs. Antero de Quental e Cerqueira Lobo. Esta escola, que é moderníssima, e que tem sido imortalizada por todos os irmãos, filhos e sobrinhos Castilhos, atrai atualmente a atenção de todo o mundo culto, pelo infinitamente maravilhoso da ideia e da expressão. Nós, como 73

entusiastas adeptos da escola coimbrã, da qual já damos uns rápidos toques de iniciação aos leitores, no programa deste livro, vamos entrar agora no mais pleno dos seus domínios para explicar o que seja a Casca da Caneleira (p. 72).

Próximo ao final da segunda metade desse mesmo século, de volta à terra natal (motivado pela morte do pai), egresso do Rio de Janeiro, onde fora estudar artes plásticas (1876), Aluísio Azevedo (São Luís-Ma.14.04.1857/Buenos Aires 21.01.1913) conclui e publica, nos moldes de um romantismo já liberto dos seus inerentes pieguismos, Uma lágrima de mulher (1879) – iniciado no Rio de Janeiro, mas ambientado na Grécia e Itália. Romance de estreia desse renomado escritor, esse fato pode justificar-lhe o breve resumo e comentário a seguir: Dividido em três partes e tendo por leitmotif a crítica social (voltada, sobretudo, para o casamento por interesse e o enriquecimento ilícito), a narrativa tem início numa aldeia de pescadores, nas Ilhas de Lipari (Grécia). Dali, o ambicioso Maffei, pescador da região (de uma dessas ilhas, no mar da Sicília), segue para Nápoles (Itália), em busca de prosperidade e de onde, anos mais tarde, volta abastado, encontrando sua filha, a bela Rosalina (que deixara sob os cuidados da serviçal Ângela), já moça feita e apaixonada por Miguel Rizzo, jovem sem família e desprovido de recursos. O então novo rico opõe-se ao namoro dos jovens. E, mesmo após a falência dos seus bens, impede que levem em frente o projeto amoroso. Assim, convicto de que matara o pretenso futuro genro (ao empurrá-lo precipício abaixo, para o mar, numa conversa/desentendimento que tiveram), decide levar a filha para Nápoles, na expectativa de que esta venha a realizar um bom casamento ou, pelo menos, adquirir um título de nobreza para a família. Passam-se alguns anos. Sobrevivente, Miguel consegue informar-se do paradeiro da amada, seguindo ao seu encalço. Ao reencontrá-la, porém, vê-se diante de alguém já muito diferente da terna namorada de outrora – uma mulher casada, então familiarizada com o luxo e, portanto, já dotada de novas experiências, outros aprendizados. Resta-lhe, pois, um grande esforço, em prol da reconquista do seu amor, numa história que chega a seu termo com lampejos shakespearianos. Já esboçando traços naturalistas (o meio social e o fator hereditário influenciando as personagens), mostrando as transformações de caráter em Rosalina (antes simples, ingênua e meiga) e Maffei (de austero e ambicioso a amoral), o romance retraça o perfil de uma sociedade hipócrita, oscilante, composta de burgueses novos ricos e nobres falidos, em sua convivência promíscua, suas relações degradantes. E até aqui, pudemos falar de uma prosa romântica, entre os nossos autores locais e na representação de Maria Firmina dos Reis e Aluísio Azevedo, iniciadores do romance 74

maranhense. A primeira, com Úrsula (1859), também considerado o primeiro romance brasileiro de temática abolicionista, marcado pela presença do negro escravo (sofrido, explorado, à mercê de um sistema escravista, desumano e injusto) e pelo que se pode dizer, hoje, um sentimento de brasilidade, de quem anseia e projeta, para um futuro não tão distante, o sonho de uma pátria-mãe acolhedora, em que todos possam viver e conviver em igualdade de condições, inclusive a mulher, com direito à escolaridade, podendo ler e escrever como os homens. Obra que inaugura um novo olhar, quanto à problemática da escravidão, à medida que a autora “assume o ponto de vista do outro, tanto no que diz respeito à representação dos escravizados, quanto no inédito enfoque das relações de dominação patriarcal sob a perspectiva da mulher” (DUARTE, 2004, p. 443). Enfim, nos albores da penúltima década da centúria e na trilha do Realismo finissecular, introduzindo (ao lado de Machado de Assis, em suas Memórias Póstumas de Brás Cubas) a nova estética literária aqui no Brasil, o rebelde escritor maranhense, no fervor da campanha abolicionista, dá à luz O Mulato (1881), escandalizando a sociedade da época pela crítica social e anticlerical, na abordagem do preconceito racial, circunscrito no personagem Raimundo, em seu malfadado romance com a prima Ana Rosa. Vale ressaltar que, anteriormente (mas, próximo ao surgimento de O Mulato), vem a público uma outra produção do gênero, de cunho realista/naturalista/regionalista, um tanto quanto despercebida e desconhecida, neste contexto, a merecer um resgate memorial, no curso diacrônico da nossa historiografia literária: Um estudo de temperamento (1881 – romance- folhetim, inconcluso), de Celso da Cunha Magalhães (Viana-Ma.-11.11.1849/09.07.1879) – que, “sob a força de uma narrativa extremamente descritiva e cientificista”, apresentando “personagens tipificadas, como Antônio Alves, metáfora para explicação do ideário positivista”, é obra que “traz excêntrico ingrediente estético e filosófico que, coincidentemente, aparecerão, mais tarde, nos livros de Aluísio Azevedo, sobretudo em O Mulato”, infere Wilson Martins (1997, p. 106) – o que não implica dizer que, unicamente, desse ilustrado escritor, poeta e jurista maravianense, tenha-lhe vindo o influxo positivista. Além do seu natural espírito combativo, Aluísio já bebera em outras fontes: a imprensa carioca, as obras de Émile Zola (incluindo a sua cartilha naturalista), as de Eça de Queiroz. Não obstante, para citar Lins (1967, p. 470), n‟O Mulato (1881), “evidente é o reflexo da influência positivista transmitida ao romance por Celso Magalhães”. A propósito, segundo Costa (1967, p. 122), foi Celso Magalhães (em relação a Aluísio Azevedo), o transmissor das novas tendências do pensamento político francês (tão em voga na faculdade de Direito do Recife, a partir de quando Tobias Barreto de Menezes ali atuou como professor, exercendo 75

grande liderança sobre a “mocidade da Academia”), possivelmente apresentando-lhe as novidades ideológico-literárias, em termos de autores e obras – assertiva que pode ser reforçada por outros estudiosos do assunto, como Fernando Goes, segundo o qual, nesse tempo, Aluísio “estreitou relações com Celso Magalhães, dono de um amplo conhecimento literário, espírito inquieto e debatedor das ideias novas que levava para discussão nas colunas do jornal” (GOES, 1959, p.10). Meneses (1958, p. 52), por seu turno, infere que, tendo regressado a São Luís (1878-09), o jovem Aluísio “conhecera Celso Magalhães. De certo que foram colegas e que muito conversaram sobre política e literatura”. Para Josué Montello, Celso Magalhães (falecido em 1879 – ano da estreia de Aluísio Azevedo como romancista), além de já ser mais experiente e de exercer, em São Luís, uma decisiva liderança sobre os jovens escritores, “não deixou de influir na geração literária que, logo a seguir, assumiu posição de clara beligerância no panorama intelectual da província”. (MONTELLO, 1975, p.41-02). Publicado, parcial e postumamente, em 15 capítulos69, na Revista Brazileira70, Um estudo de Temperamento retrata, com muita verossimilhança e emoção, aspectos do cotidiano sociocultural de Viana-Ma. 71 , a magnífica “cidade dos lagos” (Baixada Maranhense), em suas tradições (usos, costumes, folguedos populares), seus tipos característicos e na moldura de uma paisagem deslumbrante, onde o urbano e o rural se entrelaçam, natureza e cultura se abraçam, num festival de luzes e cores, sonoridades naturais e culturais 72 , a se refletirem no espelho das águas lacustres, a ecoarem na fachada dos casarões. Assim, pode-se dizer, sobressai-se, no enredo, como elemento base, o tempo (histórico) e o espaço (geográfico) – aquele, a remeter ao drama social da escravatura; este, a projetar Viana “com sua beleza impressionante: águas, campos, cidade, povoados, fazendas, casas de alvenaria, taipa ou palha”, na expressão de Cordeiro73 (2011, p.03), que discorre sobre o romance, nos termos a seguir:

Celso de Magalhães, em Um Estudo de Temperamento, dispõe toda a trama com fidelidade naturalista, terminologia própria e sugestiva, em três planos descritivos, interligados: 1- geográfico, das belezas sem par da floresta pré-amazônica e dos campos verdejantes, de fazendas características com casa grande, rancharia dos escravos, currais, bolandeira, engenho e armazém de açúcar, forja, casa do feitor, carpintaria, residências rurais, prevalecendo, em todas essas moradias, a varanda como local privilegiado de encontros da família e dos amigos, de festas, de refeições

69 - A Floresta, Em Viagem, Bosquejo, Segundo Plano, A Fazenda, Palestras, No Jardim, Explicações, Indispensáveis, Os Campos, Maria, Gorjeios, Filologia, Minuciosidades, Estácio. 70 - Terceiro Ano, Tomo IX, Rio de Janiro-1881-Primeira Parte-página. 91 a 463.1. 71 - antiga aldeia de Nossa Senhora da Conceição do Maracu, fundada por Jesuítas. 72 - pássaros em trinados e gorjeios, músicas vibrando, em instrumentos de corda, sopro e percussão. 73 - João Mendonça Cordeiro, professor (UFMA) e escritor, membro da Academia Vianense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão. 76

e até de dormida; 2- análise física e psicológica dos personagens masculinos (fazendeiros): José Ribeiro, Antônio Alves, o filho Joaquim e o rico visitante de Minas Gerais, Álvaro Correia, Manoel da Cruz, Cardoso, político fanático, Luís Costa, Estácio, cada um com suas características pessoais, ideias arraigadas, com seus conceitos e preconceitos; as amigas: Maria (Mariquinhas) e Cecília, filhas respectivamente de Luís de Carvalho e Ribeiro, irmãs pela amizade, desde a infância. 3- retrato dinâmico da festança de batizado do filho extemporâneo do fazendeiro Ribeiro, com baile animado por músicos vianenses, por dias e noites, com danças e contradanças da quadrilha francesa, quando Celso Magalhães analisa a evolução da música brasileira e mostra a folia livre dos escravos, em paralelo aos seus tambores, ritos e sons. [...].

Segundo Josué Montello (op. cit. p. 42), fora esse romance concluído e publicado na íntegra, situaria o vianense “na ordem histórica como o primeiro naturalista do Brasil”. Como o ilustre conterrâneo, que também projeta, na moldura literária, a São Luís provinciana do século XIX, Celso retrata a sua cidade natal interiorana, em seu perfil oitocentista, de modo que, ambas as produções, essencialmente maranhenses, representam, com muita veracidade, a literatura do Estado. Voltando a Aluísio Azevedo. Autor de uma extensa obra, expressa numa variedade de gêneros prosaicos (conto, crônica, dramaturgia, romance), pode-se dizer, como Machado de Assis, conta com produções de timbres românticos (Filomena Borges, A Condessa de Vésper, Girândola de Amores, A Mortalha de Alzira – que se vão erguendo à mercê do folhetim) e realistas. Mas, com o realismo/naturalismo que caracteriza os últimos dos seus onze74 romances: O Mulato (1881), Casa de Pensão (1884), O Cortiço (1890) – estes dois escritos no Rio de Janeiro – considerados os mais importantes no conjunto de sua obra, formando a sua convencionada tríade realista, é que se torna reconhecido e aplaudido, local e nacionalmente, valendo, pois, nesta oportunidade, um relance sobre os mesmos. O Mulato – que, numa investida dramática, em desfavor do escravismo, ficciona, com muita verossimilhança, o dilema de um português endinheirado (José Pedro da Silva) que, vindo para o Maranhão, do vizinho estado do Pará, em companhia de uma (ex)escrava com quem tivera um filho (Raimundo) e estabelecendo-se como fazendeiro, em Rosário, casa-se com Quitéria Inocência de Freitas Santiago, mulher branca e dama classe-alta. Um belo dia, a poderosa Quitéria (que Inocência, talvez, tivesse apenas no nome), desconfiando da atenção especial do marido para com o menino, filho de Domingas, ordena aos criados que açoitem a negra e lhe queimem as partes genitais. Eis o quadro: Estendida por terra, com os pés nos troncos, cabeça raspada e mãos amarradas para trás, permanecia Domingas completamente nua com as partes genitais queimadas a ferro em brasa. Ao lado, o filho de três anos gritava como um possesso, tentando

74 - Uma lágrima de mulher (1880); ) O Mulato (1881); Mistério da Tijuca ou girândola de Amores (1880); Memórias de um condenado ou A condessa de Vésper (1882); Casa de pensão (1884); Filomena Borges (1884); O Homem (1887); O Cortiço (1890); O Coruja (1890); A Mortalha de Alzira (1894); O livro de uma sogra (1895). 77

abraçá-la e, de cada vez que ele se aproximava da mãe, um negro, dois negros, à ordem de Quitéria, desviavam o relho das costas da escrava para dardejá-lo contra a criança. A megera de pé, horrível, bêbada de cólera, ria, praguejava obscenidades, uivando nos espasmos flagrantes da cólera. Domingas, quase morta, gemia, gemia, contorcendo-se no chão. O desarranjo de suas palavras e dos seus gestos, denunciavam, já, sintomas de loucura. O pai de Raimundo, no assomo da indignação, tão furioso, acometeu sobre a esposa, que a fez cair. Em seguida, ordenou que recolhessem Domingas à casa dos brancos e que lhe prodigalizassem todos os cuidados [...] (AZEVEDO, 1959b, p. 45). Como se vê, ordem cumprida, Domingas enlouquece de dor, passando, a partir daí, a perambular à toa pelos arredores. Desesperado, José Pedro leva o filho para a casa do irmão (Manuel Pescada), em São Luís, protegendo-o contra uma outra possível investida quiteriana. De volta à fazenda, surpreende a esposa em flagrante adultério com o amante (o Cônego Diogo), e mata a mulher. Malgrado o pacto de silêncio, estabelecido na cena do crime, entre os agora “cúmplices” (o marido traído, acobertando o pecado do clérigo; este, o assassinato cometido por aquele), mais tarde, o português vem a ser atocaiado e morto, na estrada, por artimanhas do rival. Órfão de pai, Raimundo vai estudar em Portugal, às custas de uma ignota mesada. Formado em Direito, retorna ao Brasil e, após um ano de permanência no Rio de Janeiro, vem para São Luís, ao encontro do tio e tutor Manuel Pescada, no ardente desejo de conhecer sua origem. Seu perfil louro-bronzeado, os olhos azuis (que não lhe traem o sangue mestiço), seu carisma de jovem advogado, seduzem a prima Ana Rosa. Os dois se apaixonam. Raimundo, longe de se sentir, muito menos admitir-se um mulato (ainda que percebendo e não entendendo os cochichos em sua volta, quando das reuniões sociais), pede a mão da amada em casamento, recebendo do tio uma evasiva. Cansados de esperar por uma afirmativa em favor do enlace, os enamorados entregam-se um ao outro, e Ana Rosa engravida. Nesse ínterim, Raimundo fica sabendo, pelo tio (em uma viagem a cavalo para Rosário), que é filho da negra enlouquecida e perambulante que conhecera (e rejeitara, numa cena dramática) nas proximidades da fazenda. Enfim, declarado o motivo porque não poderá casar com prima, o rapaz fica muito triste e decepcionado: – Eu nasci escravo?!... [...]. “Raimundo baixou a cabeça: – Mulato! (id. Ibid., p. 167).

Mesmo assim, os amantes decidem fugir, mas são surpreendidos pelo caixeiro Luís (origem modesta, mas de raça branca, pretendente à mão de Ana Rosa) que, incentivado e orientado pelo cônego Diogo, assassina o mulato com a arma que ele mesmo, o clérigo, emprestara-lhe. Ana Rosa aborta. Não obstante, seis anos mais tarde, os leitores podem 78

contemplá-la, feliz, saindo de uma recepção oficial, de braço com o marido caixeiro (ora Sr. Dias, cujo crime, como os demais, fica impune), preocupada com os "três filhinhos que ficaram em casa, a dormir". Eis refletido o estigma do preconceito racial fortemente arraigado na São Luís de outrora e que Aluísio Azevedo denuncia, com muita propriedade, n‟O Mulato, mostrando que a rejeição ao afrodescendente era ali tão forte que, nem mesmo a hereditariedade paterna, as características físicas desse mulato, o status social que a sua condição de filho de comerciante português próspero lhe permitira alcançar (o doutorado em Direito, na Universidade de Coimbra), o eximem da marginalidade, da exclusão social. Casa de Pensão – Numa conjugação zolaísmo (tara biológica)/crítica social – sífilis, crime, cupidez direcionando, como que “mecanicamente, os reflexos das personagens, transformadas em títeres inverossímeis, tão inconsistentes quanto os heróis e vilões do romantismo carregado” (MERQUIOR, 1996, p. 158), caracteres múltiplos, de destino coletivo, que o autor retomará em O Cortiço – aqui, a intriga desenvolve-se em torno da “vida airada do estudante vindo do norte para estudar no Rio, o ambiente pegajoso da pensãozinha onde se instala, enfim, o rumor dos jornais e da boemia em volta do caso em que se envolvera” (BOSI, 1999, p. 190). Inspirado num fato real (a Questão Capistrano, crime que sensibilizou o Rio de Janeiro em 1876/77, envolvendo dois estudantes em situação semelhante à narrada por Aluísio Azevedo) e sustentando-se nas teses naturalistas (por excelência o determinismo tainiano), na construção dos tipos, Casa de Pensão é protagonizado por Amâncio de Vasconcelos, filho de um comendador do Maranhão, que vem para a Corte, estudar Medicina. Em sua chegada, é recebido por Campos e sua esposa, Hortênsia, que o hospedam. Em suas andanças pela capital fluminense, encontra-se com outros estudantes, dentre os quais, Paiva Rocha – que lhe apresenta João Coqueiro, um jovem que contraíra núpcias com a francesa Mme. Brizard, mulher mais velha, vinda de um primeiro casamento. Por estes influenciado, Amâncio passa a ter uma vida extravagante, desregrada e boêmia, num comportamento não permitido na residência de Campos, de cuja esposa o jovem maranhense começara a balançar o coração. De forma que se muda para o pensionato de Coqueiro, onde também se alojam e residem tipos interessantes, que vão aflorando ao longo do enredo, a exemplo de Amélia (a irmã de João Coqueiro), Nini e César (enteados deste, filhos da francesa). Nesse ambiente, por sinal degradante e corrupto, onde o casal Coqueiro/Brizard estão sempre envoltos em trapaças, desenrola-se a trama narrativa. Interessados na fortuna do novo hóspede, Coqueiro e a família empenham-se em estreitar com o estudante maranhense um relacionamento amigável, na intenção de casá-lo com Amélia. A doença do estudante, após 79

algum tempo no pensionato, facilita a aproximação entre o rapaz e a moça, que se tornam amantes. Para não perder a sua “galinha dos ovos de ouro”, a família decide seguir a recomendação médica em favor da melhora do estado de saúde de Amâncio, mudando de residência e de arredores. Restabelecido (dado à escassez de hóspedes no novo local), o jovem passa a sustentar toda a família de Coqueiro. Amélia, então, começa a explorá-lo, exigindo-lhe vestidos e joias caras e até mesmo uma casa maior, para que a família possa sentir-se mais bem acomodada. Amâncio vai cedendo em tudo mas, aconselhado pelo amigo Paiva, não se dispõe a casar com Amélia (para desespero do irmão desta). Informado do falecimento do pai, o futuro médico determina-se a viajar para São Luís, em apoio à mãe viúva. Ao saber do intento, Amélia não concorda nem permite. Orientado por Paiva, o estudante intenta uma fuga, sendo impedido por Coqueiro, que o denuncia à polícia, acusando-o de violência e atentado ao pudor contra Amélia. Preso, não obstante todas as ciladas que lhe foram indignamente armadas pelo dono da pensão, o rapaz vem a ser absolvido, num rumoroso julgamento (pelo qual passa a ser aclamado, no Rio de Janeiro, onde o caso ganhara ampla divulgação e notoriedade). Inconformado, sentindo-se humilhado, Coqueiro o assassina, a tiros, num quarto do Hotel Paris. Amâncio morre, clamando pela mãe. O Cortiço – Considerado, pela crítica especializada, o mais expressivo e maduro produto da ficção aluisiana, conta a história do imigrante português João Romão, em suas peripécias e articulações manipulativas para enriquecer, começando como pequeno vendeiro – quando conhece Bertoleza, negra escrava a quem explora e ilude, com vãs promessas de alforria e de sociedade nos negócios, para traí-la, ao ascender social e financeiramente, devolvendo-a aos seus antigos senhores (dela), levando-a ao suicídio. Sempre abusando do trabalho incessante da escrava, o comerciante vai acumulando capital (de forma ilícita, assenhoreando-se dos bens alheios) e assim constrói três casinhas (ao lado da pedreira de sua propriedade), ponto de partida para o Cortiço São Romão que, aos poucos vai crescendo, transformando-se num grande empreendimento que, ao final da narrativa, já comporta noventa e cinco unidades de moradia, pronto a ganhar o status de avenida – não sem antes sofrer invasão da polícia, a investida do fogo (que lhe devora as casinhas, num incêndio de grandes proporções) e ainda a ocorrência da briga entre os seus moradores e os do Cabeça de Gato, novo cortiço vizinho e rival. Romance de crítica e denúncia social, pautado no ideário científico da época, no afã de demonstrar a influência decisiva do meio e da hereditariedade na estruturação do comportamento humano (produto direto da constituição psíquica, fisiológica e social), o 80

romance põe em evidência, “de modo superior e inconfundível”, os dotes do seu autor, exímio “pintor de agrupamentos humanos”, como o observa Moisés (1985, p. 42), para quem

Especialista em retratar almas malogradas, Aluísio passa em revista um bando de criaturas desesperançadas, atiradas à vida como enxurro, sem norte e sem futuro. Esmagados pela fatalidade do „meio‟ e pelas taras hereditárias, entregues a uma luta fratricida pela sobrevivência, onde não há vencedores nem vencidos vão-se rebaixando até a derradeira miséria física e moral (id., ibid.). Em verdade, pelas páginas d‟O Cortiço, transita toda uma galeria de tipos humanos, os mais variados: prostitutas, lavadeiras, mascates, operários, todos representantes de uma casta marginal, compartilhando um ambiente degradado, corrupto e corruptor – que, como se dotado de vida própria, determina o comportamento dos que ali convivem. Tal é o caso de Pombinha (menina pura que, cedendo às pressões do meio, vira prostituta) e Jerônimo (português, trabalhador, homem sério que, seduzido por Rita Baiana, abandona a família, sucumbindo numa decadência de valores morais). A leitura da obra nos põe ante duas situações contraditórias: a derrocada de Jerônimo (antes moral e socialmente estável, responsável e respeitável) e a progressão financeira e social de João Romão (simples vendeiro, que se torna homem de bens, casando-se com a filha do Miranda, assim galgando os degraus da aristocracia). Personalidade controversa que, como diz ainda Moisés (1985), no esquema dialético em que se sustenta a narrativa (girando esta sempre em torno de dois núcleos opostos – plebe e burguesia, com suas patologias, oriundas das influências do meio e/ou da herança biológica),

[...] é o típico português imigrante que, no início, de tamancos, se sacrifica para amealhar o pé-de-meia que lhe facilite um „boteco‟ ou „venda‟ e, conseguida esta, arma um dispositivo maquiavélico a fim de sugar o próximo, empregando os mais criminosos expedientes, da adulteração de bebidas ao roubo. Tudo lhe corre bem até que se muda para a vizinhança o seu patrício Miranda, com fumaças aristocráticas, empobrecido e vilipendiado pelas leviandades da esposa Estela [...]. João e Miranda se antipatizam, mas um dia surge, graças ao casamento do primeiro com Zulmira, filha do outro, a sonhada reconciliação de interesses: João Romão “compra” a ascensão social, e Miranda “vende-lhe” a filha (id.ibid., p. 45). Enfim, o romance chega a seu termo, marcadamente, com as profundas mudanças ocorridas na vida das personagens, atestando a postura determinística, ensejada pelo autor e comparada nos trabalhos de Taine. Mudanças que revelam, não só a ascensão social de João Romão (que sucedeu à própria ascensão do Miranda, quando este adquiriu para si o título de barão) e a queda de Jerônimo, como também alterações impressionantes, no destino de, praticamente, todas as personagens da obra, bem como do próprio cortiço São Romão que, consideravelmente melhorado, em sua estrutura física, eleva-se à categoria de Avenida São Romão. 81

Vale ressaltar que, se os romances de Aluísio Azevedo entram no rol daqueles que representam a literatura maranhense do século 19 (e os únicos a constituírem a nossa ficção realista/naturalista), somente Úrsula (de Maria Firmina dos Reis), Um estudo de Temperamento (de Celso de Magalhães), O Mulato e Casa de Pensão (em especial o Mulato, do autor acima referido) identificam, em temática e elementos do enredo-narrativo (tempo, espaço, personagens, intriga), o Maranhão daquele século, flagrando, testemunhando, refletindo o contexto local/regional, a sociedade maranhense da época, em seu contexto geográfico, histórico e cultural. Úrsula, e Um estudo de temperamento, panoramizando aspectos do Maranhão rural do início da segunda metade e final dos Oitocentos; os de Aluísio Azevedo, refletindo a São Luís provinciana do final daquele século. Em Casa de Pensão, por exemplo, onde o Maranhão apenas transparece nos dados biográficos do protagonista, costumes da terra (como a saída dos filhos de famílias abastadas para estudar na metrópole), esses aspectos podem ser também considerados.

4.1. Do ocaso do século XIX, aos albores do século XX

Nesse trânsito do século XIX para o século XX, vale lembrar: enquanto os maranhenses, Coelho Neto e Graça Aranha, produzem e publicam seus romances no Rio de Janeiro, no Maranhão também surgem obras representativas da experiência humana, individual e coletiva, nessa fase, como se pode constatar com os títulos elencados neste subitem, a saber: A Crise (1902) – escrito em São Luís-Ma., pelo intelectual português (maranhense de coração), professor do Liceu e mentor da juventude daquela época, Manuel de Béthencourt (sob o pseudônimo de Plácido Guerra – publicado em folhetim, disposto na primeira página do Jornal, A Campanha, em 120 edições), num testemunho da situação econômica do Estado, no primeiro quartel da República, trazendo, pois, para a ficção literária, essa “tremenda crise” que se prolongou por cerca de um quarto de século – tema magistralmente abordado e documentado por Jerônimo de Viveiros em História do Comércio do Maranhão 75 – considerado de grande importância e de valor documental no contexto da nossa ficção historiográfica, donde o trecho (apud. VIVEIROS, 1964, p. 9 -10):

De pé, em frente a um dos muros engradeados da rua que, pelo lado direito, margina o Campo d‟Ourique, arrimado ao chapéu de sol, João Arnaldo Seixas, com

75 - 1962, vol. 03, cap.I. In: A Campanha – é possível que deste romance, que não chegou a ser publicado em livro, só reste este trecho transcrito (pp. 9 a 15) no livro de Viveiros. 82

impaciência, aguardava que o BOND descesse, que o levasse a sua faina quotidiana de negociante moirejador. [...]. [...]. Enfim, surgiu o BOND, mas cheio, extraordinariamente cheio [...]. Mas alguém que se achava no banco de trás, desceu no Largo do Quartel, e o João pode pôr-se à vontade [...] e ruminar [...] sobre as coisas do dia. Desta meditação, fê-lo, porém, sair, a voz estridente de um sujeito assentado num dos bancos da frente. Era um mulato alto, de cabelo e suíças grisalhas, chapéu mole, cor de café, desempenado e pernóstico nos dizeres. Gritava este contra o que chamava de má fé comercial, dizendo que não era lícito o que estavam fazendo firmas da praça que, de há muito em atraso, só agora é que patenteavam o descalabro das suas finanças. Sou um artista, dizia ele, o meu negócio é limitado, mas por casa já me andaram as traças; se não abrisse o olho, teria ficado em camisa. O tempo é dos espertos e quem não se acautelar, mal se dará. Nesse ínterim, o BOND chegava ao Largo do Carmo. O Seixas apeou e tomou o caminho da Praia Grande. Tinha razão, o mulato. O tempo não estava para graças, ele bem o sabia. Sócio de uma firma comercial respeitabilíssima – João Arnaldo Seixas & Cia – lutava ele para com embaraço para fazer face aos compromissos da casa [...]. – O que é que há de novo? Disse o João, dirigindo-se ao examinador de papéis. – Mais uma bucha, respondeu-lhe o sócio, uns dez contos de réis que ficamos a ver por um óculo. – Como assim? – Você sabe, seu João, que Guedes Terra & Cia. Abriram falência, ou antes, requereram que lhes fosse aberta? – Não! [...].

Na obra em referência, o autor constrói, com muita maestria, o perfil romanceado da crise econômica e financeira que “atrofiava as forças vitais do Maranhão”, motivada esta pelas “calamidades dos êxodos da sua população”, estes, por sua vez, advindos por conta “da nossa penúria na vizinhança da riqueza amazônica”, conforme analisa Viveiros (op. cit., p. 15), para quem,

De fato, a nossa pobreza contrastava com a fortuna ostentada pelos dois Estados do extremo Norte – Pará e Amazonas, mercê da borracha, artigo, então, de valor elevado nos mercados consumidores. Essa riqueza seduzia o maranhense e daí a sua emigração para o El-Dorado da sua fantasia, a qual a estrada do fio telegráfico facilitava.

A Carteira de um neurastênico (1903) – de Antônio Lobo (São Luís-Ma.04.07.1870- 24.06.1916): professor, poeta e escritor, fundador da Academia Maranhense de Letras. Publicado inicialmente na Revista do Norte, em forma de folhetim76 e sob o pseudônimo de Jayme Avelar, composto em 37 capítulos e expandindo-se em 359 páginas, nessa obra, Antônio Lobo como que reflete a sua própria imagem – alma angustiada e aflita.

76 - obra de difícil acesso, dela restando um ou dois exemplares, no máximo, no setor de obras raras da Biblioteca Pública “Benedito Leite”, (indisponíveis a empréstimo), tendo que ser lida e consultada ali mesmo, no referido setor, sendo obrigatório, ao leitor, o uso de luvas e de máscara.

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Narrado em primeira e terceira pessoa (na voz de Jayme, personagem-narrador, que não vem a ser o protagonista, posto que vai cedendo esse privilégio a Carlos, de quem, a certas alturas, passa a contar a história, que se vai desenrolando até a última página do livro), em tempo psicológico, estilo autobiográfico, tom confessional e por vezes saudosista, é memorial evocativo de uma infância e adolescência, na simultaneidade de uma vida adulta, transcorrida na São Luís do início do século XX. Por entre as lembranças do passado, pontifica-se a visão de mundo do autor/narrador, em suas críticas contundentes à sociedade da época, à igreja católica, em seus representantes, suas reflexões e indagações sobre a vida e sobre si mesmo, seus conflitos interiores, possíveis momentos de depressão (com traços de alucinação) ou conforme a expressão da personagem (quiçá num reflexo da pessoa), a “exteriorização de um estado mórbido do meu espírito” (p. 13), sondagens psicológicas de quem se debate na luta do conhece-te a ti mesmo socrático:

Eis-me perdido num mundo extraordinário de averiguações até resolver o problema que me preocupa, o que seja dito, consigo sempre (p. 13). [...]. Sinto-me por vezes tomado de uns pavores inexplicáveis, de uns medos súbitos e extravagantes que chego a ter vergonha de confessar. Por exemplo, não há forças humanas que sejam capazes de me fazer atravessar sozinho uma praça qualquer. Por quê? Não sei, não posso dizer, mas é superior à minha vontade, não está em mim o poder de dominar esse receio pueril (p.26). [...]. Oh! Que desvairada inveja que eu tenho dos que podem dormir, de todos aqueles a quem é concedida a suprema ventura de saborear à vontade essa incomparável delícia do sono, que de há muito me é cruelmente negada. As minhas noites são verdadeiros calvários de agonia (p. 31).

Nessas evocações/reflexões do narrador, vem à tona, com muita nitidez, um Internato de São Luís, em sua localização, aspecto externo e ambiente interno, na convivência diária entre professores e alunos, desde o dia da sua chegada (de Jayme), levado pelo pai, para estudar, ali vindo a conhecer Carlos, seu companheiro de quarto, colega de classe e parceiro nos estudos, como ele mesmo diz,

um dos melhores camaradas da minha infância e é hoje o mais querido e mais íntimo dos meus amigos. Travamos conhecimento no Internato São Luís, para onde entrei numa triste manhã de inverno, desconsolada e fria, com grandes lufadas de vento e uma chuva miúda irritante a penetrar impertinente no espaço (p. 49-50).

Filho do Comendador Meneses, jovem de pensamento liberal e visão de mundo futurista, Carlos, após bacharelar-se em Direito e ser nomeado Juiz da Comarca de Carolina-Ma., entra em conflito com os pais, contrariando-os (que o queriam casado com uma moça de elite, feito Nhazinha) e vindo a escandalizar a sociedade maranhense da época, em sua firme decisão de casar-se com Laura Medeiros, moça pobre, a quem aprendera admirar (e quem se dispusera a 84

defender), pela sua dedicação à mãe Mariana (“Nhasinha” – uma “rameira”, já muito doente, abrigada no Asylo da Piedade): “[...] uma dessas criaturas infelizes, jogada pelos azares caprichosos e injustos do destino, num meio diametralmente oposto às suas tendências e às suas inclinações naturais”, a quem poder-se-ia, “com toda a propriedade, aplicar-lhe a imagem sediça de „flor do pântano‟” (p. 128, 129). Outras personagens atuantes ou meramente citadas no enredo: os pais de Carlos (o Comendador Menezes e D. Ignez); os Padres José Maria, Fernando e Roberto (respectivamente diretor e professores do Internato); Irmã Nazaré (diretora do Asylo da Piedade); Miranda Lopes (comerciante de armazéns de secos e molhados); Barbalho (professor público do interior); Yayá Guerreiro (“uma morena de truz”); além de Bertoldo, as Mattoso, o Dr. Feitosa, “[...] que desejava saber se a lua que nos aclara as noites aqui seria a mesma que prateava os campos da sua terra pras bandas do Paraná [...]” (p. 18), dentre outros. Como se pode deduzir, o casamento de Carlos, com Laura, gera a separação entre a família Menezes, que corta as relações com filho. A paz, todavia, se restabelece, com o nascimento da neta Marianinha (que emociona os avós) e com o estado de saúde do Comendador, que sofrera um ataque de apoplexia, na Rua da Estrela (centro de São Luís), o que traz o filho para perto dos pais. A obra se vai concluindo com Jayme narrando a dor do amigo Carlos – que lhe envia uma carta (de Paris, onde se encontra, em busca de recursos médicos para a sua filhinha, que herdara o mal que acometera e levara a óbito a avó prostituta): “[...] os especialistas que a examinaram foram concordes em afirmar que a triste criança é uma vítima, irremediavelmente condenada, dessa pavorosa lei da hereditariedade syphilítica” (p. 358). E aqui podemos perceber ainda transparentes, na obra, reflexos de um realismo-naturalismo à Zola, quiçá de orientação aluisiana (Casa de Pensão), bem como prenúncios modernistas (fase inicial), na tensão (observável) entre o escritor e a sociedade em que está inserido. E na voz narrativa/enunciativa, a expressão final:

Que importam as minhas inquietações e as minhas cóleras, os meus desesperos e as minhas insônias, se os meus filhos vivem sadios e felizes? E termino aqui estas memórias desconexas e fragmentárias, maldizendo a imbecilidade congênita dos homens que ainda não fizeram do interesse pela integridade fisiológica da espécie a única lei soberana que deve governar o casamento. São Luís, maio/agosto 1903 (p. 359).

Ainda nessa virada de século, marcado por crises na lavoura (atingindo o setor econômico); por adventos, como a Abolição da Escravatura; a Proclamação da República e 85

suas repercussões na sociedade ludovicense, mais dois outros escritores, Astolfo Marques e José do Nascimento Moraes, despontam no horizonte de nossas letras, assim merecendo, oportunamente, ser lembrados em: A Nova Aurora e Vencidos e Degenerados, respectivamente, obras consideradas de grande importância no conjunto de sua produção e no contexto sócio/político cultural da época. Raul Astolfo Marques (São Luís-Ma.1876/1918): fervoroso integrante da Oficina dos Novos e um dos membros fundadores da Academia Maranhense de Letras (cadeira n°. 10, patroneada por Antonio Henriques Leal). Negro, pobre e como tal lutador e sofredor à sua época, seu admirável talento para as letras é sempre perceptível em sua bibliografia, da qual se destacam: A vida maranhense – contos (1905); Natal – quadros (1908 – reeditada em 2008, pela Eduema); O Dr. Luís Domingues (1910) – biográfico; A nova aurora – novela maranhense (1915). A Nova Aurora (1915) – outro romance-folhetim, em que Astolfo Marques põe o leitor a par das transformações políticas ocorridas no Maranhão do final do século XIX e suas repercussões naquela sociedade, “analisando comportamentos ambíguos, de atores sociais antes identificados numa posição e a seguir, após a Abolição e a Proclamação da República, desempenhando papéis completamente diversos e, em muitos casos, antípodas” (MARTINS, 2002, p. 34). Protagonizada por Marçal Pedreira – residente numa singela e confortante casa de vivenda, numa chácara construída “num dos extremos da cidade [...] por entre as ruínas dos ranchos da outrora florescente Fazenda do Medeiros” (MARQUES, 1913, p. 11).

Sobre a narrativa, a impressão de Martins (op. cit. p. 34.):

Imagens expressivas, indicando um modo de vida bem diverso daquele tradicionalmente reproduzido. Se por um lado persistiram em ruínas vários distintivos da ordem decaída, por outro assomavam à paisagem da cidade ícones de uma nova aurora, representados pela “casa de vivenda da grande chácara”, de Marçal Pedreira, onde a singeleza e o conforto eram a tônica, pela estátua de Gonçalves Dias, no bairro dos Remédios, vazada no melhor “mármore branco”, pela “famosa chácara” de Sousândrade, denominada, significativamente de Vitória, e pela chaminé, edifícios e mais dependências da Companhia de Fiação e Tecidos Maranhenses, a Fábrica Camboa, como popularmente conhecida. Enredos da tradição tecidos com filetes de modernidade descompassada. [...] Astolfo Marques deu amplo destaque às festividades ocorridas na cidade em virtude da abolição da escravidão, como um prenúncio de uma nova era. Não obstante, mencionou que, após a “propagada apoteoze aos da cruzada abolicionista”, sobreveio a necessidade da discussão “a respeito da latente transformação em taperas de uma infinidade de fazendas e engenhos de grandeza até então afigurada immarcessível” (MARQUES, 1913, p. 22). Urgia, pois, o debate sobre a periclitante situação econômica presente do Maranhão, a braços com uma variada gama de problemas oriundos do grau de inserção de economia regional nos mecanismos mais abrangentes e complexos das economias nacional e internacional.

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Nascimento Moraes (São Luís-1882/1958) – escritor e homem de ação que, em sua verve romanesca, segue o modelo do seu conterrâneo e antecessor Aluísio Azevedo. Espírito combativo, homem culto, homem de cor (filho de um pobre e analfabeto sapateiro), professor, latinista, “o maior e mais fecundo polígrafo maranhense deste século” (MACHADO, 1982, p. 08), cuja iniciação jornalística deveu-se ao incentivo e orientação do seu professor e mestre português, Manuel de Bettencourt, através do qual, também, teve acesso ao que de melhor havia na literatura mundial de seu tempo – autor de vasta e prolífera obra, é aqui lembrado no seu romance: Vencidos e Degenerados (1915) – publicado 34 anos após O Mulato – com o qual mantém algumas semelhanças, sobretudo no que concerne à realidade topo física, às incursões sociológicas, no retratar da sociedade maranhense de entre séculos (XIX e XX), em meio ao preconceito, à pobreza extrema de uma minoria marginalizada e na abordagem, em certos aspectos, de uma política de degradação dos costumes. Obra que, projetando o seu autor em âmbito nacional, equiparando-o aos grandes retratistas sociais da literatura brasileira (como Lima Barreto), vem sendo considerada, ao longo de quase um século, por estudiosos de sua produção, a exemplo de Jean-Yves-Mérian (1977, p. 11), como “l‟oeuvre la plus marcante de Nascimento de Moraes”, visto que, “certains passages de cette chronique de la vie du Maranhão sont des véritables documents sociologiques”, obra que nos leva a “découvrir avec réalisme les mécanismes que animaient cette societé conservatrice, medíocre, empreintée d‟idées racistes et de préjugés de toutes sortes” (id. ibid.). A narrativa, que se constitui numa sequência de longos trechos cunhados em estilo descritivo (oscilando entre o Realismo e o Naturalismo, isentando-se, porém, dos traços deterministas), começa a entramar-se no dia 13 de maio de 1888, no clima em que se encontrava a população sanluisense, com a notícia da Abolição da Escravatura, prosseguindo num enfoque ao período republicano. As personagens, colhidas do real, humanizadas, mas sem aprofundamento psicológico, são projetadas em seus sonhos, sempre confrontados com a realidade política e social em que vivem: “les cruelles désillusions que suivirent, les frustrations que connuirent les personnages principaux apprès l‟evénemant de la Republique, sont celles qu‟a du connaitre Nascimento de Moraes” (id. ibid.) – como ainda infere o professor da Universidade da Alta Bretanha, acima referido. Marcadamente dialógico, o romance é protagonizado por João Olivier – jornalista e orador entusiasta, atuante na imprensa, em favor dos oprimidos, pai adotivo de Claudio, que o acompanha na carreira jornalística. Outras personagens: Andreza Vital e Domingos Daniel Aranha (ex-escravos, pais biológicos de Cláudio), frequentadores da taverna de João Machado 87

(português que responde pela alcunha de Paletó Queimado); João da Moda (líder intelectual de um grupo desconhecido e marginalizado); Armênia Magalhães (senhorita já “entrada nos anos”), situada na alta sociedade, “até cair em desgraça”, por conta de um malfadado romance; Zé Catraia, escravo liberto (o “sabe-tudo” da cidade, “o popular mais popular de todos”), José Maria Maranhense (o Maranhense, “mulato, mais baixo que alto, e careca [...] quarenta e tantos anos, gordo e simpático. Marceneiro de profissão e estudante nas horas vagas” – p. 32)... Para o escritor e poeta maranhense Chagas Val (In: MORAES, 2000 – contracapa), Vencidos e Degenerados é trabalho “[...] que marcou uma época de efervescência literária em São Luís, quando se digladiavam o grupo chefiado por Antônio Lobo e o outro, cujo líder era o próprio mestre Nascimento [...]”, escritor e homem de ação, que

lutou contra os preconceitos de uma sociedade quase sempre injusta e até mesmo desumana para com os escritores pobres e negros, ele próprio filho de um negro com uma mulata, jamais se intimidou ante os que negaram o valor de sua obra, opondo-se, bravamente, nos jornais de sua época, contra os arianos de uma cultura elitista e os que utilizavam a literatura para promover-se e a seus amigos. [...] (id. ibid.).

O tom negativo, pessimista, pode ser percebido, desde o título da obra, e ainda na voz das personagens, em expressões, como neste trecho em que fala João da Moda, o “príncipe dos vencidos da vida”, em resposta à investida de Claudio, entre os companheiros de noitadas, à cabeceira da mesa de um bar: “[...]! Príncipe sois vós, cavalheiros fidalgos da desilusão e do desgosto. [...]” (p. 116) – em contrapartida à de Olivier: “esta terra é de mestiço. Pena é que minha mãe não ocupe as horas de ócio a ler a história do nosso país” (p. 93). E ainda nesta declamação da personagem Xavier (p. 169):

Não sei porque nasci. Esta existência inglória Que eu arrasto a gemer por entre a multidão Não vale uma só hora, não vale um só momento De uma estrela a luzir no azul do firmamento Na vasta limpidez das noites de verão.

E eis um trecho da obra:

Olivier, de fato, de camisa azul, chapéu claro, monóculo, bengala de cana da índia, vindo do interior do estabelecimento de Azevedo Almeida, canto da praça com a rua da Estrela, perfilou-se com o seu porte habitual na última porta, à direita, ao lado da praça. Lançou o olhar para a rua do Trapiche, que ele viu em quase toda a sua extensão: carcamanos de braços cruzados, à porta dos seus estabelecimentos, apreciavam o movimento, ou com acenos e sorrisos, fazendo uma cara de piedade, chamavam os transeuntes. Escolares e moleques que brincavam por ali puxavam fazendas de amostras colocadas às portas, gritavam-lhes obscenidades em frases árabes já deles 88

conhecidas, e os carcamanos furiosos, ameaçavam com a mão fechada, esbravejavam, mostravam, selvagemente, as trancas das portas, ou, no auge da cólera, por ouvirem repetidos os insultos, lhes zunirem irritantes aos ouvidos, as vaias, sacavam revólveres das gavetas, com se afastavam a troça. De quando em vez, passava um português avermelhado, com passo estugado, a suar. Era alguém associado de conhecida firma. – Como esse patife já vai pronto! Dizia Olivier de si para si, coçando o andô, cofiando o bigode. O sol lhe faiscava no pince-nez e lhe luzia no rosto, como um encerado novo. Ele saiu caminhando pela rua do Trapiche abaixo, com seu andar pausado de anos atrás, aquele mesmo bambolear de tronco, luvas no bolso direito do paletó e brilho nas botinas. Cumprimentavam-no e ele correspondia, tirando o chapéu, ou dando com a mão num gesto largo. E foi seguindo, até a esquina da rua com o beco que vai ter à rampa Campos Melo. Aí parou, apoiando-se com o chapéu, que a mão direita segurava, e metendo a esquerda no bolso da calça, lançou o olhar observador em derredor: bem defronte, na calçada oposta, uma mulata velha vendia doces a caixeiros e populares que passavam; mais adiante, uma preta vendia comida feita, arroz de toucinho e feijão a duzentos réis o prato, alguns carroceiros sentados à beira do passeio, comiam com colher de estanho em prato do mesmo metal. À porta da funilaria “Leocádio”, na curva da rua, quatro ou cinco rapazes admiravam e examinavam com interesse as cobras que Leocádio trazia presas num caixão, perto do balcão. Um homem que parecia ser empregado de trapiche, bastante embriagado, a fazer curvas irregulares, cambaleantes, a tropeçar, veio, por fim, estender-se quase aos pés de Olivier, à porta do Armazém Fontoura. Era um carafuz, baixo e truculento, que Olivier conhecia muito, por ser do outro bairro”. (p. 57-08)

Como se pode ver, é a São Luís daquele tempo, enfocada em seu conjunto arquitetônico, com seus sobradões coloniais, seu centro histórico ainda residencial e palpitante de vida, no dinamismo de um comércio de secos e molhados, a expandir-se por ruas tradicionais, como a do Giz, a da Estrela, a do Trapiche, a Portugal, e a da Palma. Ou na expressão do poeta Nauro Machado (1982, p.11-12),

[...] a São Luís da Praça João Lisboa, com seus bancos de madeira e suas frondosas árvores, na viragem mansa de brisa soprando do Atlântico, logo ali na Avenida Beira-Mar, com seu Cais da Sagração e sua Pedra da Memória, reunindo, em torno deles, as figuras de Corrêa de Araújo, Manoel Sobrinho, Assis Garrido, Fran Pacheco e tantos outros, no fluir sereno e acalorado de discussões e aconchegantes abraços e consentimentos sobre as novidades literárias do momento ou as acirradas disputas políticas da hora. Mais em frente, ao atravessar a rua, ficava o Bar do Chico, onde após iam tomar café ou bebericar a suave cerveja ou escaldante cachaça. Nas periferias dessa ambiência e adentrando o Caminho Grande nos resquícios de suas senhoriais vivendas, sem a proliferação inchada que após caracterizaria o bifurcar desse percurso em toscas casas de um desarrazoado crescimento suburbano, ou seguindo em direção ao cemitério do Gavião, nos incipientes contornos de bairros que já despontavam, como Lira e Belira, a Ilha de São Luís, dormitando em seus extremos, aos pés das águas dos rios Anil e Bacanga, derrama-se inteiriça como moeda cuja cara era a da sua pobre mestiçagem e cuja coroa, representada pelos portugueses ou deles descendentes, afora outras gotas de um diluído sangue europeu, brilhava sobre o lustroso solário cujo foco se aglomerava sobretudo numa resplandecente e ainda opulenta Praia Grande.

Ainda nesse transporte, no início do século XX, com a Semana de Arte Moderna (São Paulo-1922), que introduz o Modernismo na literatura nacional, o Maranhão marca presença e 89

se faz representar, no romance, com Graça Aranha e Coelho Neto. Este último que, ambientando a sua produção no Rio de Janeiro pré-republicano, faz desta verdadeiros documentos representativos daquela época, no prenúncio de um modernismo que já se faz perspectivar nos seus romances oitocentistas e, digamos, pré-modernistas – levando-se em conta a divisão didática de Alceu Amoroso Lima (1969) que, estudando a nossa produção literária nos anos 50, infere que esta passa por quatro momentos ou fases evolutivas: Pré- modernismo (1902-1922); Modernismo, 1ª. geração (1922-1930); Pós-Modernismo, 2ª. geração (1930-1945); Neomodernismo, 3ª. geração, ou Literatura Contemporânea (a partir de 1945). Vale lembrar, todavia que, após essa teórica e pertinente divisão, adotada pelos estudiosos e historiadores da nossa literatura, já se passaram mais de 50 anos e tivemos as gerações de 1960 e 1980. Dado a naturalidade desses autores e sua relevância, no raiar do Modernismo, com a Semana de Arte Moderna, quer se nos parecer de bom alvitre considerá-los, também, romancistas maranhenses, introdutores do Modernismo na Literatura Brasileira, justificando- lhes a inclusão nestas páginas, com os seus mais destacáveis romances, transitivos do século XIX para o século XX (no caso de Coelho Neto, sobretudo). Vamos a eles: Henrique Maximiliano Coelho Neto (Caxias-Ma.21.02.1864/RJ.28.11.1934) – escritor, cronista, folclorista, crítico, teatrólogo, jornalista, professor e político). Filho do português Antônio da Fonseca Coelho e da índia Ana Silva Coelho. Aos seis anos de idade, acompanha a família em mudança para o Rio de Janeiro, onde faz os estudos básicos, até o preparatório, ingressando na Faculdade de Medicina – que abandona para cursar Direito em São Paulo. Ali, discípulo de Tobias Barreto e atuante nos movimentos abolicionistas e republicanos, entrando em conflito com seus professores, não conclui o curso, voltando para o Rio de Janeiro, onde se estabelece, dando início a uma brilhante carreira como escritor, jornalista, professor e político, exercendo, ainda, importantes cargos no governo do Estado. Em 1890, casa-se com Maria Gabriela Brandão (filha do professor Alberto Olympio Brandão, com quem teve quatorze filhos). Membro da Academia Brasileira de Letras (fundador da cadeira nº. 02), dentre a sua vastíssima produção (composta de mais de 120 volumes, escritor fecundo que foi, cultor praticamente de todos os gêneros literários – romances, contos, crônicas, fábulas, lendas, narrativas, apólogos, reminiscências, baladas, confissões, teatro, poesia, livros didáticos e críticos – tendo sido, por muitos anos, o escritor mais lido no Brasil, eleito, em 1928, o príncipe dos poetas77), têm destaque os seus romances transitivos do século XIX (a exemplo de Miragem e O Rei Fantasma-1895; A Capital Federal-1893; Inverno em Flor-1897; O

77 - em concurso realizado pelo jornal O Malho. 90

Rajá de Pendjab e O Morto-1898; A Conquista-1899), para o século XX (como Turbilhão- 1905; Rei Negro-1914; O polvo-romano-1924; Imortalidade-1926; Fogo-Fátuo-1929), oscilando, estes, entre temas urbanos e rurais e sempre a exalar um forte sentimento de brasilidade. É de se observar, na leitura da obra coelhonetiana, os romances citadinos, por excelência, sempre decorrentes de uma imaginativa reconstituição histórica e das reminiscências da vida boemia (experiência nitidamente transparente e inseparável do processo narrativo do autor), compartilhada com os seus contemporâneos (dentre os quais Olavo Bilac, Emílio Meneses, Guimarães Passos, Aluísio Azevedo, no Rio de Janeiro, à Rua do Ouvidor), sobressaindo-se, dentre estes: A Capital Federal e A Conquista – romances que, no âmago de sua estrutura narrativa, já contêm os prenúncios da modernidade, rompendo com os pontos de vista privilegiados da narrativa realista do século XIX. Ambos, de caráter citadino/regionalista, abordagem social, publicados ainda nos primórdios da República Velha (administração de Floriano Peixoto), registram aspectos daquele período de passagem de um governo fortemente centralizado, para uma mais ampla descentralização administrativa e financeira, provocando sérias agitações78 valendo, pois, como documento histórico. A Capital Federal (1893) – em sua estrutura mista, de “crônica romanceada79”, no fluir dos elementos pitorescos e descritivos, gira em torno da experiência urbana do jovem mineiro Anselmo Ribas, nos seus primeiros contatos com a cidade maravilhosa (esta, não mais na condição de Corte Imperial, mas ora republicana, a Capital Federal, conforme sugerido no título da obra). Hospedado na casa do tio ricaço, Serapião Ribas, dispondo das comodidades de quem reside num palacete, o rapaz aventura-se a conhecer o “novo” Rio de Janeiro, ciceroneado pelo talentoso advogado Dr. Gomes de Almeida que, ao mesmo tempo em que lhe vai mostrando a cidade, vai explicando a psicologia humana (BROCA, 1981). Experiência urbana da surpresa e da desilusão, pode-se aventar, à medida que o rapaz idealizara uma metrópole suntuosa, guarnecida por “grandes casas apalaçadas, ruas cuidadosamente calçadas de mármores... arquitetura e gosto, arte e elegância e largueza, sobretudo” (p. 65). Tudo ilusão: “Contaram-me tantas maravilhas desta rua que não é muito que me confesse desiludido, porque o sentimento que, em verdade subjugo, é de indignação [...]. Mentiram todos: a lei, a religião e a batota. [...]”. (p. 69). A importância dessa via pública para a vida carioca, entretanto, lhe vem a ser explicada pelo tio Serapião, para quem a “pequena viela” representava uma “pia lustral” consagradora dos fatos e dos homens (p. 71).

78 - quando Coelho Neto era redator dos debates do Senado. 79 - no conceito de Brito Broca (apud BOSI, 1995, p. 200). 91

Miragem (1895) – inspiração realista, com fulgurações de crônica histórica, focado no memorável evento da Proclamação da República, conta, em flagrantes convincentes da vida doméstica, a saga de uma família atribulada pela morte do pai. Protagonizado por Tadeu – jovem militar de saúde frágil (tuberculoso), desprovido, pois, dos méritos físicos hercúleos, dos heróis épicos, mas rico em qualidades morais, como por exemplo, a generosidade – o romance delineia o contexto sócio-político da transição da Monarquia para República, denotando a frustração dos jovens escritores da época (boêmios da Rua do Ouvidor, que sonham com uma república da diversidade, diferente do sistema oligárquico e hierárquico de Prudente de Morais, centrado na cafeicultura paulista), em relação ao novo regime. Poderíamos falar em uma “epopeia da desilusão”, no que concerne às transformações circunstantes: o momento histórico-político, o fim da boemia, a passagem da juventude, a prisão de Bilac e Patrocínio (1892), a morte de Mallet (1894), destacando-se, como fato simbólico, de significações profundas, o desmaio do personagem Tadeu (figurando o herói manco, simbolicamente castrado), no momento em que Deodoro passa, a cavalo, pela Rua do Ouvidor (15.11.1888).

Em Miragem, o interesse pelo documento concentra-se na reprodução de uma cena a que o narrador de fato presenciou: a proclamação da República, vista pelos olhos do soldado Tadeu, cuja narração se insere no plano da exploração sentimental, em termos prolixos, de uma vida infeliz. O que, em certa medida, caracteriza o romance e o estrema dos demais, conferindo-lhe uma cor romântica acentuada, que só reaparecerá, em nível, aliás, superior, em Turbilhão (BOSI, 1995, p. 201).

O Morto (1898) – também de caráter documental (mas sem os timbres naturalistas de Inverno em Flor), desenrolando-se, o enredo, em torno da Revolta da Armada (1892-03) e na voz narrativa de Josefino – um pacato funcionário do comércio que, suspeito de sublevar-se contra o governo, resguarda-se no interior de Minas Gerais, registrando suas impressões sobre o período, recordando seu passado, à “sombra das árvores, em remoto desterro, enquanto a metralha arrasava a terra hospitaleira” (p. 05). Com muita precisão, habilidade e fluência, o autor reconstitui as incertezas e fragilidades de uma fase ainda experimental da vida republicana brasileira. “O episódio sentimental do protagonista que, refugiado em Minas, aí encontra uma adolescente enfermiça que por ele se apaixona, parece antes apêndice bucólico do que cerne dessa autêntica crônica histórica” (BOSI, op. cit., p. 202). A Conquista (1899) – como que sob os moldes de Cenas da vida boêmia (de Henry Murger-Paris), pode-se dizer, é um romance-documento, de caráter nitidamente autobiográfico, num registro da memória da juventude boêmia do escritor (coincidindo com as 92

lutas terminais da Abolição e da República), centrado nas aventuras de um grupo de jovens boêmios, adeptos e cultores da arte literária (entre 1883 e 1886), que “atravessaram vitoriosos a campanha abolicionista e entraram, felizes e unidos, pela República”. (CAMPOS, 1941, p. 238). Vida nômade, de peregrinação por ruas diferentes, frequentando restaurantes vários (como num entrelugar, ao sabor do acaso, no afã de se encontrarem na sociedade burguesa, que não inclui nem exclui o boêmio), tendo no jornal seu único lugar ao sol (sem ocupá-lo, propriamente, no “compromisso instável de um jogo duplo” – para lembrar MAINGUENEAU, 2001, p. 35), num momento em que, ser escritor, significava, ao mais das vezes, migrar do interior para a capital do império, sempre imbuído dos ideais republicanos e abolicionistas, em busca de prestígio, implicando agregar-se a outros companheiros, trabalhar nos jornais (únicos meios de sobrevivência na vida boêmia) e publicar nestes as obras produzidas, frequentar a Rua do Ouvidor... Assim, a transgressão boêmia vem a ser o fio condutor dessa trama narrativa, onde as personagens submergem, em sua condição paratópica, podendo ter, ao mais das vezes, como a grande conquista de cada dia, a mera aquisição de um prato de comida. Nos dois romances em questão, a história se vai desenrolando como que na interrupção da linearidade narrativa e da ação romanesca (como bem o demonstra o monólogo do Dr. Gomes). E eis, pode-se inferir, o gérmen da modernidade – noção ainda não reconhecida pela crítica canônica e que, segundo Barbosa (1990), instaura-se a partir do século XIX, elevando- se, paulatinamente, à categoria de avaliação literária. O advento da “linguagem das rupturas e suturas inesperadas, onde tudo é válido porque tudo marcha para o aprofundamento das relações precárias, mas fundamentais, entre realidade e representação” (BARBOSA, 1990, p. 30). Assim, é de se convir, o Moderno parece estar sempre no viés da dúvida, da insegurança, no descompasso entre a realidade e sua representação: buscas, rupturas, retomadas, reformulações, ironia, fragmentações, descentralizações... Novas articulações na arquitetura do texto. É o que se pode perceber nos romances em foco, sobretudo no que se refere ao espaço – onde se pontificam: a casa de cômodos, a zona portuária, a Rua do Ouvidor, a redação dos jornais, os cafés, restaurantes, botecos... que bem podem configurar a experiência boêmia num mundo urbano fragmentado, num momento de transição e transformação de valores. Enfim, transparências do Moderno, na disposição estrutural do romance de Coelho Neto que, se estendendo para o século XX, capta-lhe e reflete os caracteres representativos dessa época, destacando-se, nesse contexto: 93

Turbilhão (1905) – que, oscilando entre o arcaico e o moderno e conciliando a livre imaginação do autor (os fatos circunstanciais do enredo) e o plano da realidade (observação empírica dos fatos ali retratados), e no protagonismo dos irmãos Paulo (de início chocado e envergonhado com a decadência moral da irmã, mas depois atraído pelas vantagens por ela conseguidas) e Violante (que enriquece às custas da prostituição), alude às mudanças que se vão operando no modus vivendi da população do Rio de Janeiro, na primeira década do século XX; Rei Negro (1914): romance de tônica abolicionista com toques regionalistas e rurais; O Polvo (1924): sob a temática do adultério e girando em torno da derrocada de Evaristo e sua família, na capital fluminense (1920), prendendo-se, o enredo, aos elementos e procedimentos que podem levar à falência de valores econômicos e morais; Imortalidade (1926): onde, como sugerindo ou experimentando o terror metafísico da imortalidade, o protagonista, ativado por fluído misterioso, cai “nos braços de Morfeu”, para despertar séculos mais tarde; e Fogo-Fátuo (1929): que, à maneira de A Conquista, sobrelevando o resgate da memória, em verossímeis recordações de uma juventude boêmia (finissecular, de jornal e café), em suas veleidades político/literárias, no transe da Abolição da Escravatura para a Proclamação da República – destacando-se (através das suas representações) as figuras de José do Patrocínio, Paula Ney (Neyva), Pardal Mallet (Pardal), Guimarães Passos (Fortúnio), Aluísio Azevedo, (Rui Vaz), Olavo Bilac (Otávio Bivar), Muniz Barreto (Montesuma), além do próprio Coelho Neto, (transparente na personagem Anselmo) – sobreleva-se como um dos mais importantes, ao lado de Rei Negro. Este, comprovadamente 80, o mais lido e apreciado dentre a bibliografia do autor – seja pela obra em si, em seu processo criativo, seus componentes estéticos, seja pela temática abordada, em seus condicionamentos sócio/históricos, garantindo-lhe, não só uma recepção positiva, em meio aos leitores, como uma permanente atualização, para além de sua época. Fato que lhe justifica o resumo a seguir e faz lembrar Wolgang Iser e Robert Jauss – postuladores da estética da recepção, que analisa como um texto se instala e é recebido em determinada época, em uma determinada cultura. Rei Negro (1914) – “onde a candente imaginação do escritor alcança comunicar ao leitor um sentimento épico da existência” (MOISÉS, 2006, p.110), numa narrativa focada no sofrimento do negro escravo, expondo, ainda, o dilema das jovens cativas, vítimas de exploração e violência sexual (neste caso, por Júlio – o filho do patrão). Protagonizado pelo negro Macambira que, apesar de sua condição de escravo, trabalhando na fazenda do casal

80 - dentre os leitores (alunos e professores universitários e outros) por nós conclamados a opinar (maio/junho-2013).

94

Manuel Gandra e Clara, no interior do Rio de Janeiro, desfruta de uma (ainda que limitada) regalia junto aos patrões, como encarregado da entrega das mercadorias por ali circulantes – responsabilidade que, à medida que o aproxima dos senhores, vai gerando sentimentos de despeito e rejeição nos demais escravos, que vêm a desprezá-lo. Macambira é do tipo sóbrio, que não se entrega aos prazeres sexuais, condenando, mesmo, tais atitudes libidinosas e luxuriantes nos seus companheiros de senzala. Uma de suas (poucas) amigas é a velha escrava Balbina, que lhe vive garantindo e lembrando, a todo momento, ser ele descendente de um rei africano. Os conflitos vêm à tona quando o patrão decide casá-lo com a mucama Lúcia, afrodescendente, já miscigenada (quase branca), numa tentativa de melhor controlá-lo e inseri- lo num processo de branqueamento da raça. Fato consumado, o tempo de gestação da esposa completo, o jovem escravo (que até se sentira feliz, na vida de casado), surpreende-se, em ver a esposa falecer, após dar à luz um menino de cor branca. Ressalte-se que, dias antes do enlace matrimonial, Lúcia fora estuprada por Júlio – então de férias da faculdade de medicina, cursada na capital fluminense. Revoltado, solitário, o então viúvo peregrina, refugiando-se pelos locais mais ermos, nas proximidades da fazenda. O clímax e desfecho da história se dá com a vingança do rei negro contra o filho dos patrões, cravando neste uma adaga no peito, assassinando-o. José Pereira da Graça Aranha (São Luís-Ma.21.06.1868/Rio de Janeiro-RJ.06.01.1931) – filho de Temístocles da Silva Maciel Aranha (redator e impressor jornalístico) e Maria da Glória da Graça. Romancista, dramaturgo, ensaísta, conferencista, escritor brilhante. Formado em Direito, pela Universidade Federal de Recife, foi também professor, magistrado e diplomata. Dentre suas conferências, destacam-se: A Emoção Estética na Arte Moderna (13.02.1922) e O Espírito Moderno (19.06.1924), proferidas quando da Semana de Arte Moderna, em São Paulo e na Academia Brasileira de Letras, respectivamente. Homem “que viveu intrepidamente as suas ideias”, incorporando-as no seu sangue, como o ar que respirava, o pão que o nutria... “eram o seu sol interior [...]”. Daí, “ter sido, sobretudo, um espírito independente, um coração soberano” (OLIVEIRA, 2007, p. 159). Como estudante de Direito, no Recife,

foi o único acadêmico maranhense a se engajar no movimento abolicionista: escondia escravos fugidos dos latifúndios pernambucanos, embarcando-os para o território livre do Ceará. Antecipou os caifazes de Antônio Bento, em São Paulo. Partícipe da campanha republicana, opôs-se à ditadura militarista de Floriano Peixoto. Para não defender ato inconstitucional do presidente civil Prudente de Morais, demite-se de alto cargo público. Amigo de Rio Branco, compromete a sua carreira diplomática por discordar do grande chanceler. Professor de direito, não hesita em abandonar a cátedra, por inconformismo com o ensino, que considerava obsoleto. Escritor consagrado, íntimo de Machado de Assis e de Nabuco, não teme romper com a 95

Academia Brasileira de Letras, preferindo ficar com os jovens que acionaram a Semana da Arte Moderna. E quando, em 1922, o governo civil de Epitácio Pessoa lançou o país na opressão, provocando a epopeia dos Dezoito do Forte, na qual sobressaiu, titânica, a figura legendária de Siqueira Campos, Graça Aranha pagou, nas prisões do governo, o crime de sua solidariedade aos heróis que, na praia de Copacabana, iniciaram o ciclo do inconformismo brasileiro contemporâneo. Nos calabouços de Epitácio, Graça – sereno e altivo – respondeu à miséria dos opressores com ato de soberania do espírito: na masmorra, indiferente aos carcereiros, continuou a trabalhar nas magistrais páginas que servem de introdução à correspondência de Machado de Assis e Joaquim Nabuco, a qual mais tarde publicaria. Livre da prisão em 1926, proclamava a grandeza de Lenin, definia a Rússia leninista como “um fascinante laboratório político”, e pedia o reconhecimento diplomático da União Soviética (id. ibid).

De sua obra, na sua generalidade, destacam-se: Canaã (1902) – romance de tese, centrado na colonização estrangeira, retratada, esta, numa colônia de imigrantes europeus, em Porto Cachoeiro, Espírito Santo, e girando em torno de dois personagens alemães, com visões de mundo contraditórias: Milkau (que, no seu idealismo, otimismo, senso de fraternidade e fé na humanidade, julga ter chegado à “Terra Prometida”) e Lentz (racista e preconceituoso, inadaptado à realidade, imbuído dos ideais germânicos de superioridade e cultor da lei dos mais fortes), num longo debate sobre a terra que os acolheu como segunda pátria. Finda a disputa ideológica, o enredo se vai revestindo de um maior dinamismo, com a ação deslocando-se e concentrando-se no dia a dia do povoado, suas festas, os dilemas individuais dos seus habitantes – circunstâncias em que Milkau vem a conhecer Maria (então empregada doméstica de uma família sua compatriota), por quem se enamora. A moça, que fora seduzida e abusada pelo filho dos patrões, vindo a ser, por tanto, expulsa da casa, perambula, grávida e sem destino, pela colônia, vindo a dar à luz o seu bebê, às margens de um rio. Devorado (sem testemunhas), o recém-nascido, por porcos selvagens, a jovem, na iminência de ser presa, acusada de infanticídio, é socorrida por Milkau, que surge ali de improviso e a socorre. Os dois, então, fogem, em busca da Terra Prometida, num epílogo a confirmar uma tese em defesa da redenção humana (oposta à certeza objetiva e científica, defendida pelos realistas e naturalistas), que bem pode resumir-se neste postulado de Milkau: “Todo mal está na força e só o Amor pode conduzir os homens” – mensagem de esperança, a alentar os amantes visionários, após o malogro do tão sonhado “Eldorado”. Oscilando entre o romance e o documentário; entre a prosa poética e a doutrinária; entre o Naturalismo e o Simbolismo, “obra anfíbia”, no dizer de Moisés (2012, p. 337), como romance (na mais restrita expressão da palavra), “navega nas águas de Zola – como na cena em que o filho de Maria é devorado pelos suínos, e na relativa aceitação da força do meio 96

sobre o comportamento das personagens. Enquanto prosa poética, acolhe a vaguidade, o mistério e o idealismo de extração simbolista” (id.ibid.). Vale observar, que a narrativa em foco surge, na Literatura Brasileira, paralelamente a Os Sertões de Euclides da Cunha, abordando, como aquele, uma temática rural, com nuances de “tragédia camponesa” – como o dirá Franklin de Oliveira (2002), para quem, nos aspectos políticos e artísticos, a obra do maranhense identifica-se mais de perto é com o Ateneu de Raul Pompeia. Uma leitura comparativa e atenta fará notar, em ambas, o confronto realismo/simbolismo, bem como prenúncios dos valores estéticos do Impressionismo. Pode-se dizer, é a imagem do Brasil agrário que se vai descortinando, página a página, nesse romance de estreia de Graça Aranha,

sob o ângulo sociológico, coirmão de Os sertões, inclusive quanto à colocação dos problemas antropológicos da miscigenação. Mas Canaã é, sobretudo, como tão bem o definiu Nilo Scalzo, “livro revolucionário”. E de onde vem o seu teor subversivo? Emerge do ardente diálogo entre Lentz e Milkau; o primeiro, um reaça de casta prussiana; o segundo, um progressista que sabe que a história do homem sempre se fez no sentido ascendente, rumo a uma cada vez maior libertação. “O mal está na força: é necessário renunciar a toda autoridade, a todo governo, a toda a posse, a toda a violência”. Canaã inaugurou a ficção ideológica brasileira. É romance social e romance de ideias, invenção de pensador e de artista. Mas, quanto às ideias, Canaã ainda atua no abstrato. Aos debates filosóficos falta concretude humana, embora nesse livro de estreia o escritor maranhense já mostre o veemente desejo de marchar, não só junto com a história, mas pioneiramente à sua frente. (OLIVEIRA, 2002, p. 265)

A Viagem Maravilhosa (1930) – iniciando-se com a apologia dos Dezoito do Forte de Copacabana: “o espírito revolucionário não se detém, e não há força que o abafe”, e recompondo a marcha heroica da coluna Prestes (atravessando o Brasil, do Rio Grande do Sul ao Maranhão), e os quadros repugnantes da delação e do terror, que precederam 1930, é o primeiro romance político, na Literatura Brasileira Tradicional, em termos de fabulação e estrutura narrativa. Protagonizado por Felipe e Tereza, trata-se de “uma história comum, de adultério, vivida por um marido boçal, uma mulher inquieta e um discursivo amante” (BOSI, 1995, p.330). Obra empenhada na defesa da ideia de que “a ventura reside na superação do terror cósmico, isto é, na livre integração da consciência no todo universal” (id. ibid.). Nele, com a mesma sede de renovação profunda, com que participara da Semana de Arte Moderna (1922 – proferindo a conferência Função Estética da Arte); e o mesmo espírito revolucionário com que rompera com a Academia, após a Conferência O Espírito Moderno (19.06.1924 – reptando seus confrades a optar entre evoluir ou morrer) e adere à Revolução de Outubro, o autor volta-se, agora, para as questões sociais e políticas do País. Como o atesta ainda Oliveira (2002, p. 266), sob o ponto de vista político, 97

representa a coroação de uma obra literária marcada pela revolta permanente contra todos os preconceitos. Uma obra que tem qualquer coisa de pré-Marcuse. Do ângulo da linguagem, inaugura uma renovação estilística: desmonta a sintaxe tradicional, desarticula a coordenação clássica, subverte o dizer parnasiano. A frase deixa de ter desenho geométrico: impõe-se com a verticalidade das colunas arquitetônicas. O ímpeto, a força criativa adquirem peso e volume, concretude de bloco. Não se alinham na horizontal. Conquistam ascendente frêmito escultural, as frases irrompem a prumo.

Para Bosi (1995, p. 330),

Há, nesse romance, uma vontade programática de ser moderno. Desde as ideias gerais que vinha defendendo de longa data até o léxico e os torneios sintáticos, o autor se propõe a construir um livro dinâmica e nervosamente anti-tradicional. As teses e as obras modernistas parecem ter influído mais em Graça Aranha do que ele nelas... Basta confrontar o estilo de Canaã (ainda bem próximo do amplo paisagismo romântico e do exato descritivismo realista) com o desta Viagem Maravilhosa, onde resíduos dos velhos processos se justapõem a linhas e manchas da natureza, retalhos da memória alinhavados entre impressões do presente, close-ups de personagens, tomadas rápidas de situações e cenas, dando às vezes a impressão de um filme longo e o seu tanto confuso.

E até aqui, podemos vislumbrar um Modernismo (como estética literária) em eclosão, mas já empenhado numa crítica global à mentalidade, à ideologia das gerações anteriores, em adentrar mais profundamente na realidade brasileira, que vai ganhando um novo relevo social e já sob os influxos da Revolução de 30 – oriunda, esta, das contradições da República Velha, que esse movimento tenta superar, despertando, por todo o Brasil, sentimentos de esperança (ainda que tolhida pelo desengano), atitudes de oposições, programas... E a história nos dá conta de que as décadas de 30 e 40 trouxeram aos intelectuais novidades temáticas (como o tenentismo, a política getuliana) – que a nova corrente vai trazendo à nossa literatura, que se vai fertilizando no humos de um modernismo que vai incorporando, à nossa ficção romanesca, os brasileirismos, da linguagem oral, os regionalismos (léxicos e sintáticos). E aqui quer se nos parecer, vale lembrar Antônio Cândido (1985, p. 24), para quem “a criatividade, a imaginação, partem das condições reais do tempo e do lugar” podendo estas “ser concretas ou não, da existência social das suas experiências”. Ei-lo que acrescenta: “O literato insere-se na realidade sociocultural do tempo em que vive, do qual faz parte, com ela dialogando, ao produzir sua representação, por meio de sua vivência, de seus interesses e projetos, mas não é um simples refletor dos acontecimentos sociais; ele os transforma e combina, cria e devolve produzido à sociedade” (id. ibid.).

4.2. O romance maranhense a partir da década de 40 do século XX

Não obstante a significativa e marcante participação/atuação desses dois maranhenses (Graça Aranha e Coelho Neto), num movimento renovador e introdutor da nova orientação 98

estética na literatura brasileira, em nosso Estado, o Modernismo propriamente dito, aqui só se fará reconhecer, muito mais tardiamente, a partir da década de 40, com Josué Montello, no romance (Janelas Fechadas-1941) e Bandeira Tribuzzi (São Luís- Ma.02.02.1927/08.09.1977), na poesia (Alguma Existência-1948), considerados os introdutores da nova estética, na Literatura Maranhense. De modo que, pode-se dizer, o Modernismo no Maranhão, perspectivado na Semana de Arte Moderna (através dos maranhenses supra referidos), mas inaugurando-se, na nossa Literatura local, tão somente na entrada dos anos quarenta, do século XX, percorre-lhe as décadas precedentes, estendendo-se ao final da centúria, no trânsito para o século XXI, acompanhando, absorvendo, as tendências vigentes na literatura contemporânea. Vejamo-lo em seus autores e obras... Josué de Sousa Montello (São Luís-Ma. 21.08.1917/RJ.15.03.2006) – jornalista, professor, teatrólogo, cronista, romancista, autor de contos infantis. Membro da Academia Brasileira de Letras (cadeira 29). Autodidata. Filho de Antônio Bernardo Montello (de ascendência italiana) e Mância de Sousa Montello. Estudos primários na Escola Modelo Benedito Leite e secundários no Liceu Maranhense – quando então dirige o periódico A Mocidade, ali dando a público seus primeiros trabalhos. Jornalista e escritor precoce, aos 15 anos integra a sociedade literária Cenáculo Graça Aranha (da qual participaram muitos outros intelectuais maranhenses). Em 1936, segue para Belém-Pa. e dali para o Rio de Janeiro. Escreveu em muitos jornais e revistas importantes do País, bem como assumiu cargos e funções de relevo, em órgãos do governo. No Maranhão (São Luís), criou e organizou o Museu Histórico e Geográfico, o Conselho Federal de Cultura e fundou a Casa de Cultura Josué Montello. Janelas Fechadas (1941) – romance de estreia, escrito no Rio de Janeiro, em 1938, e lançado em 1941. Personagens singelas, cenário tranquilo, tudo expressando-se com nitidez e harmonia. Apreciado pelos leitores e exaltado pela crítica (sobretudo por Antônio Cândido e Álvaro Lins), tem logo sua primeira edição esgotada, vindo a ser relançado somente em 1982, totalmente reformado pelo autor (conservando, porém, a tônica geral da narrativa, em sua originalidade) que diz, no apêndice da nova edição (p. 272), como que justificando as alterações: “Se não estou em erro, esse romance assinala, no limite de minhas possibilidades ficcionais, o momento da maturidade”, ele mesmo observando (p. 269 – posfácio) que, confrontando-se a primeira edição (Irmãos Pongetti) com a segunda (Nova Fronteira), ver-se-á que, do texto original, subsistiram as linhas iniciais do capítulo de abertura e as finais do último – tudo o mais constituindo-se em novidade (frase, vocabulário, diálogo), resguardando, porém, “a luz matinal que banhava o livro de estreia” (id. ibid). 99

Não resta dúvida de que Josué Montello, considerado 81 um clássico da Língua Portuguesa, premiado muitas vezes como mestre do romance moderno brasileiro, é o nosso magno represente do gênero, em sua vastíssima e variada bibliografia 82 , em que o fator quantidade se faz igualmente significativo de qualidade – conjunto em que se sobressaem os romances, cunhados, estes, numa linguagem clara, direta, fluente e primando por um enredo centrado na abordagem de temas especificamente maranhenses: exaltação de usos e costumes, tradições sanluisenses; caracterização psicológica das personagens, sempre ambientadas na capital do Estado ou na fronteira cidade de Alcântara, sendo, “por excelência um romancista do Maranhão, mais precisamente da cidade de São Luís. A luz da estrela morta pode situar-se em qualquer parte do mundo. Mas São Luís está presente na maior parte de suas criações ficcionais” – diz Mello (1978, p. 05). Assim, pode-se dizer, na sua prosaica romanesca, Montello criou um verdadeiro ciclo maranhense, combinando, “de maneira sóbria e numa linguagem estritamente literária, a fixação da velha São Luís e o cuidado do retrato psicológico nas fronteiras do Psicanalítico” (BOSI, 1995 p.428). São vinte e seis romances a integrarem e a formarem esse circuito, seguindo-se a Janelas Fechadas (1941 – que enfoca o dia-a-dia suburbano da São Luís de então): A luz da estrela morta (1948) – prescrutativo do temor da morte; O labirinto de espelhos (1952) – onde a ambição e a inveja humana se fazem retratar no cômico e no protagonismo de uma viúva rica, consciente de que todos os que a lisonjeiam estão interessados na sua fortuna (tendo, pois, a sua morte aguardada pelos parentes pobres), conseguindo, no entanto, sobreviver à ira dos seus pretensos herdeiros; A décima noite (1959) – romance de regresso, inspirado no artigo 178, do código civil, caracterizando-se pelo suspense, na reflexão do complexo de Édipo, através da personagem Abelardo que, de volta a São Luís, propõe-se a resgatar a casa outrora pertencente a seus pais, assim casando-se com a filha dos novos proprietários, por quem se apaixona, vendo nesta, refletida, a própria mãe falecida; Degraus do Paraíso (1965) – aquele em que o autor, avesso ao fanatismo, extravasa verdadeiros sentimentos pessoais, em sua angústia religiosa, na impossibilidade de realizar o grande sonho do seu pai, que o queria pastor protestante; Cais da Sagração (1971) – a São Luís beiramarinha, em sua paisagem, voz, tipos caraterísticos da época; Os Tambores de São Luís (1975) – percepção/captação/revelação histórico-sociológica da mais ampla, profunda e contundente experiência existencial, no âmbito da escravatura e no protagonismo de um professor negro; Noite sobre Alcântara (1978) – a decadência da aristocracia maranhense

81 - por críticos como Manuel Bandeira e Alceu Amoroso Lima. 82 - cerca de 160 títulos diferenciados de produção – do infanto-juvenil ao romance, passando pelo conto, crônica, novela, ensaio, obras de pedagogia e biblioteconomia... 100

romanceada; A coroa de areia (1979) – cosmovisão política dos anos 60, num trabalho de reconstrução do ambiente, de estilização da memória coletiva de São Luís, numa fase de “fermentação turbulenta com o aparente imobilismo do meio provinciano, revolvido até às entranhas mais guardadas pela paixão política, pelo idealismo de alguns, pela ambição de muitos, pela coragem, pelos temores, pelo jogo de convivências e imperativos em que vivia aquela sociedade”, segundo Raquel de Queirós (In: MONTELO, 1979 – aba esquerda da obra). O silêncio da confissão (1980) – o antigo e o novo; a tradição e a modernidade, conjugados num enredo em que o policialesco se faz inaugurar, no tecido literário montelliano; Largo do Desterro (1981) – a dilemática experiência existencial de um sesquicentenário (150 anos de vida); Aleluia (1982) – tributo a um pai que muito desejou (mas não conseguiu) ter um filho que o continuasse como pastor evangélico; Pedra Viva (1983) – leitura, em “mensagem cifrada” (MARTINS, 2006, p. 113) do próprio destino humano, em sua significação interior,; Uma varanda sobre o silêncio (1984) – a realidade do Brasil dos “anos de chumbo”, do terrorismo, das repressões; Perto da meia-noite (1985) – num toque realista, na mira do social, o cotidiano, o meio sanluisense, em sua mais pura autenticidade, ecoa nessas páginas, num lirismo profundamente íntimo, recôndito, numa autêntica psicologia das personagens; Antes que os pássaros acordem (1987) – a ocupação de Paris (Segunda Guerra Mundial), pelos nazistas, resgatada e ambientada em São Luís, sob o ponto de vista de um cidadão francês (envolvendo outros personagens franceses), na abordagem de um tema universal; A última convidada (1989) – a transcendência humana a revelar-se como mais uma novidade na ficção romanesca de Montello; Um beiral para os bem-te-vis (1989) – a noite, a cidade, a garota nua na garupa da moto do namorado, briga e reconciliação, parentes dispersos retornados ao lugar de origem – como bem-te-vis retornando ao beiral, preservando-se das intempéries da vida; O Camarote vazio (1990) – o suspense, as personagens marcantes, perfeitamente adaptados a um enredo habilidosamente construído, definem o gênero policial da narrativa; O baile da despedida (1992) – ficção e verdade histórica interseccionados na recriação do último baile da monarquia (Ilha Fiscal, seis dias antes da Proclamação da República); A Viagem sem regresso83 (1993) – testemunho da luta pelo poder, aqui no Brasil; flagrante de um contexto político hesitante entre dois pontos extremos: um governo forte e outro liberal; A mulher proibida (1996) trama conflituosa, na actância de um pai viúvo (ainda jovem) e uma filha única, convivendo/dividindo o mesmo espaço, confrontando seus instintos (reprimido e livre, respectivamente); Uma sombra na parede (1995) – um caso de

83 - inicialmente O Ex-presidente, a obra se constrói sob os influxos de El Señor Presidente, de Miguel Angel Astúrias (Prêmio de literatura 1967). 101

lesbianismo velado; Enquanto o tempo não passa (1996) – uma nova experiência patética de um protagonista, ao mesmo tempo herói e vítima, em sua luta de superação ante as contingências da vida contemporânea, na conquista de uma realização pessoal: culpado ou inocente?; Sempre serás lembrada (1999) – a saga pessoal do jovem Aluísio, que parte, ainda menino, para estudar na Europa e, formado, regressa à terra natal (São Luís-Ma.), um tanto quanto perplexo, no contemplar da cidade em processo de modernização e angustiado pela saudade da colega de classe com quem mantivera um apaixonado romance; A mais linda noiva de Vila Rica (2001) – sem declinar da veracidade histórica (de que se revestem as lutas pela conquista da nossa autonomia e identidade nacional), aqui é o amor entre Maria Doroteia e Tomás Antônio Gonzaga (Marília e Dirceu) que se reconstitui, num tecido de memória, e se eterniza, na ficção, elevando-se aos píncaros da glória literária. Dentre todo esse elenco de obras, figuram entre as mais lidas e estudadas, no meio acadêmico, bem como eleitas, na preferência do leitor maranhense84: Cais da Sagração, Largo do Desterro, Noite Sobre Alcântara e Os Tambores de São Luís – este último considerado um dos grandes representantes da moderna literatura brasileira, “o mais completo, o mais vívido, tecnicamente o melhor acabado [...] com extraordinária qualidade”, no dizer de Octávio Faria (In: MONTELLO, 1971 – aba esquerda da obra). O grande romance “não unicamente do negro maranhense, mas do negro brasileiro em sua luta pela libertação”, no dizer de Mello (1978, p.06). Vejamo-las, num breve resumo/comentário, detendo um pouco mais o olhar sobre a última obra citada. Cais da Sagração (1971) – romance do mar, do litoral maranhense e seus velejadores, na cotidiana travessia São Luís/Alcântara, na dinâmica marítima do Porto, na Praia Grande. Enfim, a gente do mar, os marítimos, em seu jeito de ser e estar, de amar e mal amar, suas lutas e audácias, destemores, esperanças, vinganças e perdões. Tudo muito bem representado em Mestre Severino – barqueiro, personagem extraído da vida real – que se imortaliza, nessas páginas, em sua determinação e força de vontade, seus dilemas sentimentais, no conflito amoroso entre a submissa Lourença e a bela e atraente Vanju – prostituta por quem se apaixona, após libertá-la dessa “profissão” e com quem se casa, tem uma filha (ao mesmo tempo convivendo com Lourença que, na sua generosidade ou submissão, de primeira esposa passa a ser a empregada da casa) e a assassina, por ciúmes, asfixiando-a, num banho, no mar de Alcântara.

84 - segundo a nossa sondagem, pesquisa de campo, atestando a boa recepção da obra, junto ao público leitor. 102

Largo do Desterro (1981) – tendo como personagem central Ramiro Taborda, que alcança os 150 anos de idade, sobrevivendo a todos os seus contemporâneos – de D. João VI a Getúlio Vargas, assim acompanhando as transformações ocorridas durante a sua longa trajetória existencial: da carruagem ao automóvel, passando pela moda (dos vestidos longos, fechados, ao biquíni). O romance encerra uma profunda reflexão sobre a morte, vista como mal necessário, remédio eficaz, na solução de três grandes impasses humanos: solidão, degradação e loucura, posto que, no caso da personagem Ramiro Taborda – que vive na sensação de que a morte o esqueceu, e na dúvida se foi o mundo ou ele próprio que enlouqueceu – estar sempre sozinho é pior do que morrer de vez. Noite sobre Alcântara (1978) – É o resgate lírico, romanceado da história/trajetória de Alcântara, no seu passado econômico, social e político, contextualizada na segunda metade do século XIX, tempos áureos de D. Pedro II. “... a Alcântara senhorial, que viu passar, nas suas ruas retilíneas, os orgulhosos palanquins doirados [...]” e que foi morrendo “devagar, dia por dia, hora por hora, silenciosa e esquecida. [...]” (MONTELO, 1978, p. 05). Ali, onde estão “os escombros da Igreja de São Matias, sobre a qual desabou um raio, em noite de temporal” (id. ibid.) e de cuja “nave ampla nada mais resta. Só a frontaria e o campanário retangular. Em frente à fachada nua, o pelourinho com as armas de Portugal. [...]. Adiante [...], o prédio da Casa da Câmara [...]. No Largo do Carmo [...], as ruínas do Palácio do Imperador, com seus portais de cantaria lavrada. [...]” (id. ibid. p. 6, 7). Narrada na voz do Major Natalino (ex- combatente da Guerra do Paraguai, neto do Barão de Pindaré, filho do Visconde de São Marcos), em estilo descontínuo, através de flashs-backs (sobretudo), num fluxo de recordações, em que predomina o tempo psicológico. Avanços, recuos da ação, que vem à cena literária, em digressões e progressões, a que se juntam intercalações, em cortes ou rupturas – que permitem, na sequência narrativa, a inclusão/intersecção de/com outros gêneros: carta, recorte de jornal, ensaio... e até mesmo o diário íntimo de Maria Oliva 85, que perpassam as páginas dessa Noite que, no título da obra, é metáfora a remeter, por si só, à decadência da antiga cidade (tema central do romance) fronteira a São Luís, na Bahia de São Marcos. Decadência que remonta à Abolição da Escravatura e às consequentes transformações econômicas que se seguiram à Proclamação da República, num processo contínuo e (de)gradativo, que a deixou em ruínas, como num perpétuo crepúsculo evocativo do passado, a contornar, magicizar, a realidade dolorosa. Grupos dominantes que abandonaram suas fazendas, queda de estilo de vida... Enfim, ruínas arquitetônicas em analogia à ruína

85 - apresentado como real, na obra, é conservado, em parte no Instituto Histórico. 103

econômica. Destacáveis, dentre estas, as ruínas de dois palácios (respectivamente no Largo do Carmo e na Rua Direita, canto com a Rua Grande: um, contando 18 cômodos; outro, 48 – conforme ditara a rivalidade entre os Partidos Liberal e Conservador), construídos para recepcionar o Imperador D. Pedro II, que prometera visitar a cidade em 1860. O soneto Saudade, de Raimundo Correia (1972, p. 39) abaixo transcrito – epigrafado, em sua primeira estrofe (p. 09), precedendo o primeiro capítulo da obra – dá a medida da antes esplendorosa Alcântara (um dos centros da aristocracia maranhense no Império):

Aqui outrora retumbaram hinos;/ Muito coche real nestas calçadas/ E nestas praças hoje abandonadas,/ Rodou por entre os ouropéis mais finos...// Arcos de flores, fachos purpurinos,/ Trens festivais, bandeiras desfraldadas,/ Girândolas, clarins, atropeladas./ Legiões de povos, bimbalhar de sinos...// Tudo passou! Mas dessas arcarias/ Negras, e desses torrões medonhos,/ Alguém se assenta sobre as Lages frias;// Em torno os olhos úmidos, tristonhos,/ Espraia e chora, como Jeremias,/ Sobre a Jerusalém de tantos sonhos!.

Ao reportar-se à obra, Franklin de Oliveira (In: Montello, 1974 – aba direita da obra) considera-a “História e estória de uma cidade espectral, de uma cidade engolfada na morte”, numa narrativa que não expõe tão somente os quadros da decadência social mas, elevando-se na vertente psicológica, “estabelece perfeita simetria entre a decadência da polis e a agonia inexorável de seus habitantes” (id, ibid. – aba direita). Se não, vejamos:

O fato histórico condiciona o destino humano; a circunstância social plasma a destruição das vidas, permitindo ao romancista estabelecer rigorosa homologia entre a sorte da cidade e a fortuna dramática de seus personagens. Por isso, eles assumem dimensão simbólica: nas cidades mortas todos nós agonizamos. E aqui está o sentido social deste romance, cuja ação se desenrola numa espécie de crise de toda a sociedade brasileira, e não apenas em um de seus segmentos. Eis por que a chave épica de Os Tambores de São Luís cede lugar em Noite sobre Alcântara à elegia dos epitáfios. A poesia do país do ocaso, da qual nos fala Georg Trakl, imprime às páginas de Josué Montello sua inesquecível beleza: não é a beleza paisagística das cidades que dormem o último sono, mas a trágica beleza do coração humano que adormece para sempre, quando o seu mundo se transforma no reino do silêncio. [...]. (id. ibid.). Enfim, na interpretação poético/sonetística de José Chagas (exposto na aba direita da referida obra),

A noite sobre Alcântara é mais densa/ que qualquer noite de qualquer cidade/ e as horas passam sem pedir licença/ para o que nos encante ou desagrade// O tempo em seu eterno se condensa/ e a escuridão não sabe o quanto dá de/ seu mistério para a recompensa/ de uma idade parada noutra idade// É que a noite de Alcântara incorpora/ o que ficou de uma apagada aurora/ cujo sol não se acende nunca mais// E Alcântara de noite sonha medo/ o medo que ela tem de acordar cedo/ todos os seus fantasmas ancestrais (CHAGAS, 1994, p. 132).

104

Os Tambores de São Luís (1975) – obra-prima de Josué Montello, em 58 capítulos, 483 páginas, numa ambientação épica, num enredo que desenrola o drama individual da personagem Damião, em seus ideais um tanto quanto fora do comum para um afrodescendente, que participara do processo de emancipação e libertação de um grupo étnico (ainda que tendo incorporado a cultura dos brancos), num momento histórico, em que a escravidão negra transita, da fase dos engenhos para a da vida urbana, num confronto/interrelação raça/meio, na construção de uma identidade cultural. Com olhos de sociólogo, o ficcionista reconta “realidades que não podem ser esquecidas através dos tempos, como se atrás da blandícia do senhor de escravos que levaria às vezes a amar o descendente bastardo, não serpenteasse à solta a chibata do feitor” (MELLO, op. cit., p. 08). Narrado em terceira pessoa, é romance histórico/psicológico, a concentrar, no tempo cronológico de uma noite (1915), em sua passagem para o dia seguinte (precisamente das 22:00 às 9:00hs), o relato evocativo (em tempo psicológico) de um largo período da vida brasileira (tempo histórico-1838/1915), marcado por lutas e insurreições, retrocedendo aos vários ciclos da história maranhense, numa confluência passado/presente. Mais de 400 personagens (precisamente 486, entre clérigos, governadores, estudantes e professores, tipos humanos, os mais variados, sem contar as massas populares, que dinamizam um enredo entrecruzado por histórias, em episódios que se vão sucedendo, ajustando um ao outro, não obstante a diversidade de épocas evocadas), a recompor o dinamismo de uma cidade, em sua paisagem urbana, seu perfil arquitetônico.

A estrutura colonial da cidade-ilha, os sobrados, os becos, as igrejas, as ruas aladeiradas, a atmosfera soturna à noite de navio imenso cercado de leves ventos do mar, toda a paisagem urbana do que foi no século passado um dos mais movimentados centros de progresso à custa do braço escravo, da riqueza provinda do interior, do algodão, do açúcar, do milho, do arroz, a São Luís arrogante e preconceituosa que por motivos geográficos e econômicos se comunicava mais com a Europa (Lisboa principalmente) do que com o Rio de Janeiro; a cidade do Largo do Carmo, que era uma das praças mais belas do país, antes que um governante inepto mandasse cortar-lhe as árvores, Largo do Carmo de frequentadores inteligentes, meio sem ter o que fazer, o que os levava a desancar a vida alheia, uma cidade, talvez a única que se conheça, onde existe uma rua com o nome de rua da Inveja – toda a grande urbe da áurea fase maranhense do século XIX se encontra nas páginas do livro em que Josué Montello desenrola as narrativas da vida pacata da província em cujo cenário ocorrem episódios dramáticos e sangrentos (MELLO, 1978, p. 05-06).

Para o jornalista, professor e escritor Manoel Santos Neto (2007, p. 168), este “extraordinário romance humano, ao estilo de uma impressionante novela de mistério, que começa com um episódio imprevisto – o encontro de um negro assassinado dentro de um bar, numa velha noite de 1915”, tendo como pano de fundo a caminhada noturna de Damião (negro 105

octogenário, na sua travessia da cidade, ao som dos tambores da Casa das Minas), indo ao encontro do trineto, recém-nascido, constrói-se num percurso narrativo em “duas marchas”: uma, acelerada – em que Montello “tenta retratar os vários ciclos da História do Maranhão”; outra, mais lenta – no transcurso do texto em si mesmo, contando “a saga do negro e o seu martírio sob a escravidão, no Brasil”. As personagens, perfeitamente verossímeis, colhidas da vida real, são tipos e vultos que perpassam a história do Maranhão, a exemplo de: Dona Ana Jansen, Ana Rosa Ribeiro (senhora da aristocracia, denunciada pelo promotor de justiça Celso Magalhães por crimes contra os escravos), o desembargador Pontes Visgueiro (famoso pelo crime da mala), Gonçalves Dias (em seu drama pessoal, seus amores malfadados). Ainda sobre a obra, o trecho a seguir de Wilson Martins (2006, p. 113):

Tudo isso nos induz a ler Os tambores de São Luís como um romance psicológico, partindo do particular para o geral, caso em que a narrativa se desenvolve em espiral, tendo no negro Damião o centro dinâmico de convergência e irradiação. Josué Montello pertence à família espiritual de Balzac e Dostoievsk; de Joyce e Thomas Menn; de Tolstoi e Faulkner; de George Eliot e Giovanni Verga; de Cervantes e John dos Passos; de Conrad e Flaubert; de Eça de Queiroz e Machado de Assis – todos semelhantes nas suas diferenças e diferentes nas suas semelhanças, exatamente como nas famílias naturais. Damião é a figura emblemática da condição humana num determinado momento histórico, simbolizado, aos olhos do Eterno, pelos tambores da Casa-Grande das Minas, vibrando como memória da raça através do romance inteiro. Eles marcam a sucessão dos episódios na sua vida, acompanhando-lhe as metamorfoses existenciais. São o relógio cósmico que, começando a ouvir logo a sua chegada a São Luís, continuará a marcar-lhe todas as horas, pelos anos a fora, até a noite cheia de presságios em que o romance começa e termina. Já velho, caminhando na madrugada ao som dos tambores, dominado pela expectativa do trineto que vai nascer, ele ouve como mensagem enigmática do destino, conforme só virá a saber na última página do romance: “Tinha sido escravo, era homem livre... viera de muito baixo, e ali se achava, com a sua casa, o seu nome e a sua família. Lutara pela liberdade de sua raça [...]” – deixando em nossa memória a figura de um grande entre os grandes do romance universal.

Por sua vez, Fernandes 86(2001, p. 01), referindo-se também à obra, diz que:

Ali está a saga do negro escravo no Maranhão e, por extensão, no Brasil do Império. O horror da escravidão coloca a famosa frase do homem como lobo do homem num exemplo maior de degradação do homo sapiens. Josué Montello, assim como o Graciliano de São Bernardo, soube agregar o fator humano e psicológico ao grande drama coletivo. Ao mesmo tempo em que descreve o regime escravocrata em suas minúcias, com a lupa do historiador meticuloso, também se adentra na psique de Damião, sua angústia individual, seu percurso cruel de negro foro que não encontra lugar na sociedade dos brancos. A saga individual de Damião é de grande força narrativa. Um personagem que supera o ambiente, impõe-se pela inteligência e cultura, mas definha e encurrala-se, escorraçado pelo meio mesquinho e amesquinhante. De certa forma, diria que Montello construiu uma fábula. Sua narrativa realista, que se aproxima dos grandes narradores do século XIX, é verdadeiramente verossímil e aposta tanto na realidade que, em certo sentido a supera, a narrativa passa a ser, inclusive porque está em outra época, uma narrativa de cunho quase mítico. Josué Montello, que com sua extensa obra, poderia ser classificado de o Balzac maranhense, também poderia levar outro título, com este Os

86 - Ronaldo Costa Fernandes – blogspot.com.br/2011/11/os-tambores-desãoluis.html 106

tambores de São Luís. O do autor da Damiíada, ou seja, o poema homérico do negro brasileiro, em sua epopeia de salvar um povo. Damião, assim como Ulisses, participa de uma verdadeira guerra dos quilombos. A partir da volta à fazenda onde era escravo, Damião empreende uma verdadeira viagem de retorno a sua casa. A casa de Ulisses era Ítaca. A casa de Damião é uma casa coletiva: o reencontro do negro com sua raça livre. Observe-se que durante todo o périplo de uma noite, Damião é perseguido por uma entidade sonora: os tambores de Mina que lhe dão a identidade afro-brasileira. Todo o livro é uma sequência de lutas e de conquistas, de sereias que encantam e ilhas que, na verdade, são armadilhas, como o clero e o magistério, de polifemos que o querem destruir. Dois tempos como na epopeia: o tempo do narrado e o tempo do narrador. Embora não haja o absurdo e o maravilhoso de Homero, existe aqui o homem em luta contra os elementos da natureza e das forças sociais que o fazem herói de sua raça. Para aqueles que estranham a comparação entre o romance de Josué Montello e a Odisseia, de Homero, lembremos que o Ulisses, de James Joyce, que se pretende uma narrativa homérica, valeu-se de apenas um dia do personagem Leopold Bloom para construir sua epopeia moderna. E a vertente romanesca segue em seu fluxo, com outros prosadores/romancistas despontando, no nosso cenário literário, engrossando o filão do romance moderno no Maranhão. Vejamos, alguns desses autores e obras87, em breves considerações. João Miguel Mohana (Bacabal-Ma.-15.06.1925/São Luís-Ma.-12.08.1995) – padre, médico e psicólogo; ensaísta, teatrólogo e romancista. Filho de Miguel e Anice Mohana, imigrantes libaneses. Até a adolescência, viveu entre Bacabal, Coroatá e Viana. Em São Luís, continuou os estudos básicos. Formado em Medicina, pela Universidade Federal da Bahia, após a morte do pai (1955), entrou para o Seminário de Viamão (Rio Grande do Sul), ordenando-se padre em 1960. Em 1970, é eleito na Academia Maranhense de Letras. Autor de uma extensa obra, nos seus dois únicos romances (O outro caminho e Maria da Tempestade), Mohana soube muito bem fixar, geográfica, histórica e humanamente, a narrativa em sua terra (localizando-a nas respectivas ruas, praças, igrejas, nominalmente identificadas, evocando personalidades que ali viveram, conferindo às suas narrativas uma dimensão regional). Como Josué Montello, uma referência, na arte literária maranhense e nacional: linguagem apurada, beleza nas descrições, mestria na ordenação do enredo... a destacar-se, nesse universo, com os seus dois já referidos romances – o primeiro, composto nos moldes agostinianos, no relembrar da vida tranquila, no interior, entre os costumes tradicionais (a solidariedade entre os vizinhos, a vida noturna, entre as brincadeiras alegres das crianças na rua, as conversas nas portas das casas, no conforto e ao sabor das iguarias caseiras – bolos, doces, filhós, tudo orquestrado por um coro de grilos, sapos, rãs e outros “cantores da noite”, os gritos da louca Maria Sargenta...) e a paisagem arquitetônica e natural de Viana; o segundo, cujo título entra em perfeita consonância com a protagonista, Bárbara, a simbolizar a força de uma mulher que se coloca à frente de seu tempo e de seu meio geográfico e cultural,

87 - talvez ainda não em sua totalidade. 107

na luta por uma autoafirmação/realização, que transcende ao meramente psicológico e se eleva no campo social, no que respeita à quebra de paradigmas estabelecidos pela coletividade. Nesses romances, Mohana revela-se cultor de um estilo autobiográfico, introspectivo, sobretudo em O outro Caminho, expresso num tom confessional, que remete a Santo Agostinho (autor das célebres Confissões), cuja influência foi “das maiores, não somente sobre os contemporâneos, não somente sobre a Idade Média, mas sobre toda a cultura europeia” e ao qual remonta “toda a tradição europeia da introspecção espontânea, da investigação do eu” (AUERBAH, 1972, p. 60) – e vale lembrar Tereza d‟Ávila, introdutora do estilo hiponense, na era moderna. Em Mohana, como em Agostinho de Hipona e Tereza d‟Ávila, ressalte-se, “o drama psicológico [...] se abre para o divino, encontra em sua sublimação o caminho do transcendental, cuja expressão aflora nas virtudes, sobretudo na fé” (BRANDÃO, 1979, p.101), tratando-se, pois, de uma “psicologia iluminada pela fé”, uma psicologia “profundamente humana”, que se abre para uma universalidade (como se pode deduzir dos conflitos interiores experienciados por Eyder e Bárbara), à medida que “as relações homem/divindade têm, pois, um caráter universal” e “são as diferenças circunstanciais interiores e exteriores que fazem de cada caminho o caminho de cada um. [...]. É aí que o autor revela sua condição de maranhense. A terra e a gente que se move nos seus livros são a terra e a gente do Maranhão” (id. ibid.). A propósito, ainda para citar Brandão (1979, p. 98), uma característica recorrente nos romancistas maranhenses – o movimento – em Mohana essa “movimentação intensa”, pode ser observada nos dois planos, mas encarados e tomados sob o ponto de vista psicológico [...], que assume as rédeas da narrativa e os fatos exteriores passam a ser molas propulsoras de verdadeiros cataclismas interiores. Os segredos da intimidade humana, principalmente da incerteza e da dúvida, o homem perplexo diante de si e do mundo, essa é a matéria-prima do autor – o caleidoscópio da alma humana, mais sujeita ao movimento e à mudança que qualquer das categorias externas. O romance de João Mohana é, por natureza, o que se costuma tratar por romance psicológico. Suas personagens centrais, narradoras elas mesmas de seus dramas, encontram-se mergulhadas numa dor existencial, numa angústia muito própria do nosso tempo. Um dos provocadores dessa crise é o tempo, que passa sempre, sem se importar com as dores pessoais. O outro, o espaço, o espaço humano, social, onde as personagens se encontram, sem, no entanto, poderem se interpenetrar – daí a solidão. Existe um “limiar” para dentro do qual reside o mistério de cada um, que nem mesmo a própria personagem conhece totalmente, a não ser com o correr do tempo. E aí reside o segredo – singularidade de cada pessoa, sua novidade. Como um caleidoscópio em que a variação de cores nunca é exatamente a mesma. O trecho de Karl Adam, reproduzido em O Outro Caminho, reflete essa convicção do romancista: “Cada indivíduo é único. Uma palavra de Deus que não mais se repete”.

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O outro caminho (1952) – a mais tocante obra de Mohana que, sob a técnica do flash- bac, em duas vozes narrativas, tempo/espaço psicológicos, se vai entramando, a partir de uma explicação inicial, seguindo-se quinze capítulos, a estruturarem esse romance, em sua diegese. Neco, em terceira pessoa, começa a contar a saga existencial do irmão Eyder, cedendo-lhe oportunamente a voz, que se vai articulando (em primeira pessoa), em estilo autobiográfico, a partir das duzentas folhas (diário íntimo), escritas a lápis, deixadas pelo protagonista. Como numa oração/ofertório, que se eleva a Deus, Eyder vai puxando o fio de sua história, desde a infância, no Barro Vermelho (outrora distrito de Viana e hoje município independente – Cajari), às margens do Pindaré. Recorda a mãe (Santinha), em seu ardente desejo de ter um filho padre – com Neco, não lograra aprovação do marido, por ser esse o filho mais velho, o que deveria substituir o pai no controle dos negócios, na direção da família. Menciona as preces diárias, induzidas pela mãe, a Santa Terezinha, em prol da sua vocação sacerdotal (lembra de como, um certo dia, a decepcionara, exclamando: “Santa Tereza, padre não. Chofer!” – p. 18), recorda os gritos de Maria Sargenta, altas horas da noite, chamando pela filha (que morrera afogada no rio)... E prossegue, relatando a vinda a São Luís (1900), deixando a família, a terra natal, para entrar no Seminário Santo Antônio. As emoções dessa viagem, à bordo do “Barão”; a visão deslumbrante da pororoca; as emoções da chegada à capital (Neco esperando na rampa, à Beira-Mar); a hospedagem na casa de dona Bijú (Praça Gonçalves Dias); o encontro com o reitor, Pe. Lopes, a quem confirmara, tímido e deslumbrado, a sua adesão ao sacerdócio. As férias anuais, passadas com Neco, no Barro, onde e quando, nunca conseguia confessar ao pai a sua falta de vocação, seu propósito de deixar o seminário. Neco, que de tudo sabendo e sempre o advertindo sobre a saúde da mãe. Assim, a atenção de seus pais e familiares, a delicadeza do Pe. Reitor, eram espinhos manipuladores, que o impediam de revelar, com sinceridade, o seu conflito interior. A chegada de D. Francisco (1907), na diocese, ele já diácono, a esperança de confidenciar-lhe o dilema vocacional, a amizade sincera e profunda, que vai construindo com o bispo – pelo que chega a desistir do intento, limitando-se, tão somente, a pedir ao superior que o envie, depois de ordenado, a uma paróquia no âmbito da sua região de origem – o que de fato acontece. E o novelo continua, em seu desenrolar, com a ordenação sacerdotal de Eyder, por Dom Francisco, na Catedral Metropolitana (Igreja da Sé), à qual seus pais não puderam comparecer (por motivo de saúde da mãe) – apenas o irmão Neco. A primeira missa, celebrada na Igreja de Santo Antônio (São Luís); a missa nova, no Barro; sua destinação para o município de Viana (no contexto paroquial do Barro Vermelho), onde tudo se inicia, sem problemas, no 109

desempenho do ministério na “cidade dos lagos” e nas desobrigas pelo interior, logo surgindo, porém, as dificuldades no pastoreio do rebanho: as lutas políticas locais, das quais ele sempre tenta manter-se distante; a inimizade com o coronel Marculino; a cega paixão de Viúva, em cujas armadilhas ele vem a cair; o descrédito, a remoção para outra paróquia distante... E nesses entremeios, a morte da mãe Santinha (narrada por Neco). A luta renhida contra as tentações de Eros, sofridas pelo homem “metido numa batina”, a busca de resistência, através de orações, penitências, mortificações, vêm com a tentação cerrada de Viúva (que certa noite chega a lhe invadir o quarto, ali desnudando-se e se jogando sobre ele, na cama, despertando-o, do sono), até a rendição aos seus encantos (dela). A consequente queda, os falatórios na comunidade (onde até as crianças já o chamavam de “padre safado, namorador”), a estada em São Luís, por todo um semestre – oportunidade em que pode confessar tudo a Dom Francisco, que o ouve com misericordiosa empatia; e onde vem a ser informado de que Viúva se fora para o sul do País – vão estendendo o percurso narrativo. Nos albores e rumores da I Guerra Mundial (1914), na tentava de reconstruir sua vida, Eyder se vai, transferido para Coroatá-Ma. Ali chegado, não tem o esperado acolhimento, eis que a sua má fama já correra por aquelas bandas e os insultos, que lhe são dirigidos, levam-no a isolar-se, após a primeira missa, na nova comunidade, para chorar a sua dor. As pregações, as missões populares, que vem a organizar, com a participação de vigários de outras freguesias, em nada amenizam a frieza de seus paroquianos. E uma outra inimizade, ferrenha, se instaura, entre ele e o coronel Torreão, por conta da Procissão das Almas – costume tradicional na cidade, a realizar-se, sempre, na madrugada do dia finados (02 de novembro), entre gritos e vibrações de matracas, encerrando-se no cemitério, com muita bebedeira – que, como vigário, tenta, em vão, combater. O coronel chega mesmo a chantageá-lo e a ameaçá-lo, através de um boneco enforcado, que lhe chega às mãos, com um bilhete, ordenando-o a encerrar a campanha, sob pena de vir a ser, ele próprio (Pe. Eyder), o Judas do Sábado de Aleluia – mensagem que foi compartilhada na igreja, na celebração da missa dominical. E o sacerdote não se rende às ameaças, não desiste, mas persiste, nos seus ideais, respaldado no lema que escolhera e decidira viver: per crucem ad lucem (pela cruz à luz). Lá pelo capítulo XII, a observação/reflexão do protagonista sobre algo marcante e significativo, em sua existência: o fato de ter nascido e convivido, sempre, próximo à água (fluvial, marinha, lacustre), como numa conexão entre esse precioso líquido e a sua vida: “um oceano de lágrimas”. 110

O casamento de Neco, a morte Maria Sargenta (descrita por Neco e que contribui para a alegria e tranquilidade das noites no Barro Vermelho); a visita ao túmulo da mãe; a morte de D. Francisco (no dia do batizado do filho de Neco); meditações sobre a efemeridade da vida, a (in)certeza da morte, são outros episódios e assuntos que vão alongando a narrativa. Não podendo ausentar-se dos funerais do amigo, Pe. Eyder empreende outra viagem a São Luís. Por entre a multidão que se faz presente, na despedida de D. Francisco, chora inconsolável e medita sobre sua vida, agora sem o conforto do amigo. Retorna a Coroatá, portando consigo obras dos santos João da Cruz e Tereza d‟Ávila. Dom Francisco é sequenciado, primeiramente, por Dom Helvécio (que sai de São Luís sem conhecer o Pe. Eyder); depois, por Dom Otaviano – que consegue fazê-lo participar do retiro do clero (embora constrangido pelos olhares indiscretos a si dirigidos pelos colegas) e o reenvia para Viana. O regresso à paróquia de origem se dá pela linha férrea, no trem de Rosário a Viana. Percurso cumprido, a emoção da velha terra novamente à vista: a familiar Igreja, o antigo largo, a casa paroquial, já com suas evidentes marcas do tempo; a sincera acolhida de José (antigo secretário), uma certa consideração que ora lhe dispensa a população vianense, por conta de sua já avançada idade, a amizade com o prefeito – que o exorta a escrever suas memórias. E a vida continua a reservar-lhe outras instâncias dolorosas, que se vão acumulando, até o momento final, como: – a festa de Reis (1929), ocasião em que lamenta, do púlpito, que os paroquianos nunca rezam por seu vigário, de modo que não podem exigir um padre santo e virtuoso, sem nunca terem intercedido, por ele, em suas orações; – a morte do coronel Marcolino (em maio do mesmo ano), que o faz sofrer muito, por não ter sido chamado ou aceito para ministra-lhe a extrema-unção, tendo sido mesmo expulso, da porta da casa do falecido; – a contemplação solitária da lua e das estrelas, à beira do lago de Viana, as lágrimas vertidas, num desabafo; as lembranças de Viúva, a oferenda de suas dores, também por ela, na força da Comunhão dos Santos (dogma da Igreja Católica); – a interrupção de uma desobriga em Aquiri (agosto desse mesmo ano), por motivo de saúde, o retorno forçado a Viana, exigindo a presença de Neco, chamado às pressas... Enfim, o desfecho da obra (capítulo XV), prosseguindo, a narrativa, na voz de Neco, no relato dos últimos dias do irmão Eyder – já muito doente, magro e febril, tosse intermitente, dispneia (sintomas de tuberculose), a medicação sem efeito, de Seu Casemiro (farmacêutico), em meio ao fervor, à fidelidade às orações, nos três dias de sofrimento que culminam com a 111

sua morte – intervalo em que Eyder solicita ao irmão, que o assiste, providencie a queima dos seus escritos, guardados na gaveta da cômoda. Notas autobiográficas que Neco, após lê-las (contra a vontade do irmão, que só lhe autoriza a leitura, mediante muita insistência do outro), garante-lhe, enganosamente, tê-las queimado, num descumprimento ao que prometera ao moribundo. E a cena final, conclusiva (narrada por Neco), a configurar-se na madrugada de um novo, último dia. Na presença inexorável da “indesejada das gentes” (para lembrar Manuel Bandeira), sem um padre a ouvi-lo em confissão, a ministrar-lhe a extrema-unção, num esforço sobre-humano, Pe. Eyder levanta da cama, deixando a casa paroquial, cruzando o Largo, até a igreja, da qual abre a porta e adentra. Dirigindo-se ao altar, abre o tabernáculo, comunga as hóstias consagradas (restantes, da última eucaristia celebrada) e ali mesmo tomba, num último suspiro – sendo assim encontrado por Neco, pela manhã. Maria da Tempestade (1966) – estruturado em onze capítulos, identificados por datas (de 1907 a 1918), narrador homodiegético, em tempo histórico/psicológico, o enredo conta, numa sequência de eventos a transcorrerem linearmente, numa configuração cronológica, a situação dilemática de Bárbara Sena, jovem de personalidade forte e alma livre, encravada numa família conservadora. No contexto em evidência, a protagonista como que representa a força da mulher, na luta contra a rigidez e a opressão – de seus pais (Seu Godofredo e Dona Elisa), do sistema educacional, e da sociedade então vigente. Como os irmãos (Godofredo, Juarez, Fernando, Antonio Carlos e Lucas), na infância, vivera coagida, encerrada na própria casa (de janelas sempre fechadas), submissa à vontade absoluta dos pais, que a impediam de brincar, de se realizar como criança... ser feliz: “Nossa casa [...] era uma senzala rica [...]. Dentro dela, então, os móveis ouviam os nossos gemidos, as cortinas enxugavam as nossas lágrimas, os tapetes abafavam os nossos passos de oprimidos” (MOHANA, 1987, p.136). Não aceitando as intimidações da mãe, mais tarde da professora, no ambiente coercitivo do convento/internato (hoje, Colégio Santa Tereza – onde também pode construir sólidas amizades: Marfisa, Madre Consuelo e Pe. Tarjet (seu grande orientador) era, pois, uma menina revoltada e desiludida com aquele modo de viver. Ei-la que recorda: Mamãe foi comigo. Fez não sei quantas recomendações, pedidos, outras tantas ordens, “só pode sair quando eu mandar avisar, Madre”. “Todo cuidado é pouco”. “Qualquer novidade me comunique”. Isso abafava a alma e escurecia ainda mais a penumbra do parlatório (MOHANA, 1987, p. 9,17-18).

É a Bárbara adolescente, de 14 anos, cheia de vida, ansiosa por conhecer um novo mundo (que bem poderia ser o convento), otimista e esperançosa: “Meu Deus, confio que 112

passe a viver de hoje em diante. Ajudai a minha libertação, senão morro sufocada” (id. ibid. p. 18). Expectativas que não se concretizam, pois o convento lhe vem a ser como uma extensão do seu próprio lar. Modelo de educação repressiva, adotado pela sociedade maranhense da época, constituindo um dos pilares ideológicos a abalizar o modus vivendi no início do século: disciplina inflexível, severidade e sisudez, reflexo do estilo de vida e da educação familiar, que chocava a personagem em questão:

Época falsa, aquela [...]. Não nos deixavam usar a liberdade de cujo uso depende nosso merecimento ou nossa condenação final, nossa consciência. A consciência era a língua do povo, e tinha-se um medo enorme, quase pavor, desse objeto que nunca se via, porém se sentia, mais que tudo, o seu tremendo veneno (id. ibid., p. 23).

Ao completar os estudos e retornar para casa, ainda sofrendo as mesmas privações, mas já se sentindo mais apta a enfrentar a vida, mais decidida em seus ideais, depara-se com a família num clima instável de mudanças: Godofredo (satisfazendo as exigências da mãe), indo estudar medicina em São Paulo; Juarez (contrariando a vontade dos pais), casando-se com a irrequieta Carmem; o chefe da família (Seu Godofredo), queixando-se de um cansaço preocupante. Numa tarde de domingo, ao retornar de um passeio, em companhia da tia Zulmira, o encontro com Guilherme. Embaixo do oitizeiro, lá está ele; e num cruzamento de olhares, nasce uma amizade forte, um relacionamento amoroso, que se inicia à base de cartas (levadas pelo acendedor de lampiões), seguindo-se os poucos, furtivos e insatisfatórios encontros noturnos (logo surpreendidos por Nha-Du, uma das empregadas da casa). Rapaz pobre, mas honesto e trabalhador, ganhando pouco e ainda explorado pelo patrão, Guilherme revela-se o grande e verdadeiro amor de Bárbara – de quem está muito distante, em termos de status social e situação econômica – conquistando-lhe a admiração e o respeito, posto que, malgrado as diferenças socioeconômicas, espiritualmente os dois são iguais e se completam no amor que os fortalece. Além de todos esses impasses, entretanto, essa brava mulher tem que atravessar abismos, enfrentar verdadeiras tempestades, por seu amado – que, ao reivindicar um melhor salário e por tanto ser despedido, discutir com o ex-patrão, resultando numa inusitada e inesperada tragédia, da qual recai sobre ele toda a culpa, vem a ser preso, julgado e condenado a dez anos de reclusão. Enfrentando a tudo e a todos, ela não desiste do homem de sua vida e, por obra e graça do Padre Tarjet, casa-se com o amado na penitenciária, ali mesmo consumando-se (na cela em que Guilherme está preso) a mútua entrega: “Logo que a grade fez pesadamente tac, nós que já éramos um só pelo espírito, tornamo-nos um só pelo corpo” (id. 113

ibid. p. 222). Em consequência (e por intervenção dos Sena), o padre vai transferido para o sul do País. Bárbara, percebendo-se grávida, abandona a casa dos pais, indo recolher-se, primeiro, num orfanato, depois na casa de Cora Mendes (senhora já de uma certa idade, viciada em ópio, que mora sozinha, num sobrado já em avançado processo de deterioração). Na nova moradia, fica aguardando notícias de Guilherme. Enquanto isso, o estado de saúde do pai agrava-se e, com a ajuda do irmão Godofredo (seu amigo e conselheiro), volta para junto da família, a fim de cuidar do genitor enfermo, ao lado da mãe (que sequer a abençoa ou lhe dirige a palavra). De forma que, após a morte e enterro do pai, retorna para a casa de Dona Cora e, numa noite de tempestade, em meio a dores, sozinha e temerosa, vai ter com a amiga que lhe dá um calmante (em verdade, uma dose de morfina). O resultado é o parto prematuro da filha natimorta – enterrada no quintal, recebendo, da proprietária, o nome de Maria da Tempestade. Nunca poderei esquecer aquela madrugada de abril, 18 de abril de 1917. Os anos passaram e ela permanece, torturante, na lembrança, imensa, no vazio que deixou. A gente se acostuma [...] mas não esquece. – Maria Guilhermina não – Maria da Tempestade. Essa retificação de Cora Mendes arrepiou-me ( p. 231).

Alguns dias após, tomando ciência do vício de Cora, revoltada, mas compadecida (sem conseguir odiá-la, por ter provocado a morte de sua filha), Bárbara empenha-se, com muita persistência e determinação, em libertá-la desse mal. Já tendo conseguido um trabalho como professora, a jovem continua morando com a amiga, enfim curada, amenizando-lhe a solidão. O romance conclui-se, evidenciando uma Bárbara mais forte, determinada, ainda que um tanto quanto deprimida e sofrida, porém renovada, sempre esperançosa por notícias do marido (ainda por influência dos Sena, transferido para uma penitenciária do Sul), recorrendo às autoridades, em busca de seu novo destino: o governador, que recusa a ajudá-la e o Bispo, que lhe promete ajuda. E nesse prenúncio de boa nova, que a enche de alegria e esperança de reencontrar o amado, encerra-se Maria da Tempestade – epopeia de uma mulher à frente de seu tempo; retrato fiel de uma época marcada pelo conservadorismo, a exploração... Obra de sensibilidade, a transcender do meramente histórico e social, para impor-se como realização psicológica e artística – à medida que, narrada em primeira pessoa, incursiona pelo mundo interior das personagens, sobretudo da protagonista (Bárbara). No contexto histórico-social em abordagem, o confronto entre uma sociedade maranhense do início do século XX, ainda aristocrática, conservadora, assim transparente nos 114

signos ideológicos que então a caracterizam (sobretudo no tocante ao papel designado à mulher) e uma representante feminina resoluta e firme, em seus propósitos, pronta a lutar por seus direitos, reivindicando um espaço/emancipação subtraído às mulheres de sua época. Tema polêmico, sem dúvida, já prenunciado no título da obra, dotado de um referencial feminino, a inspirar a força, a rebeldia arquetípica, a determinação natural – elementos circunscritos no signo tempestade, que o identifica (pelo adjunto adnominal). Vale ressaltar, ainda, a aura de sagrado, de sincretismo religioso, a desprender-se do patronímico Bárbara, que remete à santa homônima – cultuada no catolicismo e no candomblé e popularmente conhecida e invocada como protetora, nas tempestades (tal é comum ouvir-se nessas circunstâncias: “Valei-me, Santa Bárbara!”). Maria da Tempestade, pode-se inferir, evidencia a problemática da emancipação feminina, como a polarizar as demais discussões patentes nas linhas e entrelinhas do texto. A mulher – em sua condição pseudoinferior – se faz o objeto central do interesse temático do romance. José Louzeiro (São Luís-Ma.,19.09.1932) – jornalista e repórter policial por mais de vinte anos, escritor e roteirista (autor de 51 livros e coautor de muitos roteiros para cinema). No jornalismo, inicia-se aos 16 anos, ainda na terra natal. Em 1954, migra para o Rio de Janeiro, para trabalhar na Revista da Semana, passando, a partir daí, pela redação de vários outros jornais e revistas (O Jornal, Manchete, Diário Carioca, Última Hora, Correio da Manhã, no Rio de Janeiro; Folha de São Paulo e Diário do Grande ABC, em São Paulo). Na literatura, estreia com Depois da luta (1958), livro de contos. Introdutor do romance-reportagem e maior representante desse gênero88 na Literatura Brasileira, foi repórter investigador de crimes dos mais escabrosos, posteriormente transformados e revelados em livros e filmes. Sempre atuante na reportagem policial, “batendo de frente” com o poder constituído, denunciando corrupções e abusos contra presos, defendendo os marginalizados, acusando os poderosos, chegou a sofrer, inúmeras vezes, ameaças de morte. Dentre os casos mais contundentes, transladados do jornalismo para a arte literária e cinematográfica, estão Pixote, a infância dos mortos e Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia 89, seguindo-se Aracelli meu amor – uma das grandes incógnitas, nos anais da polícia brasileira, outra obra derivada do jornalismo para a literatura, considerado de grande importância, no contexto em alusão. A história de Lúcio Flávio, bem como a de Aracelli, romanceadas por Louzeiro (das quais seguem-se um resumo e algumas breves considerações), enquadram-se no gênero

88 - criado pelo norte-americano Truman Capote (com A Sangue Frio-1966). 89 - ambos filmados por Hector Babenco (1977 e 1981), o último dos dois já reescrito, readaptado e reeditado pela Prumo, acrescido de mais três capítulos, omitidos na primeira edição, driblando a censura dos anos de chumbo – final dos anos 60 para a década de 70. 115

policialesco, estilo jornalístico-investigativo, característico dos anos setenta (século XX) – época em que, a censura à imprensa, o crescimento da tiragem dos jornais, o surgimento de uma imprensa alternativa (“imprensa nanica”), direta ou indiretamente, vêm a repercutir no texto literário, ocasionando, no âmbito da cultura/literatura brasileira, o surgimento de uma tipologia de discurso testemunhal, que anuncia um novo modo de relação entre os meios de comunicação (as mídias informativas) e a ficção literária. Vejamos: Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1977) – sobre o assaltante de bancos Lúcio Flávio Vilar Lyrio (1944-1975 – filho do ex-cabo eleitoral de Juscelino Kubtschek) que, à época do regime militar, quando da criação do hediondo Esquadrão da Morte (organização policial de combate ao crime – um grupo de extermínio), foi preso, torturado e morto a facadas, por um companheiro de cela (1975). A narrativa baseia-se no depoimento do marginal carioca (nos últimos instantes de sua vida) a um repórter policial, revelando, em minúcias, o por que de sua incursão no mundo do crime, numa trajetória marcada por assaltos perigosos e fugas mirabolantes, roubos a bancos... a delação dos comparsas (dentre estes, um policial que o acobertava, a troco de altas propinas). Tudo teria começado, segundo o próprio relator, no tempo da ditadura militar, quando, numa comemoração nupcial, íntima, sua casa fora invadida por policiais do DOPS, transformando-se o clima alegre e festivo da reunião familiar, em dissabores e constrangimentos: seu pai, tivera o rosto mergulhado em um bolo; sua mãe e ele próprio, ainda adolescente, foram vítimas de espancamento. O motivo? Mãos de ferro do regime militar à parte, seu pai, cabo eleitoral de Juscelino Kubitschek, negara-se a informar o paradeiro do amigo JK. Esse e ainda outros e outros fatos, levaram o jovem, aos 18 anos, a transformar-se no símbolo da “bandidagem carioca” – mito reforçado pela imprensa e confirmado pela boa retórica, a desenvoltura comunicativa do assaltante. O que fica todavia patente, no romance de Louzeiro, é que, refém de um sistema policial corrupto, o suposto mau caráter não passava de um pobre coitado, “isca” de uma organização criminosa que dele usurpava o produto dos roubos, sem correr quaisquer riscos. Para o escritor maranhense, Lúcio Flavio, de origem muito pobre, era, na verdade, um desenhista exímio, um rapaz sério e digno. O processo narrativo inicia-se com um assalto a um banco – numa cidadezinha interiorana, simultaneamente a uma ação policial, nos subúrbios do Rio de Janeiro, ao encalço de Lúcio Flávio, que vem a ser preso (após Mucuçu, integrante do bando), mas consegue fugir, sendo novamente preso e evadido, dessa vez para Belo Horizonte. E termina com o assassinato do protagonista (29.01.1975), por um companheiro de cela no presídio de Ilha Grande. 116

Aracelli, meu amor (1979) – obra de grande repercussão e sucesso continuado, tratando-se, também, da narrativa romanceada de um crime, até hoje não esclarecido e impune. Delito dos mais graves, que chocou e indignou todo o País e abalou a capital espírito-santense; um dos mais divulgados e comentados em âmbito nacional: o brutal assassinato (com sinais evidentes de tortura e abuso sexual) de Aracelli Cabrera Sanchez Crespo (Vitória- ES.02.06.1964), em 18 de maio de 1973 – data que, 27 anos mais tarde, com a criação da Lei N° 9.970 (sancionada pelo Congresso Nacional, em 17 de maio de 2000), vem marcar, aqui no Brasil, o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Desde então, entidades compromissadas na Defesa dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, empenham-se na conscientização da sociedade e das autoridades, no que respeita à gravidade dos crimes de violência sexual contra menores. Segunda filha do casal Gabriel Crespo e Lola Sanchez; menina bonita, cabelos e olhos negros e vivos, nove anos incompletos (mas muito desenvolvida para a idade), Aracelli era a “Princesa” do Papai – com quem residia, juntamente com a mãe e o irmão mais velho, Carlinhos, em Serra (cidade vizinha a Vitória, capital do Espírito Santo), em uma casa modesta, no bairro de Fátima, na Rua São Paulo (hoje Aracelli Cabrera Crespo). A menina costumava ir para a escola e dali voltar, diariamente, sem problemas, caminhando por uma extensa rua de terra batida, ladeada de vistosos arbustos, em suas flores coloridas. Um belo dia, não voltou para casa.

Vitória, sexta-feira, 18 de maio de 1973 [...]. Aracelli Cabrera Crespo sai do Colégio São Pedro, na Praia do Suá, vai para o ponto do ônibus, na esquina do Bar Resende, cadeiras de madeira pintadas de branco na calçada, uma banca de jornal em frente. É uma garota de nove anos, muito desenvolvida para a pouca idade, olhos negros e vivos, bonita na sua farda azul, blusa azul mais claro, as iniciais SP bordadas no bolso esquerdo. Ainda não são 17 horas (LOUZEIRO, 1976, p. 03).

A tônica testemunhal, que permeia toda o processo narrativo, já se faz denotar no primeiro capítulo da obra, nos elementos tempo e espaço, idealmente situados no discurso narrativo, bem como na descrição minuciosa da personagem e na situação conflituosa, sugerida na frase de abertura do capítulo: “um anjo espera pela justiça dos homens”. O enredo vai prosseguindo com a demora de Aracelli em chegar em casa, depois das aulas, a preocupação do pai que, julgando tratar-se de um sequestro, sai, no seu velho carro, à procura da filha, transitando pela casa dos amigos, recorrendo aos jornais, com fotografias da 117

menina, chegando, enfim, ao colégio – onde fica sabendo (pela professora) que, naquela sexta- feira (18 de maio de 1973), a garota saíra da escola muito antes do final das aulas 90. Do colégio, a menina dirigira-se a um determinado edifício, levando consigo um envelope, do qual ignorava o conteúdo – que, na verdade, era a droga enviada pela mãe a alguns dos seus fregueses, rapazes pertencentes a famílias importantes, da cidade. Ao chegar àquele macabro destino, os jovens a atacaram e assassinaram com “requintes de crueldade”: chutes e socos deslocaram-lhe o queixo; dentadas, laceraram-lhe os mamilos, a barriga e a vagina; além do estupro e da alta dose de LSD (à qual a garota não resistira) e da asfixia – tudo comprovado por uma testemunha ocular (Marisley Fernandes Muniz, ex-amante de um dos rapazes) e, tempos mais tarde, pelos exames periciais. Passados seis dias do sumiço da menina, seu cadáver foi encontrado num matagal, nos fundos do Hospital Jesus Menino. No corpo nu, queimado e desfigurado com ácido (para dificultar a identificação), as chagas do martírio, da crueldade, que a tornaram irreconhecível. Antes, teria mesmo sido guardado, por vários dias, num freezer, no bar de Jorge Michelini – possivelmente o destinatário da droga e cujo sobrinho, Dante, estaria envolvido no crime. Segundo o autor, o caso Aracelli levou à morte, não só algumas possíveis testemunhas, como outras pessoas empenhadas na denúncia e esclarecimento do crime. Ele próprio (José Louzeiro, que conservou, nas personagens, o nome real das pessoas envolvidas no caso), enquanto investigava e colhia depoimentos, visando à produção do seu livro, sofreu ameaças de morte. Ei-lo que informa em uma entrevista91:

O caso foi pesquisado durante anos. [...]. Idas e vindas a Vitória foram, no mínimo, quatro vezes. As visitas à cidade eram secretas, pois, a essa altura, eu já estava marcado para morrer pelos amiguinhos dos assassinos e isso só não aconteceu graças à cobertura que tivemos do perito criminal Asdrúbal de Lima Cabral, mais conhecido como Dudu. Sem a colaboração dele (arriscando a vida) seria impossível recolher o material que recolhi.

E quem foram esses algozes? Ao que tudo indica, os principais suspeitos eram filhos de famílias ricas, influentes e poderosas da localidade e, como tal, privilegiados com a negligência e corrupção da Polícia e da Justiça: Paulo Constanteen (Paulinho – filho de um grande latifundiário capixaba) e Dante Michelini Jùnior (Dantinho – herdeiro de um grande exportador de café), ambos notoriamente promotores de orgias (num apartamento chic, do edifício Apolo, no centro de Vitória-ES, mantido unicamente para esse fim), nas quais “rolava” muita droga, bebida alcoólica, violência sexual contra menores. Apontada como

90 - conforme pedido e orientação da própria mãe, supostamente envolvida com o tráfico e o fornecimento de drogas, que escrevera um bilhete à professora, pedindo-lhe que liberasse a filha mais cedo, naquela tarde. 91 - In: tribuna do norte.com. br 118

suspeita, foi também a própria mãe da vítima, Lola Sanchez (possível intermediária na rota Brasil/Bolívia, no tráfico de cocaína), que teria utilizado a filha como portadora (“mula”) da droga aos seus destinatários. O reconhecimento do cadáver da menina, pelo pai, se dá por um sinal de nascença. A certeza, porém, só é deveras confirmada num dia em que Gabriel Crespo leva consigo, ao Instituto Médico Legal (IML), o cãozinho Radar (amiguinho de Aracelli – assim denominado por ser capaz de localizá-la, onde quer que fosse), que ali chegado, dirige-se imediata e automaticamente à geladeira, passando a roçar com o focinho e a arranhar com as patinhas a gaveta em que se encontrava o corpo da menina – que ali ainda permaneceria por dois anos e meio, sendo posteriormente enviado para o Rio de Janeiro, para autópsia (onde e quando o perito Carlos Eboli constata a causa mortis por intoxicação exógena, por barbitúricos, seguida de asfixia mecânica por compressão) e enfim sepultado na sua cidade natal, em 1976. Malgrado as testemunhas da acusação, os dois jovens (Paulinho e Dantinho) foram absolvidos em um último julgamento, em 1991 (tendo, hoje, já prescrevido o crime). Segundo Louzeiro, mais de dez pessoas que poderiam contribuir no desvendamento do caso foram mortas – por exemplo, José Homero Dias (sargento) assassinado com um tiro nas costas, já em fase final das investigações. Ainda de acordo com o escritor, os acusados tornaram-se respeitáveis pais de família; senhores católicos, acima de toda e qualquer suspeita e seus familiares continuam donos do Espírito Santo, quase quatro décadas após o covarde assassinato que chocou o Brasil. Na obra de Louzeiro, pode-se inferir, o discurso literário se vai construindo à base do reaproveitamento de materiais informativos do mundo real (fatos, fenômenos, pessoas), como num processo dialógico/intersemiótico de criação por palimpsesto92: “... un parchemin dont on a gratté la première inscription pour en tracer une autre, qui ne la cache pas tout à fait, en sorte qu‟on peut y lire, par transparence, l‟ancian sous le nouveau”, como bem o define Genette (1982, contracapa), que ainda acrescenta: “On entendras donc, au figuré par palimpseste (plus litterairement: hypertextes), les oeuvres dérivées d‟une autre oeuvre antérieure, par transformation ou par imitation” (id. ibid). É a obra criada denotando vestígios de textos que a antecederam, como nos romances em alusão, em que se evidencia a migração do fato ou fenômeno real, do campo jornalístico, para o texto ficcional, nos seus reflexos da expressão típica da reportagem jornalística – entendida esta como relato, contendo um registro, num tom de testemunho e veracidade.

92 - no caso em alusão, percebe-se que o fato ou fenômeno real, migrou do campo jornalístico para o texto ficcional. 119

E aqui se pode falar em “dialogia intertextual”, processada em nível profundo e tenso, numa contaminação, da narrativa ficcional pelo texto jornalístico (o hipotexto) gerando uma espécie de “documento romanceado”, um hipertexto 93. A propósito da reportagem, definida por Vivaldi (1990), como um texto dual, encerrando um relato, ao mesmo tempo, informativo e narrativo, mais ou menos noticioso, contendo, portanto, aspectos duplamente inerentes às técnicas informativa e narrativa, pode-se observar, ainda a partir do autor citado, uma maior liberdade no apresentar da informação, na ordem do trabalho. Em Louzeiro, reiterando, pode-se reconhecer uma tônica geral da reportagem, desdobrando-se, esta, num processo de ampliação generalizada do texto este, por sua vez, resultando numa extensão temática e estilística, numa sobreposição de códigos – do jornalístico para o literário, numa, digamos, hipertrofia do nível ficcional. Ampliação narrativa que se caracteriza pela inserção de fatos alheios ao assunto inicial; expansão temática que se dá pela extensão dos detalhes, pelas descrições, pela multiplicação dos episódios e das personagens e ainda pela dramatização das aventuras (GENETTE 1982). É de se notar, ainda na obra de Louzeiro, toda uma prodigalidade de geração de sentidos, a partir de um enfoque narrativo a projetar cosmovisões diversificadas (a oficial, da parte das autoridades; a dos perseguidos, dentre outras), numa crítica à ideologia dos grupos sociais da época. Padre Brandt de Arari – Colinas-Ma. (22.11.1917/Arari-Ma.22.04.1988) ou como diz o escritor e pesquisador arariense João Francisco Batalha (2005, p. 193), do “Pucumã, hoje São Domingos do Maranhão, antes interior de Colinas, quando esta ainda era Conceição dos Picos”. Clodomir Brandt e Silva, sacerdote, educador e professor; jornalista, escritor; pesquisador; historiador, político e orador vibrante, foi o quinto dos nove irmãos, filhos do casal Carolina Brandt (descendente de alemães) e Sebastião Gonçalves Silva (mulato, natural de Pastos Bons, oriundo de uma família ruralista). Em 1944, foi nomeado pároco de Arari. E foram mais de 50 anos de dedicação ao ministério sacerdotal e a empreendimentos sociais, culturais e educacionais, naquela cidade, onde faleceu aos 71 anos. Como escritor, Pe. Brandt iniciou pelo jornalismo, passando deste para o ensaio, com os Escritos Sem Ordem (em seis séries de cunho teológico, por vezes memorialista, ou teórico-literário), incursionando pela pesquisa histórica, com os levantamentos sobre as Famílias Ararienses, transitando destes para os Assuntos Ararienses I e II e daí para a prosa de ficção, com os romances: Folha Miúda, minha dor; Os Caminhos de Silvânia; Arnaldo; Luzia dos Olhos dos Verdes, revelando-se, também, na dramaturgia, com a peça teatral A Semente que cresceu entre Espinhos.

93 - texto gerado de um outro texto anterior (GENETTE, 1982). 120

Apreciemo-lo, como romancistas, na síntese do enredo de cada uma das obras referidas, em cujos aspectos linguísticos e estilísticos, transparecem o modo de ser, de dizer e de viver característico da região em que atuou como pároco e educador. Folha miúda, minha dor (1978) – descortina a saga de João, homem honesto, bom esposo e bom pai, lavrador de profissão, vida modesta, mas feliz, no lugarejo Folha Miúda, com os filhos e a esposa Rita (então grávida, já de um terceiro rebento). Até que, um dia, chega, por aqueles arredores, Dico Lopes, “pau mandado” de Zeca Pereira (vereador do partido do prefeito), dizendo-se encarregado daquelas terras, ameaçando os humildes roceiros, exigindo-lhes pagamento de foros, sob pena de serem banidos dali) que, juntamente com seus capangas, surpreende e domina o indefeso lavrador, que passa quatro dias encarcerado – tempo suficiente para pôr em risco a vida de sua esposa, que não resiste, ao ver o marido ser levado para a prisão e morre pós-parto. João não desiste da sua luta de pai de família responsável e a roça continua a produzir, generosamente, legumes e frutas. Dico Lopes volta a investir, com intenções homicidas, contra o pobre homem do campo que, dessa vez, atento e preparado, mata, em legítima defesa, o inimigo, refugiando-se no vizinho Estado do Pará, deixando os filhos sob os cuidados de Noca, com quem se casará mais tarde – quando volta para buscá-los, todos, e construir, ao lado da nova mulher, uma nova vida e uma nova história. Os caminhos de Silvânia (1979) – aqui, é uma menina pobre, do interior, sempre muito viva e precocemente sedutora, a protagonista da obra: Silvânia que, aos 14 anos, envolve-se com um homem recém-casado e prestes a ser pai – Geraldo, em companhia do qual ela foge para Belém do Pará, onde os dois conseguem viver “felizes”, por algum tempo, até que o companheiro a surpreende em atitudes suspeitamente claras de adultério e a abandona, em situação de penúria. Só e desamparada, a moça vê, como única opção de sobrevivência, o cabaré “Mundo Azul”, onde passa a viver como prostituta, “mulher da vida”, submetendo-se a todo tipo de baixezas, chegando às drogas. O calvário de amarguras sofridas, as muitas humilhações e lágrimas vertidas levam-na a uma reflexão e autoanálise. Arrependida, a jovem está disposta a encontrar “uma luz no fim do túnel”. Assim é que, num dia em que perambula, vestida em trapos, pelas calçadas de Belém do Pará, depara-se com um padre a quem conta, chorando, a sua desdita. Piedoso, o clérigo a encaminha a duas freiras missionárias, que desenvolvem um trabalho humano e cristão em prol das mulheres vítimas da prostituição e que se dispõem a ajudar a perdida jovem a reconstruir a sua vida. Recuperada, Silvania retorna para casa, obtém o perdão de seus pais e encontra o caminho da redenção. Arnaldo (1980) – o protagonista homônimo desta obra (Naldo, como é chamado em família), é um menino simples, puro e encantador, que passa toda a sua infância no meio rural, 121

numa rotina que consiste em ir, diariamente, à casa dos avós, pedir-lhes a bênção, ouvir histórias e queixar-se dos maus tratos, das injustiças e atrocidades (que presencia), impingidas por seu pai (herdeiro de um grande latifúndio) contra os empregados e os pobres lavradores que cultivam aquelas terras. Aos doze anos, ainda sem saber ler, Arnaldo é surpreendido com a visita da tia e da irmã, das quais ouve, deslumbrado, a leitura de livros ilustrados e revistas em quadrinhos. Depois de muita conversa, seus pais permitem que a tia Aldenora o leve, também, para estudar na cidade. Emocionado, ele então se despede do campo e dos avós. Na escola, bem recebido, que foi, na classe dos alunos de “idade avançada”, para a alfabetização, vem a ser bem sucedido, nos primeiros anos. Até que, sob os maus influxos de Pedro Rato, entra num processo gradativo de corrupção moral, indo até às últimas consequências, envolvendo-se em assaltos e em tráfico de drogas, ele mesmo viciando-se, tornando-se agressivo e violento, por força da companhia inseparável de maus e perigosos elementos. Enfim, separado do nocivo Pedro Rato (ambos agora na prisão, em celas separadas, os pais já falecidos), por intervenção do Padre Jacinto, o jovem, aos poucos, se vai convertendo, até que, conquistando a liberdade, volta para a terra natal – Morada Nova, onde reúne todos os empregados e lavradores, divide e distribui a terra entre todos, liberando-os do pagamento dos foros, para alegria geral. O desfecho de todo o enredo se dá com o casamento de Arnaldo e Totonha, celebrado pelo Padre Jacinto, em uma paróquia da capital maranhense. Luzia dos olhos verdes (1987) – apontado pelos leitores do Pe. Brandt, como a mais importante e apreciada de sua obras, assim merecendo, nesta oportunidade, um pouco mais que um resumo. Enredo alinear, perpassado por flash-backs, trata-se da história de Luzia que, ainda criança, muda-se com os pais, de Esperança, onde nascera, para a distante Joselândia, dali voltando para a terra de origem, somente aos 50 anos de idade, para viver os seus últimos dias. Luzia, que desde cedo revelara-se vocacionada e talentosa para o trabalho missionário, sendo indicada como catequista, ainda jovenzinha, tendo em Joselândia o palco de suas grandes emoções, deixa escrito, a lápis e em folhas de caderno, o registro de sua passagem por este mundo – espécie de testamento, em que estabelece o destino dos bens amealhados em vida: ao Pe. João, deixa uma caixa hermética, de madeira, que guardara sempre com esmerado cuidado e que, juntamente com a chave, fora entregue ao sacerdote, após o seu sepultamento (de Luzia), “numa tarde de grande tristeza em Esperança”. Na caixa, estão os escritos/registros das grandes emoções, dos momentos inesquecíveis de sua vida, nas entrelinhas das folhas dos antigos cadernos escolares, que o padre vai puxando, aleatoriamente, e lendo, entre uma missão pastoral e outra, e assim conhecendo a alma sublime daquela excelsa mulher. 122

No romance em questão, o que mais envolve e deleita o leitor, no processo de leiturização é, além da organização do enredo narrativo, a maneira como a voz enunciativa (melhor dizendo, as vozes) conta(m) a história, através da técnica do palimpsesto (utilizada pelo autor, na simulação de um hipotexto gerador de um hipertexto) e do flash back, numa intersecção passado/presente, numa alternância de focos narrativos de primeira (na voz de Pe. João ou da própria protagonista, nos seus registros cotidianos, pessoais, nos espaços ou entrelinhas das folhas dos cadernos escolares) e terceira pessoa (numa onisciência narrativa, de quem conhece tudo sobre a história e as personagens) – a linguagem com que o autor ressignifica a realidade contextual, ali transposta, numa autenticidade que se faz expressar/reconhecer na fala das personagens que manipulam as ações e numa dicção configurativa da Baixada Maranhense – no modo de ser, de dizer, de fazer e de viver daquele povo. E aqui podemos falar num regionalismo maranhense, de conotação rural, característico do contexto espaciotemporal ficcionado na obra, como o podem atestar, em síntese, os excertos que se seguem: – Seu Chico, quem morreu? – Foi o Mundico de Mano, que isticou as canela (p. 05). [...]. – Foi uma briga dos inferno [...] ele deu agora pra sê rapariguero e Juana se danou quando soube que o marido tava no Ki-lanche com a Nonoca. [...]. – Ora quem é! É aquela sujeitinha que foi trazida pra cá [...] pelo Celino Pioí [...] ... não quis mais sabê dela porque a tipa dava confiança pra todo bicho e andava com tudo que era macho. Agora o Silvino, que parecia até sê boa bisca e que até muito vinha à igreja, ficou doido por ela. Coitada da cumade Juana! Mas não foi mole não. – E como foi que ela soube do xodó? – falou o padre com certa ironia. – Xodó, não padre; uma grande poca vergonha, uma patifaria. Gostei de vê a atitude da Juana: botou o marido pra fora de casa com cabo de vassora [...] (pp. 22-23). [...].

– Seu padre, eu não sei não. Só sei que ele tá muito acabado, com uma disenteria danada e um cansaço que faz dó. Dize qu‟inda non morreu porque tá esperando confissão. Os mais velho dize que quem é devoto do Ofício de Nossa Sinhora, só morre depois de se confessá (p. 69). [...] – Ich! Nas Macaúbas é muito longe! (p. 71)

Pelo acima exposto, ilustrado nos fragmentos excertos da obra em tela, podemos inferir: o romance em questão, ao retratar, na linguagem em que traduz a história de Luzia dos olhos verdes, a fala característica do povo maranhense, por excelência o da Baixada (concentrado em municípios como Arari, Vitória do Mearim, Viana, Matinha, Pinheiro, São Bento...), aproxima-se, por esse viés, da estética modernista, sobretudo da considerada terceira geração do modernismo brasileiro, própria dos romances de 45 ou pós 45 do século XX da nossa literatura. Por outro lado, por se tratar de um enredo com foco narrativo, também, de primeira 123

pessoa, com lances introspectivos, primando pelo tempo/espaço psicológicos, podemos vislumbrar, ao longo do percurso narrativo, ainda, traços característicos do convencionado romance introspectivo (anos 60), em clima intimista (à Clarice Lispector), da corrente modernista, em sua considerada última fase. Pode-se aventar que Luzia dos Olhos Verdes, bem como os demais romances do autor em foco, ergue-se numa temática social (de cunho ideológico/religioso/doutrinário), refletindo aspectos regionais do contexto histórico, sociocultural e religioso que textualiza, seja nos cenários e paisagens interioranas do Estado; seja no retratar dos costumes, na construção dos diálogos, na projeção do jeito de ser do maranhense daquele respectivo tempo e espaço. Condensada nos quatro romances supra resumidos e apresentando sempre: “temática social, caráter regional, conotação doutrinária” (FERNANDES, 1998), da ficção romanesca do Pe. Brandt de Arari, pode-se dizer, com suas ex-alunas e educandas, (zeladoras/conservadoras do espólio cultural do educador ao povo arariense), Tonica Pereira, Domingas, Rosário, Creuzinha e Emiliana Rosa94: “são todas obras inspiradas nas experiências de vida do Padre, em sua intensa atividade catequética e pastoral, suas desobrigas pelos muitos povoados desta região, sua grande empatia para com os seus paroquianos, para com o povo humilde e sofredor destes confins” – tal se pode constatar, sobretudo, em Folha Miúda e Arnaldo – que põem em cena as injustiças sociais impostas aos camponeses, expulsos do meio rural por força do latifúndio opressor. Ao lado de João Mohana (sacerdote, médico, psicólogo e escritor), Pe. Brandt compõe a dupla dos padres romancistas maranhenses, sendo considerado, segundo Batalha (2005, p.16), “o maior escritor vivido em terra meariense, pela quantidade de obras que publicou em território arariense” impressa e editada, a bem dizer, artesanalmente, pela Gráfica e Editora Notícias, de Arari. Odylo Costa, filho (SL-Ma.-14.12.1914/Rio de Janeiro-RJ-19.10.1979) – poeta, jornalista, cronista, contista, romancista, escritor nordestino, por excelência, e como tal fiel a sua terra, num regionalismo que permeia toda a sua poesia: Cantiga Incompleta (1979); Boca da Noite (1971); Notícias de Amor (1976) para consubstanciar-se, mais acentuadamente, em sua prosa de ficção, no flagrar de tipos humanos seus contemporâneos, em suas interações com o meio, a linguagem, a paisagem, a cultura. Odylo Costa, filho é romancista de uma única produção no gênero: A Faca e o Rio, “bela tragédia sertaneja”, na acepção de Raquel de Queirós (apud SARNEY, 1990, p. 31). Uma das mais notáveis e admiráveis da literatura nacional, sobre a qual se pronunciaram brasileiros e portugueses,

94 - em entrevista coletiva (17.12.2012), no Memorial Pe. Brandt, na cidade de Arari-Ma. 124

quando do seu primeiro lançamento. O mestre Gilberto Amado, por exemplo, num bilhete enviado ao autor, diz: “Li de um fôlego e estou sem fôlego. Não tenho epítetos. Extraordinário, perfeito, não dizem bastante. Só conversando” (orelha da obra – edição Mobral-1974). Para Moniz Aragão (prefácio da obra, em edição portuguesa), trata-se do livro glorioso do autor, sua consagração plena, na ficção literária, marco de vitória para os 50 anos (1964) do poeta/escritor. Obra que, traduzida para o inglês (por Laurence Keets, da Universidade de Leeds); e para o alemão (por Curt Meyer Clason), chegou a incursionar pelo cinema, filme aplaudido que foi, na versão de George Shuizier. A Faca e o rio (1965) – dividido em capítulos, subdivididos, estes, por assuntos, em trechos numerados, foco narrativo híbrido (primeira e terceira pessoa), iniciando-se em flash- back, gestado e narrado em tempo psicológico (nas reminiscências do autor que vai transpondo-a, de memória, ao espaço literário), este único representante da prosa romanesca odyliana vem a lume na temática da paixão e morte. Mas, contrariamente aos acordes da sua lírica, sem a glória da Ressurreição. A paixão de um ancião por uma adolescente, bela e submissa, chegando ao seu termo na fatalidade das tragédias gregas. A morte paira no ar e brilha sinistra, na lâmina afiada, na mão assassina. Trazida pelo ciúme, vem traiçoeira, implacável, destruidora. É o fim do (antes, aparentemente, tão pitoresco) idílio entre João e Maria. Aliado à criatividade ingênita do autor, compõe o enredo o somatório das experiências por este vivenciadas na infância e que a memória vai gravando e arquivando nos arcanos do subconsciente. Assim, tem destaque, na trama narrativa, o protótipo do caipira nordestino, o ingênuo e vaidoso “novo-rico”, que volta da Amazônia (o “inferno verde”) para o Nordeste, a impactar os conterrâneos na nova situação. João da Grécia é um desses “heróis”. Protagonista de uma aventura na Amazônia é, ao mesmo tempo, antagonista de uma (des)ventura pelo rio, sobre cujo leito vai seguindo, levado pela correnteza oscilante e contraditória da vida. A narrativa se vai processando com a naturalidade própria da história e dos tipos que a vivenciaram, em toda a autenticidade característica da região e da época que lhe deu origem. Pode-se dizer, é a alma do Nordeste a se encarnar na obra de Odylo, fruto agreste de uma vivência/convivência com o meio, que tão bem soube ir moldando seus tipos característicos, esculpi-los, a sua imagem e semelhança, imprimir-lhes os signos de autênticos caboclos da região, magistralmente transpostos para a Literatura, decalcados do natural. Caráter acentuadamente pictórico, a Faca vai recortando, retraçando o colorido, captando e expressando/revelando a exuberante paisagem nordestina, que compõe o ambiente 125

físico onde se desenrola toda a ação protagonizada pelas personagens, na trama. Dessa maneira, é que os eventos não acontecem em cenário único. Grande e variado é o Nordeste! Tudo tem início em São Francisco, cidadezinha do interior “piauiense”, às margens maranhenses do rio Parnaíba (onde João se casa com Maria); depois, o sítio, em Humaitá (onde Deodato é chicoteado pelo pai de criação, por ciúmes de Maria). Ora é São Luís, “cidade das ladeiras povoadas de sobradões, azulejos e telhados velhos” (p. 64). Ora é a floresta amazônica, onde o herói chora saudoso, no aboio magoado. Um navio, um cabaré... Um trem, um mercado em Teresina... Uma loja – onde João compra a faca ameaçadora. E o rio, o grande rio, cenário líquido, sobre o qual desliza, mansamente, a história, arrastando as personagens, no curso da tragédia. Uma lancha – onde o esposo desvelado salva a esposa vitimada de sezão. Um batelão – onde a esposa, olhos de esperança, recebe do esposo o vinho doce de cajás com leite. O porto, a correnteza do rio – convite irresistível ao banho promissor e divertido do casal. A ermida solitária, no caminho, onde Maria faz a sua confissão, enquanto vai seguindo, submissa, para o “matadouro”, tangida pelo seu vaqueiro. O areal. As grutas por onde corre a “Água Azul” (p. 175), que batizou o espaço que antepara o clímax da tensão dramática da história: onde a heroína, coração ferido, expira, sem nenhum gemido: “escancara apenas os olhos como se fosse engolir o mundo” (p. 176). Tudo é cenário a guarnecer o ambiente – o Nordeste Oriental, em todas as peculiaridades da região. A ação lenta, quase estática, a deslizar, passo a passo, no espaço, no compasso do rio (rápida, só quando para trazer a morte e ferir sem dor), vai preenchendo o ambiente físico, em tempo normalmente cronológico. Só nos pensamentos de João, o tempo e o espaço psicológicos – e Maria os ocupa por inteiro, nos devaneios do “herói”, quando em aventura pela Amazônia. Um breve resumo da obra: Velho e solitário, João da Grécia resolve casar-se novamente, após vinte anos de viuvez. A noiva é Maria – jovem cabocla de apenas vinte anos. João a conhece desde bebezinha. O juiz, amigo a quem vai participar o intento, argumenta sobre a idade do noivo em relação à beleza e juventude da noiva: “[...]. Você soma os meus anos e os dela, está se ariscando muito” (p. 38). Este, impetuoso, contrapõe-se: “Doutor, não calçando perneira nem metendo gibão não vou caçar boi no campo. Ou compro poldro novo ou cavalo velho não compro. Fui casado com mulher velha, se agora fizesse o mesmo, estava mal. Tiro um espinho, boto outro. Tirei? Tirei não” (p. 38). Casam-se. Maria não quer viver na roça. João abre, na feira, uma barraca de garapeiro e decide ir morar na cidade, mas só por uns tempos: “Maria é muito moça, aqui tem muita festa” 126

(p. 41) – explica. Com o dinheiro das onças que matou, mais o que apurou na garapeira, compra (do juiz) uma propriedade distante, muito longe... além do rio, para onde se muda com a esposa. Dois anos de casados e não vêm os filhos aspirados. Chegam até a ir, juntos, a São Raimundo dos Mulunduns, pedir a graça da fertilidade, sem êxito. Não sabem mais o que fazer. João comenta com o juiz: “É, já que o filho não vem, ao menos uma compensação vou dar a Maria. Vai ter vida de moça rica” (p. 60). Para tanto, se vai, com destino à Amazônia. Lá chegado, diz: “Vim só enricar” (p. 69). Rico, volta a sua terra, depois de cinco anos. Cheio de presentes para Maria – que deixara em casa, no sítio, em Humaitá, e ali supunha e queria, mesmo, reencontrá-la, esperando-o. Contrariamente a esse seu desejo, ela está morando com a mãe e tendo, sempre ao seu lado, inseparável, uma garotinha. A sogra explica: “Essa menina tem sido o consolo dela. Você se lembra da Luísa? Fugiu de casa, deixou essa menina, Maria está criando; se pegou com ela” (p. 92). João finge que acredita. Desconfiado, sente-se traído. Voltam para casa, seguindo o leito do rio. Antes, porém, João comprara uma faca especial – prata e aço – e mostrara-a, a Maria, dizendo: “Esta faca é pra te matar” (p. 94). Maria ouve, intimamente perturbada, mas permanece em silêncio, na dúvida. Estará seu marido falando sério?... Realizará, mesmo, João da Grécia, esse pavoroso intento?... Mata-a – em pleno idílio, sobre a areia do caminho. Fere-lhe o peito e a doce entrega cheia de esperança. Sem voltar-se para trás, caminha dez léguas selva a dentro, noite afora. Vai entregar-se ao juiz. Cumpre vinte anos de prisão. Um dia, discute com um outro preso, seu companheiro de cela. Este puxara o nome da finada – sacramento de João. Parte para cima do outro, com fúria mortal. É questão de vida ou morte e o companheiro, para não morrer, mata: João. A faca vaza-lhe os intestinos, cumprindo a profecia do provérbio: “quem com o ferro fere, com o mesmo ferro será ferido” (Mt. 26:52; Ap. 13:10). Antes de expirar, o moribundo expressa um último desejo: ser enterrado com decência, ao lado de Maria, “em chão de Deus” (p. 181), sob uma pedra e uma cruz. Linguagem simples, natural, traduzindo a sobriedade e o admirável poder de síntese de um escritor disciplinado e elegante, a expressar-se na linearidade de um estilo marcado por frases curtas e incisivas, descrições breves, mas de grande vigor sugestivo, oportunizando ao leitor a recriação do ambiente e das cenas elípticas, no poder de captação das imagens, no resgate memorialístico... é a voz do Nordeste a ressoar nos acordes da ficção romanesca odyliana. 127

Estritamente fiel ao Nordeste e aos seus tipos humanos característicos, o maranhense consegue refletir, no espelho narrativo, ambiente e personagens, na mais fidedigna autenticidade. Paisagens, costumes, gestos, linguagem, modo de dizer, tudo tipicamente nordestinos. Assim é que, seja nas situações coloquiais; seja no desenrolar do enredo, narrador e personagens são traduzidos num estilo e numa linguagem genuína da região em destaque. Toda a história, pode-se aventar, é comunicada num autêntico regionalismo nordestino. Obra de magnífico efeito literário e grande força de concepção, não poderia situar-se em outro plano que não o do Regionalismo, que tanto tem frutificado, primorosamente, na Literatura Brasileira Contemporânea. Enfocando, além da problemática João e Maria – causada pelo amor às avessas – o problema da injustiça social, que tanto aflige o caboclo do Nordeste, o homem do campo, em todos os tempos e espaços, consegue ser, ao mesmo tempo: atual, regional, universal. E é nesse regionalismo atemporal, transcendental, da sua mensagem, que Odylo pode ser considerado épico e moderno. Bernardo Coelho de Almeida (São Bernardo-Ma.13.06.1927/São Paulo-SP.04.08.1996) – escritor, poeta, jornalista cronista e romancista. Egresso de sua terra natal, em 1938, aos onze anos, entra no Seminário Episcopal de Santo Antônio (S. Luís-Ma.), transferindo-se mais tarde para o Colégio dos Irmãos Maristas, concluindo o secundário no Liceu Maranhense. No jornalismo, começa no Jornal do Povo, passando por outros órgãos da Imprensa local, como Jornal Pequeno, O Estado do Maranhão, O Imparcial – neste último, mantendo, semanalmente, a crônica Ponto de Prosa – sempre lida, ao meio-dia, no programa Difusora Opina, da Rádio Difusora do Maranhão (da qual foi diretor administrativo, por anos, e depois da TV Difusora). Gerenciou também a Tipografia São José (1955). No Rio de Janeiro e em Volta Redonda, trabalhou na Companhia Siderúrgica Nacional. De volta a São Luís, integra a campanha política das Oposições Coligadas – deputado estadual em três legislaturas, destacando-se por sua eloquência na tribuna. Adido Cultural na Embaixada do Brasil, no Peru, foi professor do Centro de Estudos Brasileiros de Lima. Presidente da Fundação Cultural do Maranhão; subchefe do Gabinete Civil do Governo João Castelo; membro do Conselho de Contas dos Municípios e da Academia Maranhense de Letras – participante ativo de todos os movimentos literários de sua época, em São Luís, e como tal, fundador da Revista Legenda. Sempre dividido entre o jornalismo e a política, estreia na literatura como poeta, enveredando, depois, pela ficção romanesca. É autor de: Luz! Mais Luz! e A gênese do Azul (poesia); Galeria e Éramos Felizes e não sabíamos (crônicas); A Última Promessa e O Bequimão (romance). A Última Promessa (1968) – romance “genuinamente maranhense” – a dinâmica das personagens seguindo o ritmo do cotidiano sanluisense e ao longo das páginas desfilando, 128

“ante nossos olhos fascinados pela capacidade descritiva de Bernardo Almeida, o casario colonial, que enriquece o patrimônio histórico e sentimental da cidade, com seus bairros e becos famosos [...]”, como bem o diz Jomar Moraes (In: ALMEIDA, 1968, aba esquerda da obra). Uma “estória repleta de humanidade, com visíveis sinais de inserção à mais moderna ficção que quer trazer à tona, sem véus, todo o complexo das relações humanas do considerado submundo” (CRUZ, In: ALMEIDA, 1968, aba esquerda da obra); uma narrativa “que abre um hiato entre duas pessoas que se amam e se obrigam, pela separação, a uma tomada de posição que transcende ao simples diálogo convencional” (id. Ibid.). Narrada em primeira pessoa, em duas vozes, alternadamente, capítulo a capítulo, sob o ponto de vista de cada um dos protagonistas, é obra em que o autor como que dá vasão ao seu mundo interior, rico em experiências vivenciais, que só o romance, em sua ampla dimensionalidade, poderia traduzir, num enredo emocionante, que traz à cena literária o drama de um casal que, mesmo se amando, não podendo viver um sem o outro, acaba separando-se, por conta do grande vilão da história: o alcoolismo do marido. Rômulo e Norma, marido e mulher – ele, advogado e jornalista; ela, funcionária pública. Bons pais de família, pessoas sensíveis, dignas e poder-se-ia até dizer felizes – não fora o vício daquele que, em contato com a bebida, mesmo entre amigos, no bar, ficava embriagado, assim perdendo a noção das coisas, principalmente do tempo, chegando a passar dias fora de casa, dormindo em quartos de pensão, envolvendo-se com prostitutas, até voltar à consciência normal. Sempre deixando a esposa sobressaltada, conforme a perspectiva da voz feminina. Ouçamos: Quando Rômulo saía para o trabalho eu nunca poderia ter a certeza se ele voltava, se viria almoçar ou jantar ou dormir em casa. Minha ansiedade se transformava num martírio. E não vinha de pouco tempo. Sofro há quatorze anos. Dez dias após nosso casamento, logo ao voltarmos da lua-de-mel em Fortaleza, Rômulo passou sua primeira noite fora de casa. Reapareceu no dia seguinte com a primeira desculpa, transformada depois numa série de mentiras, de plantões no jornal. Desde então o fato se repete. Quando muito deixou de beber durante três meses após cada última promessa (p. 18-19).

E agora, a perspectiva da voz masculina, também em tempo psicólogo, num fluxo de consciência: [...] nasceu nosso primeiro filho, uma menina que recebeu o nome de Brígida e que morreu aos dois anos de idade, atropelada por um carro que passava quando ela atravessou a rua e eu fiquei na quitanda bebendo. Só falto enlouquecer quando me lembro daquela tragédia, de meu desespero, de meus gritos de dor, de Norma querendo consolar-me, a dizer que eu não fora culpado, embora seus olhos fossem cruéis e acusadores. Eu sei, ela sabe, todos disseram que a culpa foi minha. Se eu não me demorasse a beber na quitanda, se tivesse ao menos segurado a mão da menina, esta não teria atravessado a rua e sido atropelada pelo carro que passava. 129

O Motorista fugiu apavorado. Dizem que jurei matá-lo. Dias depois, resolvi ir à casa dele para dizer-lhe que não se preocupasse: eu fora o único culpado de tudo. A mim é que nunca perdoaria, certo de minha irresponsabilidade, para sofrer pelo resto da vida o remorso que sinto quando passo por essa rua maldita. Foi ali no pé da ladeira que juntei minha filhinha de cabeça esmagada, que lhe beijei o rosto disforme, os cabelos ensopados de sangue, pedindo a Deus que a terra afundasse comigo. Eu me lembrava de tudo como se o tempo retrocedesse implacável. [...]. Comecei a chorar, Doía-me o mundo inteiro [...]. Entretanto só me restava sufocar os soluços e sofrer ainda mais, pois não poderia bater à porta e cair de joelhos aos pés de Norma pedindo-lhe perdão, fazendo-lhe minha última promessa mesmo certo de ainda não poder cumpri-la (id. ibid., p.30 a 32).

E mais um quadro rememorativo/avaliativo, do monólogo interior (em estilo confidencial narrador/leitor) ao diálogo, no processo comunicativo eu/outro (marido e mulher): Com as mãos vacilantes, apertei o rosto e os músculos dos braços para localizar dores resultantes de luta corporal. Concluí que não brigara. Teria me comportado como daquelas vezes em que o álcool me dava um estado de torpor, tornando-me a vista embaçada, a língua grossa, pesada. Em casa, ao acordar assim pela madrugada, não conseguia mais dormir. Ficava a fazer-me perguntas, querendo saber o que fizera durante a embriaguez. Em casa, eu pensava nas desculpas que devia dar a Norma, nas mentiras a contar, no medo e na humilhação de enfrentá-la pela manhã, no olhar atravessado dos meninos, na falta de ânimo para o trabalho, na dor de cabeça provocada pela ressaca. Mas eu não estava em casa, embora fosse assim mesmo o homem mais feliz do mundo se lá estivesse, e não naquele quarto a um passo da loucura. – Rômulo, isto não se faz! Eu me revirava na cama à primeira investida de Norma. – Saíste de casa há três dias... Onde estiveste todo esse tempo? Não sabia como responder, faltava-me coragem, apenas murmurava: – Depois, Norma... – Já pensaste no que sofro, na minha preocupação, no receio que tenho que te aconteça algum mal? Meus músculos se retesavam. Eu desejava estar morto. – Telefonei para o Casino, bar do Hotel Central, Moto, pra toda parte. Ninguém me deu notícias de ti. Não costumo beber em lugares muito frequentados, exceto no começo da farra. Depois, escapulo para o subúrbio, para a ”zona”. – Fala, Rômulo, onde estiveste?... – Norma, pelo amor de Deus, depois!... – Não sou contra que tu bebas, mas não assim, dois, três dias por aí, em lugares perigosos, sem dar sinal de vida, sem pensar em mim, nos teus filhos... – Perdoa, Norma! – Os meninos estão, começam a entender certas coisas, a ser atingidos por teu mau exemplo. Não te peço por mim, pois não me amas, porém por teus filhos. Acaba com isso! [...]. Norma falava até cansar-me. – Espero que tenha sido a última vez – dizia todas as vezes. E nunca julguei que sua paciência se esgotasse; não acreditei que fosse verdade quando ela m disse: – Estou falando sério. Da próxima vez nos separaremos. (p. 84 a 86)

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Promessa cumprida. Rômulo é posto para fora de casa. Os dois se separam. Seguem-se as ruminações dolorosas, com o remorso aflorando de ambos os corações. Entre as saudades do marido e o receio de sofrer preconceitos, por ser agora uma mulher separada, Norma percebe-se grávida. Rômulo, envolto no seu complexo de culpa, nos momentos de lucidez, sente falta da mulher e dos filhos, preocupa-se com a família. Os dias vão passando, lentamente, no correr do tempo. Em uma semana, que parece um século, o processo autoavaliativo, talvez melhor dizendo, o exame de consciência do casal se vai aprofundando e ambos, isoladamente, têm a ideia de irem aconselhar-se com o padre Regis (Igreja do Carmo), em confissão. No capítulo XVI, Norma relata, num fluxo de consciência, o seu encontro no confessionário com o referido padre, donde o trecho a seguir:

[...] – O senhor está sendo mais claro, Padre... – Estou apenas sendo mais franco com você e comigo – afirmou – E agora me diga: em tudo isto que é que você mais teme? [...]. – Perder meu marido, Padre. [...]. – E que fez você até hoje para não perder seu marido? Discutir com ele quando chegava em casa bêbado! Enxotá-lo de casa!... Padre Regis estava sendo injusto comigo, desumano, cruel. Tive vontade de levantar- me, de ir-me embora. Ele me ofendia, zombava de mim... – Não me odeie. O que lhe digo é a pura verdade. E porque é a verdade dói-lhe muito, irrita-a, não é isso? – Mas padre eu já suportei demais, já não podia mais acreditar em suas falsas promessas! – E não pode mais perdoá-lo... prefere perdê-lo! – Não senhor! [...]. – Você conhece o defeito do seu marido, sabe qual é seu vício. Pensa curá-lo com reprimendas, apontando-lhe sua vergonha de esposa, o mau exemplo dado aos filhos. Entretanto, você me disse que seu marido é bondoso quando está sóbrio, que é caseiro, louco pelas crianças, amável com você. – Mas estraga tudo quando bebe, torna-se um monstro! [...]. – Você me disse que lhe deu remédios que provocam alergia ao álcool. Foi a sessões espíritas em busca de cura. E ele tomou os remédios, acompanhou-a docilmente às sessões espíritas. Logo você não pode negar que ele não queira deixar a bebida. – Mas não deixa, Padre! – Deixará, minha filha, desde que você não lhe negue ajuda, não o abandone. – E quando será isso? – Talvez agora, desta vez ou da próxima, até que faça a sua última promessa e Deus lhe dê força para cumpri-la. [...]. – Prossiga, Padre, estou escutando – implorei a Padre Regis quando ele se calou. – Basta, filha, Vá para sua casa! Vá e se faça aquela pergunta de Cristo a Simão no almoço da casa do fariseu, após contar o caso dos devedores. Você verá como a resposta do apóstolo deve ser a sua! – Eu sei, Padre... – E disse num murmúrio: – “Acho que aquele a quem mais perdoou”. 131

Ao beijar as mãos do Padre Regis para ir-me embora, tive a impressão de que seus dedos estalavam como os de um mágico ao fazer desabrochar flores de um ramo seco (p. 116 a 119).

Rômulo, por seu lado, desorientado e carente, encontra, num boteco, o amigo Thales – que o imagina bêbado mas, surpreendentemente, engana-se: ele está sóbrio. O amigo, solícito, quer informações que lhe são veementemente negadas:

– Posso ao menos saber onde estás morando? [...]. – Não, Thales, prefiro não dizer. – Muito bem, se assim o queres... [...]. De qualquer modo, já sabes, quando precisares basta chamar teu velho sócio e amigo! [...]. – Thales, queira me desculpar. Não quis ofendê-lo. Veja se me entende, se me perdoa. Acho que devo encontrar o caminho por minha conta própria. Desta vez não se meta. A decisão deve ser só minha e de Norma. Chegamos à nossa encruzilhada. Vamos ver se Deus nos ajuda... [...]. Lá se ia meu melhor amigo. E eu ali ficava naquele imundo boteco recendendo a camarão seco e tiquira. Eu só, desatinado, fazendo da fraqueza a força, a olhar com asco para o copo cheio de cerveja. E o copo sob a revoada das moscas atraídas pela espuma, parecia crescer até atingir o teto, enquanto eu me perguntava em silêncio: até quando, meu Deus (p. 126).

Até breve, meu filho, haveria de lhe responder o Deus que o está ouvindo e agindo em seu favor, reconduzindo-o, ovelha desgarrada, ao caminho do aprisco. Os dois (marido e mulher) já foram alertados, sacodidos, pela verdade que dói, mas liberta. Norma já está compreendendo que o marido precisa mesmo é de apoio, carinho acolhedor e força moral (não de julgamentos e condenações); ele, por sua vez, está inclinado (ainda que não totalmente consciente e esclarecido) a buscar uma saída. E assim é que se está dirigindo ao local de uma reunião “– uma dependência do convento dos capuchinhos, cedida por camaradagem, como disse o informante” (p. 134). Trata-se do grupo conhecido como Alcoólicos Anônimos – que, de qualquer maneira, o deixa impressionado, como ele mesmo o reconhece, ao chegar à igreja para assistir à missa na manhã seguinte: “Subindo ao amanhecer a escadaria do Carmo, eu pensava naquele estranho encontro da véspera. Talvez não me filiasse ao grupo „A. A.‟, mas tivera uma experiência fascinante, inclusive a ideia de escrever um romance sobre a vida de um alcoólico. Seria interessante...” (p. 137). Ali, também, decidira-se pelo sacramento da Confissão: “[...]. Se fora capaz de contar meus desatinos a um grupo de alcoólicos anônimos [...] por que não desabafar meus pecados a um padre? A confissão só poderia fazer-me bem. Confessara-me pela última vez há mais de um ano. [...]” (p. 137). 132

E o milagre do reencontro, da última promessa a acontecer na Igreja do Carmo (Praça João Lisboa – antigo Largo do Carmo), na fila da Comunhão. Eis o relato, na voz do protagonista:

Fui ao confessionário e voltei sem reparar nas pessoas que se achavam na Igreja, Não tinha coragem de erguer os olhos. Não que sentisse respeito humano; o que eu temia era ser uma pedra de escândalo, um hipócrita diante do próximo. O celebrante foi Frei Hermenegildo. Sua presença inspirava santidade. Comunguei como outrora, certo de que nada no mundo me seria melhor naquele momento. Mal acabara de ajoelhar-me senti o toque suave de outra mão sobre a minha. Nem foi preciso abrir os olhos para saber de quem era aquela mão trêmula e afetuosa. O véu encobria o rosto de Norma. Ela chorava. Suas lágrimas iam caindo sobre o genuflexório, e logo as minhas lágrimas se sucederam às dela. Nossas mãos se apertaram ainda mais, comunicando-se num afeto que nenhuma palavra no mundo seria capaz de exprimir (p. 137-138).

Na saída, os dois se olham, trocam palavras... descendo “de mãos dadas as escadarias do Carmo, lentamente, como dois namorados que retardam os passos para o fim do amoroso encontro” (p. 140). Já na Praça, ao ar livre e à luz do Sol, resolvidos a seguir juntos para casa – não sem antes irem buscar a mala de Rômulo, onde este se hospedara – a grande surpresa revelada por Norma: – Rômulo, tenho uma grande surpresa para te contar [...]. Sei que vais vibrar de contentamento! – É preciso fechar os olhos? – gracejei. – Não porque não a verias ainda. [...]. – Espero uma outra Brígida [...]. Outra filhinha como a que perdemos, para que nunca mais sintas remorsos do que houve! Não creio que o mundo me dê novamente uma alegria tão grande como aquela nem eu mereço. Senti-me como um pássaro que fosse capaz de fazer seu ninho numa estrela do céu. E só pude fazer uma coisa para manifestar o meu júbilo, o que todo homem apaixonado faz para declarar o seu amor. Prendi Norma nos braços e dei-lhe um longo beijo de perder-se o fôlego. Sua boca ainda estava impregnada do sabor da carne de Cristo. [...]. Nada no mundo poderia alterar nossos sentimentos de ternura, nosso invencível amor. – Vamos querido! – Sim, vamos para casa – disse eu. E tomamos um carro logo adiante, na esquina da Rua da Paz (p. 140-141).

Ainda na opinião da consagrada escritora maranhense Arlete Nogueira da Cruz (In: Almeida, 1968 – aba esquerda), A Última Promessa

É livro de um autêntico católico, de um autêntico cristão. Nele sobrepõe-se tratamento humano, cheio de compreensão, que se acha entre as pessoas mais infelizes e marginalizadas: “acho que cheguei a beijar docemente seus cabelos num gesto em que ia toda a minha ternura por seus desencantos e verdadeiro amor de um desgraçado por outro desgraçado” – diz o alcoólico a respeito da prostituta. 133

Percebe-se a distinção que o autor faz entre a situação em que são subtraídos os marginais e a pureza que se conserva neles, permanecendo uma consciência delicada e sensível a toda grande coisa da vida. É pela humildade que se torna possível a última promessa de Rômulo a Norma e, pelo perdão, o amor deles se revigora .

O Bequimão (1973) – resultado de ampla e exaustiva pesquisa nos anais da formação do Maranhão colonial – manancial de onde jorra esse veio narrativo de Bernardo Almeida, considerado, pela crítica especializada, a obra magna do autor, fixando/ficcionando, na literatura, o que o excelso João Lisboa já historiografara e o magistrado e acadêmico Milson Coutinho, sob uma perspectiva puramente histórica, também documentou em livro – num meticuloso trabalho de leitura e consulta nos acervos da Biblioteca Nacional – sob o título de A Revolta de Bequimão, “história redescoberta” na qual se juntam

...a deposição do governador geral Francisco de Sá Menezes e do capitão-mor Baltasar de Sousa Fernandes, a expulsão dos padres da Companhia de Jesus, a abolição do Estanco, expurgos, expulsões, recuos e discórdias, um prêmio aos interessados pela história do Maranhão contada sem sofismas e proteções (CUNHA SANTOS, 2006, p. 03).

Aventurar-se na leitura dessa obra é pois:

Estar na linguagem performática, quase induzida, daquela época, auscultar a pungente repressão dos revoltosos, reviver a sibilina covardia de Lázaro de Melo, afilhado e protegido de Bequimão e pessoa influente no governo dos rebeldes, sentir o temor das assuadas que colocam o Maranhão nas fronteiras da Independência do Brasil ou, indo mais longe, descobrir que os rituais de morte dos mártires da Independência eram assessorados pela igreja católica, é o que nos permite este instigante documento produzido pelo desembargador ex-presidente do Tribunal de Justiça, Milson Coutinho (id. ibid.).

Tendo como protagonista o herói e mártir da história do Maranhão, Manuel Beckman – o Bequimão, líder desse movimento considerado nativista (1684/1685), centrado nos conflitos de interesse entre colonos e portugueses, por força da grande insatisfação daqueles em relação à Companhia do Comércio do Maranhão (instituída pela Coroa Portuguesa, em 1682, destinada a favorecer Portugal, em detrimento dos interesses brasileiros), o romance panoramiza o ambiente colonial ludovicense, marcado por iniciativas pioneiramente revolucionárias, na luta pela conquista de uma independência, em contrapartida à ambição desmedida do explorador português. Coerência ético/histórica tão bem assimilada e revelada por um escritor apto a resgatar, com essa “matéria-prima”, toda a essência de um momento/empreendimento social de um povo, no raiar de sua história. A Revolta traz à tona questões de mão-de-obra e abastecimento: comerciantes queixando-se do monopólio da Companhia, proprietários rurais contestando o baixo custo dos 134

produtos da terra, em contrapartida aos altos preços cobrados pelo trigo, bacalhau e vinho, as manufaturas, insuficientes e de má qualidade, além de tardiamente chegados à região, somando-se a tudo isso a carência de mão-de-obra escrava, para cuja solução apontava-se a permuta desta pela do indígena, contrariando os padres jesuítas, que combatiam a escravidão do nativo. Vale lembrar que a Companhia comprometera-se em introduzir, no decurso de vinte anos, dez mil escravos negros na Colônia, obtendo, em contrapartida, o monopólio sobre o comércio do Estado do Maranhão (criado em 1621, ainda na Dinastia Filipina, abrangendo os estados do Maranhão, Ceará, Pará e Amazonas e onde a prática mercantil corria livremente), dentre outros privilégios. A gota d‟água (além do monopólio), vem com a isenção dos impostos sobre a produção local, em favor da Companhia, por parte da Coroa. Surge, pois, um grupo reagente, liderado por Manuel Beckman – de origem alemã, nascido em Lisboa, rico fazendeiro e respeitável proprietário de terras em São Luís, já em 1670. Homem de muita influência sobre os colonos, apto, pois, a induzi-los à revolta. Tomada a cidade e preso o Capitão-mor, Beckman e Eugênio Ribeiro Maranhão partem para a organização de um governo provisório, independente – movimento conhecido por Rebelião do Monopólio, que se estendeu por oito meses. A essas alturas, Tomás Beckman (irmão de Manuel) vai à Corte Portuguesa, negociar a questão, mas é preso, em Lisboa, regressando no mesmo navio em que vem o novo governador (Gomes Freire de Andrade), enviado ao Maranhão para restabelecer a ordem. Os revoltosos debandam. Manuel Beckman, entretanto, permanece na cidade, exigindo a libertação do irmão Tomás. Gomes Freire o manda prender. Ele se refugia em sua fazenda Vera Cruz, às margens do Mearim, onde, enfim, traído pelo afilhado e protegido Lázaro de Melo (irmão da sua amada Luzia) que, interessado na recompensa oferecida pelo governador, consegue armar-lhe uma cilada, trazendo-o de volta daqueles confins, onde chega acompanhado de soldados (camuflados na floresta), como para avisar o padrinho de que Luzia estava muito mal e convencê-lo de ir até ela. Na tentativa frustrada de fazê-lo crer que Luzia estava correndo risco de morte, improvisa e executa um outro estratagema infalível. Ei-lo, numa cena quase final do romance em leitura, cumprindo o seu papel de traidor, na fazenda do padrinho, ambos sentados à mesa, ao café da manhã:

– Se é assim, iremos logo mais [...]. Quando chegarmos ao golfo, vamos precisar de içar vela, e a nossa está furada. Tão logo Damásio a remende, nós partiremos. – E voltando-se para o negro, que demonstrava ter entendido tudo, recomendou-lhe: – Vai e não percas tempo. Já sabes o que fazer (p. 187).

Assim, 135

Meia hora depois, com o retorno de Damásio, a bater com a cabeça, confirmando que tudo estava em ordem, Bequimão, Lázaro, Acácio e os canoeiros desceram para o rio. [...]. Tudo aconteceu num relance! Tão logo chegaram à várzea, os soldados saíram do matagal e se lançaram sobre Bequimão. Acácio reagiu e foi morto na mesma hora. Seu enorme corpo caiu de bruços aos pés do amo estarrecido. Com os tiros dados no índio, os trabalhadores acorreram, atarantados. De espada erguida, Lázaro gritou-lhes: Alto lá! Venho em nome de el-rei. Ninguém se meta, senão será enforcado! [...]. Cabisbaixo, com os punhos e os pés amarrados e mais uma corda enlaçando-o a um dos bancos da canoa, Bequimão nem sequer se dignou a olhar para trás, num adeus a Vera Cruz. O último apego que ele poderia ter à vida e aos bens deste mundo havia sido miseravelmente destruído por um homem a quem amara como se fosse seu próprio filho (p. 187).

Enforcado (a 02 ou 10.11.1685), juntamente com Jorge de Sampaio (ao irmão Tomás Beckman fora reservado o desterro), na antiga Praça do Armazém, centro de São Luís – local hoje oficialmente denominado Praça Manuel Beckman, no Parque 15 de novembro, à Beira Mar, em frente ao Cais da Sagração, nas proximidades do antigo Cassino Maranhense, da Rua do Egito e da Ponte do São Francisco – em suas últimas palavras, Bequimão diz morrer contente pelo Maranhão. Não obstante o insucesso da revolta, a morte do herói, a Companhia do Comércio é extinta e vencido o monopólio. Na perspectiva história de João Lisboa,

O Bequimão, deposta aquela coragem ativa, que brilha, principalmente na luta e na resistência, conservava todavia a da firmeza e da resignação, que só uma fé viva e pura na bondade de sua causa pode dar ao homem traído pelo destino. No momento supremo, cumpriu intrepidamente a promessa que havia feito em dias menos aziagos; e, na mesma ocasião em que, como verdadeiro cristão, pedia do alto do patíbulo o perdão de todas as ofensas ao próximo, declarou que pelo povo do Maranhão morria contente! Grito sublime e derradeiro de um coração altivo e generoso, admirável sobretudo naqueles tempos em que as revoluções, simples fato material, não constituíam doutrina ou direito, em que os condenados, ordinariamente humilhados diante da justiça, morriam protestando o seu arrependimento, e beijando a mão que os punia. [...]. Eis aqui certamente uma revolução, em que a acumulação das causas, a têmpera dos caracteres, o estranho e variado dos incidentes, e o trágico e sanguinolento do desfecho dão à história o atrativo pungente e sedutor do drama e do romance [...]. Eis aí a matéria para despertar magníficas inspirações com que, sem afastar-se muito da realidade, um talento feliz, como os há tantos nos dois povos que falam a língua portuguesa, poderia compor um poema sem igual. [...] (LISBOA, apud ALMEIDA, 1973 – aba direita da obra).

E, no “talento feliz” de Bernardo Almeida, a saga viva do herói se reconstrói romanceada/humanizada. Um trecho do capítulo XXV (fecho da obra) em que é narrado o momento da morte desse herói e mártir da nossa história:

136

[...]. Madrugada do Dia de Finados – algumas horas antes do enforcamento. Uma nesga de lua clareava o interior da prisão. Agarrado com as mãos às duas grades da vigia que dava para o mar, com Tomás Beckman contemplava a serena paisagem: algumas copas de árvore plácidas, a despontarem do desvão rumo à praia, e a Bahia de São Marcos, delineada em cinzento escuro contra a linha tênue do horizonte. Jorge de Sampaio, deitado ao chão, sobre as palhas, vez por outra gemia [...]. Bequimão, impaciente, movia-se de um lado para outro da pequena cela, onde o espaço era tão restrito que mal lhe comportava seis passos em frente. E ele dava meia volta e tornava a andar, de mãos postas para trás. Cada vez que passava diante do postigo enluarado, seu rosto se iluminava, retendo, por um instante, mesmo ao sumir- se na penumbra, a marca daquele clarão passageiro. Assim, caminhando, ele como que percorria todo o seu passado, desde a infância em Portugal ao momento em que se fechara atrás de si a pesada porta da cadeia, onde se achava agora prisioneiro, com as horas de vida contadas. Ao amanhecer, seria levado à forca com Jorge de Sampaio. [...]. Com lágrimas nos olhos, Tomás Beckman ficou a contemplar a lua até que ela se apagou por completo. No interior da cela obscurecida, os três vultos também se sumiram nas trevas. Jorge de Sampaio foi o primeiro a morrer. Seu corpo esquálido pendia da corda, flutuando no espaço, tão leve que dava a impressão de balançar ao vento que soprava do mar. Em meio ao silêncio constrangedor, ouviu-se quando Bequimão, com a voz embargada, exclamou: – A todos a quem ofendi, peço perdão. Quanto à sentença que me coube, nada tenho a dizer. Aceito-a resignadamente, confiante na bondade divina. Tenho a consciência do dever cumprido. Pelo povo do Maranhão morro contente! (grifo nosso) Nesse instante uma mulher avançou, a gritar, no meio do povo estarrecido, dirigindo- se para o lugar em que se erguia o patíbulo. – Libertai-o! Ele é inocente, não deve morrer!... Era Luzia, desvairada, querendo salvar da forca o homem a quem amava loucamente. Os guardas, a postos no local, correram para ela, barrando-lhe os passos. Ela continuava a gritar, procurando desvencilhar-se das mãos ásperas que a seguravam. – Não, pelo amor de Deus, o meu Manuel não deve morrer! O General Francisco José Gomes Freire de Andrade, coroado de seus áulicos, fez um gesto solene para o carrasco. Os tambores rufaram. Repicavam em dobres de finados, os sinos de todas as igrejas de São Luís. Ouviu-se, então, um baque surdo, seguido de exclamações de horror. Manuel Beckman, a quem o povo chamava de Bequimão, fora enforcado. De olhos fixos no cadafalso, Luzia assistira de perto à cena terrível do enforcamento do amante, e vira-lhe o rosto a crescer de encontro ao sol, sentindo, ao mesmo tempo, a dor da corda no próprio pescoço. No seu desvario, ela tinha a impressão de que ouvia as gargalhadas de Lázaro, indiferente a seus apelos, como no pesadelo... Aniquilada, deixou de fazer resistência aos soldados. Estes, notando que já podiam deixá-la em paz, largaram-na. Ela tombou de joelhos no chão, com os cabelos em desalinho a lhe cobrirem o rosto. Mas, num instante, deu meia volta, sem olhar para o patíbulo, e correu ladeira a cima, no rumo da cidade. Lá no alto da colina, distanciado da multidão, Padre Inácio Fonseca, de mãos postas em prece, também assistira ao instante derradeiro do seu amigo. Ao vê-lo, Luzia aproximou-se dele, exausta, e se lançou em seus braços, soluçando: – Oh, padre mataram o meu Manuel!... Agora, que é que eu faço? – Tem resignação, minha filha. Deus assim o quis – disse-lhe o sacerdote. – Não, padre, não foi Deus. Ele não seria capaz disso. Foram eles, esses monstros! – Malvados! – exclamou padre Inácio, como se ansiosamente estivesse aguardando pelo momento desses desabafo. – Malvados! Repetiu Luzia – Mataram o meu Manuel. Vede, padre – apontou para o ventre – o nosso filho. Ele não conhecerá o pai!... – Pobrezinha... – murmurou o padre, acariciando-lhe os cabelos soltos. – Sei que vou morrer, Padre Inácio. Não suportarei viver sem ele. 137

– Paciência, Luzia, tem paciência, minha filha. – Não, padre, eu jamais poderei esquecê-lo! Nem eu, Luzia, nem ninguém; Bequimão jamais será esquecido – afirmou o sacerdote, olhando por cima da cabeça de Luzia para longe. E lá, por sobre as águas da Baía de São Marcos, uma ave, única, ia passando, a bater asas, indiferente a tudo. Recortada entre o céu e o mar, impávida, em seu voo, ela exprimia liberdade. Era um símbolo (id. ibid., p.194 a 196).

Eis como chega ao seu termo este romance em que à memória acumulada é dado um destino ficcional, onde história e literatura se encontram e se abraçam, interpenetrando-se, num misto de ficção e realidade, também num processo palimpsextico de composição narrativa, partindo do hipotexto para o hipertexto, o leitor acedendo a um passado mediado pelo discurso contemporâneo do autor, humanizando a história. José de Ribamar Galiza (Vitória do Mearim-Ma.03.12.1915/Rio de Janeiro-RJ- 05.12.1987) – bancário e escritor autodidata: contista e romancista. Estudos primários em Grajaú, Balsas, Bacabal – onde viveu parte da infância e adolescência, “tempo em que Bacabal crescia como uma menina que se tornava mulher a olhos vistos95”. Concluído o primário, ele diz, “mandaram-me para Pedreiras, sacristão do Pe. Jaime, a fim de „aprimorar‟ os meus estudos, com vistas ao seminário Santo Antônio, em São Luís, o curso gratuito para meninos pobres. Não dei para padre nem aprimorei os meus estudos. Bacabal novamente96”. Professor municipal aos 14 anos. Dois anos mais tarde, com o “dinheirinho economizado”97, vem para São Luís, continuar os estudos secundários e trabalhar. Primeiro, como telegrafista (concursado) e professor de matemática. Aos dezenove anos, ingressa no Banco do Brasil – outro concurso em que foi bem sucedido. Durante nove anos, gerenciou agências desse banco em São Luís, transferindo-se, em 1966, para o Rio de Janeiro sendo, logo a seguir, posto à disposição do BNDE, como gerente da Finame. Entre a Matemática e a Literatura, produziu, como romancista: À Sombra das Gameleiras (1958) – o Bacabal dos meados do século XX, ainda distrito de Vitória do Mearim, tempo em que a via de acesso à capital era tão somente a fluvial e o principal meio de transporte, o barco a vapor. O Bacabal provinciano, bucólico, exuberante e reverberante, na sua paisagem ambiental da época, sobressaindo-se o palmeiral típico (já extinto e esquecido), que lhe justifica o topônimo. O Bacabal reconstituído em sua paisagem rural, ancestral, seus tipos humanos característicos, em seu modo próprio de falar, dialogar (em seus “quilanada”, “vem cá depressinha”, “cabra dos diabos” e tantas outras expressões populares regionais), a projetar-se nos 35 capítulos que perpassam as 294 páginas desse

95 - palavras do autor em carta (correspondência endereçada do RJ a Vitória do Mearim) ao Promotor de Justiça e fundador da AVL, Washington Cantanhede. 96 - idem. 97 - idem. 138

romance, como que fluindo, dos anais de sua história, por esse manancial ilustrativo – a memória do escritor, reconhecidamente hábil em transpor, para o literário, sua percepção/captação do mundo, da vida, imprimindo cor e dinamismo às paisagens e tipos humanos que animam a sua obra, transladados do real.

O Povoado (1970) – outro longo romance (24 capítulos, 233 páginas vívidas), a comprovar a maestria de um ficcionista. Aqui, na mesma linha regionalista/ruralista, a narrativa se vai desprendendo da memória, reconstituindo ambientes, os tipos característicos do meio rural, absorvendo-lhes, incorporando, com muita naturalidade, a linguagem popular, força modeladora da narrativa, no traduzir do diálogo comum, cotidiano, assim revelando um escritor de grande maestria descritiva, exímio “pintor de costumes e psicólogo, situando-se numa paisagem bastante viva e atraente, e na qual os personagens se movimentam com autenticidade, no desenrolar da fabulação”. (MAUL, Carlos. O Dia, Rio de Janeiro. In: GALIZA, 1970, aba esquerda da obra). Apetrechos de Amor (1983). Excelente “crônica de costumes”, na opinião abalizada de Nelson Werneck Sodré (prefácio da obra), em que o enredo se vai texturizando no entrelace de dois fluxos narrativos: o da reconstituição dos costumes (urbanos/provincianos) e o do amor entre dois jovens (ponto fulcral da narrativa) – um oficial militar e uma pobre garota de 17 anos, desprotegida, experimentada nas agruras da vida e entregue a sua própria sorte. Vejamos. Duas horas e quinze minutos de uma tarde de domingo, na São Luís do final dos anos cinquenta. O tenente André (jovem bacabalense, estabelecido na capital, no serviço militar), não querendo ocupar o seu tempo livre com um “joguinho de cartas”, em companhia dos seus colegas de pensão – hóspedes, como ele, numa dessas casas, na Rua da Palma, bairro do Desterro, Centro – sai para dar uma volta. Contrariamente ao que planejara (parar no quartel e estender-se até a Gonçalves Dias, no bairro dos Remédios), toma o bonde da São Pantaleão e desce em frente ao Cemitério do Gavião, dali rumando para a casa de Nhá Candinha (local de prostituição), em busca de uma circunstancial, descompromissada, aventura erótica.

Era uma casa pequena, porta-e-janela, meio acachapada entre outras do mesmo estilo; à tarde, o sol pegando em cheio a parte da frente, e era aquele mormaço; vizinhos modestos, metidos em seus sossegos ou sobrecarregados de seus afazeres; ao lado oposto, já mais afastado e junto aos fundos do cemitério, viam-se, às vezes, pequenos grupos de leprosos, em animada palestra, despercebidos e indiferentes ao que se passava fora do seu raio de ação (p.10).

139

Justo nesse dia, inusitadamente, como por um capricho do destino, ou por força de um caso/acaso previamente “marcado em cartas de Tarô” ou mesmo já “escrito nas estrelas”98, vem a conhecer Dorinha, livrando-a de ser explorada sexualmente pelo patrão, Seu Horácio, proprietário d‟A Imperial – “aquela loja bonita, da Rua Grande” (p. 12). Sob pena de despedi- la, o vilão coagira a moça (cuidadora e provedora de uma mãe idosa e doente, com quem mora, em condições precárias) a esperá-lo, em um dos quartos da casa, sob a vigilância e orientação de Nhá Candinha. Por um contratempo imprevisto, Horácio não comparece, ultrapassando, em muito, o horário combinando – o que leva Nhá Candinha, julgando ser Dorinha, já, uma prostituta, a autorizar a entrada de André no recinto onde esta se encontra:

– Vá, homem, que a pequena é bonitinha, eu lhe garanto. Leve a coisa com jeito e diga que foi seu Horácio quem mandou no lugar dele... [...]. [...]. É, eu vou lá! (p. 13-14).

No quarto, André encontra uma garota triste, que lhe pede socorro, chorando. Veja-se o trecho: – Moço, por amor de Deus, tenha pena de mim! Eu sou uma desgraçada, eu nunca fiz mal a ninguém, eu vim aqui porque seu Horácio mandou, ele me obrigou. Não deixe, seu moço, tenha pena de mim... Minha mãe está muito doente, sem remédio, sem dinheiro, sem nada, eu juro! A gente passa fome... Seu Horácio quer me obrigar, ele quer... Mas eu não quero, eu não posso, eu já disse, eu não quero. Eu sou uma desgraçada, eu sou uma infeliz, ah, tenha pena de mim, seu moço, não me deixe aqui, eu quero ir me embora, ai, meu Deus!... [...]. – Bem, não se desespere. Tenha calma. Talvez eu possa fazer alguma coisa por você, talvez eu possa... [...]. Entretanto, o que ele disse, entre sério e brincalhão, foi o seguinte: – Ih! Nós ainda não fomos apresentados, né? Você nem me disse o seu nome... – Estendeu a mão afetadamente cavalheiresco – muito prazer em conhecê-la. André, tenente André... [...]. – Da mesma forma... Dora Oliveira da Silva, Dorinha, sua criada. – Dorinha, é? Bonito nome... – André já estava de plano feito. Discretamente, tirou do bolso traseiro a carteira de dinheiro, escolheu algumas cédulas e, com indisfarçável encabulamento [...], pôs o dinheiro na mão da moça, fechando-lhe os dedos: – Tome! Agora saia daqui. Vá embora, vá! – Mas... – Não se incomode... Vá embora, vá logo! E foi nesse instante que Dorinha, dando afinal vazão aos seus sentimentos, trêmula, arrebatada, agarrou as mãos do tenente, ao mesmo tempo em que as cobria de beijos, rindo e chorando: – Oh, tenente André, o senhor é um anjo, um anjo!... [...]. – Deus o proteja! – Abriu a bolsinha, guardou o dinheiro. – O senhor é um anjo! – Tirou o lenço e limpou os olhos, as faces, as manchas deixadas pelas lágrimas. – Que vergonha, meu Deus! – Ajeitou os cabelos com os dedos nervosos. Nada mais... nada mais? Guardou tudo: na bolsa o lenço, e no peito os soluços e as lágrimas – Eu vou

98 - para lembrar Tetê Spíndola. 140

incluir o senhor nas minhas orações, eu prometo. – O riso era ingênuo e infantil. O riso e a promessa (p. 29 a 34).

Dorinha vai embora. Os dias se vão sucedendo e André vai fixando-a na mente e no coração. Sem saber do seu endereço, procura-a, por toda a São Luís, em vão. Passados alguns meses, ela mesma vem ao seu encontro (dele), no quartel, pedindo-lhe, ajuda:

– Mamãe piorou, e eu não tenho podido sair pra arranjar emprego... E o senhor foi tão bom, o senhor sabe... – Ela baixou os olhos, e André também, embora sob reação diferente – E eu não tinha pra quem recorrer... – Ah... [...] – Bom, eu vou ver o que posso fazer. Eu passarei hoje pela sua casa, me espere. Mas deixe eu anotar o endereço... sim... Beco da Felicidade, número 39... ah, não precisa, pois eu já sei de cor. [...]. – Sim senhor, pois eu espero (p. 94).

Dito e feito. André vai á casa de Dorinha e ajuda-a novamente, tocado com tamanha penúria, enternecido com o desvelamento da filha para com a mãe moribunda. E sai, em busca de um médico amigo, seu ex-professor, o Dr. Matos que, solícito, vem em companhia da esposa, Dona Marta, examinar a paciente, constatando estar, a mesma, “nas últimas”, sem mais recurso, posto que enfraquecera, deveras, por falta de alimentação. O caridoso trio presta toda assistência às duas mulheres desamparadas, até à morte da mãe, providenciando todo o necessário, arcando com o funeral e sensibilizado com a situação de Dorinha (que chora muito a perda da mãe), sobretudo Dona Marta. O casal convida-a, então, para morar em sua casa, adotando-a como filha do coração, promovendo-lhe o estudo e a integração social. André é convocado para ser seu professor (dela) particular de matemática, papel que assume com muita responsabilidade e seriedade, sempre relutando em confessar a sua paixão àquela moça que o impressionara e de quem nunca se esquecera. Capítulos e páginas vão transcorrendo. Enfim, a mútua declaração de amor e o primeiro beijo acontecem na noite em que o jovem oficial vai à casa da família Matos para se despedir, convocado que fora, para a guerra, na Europa. A cena se passa no jardim de entrada/saída da casa (à Praça Gonçalves Dias), quando Dona Marta pede à filha adotiva que acompanhe o tenente até o portão.

– Leve, Dorinha, leve ele até o portão, minha filha... [...]. [...]. – Bem, Dorinha... chegou a nossa vez... [...]. – Tenente André... André... eu quero lhe agradecer por tudo o que fez por mim. – Agradecer? Não Dorinha, você nada tem o que agradecer. Por amor de Deus, não falemos nisso. Eu quero é que você não se esqueça de mim... Eu?! Jamais! – Ela levantou os olhos novamente. Era um juramento: – Não, não esquecerei jamais! [...]. 141

– Então, adeus... – Adeus, André... – Dorinha!... [...]. Ambos já tinham deixado de chorar. André tirou o lenço e procurou enxugar uns restinhos de lágrimas que aljofravam o rosto dela, imprimindo no gesto a ternura da sua carícia: – Minha querida... Primeiramente, beijou-lhe a testa, roçando os lábios como se, reverente, cumprisse sagrado ritual. Em seguida, porém, veio a explosão: o beijo boca com boca, arrebatadamente, furiosamente, numa entrega recíproca de alma e de corpo. Dr. Matos, que de longe os observou, súbito puxou a mulher pelo braço e apontou: – Marta, veja! – Oh, mas o que é isso, minha gente?! [...]. – E você nunca me disse nada, hein, dona Marta?... A boa velha ria, com o tempo: – E eu sabia?... Entre os dois velhos houve um momento de recatado silêncio, dr. Matos pensativo, a cofiar lentamente a barba, o olhar distante. Tal se quisesse simbolizar naquele jovem e ardente casal um mundo de amor e de beleza, sem guerras e sem misérias. Sorriu. E suspirou como num sonho, como numa prece: – Que duas belas crianças! (id. ibid., última página)

É o gran finale. O Cantar das Casuarinas (1987) – Allegro. Andante. Adagio. Finale. Termos da área musical (em italiano), que vão denominando as sequências narrativas que organizam a diegese deste romance, nas suas 225 páginas, ao longo das quais (e no já comprovado talento literário do autor), se vão conjugando e/ou revezando amor/fidelidade; dúvida, ciúme, culminando com a separação, o remorso... num contexto marcado por: tragédia; contato íntimo com a natureza, na luta pela sobrevivência e na busca do caminho perdido; reencontro com a civilização – mergulhando o leitor nas profundezas e mistérios da alma humana. Tudo fluindo, jorrando, de um sistema narrativo como que migrado do palco da vida para a ficção literária, iluminando a dramática aventura de Margarida e Marcelo (perdidos na mata); de Margarida e Luís (esposos – temporariamente distantes, por conta de um desastre aéreo na rota São Luís/Imperatriz-Ma). O táxi-aéreo (teco-teco) cai na selva maranhense, nas imediações de Pindaré-Mirim e Santa Luzia. Dois únicos sobreviventes: Margarida (Dida) e Marcelo. Uma mulher e um homem, reciprocamente desconhecidos, mas circunstancialmente obrigados a conviver solidários e próximos um do outro, no meio do mato – tendo, nesse caso, o homem salvado e protegido a mulher – que a ele deve a sua vida e dele depende para sobreviver. Ao longo da narrativa, se nos é dado perceber duas instâncias que se vão, paralelamente, interseccionando: a malograda viagem da esposa, em visita aos pais e parentes, em Imperatriz, seguindo-se o desastre, o desespero do marido, as buscas inúteis (por um lado); a luta pela sobrevivência, na mata, a situação da mulher, sozinha, ao lado de um homem desconhecido (por outro). 142

Conseguirá, a jovem, bela e atraente mulher, manter-se casta e fiel, em tais circunstâncias? É o ponto de interrogação a atravessar toda a história, a lancetar a mente, o coração, a alma do marido, incutindo, suscitando-lhe a dúvida, a suspeita, o ciúme, a mesmo separá-lo, da esposa, e com foros de crueldade, após o tão esperado reencontro, por sinal festejado, entre amigos, na residência do casal, sem faltar a presença de Marcelo – o pivô das suspeitas de Luís, que vão aumentando e se agravando, mais ainda, com o anúncio da gravidez de Margarida, causando o afastamento do marido, a separação definitiva do casal. Conflitos, acusação de infidelidade, defesa e resignação da esposa... Mas, como não desconfiar? Cinco anos de casados, ambos desejosos de um filho, Margarida fazendo tratamento médico, uma longa e aparente vã, espera. E enfim, a gravidez, após o complicado período de 12 dias de convivência na selva, ao lado de um homem ainda jovem, saudável, desconhecido. Daí, a separação, malgrado o convívio temporário do casal, sob o mesmo teto. A gestação da esposa, já bem adiantada, em vias de se completar, o marido vislumbra uma saída para o impasse:

– Bem, eu pensei. Para manter o que resta do nosso casamento, podes tirar o filho, eu concordo. – pelo menos a vergonha ficava apenas entre as quatro paredes do seu lar, era a sua conclusão. [...]. Ela levantou os lindos olhos, suavemente, não para comovê-lo, mas para mostrar de cabeça fria a sua firme decisão: – Olha, Luís, pelo que vejo, continuas achando que o filho não é teu; pois bem, se não é teu, é somente meu. Portanto, não tiro, não há força na terra que me obrigue a tirar. Na realidade, o marido não esperava reação tão resoluta por parte da mulher. Isto fê- lo acirrar o seu propósito e declarar a voz alterada: – Ah, é assim? Então ele ou eu! Dida não perdia a aparente tranquilidade, e ainda perguntou, como se quisesse dar o assunto por encerrado: – É só? Ele sabia que aquela serenidade não era real, era um desafio, o que levou a sua indignação a um crescendo, embora ele também não desejasse demonstrá-lo: – Está bem. [...]. [...]. – Provado está que o filho não é meu [...]. – Provado?! Provado o quê? [...]. – Isto só na tua imaginação doentia... Olha, eu preferia ter morrido no desastre a estar passando por isto. – E eu também. – Ah, é assim? Preferias então a minha morte? – Pelo menos a minha honra não estaria manchada. – Honra! Honra... enches a boca de honra, honra... como se eu também não estivesse om a minha honra ferida, ara, vai-te pros infernos, hipócrita! – Cínica! (p. 170-01)

Eis o problema. Certo de suas convicções, o esposo, contando o seu drama particular ao seu gerente do Banco, solicita deste (mesmo em tom de súplica), a sua transferência para outro Estado. E assim se faz. Luís Leitão vai trabalhar em outra agência do Banco, na cidade de 143

Óbidos, no vizinho estado do Pará, deixando a mulher já em vias de completar a gestação. Ficaria por lá, até que tudo se esclarecesse, “dando tempo ao nascimento da criança”. A esposa ficaria sob os cuidados da mãe, Dona Verônica, e da fiel empregada e amiga, Mundica. E chega a hora do parto. Margarida vai para a maternidade, em companhia da mãe e de Mundica. Ao amanhecer, dá à luz uma menina e morre, pós-parto, antes do meio-dia. Por telegrama, Luís Leitão é avisado do surpreendente óbito. Ao chegar ao aeroporto do Tirirical (São Luís-Ma.), às 17:30h., a esposa já fora sepultada (desde as 11:00hs), restando-lhe (ao marido) a tristeza, as lágrimas, o remorso. E a filha, a quem dera o mesmo nome e apelido da mãe (Margarida-Didinha) e a quem faz questão de assumir como pai, dela não abrindo mão, em favor da sogra – que luta, em vão, pela guarda da netinha. E a pergunta “que não quer calar”: teria Margarida, mesmo, sido infiel ao marido, na selva, em companhia de Marcelo? Seria mesmo a Didinha filha de Marcelo e não de Luís?... O trecho a seguir pode ser esclarecedor, o bastante.

– Dida, estás dormindo? [...]. Não, não estava dormindo, mas fizera que sim. Autodefesa? Massageou os olhos com a ponta dos dedos, ensaiou o bocejo: – Foi um soninho... – Dida, escuta... – Ajoelhado e sentado sobre os calcanhares, Marcelo segurou-lhe uma das mãos e ela não se opôs, pelo menos ostensivamente. – Eu quero te dizer, não sei como dizer, perdoa-me, não penses que eu queira aproveitar-me da situação, não, não é isso, eu te juro, sim, eu estou apaixonado por ti loucamente... não me leves a mal, minha amiga. – Os seus olhos eram súplices e o ar abobalhado. – Não, não, por amor de Deus, não! – Ela puxou a mão, não sabia o que fazer com ela, e por fim deixou-a de leve no ombro dele. – Não, Marcelo, você não vê que isso é impossível... – Impossível? Impossível por quê? [...] – Compreenda, Marcelo, eu amo ardentemente o meu marido, e com nenhum homem do mundo eu seria capaz de traí-lo, e vou mais longe: preferia ter morrido no desastre a ser uma esposa infiel, você não acredita? – Acredito – [...]. Por favor, eu peço! – ele insistia. [...]. – Não, não! Eu grito, eu dou escândalo! – Escândalo para quem? As árvores, o riacho, os passarinhos, a solidão? Mas não havia pavor nos seus olhos, e a voz assumia um tom moderado, sobretudo quando percebeu o ar de tristeza que cobriu o semblante do amigo, o seu súbito retraimento. Quis contemporizar: – Eu sei, Marcelo, eu compreendo, você é homem, e é natural que estas coisas aconteçam, e até estava demorando... [...]. Ajuntou: – Não fique magoado comigo, Marcelo, eu lhe peço. Sou muito grata a você, acredite. Mas quero lhe retribuir isso com a minha gratidão eterna, e não com a minha desonra, ou violentando os meus princípios, compreenda. E lembre-se como você mesmo achou indigno o papel de sua ex- mulher, a infidelidade, o que jamais perdoou. E o que se quer para a gente, não se quer para os outros, não é uma verdade? [...]. – Estou lhe falando com a sinceridade de minha alma e toda amizade. E digo-lhe mais: se eu não amasse o meu marido como amo, e se por acaso, que Deus o livre, viesse algum dia cometer algum deslize, alguma infidelidade, você, Marcelo, eu lhe 144

digo, seria talvez o único homem a quem eu me entregaria de coração, pode ficar certo disso. [...]. – Dida, minha amiga, eu não mereço você, eu não mereço. Eu não presto. Pena é que não tenha encontrado antes uma mulher como você para casar-me... Desta vez coube a ela a iniciativa de pegar na sua mão, ao mesmo tempo em que dizia, tomada de sincera afeição: – Não, Marcelo, você presta sim. E além do mais é um homem de bem, um homem decente, disto eu tenho prova. Ele apertou a mão estendida e beijou com ternura, após o que lhe deu uma palmadinha no dorso, tal se melhor quisesse fixar aquele beijo, o primeiro e único que lhe dera. E levantou-se, encaminhando-se para o mato, duas ou três touceiras além (p. 153-4).

Waldemiro Antônio Bacelar Viana (São Luís-Ma.24.07.1946). Advogado (formado em Direito pela UFMA, com anos de militância no Fórum de São Luís), tendo exercido cargos e funções relevantes, em órgãos administrativos e culturais de sua terra. Poeta, romancista e cronista, é membro da Academia Maranhense de Letras (cadeira nº. 02). Filho do ilustre intelectual Fernando Viana, herdando do pai, muito mais que o sobrenome, “o grande talento para trabalhar com as palavras e transformá-las em obra de arte” pode (e deve) ser considerado “um dos mais talentosos escritores maranhenses do último quartel do século XX e do início deste novo milênio” – consideração do professor universitário (FAMA) e escritor José Neres.99 Da sua romanesca, cuja matéria prima, pode-se dizer, é a simplicidade do cotidiano, são as pessoas comuns, sem qualquer halo de celebridade ou poder, seguindo-se o picaresco A questionável Amoralidade de Apolônio Proeza (1991– que nos moldes de um realismo fantástico, em seu desenrolar com toques de humor e anarquia gira em torno das aventuras e peripécias de um pilantra carismático, um simpático “mau caráter”), têm especial relevância: Graúna em Roça de Arroz e O Mau Samaritano. Graúna em Roça de Arroz (1978) – na temática da luta pelo amor, pela sobrevivência digna – mas com a derrota prévia e fatal daqueles que sonharam com a felicidade plena, e sucumbiram, enredados nas tramas do destino, submersos num abismo do qual emergem dilacerados, para sempre, no corpo e na alma – é documento vivo, expressivo, da vida rural maranhense. Obra, que mereceu o elogio de Luís da Câmara Cascudo (In: VIANA, 1978, aba direita e esquerda da obra), nestes termos:

Dos romances lidos na última década, nenhum é superior ao Graúna em roça de arroz. Paisagem intensa e vigorosa na legitimidade humana e rural. Figuras, mentalidades, excitamentos e reações em sequência formal da lógica positiva e constatável. Matos, águas, vozes, trajes, movimentação, saíram da vida diária do campo, da vila, do arruado brasileiros. Ali estão os velhos princípios do romance

99 - In: Mais que palavras – um blog inteiramente voltado para a cultura maranhense.joseneres.blogspot.com.br/2009/07/um-autor- maranhense.html 145

clássico de Bourget: credibilidade do episódio e viabilidade de realização. Parece o registro de uma tradição sabida por todos os moradores ainda lembrados. Falta-lhe a publicidade aliciadora para tornar-se um livro nacional. Os mil fios vieram das reminiscências coletivas e o talento do autor lhes deu a unidade temática, a convergência para o interesse contemporâneo, com os recursos psicológicos da apresentação natural. Suas graúnas anunciam a velocidade inicial de um grande e soberbo romancista pedes in terra, ad sidera visus, os pés na terra e os olhos nas estrelas.

Revelando a sólida e diversificada cultura do autor, exímio descritor de paisagens, bem como a sua capacidade de percepção e absorção da realidade, da vida, em suas infinitas nuances manifestativas – numa “assimilação cumulativa de vozes que lhe vem desde o verso de talhe parnasiano até o romance regional nordestino ou, em curiosa simbiose da literatura de cordel à técnica cinematográfica” (DUARTE – prefácio. In: VIANA, 1995, p. 07), num aluvião de influxos identificáveis na “retórica estrutural do relato, na construção dos personagens, na entonação do estilo” (id. ibid.), o romance abre-se em flash-back, numa panorâmica da cidade de Alcântara, num dia de inverno, de muita chuva, com relâmpagos, clareando os escombros da velha igreja de São Matias, na Praça da Matriz – onde Marcolino de Zefa (condenado à pena máxima) amarga, na imunda e fétida cadeia, mais um inverno doloroso, pagando, injustamente, por um crime que não cometera. Quase onze anos de prisão e castigos tenebrosos, espancamentos escabrosos... E enfim, o dia da reconquista da liberdade perdida – graças à confissão do verdadeiro assassino, então moribundo, já entre a vida e a morte. Na vertente regionalista e na espontaneidade que lhe é própria, a narrativa estruturando- se no vigor e na conotação oral da linguagem popular, o escritor vai retratando o dia-a-dia, o viver e o morrer, do povo do interior (região da Baixada Maranhense – São Bento, Pinheiro, transitando para Alcântara, São Luís), em seus dias felizes ou tristes, dias de festa, de alegrias e de dores. O enredo se vai irradiando, entramando, a partir de um núcleo central: o simbiótico encontro de amor sincero e verdadeiro entre Marcolino de Zefa e Celeste (protagonistas), tendo como cenário,

Inambu. Agrupamento de casas toscas, cobertas de palha de babaçu, desordenadamente edificadas, aglomeradas umas, distantes outras, povoado sem configuração ou delimitação exatas. Lá não há donos. Tudo é de todos e de ninguém. De próprio, apenas animais e casas, estas construídas num mutirão espontâneo, ditado pelo costume e pela necessidade dos casais que se ajuntavam, acontecimento festivo animado pela cachaça a correr solta, pelas piadas, pelos mexericos contados, pelos boatos inventados. O resto é de todos: o campo, vasto descampado variante de campo de futebol; o babaçual, meio de vida para o sustento e matéria-prima básica para a construção do casario; o poço, primitivo, um buraco cavado ao deus-dará no solo generoso a garantir-lhes água perene. As casas não têm portas. Não carece. Ladrão, quase não há. [...]. 146

Por isso as casas não têm portas. Apenas uma esteira de meassaba ou mensaba, palha transada de babaçu, pende das portas e janelas, para proteção do frio da noite ou das chuvas. De um modo geral, as casas compõem-se de sala e quarto, erguidos sobre um piso de chão batido, além de uma latada, nas traseiras, onde ficam a trempe e o fogão primários. Não há ricos ou pobres, sim os mais e menos remediados. Não há distinção social. As pessoas se tratam num clima de respeito mútuo, de igualdade, de fraternidade, princípios básicos de constituições nunca sonhadas, embora espontaneamente vividas (VIANA, 1978, p. 16, 17).

Marcolino e Celeste ali nasceram e cresceram, conhecendo-se, convivendo, pois, desde pequenos. Mas, é num dia festivo, de muita animação, no terreiro de Seu Mundico de Zefa (pai do jovem), que tem início o romance entre os dois – olhares que se cruzam, mãos que se entrelaçam e o “furtivo beijo na hora do baile, os dois sentados nas sombras do alpendre, até que foram descobertos e mandados para as suas redes para dormir” (id. ibid., p. 25). Nessa paz e segurança num futuro tranquilo e promissor, três anos se passam de feliz e esperançoso namoro, que chega ao noivado oficial, os dois guardando-se em castidade, para o matrimônio. Marcolino, já com 16 anos, “era um homem completo na concepção e no costume daquele povo simples. Já possuía a sua peixeira, símbolo da maturidade, já fumava seu cigarrinho [...], já tomava seus tragos de cachaça, sem pestanejar, já levava mulheres para o tronco do coqueiro” (p. 29), já era homem de trabalho e proprietário de alguns bens: “suas cinco cabeças de gado, o cavalo sendeiro, sua parte no roçado do pai” (p. 29) – o que lhe permitira marcar o casamento para a festa de Natal, na fazenda do padrinho, onde e quando viria um padre, em desobrigas, para as celebrações. Celeste, já com treze anos, era mulata bonita, quebradeira de coco, função que exercia diariamente, no palmeiral em volta, visando a “um dinheirinho”, para o enxoval que vinha preparando, com muito carinho. Distante, coisa de três léguas, morava Zé Praxedes (padrinho de Marcolino), abastado fazendeiro, fabricante e vendedor de queijos, casado com Dorinha, com quem não conseguira ter filhos, tendo adotado três sobrinhos (órfãos) da esposa: Olavo e Rosa (gêmeos) e o mais velho (acolhido já aos dez anos), ora homem feito, casado e pai de uma numerosa prole, “criada ao deus-dará”: Timóteo, – que “não prestava” e era “malvisto por todos” (p. 31). Em suas viagens e estadas por São Bento (Vila, como era chamada), Zé Praxedes constrói uma boa amizade com o juiz daquela Comarca, Dr. Espiridião Fonseca, homem honrado, admirador do fazendeiro, pela sua honestidade e correção de costumes. Zé Praxedes vive insistindo com amigo juiz, que vá passar uma temporada de férias em sua fazenda, para descansar: “– A casa é humilde, Doutor, mas é sua” (p. 31). 147

Assim é que, naquele mês de dezembro, coincidindo com a festejo de Mundico de Zefa (pai de Marcolino), o juiz atende ao convite do amigo, em companhia da mulher e do filho – Rodolfo Fonseca, 19 anos, estudante de medicina, na capital, recém-chegado em gozo de férias. Na fazenda, Rodolfo entrosa-se com Timóteo, que nota o seu interesse pela irmã, Rosa, freado vigorosamente pela moça. É então que o convida para ir à festança de Mundico de Zefa, assim oportunizando-lhe o contato com as mulatinhas do lugar. Ali chegados, o jovem futuro médico põe os olhos em Celeste, dela se agradando, cortejando-a e sendo por ela repudiado:

– Sabes que és a mais linda daqui? Gostaria que à noite dançasses somente comi... – Moço, eu tenho notado o senhor me olhando de vez em quando, e já tive a tenção de contar pro meu namorado a sua saliença, eu lhe agaranto. Não contei porque ele na certa ia dar uma lição no senhor e ia estragar a festa de sêo Mundico, o que não quero que aconteça. Mas o senhor se arrespeite, senão eu conto tudo prele (p. 37).

O rapaz debanda, rumo a outro partido. A festa acaba, a noite passa. Pela manhã, na fazenda, Timóteo vai acordar Rodolfo, convidando-o para uma caçada pelos arredores, onde certamente encontrará Celeste (garante- lhe). Munidos de espingarda, os dois aventuram-se pela mata. Pelo caminho, Timóteo vai estimulando o jovem, instigando-lhe a não desistir de “pegar” Celeste, conduzindo-o ao ponto onde a menina costuma quebrar coco.

Finalmente, chegaram ao local. Vinham em silêncio e, cerca de dez metros à frente, de costas para os dois, sentada sob um coqueiro, um monte arrumado de cocos ao lado, Celeste quebrava-os, a machadinha encravada num pedaço de pau, o cepo na mão, as amêndoas saindo inteiras, para depois serem pesadas, na venda do futuro sogro – um dinheirinho garantido (p. 41).

Timóteo sai, fazendo um sinal de “boa sorte” ao “amigo” que, surpreendentemente, agarra Celeste, derrubando-a, rasgando-lhe a roupa, violentando-a, brutalmente. No fim, arrependido, sentindo-se “sujo e imundo”, pede desculpas à moça e lhe propõe casamento.

– Me casar contigo! Eu viver com um nojento como tu! Mais antes uma boa morte! Vai-te embora, desgraçado! Some daqui! Mas desaparece mesmo: tu desgraçou minha vida, mas também a tua tá desgraçada! Eu não vou prestar mais pra mulher direita, mas Marcolino vai me vingar! Some daqui, peste ruim, e te esconde! Mas Marcolino vai te achar e vai trabalhar em ti que tu nunca mais vai desgraçar moça nenhuma! Deus te arrenegue, peste (p. 42).

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Nua e sangrando, a garota sai, em desabalada carreira, rumo ao povoado. Entra em casa chorando e dali sai, expulsa pelo pai. Rodolfo, arrependido, também se vai, em companhia de Timóteo, que formulara, na mente, um plano macabro, para se vingar de Marcolino – de quem tinha desconfianças em relação à própria esposa, dado uns falsos boatos correntes pelo povoado. De modo que, antes de chegarem à fazenda, num ponto estratégico do caminho, mata Rodolfo, com a peixeira, previamente roubada, de Marcolino, que por ali surge, e é acusado pelo filho adotivo do padrinho, que não perde tempo e informa e chama o pai, o juiz, tudo resultando na prisão e condenação de Marcolino, no tenebroso presídio de Alcântara. Celeste, que ficara hospedada na casa dos pais do agora ex-noivo, após a condenação deste, se vai para São Luís, atravessando a baía de São Marcos, chegando à Praia Grande, onde perambula, pelas ruas do Centro Histórico da cidade, cansada e faminta, sendo enfim, socorrida, por Dona Naná, mulher “caridosa”, que a acolhe, providenciando-lhe banho, comida, acolhimento, roupa limpa e uma noite de repouso num leito bem confortável. No dia seguinte, porém, Dona Naná, cobra-lhe os “generosos” favores, ante os protestos da pobre moça (que ignorando onde estava, cuidava em ficar ali trabalhando como doméstica) e sob ameaças de intervenção policial e acusação de roubo. E o preço a pagar é a prostituição. A “boa senhora”, que lhe prestara ajuda, não passa de uma cafetina e aquela casa, onde fora acolhida e alimentada é, na verdade, um bordel, um antro de exploração de mulheres e comércio de sexo – onde Celeste passa três anos, exercendo a considerada “mais antiga profissão feminina”, até que Manuel Pereira, português cinquentão, a retira de lá, mantendo-a, como amante, numa casinha confortável e mobiliada, lá pelas imediações da Praça da Misericórdia, onde não lhe falta nada. Com o generoso e compreensivo português, ela passa sete anos, até que decide voltar para sua terra, contando com o apoio, compreensão e ajuda do amigo/amante. A essas alturas, Marcolino já está livre; machucado, mas livre. Tudo já fora esclarecido, graças à confissão de Timóteo que, à sombra da morte (vítima de uma facada letal, numa briga corpo a corpo, que lhe põe à mostra os intestinos), chama os pais e lhes conta toda a verdade:

– Pai, mãe, eu estou morrendo, eu sei. Nesta vida fui um home ruim, fiz muita disgracera, por esse mundo. Mas das muita malinidade que fiz, uma, a pior, botou um arrocho no peito que eu trago comigo desde que fiz ela [...]: – Fui eu que matei o filho do juiz, o Rodolfo! [...]. – [...] Eu fiz... isso pra... me vingar do Marcolino... porque... diz que ele... comeu Maria...[...]. A mulher fitava-o triste, penalizada. [...]. Falou-lhe mansamente, enquanto lhe alisava os cabelos revoltos e sujos de terra: 149

– Timóteo, meu filho, eu nunca te traí com homem nenhum. Te juro por essa luz que me alumeia, pela bênção de Nosso Senhor! [...]. – Entonce salve aquele inocente, Pai, que tá pagando por um crime que não cometeu! – Respirou com dificuldade: – Abença, pai... Abença, mãe... Adeus... – Olhou para o teto: – Deus... que... me... perdoe... Cerrou os olhos e expirou. O velho médico acabava de chegar (p. 94).

Em Inambu, os apaixonados Marcolino e Celeste reencontram-se, retomam o namoro, o noivado, casam-se. E vão morar no terreno onde o rapaz tem a sua casa, a roça de arroz (compartilhada com as graúnas). E vem o primeiro filho. A vida que a esposa levara, em São Luís, como prostituta, suscita angustiantes dúvidas, em Marcolino, quanto à paternidade do menino, levando-o a permanecer afastado, indiferente à mulher e ao filho (para desgosto de Celeste), até ser surpreendido e conquistado pelo bebê, aos dois aninhos, chamando-o, ternamente de “pa-pá... papá...”. Aí tudo muda, o amor entre os dois se revigora e Celeste engravida, mais uma vez. E chega o dia do batizado do primogênito, num domingo alegre, na igrejinha de Palmeiras, onde os esposos, familiares e convidados festejam unidos, na praça; os homens bebendo para um lado, as mulheres conversando para outro... E à noite haveria baile. É quando tem desfecho um encontro inusitado: Zeca Duarte, caixeiro-viajante, avista Celeste (passando pela barraca em que está bebendo, para chamar o marido, em outra barraca próxima) e diz, entre risos, aproximando-se dela:

– Celeste! Ora gente, se não é Celeste, a melhor puta que eu já conheci! Minha filha, o que fazes aqui neste cu-de-mundo? E abria os braços para a mulata. [...]. – Seu filho da puta! (p. 146-07).

A voz de Marcolino soa precisa, em consonância ao murro na cara do pilantra – que reage, endereçando-lhe três balaços no estômago. O desventurado cai e morre, instantaneamente, sendo ali mesmo (em Palmeiras) enterrado. É o final (infeliz). O Mau Samaritano (1999) – ainda na vertente regionalista, num confronto do rural com o urbano, sem faltar o suspense, o paralelismo, o ritmo cinematográfico, o timbre popular do linguajar maranhense do interior, eis mais um digno representante do nosso romance de costumes, a confirmar o talento criativo, a versatilidade de excelente pintor de paisagens, profundo conhecedor da alma humana que, no seu olhar prescrutativo, na “acuidade de um sociólogo”, consegue absorver e retratar, “o nada incomum sofrimento de humildes famílias de lavradores da Baixada Maranhense, a se debaterem nos terríveis bastidores da pobreza 150

absoluta, do analfabetismo, da discriminação social” – como observa o professor e poeta Manuel Lopes100 (In; VIANA, 1999, aba esquerda da obra) para quem o autor:

Dono de impressionante capacidade criadora, claro e preciso, iguala-se, em naturalidade, no manejo fácil da linguagem popular, aos tantos contadores de estórias, fatos e causos que até bem pouco nos animavam as bocas-de-noite e que o progresso vem tratando de erradicar da ingenuidade e da paz ainda restantes nas longínquas comunidades rurais deste país” (Id. Ibid).

É no paralelismo de duas histórias (a do Dr. Ezequiel e a do bandido Chico Navalha), simultaneamente narradas no percurso de uma noite, que o enredo se vai organizando, os episódios, aparentemente isolados, entrando em consonância com o eixo narrativo central – que se abre com um fato comum, mas num modus inusitado. Noite alta. O Dr. Ezequiel Pereira da Silva (conceituado cardiologista de São Luís), acorda sobressaltado, com o latido dos cachorros no jardim de sua casa. Acende a luz e sai, ante o temeroso olhar da esposa. Lá fora, depara-se com um ladrão, “um rapaz de entre dezoito e vinte anos, meia-altura, pardo, feições simpáticas, razoavelmente bem vestido [...]. Um filete de sangue escorria de seu braço direito, onde um dos animais lhe fizera entender a impossibilidade de qualquer reação” (p. 09). Já acalmados os cães, Ezequiel, revólver em punho, já tendo rendido o marginal, avisa-o de que vai chamar a polícia, telefonar para a delegacia, ao que o marginal exclama, suplicante: “– Pra delegacia não, Chefe! Não faça isso! Eles lá bate na gente [...] quando não acontece coisa de mais pior! [...]” (p.11). E a polêmica vai ganhando consistência. Ezequiel, argumentando contra o roubo, em favor do trabalho digno e honesto; o outro, defendendo-se, justificando os seus atos, alegando as dificuldades que a vida sempre se lhe impusera e impõe, a fome, a impossibilidade de arranjar trabalho... ao que o médico protesta, replicando:

– Pois olha, Chico Navalha: eu não acredito – não admito mesmo – que ninguém me diga que tem que ser ladrão para não passar fome! Necessidades piores que as que passei, ninguém passou, meu velho! [...]. Essa casa bonita, que aqui vês, é fruto do meu trabalho, do meu suor, do meu sacrifício! – Olhou duro para o rapaz: – Mas isso é o que estou colhendo agora, depois de anos de luta e sofrimento! – Mudou de tom: – És daqui de São Luís? – Nasci aqui, sim senhor! – Pois eu não. Sou do interior. Da Baixada, de uma família de oito irmãos. Com quatro anos, perdi minha mãe e meu pai eu nem conheci. – Balançou a cabeça constatando as palavras: – E ali, sim, rapaz, era sofrimento (p. 12).

100 - professor universitário, poeta e escritor maranhense, membro da Academia Maranhense de Letras. 151

E o Doutor Ezequiel, alinhando duas cadeiras à mesa, convida o interlocutor a sentar ao seu lado, para ouvir a sua história de vida, que se vai alternando com a dele (Chico), ambas narradas em terceira pessoa. E o diálogo se vai estabelecendo, por vezes oscilando entre o humor e a tragédia, ganhando tons de dramaticidade e contornos surpreendentes. Órfãos de pai e mãe, os oito irmãos da família Pereira da Silva (o mais velho, Sebastião, com treze anos), moravam no Tremendal – “umas vinte casas espalhadas no descompasso das povoações não planejadas, ladeando a estrada carroçável que servia de interligação com as comunidades do município de Perimirim, antigo Macapá [...]”. (id. ibid., p. 15). Arranjavam- se na casinha humilde e precária, que lhes deixara a mãe, todos sofrendo “um misto de compadecimento e execração popular”, por conta da doença que vitimara os pais – a tísica, como então era conhecida a tuberculose, sempre temida pelo ainda então considerado “infalível contágio”. Assim, “eram evitados, marginalizados, quase corridos dos acontecimentos comunitários, quando os havia” (p. 16). Por sinal, a casa dos irmãos era forte e convincente argumento de que se serviam as mães da redondeza, em suas ameaças de castigo aos filhos pequenos, como por exemplo: “– Zezinho, te coida, piqueno, senão eu te bazugo na casa de finada Nhá Doca! – santo remédio para que se aplacassem os ânimos infantis, o pavor a estampar-se-lhes às faces” (p. 16). Ezequiel, pois, dá o seu testemunho de vida. Vida de menino pobre e desamparado, discriminado, na Baixada Maranhense. Analfabetos, visão de mundo restrita, ali, a partir dos oito anos, os irmãos já eram “forçadamente adultos, obrigados a assumir as lides da vida, por absoluta necessidade de subsistência” (p. 17) – no roçado, na invernada (garantindo, diariamente, o pescado), no trato da pequena criação (algumas poucas aves: galinhas, patos e alguns porcos), caçadas pela mata (juritis, pecoapás, surulinas, macaco, camaleão), mesmo assim não conseguindo vencer o espectro da fome. A Esperança reverbera, no seu horizonte, iluminando-lhe a mente e o espírito, ampliando-lhe a visão de mundo, quando chega, em Tremendal, um sacerdote, em desobriga, permanecendo por todo um dia, no povoado: o Padre Alessandro, que fica sabendo, em conversa informal, da existência dos meninos segregados e, indignado com a situação, mesmo nas culminâncias da ira (para surpresa e incompreensão dos presentes), exige-lhes a presença imediata. E é assim que os irmãos, desconfiados, vêm, todos, à igrejinha, “tomar bênção pro Padre-Mestre” (p. 20). Ezequiel, então, com nove anos, chega a conversar com o padre, que lhe admira a vivacidade, a inteligência e, de um jeito simples, fala da imensidão do Estado do Maranhão, tão pequeno, ante a dimensão do País e este, por sua vez, mínimo, em relação ao Planeta, ao 152

Universo, “para chegar à conclusão da pequenez de tudo isso ante a grandeza e majestade de Deus Pai, Todo Poderoso” (p. 20).

Padre Alessandro empolgava-se, nessas proporções, enquanto o menino retinha para o subconsciente a grata possibilidade de existirem, por esse mundão afora, lugares onde as pessoas certamente tratavam seus semelhantes com igualdade, vilas onde gente como ele e seus irmãos não seriam expurgados do convívio geral, terras, enfim, onde ele e os seus poderiam viver em paz, consigo e com o mundo. E enquanto o padre falava, Ezequiel, olhos brilhando, sonhava acordado com o maravilhoso mundo em que poderia viver com dignidade e respeito. E jurou a si mesmo, naquela tarde de domingo, que um dia sairia à cata desse mundo de sonhos (p. 20-21).

Tendo guardado, na mente e no coração, todos aqueles eflúvios benfazejos, firmemente decidido a aventurar-se ao encontro do seu Jardim do Éden, ou Eldorado, Ezequiel comunica aos irmãos o seu propósito:

– Gente, eu tenho um negoço pra dizê pra vocês. É coisa pensada e decidida. [...]. Venho pensando nisso há muito tempo, desde aquela conversa que tive com o Pade- meste. – Sorriu sonhador: – Tem lugar por aí por esse mundão de Deus que gente como nóis é respeitado, é tratado como gente – o pade me disse. Eu vou caçar esses pouso! [...]. Amanhã, por riba do cedinho, eu ganho chão (p. 24).

Dito e feito. O garoto, já com doze anos, ao amanhecer do novo dia, ainda escuro, sem se despedir de ninguém, sai, estrada afora, dando uma última olhada àqueles arredores. Pergunta daqui, informa dali, uma parada para o descanso, o sono, após dias de viagem a pé, consegue chegar em Pinheiro, à porta do Patronato, ao encontro do Padre “Lixande”, que o admite na instituição. Ali, entre peripécias e trabalhos, com muita força de vontade, vem a ser alfabetizado, conclui o primário, aprendendo, também, artes manuais. Aos 16 anos (Frei Ambrósio já lhe tendo providenciado o registro de nascimento, no Cartório da região, o diploma de conclusão do curso), expulso do Patronato por transgressões eróticas (envolvendo- se com a filha da empregada), dispõe-se, “com a cara e a coragem”, a ir para a capital, ali chegando depois de muitos percalços, para enfrentar uma vida de muita luta e sacrifícios. O primeiro emprego, arranja-o numa fundição, com a ajuda de “Mané Boca-de-Solha”. Serviço pesado: carregar pedaços de ferro velho, alimentar o forno com troncos, mas sem nada reclamar. E vai subindo de categoria. No primeiro ano, não consegue estudar – aproveita para se organizar, conhecer os meandros do ofício, a cidade, em suas ruas e vielas, mas sempre firme e determinado no seu objetivo, desligado dos entretenimentos, economizando o máximo possível do pequeno salário. Ao descobrir a Biblioteca Pública, torna-se seu frequentador e leitor assíduo. E ali mesmo, às voltas com os livros, fica sabendo que, no Liceu Maranhense 153

(colégio do Estado), o ensino é gratuito, implicando, tão somente, a submissão do candidato aos exames. A partir de então, concentra-se mais ainda no seu foco, resumindo sua vida ao trabalho e ao estudo. Presta exames, passando pelas provas orais e escritas, sendo aprovado com distinção, merecendo comemoração, pelo chefe e os amigos. Por conta dos estudos, depois de muito lutar junto ao patrão, consegue reduzir o turno de trabalho, ainda que ganhando menos – só dando mesmo, o ordenado, para a alimentação e para o quarto em que se abrigava, o que não lhe importava, desde que conseguisse frequentar o tão sonhado colégio, concluir o ginasial “e seguir em perseguição do sonho sagrado do almejado lugar ao sol” (p. 160). Por falecimento do patrão e amigo “Boca-de-solha”, o estabelecimento passa para outra chefia, com a qual Ezequiel desentende-se, por não admitir que aquele outro desonrasse o antigo patrão, sendo, portanto, despedido do emprego, não conseguindo colocação pela praça, dado às más recomendações do seu desafeto contra a sua pessoa. Desempregado, ameaçado de despejo pela dona da pensão, o rapaz passa dias difíceis, até que recebe a visita do amigo Fortunato que, inacreditavelmente, lhe arranja colocação na farmácia de Seu Osório Laranjeira (Travessa João Victal), do qual ganhou de entrada, pela sua firmeza e disposição para o trabalho, simpatia, solidariedade, um adiantamento para a dívida na pensão e ainda hospedagem gratuita, num quartinho dos fundos. Fórmulas para compor, clientes para atender, ervas e raízes a selecionar, para as mezinhas, o rapaz “logo dominou o métier, sob o olhar aprovativo do patrão” (p. 215). Concluído o curso ginasial, consegue, por conta de um certo artigo 99 (da legislação educacional), com muita dedicação e força de vontade, cursar o Colegial (antigo científico, hoje Ensino Médio), em apenas um ano. Inteligente, sempre disposto a resolver qualquer problema no trabalho, a qualquer momento, bem como a estudar e trabalhar, varando noites, no mesmo ano em que conclui o curso intensivo, dedica-se ao preparatório do Vestibular de Medicina – no qual é aprovado, assim ingressando no universo acadêmico, onde também se faz reconhecido por sua competência, dedicação e responsabilidade. Tendendo para a cardiologia – seja por inclinação natural, seja por incentivo do seu professor, o catedrático Dr. Milton Jardim – eminência nessa especialidade – do qual vem a ser assistente (concluído o quarto ano do curso, recebendo do mestre todo apoio) e mais tarde genro – após os dois anos de estágio/residência (para consolidação e validade do diploma expedido pela Faculdade), num hospital do Rio de Janeiro, vem a se tornar o cardiologista de renome no universo da medicina. 154

Essa é a história de Ezequiel. Paralelamente, desfia-se a de Chico Navalha – filho de uma empregada doméstica, mãe de outros filhos sem pai, criados “ao deus-dará”. Menino pobre, perambulante pelas ruas do centro da cidade, especializando-se sempre, mais e mais, em roubos e espertezas mil. Já homem feito, encontra Juliana, a mulata dos seus sonhos, de quem se torna namorado e amante, tirando-a, clandestinamente, da casa das mães adotivas, levando-a para morar consigo, na sua casa (toda construída e montada com o produto dos roubos bem planejados, dos quais nunca desistira), no bairro do Sacavém. Com a mulher, Chico forma o par de dançarinos calorosamente aplaudidos na vida noturna dos dancings da cidade. Concluídas as duas histórias, o médico propõe ao ladrão uma mudança de vida, considerando a sua juventude, a sua posição de homem casado e pai de família e o fato de que: “[...] um dia, mais cedo ou mais tarde, a casa cai, e o ladrão é sempre descoberto! [...]” (p. 249). Assim, após muitas reflexões e delongas, promessas de regeneração moral por parte do bandido, fica acertado que o Dr. Ezequiel arranjará um emprego decente para Chico, ao que “o mulato sorriu alegre”:

– Puxa, Doutor! Se o senhor conseguir... [...]. – Consigo sim. Deixa comigo. Procura-me segunda-feira, lá no Dutra... aí pelas sete e meia, oito da manhã! – Acrescentou irônico: – Agora é, é tratar de descansar um pouco, que a noite foi puxada... – E foi, siô! – eu nunca tinha conversado tanto na minha vida! (p. 260)

Chico Navalha se vai, levando as armas na cintura (embora a contra gosto do médico, que lhe tenta convencer de que não precisará mais delas) e instado a sair, não mais pulando o muro, mas “pelo portão, como gente séria”, inclusive, aprendendo a mágica do tratamento com os cães, ensinada pelo proprietário: “– Amigo! Amigo! – Para Chico: – fala com eles! Agrada- lhes a cabeça!” (p. 262), proposta que rejeita, com este argumento:

– Quando eu voltar aqui, Doutor, como gente séria, eu vou entrar pelo portão, e sair por lá. Hoje eu entrei como ladrão, e como ladrão vou sair, pela última vez na minha vida – Simulou gaiata continência para o médico, que sorria satisfeito: – Até segunda, Doutor! [...]. – Até segunda Chico! (p. 262)

Teria mesmo o Dr. Ezequiel, com sua história, seu exemplo de vida, conseguido transformar Chico Navalha em um homem sério, um homem de bem? Vejamos: 155

Naquele fim de semana, o médico, empolgado com a possível reabilitação do marginal, contara e recontara o episódio do seu encontro com Chico a um sem número de pessoas. E, pela madrugada, ainda continuava relatando o ocorrido, em visita ao juiz amigo, sob os insistentes rogos da esposa, para que voltassem para casa, pois estava cansada e já era tarde e ele relutando em atendê-la. E justo naquele momento, saindo do dancing, deixando ali a esposa instruída a informar que ele fora ao banheiro “Chico Navalha promovia, com a ajuda do seu comparsa, um raspa completo em sua residência (do Dr. Ezequiel), depois de ter pulado novamente o muro, acariciado os cães – „amigo, amigo‟ –, forçando tranquilamente a janela basculante do banheiro, após confirmar a ausência dos donos e o sono profundo das empregadas [...]” (p. 265). Ao retornar para o mesmo local onde a mulher o aguardava (o Clube dos Sub-Tenentes do Estado do Maranhão, o Sovaco Cheiroso), esgueirou-se, “alcançando sua mesa sem ser percebido” (p. 266).

A mulher riu, os dois riram juntos, e foram para o meio do dancing, onde em breve, à medida que os pares abriam roda, exibiam-se num show particular, requebrando-se, afastando os corpos, colando-os, grudando as coxas, esfregando-se, ao compasso alucinante do ritmo frenético. Acabado o número, dirigiram-se para a sua mesa, sob o demorado aplauso dos militares presentes e digníssimas esposas, ilibadas e insuspeitíssimas testemunhas, a garantir unanimemente a presença do casal ali, naquela festa, durante toda a noite (p. 266-07).

José Sarney – (Pinheiro-Ma., 20.04.1930). Filho de Sarney de Araújo Costa e Kyola Ferreira de Araújo Costa. Escritor (poeta, romancista, cronista), jornalista, orador e político; membro das Academias Maranhense, Brasileira, Brasiliense de Letras, da Academia de Ciências e Artes de Lisboa e do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão. Um dos fundadores da Revista Ilha (1948), integrante de movimentos literários importantes, em São Luís, ao lado de escritores consagrados, como Bandeira Tribuzzi, Bello Parga, José Bento, Lucy Teixeira, Lago Burnett, Ferreira Gullar... Sempre atuante no jornalismo, colaborou em muitos jornais e revistas importantes do País e escreve na Folha de São Paulo, desde 1982. Autor de extensa obra, em gêneros variados: poesia (Canção Inicial-1952, Marimbondos de Fogo-1978, Saudades Mortas-2002); conto (Norte das Águas-1969, Brejal dos Guajás e outras histórias-1985, dentre outros), crônica, romance... gênero a que se dedica a partir dos anos noventa. O dono do Mar (1995 – romance de estreia) – personagens rústicos, linguagem simples, tomada por expressões características do contingente humano (o povo humilde) ali retratado, é 156

obra que vem enriquecer, mais ainda, a literatura brasileira, em especial a vertente regionalista. Um romance do mar, pode-se dizer, a projetar-se num cenário de rara beleza e numa mescla do real/surreal; natural/sobrenatural (o mítico extraído das lendas populares, correntes na região), tradição, contemporaneidade, atemporalidade, transcendência, que se vão circunstanciando em flashes-back. A saga dos pescadores maranhenses, em seu modo de ser e estar, de dizer e de fazer, no convívio com mistérios e misticismos, de par com o fantasmagórico, o lendário, os encantamentos, dores e amores, desenganos e tragédias. Impar, na temática abordada, nas personagens apresentadas, no retratar do oceano, no esplendor de sua imensidão. As paixões humanas comoventes, nele inspiradas e compartilhadas, em suas alegrias e dissabores – que o autor, num olhar, ao mesmo tempo de psicólogo, pescador e escritor, vai iluminando, com muita habilidade, nos matizes da arte literária. Narrativa “... mágica e real ao mesmo tempo, pungente e apaixonante”, a desenvolver-se “num clima de fantasmagoria lírica, de fascinante transcendência ...” (SILVA, 1995, p. 41), em lições de pesca, geografia, lições de vida. Uma visão do homem como produto de um meio simples, rude, mas “herói do seu cotidiano” (id. ibid.). Nessa perspectiva, e nessa tônica de realismo mágico (sem precedentes, na literatura brasileira), vem à tona o amor/paixão do protagonista Antão Cristório (o Capitão Cristório, patenteado pelo mar), por Quertide, desaparecida misteriosamente no mar e personificada, incorporada, na biana Chita Verde (nome inspirado no vestido usado pela jovem). É a transferência do amor por uma mulher a uma canoa (ser inanimado), numa atitude levada aos extremos, com Chita Verde a simbolizar a energia vital/libidinal do pescador apaixonado. São camadas de tempos que se vão sobrepondo na construção, no resgate da memória, de um passado único, que se imiscui no presente, na vida desses heróis do cotidiano, em suas aventuras pelo mar (navios naufragados em tempos remotos, a biana pesqueira, no dia a dia de Antão Cristório). Tudo se passa numa comunidade de pescadores, no litoral maranhense, em meio a praias e mares (ricos em peixes e lendas populares), região condicionada por enchentes e vazantes, pelos ciclos da Lua, períodos de fartura e/ou escassez do pescado:

O Golfão Maranhense, complexo geográfico de variadas características e fauna e flora diversificadas, reino das bianas e igarités dos pescadores do Maranhão. As baías de São Marcos, São José, Panaquatira e arquipélago de Santana. São pontas, praias, parcéis, ilhas, atóis, mangues, barreiras, baías, croas, bancos, lavados, igarapés, quebradas... Araçagi, Atins, Aurá, Banco Feliz, Barreira Vermelha, Boqueiro, Canto, Cararaí, Caranguejos, Carimã, Croa das Ânsias, Cinambutina, Cumã, Curupu, Guaíba, Guarapirá, Guarapiranga, Guimorna, Iguaíba, Itacolomi, Itapari, Itaúna, Lampadosa, Lençóis, Mamuna, Manoel Luís, Mojó, Mujijaia, Munim, Panaquatira, Pau-Deitado, Raposa, Raspador, Ribamar, Risca, Rochedo, Santana, São José, São 157

Marcos, Tabaiana, Tauá, Timbuba, Tubarão, Tucunamdiba, Vieira (SANEY, 1995, p. 265).

O mar, que também é personagem e contexto, às vezes protagonista, cheio de mistérios e de vida, figura como senhor da vida das pessoas que dele tiram o seu sustento, que vivem em suas proximidades. Mar bravio – porto seguro de embarcações e por vezes, também, carrasco impiedoso daqueles que se aventuram em suas ondas, elemento de referência no contexto lírico, quanto ao aspecto físico dos acontecimentos. Na concepção do antropólogo etnólogo francês Claude Lévi-Strauss (In: SARNEY, 2000 – aba direita da obra) O dono do Mar é “obra monumental”.

O que José Sarney nos faz tão maravilhosamente ver é o duplo aspecto sobre o qual pode nos aparecer o mundo sobrenatural: muito distante no espaço ou muito distante no tempo. Frequentemente, disse e escrevi que para nós, modernos, a história faz as vezes da mitologia. Em seu livro, a mitologia popular floresce em evocação do passado, relativamente próximo para os homens ignorantes da história, mas que, na pena do narrador, assume dimensões muito mais vastas e torna presente, para nós, a epopeia marítima da nação portuguesa inteira que se perpetua diante de nossos olhos, graças a Sarney, através da vida laboriosa de humildes pescadores do litoral brasileiro... (id. ibid.)

Ronaldo Costa Fernandes (São Luís-MA. 29.08.1952) – professor universitário, poeta, ensaísta e romancista. Estudos básicos, secundários e universitários no Rio de Janeiro – para onde emigra, com a família, aos sete anos de idade, lá fixando-se até 1983, quando se muda para Brasília, onde passa a residir, a partir de então. Graduado em Letras e Mestre em Literatura Hispano-Americana (UFRJ). Doutor em Literatura Brasileira (UnB). Membro da Academia Brasiliense de Letras (eleito em 03.09.2004 e empossado em 16.11.2005, cadeira nº. 18, patroneada por Cláudio Manuel da Costa). Detentor de vários prêmios literários, como o Casas de las Américas com o romance O Morto Solidário (traduzido e publicado em Havana- Cuba, pela mesma Casa de las Américas e no Brasil pela editora Revan); o Guimarães Rosa e o de Revelação de Autor da APCA (com João Rama-1979); o Austreségilo de Athayde-UBE- RJ (com o ensaio O Narrador do Romance-1979); o Bolsa de Literatura da Fundação Cultural do DF (com Terratreme-poesia/1998); finalista do prêmio Jabuti-1998 (com Concerto para flauta e martelo-1979) e o Prêmio da Academia Brasileira de Letras (com A máquina das mãos-poesia/2010). Pertence ao quadro do Ministério da Cultura, desde 1980, tendo sido Coordenador da Funarte-Brasília, de março de 1995 a janeiro de 2003. Obras: Terratreme (1998), Andarilho (2000), Eterno Passageiro (2004), A máquina das mãos (2004) – poesia; O narrador do romance (1996) – ensaio; O ladrão de cartas 158

(1981) – novela; Manual de Tortura (2005) – contos; João Rama (1979), Retratos falados (1984), O Morto solidário (1991), Concerto para flauta e martelo (1997), romances. Dos seus romances – sempre emitindo, transmitindo, aspectos do contemporâneo e em geral voltados para a crítica da sociedade pequeno burguesa e articulados sob a perspectiva da fragmentação (ou meta fragmentação: a representação da representação), em que o narrador, simultaneamente autor e personagem, como que vai direcionando o leitor por veredas incertas, cujos meandros propõe-se a discernir, visando a um melhor entendimento da leitura – pode-se dizer, vêm destacando o autor na ficção brasileira, pela densidade psicológica dos enredos que, transitando por vários planos representativos do real – o fantástico, o surreal, o absurdo – apresentam-se como um projeto estético/ideológico, que se vai concretizando num todo harmônico. João Rama e suas andanças nas maldições do encantado (1979), é romance mítico, centrado nas peripécias de um novo Malasartes, “amante de condessas, fugindo do cangaço, rei do garimpo e triste alma assolada pela imagem da mãe d‟água”. Curioso e engenhoso; inventivo e criativo, é o livro-revelação de um autor que já surpreende, nessa obra de estreia, pela segurança e domínio da técnica narrativa (na trama e no estilo). Retratos Falados (1984) – versando sobre os dilemas da juventude urbana, o tema do incesto perpassando o tecido ficcional, apontando para problemática do ser fragmentado na sua unidade ontológica, numa convergência do real com o alucinatório, dois são os eixos centrais da narrativa: a alienação e a crise da comunicação ou da sociabilidade, na leitura de Franklin de Oliveira (1984, p. 85) – para quem a técnica adotada por esse autor, na obra em questão, “é a dos blocos narrativos que, na literatura ocidental, apareceu com Maupassant e na brasileira com Graciliano Ramos e Autran Dourado”. Há também, ainda segundo o crítico literário em evidência, “um contraponto de vozes que leva ao confronto existencial dos vários narrados que transitam pelas páginas do livro”, num espaço “ocupado por protagonistas da mesma extração ficcional”. Orquestração surpreendente, de técnicas novelescas, a permitir a livre manipulação das categorias de tempo e espaço ficcionais. A mudança contínua dos focos narrativos é dinâmica capaz de gerar “uma visão totalizante da interioridade das personagens, cuja psicologia é implacavelmente desnudada” (id. ibid.). Ante a fragmentação da narrativa, a ação como se vai diluindo e as personagens perdendo a nitidez, sendo apenas vislumbradas nas entrelinhas. Atmosfera densa e torturante, pode-se inferir, é a dramática situação de incesto, vivida por Mário e Antonina (em São Luís-Ma.) e que, anos mais tarde, vem entrelaçar-se no Rio de Janeiro, numa história perpassada de neuroses, com o fantasma da loucura a ameaçar o casal 159

adúltero Mercedes e Lucas – o narrador, profissional da fotografia que, numa alusão a essa arte, no trecho de abertura, conclui dizendo: “É como se fosse a memória. No mínimo, a memória fotográfica, uma coisa frágil e entrecortada”, como a sugerir que, mais que fotos, tem-se, na obra, “retratos falados”. E estes, representativos de pessoas/personagens que, migrados do norte do Maranhão para a cidade grande, portam consigo “um legado de loucura, de esclerose” e que, “na dispersão carioca, por trás das aparências de classe média bem comportada, vivem experiências-limites: o incesto, as drogas”, como observa Sônia Coutinho (1984, p. 07), para quem nesse “caos narrativo, avulta uma poderosa atmosfera de inquietação erótica e pesadelo infantil, com a presença de uma mãe louca, a encarnar a figura mítica de Ana Jansen, torturadora de escravos, entre imagens de fogo como símbolo de culpa e punição sexual” (ibid). Como diz Herberto Sales (1988, p. 10) – para quem o romancista em apreço “tem, a seu favor, tudo o que um ficcionista precisa para vencer: talento, criatividade, domínio dos seus meios de expressão” – Retratos Falados é livro “de fatura primorosa [...] e traz ao mesmo tempo, na pungência da história e na angústia existencial das personagens, um redimensionamento da realidade, em sua relação profunda com os atos e os sentimentos humanos”. O Morto Solidário (1991) – tendendo para os domínios da metaficção (nos moldes conceituais de Wolfgang Iser) – uma ficção peculiar que funda, no corpus diegético da obra, o princípio da incerteza, da dúvida, na perspectivação do mistério, da melancolia emersa da dor existencial. Uma ficção pautada na elaboração de ficções, o texto literário explicitando suas pretensões e motivações, numa autoconsciência socrática de quem reconhece o quanto não sabe, ou como se pode aventar, ficção sobre ficção: narrativas que se voltam para o seu próprio status ficcional, tematizando o próprio processo da escrita literária, questionando as relações ficção/realidade seus procedimentos de composição, caminho pelo qual tem enveredado a literatura contemporânea, é outro romance de trama sofisticada, transitando por gêneros variados: do mistério ao policialesco, pendendo para o absurdo, o terror... O terrível/temível integrado ao cotidiano da vida, gerando a surpresa impactante, e o tempo suspensivo, dando a impressão de uma história contando outra história – enfim, armadilhas intelectuais, como num jogo de espelhos. É o dilema de Umberto (escritor e publicitário), às voltas com a leitura de um livro (no qual se percebe, ao mesmo tempo, protagonista e narrador), tentando desvendar-lhe a autoria. Tentativa que se justifica no fato de, como na travessia de um mundo paralelo à realidade, perceber-se como executor (no plano do real), das ações descritas no enredo. 160

Simultaneamente protagonista e leitor, Umberto é personagem que se adequa aos moldes dostoievskianos: refém das suas próprias dúvidas, atormentado pelos próprios pensamentos, chegando ao desespero. Será também o autor da história? Eis a questão – “o segredo do abismo”, onde ele se reconhece autor de um crime bárbaro. E a discussão dessa possível autoria com o velho escritor Hildon e a autoria (real ou fictícia) de Pena (crítico de arte), lançam o narrador numa encruzilhada de dúvidas e ações frenéticas, no decurso de uma noite. Numa simbiose cinema/literatura – expedientes que possibilitam a criação de mundos paralelos, capazes de nos emocionar, tensionar, aterrorizar, mas também levar a refletir sobre a realidade que nos envolve – a narrativa principia numa sala de cinema, no Rio de Janeiro. Ali, por horas a fio, o protagonista assiste a um filme que se vai repetindo e transformando, seguidamente:

Agora, aquela estranheza. Não era desatento, pelo contrário, se fosse desatento teria deixado passar as cenas desiguais, trocadas, alteradas. Era num meio de semana. O cinema estava vazio. Gostava do Roxi no meio de semana. Uma sala. Uma sala imensa para três ou quatro gatos-pingados. Mesmo assim, tentei enxergar, no escuro, o rosto das pessoas. Por que não reagiam como eu? Por acaso não haviam se dado conta de que o filme estava alterado? Estava vendo o filme pela quarta vez. E cada vez que o via, em sessões contínuas, ele modificava uma passagem, uma cena ou diálogo. O primeiro impulso era vê-lo uma vez mais. Para observar detalhes – filme difícil, de diálogos longos, enigmático. Era louco por cinema. Costumava assistir duas vezes à mesma película, E sempre saía com a sensação de que perdera algo. (FERNANDES, 1998, capítulo I, p. 07)

O terror experimentado por Umberto resulta do fato de este não atinar com a autoria de O Morto Solidário. Teria sido ele mesmo a escrever um romance, cujas ações, transcorridas num passado já distante, estariam a si mesmo relacionadas, sem que destas conservasse qualquer lembrança?... A morte do amigo Pena atormenta-o, deveras. Como pode tê-lo matado e depois narrado a sua morte se de nada se recorda?... Dosado num certo grau de humor, o romance em questão pode levar ao riso nervoso, ante a impossibilidade de se desvendar a natureza, o enigma do texto em leitura. “A trama urdida por Ronaldo Costa Fernandes, é perfeita, no sentido de prender a atenção do leitor” diz Rogério Lima (1998, p. 04), que acrescenta:

Mas o objetivo do narrador não é enganá-lo. Por isso deixa claro os momentos em que inicia a leitura de O Morto Solidário e o ponto em que termina. Mas daí surge problema: Não há diferenciação dos personagens. Somente o leitor atento não se perderá entre um romance e outro. A grande questão que surge daí: que narrativa seguir? Em qual narrador acreditar? O leitor tem que fazer opção. E essa escolha o narrador espera que seja pelo caminho que indicar, pois enquanto narrador, não quer perder o direito de conduzir o fio da história. (ibid.)

161

O leitor, no entanto, ficará abismado, quem sabe, até enlevado, com essa “fábula noturna”, através da qual acompanhará o personagem Umberto, em sua “noite ambulatória” (para lembrar o poeta Nauro Machado101), percorrendo, com este, ruas desertas, convivendo com Montenegro – que projeta, nos seus desenhos, as cenas do que ainda está por vir – e com outros personagens, como Nana, a quem poderá amar e/ou odiar; o psicanalista Jó, cujo consultório “ficava na Urca, numa casa de dois andares. [...]. O sujeito sério, de barba, gordo, citando a torto e a direito, cachimbo na mão [...]” (p.67) – acusado por seu paciente, Jaury, de roubo de alma; o anarquista burocrata; o médico cineasta, último dos marxistas... Concerto para Flauta e martelo (1997) – finalista do prêmio Jabuti, ao longo das 166 páginas desta obra, se vai desenrolando a saga de uma família refém de seus próprios sentimentos, prisioneira de suas próprias emoções, em um contexto tumultuado por uma revolta popular. José Ewerton Neto 102 (Guimarães-Ma.) – engenheiro metalúrgico (Universidade Federal Fluminense de Volta Redonda-RJ). Membro da Academia Maranhense de Letras (cadeira nº. 11). Após vinte anos no Sul do País, volta ao Maranhão, onde começa a produzir e a participar de concursos literários, sob o incentivo de escritores como Jomar Moraes e José Louzeiro. Autor de cerca de oito livros publicados (e premiados) em gêneros variados: poesia, conto, novela, romance, dentre os quais: Estátua da noite (1978) – poesia; O prazer de matar (1993) e A ânsia do prazer (1995) – novelas; Cidade Aritmética (1996) – poesia; O Ofício de matar (1999) – romance recriado a partir do original O Prazer de Matar (1993 – que marca a estreia deste escritor na prosa de ficção maranhense) e onde se misturam, como ingredientes básicos: a ação e o suspense, a fina ironia. Gênero policialesco, no protagonismo de um “matador de aluguel”, em suas angustiantes e tragicômicas aventuras com “suicidas incompetentes”. Numa dinâmica interação texto/leitor, rumando a um desfecho surpreendente, a trama põe em discussão o problema da “fragilidade humana, numa sociedade corrompida”. Obra em que “o matador é consistente, reage diante dos tipos bizarros que encontra, todos eles uma caricatura dos valores de nossa sociedade. O tom é de farsa macabra e explora a contradição que existe no desejo de acabar consigo mesmo. E no modo de fazê-lo”, diz Elias Farjado Fonseca (1999 – aba direita da obra).

101 - autor, dentre outros muitos títulos, de Noite Ambulatória (1969) – poesia. 102 - não encontramos informações sobre a data de nascimento desse autor, sequer nas obras de sua autoria, às quais tivemos acesso na Biblioteca “Ferreira Gullar” – do Centro de Criatividade Odylo Costa, filho (Centro Histórico de SL). 162

4.3. A expressão feminina no romance maranhense do século XX.

Em verdade, muito mais despercebidos e ainda remando um tanto contra a corrente, no refluxo do romance de autoria masculina, está o nosso romance maranhense de expressão feminina, representado (no século XX) por: Arlete Nogueira da Cruz, Conceição Aboud e Virgínia Rayol, seguidas, anos mais tarde, por Angelita Azevedo Paiva e Rita Ribeiro103. Donde, e muito a propósito, vale lembrar: no transcurso da nossa civilização, a mulher vem recebendo um tratamento desigual, vítima que tem sido do preconceito, ao longo de sua caminhada humana e humanizadora. Só os tempos mais recentes dão conta de que ela (a mulher) vem redesenhando a sua história, transformando seus hábitos e posturas (moldados e cristalizados em séculos de subserviência), buscando, construindo o seu próprio espaço. Assim, pois, mudanças vêm sendo operacionalizadas, na sociedade, à medida que uma geração vai sucedendo uma outra anterior, adotando sempre novos valores. Sabe-se que a atividade literária foi, em suas origens, primórdios e percurso evolutivo, aqui no Ocidente, nos períodos medieval, renascentista, barroco e neoclássico, exclusivamente masculina e exercida tão somente por clérigos e nobres. Com o advento do Romantismo, é que o discurso literário começa a democratizar-se, podendo, então, ser lido e produzido por representantes de outras classes e gêneros, tidos como inferiores, quebrando-se, pois, tal hegemonia. E a mulher, então, paulatinamente, vem tomando consciência de si mesma, do seu valor como ser humano eficiente e produtivo, acreditando e demonstrando-se capaz de vir a ser algo mais além de doméstica, esposa, mãe e mestra. No panorama de nossa historiografia literária, tem-se constatado um fluxo perene de escritoras, poetisas, ficcionistas, ensaístas, que nada deixam a desejar em relação a outras unidades da Federação. E é de se notar que, no nosso Estado, essa produção intelectual vem ocorrendo paralelamente à do homem, passando a enriquecer, mais ainda, este nosso espólio cultural, desde Maria Firmina dos Reis (que, contemporânea do Grupo Maranhense, a este não esteve integrada, tendo passado despercebida da sociedade de sua época, vindo a ser, só muito, muito mais tarde104, descoberta e reconhecida como a primeira escritora maranhense, uma das pioneiras do romance brasileiro de expressão feminina), aos dias atuais. Como já nos foi dado observar, sob o matriarcado de Maria Firmina dos Reis, o romance maranhense tem sua certidão de nascimento datada do século XIX (1859) – período em que, a propósito, se dá a abertura para a entrada, em definitivo, das mulheres no universo

103 - estas ainda muito mais despercebidas no nosso set literário, por nós visibilizadas e incluídas nestas páginas já no final desta empreitada. 104 - em 1975 (sec. XX), através de pesquisas de Nascimento de Moraes Filho, escritor maranhense recentemente falecido. 163

da literatura, já como produtoras, não mais como simples leitoras – condição em que sempre se fizeram próximas do romance, como suas protagonistas e seu público, desde o surgimento do gênero. Vale lembrar que, sempre desapegado das regras e leis, apto à abordagem do cotidiano e numa linguagem de fácil acesso a todos, o romance abre-se para as mulheres como espaço de expressão, a partir do qual, como autoras/escritoras, estas podem exercer a sua arte, revelar os seus talentos, discutir temas de interesse da classe e ainda, como leitoras, assumirem-se como integrantes das experiências de uma comunidade humana, na luta pelas suas aspirações. É o que se vê, por exemplo, em Maria Firmina dos Reis que, consciente das questões que movem o Brasil do seu tempo, já no vislumbre da democracia, ao dar a público o seu romance abolicionista, “desconstrói igualmente uma história literária etnocêntrica e masculina até mesmo em suas ramificações afrodescendentes” (DUARTE, 2004, p. 443). E o mérito firminiano ainda irá mais longe, se considerarmos que não se trata tão somente do primeiro romance abolicionista brasileiro, mas também

do primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente, que tematiza o assunto negro a partir de uma perspectiva interna e comprometida politicamente em recuperar e narrar a condição do ser negro em nosso país. Acresça-se a isto o gesto (civilizatório) representado pela inscrição em língua portuguesa dos elementos da memória ancestral e das tradições africanas. Texto fundador, Úrsula polemiza com a tese segundo a qual nos falta um “romance negro”, pois apesar de centrado nas vicissitudes da heroína branca, pela primeira vez em nossa literatura, tem-se uma narrativa da escravidão conduzida por um ponto de vista interno e por uma perspectiva afrodescendente (id. ibid. p. 443). O romance, pois, vem a satisfazer essa necessidade de expressão e comunicação feminina, como veículo de denúncia da condição socialmente inferior e constrangedora a que a mulher esteve (e de certo modo ainda está) submetida. “A mulher da classe média começou a escrever” – dirá, empolgada, Virgínia Woolf (1985, p. 86), referindo-se à iniciativa como a promoção de uma “mudança [...] de maior importância do que as Cruzadas ou a Guerras das Rosas” (ib. idib.). Enfim, uma nova linguagem literária, na ascensão do romance, a instaurar- se, com a participação cada vez mais visível das mulheres – presença a se fazer notável, mesmo em civilizações distantes e muito diversas da europeia105. No que tange à tradição da literatura de expressão feminina, convém ainda um lembrete a Christa Bürger106 (2009) que, numa mirada retrospectiva, aborda a temática do amor, em seu evoluir, no espaço ficcional, nas diferentes configurações que vem assumindo, na história do romance, em sua longa trajetória – no decurso da qual, muitos dos exemplares desse gênero

105 - como a japonesa, onde a mulher tem destaque especial, no cultivo da prosa. 106 - O sistema do amor: gênese e desenvolvimento da escrita feminina. In: Moretti, (org.), op.cit.2009, pp. 595 a 627. 164

tão popular e amado pelos leitores, para além de sua respectiva época, foram relegados ao esquecimento, “condenados à morte pelo tribunal da posteridade” (LUZZATO, 2009, p. 787 107 ). Não obstante, um grande potencial dessa “expressão artística de um espírito democrático” (CAMUS, 1951, p. 320), projeto sempre inacabado, imprevisível em suas possibilidades plásticas108, está disponível e acessível a todos nós, alargando/aprofundando a nossa visão de mundo enriquecendo-nos em experiências. É o que pretendemos mostrar, num ainda que breve tour pela romanesca maranhense de expressão feminina, naquela vertente que, sequenciando a Maria Firmina dos Reis, aflora a partir da segunda metade do século XX (num hiato de um pouco mais de cem anos), com Arlete Nogueira da Cruz, (A Parede – prêmio Júlia Lopes de Almeida-1960, publicado em 1ª. edição em 1966 – e Compasso Binário-1970);Virgínia Rayol (Espelho de Três Faces-1973) e Conceição Aboud (Galhos de Cedro-início dos anos 50 e Teias do Tempo-1993), Angelita Paiva (Romance de Jully-1983); Rita Ribeiro (Ana Jansen-1995). Como se nos é dado observar, a produção feminina do romance maranhense não se faz tão expressiva em termos de quantidade, se não vejamos: no século XIX, apenas uma representante (Maria Firmina dos Reis), com uma única obra (Úrsula-1859); no século XX, três... cinco autoras, cada uma destas, fazendo-se representar com uma, no máximo duas produções do gênero. Esperemos que o presente século XXI, que já se abre promissor, com a poetisa e romancista Lucy Teixeira (1922-2007), dando a público o seu magistral Um destino Provisório (2001), seja mais fecundo e pródigo, nessa área. Não obstante, como bem o diz a sabedoria popular, “quantidade não é qualidade”. Procedamos, pois, a uma breve leitura crítico-analítica da seara em questão, partindo da biografia de cada uma dessas autoras, seguida de um breve enfoque sobre suas respectivas obras, detendo (possivelmente) um pouco mais o olhar sobre aquela que sequencia, mais aproximadamente, a Maria Firmina dos Reis, nesse gênero da prosa: Arlete Nogueira. Arlete Nogueira da Cruz Machado (estação ferroviária de Catanhede, interior do Maranhão-1936), esposa do poeta Nauro Machado, mãe do cineasta Frederico Machado. Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão, pós-graduada em Filosofia Contemporânea (PUC/RJ), defendendo dissertação de mestrado sobre Walter Benjamin (ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu-alemão), é autora dos romances A Parede e Compasso Binário, além de: Cartas da Paixão (1969 – ensaio filosófico); Canção das horas úmidas (1975 – poesia); Litania da Velha (1995 – poesia), Trabalho

107 - Luzzato, Sérgio. O ano de 2440 – Louis-Sébastien Mercier (1770). Leituras, bestsellers perdidos. In: Moretti (org) op. cit 2009, pp.787 a 799. 108 - Bakthim, 1990, p. 397. 165

Manual (prosa reunida – 1998); Contos inocentes (2000 – infantil); Nomes e nuvens (2003); Sol e Sal (2006); O rio (2006 – “o rio da fábula e a fábula do rio”, na classificação de Carlos Nejar, na apresentação da obra). Na sua prosa de ficção (oscilando entre a novela e o romance), representada em A Parede e Compasso Binário, a autora traz para a cena literária o dilema feminino, no viés de questões identitárias e de gênero. Vejamos: A parede (1966) – dez capítulos compõem este “livro de linha interior, sóbrio, de palavras exatas, um perfeito salto às águas profundas da consciência” no dizer de Josué Montello (In: CRUZ, 1998, aba esquerda da obra). Produção de uma escritora que, aos 20 anos de idade, surpreende, no seu apurado senso de percepção e admirável poder de síntese. Protagonizado por personagens adolescentes (como num memorial a essa etapa impagável/irreversível da existência), a obra vem consubstanciar, mais ainda, em nossa literatura local, a corrente Modernista (já sob os influxos da geração de 60 e nos ecos da ditadura militar), sobrelevando-se, numa riqueza de simbologia e plurivalência de signos (o cotidiano, a cidade, a juventude, a colegialidade, o folclore, as festas, a experiência política, a luta de classes, a incerteza, a angústia do ser e não ser, o amor, a paixão, a vida e morte...), tendo como espaço ficcional a paisagem urbana e como foco o ser humano, em suas relações sócioexistenciais, seu dia a dia na cidade – “apenas o início de uma bela viagem”, diz Josué Montello (apud. Ramos, 1980, p. 25). Viagem hetero-utópica e transtemporal (ousamos inferir), tendo como passaporte o talento criativo, eclodindo por entre as pedras (transcendentais, e factuais) da memória e do agora, para compor, em “narrativa fluente, de bem temperada melancolia e discreta elegância” como o observa Silviano Santiago (In: CRUZ, Trabalho Manual, 1998 – contracapa da obra), o “delicado e comovente” (adjetivação de Leandro Conder, idem), o caleidoscópico mural representativo do contemporâneo, do moderno, do cotidiano, no Maranhão do século 20. Numa atmosfera de nostalgia e mistério, a sugerir a evasão e o sonho, o romance flagra uma sociedade que, sob o signo político da “vergonha [...] da fraude eleitoral sem precedentes [...] o escândalo dos jipões envolvendo o governo do Estado [...] a imoral negociata da candidatura de Assis Chateubriand [...] eleito senador sem vir ao Maranhão [...]” (CRUZ, A Parede. In: Trabalho Manual, 1998, p. 89), está a degradar-se na perda de seus valores humanos, sua nobreza de sentimentos, por conta da demagogia, do egoísmo individualista, do descompromisso social de políticos corruptos, que usufruem do poder em interesse próprio: A cidade, capital do Maranhão e da dor [...] São Luís adormecida sob suntuosos edifícios de corrupção, mas pulsando insone pelo coração de um povo que não se cansa de festejar, magro e desdentado, com cantos e danças, cores e poesia, uma 166

espécie de vitória: a vitória da própria e infeliz sobrevivência. Esse verdadeiro sal da terra! (Id. ibid., p.122)

Em contrapartida, a vibração desse mesmo povo sofrido, mas sal da terra, a expressar sua alegria em ritmo, canto, e dança – como num sopro da criatura a corresponder ao sopro do criador. Nesse clima (que se faz perspectivar no fragmento acima, pontuando aspectos do cotidiano de uma época, confirmando a presença da crônica no curso narrativo desta obra) e num perímetro urbano que contempla todo o convencionado Centro Histórico de São Luís – de um extremo a outro, do limiar do Desterro à Praça Deodoro e adjacências (como num GPS, a estampar uma topo/cartografia, a retraçar, no écran romanesco, o itinerário das nossas ruas e praças, com seus nomes históricos e/ou pitorescos; flagrando bondes, igrejas, colégios... o carnaval, as festas juninas e natalinas, todo um patrimônio cultural, como a evocar o mito do labirinto e do minotauro) – circunscreve-se o espaço narrativo desta obra, cujo enredo, refletindo a questão da identidade, centra-se na busca da verdade do Ser, retratando um tempo cronológico que vem do final da primeira para a segunda metade do século 20 (período pós- guerra, no transe da ditadura Vargas para os “anos dourados” do governo JK), mas desenrolando-se em tempo psicológico, em estilo memorialista e autobiográfico, numa autodiegese narrativa, no contraponto de duas adolescentes estudantes do Santa Tereza (Rua do Egito): Cínzia (situada numa família de nouveaux riches, ascendendo de uma classe média baixa para a alta socialite) e Luisa (representante da classe menos abastada, próxima à plebe). E entre estas, interposta (como esfinge desafiadora), a metafórica/simbólica parede. A parede – título catafórico da obra, morfossintaticamente, um substantivo feminino, determinado, pobre sintagma nominal, frase/oração incompleta a pairar, jazer, no silêncio (eloquente) da capa, em sua finitude, como a suscitar um predicado complementar – já deixando entrever/antever, a partir desse vazio, o tema em abordagem, em sua densidade/fecundidade simbológica. Não se trata de uma parede qualquer, indeterminada, anônima, circunstancial, localizada num espaço aberto, socializado, encontrada por acaso, num lugar distante. É aquela parede – íntima, familiar, habitual. Permanente no recolhimento noturno e no despertar matinal, ou seja: a parede do meu quarto (da protagonista) – espaço de reflexão em todas as instâncias (a conectar-se com o mito da caverna que, como arquétipo do útero materno, aponta para as origens, o nascimento e renascimento, sugerindo a regeneração, a exploração do eu interior, o eu primitivo, remetendo à temática central da obra): “Fui para o meu quarto, sentei-me na 167

cama recostada ao espaldar. À minha frente, erguia-se, sem enfeite algum, a parede (id.ibid., p. 121). No fragmento exposto, como podemos ver, surgem, preenchendo a incompletude, o expressivo vazio titular, o predicado (sintagma verbal) com seus respectivos adjuntos (adverbiais de lugar e de modo), compondo, em ordem inversa, o sintagma oracional, dando sentido à despojada, intransponível parede (interposta entre o ser e o nada, entre um presente instigador e um passado desconhecido, quiçá, esquecido/perdido, submerso nas profundezas das águas imemoriais). Vejamo-lo (na composição da frase) em sua potencialidade e na ordem direta: A parede erguia-se (onde? ali, no meu quarto) à minha frente (Como? Assim...) sem enfeite algum. Haveremos de notar, ainda, o predicado verbal (pretérito imperfeito, em ação continuada) como a sugerir, além da imanência, a inércia, a impotência, em relação ao sujeito narrativo, a continuidade de um processo (uma busca interminável). Diríamos... uma parede exterior, da percepção sensório-visual, mas também da introspecção, relacionada ao mundo interior da personagem, signo a remeter, numa primeira instância, ao campo arquitetônico – construção que se ergue, verticalmente, numa função delimitadora, divisora de espaços e que também fecha a abertura, obstaculizando o livre acesso, a passagem... “um obstáculo que eu queria afastar, mas era ponderável a sua presença” (id. p. 91). Eis porque “Era difícil, assim branca, vertical, uniforme” (id. p. 88) – ao bíblico, hebraico, “muro das lamentações”, ao sentimento de “caverna” (já inferido acima), ao isolamento da torre de marfim (dos simbolistas) e ainda fazendo eco à drummondiana “pedra no meio do caminho”. A Parede que, do plano semiótico/simbólico, repercutindo no plano afetivo/existencial, a reproduzir-se, em seus atributos e funções, na personagem Luísa. A Parede, elemento arquitetural que, na sua expressiva/sugestiva estatidez, impulsiona à reflexão intensa (“sentei- me na cama com as mãos cruzadas entre as pernas, fixando um ponto na parede” – p. 91) – e aqui a recorrência (também) à mitológica, simbologia da Esfinge, a remeter à problemática do segredo, do enigma a decifrar, a um “conhece-te a ti mesmo” socrático, face a face no espelho, do qual aflora, também, o mito de Narciso – “[...] Olhei-me no espelho do quarto e gostei da expressão do meu rosto com a pouca luz que havia: era grave e sério”. (p. 107) Ainda: “... fui de novo ao espelho pentear-me para sair. Encontrei um rosto magro, doloroso, e triste. Fiquei decepcionada. E pensei no engano que aquele espelho podia estar me oferecendo” (p.107) – que neste caso particular (representante simbólico do ego), como que foge à regra, comportando-se estranhamente, entre vaidoso e humilde, posto que: se num 168

primeiro olhar, gosta, logo se decepciona, sincero e verdadeiro, com a imagem refletida para, em seguida, estacionar na encruzilhada da dúvida – que surge diante do “espelho, espelho meu” (de dupla face no jogo penumbra/claridade), ora aparentemente não mais tão fiel (ou quem sabe hipócrita) quanto o fora para com a arquetípica madrasta, posto que, se na penumbra disfarça os defeitos da face reflexionada, na luz plena, os ressalta. E a viabilidade de um diálogo intertextual (e inovador), com o clássico (infantil) Branca de Neve pode ser articulada... E é possível deduzir, destas peculiaridades, digamos proféticas (em relação à própria obra), o muro (do narcisismo) está fadado à fratura/abertura; a enigmática esfinge está prestes a ser enfrentada, quem sabe, até mesmo, derrubada (ainda que o enigma não venha a ser de todo decifrado), em prol da integração do eu solitário/individualista, ao outro, aos outros, muitos outros, na promoção de uma sociabilidade/solidariedade. Da parede para o espelho, ou do reflexo escuro, da sombra disforme, impalpável, sem contornos ou detalhes identificáveis, para a dupla face (grave/séria-magra/dolorosa/triste), no espelho, possivelmente enganoso, tudo sugere que o enredo prospectiva os vários e variados aspectos, os ângulos distintos do eu, face aos antagonismos da vida, na busca de sentido nas relações humanas, sociais, pensando a condição de um sujeito que se inscreve e se revela; ao mesmo tempo em que se dispersa e dissolve, nos meandros da escrita. E detendo-nos um pouco mais no título da obra, visualizemo-lo que, integrando o conjunto iconográfico, ilustrativo da capa do livro (1ª. e 2ª. ed.) – inspirado, este, num fragmento da narrativa: “Levanto-me e estendo a mão sobre ela [a parede] como fiz um dia, e separo bem os dedos. Os cinco dedos. E fico olhando. Depois, negligentemente, retiro a mão e vejo-lhe a sombra na parede. Dança um balé excêntrico”. (p. 88-09) – projeta-se como numa extensão prismático/impressiva do signo parede, num efeito de reflexo ou refração da luz, configurando-se num cisne negro – imagem resultante da sombra da mão contra a parede. E aqui, além do mistério (suscitado pela sombra) e do contrastivo confronto claro/escuro, luz/sombra, branco (da parede)/negro (do cisne), o ícone ainda pode remeter a Andersen, num dialogismo/memorialista com O Patinho Feio (suposto patinho feio, enquanto no seu mundo fechado, inconsciente de sua verdade), que se transforma em cisne, no reconhecimento de si mesmo, no encontro com os seus, com as suas origens:

[...] Um dia, sem que nem pra quê, Albertina chamou-me e disse: – Elas andam dizendo que tu não és filha dos teus pais, ou melhor, dos pais que pensas ter. [...]. [...]. Um dia, despreocupadamente, eu disse a minha mãe: 169

– Ah, sim. As meninas lá do colégio andam me chateando, dizendo que não sou filha de vocês. [...]. Na noite desse mesmo dia, papai e mamãe resolveram contar-me tudo. Ouvi-os atenciosa, sentindo um estranho mal-estar: – Mas por que só agora vocês me contam tudo? E quem são meus verdadeiros pais? – Não conhecemos. Será que agora não vais mais gostar de nós, por isso? [...]. – Ora, por isso? – disse-lhes em resposta, rindo – É a mesma coisa. Mas não era a mesma coisa, não. Pelo menos não seria (p. 46).

E eis o invisível mistério como que prenunciado/pressentido, enigma enfim manifesto, a se impor e interpor. Retomemos a sombra na parede, mão metonimicamente representativa do todo e que, analógica/metaforicamente, transmuda-se em cisne negro (raro), evocando a Andersen, em analogia aos complexos/conflitos interiores, à cegueira psicológica, e que dá a medida do drama interior de Cínzia, na dolorosa equação de sua identidade. Essa configuração de cisne, que se projeta em sombra e “dança um ballet excêntrico”, na parede, ainda evocando a música (Tchikovski) e o ballet (M. Petipa e L. Ivanov) clássicos (Lago dos Cisnes – São Petersburgo, 1895), vem ainda sugerir a iminente possibilidade da abertura (que se fará pelo movimento, pelo dinamismo, pela tomada de consciência e de atitude) para o outro lado, do “transir para o exterior”... que se contrapõe, ante o impasse, como necessária para o voo das descobertas, da metamorfose. E que, sugerida pela sombra (o escuro labiríntico da caverna), se faz representar pela janela – ponto de intersecção entre o espaço fechado (ambiente) e o aberto (o lá fora).

Vou então à janela. Ausculto o espaço e atenciosa percebo, vencendo o silêncio, os sons dos tambores e das matracas deste mês de junho, cada vez mais nítidos, vindos de longe. Penso nos pobres brincantes, desempregados trabalhadores do dia, exibindo seus sorrisos tristes. Vejo-os crescerem para mim no espaço que tenho da janela, num encontro de certo modo projetado, entregando-me afinal a eles cada vez mais completamente. (p.121)

Como podemos deduzir, deste outro flagrante/testemunho, memorial histórico do cotidiano da época, fez-se a abertura (a parede fendeu-se, o “cisne” está prestes a alçar-se em voo...). Cínzia, afastando-se da parede, saindo do obscuro da caverna (seu quarto), vem para a clareira (a janela), como que abdicando, desprendendo-se de um individualismo resistente, num despertar para o outro, o lá fora acontecendo. Momento epifânico, na evolução da personagem e que se dá numa escala gradativa, ascensional, sugerida na lexia/isotopia verbal: ausculto/percebo/penso/encontro/entrego-me. Como num rito de passagem, uma travessia – do egoísmo para o altruísmo, da solidão para a solidariedade, num crescimento do eu individualista que se conscientiza e quer pluralizar-se em um nós sociável, na integração com uma coletividade que canta, dança e se 170

diverte ao sabor dos ritmos percutivos/musicais de tambores, matracas, cavaquinhos, pandeirões (como numa reminiscência de Baco e Orfeu), na identificação com a cidade. Neste como que ascender epifânico, da personagem, percebamos, ainda, a conexão/elo que se estabelece entre a dança interior, individual da imaginação, visualmente refletida em sombras, na parede, e a dança coletiva, concreta, real, audível, do povo lá fora. Povo que representa a luta, a resistência, a confraternização, a solidariedade, o encontro, a liberdade (tudo por que Cínzia também anseia). É a São Luís “bachiana” do Carnaval, do Tambor de Crioula, do Bumba-meu-boi junino. São Luís: epônimo masculino de Luíza, alter ego de Cinzia, invertido/refletido no espelho narcísico do “Ser ou não ser”, na angustiante interrogação do “quem sou eu?”, “de onde venho?”, “quem são os meus pais?”... E neste viés, patenteia-se o diálogo transcendental/transtextual com a dramaturgia grega, na evocação de Sófocles, na reedição/reatualização de um Édipo-Rei, digamos, já em versão feminina. E a viagem à Tebas da Antiguidade, na fadada (mas não trágica, neste caso) tentativa da busca existencial, do encontro com a verdade verdadeira, desconhecida do Ser, renasce (das Cinzas?) no Centro Histórico de São Luís, num percurso/viagem que vem do Caminho Grande, passando pelas Praças do Pantheon e Deodoro, transitando pela João Lisboa, estendendo-se pelos Remédios, passando pela rua Rio Branco, pela praças Odorico Mendes e Gonçalves Dias, em direção à Rua da Alegria, para retornar, pelo mesmo itinerário, alcançando a Rua do Egito, nas imediações do Colégio Santa Tereza (na visualização de Luiza) e culminar na Rua da Estrela. E neste passo a passo, gradativo/progressivo, a que se submete a “verdade do ser” (infere JOACHIM – 1998, p. 17), haveremos de perceber, também, confirmando-se, o mito do labirinto – um “mito de viagem sem destino preestabelecido” (id. ibid., p.15). Vale observar ainda que, no seu como tatear paredes, nas trevas da ignorância, no escuro do estado labiríntico, da cegueira do ser, Cínzia vem ao encontro de Luíza, partindo do Caminho Grande, passando pelo bairro dos Remédios, pela Rua da Alegria, seguindo para a Rua da Estrela, nas proximidades do Desterro (Praia Grande, área hoje batizada por Reviver109), em busca da luz da verdade (e, desprendendo-se destes toponímicos, reverbera uma simbologia reveladora, como um novo clarão epifânico). Vejamos o processo em três etapas ou flagrantes: Por fim, cheguei. Desci do ônibus apressada e entrei em casa correndo: – Quem são os meus verdadeiros pais? – gritei a minha mãe.

109 - Reviver, como é hoje conhecido o trecho do Centro Histório (Beira-Mar), foi projeto de recuperação da área, iniciado nos anos 80, do século 20 p/p. 171

[...]. – Não conhecemos. – Então, como me descobriram? No meio da rua, em algum hospital? Onde? [...]. – Cínzia, tinhas dois meses [...] quando Margarida [...] veio perguntar-me se queríamos uma menina que deixaram na casa dela. E contou-me Margarida como isso aconteceu: „Maria[...] escutou alguém tocar a cigarra. Foi atender e encontrou a menina no chão do corredor [...] envolta num pano branco. Precipitou-se à porta e avistou certa mulher que corria [...]. A mulher tinha virado a esquina [...]. Assim que Margarida concluiu essa história, fui ver-te: eras miudinha e parecias sentir frio [...]. Quando Castro voltou do serviço, contei-lhe tudo. Ele apoiou a ideia e‟... Atirei-me contra ela e abracei-a com força. Ambas choramos muito. *** [...]. Dona Margarida apareceu: [...]. – Conte-me como me encontrou ali no corredor de sua casa há dezoito anos. [...]. [...]. Dona Margarida [...] contou-me quase com as mesmas palavras tudo o que já tinha ouvido de mamãe. Só com um detalhe inédito: eu chorava muito [...]. *** Resolvi procurar Luísa. [...]. Não tardou para que eu visse todas as alunas do colégio apontando da rua do Egito. [...]. Ela vinha. [...]. Encaminhou-se, então para a rua da Estrela, onde morava. Fui atrás. [...]. – Venho exigir-te uma explicação. Basta. [...]. – Explicar-te por acaso quem são teus pais? Sei lá. [...]. Voltei-me, abri a porta e disse, absolutamente convicta: – Conseguiste enfim que eu te odiasse! Ela muito séria e parecendo, afinal surpresa e sincera, andou atrás de mim como querendo alcançar-me: – Desculpa-me. – Como posso? – respondi saindo, já na rua inexistente para mim, como tudo mais em volta, senão eu com aquele sentimento novo e forte (p. 112 a 115).

E eis, detectável, nestes fragmentos, a polifonia, a inscrever-se num discurso permeado, de alguma forma, por outras vozes, numa heterogeneidade linguístico-discursiva a sugerir a presença do interlocutor explicante, e numa contraditoriedade que se faz denotar a partir do discurso do outro, do já dito (Bahktim, 2010), num estilo autobiográfico, memorialístico, no qual se faz preeminente a rememoração, a memória individual. E ainda remetendo-nos aos flagrantes acima, imprescindível se faz notar que, no encontro/confronto desta dupla mutuamente invertida (Cínzia x Luíza), parece chegada a termo esta caminhada ontológica, esta busca (inútil?) da verdade existencial do Ser neste processo digamos metamórfico, na condição desta identidade em trânsito. Tudo aparentemente reduzido a cinzas – como que retrocedendo à poeira primordial, tal qual a personagem foi encontrada no ambiente em que foi deixada quando recém-nascida. Como num cíclico eterno retorno, a remeter à simbologia universal da serpente (uróboro) a crescer... até morder a própria cauda e causar o turbilhão catastrófico final, gerador de um 172

novo recomeço – tema embutido/submerso nos anais do folclore maranhense (literatura oral), circunscrito no mito/lenda da serpente que volteia e “ameaça” a Ilha de São Luís – ou numa continuada advertência quanto à inexorabilidade do “tu és pó e ao pó retornarás”... Tudo suspenso no ar, sem resposta. Mas, então: a história termina assim, sem um fecho conclusivo, uma solução para o enigma?! – haveremos de perquirir entre surpresos e decepcionados. Não esqueçamos de que se trata de uma obra aberta – seja no plano estrutural (no dialogismo, multiperspectivismo, de um eu narrativo que se desdobra em um eu do passado e em um outro eu do presente, a avaliar esse eu do passado, numa polifonia de vozes), seja no plano semântico (discussão/reflexão sobre a verdade do Ser). E nem percamos de vista a simbologia que encerram estes dois nomes antitéticos, no “oxímoro cinza-luz”: Cínzia, a conotar, homônima/homofonamente, com cinza (a sugerir o sem brilho, a opacidade do sem cor) e que, no singular, define-se como resíduo sólido, resultante da combustão completa de uma substância; e no plural, como restos mortais. Cínzia, que parece formar-se da adição/subtração de Luíza – esta a conotar com luz (pp. 80-81), significante que se incorpora à temática transcendental do olhar (para lembrar a estética clássica). Luíza, a que supostamente detém e esconde a verdade. Luiza, aquela que impressiona na firmeza, no brilho do olhar. [...]. Luiza, que trazia no nome o sentido de combate, de combatente invicta [...], esse sal da terra. [...]. [...]. Luíza tinha mais consciência de si, mais lugar dentro da vida [...], era mais definida e muito inteligente. Possuía um olhar tão firme, tão luminoso, que intimidava a gente: e eu lhe tinha medo. Dava-me a impressão de que sabia qualquer ato meu, qualquer ato indigno e vergonhoso e que de uma hora para outra revelá-lo- ia. [...] (p. 49). [...]. Luisa continuava tranquila [...]. Em seus olhos havia uma espécie de luz que ofuscava”. (p.82-83 – grifo nosso) [...]. Luiza [...]. ... virava-se e me olhava como a dizer: “Eu sei que tu estás me olhando”. [...] (p. 93).

Luiza, cujo patronímico insere-se no toponímico da capital maranhense – que, por sua vez, inspira-se num outro, designativo de um santo e de um rei francês, e epítome da massa popular, do Zé Povinho, desfavorecido (mas cantante/dançante, o sal da terra, reiteremos). Diante desta incerteza final – quanto às raízes étnico/biológicas, à origem/hereditariedade de Cínzia (irmã de Luísa?)... resta-nos, num procedimento hermenêutico e analógico, como uma das possíveis soluções para o impasse: um retrocesso cronológico, ao encalço da Antiguidade Clássica (projetando sobre o passado a sombra desta luz invisível, inalcançável, que é este escuro do presente, para que ele, o passado, tocado/toucado por este feixe de sombra, habilite-se a responder a estas trevas do agora, 173

transpondo, ou pelo menos amenizando, a rigidez desta “parede” que se interpõe no presente, ocultando a face de Mnemosyne, a permanecer, como que imersa no Lethe do esquecimento) e assim, respaldados na mitologia grega, possamos vislumbrar (por analogia), nestas cinzas finais, o renascimento glorioso de uma nova Fênix – neste caso particular, já prenunciado, seja no cisne/mão, sombreado na parede; seja na epígrafe 110que Arlete escolheu para a sua obra (excerto de Hannah Arendit – A Condição Humana), a falar de novo recomeço, da capacidade de reiniciar algo de novo, iniciativas, natalidade; seja no nome das duas personagens – Cínzia-cinza (aquela que, possível, circunstancialmente, já foi luz, pelo menos fogo queimante, enquanto em estágio de mera substância a consumir-se, num processo de combustão) e Luíza-luz (quiçá ainda na potencialidade de vir a ser cinza, conforme a natureza, o estágio atual da sua incandescência, autêntica ou pretensa luz: fogo consumidor/purificador ou luminosidade já decantada, no cadinho da experiência, num processo alquímico, natural, de transfiguração da dor em luz – para lembrar o saudoso Odylo Costa, filho que nos inspirou esta frase a partir da primeira quadra do seu Discurso a um poeta jovem: “A dor depois de mudada/ Em luz serena figure/ Em teu verso como pedra/ Em chama se transfigure” (In: CORRÊA, 1989, p.28) – de sublimação do ser, no alcance da luz espiritual, que já só ilumina e não mais queima). E ainda respaldando-nos no cíclico eterno retorno, poderíamos sugerir que, já tendo transitado (talvez) do fogo consumidor/purificador (na travessia de um possível Hades) para um estado terminal/promocional, Cínzia pode estar pronta para um recomeço no advento de uma nova Luz. De modo que: tudo pode acontecer, tudo pode vir a ser, até mesmo o renascimento de uma nova Fênix, no devir desta personagem, nos entremeios e entrecortes deste espaço estético/discursivo, neste romance aberto (estrutural e semanticamente aberto, reiteremo-lo, problematizando, no enredo, os limites do conhecimento e da identidade, com a incerteza final, no que respeita à consanguinidade entre Cínzia e Luísa), que reúne, no seu interior, traços comuns a textos de diferentes épocas, com estas dialogando, da Antiguidade ao tempo presente, referencializando a história, como que soldando as fraturas intervalares das vértebras do tempo, com o sangue do seu lirismo poético/narrativo – para lembrar Aganben (2009) – integrando-se ao presente (num testemunho, num reativar/reconstruir da memória da São Luís de outrora, partindo do individual para o coletivo, em todos os referenciais históricos, culturais, políticos e sociais desse contexto espaciotemporal do século 20 próximo passado) e

110 - “O novo começo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir. Neste sentido de iniciativas, todas as atividades humanas possuem um elemento de ação e, portanto, de natalidade”. 174

projetando-se para o futuro (eternizando-se), a advertir para o dinamismo da verdade do Ser e do alter – que não é passiva, sedentária (como o demonstra o caminhar da protagonista) mas gradual, dinâmica e nômade. A Parede, pois, “é intransponível”. Eis que a janela aberta detém-se no mistério de Luíza, reserva de sentido inalcançável, resistência à explicação hermenêutica, “nova parede erguida depois da epifania de uma primeira janela”, adverte Joachim (op, cit., p. 17), revelando que “esse finale deceptivo é uma advertência [...] quanto à possibilidade do signo Cínzia de ceder à plenitude de sua situação existencial hereditária” (id.ibid.). Advertência, ainda, quanto à irredutibilidade lacunar e plural da identidade, da verdade do Ser – que não se faz conquistar em definitivo, como o demonstra o caminhar incessante da protagonista, até porque ...“a remetência a um além é perpétua” (id. ibid.). E o encontro com a verdade é apenas presumível (não absolutamente verdadeiro), como o é, também, a harmonia entre conceito e objeto (CANEVACCI, 1966). Que estas modestas (e também abertas) considerações possam atestar o gênio arletiano, no constructo de uma obra aberta, que transpira o cotidiano, o contemporâneo – no ultrapassar do agora e no remeter-se ao passado; no eternizar-se no tempo e no referencializar da história, ao mesmo tempo integrando-se ao presente e se projetando para o futuro – a modernidade (como estética literária do final da segunda metade do século 20), à medida que, abordando uma temática existencialista, dialogando com tantos outros autores, mas flagrando o presente, arremete-se para o futuro, na esteira da capacidade inventiva do renovo, da recriação do já dito que, revestido da novidade, torna-se o inédito. Assim é que pudemos ter, por exemplo, a reescritura inovada do drama de Édipo, numa versão feminina (como já aludido acima), num confronto entre possíveis irmãs (não mais entre pai e filho para culminar no parricídio e no incesto filiomaternal, o que já se constitui novidade) e sem o ancestral desfecho trágico (Cinzia não alcança os domínios de alethéa, não tendo, portanto, acesso ao fruto proibido da sua verdade; mas também não tem que pagar o preço dessa cegueira do eu subjetivo, com a cegueira objetiva dos olhos físicos) e com abertura ad infinitum para os novos começos – como filosofa a voz enunciadora, na primeira frase que inicia o romance: “Os começos são para uma precipitação”. No que toca à interação com outras produções literárias, em épocas diversas e em seus empreendedorismos linguísticos/estilísticos e projetos discursivos, o romance de Arlete é, por excelência, fecundo, se não vejamos. Sem contar o filão de autores/obras com que A Parede contracena, em sua transtextualidade, desde a mitologia greco-romana (e já sinalizados neste trabalho), ainda podemos elencar, por exemplo, Clarice Lispector no que toca à introspecção 175

psicológica do eu; Marcel Proust que, num memorialismo autobiográfico, em busca do tempo perdido, também adota o quarto como espaço ficcional da meditação; Jean Paul Sartre, transparente no existencialismo, no desconforto metafísico que dá sangue à temática em apreço (perceptíveis, sobretudo, nas pp. 63-67). A propósito, como em Le Mur, a narrativa em discussão repousa na problemática do eu, cuja identidade/verdade, só se faz acessível na integração das outras consciências e mediante a “fratura do muro do narcisismo e a derrubada da Esfinge” (JOACHIM, op. cit. p.09). Quanto à polifonia, ainda inferimos que esta se faz recorrente, no romance, em múltiplos aspectos, seja no cruzamento dos muitos e variados discursos que se interpenetram na obra (o discurso do eu individual a imbricar-se com o discurso da história, no concurso da evocação rememorativa, o discurso da tradição, da cultura, da educação e sociedade, do folclore, da literatura...), seja num cambiar de vozes que se internunciam. A voz da protagonista, nos vários status identitários que vai assumindo, ou seja, a de um eu em constante (ou interminável) processo de apreensão/transformação de si mesmo (o iludido, que se julgava legítimo descendente dos Rodrigues de Castro, o que ignora a sua própria identidade, o eu do presente – avaliando um espaço que pode ser único: o quarto), o eu do passado (rememorativo, configurativo da identidade cultural de São Luís, representada no espaço polivalente das ruas e casas), o de antes da mudança do nível socioeconômico – caracterizando-se no vestido branco; o de depois, a iniciar-se, habilitar-se, nos trâmites da socialite – caracterizando-se no vestido rosa; o que morava na casa modesta da Rua da Alegria e fingia morar no bangalô da Praça Deodoro; o que, depois, passa a residir no prédio de dois andares do Caminho Grande...) até diluir-se na incerteza, verificando-se, nesse caminhar, nessa, digamos, contínua metamorfose, o impacto indivíduo/sociedade. Compasso binário (1970) – sobretudo um movimento de alma (alma e corpo) – duas linha paralelas rumo à liberdade. Inspirado na teoria musical (área em que o compasso representa um conjunto de pulsações vibrantes e suaves, que se repetem em uma música, o binário agrupando os tempos de dois em dois, caracterizados, estes, por uma batida forte e outra fraca), o título desta obra já remete, por analogia, ao drama das duas protagonistas femininas que seguem, nesse compasso – que na Física (mais especificamente na Mecânica), se faz caracterizar por forças direcionalmente opostas, mas paralelas, em termo de intensidade – assim configurando duas forças, de um certo modo, opostas, mas, ao mesmo tempo, sintônicas. Uma dupla história, portanto, a desenrolar-se nos vinte e cinco capítulos em que se organiza a narrativa, numa originalidade de estilo, “uma espécie de magia que, 176

inopinadamente, aparece e que nos leva a um segundo mundo, misterioso e imprevisto, que intensifica muito a narrativa e ilumina a ação” – como observa Alceu Amoroso Lima (In: Trabalho Manual, 1998 – aba esquerda da obra). Até porque a “arte é precisamente o que está para lá da natureza. E é isso que aparece, com muita propriedade, na sua expressão da realidade” (id. ibid.). Novamente, o confronto entre duas representantes femininas: Baianinha e Natália que, contracenando em palcos sociais e culturais diferentes, cruzam-se, em circunstâncias afins, à medida que ambas protagonizam o drama da mulher-objeto sexual, numa verossimilhança narrativa que se desenrola no “compasso binário” de dois espaços geograficamente paralelos, mas socialmente paradoxais, na capital maranhense: a já extinta ZBM (Zona do Baixo Meretrício) – ambiente de prostituição, retratando a vida das mulheres, suas dificuldades e lutas pela sobrevivência, a humilhação e discriminação por que passam, na São Luís dos anos 60/70, do século 20 e o hospital Djalma Marques (o popular Socorrão I). Duas histórias como que interligadas por um mesmo fio – o da transgressão dos direitos da mulher. Baianinha, em sua “vida fácil”, ganha o pão de cada dia com o suor do seu corpo, num dos cabarés da ZBM, a pensão Carmen – “de lâmpada vermelha”, no bairro do Desterro (Centro Histórico de São Luís111). Ali, nas imediações da Praia Grande (Beira-Mar), que transpira o passado colonial da cidade, nos seus casarões portugueses, becos e escadarias, pedras de cantaria... é alvejada por um tiro, após rejeitar um cliente, na boite. E segue, moribunda, na madrugada, para o hospital, em uma ambulância, acompanhada de duas colegas de “trabalho”, sendo recebida, no setor da emergência, pela equipe médica, incluindo Natália, então estudante/estagiária de medicina. Esta, examinando-a, na padiola, após tirar-lhe a pressão, indaga sobre o ocorrido, constatando que uma bala, à altura do estômago, ali ainda permanece e observando, de pronto, as acompanhantes “concluindo – virgem que era – que se tratava de prostitutas: aqueles olhos sem nenhuma esperança, a linha dura das bocas, os vestidos absurdamente vulgares, os gestos, uma certa agressividade, qualquer coisa nelas, as identificavam facilmente...” (p. 165-06). A sensibilidade, a empatia de Natália, em relação a Baianinha, no entanto, logo se faz aflorar, ante aquele ser humano frágil e indefeso:

Ali era como se ela não tivesse o seu passado nem o seu futuro: só aquele presente. E assim, presentificada e disponível, completamente sensibilizada, assumia inconscientemente a dor que foi descobrindo na vida de toda e qualquer prostituta. Olhou em seguida as outras duas, percebendo nelas uma ansiedade cheia de espanto (p. 167).

111 - hoje tombado pela Unesco como patrimônio cultural da humanidade. 177

Não obstante, o diálogo, entre as duas facções, em sua forma de expressão respectivamente diferenciada, revela momentos de tensão e incompreensão, durante o processo, acentuando a dicotomia entre as classes sociais em confronto. Ao ser operada pela equipe médica, Baianinha necessita urgentemente de uma transfusão de sangue – não dispondo, o hospital, do tão indispensável elemento para a manutenção daquela vida, o enfermeiro solicita às acompanhantes da vítima que o providenciem. E eis instada a impossibilidade que conduz Baianinha de volta à pensão, em meio ao tensionado colóquio aludido acima: – Isto aqui é ou não é um pronto-socorro? – Acha pouco o que já se faz, suas mal agradecidas? – Não fizeram favor! – Cala essa boca, sabe lá o que diz? – Sei melhor do que tu, que é que tu pensa que é, qualira safada? – Para de dizer besteira e cuida logo em conseguir sangue senão essa outra vagabunda aqui vai acabar... – Deixa de ser miserável! ( p. 175)

Duas realidades conflitantes, nem sendo necessário um aprofundamento reflexivo para perceber-se os extremos então confrontados: a prostituta, por tradição, pertencente a uma casta marginalizada, invisível na sociedade, representando a desonra; a classe médica, por sua vez, inserida num grupo tradicionalmente hierárquico (remontando a Hipócrates), inspirando a seriedade, o respeito, o poder, a honra. Nesse paradoxo, entretanto, instaura-se um certo paralelismo unificador, à medida que o passaporte da prostituta para o outro mundo (o tiro que a vitimara e a impossibilidade de uma transfusão de sangue após a intervenção cirúrgica) abre oportunidade para que essas duas mulheres (Natália, futura médica, e Baianinha, “mulher da vida”) comunguem de um mesmo cálice. E naquela mesma zona urbana, naquela mesma noite – em que a lua cheia “parecia inútil mas cumpria, fiel e feminina, a sua fase dentro do ciclo mensal, numa ordem em que os homens, sempre afoitos e curiosos, já ameaçavam” (p. 165) – e num ambiente reciprocamente comum: o quarto. Aquela noite, em que Baianinha tem sua vida banalizada, após esquivar-se a um homem, que solicitara seus serviços no cabaré, vindo o desentendimento e a agressão criminosa, é também a noite em que Natália, encerrando o seu plantão hospitalar, decide abrigar-se na casa de Raquel (dona de um bar – esquina da Rua da Palma com a de Nazaré), sua melhor amiga. E ali, no quarto de hóspedes, onde se recolhe para dormir, é estuprada por Pedro (marido de Raquel), no momento em que Baianinha, não mais resistindo, vem a óbito no quarto do prostíbulo. Apreciemos a cena: 178

Quando chegaram com Baianinha, houve certo alvoroço na porta da pensão quebrando o silêncio e povoando o deserto que se espalhava por toda a rua. Mas o movimento durou pouco. Logo que voltaram com a padiola, o motorista partiu na ambulância e as mulheres se recolheram, cercando solidárias a prostituta, procurando, cada uma a seu modo, prestar um socorro. Tudo na rua, então, voltou ao mistério (p. 181). [...]. As mulheres, uma por uma, se ergueram. Parecia um ritual. A luz elétrica faltou e a lua cheia, que entrava no quarto pelos buracos e frestas, sumiu numa nuvem grossa. – Morreu – disse alguém sob a luz da vela (p. 212-13).

É de se perceber que o assassinato de Baianinha, ocasionando a falta dos serviços eróticos da prostituta à clientela, abre a perspectiva/justificativa para os atos, (in)consequentes de Pedro (alcóolatra, frequentador da ZBM, que não mais encontra, naquela noite, a sua válvula de escape), acarretando-lhe uma fremente necessidade de dar vazão ao seu impulso carnal com outra mulher, que não a sua cônjuge. Daí, o assédio, a violência sexual imposta a Natália (amiga de sua esposa, a estagiara de medicina que atendera Baianinha), vir como solução emergencial. A cena do estupro enuncia-se em terceira pessoa, em onisciência narrativa: [...]. E via a lua e as estrelas, sem saber de lua e de estrelas, reagindo com fúria e desespero, enquanto ele a jogava no chão. Em seguida, não viu mais nada, era como se todos os seus sentidos estivessem juntos empenhados só nisto: libertar-se da gana, escapar das mãos poderosas, brutais, e daquela boca repugnante. Ele, aí, acertou-lhe um soco e ela quase perdeu os sentidos. Então, já não podia tanto: impedida de gritar, de lutar e, por fim, atordoada, ia sendo subjugada, até que, afinal, foi completamente vencida. Pedro, depois já de pé vestindo a calça, sentia com os dedos o maço de cédulas dentro do bolso, o mesmo que levara à Carmen e que seria de Baianinha. Quando acabou de vestir-se, olhou para Natália ali no chão, retirou o dinheiro do bolso, avaliando-o, para guardá-lo em seguida. Desatou o lençol que incomodava Natália, dispondo-se a sair, decidiu-se: puxou o maço de dinheiro e jogou-o na cama (p. 238-09).

Temática de ordem psicossocial (personagens envolvidos em situações passíveis de acontecer na vida real, atestando a verossimilhança narrativa), abordada em linguagem simples, com sequências descritivas, no retratar da cidade (ruas, praças, igrejas, o Desterro, o Portinho), em seus vários pontos, como se pode ver nos trechos a seguir:

No fim da rua do Passeio ficava o cemitério, muito bom de ver ao luar. A capela antiga determinava-lhe a direita e a esquerda e os arruados, com alguns mausoléus em mármore negro, solenes, entre as sepulturas brancas, caiadas ou de azulejos, eram um caminho misterioso e de certa paz entre as casuarinas, cheios de delicadezas, filtrando o luar que projetava a cruz em cada sepultura. Na rua do Passeio, somente o pronto-socorro estava aberto e iluminado (p. 165).

Do alto que ficava além, muito além do Desterro e depois, muito depois do cais, veio um vento de longe, de muito longe, rodopiando entre as canoas, barcos e catraios, assistindo à fúria e à resignação daqueles homens do mar. No cais, imundo, cheio de cofos velhos, salivas, carvão, cascas de melancias, escamas de peixe, 179

salsugem e vômitos, havia um mau cheiro e um horror: era o Desterro e o Portinho para onde desciam as mulheres que já não eram mais nada, por gastas e doentes, na elite das prostitutas recentes das ruas 28 de julho e da Palma, mais acima. Mulheres exploradas ao máximo, restando ali quase podres para os pescadores, barqueiros e catraieiros que, na pressa, passando, utilizavam-nas: aquelas obedientes, descabeladas, sujas, amargas, loucas, descrentes, miseráveis, tristes, infelizes, desbocadas, furiosas mulheres, restos de corpos humanos, mas humanos, expostas nesse mercado milenar (p. 182).

Toda uma gama de subtemas (a cidadania, o papel da mulher na sociedade, a violência contra esta, a condição das prostitutas de então, o vício do álcool e das drogas, questões de saúde e higiene, a marginalidade, a solidariedade, os contrastes sociais – transparentes na própria forma de comunicação entre as personagens – a geografia, o acervo arquitetônico da cidade, em sua toponímia...) se faz apreensível, num decurso narrativo onde, das três personagens femininas ali destacáveis – Baianinha, que traduz o dilema das mulheres que enveredam pelo ilusório caminho da “vida fácil”, culminando na angústia e na destruição; Raquel, que “faz os salgadinhos para agradar os fregueses aos quais atende, enquanto Pedro controla o dinheiro” (p. 176), assim configurando a mulher submissa, a dona de casa escravizada nas lides domésticas; Natália, que representa a mulher em busca de seus ideais. Esta última pode ser considerada o protótipo da coragem, do otimismo, da sensatez feminina, da força do ideal, da vontade de vencer. Até certo ponto frágil, fraternal e dócil, é o tipo da jovem que vem do interior, estudar na capital, buscando na educação um futuro promissor. Tendo sido violentada, não declina da esperança, assim encontrando forças para a travessia do seu “cabo das tormentas” – como o pode confirmar a carta que escreve a seus pais naquela “noite traiçoeira”112. Leiamos:

Meus queridos pais: Estou na madrugada de uma noite que posso considerar a mais longa de todas. Quero primeiro referir-me aos sacrifícios de vocês, sempre me lembrando deles. Papai magarefe, nessa venda de todas as manhãs, e mamãe naquela lavagem de roupa que a extenua tanto. Eu lhes sou muito agradecida por tudo. Graças a vocês, acabei chegando à faculdade e isto não deixa de ser uma glória para todos nós. Vejo o dia de voltar para trabalhar entre os meus! Falar nisso, ontem à noite, quase opero, dos conhecimentos recebidos, uma prostituta que foi baleada na zona perto daqui. Escrevo-lhes da casa de Raquel. Há pouco, aconteceu-me uma coisa que vocês vão considerar terrível, quando souberem. Pelo ocorrido, aí em nossa terra, alguns chegam a matar. Depois, mandarei dizer. Foi Pedro. Mas, de antemão, quero que perdoem Pedro, como tenho perdoado, apesar de saber que, se ele quisesse, teria evitado. Não sei onde está, por outro lado, o limite da vontade de Pedro. O limite de nada. Talvez a faculdade acabe me ensinando. Tenho pensado também em Raquel e em tia Antonieta, quando souberem. Não fiquem preocupados. E quando souberem, peço-lhes, não fiquem tristes. O que interessa é a esperança. Com amor, Natália.

112 - lembrando o Pe. Marcello Rossi) 180

P.S. Digo-lhes logo o que me aconteceu: Pedro, embriagado, entrou à força no quarto onde eu estava e me fez mal (p. 264).

É possível (pode-se especular) que a intenção da autora, nesta obra, tenha sido, antes de tudo, abrir os olhos do leitor para o “compasso binário” do humano e do divino, assim endereçando o complexo dilema terreno da prostituição, aqui de um plano inferior (humano), para um plano superior (divino). Comunhão entre almas (talvez) – ao ser uma resgatada (em alto preço) e a outra preservada (como que absorvendo o mistério de sua paixão e morte). Em Baianinha, pode-se dizer, como que se configura a morte de todas as prostitutas. Outro aspecto destacável na obra é o contraste noite/dia, na panoramização das cenas, no transcorrer das ações – que têm início numa São Luís noturna, misteriosa e silenciosa. Noite em que “[...] pairava sobre a cidade [...] um mistério profundo como um imenso desafio. Já às oito horas as ruas estavam desertas e as casas todas fechadas. [...]. Mas era o silêncio, principalmente, o grande cúmplice e o absurdo maior daquela noite”. (p. 165). Como numa sintonia ao estado terminal de Baianinha que, “em decúbito dorsal, apenas respirava” (p. 173) – único movimento a indicar que ainda estava viva. A propósito, transcendendo à mitologia grega, vale lembrar que a Noite (Nyx, para os gregos – filha do Caos e mãe de Gaia e Urano), “engendrou, também o sono e a morte, os sonhos e as angústias, a ternura e o engano”, simbolizando ainda “o tempo das gestações, das germinações, das conspirações, que vão desabrochar em pleno dia como manifestação de vida”. (CHEVALIER; GHEERBRNT, 2009, p. 639-40). No romance em questão, como se pode ver, o enredo desenvolve-se no período de uma noite, imprimindo, nessa paisagem noturna, um sentido de gestação, de passagem das trevas para a luz... de um extremo para outro em que, o raiar de um novo dia, no final da narrativa, configura-se como um renascer:

Olhou o nascente e a nuvem grossa e cinzenta se modificara: agastara-se mais do horizonte, esgarçara-se, dando mais espaço para a visão daquela expansão de luz. O céu começou a ficar avermelhado numa cor sanguínea e ela nunca vira coisa igual. Seu corpo estava sendo arrebatado pela beleza daquele amanhecer e ainda assim Natália pode pensar: “é o sol!” (p. 269). [...]. O dia não era uma oposição à noite de Natália, mas apenas um compasso dessa mesma noite que permitia ao dia começar sem réplica (p. 271).

Maria da Conceição Neves Aboud (São Luís-1925-2005), cronologicamente, a terceira mulher a ingressar na Academia Maranhense de Letras, evoca, em suas obras Grades e Azulejos (1951– contos) e Teias do tempo: um intrigante romance de amor (1973- romance), a capital maranhense, numa prosa de ficção que fusiona aspectos realistas e 181

modernistas. Como escritora (cronista, contista e romancista), obteve grande sucesso junto ao público e respeito da crítica especializada. Por sinal, o romance supra referido, foi premiado, em 1991, pelo Pen Club do Brasil e pela União Brasileira de Escritores (Prêmio Graciliano Ramos). De sua autoria, ainda são: A ciranda da vida (contos – 1951 – publicados na revista O Cruzeiro); Galhos de cedro (oscilando entre a novela e o romance – publicado na Revista da Semana, no início dos anos 50); Rio vivo (1956). Deixou inéditos: O preço; Cinza e Rosa; Um Amor de Psiquiatra113. Galhos de cedro 114 (década de cinquenta) centrado na imigração sírio-libanesa no Brasil, sobretudo no Maranhão – romance não publicado em livro, não encontrado, portanto, sendo-nos, a sua única via de acesso, e ponto de referência, o comentário e o traslado (de algumas de suas páginas) do pesquisador/historiador maranhense Jerônimo de Viveiros, em seu livro História do Comércio do Maranhão (1º.vol.1612-1895. São Luís, 1954), no capítulo X (p. 153 a 158), que trata d‟O estabelecimento da Colônia Síria – Libanesa no comércio maranhense – assunto sobre o qual ele acrescenta (final da p. 152 para o início da 153):

Mas quem descreve, com nitidez e colorido, a vida tormentosamente heroica do imigrante libanês é a talentosa romancista maranhense Maria da Conceição Neves Aboud, no seu belo romance “Galhos de Cedro”, e o faz tomando como personagem central Nabira, a fundadora do ramo maranhense da família Aboud.

Nabira: “um prodígio no balcão”, mulher dotada de um carisma todo especial, no trato com os fregueses; de muito bom gosto, na escolha do sortimento de mercadorias, assim fazendo da “Casa Otomana” um polo de atração da elite maranhense consumidora. Na vida real, era a libanesa Chames, a criadora da firma que se transformara na grande organização comercial dirigida pelos Aboud, em São Luís, e que incluía: “a maior fábrica de tecidos de algodão do Estado, a mais bem aparelhada usina de descaroçar algodão, fábricas de óleo, sabão e pilar arroz, ocupando o primeiro lugar na nossa exportação” diz Viveiros (1964, p.161). Sobre Galhos de Cedro, ainda a opinião do autor supra referido:

Com inteligência, Conceição Neves Aboud observa, no seu citado romance, a transformação que em geral se opera na mulher levantina, quando deixa a pátria para viver na América. Lá, são criaturas passivas “contidas pela civilização oriental nos estreitos limites do lar e dos trabalhos campestres”; aqui, são autênticas matriarcas, “orientando os destinos dos seus e lançando-se no perigoso mundo dos negócios”.

113 - essas obras da autora são para nós ainda de datas ignoradas, posto que ainda não as encontramos. 114 - malgrado nossas exaustivas pesquisas, não conseguimos precisar a data desta obra. 182

Para a distinta escritora, a causa do fenômeno sociológico está na diferença das duas civilizações em jogo – a oriental e a americana (VIVEIROS, 1964, p.159).

Viveiros ainda anota outra apreciável observação de Conceição Aboud, na sua obra em questão: o tradicional costume dos casamentos realizarem-se só entre os compatrícios. E transcreve (p. 160) um trecho da referida obra, em que Nabira dialoga com o neto, sobre o assunto: – Vou casar-me no mês que vem. Estou amando uma brasileirinha linda. Nabira se assustava. – Sérgio, pelo amor de Deus, case com moça de sua raça. Brasilie é fraca non goste de tê filhos. Non goste de cozinha. Quem vai fazê QUIBE p‟ra ocê? Ocê non faz bubage mê netino. – A senhora gosta do dinheiro que ganhou no Brasil, mas não quer seu neto querido para uma brasileirinha. Por quê? – Menino, eu goste de brasilie. Gosto muito mesmo. Mas brasilie de São Paulo chama nós de turque, aqui in Maranon de carcamano. Ocê non vê qui tem muito pouco patrício casado com brasilie. Non dá certo, me netino.

Teias do tempo: um intrigante romance de amor (1973) – narrada em terceira pessoa, numa protagonização/enunciação feminina, a obra traz ao espaço narrativo uma mulher inglesa que, de uma paixão à primeira vista por um português (Eduardo), na Inglaterra, aporta com este, na capital ludovicense, para viver um recíproco e verdadeiro AMOR, interrompido com morte do amado “Edward” – com quem, após dois anos de casada, teve os filhos Douglas e Eduardo que, adolescentes, com a ajuda do avô materno, vão estudar na Inglaterra, ali radicando-se como cidadãos londrinos. É a partir da sua viuvez, que Miss Maud (a protagonista), passa a viver isolada, em seu casarão (ainda existente, na Rua do Egito, frente ao Colégio Santa Tereza):

Quando o enterro saiu e Miss Maude pediu às suas relações para não mais a procurarem por sentir-se morta, também, chamou as empregadas. Disse-lhes que iria pagá-las, dar-lhes mais um mês do ordenado, pedindo para arrumarem suas coisas e partirem naquela hora. Ambas ficaram estarrecidas: – A “senhora” vai ficar sozinha num sobrado onde morreu gente, “Mishe?” – “Mishe”, quem vai fazer as coisa pra “Sinhora”? – Sei fazerrr o que preciso. Sou inglesa. Na Inglaterra, gostamos de ficarrr só com a lembrança de nossos mortos. Vão, porrr favorrr. Querrrerrr ficar com saudades de Edward.

E a sobreviver das aulas particulares de inglês, que ministra aos seus jovens alunos, dos quais vem a tornar-se confidente e “amiga de fé”...

– “Dáiana”, está feliz? – Muito, Miss Maude. Muito. Agora vou lhe contar minha noite de núpcias. Foi bela. Só para alguém como você eu contaria, nem para vovó. [...]. – “Dáiana”, Maud falou comovida – tenho uma estranha faculdade. Meus alunos contam-me coisas muito íntimas, até sagradas. Mas sua estória foi a mais bela que ouvi. Eu, “Dáiana”, adoro o amor. Obrigada por ter-me contado. Estava um pouco 183

mal com o mundo, triste. Fiquei de bem. Um mundo onde muitas vezes o amor se sublima, é um mundo digno de ser enfrentado (p. 107-08).

... a estes dedicando todo um amor materno/magisterial, assim preenchendo o vazio que a falta do companheiro fiel deixara em sua alma, numa lembrança e saudade a lhe povoar as noites insones – em que o luar marcava em seu quarto “as formas das janelas do sobradão” e, deitada, “não conseguia dormir. Era horrível sua vida se espichando em insônias. Insônia ERA solidão”. (p. 13-14). Como ela mesmo o diz, no diálogo com sua aluna “Dáiana”: “A mulher que eu era morreu”. (p. 27). Após a perda irreparável, portanto, sua decisão não poderia ser outra que:

[...].Todas as mobílias no porão. Conservarei nosso quarto. A mesa na varanda para jantarrr, almoçarrr. Lugarrr dele na mesa. Quero cozinha, um banheiro. Todo o resto no porão. [...]. (p. 125). [...]. Vou ensinar inglês, senão morro de tédio. Deixarrr duas cadeiras e uma mesa na sala. Um abajur. Vou fazerrr balas para os meus alunos. Aprendi em Portugal e fazia para meus filhos. Você comprrarrr tudo que tiver de gramática inglesa na cidade, de livros de ensinar inglês. Bota anúncio no jornal. E assim, virou Miss Maude. E assim levou anos. [...] (p. 126).

Até que um dia, num futuro distante, após vencer a dúvida, a indecisão, parte ao encontro dos filhos, noras e netos, enfim, a resgatar a célula familiar dispersa, posto que:

Acabou a guerra. Seu fim repercutindo no mundo inteiro, estourando foguetes em São Luís, trazendo para o sobradão de Maud uma carta assinada pelos filhos, netos e noras exigindo sua volta à Inglaterra. Uma ordem para o Banco do Brasil em São Luís, fornecendo-lhe todo o numerário necessário. [...]. De repente veio-lhe um impulso idêntico ao de ligar-se a Eduardo. Eu vou. Vou sacudir a poeira a me envolver há tantos anos. Vou ter uma família, preste ou não preste. Vou por causa de Peter, tão parecido com Edward. Eu vou! Mas escreveu uma carta em resposta propondo uma condição a sua ida. Por enquanto era muito sadia mas quando ficasse enferma, não queria que alimentassem sua doença com soro, vitaminas e oxigênio. Deixassem-na morrer em paz. Responderam: “Prometemos envenená-la quando ficar esclerosada”. Maud sorriu. O velho humor negro inglês persistido depois da guerra terrível (p. 125-06). [...].

***

Ao fechar a porta da sala de aulas e partir, muitos alunos perpassaram por sua memória e cenas, cenas muitas vezes repetidas. Por exemplo – Nunca diga waterclose. Nunca! É toilet. Bernardo, dizendo que iria escrever no Reader Digest para a seção “Meu tipo inesquecível” e seu tipo inesquecível era ela. Nunca escreveu. E Oscar Wilde? E Diana, cabelos úmidos, pele de anjo. E Leda tão infeliz no casamento, e Carlos, nervoso, aflito, e Jorge e Pedro e Clarisse levando o violão e cantando, em inglês, velhas músicas americanas e Odete, feia, apavorada de não casar. E Claudio, tão amigo! Rosa, com dentadura falsa, incapaz de pronunciar o TH. Helena, a que convenceu não ser freira, casar-se com o homem que amava. Helena, agora 184

felicíssima, tendo três filhas. E tantos e tantos, contando-lhe suas vidas, seus segredos, seus medos, suas esperanças e felicidades (p. 127). *** Gostou das noras. Entendeu-se bem com os filhos, embora reservados e frios. O outro neto era engraçadíssimo, alegre, cheio de vida. Mas seu amor foi para Peter, a cara de Edward, os gestos de Edward, o temperamento do avô português. Ia caçar na África. Passeou por Londres destruída e seu orgulho britânico vibrou quando apanhou, nas ruínas de City, um bouquet de “Pride of London”. Florzinhas nascidas nas ruínas e das quais botânico algum jamais ouvira falar. Flores milagrosas, enfeitando as solenidades londrinas de após guerra. Seu entusiasmo com essas flores foi de tal monta que Petyer a apelidou de “Pride of the Family”. *** [...]. Maud morreu em Londres, em 1947, de enfarte fulminante. Não precisou ser envenenada (p. 128).

Transparente nessas “teias do tempo”, em que transcorre a saga de Miss Maude, em suas aventuras deste lado do oceano, num país sul-americano, na São Luís do início do século XX, diz Ubiratan Teixeira (prefácio da obra),

[...] está o essencial daquilo que a escritora quer tocar: a sordidez de uma sociedade farisaica, a importância dos indivíduos, os vícios do sistema e até mesmo as virtudes da espécie; que ela consegue gravar na sua prosa seca, descarnada, sem excessos verbais. Excepcional? Não: original. E o escritor pode ser original sem ser obrigatoriamente revolucionário. Como Joyce foi revolucionário, enquanto Guimarães Rosa, original.

Aliando ficção e realidade, Conceição Aboud recria, também, a memória histórica da São Luís do início do século XX (considerando-se, mesmo, que a personagem Miss Maud tenha sido, na vida real, como pessoa e personalidade, a primeira professora de inglês da cidade). Virgínia Rayol Braga Maluf (São Luís-Ma.1952-2004). Graduada em Comunicação Social (UFMA-1974), integrante, pois, da primeira turma de Relações Públicas da Universidade Federal do Maranhão de onde, mais tarde, vem a ser professora, depois de fazer a sua pós-graduação fora do Estado, além de extremamente dedicada às letras, vem a exercer diversos cargos públicos, comissionados, incursionando, também, pelo jornalismo, mantendo, por muitos anos, a coluna “Crônica de Virgínia” no Jornal O Estado do Maranhão. Tem publicados em livro: Espelho de três faces (1973) e As tramas de Rapunzel e suas tranças à meia-luz (1991 – crônicas). Espelho de três faces (1973) – neste seu único romance, a poetisa e cronista Virgínia Rayol surpreende com um triângulo amoroso, inovando na temática da traição – já tão explorada por celebridades da literatura nacional e universal, como Machado de Assis (Dom Casmurro), Jorge Amado (Gabriela), Eça de Queiroz (O primo Basílio), Gustave Flaubert 185

(Madame Bovary), Shakespeare (Otelo), Nabokov (Lolita) – uma vez que, diferentemente de outros autores que adotaram esse expediente na prosaica romanesca, a escritora constrói, de modo imprevisível e em flagrantes isolados (apontando tão somente indícios da traição, não a descrevendo ou contando), um enredo do ponto de vista dos três ângulos que o compõem (ele/ela/a outra), trazendo à tona outro conceito: o da polifonia (Bakhtin – para quem o romance é composto de várias vozes – plurivocalidade), sendo este um exemplo claro da multiplicidade vocal, cada personagem, autônoma, na sua própria enunciação, aflorando, dessa forma, as descontinuidades e fragmentaridades das ideias, denotando caracteres próprios do modernismo de então. E é a partir de “uma aparente desconexão formal”, que a autora consegue traçar “a linha de circunstâncias que enlaça, sem unir, seus três personagens, levantando assim, literariamente, uma consistente unidade existencial, num profundo complexo humano que, embora se trifurque, não parece oferecer qualquer saída ou solução”, observa o poeta José Chagas (prefácio da obra, p. 21) que, por sinal, adverte (idem, p. 22):

Não pense, pois, o leitor, que irá encontrar um fio narrativo convencional que intencionalmente o oriente ou conduza comodamente, sem nada deixar-lhe para pensar. Aqui a escritora não interfere. Limita-se a ouvir os personagens, juntamente com o leitor, ou os entrega a um julgamento, não deles em conjunto ou de cada um em particular, mas talvez para o julgamento da sociedade que os forjou ou, se quiserem, da própria vida refletida no cristal da pureza humana com que eles confessam o seu mundo pessoal.

Nesse espelho que reflete, com muita verossimilhança, a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência de seus personagens (Cassandra, Isabela e Juan Carlo), fazendo valer o significado semântico, o código hermenêutico do título (simbolicamente apontando para o Ser, no voltar-se para si mesmo, na tentativa de se perceber e entender, na realidade em que está inserido), o leitor pode vislumbrar-se (ainda à maneira do poeta supra referido – prefácio da obra, p. 21), “diante de três faces da vida, com o espelho de nossa condição humana refletindo cruamente a imagem clara de sonhos que à luz da realidade se deformaram” – o que, de algum modo, nos remete aos signos Sol e Lua, emblematicamente associados ao masculino e feminino, para lembrar Chevalier e Gheerbrant (2006, p. 394-05), para quem “A inteligência celeste refletida pelo espelho se identifica simbolicamente com o Sol”. Daí, o espelho figurar, sempre, como um símbolo solar – mas, ao mesmo tempo, também, lunar, “no sentido em que a Lua, como um espelho, reflete a luz do sol. [...]. Ele (o espelho) é, ademais, o signo da harmonia, da união conjugal, sendo o espelho partido o da separação” (id. ibid.). 186

Composto em 21 capítulos (cuja divisão por três, consabidamente, resulta em sete, número tradicionalmente rico em simbologia), narrados em primeira pessoa, em três vozes distintas – cada uma destas, intitulando um seu determinado capítulo, assim compondo-se um triângulo que se vai geometrizando em três ângulos diferentes, este espelho já reflete aspectos característicos da moderna literatura do século XX (reiterando o aludido acima), tendendo, mais especificamente, para a vertente cubista (em suas conotações de ilogismo, anti- intelectualismo, instantaneísmo, simultaneidade, linguagem predominantemente nominal). E vejamos alguns flagrantes/reflexos desse espelho, em suas três faces, iniciando com o discurso epistolográfico de Cassandra (endereçado a Juan Carlo, no segundo capítulo), prosseguindo com outro e outros trechos de capítulos homônimos, dessa personagem:

JUAN CARLO: Chego da rua e vou para o meu quarto. Acendo a luz e observo todos os pormenores como se os tivesse vendo pela última vez. Para te dizer alguma coisa, tenho que me sentir assim. Reconheço que estamos no estágio final de uma experiência malograda. Diálogos fabricados, risos, quando o desejo era chorar. Toda uma tentativa forjada para um mundo alheio a nós. Mas é como se agora um espermatozoide fundisse um óvulo e uma vida inteira se iniciasse, como o sol está invadindo a janela. É como se nenhum construísse defensivas contra o que de mais puro existe entre nós. Continuo te vendo como antigamente. Até em horas e minutos, frutos da imaginação, teus olhos resistem às estações. O que é mais curioso e que deves saber, Juan Carlo, é a recuperação de minha consciência e meu franco amadurecimento. É incrível como nada mais me dói, aquele pieguismo de sensibilidade, epidemia de mulheres apaixonadas. Não sei se isso se chama apatia ou santificação. Mas não é nada disso. Exclusivamente são marcas de minha passagem na vida, que não tem sido vã (p. 33). [...]. Houve dias, Juan Carlo, em que quis te matar. Forjei planos e os desmanchei de repente, querendo te amar a vida inteira. Sentindo que tudo merece perdão. Em outras horas, asco e ódio surgiam sem motivo. Apatia, cansaço e um estranho êxtase também me possuíam. Às vezes odeio este quarto. Parece-me um cão humilde despedindo-se do seu dono e fervorosamente esperando-o retornar. Não aceita a ideia de que poderei ir para nunca mais voltar. Tem razão – sempre volto. Minha volta é profundamente silenciosa para amá-lo. Selarei o envelope e caminharei para a porta. Na tentativa de não recuar como das outras vezes. E na leveza dos meus passos o exercício e tua lembrança (p. 34). Cassandra [...].

CASSANDRA

“Srs . Passageiros do Boeing 737 com destino a São Paulo e escalas em Terezina, Brasília e Rio. Queiram apresentar suas despedidas e boa viagem”. O microfone está rouco. Um relógio enorme no balcão da companhia. Malas arrumadas em posição de despedida. Tudo me parece propositado. [...]. Cheguei no aeroporto de Brasília às 13,30 horas. E enquanto caminhava pela pista, vi meus tios acenarem para mim. E os cabelos brancos de meu tio foram a primeira mensagem de Brasília. Eu ía gostar da cidade, porque ela se parecia comigo. Senti- 187

me caminhando ao meu encontro. Inevitavelmente, pensei em Juan Carlo – pela última vez.

Segue o mostruário discursivo na voz de Juan Carlo:

JUAN CARLO Casei-me há cinco anos. Minha mulher chama-se Isabela. Estamos desquitados há três anos. Isabela traiu-me. Hoje somos amigos (p. 45). [...]. Cassandra me quis. Não sei por quê. Quando eu a possuía, nunca uma mulher se entregou num ardor tão desesperadamente faminto, triste e único. Logo depois, me sentia tremendamente complexado, psicologicamente impotente para manter um diálogo do nível de satisfação que tivera momentos antes. Quase nunca converso com Cassandra. Suas breves palavras atingem a dimensão do meu silêncio. Isabela e Cassandra me fazem pensar em Deus (p. 46). [...]. Ontem conversei muito com Lícia. Hoje estou arrependido de haver passado tanto tempo ao seu lado. Quando iniciamos o assunto, ela me pareceu formidável. Depois, suas palavras tornaram-se estudadas e convencionais. Procurei controlar intimamente essa impressão. Aliás, sempre acontece isso quando estou ao lado de uma mulher. [...]. Pensei que amasse Cassandra. Ou talvez Isabela. Mas nenhuma ocorre em minha vida em termos definitivos. São nuvens que dependem da estação. Gostaria de encontrar uma mulher desligada – desligada mesmo. Principalmente de mim. Talvez assim eu conseguisse gamar. Esse ar furtivo, duvidoso, malicioso, que deveria existir em toda mulher, se perde, quando Cupido flecha. [...]. Em suas atitudes ditas liberais, há o velado objetivo de prender um homem (p. 57) [...]. Será que tenho que namorar Lícia? Ter que dar o ridículo boa noite todos os dias a sua família, reunida a minha espera? Estereotipar o encanto de encontros, em detrimento de um hábito? [...]. Deito na cama e apago a luz. Fecho os olhos. O rosto de Cassandra sobre o meu. Beija-me mansamente. Violentamente depois. E me possui. Um gol do Brasil vibra em meus ouvidos. Vitoriosamente. É uma tarde de domingo. Fim do dia (p. 58). [...]. Casei-me como quem senta à mesa para almoçar. Depois de certos acontecimentos, a vida nos impõe a fazer o que os outros fazem (p. 67). [...]. Devo reconhecer que Isabela sempre aceitou minha infidelidade conjugal como uma necessidade de afirmação para mim. Mas não significava uma aceitação submissa. Seu espírito demasiado independente, suas loucas manias, tornavam-na inacessível para os homens do mundo inteiro. Conhecer Isabela era ter a sensação de nunca chegar ao fim. Talvez isso também tenha me feito abandoná-la. Essa elegante displicência que via no fundo de seus olhos, quando voltava de uma das minhas “andanças” pela rua e a encontrava na sala de jantar – só. De pernas cruzadas, tragando o cigarro com a calma aparente de um verdugo. Sorrindo com os olhos, com a boca, com todo o rosto (p. 68). E depois de minutos, sem nunca perguntar, falava. A firmeza de suas palavras sugestionava e imobilizava qualquer ambiente: “Juan Carlo, infidelidade para você significa glorificação. Sei que você adora variar de cama e de mulher. E depois voltar para casa dirigindo seu automóvel e dizendo consigo mesmo: sou machão. Temo algo. Não procure conhecer uma mulher além da cama. O envolvimento emocional dá à própria cama um poder maior. A obsessão constante de repetir para descobrir”. Isabela se perde dentro dos meus pensamentos (p. 69). [...]. 188

O arrependimento dos meus desencontros na boca de Cassandra. Persegue-me a uma certa decisão. Mas o vento bate na tela. Aparece outra mulher. Isabela, que por ser minha mulher merece minha atenção. Não é só por isso. Ninguém pode me acusar se busco a divindade. Se tive essa tendência, Isabela e Cassandra são diferenças que se harmonizam. Atendendo ao meu apelo distintamente. Sabendo ir e vir. Nem todas as mulheres estão preparadas para esse heroísmo. A esposa é sempre a Terra Natal de todo homem. Mais dia menos dia, ele volta. Suas raízes, ainda que secas, estão ali. Se vivesse a vida inteira com Isabela, morreria de tédio. Se não voltar para ela, num dia qualquer, não sentirei uma certa alegria. (p. 87) [...]. Cassandra aparece. No terraço. Num jeito tímido e emocionado de sorrir. Arma infalível. Recurso no momento certo. (p. 95) Ela se deixou amar e me amou, consciente de que um dia iria embora. [...]. O chuvisco vai aumentando. Caminhamos bem juntos, um do outro. Então de repente me vem aquela poesia de Álvaro Pacheco: “Proponho um enigma: ficar”. (p. 96)

Com a palavra, também, Isabela – a quem cabe o último capítulo, a sentença final:

ISABELA [...]. Juan Carlo. Uma história vulgar e constante é perder um marido. Aquilatar essa humilhante solidão é promover o suicídio, única razão para o nada. Minha incapacidade motivou-o ao encontro de Cassandra. Ou talvez minha demasiada capacidade me tenha perdido a mim, antes que a ele (p. 60). [...]. Acho que o amor é isso. Uma certa técnica de perceber e sentir as coisas mais profundamente (p. 73). [...].

ISABELA O apito do guarda e a buzina dos carros me enervam. Há dois minutos, saltei do ônibus completamente tonta. Agora vou caminhando pelas ruas. Livre e sem temor. Por onde passo, as pessoas me olham – nas lojas, restaurantes e casas comerciais. Continuo caminhando. E meu pensamento se desliga das coisas que me cercam. Passo a mão pelo rosto. Suado. Procuro nesse meu rosto traços de outra mulher. De um mesmo suor. E da mesma serenidade, trazida pelo tempo. Apresso o passo, ergo a cabeça e enfrento o clarão do dia. É preciso que se saiba que todos têm razão (p. 97).

E assim, em linguagem simples, despretensiosa e direta, dosada de sentimento e poesia, capaz de sensibilizar o leitor, Virgínia Rayol nos põe diante deste espelho – um convite a uma reflexão/meditação séria, sobre a vida, no nosso modo de ser e de fazer, viver e conviver. Afinal, o que se fez de justo ou injusto, de certo ou de errado no contexto insondável deste triângulo amoroso?... Fiquemos (ainda) com o poeta José Chagas (op cit. p. 24) para quem:

É possível que a obra de Virgínia leve a interpretações de natureza diferente. É possível que os reflexos desse espelho iluminem a uns e ceguem a outros. É possível haver quem se ache e quem se perca na obra. 189

E como o espelho é, ao mesmo tempo, profundo e raso, é possível quem nele mergulhe fundo e quem não passe de sua superfície, ocupado, até, com o menos importante, a perguntar: é conto, novela, romance?

Na verdade, não é nada disso e abre dimensões para tudo isso, porque é a experiência de uma escritora jovem que, já de estreia, revela o seu compromisso sério com a problemática humana, à qual lança o seu desafio. ***

Observável, como traço comum, entre as autoras referendadas – Arlete Nogueira da Cruz, Conceição Aboud e Virgínia Rayol, a recorrência à noite e ao quarto (como elementos do tempo e do espaço narrativos) – o quarto noturno, ambiente fechado, local de reflexão, de experiência da solidão, de análise do relacionamento com o outro, da busca da identidade, de encontro com o eu interior – como em A Parede, Teias do tempo, Espelho de três Faces (e mesmo em Compasso Binário, em relação a Natália) – ou do desencontro moral com o outro, resultando na violência contra a mulher indefesa, no crime (especificamente em Compasso Binário). Dentre as romancistas maranhenses do século XX, convém ainda mencionar Angelita Azevedo Paiva e Rita Ribeiro, ambas autoras, respectivamente, de uma única obra. Vejamos. Angelita Azevedo Paiva (*Pedreiras-Ma.16.11.1926/+?) – de ascendência italiana, filha de Ricardo Madeira de Paiva e Olímpia Azevedo Paiva. Estudos básicos no Colégio Oscar Galvão, na terra natal. Convivendo sempre entre São Luís e Rio de Janeiro, altamente disciplinada, forma-se em Contabilidade Mercantil (curso por correspondência, em São Paulo). Viúva do ex-deputado estadual José Marques Teixeira, com quem teve cinco filhos (Wilson, Rosemary, Cristina, Virgínia e José M. T. Jr.). Sua paixão pela literatura se dá na década de 50, aos 24 anos, quando passa a escrever sonetos. Aos 57, sempre vibrante, numa juventude interior, dá a público o seu primeiro e único livro em prosa romanceada, sob o título de: O romance de July (1983), de 148 páginas, prefaciado por Luís da Câmara Cascudo, donde o excerto abaixo transcrito (à guisa de homenagem a esse grande escritor, estudioso do folclore e da cultura popular brasileira), correspondente ao último parágrafo (p. 12). Ei-lo, no seu diagnóstico, sobre a obra:

Este é um romance natural como uma flor sem ramalhetes. Personagens, caminhos andados no enredo, evocações, desenhos de ambientes, soluções de comportamentos, toda a paisagem humana ilumina-se num clima de compreensão, solidarismo voluntário, ternura feminina, macia e luminosa. A ternura na autora é uma forma irradiante de sua inteligência julgadora, premiando os Bons com o Amor e os maus com a saciedade trágica. [...]. O ROMANCE DE JULY não é autobiográfico, mas construído de reminiscências, de realidades “idas e vividas”, como os pensamentos de Machado de Assis. Não é uma Experiência, mas uma Confidência, lembranças de viagem, entre criaturas de possível encontro, no debate 190

dos episódios sucessivos, lógicos, ocorridos em qualquer recanto do Mundo. A comunicação verbal de Angelita Azevedo Paiva é a voz fiel da testemunha sincera, modesta, interessada em trazer a Felicidade para todas as figuras recriadas na comovida recordação afetiva. [...] (CASCUDO. In: PAIVA, 1983, p. 12).

Rita Ribeiro (Rita de Cássia Ribeiro Guimarães Ferreira: São Luís-Ma. 27.06.1952) – professora, pesquisadora, produtora cultural, empresária (sócia-proprietária do Instituto La Touche, Centro de Comércio e Arte), romancista. Graduada em Letras (UERJ), com Especialização em Linguística Aplicada (Unicamp – Instituto de Estudo da Linguagem), mestrado em Dramaturgia para Teatro, Cinema e TV (USP – Escola de Comunicação e Artes), curso para roteiro de Cinema e TV (Havana-Cuba) e habilitação como professora de português e inglês em atividades artísticas. Como roteirista, é autora do curta-metragem Rapsódia para cinema e orquestra (adaptação em forma de argumento cinematográfico do Chega de Saudade de Rui Castro, do original Pavilhão 9). Como escritora, estreia em 1995, com Ana Jansen. Em 2001, é a vez de Barão Geraldo – que conta a história da localidade homônima (distrito de Campinas-São Paulo). Ana Jansen (1995) – romance memorialista, redescoberta e reinvenção romanceada, em 239 páginas, da saga de Ana Jansen, personalidade tradicional e lendária na cultura e historiografia maranhense: a poderosa mulher que viveu no Maranhão do século XIX, atuante na política e economia do Estado. De ascendência europeia, mas de juventude sofrida, em sua condição de mãe solteira, em luta para manter a própria genitora, dependente, e o filho pequeno, vindo a se tornar amante do Coronel Izidoro Rodrigues Pereira, em 15 anos de convivência, alvo fácil, portanto, para a sociedade preconceituosa e moralista da época. Tendo granjeado, em vida, a fama de megera, assassina e torturadora de escravos, assim merecendo, como castigo por suas atrocidades, a vagar, depois de morta, como alma penada, nas madrugadas de quinta para sexta-feira, na fantasmagórica carruagem de Ana Jansen, que sai do Cemitério do Gavião (em direção à Rua do Passeio, percorrendo as ruas do centro de São Luís), puxada por mulas sem cabeça – conforme a lenda corrente na boca do povo e até na literatura de cordel: “Até hoje se comenta/ Que em noites de lua cheia/ Pelo centro da cidade/ Dona Ana Jansen vagueia/ Em carruagem esquisita/ Ai meu Deus que coisa feia// A carruagem é puxada por cavalos sem cabeça/ E ela vai entregando/ Velas a quem apareça/ Velas que no dia seguinte/ Vira osso, não esqueça!” (FRAZÃO, 2001, p. 16) – a figura de Ana Jansen, em sua história de vida, continua interessando escritores, pesquisadores e historiadores, do século XX aos nossos dias, como: Jerônimo de Viveiros (A Rainha do Maranhão – 1965); Waldemar Santos (Perfil de Ana Jansen – 1978); Jomar Moraes (A Rainha do Maranhão – 1999); Lenita Estrela de Sá (Ana do Maranhão – prêmio Arthur Azevedo- 191

UFMA, 1980); Raimunda Pinheiro de Souza Frazão (Ana Jansen em cordel – 2011); Victor Brandão (Anímem e o colar de Ana Jansen – 2013), dentre outros. Conteúdo instrutivo, ficção inspirada na vida da anti-heroína em questão, em seu tempo, sua influência na política, seus amores, seus demônios, destacando-se, no enredo, fatos históricos e figuras memoráveis (como a Balaiada, Sotero dos Reis...), o romance de Rita Ribeiro (fruto maduro da sua dissertação de mestrado – Ana Jansen: desconstrução da lenda e reconstrução da personagem – apresentada na ECA), vai ganhando, ao longo da leitura, status de pesquisa histórica respeitável, de mapeamento geral da vida política e cultural da época que modelou o perfil da heroína. Para José Louzeiro (In: Ribeiro, 1995, contracapa da obra), trata-se de ... obra originalíssima, pois aborda de maneira crítica, e até polêmica, a figura de uma mulher que se tornou lenda, no Maranhão. A par da questão episódica do livro, há que ressaltar a capacidade criadora da escritora e a minuciosa pesquisa que realizou, tudo com o objetivo de botar de pé uma Ana Jansen que vai surpreender os estudiosos.

***

Estes foram os romances e os(as) romancistas maranhenses do século XX que se nos foi dado reunir e elencar nesta empreitada. É possível (ou mesmo absolutamente certo) que outros nomes e títulos, respectivamente de autores e obras do gênero, se nos tenham passado despercebidos, fora do nosso ângulo de visão – o que seria lamentável, não fora a Esperança alentadora, à Luz da qual creditamos este nosso trabalho, deixando-o, pois, em aberto, como um incentivo a outros, novos olhares, oxalá mais amplos e perceptivos, num contínuo e sempre vivo iluminar, revelar e atualizar, a nossa historiografia literária.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda numa visão estatística geral, segue-se, logo após esses três Estados (Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais), o Maranhão. Eis, pois, o Maranhão como uma das regiões que mais escritores têm dado à nação, apesar de completamente fora do supracitado eixo Rio-São Paulo-Minas. Encarado sob este plano, é realmente de se notar como o gênio maranhense floresce, com nomes de grande vulto que apontam, em suas épocas, os caminhos de todo o país. Ou seja, sem as influências benéficas ambientais que se encontram no Rio e que se irradiam por São Paulo e Minas, a literatura do Maranhão continua nos dando grandes autores. Para se ter uma ideia concreta do problema, tome-se para exemplo os seus vizinhos geográficos: o Pará, Goiás e o Piauí. O primeiro, figura com um autor realista – Inglês de Sousa, o segundo com dois no Modernismo – Hugo Carvalho e J. J. Veiga e o terceiro com Assis Brasil, nesse mesmo estilo. O Maranhão mostra-se, pois, especialmente pródigo em grandes nomes. (Jacyntho José Lins Brandão).

Nesta viagem de leitura – missão, compromisso e desafio – através da qual pudemos retraçar, numa perspectiva historiográfica, um panorama da nossa literatura local (em suas raízes, tradições e repercussões nacionais), situando, nesse contexto, o romance maranhense do século XX (em suas origens, precursores, autores/obras), se nos foi dado perceber, neste nosso objeto de estudo, até onde o pudemos alcançar e iluminar, peculiaridades que nos levam a enquadrá-lo, de um modo geral, em duas categorias, a saber: 1. – o romance maranhense produzido e ambientado fora do Estado – em sua quase totalidade, no Rio de Janeiro; 2. – o romance maranhense ambientado no Estado (produzido ou não in loco115). No primeiro tipo, incluindo-se: – o romance escrito e publicado do início à terceira década do século XX (1902 a 1930) – sequenciando o transitivo do final do século XIX para a nova centúria (1893-1899) – tendo como representantes Coelho Neto, este já imprimindo em suas obras um caráter citadino/regionalista e denotando uma ruptura com a estética realista do século XIX, assim preconizando o romance moderno; e Graça Aranha, que também, já imbuído de um ideal de modernidade, vai liberando o gênero de uma vaga esfera pré-modernista, introduzindo, na literatura brasileira, o romance de tese (Canaã, ambientado em Porto Cachoeiro-ES) e o romance político (A viagem maravilhosa), nos matizes de um Modernismo aurorescente e alvissareiro. – o romance produzido e ambientado no Rio de Janeiro, na segunda metade do século XX, já nos trâmites de um modernismo ou pós-modernismo característico dos anos 60 em diante, apresentando-se em técnicas diferentes (de composição e de estilo), nele reconhecendo-se:

115 - escritores como Josué Montello e Ribamar Galiza escreveram alguns de seus romances (ambientados no Maranhão) no Rio de Janeiro. 193

 a tônica policialesca;  a procedência jornalística do conteúdo entramado na diegese, flagrando aspectos da vida sociopolítica e cultural, num período conturbado, marcado pela ditadura militar – alguns de Josué Montello, como O silêncio da confissão, O camarote vazio, A viagem sem regresso... e os de José Louzeiro: Lúcio Flávio, o passageiro da agonia e Aracelli, meu amor;  as marcas da ficção contemporânea (final do século XX), focada na crítica dessa sociedade e articulada sob a perspectiva da meta-ficção/meta-fragmentação, numa densidade psicológica dos enredos (análise psíquica de conotação moral, na decifração do homem em sociedade), transitando por vários planos representativos do real – caso do escritor Ronaldo Costa Fernandes, em obras como O Morto Solidário. No segundo tipo, de um modo geral, incluindo-se: – o romance produzido e ambientado em São Luís, nos albores do século XX (1902 a 1915, publicado inicialmente em folhetim, como que já antecipando um regionalismo que se faz acentuar mais expressivamente nos romances da segunda metade do século), flagrando, num nexo dinâmico entre a paisagem humana e cultural da cidade, a situação econômica, política e social do Estado, no primeiro quartel do novo século. Época marcada por crises na lavoura, por eventos como a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República, em sua repercussão na capital maranhense: A Crise, de Manuel de Béthencourt; A nova Aurora, de Astolfo Marques; Vencidos e Degenerados, de Nascimento Moraes, valendo citar ainda: A Carteira de um Neurastênico, de Antônio Lobo que, em sua impostação autobiográfica e tons introspectivos e psicologizantes, também flagra e documenta a vida na cidade, naquele espaço de tempo – o País já sob o regime republicano, ressaltando-se, nesse contexto, um Nordeste decadente, os conflitos internos de uma burguesia entre provinciana e cosmopolita, no início de uma fase urbanizadora. – o romance produzido a partir da década de 40, do século em referência, acompanhando e absorvendo as tendências vigentes, na estética modernista contemporânea da época, dentre as quais o regionalismo – tratando-se de uma literatura centrada na região maranhense (em seu perímetro urbano e/ou rural), procurando retratá-la, mediante todo um cabedal de costumes e tradições, dentre outros elementos singularizadores da terra natal dos autores, sem descurar a língua, a linguagem, como principal elemento regionalizador. Vertente que se faz 194

representar em escritores(as) como: Josué Montello (em sua grande maioria); João Mohana, Arlete Nogueira, Conceição Aboud, Bernardo Almeida, Ribamar Galiza, Waldemiro Viana, José Sarney, Pe. Brandt. Um regionalismo maranhense de configuração urbana, rural, e urbano/rural – donde, nesse contexto, os tipos aqui por nós convencionados em:  urbano – ambientando-se em São Luís, retratando a cidade, em seu espaço físico (centro histórico e subúrbios), sua paisagem humana, gravando-lhe a toponímica das ruas e praças, os modos de dizer de determinada época, tendo como principais representantes: Josué Montello (em obras como Janelas Fechadas, Degraus do Paraíso, A coroa de areia, Os Tambores de São Luís, dentre outras do autor); João Mohana (Maria da Tempestade); Bernardo Almeida (A última promessa); Ribamar Galiza (Apetrechos de amor); e os romances de autoria feminina (como A parede, Compasso Binário, Teias do Tempo, e Espelho de três faces, respectivamente: de Arlete Nogueira, Conceição Aboud e Virgínia Rayol) – todos, em seus respectivos enredos, pondo em evidência o Centro Histórico de São Luís.  rural – adaptado nesse meio (sem estreitas conexões com a cidade), com ações narrativas que se desenrolam em povoados do interior, configurando-lhes a paisagem, o falar característico da região, servindo de exemplo romances do Pe. Brandt de Arari (Folha Miúda, minha dor e Luzia dos olhos verdes); e de Ribamar Galiza (À sombra das gameleiras e O povoado).  urbano/rural, numa intersecção campo/cidade, estes dois espaços interpenetrando- se no enredo narrativo, integrando o universo das personagens, tal como nos romances: O outro caminho (de João Mohana); O Bequimão (de Bernardo Almeida); Arnaldo (do Pe. Brandt); O Cantar das casuarinas (de Ribamar Galiza); Graúna em roça de arroz e O mau Samaritano (de Waldemiro Viana) – em que se faz perceptível a relação entre essas duas realidades, os protagonistas transitando do interior para a cidade grande, (ou percorrendo um caminho de volta – O cantar das casuarinas), visando ao estudo, à realização pessoal, no vislumbre de um futuro promissor – meta nem sempre idealmente atingida. Nesse conjunto de obras que revelam o Maranhão (sobretudo no século XX), em sua memória histórica, sua paisagem arquitetônica, seus contornos geopaisagísticos, costumes e tradições, o falar característico de seu povo, encerrando, pois, as marcas de um regionalismo típico do interior do Estado e da capital maranhense, impõem-se dois espaços, deveras significativos na vida, na história das comunidades humanas e que, podemos dizer, compõem 195

os dois lados (contrastantes e intercomplementares) de uma realidade comum a todo ser humano: campo (a terra de onde nos vem a subsistência) e cidade (o lugar para onde nos aventuramos, em busca da realização). O campo, em sua precedência sobre a cidade, sempre remetendo à natureza, evocando a simplicidade, as virtudes. A cidade, por sua vez, sempre vislumbrada como o centro de realização, o agente civilizatório – para onde se vai em busca do saber, da habilitação profissional, do trabalho... A propósito, convém ressaltar, a temática da vida campestre é tradição das mais caras. E a história da literatura pode comprovar a assertiva, com produções já anteriores a Virgílio (em suas Bucólicas e Geórgicas – na abordagem de temas pastoris): textos que remontam ao século IX aC., como Os Trabalhos e os Dias, de Hesíodo – verdadeira epopeia da lavoura. Por volta do século II, III, aC., vale lembrar, surgem poetas bucólicos, como Teócrito (com os seus Idílios), Horácio (com os seus Epodos116, destacando-se, dentre estes, o segundo Beatus ille – tido como a origem inconteste de muitos poemas que sugerem um quadro alegre e simplório do campo, como um lugar de refúgio). Transcendendo à Antiguidade Clássica, o contraste campo/cidade, retomado na poesia renascentista e pós-renascentista (árcade neoclássica), traz de volta, à literatura, a idealização do campo (em oposição à cidade), como lugar aprazível (o locus amoenus, sugerindo o fugere urbis, ao encontro da aurea mediocritas). Do século XVIII para o XIX (1760 a 1820-40), temos a Revolução Industrial (partindo da Inglaterra para toda a Europa) – que não apenas transforma a cidade e o campo mas, pautada num capitalismo agrário altamente desenvolvido, contribui para a desagregação ou o fim do campesinato tradicional. Não vamos nos aprofundar neste tema tão antigo quanto presente na nossa experiência cotidiana; apenas uma breve reflexão, à guisa de percebermos campo e cidade como realidades históricas em constante transformação – em si mesmas e em suas inter-relações, mas ainda remetendo a um ideário/imaginário primitivo. Nos romances maranhenses aqui em foco, as relações entre esses dois espaços podem se dar entre o meio campestre e a cidade pequena (a sede do município) e/ou a cidade grande (a capital do Estado) e numa dicotomia, através da qual a cidade pode transparecer como lugar de refúgio e busca de oportunidades e o campo, em seu paisagismo natural, como lugar onde se pratica a lavoura, o pastoreio do gado, mas já sem aquela aura de paz e tranquilidade, os idílios felizes, entre os pastores dos tempos ancestrais. Em O outro caminho (João Mohana), Eyder, o protagonista, vem do antigo Barro Vermelho (hoje município independente de Cajari, às margens do Pindaré), para Viana (então

116 - Odes of Horace. Trad. A. D. Godley. Londres, 1898. 196

sede do município), para estudar, dali seguindo para a capital (São Luís), onde se ordena padre e retorna para a “cidade dos lagos”, como pároco, mais tarde transferindo-se para outra cidadezinha (Coroatá), distante, sempre transitando do interior para a capital – em busca de algum conforto, apoio e orientação superior (do seu arcebispo), de refrigério para a alma, ante uma paz que perdera num meio rural pitoresco e inspirador, mas que se tornara o seu calvário. Em Compasso Binário, é Natália, que vem do interior do Estado, para estudar medicina, na capital onde, entre os prazeres e as agruras da investida, vem a testemunhar e a experimentar a violência contra a mulher, não se deixando, entretanto, abater ou vencer pelo lado negativo, trágico, da vida e ainda pretendendo voltar à terra de origem para exercer a profissão entre os conterrâneos. Em Graúna em roça de arroz (Waldemiro Viana), deparamo-nos com um meio rural entre simples e hostil, onde os conflitos se vão encaminhando para o crime e os amores para a tragédia. E a relação entre campo/cidade, vivida pelas personagens, marcando-se pela exploração humana e a injustiça. Celeste, violentada e banida do seu meio de origem, busca a cidade grande, como saída emergencial, ali caindo, ingenuamente, na prostituição; Marcolino, levado para a cidade de Alcântara (outrora sede dos temerosos e escabrosos presídios maranhenses), na condição de presidiário, condenado injustamente por um crime que não cometera, dez anos mais tarde, inocentado e absolvido, volta para o meio campestre, onde o reencontro com a sempre amada Celeste, a retomada do “idílio” interrompido, tem um desfecho fatal. Em O mau samaritano (do mesmo autor), o exaustivo, mas digamos, heroico contato do protagonista com a cidade (começando pela sede do município e dali para a capital), num “fugere urbes” às avessas, é motivado pela perspectiva de um mundo, lá fora (visão que lhe fora incutida pelo padre Alessandro), como um lugar de realizações, de possibilidades de uma vida melhor – ideal que o leva, com muita determinação e força de vontade, à busca do seu Eldorado particular, resultando, malgrado todos os percalços (pode-se dizer), numa vitória pessoal. Nos romances do Pe. Brandt, o meio rural também já não mais se identifica como um lugar de paz e prosperidade, de satisfação agropastoril, posto que a terra, agora, é pertença do latifundiário opressor, onde o pobre lavrador, destituído da liberdade natural de plantar e colher, oprimido, perseguido, a ponto de cometer um homicídio, em legítima defesa, migra para a cidade, ali refugiando-se (no vizinho estado do Pará), em busca de novas perspectivas de vida e trabalho (Folha Miúda, minha dor). Em Arnaldo, a dinâmica como que se inverte: a personagem homônima, adolescente íntegro e puro (no meio rural), sempre inconformado com a humilhação/exploração imposta (pelo próprio pai, o dono do latifúndio) aos pobres 197

lavradores “sem terra”, vai para a cidade, estudar, e ali, induzido pelas más companhias, sofre um processo de corrupção moral, viciando-se em drogas, vindo a ser preso e enfim recuperado, volta à terra natal, reencontrando a felicidade e solidarizando-se com os agricultores – e aqui, uma certa analogia, a possibilidade de um diálogo intertextual com A cidade e as serras de Eça de Queirós, pode ser vislumbrada. Os contrastes e ou semelhanças que se vão acentuando entre estas duas realidades (campo e cidade), as contínuas inovações e transformações que vão apresentando ao longo da história, e imprimindo-se, documentando, no romance, pode nos levar a uma tomada de consciência, no tocante a uma parte central de nossas experiências e das crises de nossa sociedade. Nesta vertente aqui relanceada, uma outra tipologia nos chama a atenção, pela sua singularidade: o convencionado romance do mar (ou poema-romance do mar) – narrativas, cuja temática remontam, na Literatura Ocidental, a Homero (Ilíada e Odisseia – últimos anos do séc. IX aC), passando por Camões (Os Lusíadas, concluído em 1556 e publicado em 1572 – exaltando as glórias da nação portuguesa, sobretudo no que tange à expansão marítima), seguindo-se autores como: Herman Melville (Moby Dick/1851 – numa recriação de Ulisses); Fernando Pessoa (Mensagem/1934 – o sentimento nacionalista, buscando um sentido para o Portugal do presente, evocado em suas glórias do passado); Ernest Hemingway (O velho e o mar/1952 – a solidão, o amor à vida, a luta pela sobrevivência, em alto mar); Jorge Amado (Os velhos marinheiros ou o Capitão de longo curso/1961 – a saga de Vasco Moscoso de Aragão, marinheiro que desembarca em Periperi, no litoral baiano, atraindo a atenção dos moradores locais com seus instrumentos náuticos, fascinando-os com suas narrativas); Derek Walcot (Omeros/1990 – misto de poesia e romance, centrado nos negros pescadores de Santa Lúcia, às margens do Caribe, no Arquipélago das pequenas Antilhas), aqui representado em Cais da Sagração (Josué Montello) e O dono do mar (José Sarney) – num regionalismo que circunscreve a dinâmica marítima dos barqueiros e pescadores, na região urbana e suburbana da Ilha de São Luís, respectivamente. Cais da Sagração, numa conexão entre duas cidades beiramarinhas (São Luís e Alcântara), através da Baía de São Marcos, partindo da Rampa Campos Melo (um trecho do Cais da Sagração/Praia Grande), para o porto de Alcântara, sob o protagonismo do Mestre Severino. O dono do mar, por sua vez, retratando o contato, o convívio com esse meio de sobrevivência desses mesmos heróis do cotidiano (barqueiros, pescadores e remadores), numa região marinha suburbana da Ilha, tendo como personagem central Antão Cristório. 198

E ainda neste contexto, regionalista, uma chamada a Odylo Costa, filho117, na sua nordestinidade de A Faca e o Rio (1965 – extensivo/inclusivo a três estados vizinhos: Piauí, Maranhão, e Pará), também como outros romances maranhenses, escrito no Rio de Janeiro, para onde o autor segue, em companhia dos pais (1930), ali fixando residência, formando-se em Direito pela Universidade do Brasil (1933) – mas ambientado no nordeste oriental, especificamente no Piauí, em conexões entre o rural e o urbano, com incursões por Teresina, Caxias, São Luís, num viés entre o Maranhão, o Piauí e a Floresta Amazônica. Permeando toda a romanesca maranhense, em sua generalidade, há de se convir, a matéria de extração histórica, de caráter memorialista, presentifica-se, com as devidas alterações impostas pela semiose narrativa. Matéria que não se esgota nas personagens (representativas de personalidades como Bequimão, Ana Jansen, D. Francisco, Frei Hermenegildo...), mas se estende a outros elementos: os fatos, as ocorrências, em si, os lugares, as instituições... tudo, enfim, de algum modo, imbuído de historicidade (como tal se faz entender a memória para os pósteros). Em romances118como O Bequimão (Bernardo Almeida), Ana Jansen (Rita Ribeiro) – dentre outros não especificamente centrados em personalidades históricas, mas de valor e teor histórico/memorialista – a matéria narrada, fazendo-se reconhecer, obviamente, como de extração histórica, em seus elementos constitutivos (objeto de registro documental) e a personagem, erguendo-se no corpo diegético da obra, confirmam a ideia que já tinha o leitor sobre esse referente extra discursivo que permanecera, em algo de sua essência, na memória coletiva, chegando ao universo ficcional, num traslado semiótico, incorrendo em alterações qualitativas na sua natureza e substância. Como numa exumação do passando, o perfil sócio-político e cultural da São Luís dos séculos XVII e XIX, respectivamente, se vai reconstituindo. Dentre as inúmeras revelações com que se nos deparamos, nesta empreitada de leitura, chamou-nos a atenção (como dado curioso e particularmente gratificante) a presença silenciosa, mas evidente e edificante, do Rio de Janeiro neste nosso universo literário dos séculos XIX e XX, transparente na biografia dos nossos intelectuais, subentendido como o ponto de referência, o local de recepção e acolhimento dos maranhenses que para lá se deslocavam (e ainda se deslocam) para fins de estudo e outras realizações. Vale lembrar que, berço de toda uma plêiade de escritores ilustres; capital brasileira por mais de dois séculos; sede da Academia Brasileira de Letras, o Rio de Janeiro, onde o Cristo Redentor “sobre o

117 - o nome próprio, registrado na certidão de nascimento do autor é assim mesmo grafado: com vírgula entre o sobrenome e a referência (herança paterna) do nome, com inicial minúscula – Odylo Costa, filho. 118 - que podem ser caracterizados como históricos, propriamente ditos. 199

monte, o Corcovado, abraça o mundo com o Seu Amor 119 ”, foi-se tornando a cidade cosmopolita, o porto e a porta do Brasil, abertos para a humanidade – por onde entravam e circulavam as novas ideias (filosóficas e estéticas), contribuindo muito para essa imperecível fecundidade artística. Em verdade, o êxodo de brasileiros de outros Estados rumo ao Rio, ainda se faz recorrente até os nossos dias, num intercâmbio real, entre a cidade menor e a grande metrópole. Ali, sempre foi (e ainda é e será) o ponto certo de reunião, de encontro dos nossos escritores e intelectuais. E podemos constatar, quase todos os escritores aqui referendados, passaram por essa metrópole do Sudeste brasileiro, “cidade maravilhosa”, “coração do Brasil” – epítetos emanados da voz do povo, (“a voz de Deus”), consagrados na canção popular, a lhe caírem tão bem, como uma luva em mão dadivosa. Ali estudaram, trabalharam, graduaram-se e pós-graduaram-se (em universidades como a UFRJ, como acontece ainda hoje), residiram, toda uma gama de intelectuais, escritores maranhenses e muitos, grande parte dos romances aqui evidenciados, foram escritos no Rio de Janeiro – donde se pode aventar uma conexão, um entrelace intelectual entre esses dois Estados da Federação. O romance maranhense do século XX, como se nos foi dado perceber, constrói-se no ritmo da observação e da memória, nele predominando, como característica principal, o regionalismo. *** E até aqui, o romance maranhense do século XX, na esteira do Modernismo, em suas várias fases, num percurso histórico que vem de 1902 ao final do século e estendendo-se aos nossos dias, posto que a Arte da Palavra continua, no Maranhão, com o surgimento de novos poetas, novos escritores, nos mais variados gêneros, outros romancistas, a surgirem, a partir do ano 2000, no panorama das nossas Letras, já formando o nosso cânone romanesco do século XXI, também a merecer estudos (futuramente, espera-se) e no qual já se destacam escritores aqui elencados, numa sequência cronológica. José Sarney, com Saraminda (2000) – tendo como pano de fundo as florestas do Amapá e a pequena cidade de Caiena, capital da Guiana Francesa na virada do século XIX para o XX, e centralizada no Garimpo do Contestado, destacando a sensualidade poética da personagem homônima, a protagonista feminina: mulher dos seios dourados, comprada a peso de ouro; e A duquesa vale uma missa (2007) – que trata da avassaladora paixão do personagem Leonardo pelo quadro da duquesa de Villards, mulher que fez sucesso, por sua rara beleza, no tempo de Henrique IV.

119 - excerto de Esperança do Amanhecer – Hino Oficial da JMJ-Rio de Janeiro, 2013. 200

Lucy Teixeira (poetisa e romancista), com Um destino provisório (2001) – ambientado num meio rural, enfocando o drama de Mundoca, pré-adolescente que, traumatizada pelo abuso sexual sofrido, vem a assassinar, em legítima defesa, o padrasto (autor do delito), para emudecer de vez – numa análoga simbologia ao silêncio omisso e cúmplice, em que sucumbem as mulheres, reféns da opressão, em uma sociedade patriarcal. Agnor Lincoln da Costa (poeta e romancista), com O livro que EU queria ler (2005) – a humanidade, personificada no EU e pretensamente retratada: do alvorecer da civilização, a sua extinção futura, na antevisão pessimista do autor. Ronaldo Costa Fernandes, com O Viúvo (2005) – ousada investida narratológica, versando sobre um tema intrincado e molesto, destacando-se, sobretudo, pela maestria do autor em sua relação com a palavra; e Um homem é muito pouco (2010) – ambientado no Rio de Janeiro, transpirando um modernismo nosso contemporâneo, em sua estruturação narrativa e que, abrindo-se como um enigma a decifrar (a partir do título, em sua estranheza), vai conjugando ambiguidades e contraditoriedades de uma sociedade capitalista, num enredo que traz para o leitor a memória secreta e sombria do tempo da ditadura militar. Antônio Trinta Trindade, com Encontro dos Impérios (2006) – enredo histórico. Dorinha Marinho, com Um toque do Passado (2007) – que, seguindo a correnteza dos sonhos de Letícia (personagem central), na tão ansiada busca/encontro de um amor verdadeiro, é história emocionante, a influir no destino de duas famílias; e Vila de Tamandará (2009), nos timbres do romance histórico. O jovem escritor e jornalista Vinícius Bogéa, na linha do romance policial, com os títulos: Roubando Sonhos (livro de estréia-2007) – onde, num enredo marcado por intrigas, mentiras, culpa e ressentimentos, ambição desmedida, um misterioso assassinato vem a ser o ponto fulcral da obra; Céu de Ilusões – sobre crimes e artes (selecionado no Plano Editorial Gonçalves Dias-2009), onde personagens decadentes e figuras da alta sociedade confrontam- se num enredo entramado por crimes e artes; Diário Oculto (Prêmio Aluísio Azevedo-2010) – estrutura alinear, num entrecruzamento de ações paralelas, enredo instigante, elevando-se numa gama variada de personagens, temas e cenários, na reflexão de um mundo ambíguo (entre a realidade e a ficção). Waldemiro Viana, com A Tara e a Toga (2008) – retomando um dos casos mais impressionantes da criminalística brasileira, acontecido na São Luís-Ma dos Oitocentos: a paixão do desembargador alagoano José Cândido Pontes Visgueiro (ancião solitário e surdo) pela bela “Mariquinhas Devassa” (de 15 anos), resultando num brutal assassinato que ficou conhecido como “o crime da mala”; e O Pulha Fictício (2013) – protagonizado por Salô 201

Aroeira, personagem do peso de um Raimundo (o mulato aluisiano) e de um Damião (o negro monteliano). José Ewerton Neto, com O Infinito em minhas mãos (2009) – que, protagonizada por Vacele (Eunópio, quando homem), que se tornou diabo, após a morte, “por conta de uma das convencionices dessa „instituição burocrática de quinta categoria, denominada inferno‟”, é aventura insólita, onde humor, sexo, sequestro, morte e reencarnação, conjugam-se num enredo entrecruzado por investidas filosóficas, próprias dos manuais de autoconhecimento. Aldir Penha da Costa Ferreira, com Espelho d’Água (2009) – romance que reconstitui o passado histórico de Viana, trazendo lembranças inesquecíveis, da antiga Aldeia de N. Sra. da Conceição do Maracu, fundada por Jesuítas. Marcello Chalvinshi, com O Plano (2009) – mistério, violência, tragédia, num enredo alinear e imprevisível. Márcio Coutinho, com Canções de agosto (2009) – onde a fatalidade social é superada pela criatividade de João das Dores. O professor e poeta Douglas Batista Pereira Ribeiro, com Sombras da Lei (2012) – na temática policial. Wilson Cerveira Marques, com A Venusta Princesa de Ébano (2013) – a saga de Egéria, de beleza escultural, nascida e criada em humilde choupana, em companhia da avó, que tenta (em vão) incutir-lhe, os princípios cristãos de moralidade e caráter. José Louzeiro, com Lições de Amor (2013) – homenagem à professora de Geografia do Colégio São Luís, Maria Freitas, sua grande incentivadora na prática da leitura; Os Amores da Pantera (2013) – inspirado no caso da socialite Ângela Diniz, assassinada em 1975, por seu amante Doca Street; Anjo da Fidelidade (2014) – versando sobre Gregório Fortunato, guarda-costas de Getúlio Vargas, acusado de encomendar o atentado contra Carlos Lacerda, na Rua dos Toneleiros (Copacabana-RJ), em 1954, eximindo-o da mancha de corrupto e assassino; Em carne viva (2014) – sobre Stuart Angel, integrante da luta armada e filho da estilista Zuzu Angel, desaparecido no tempo da ditadura militar; O Estrangulador da Lapa (2014) – sobre um maníaco sexual, obcecado por mulheres bonitas. Ao encerrar, circunstancialmente, estas considerações sobre o romance maranhense, evocamos o velho jargão a caracterizar esta nossa terra gonçalvina e a encher de orgulho a Athenas Brasileira: “o Maranhão é terra de poetas” – como ainda se faz comum dizer/ouvir neste nosso Estado, sobretudo nesta “Ilha Magnética”, “Ilha do Amor”, “Ilha-Poesia”, “Ilha Rebelde”, “Cidade dos Azulejos”, e ultimamente também “Jamaica Brasileira”, onde, em cada esquina, pode haver um poeta em transportes líricos. Já o nosso romance, aqui, ainda é 202

desconhecido, esquecido. Não obstante, como nos está sendo dado constatar, aqui também se produz o romance. Esperamos, pois, que este trabalho venha a contribuir para que possamos reconhecer e dizer, numa completude: “O Maranhão é terra de poetas e de romancistas”. Assim seja.

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