UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE ECONOMIA, ADMINISTRAÇÃO E CONTABILIDADE DEPARTAMENTO DE ECONOMIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA
Fecundidade, Identificação Racial e Desigualdade
Michael Tulio Ramos de França
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Amaral Haddad
São Paulo 2020
Prof. Dr. Vahan Agopyan Reitor da Universidade de São Paulo
Prof. Dr. Fábio Frezatti Diretor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade
Prof. Dr. José Carlos de Souza Santos Chefe do Departamento de Economia
Prof. Dr. Ariaster Baumgratz Chimeli Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia Michael Tulio Ramos de França
Fecundidade, Identificação Racial e Desigualdade
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Economia do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências.
Área de Concentração: Teoria Econômica
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Amaral Haddad
Versão original São Paulo 2020
Catalogação na Publicação (CIP) Ficha Catalográfica com dados inseridos pelo autor
Ramos de França, Michael Tulio. Fecundidade, Identificação Racial e Desigualdade / Michael Tulio Ramos de França. - São Paulo, 2020. 129p.
Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, 2020. Orientador: Eduardo Amaral Haddad.
1. Clima. 2. Televisão. 3. Fecundidade. 4. Identificação racial. 5. Desigualdade. I. Universidade de São Paulo. Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade. II. Título.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao CNPq pela bolsa 140931/2016-3 e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pela Bolsa de Estágio de Pesquisa no Exterior 2018/06782-4 e pela Bolsa de doutorado 2017/19403-9. Esta última foi vinculada ao processo 2014/50848-9 do INCT para Mudanças Climáticas. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a visão da FAPESP e do CNPq.
Na atual conjuntura de cortes de verbas para pesquisa é importante acrescentar que, desde a graduação, as bolsas e a universidade pública foram determinantes para o meu desenvolvimento como pesquisador, decisivas na minha trajetória e, por isso, ao menos neste aspecto, tenho um profundo sentimento de gratidão com a sociedade brasileira. Apesar de todo esforço despendido nessa jornada, se eu não tivesse esta fonte de renda, certamente não teria conseguido avançar na carreira acadêmica. Nesse sentido, no que diz respeito à mobilidade social, é sempre relevante lembrar que o esforço é apenas uma das variáveis da equação e que o caminho percorrido pelos estudantes oriundos de famílias de baixa renda tende a ser significativamente mais complexo e incerto. Desta forma, cabe aqui reforçar que as bolsas de estudos são instrumentos fundamentais para tentar democratizar e diversificar a endogâmica pós-graduação brasileira. Por sua vez, a inclusão no ambiente da pós-graduação daqueles que vivenciaram de perto os diversos desafios sociais tem o potencial de ajudar a fornecer novas perspectivas para o debate científico e, particularmente, para questões ligadas à discriminação, à desigualdade e ao desenvolvimento socioeconômico.
No que se refere à infraestrutura, agradeço ao NEREUS por tudo que foi oferecido. Especialmente, agradeço pelo servidor que foi fundamental para a tabulação e à análise das bases de dados. Também devo apontar o relevante papel que o Hospital e Restaurante Universitário teve durante todo o período do mestrado e do doutorado.
Agradeço também a todas as pessoas que tive a oportunidade de interagir tanto diretamente, quanto indiretamente. Em especial, agradeço ao Alan Borges, ao Angelo Sampaio e ao Rafael Tavares pelo apoio e pela amizade; à Carolina Moniz pelo companheirismo durante quase todo o doutorado; ao Rodrigo Soares que, além de ser uma ótima pessoa e um exemplo de profissionalismo, foi um supervisor excelente no período em que passei na Universidade de Columbia, me ajudou a avançar consideravelmente na pesquisa e representa um dos professores com que mais pude aprender; ao Tales Rozenfeld, ao Vinícius Mendes e ao Tiago Ferraz pela ajuda com algumas bases de dados; ao Eduardo Haddad, por ter alocado uma bolsa para mim no início do doutorado, por deixar o ambiente mais leve, por ter me incentivado a ir para o sanduiche e participar de congressos internacionais; aos professores Carlos Azzoni, André Chagas, Ariaster Chimeli, Paula Pereda e Renata Narita pelas críticas e sugestões; aos professores Cássio Turra, Carlos Azzoni, Edson Severnini, Naercio Menezes, Rodrigo Soares e Rudi Rocha por terem aceitado participar da banca de avaliação deste trabalho.
Por fim, agradeço aos meus pais Espedito França e Zila França e ao meu irmão Diego França por toda luta, determinação e carinho.
RESUMO
A mudança climática representa um dos maiores desafios contemporâneos da humanidade. Nesse sentido, diversas pesquisas têm indicado que haverá um aumento considerável na incidência de eventos climáticos extremos tais como as ondas de calor. Desta forma, compreender os canais pelos quais o clima pode afetar a sociedade tornou-se em uma agenda de pesquisa de expressiva importância. Nesse contexto, pesquisadores têm encontrado evidências em países desenvolvidos de que a temperatura afeta negativamente o número de nascimentos. Visto que diversos países do mundo apresentam uma taxa de fecundidade abaixo do nível de reposição populacional e, dado às projeções climáticas, a temperatura pode se tornar uma variável relevante no que se refere às questões populacionais. Consequentemente, com o intuito de verificar se existe alguma influência da temperatura nos nascimentos em um país em vias de desenvolvimento, o primeiro capítulo procura realizar esta análise usando dados para o Brasil. Para isso, usou-se uma abordagem econométrica em que o objetivo é testar se a exposição a choques de alta temperatura tem algum efeito na quantidade de nascimentos meses depois. Assim, os resultados da metodologia proposta sugerem que uma alta temperatura tem um efeito negativo de aproximadamente 2% nos nascimentos de 8 a 10 meses depois da exposição ao choque. No que se refere ao desenvolvimento socioeconômico, talvez os maiores desafios estejam na superação das discriminações e da exclusão social. No caso brasileiro, que representa o último país do continente americano a abolir a escravidão e a segunda maior nação negra do mundo, a televisão é majoritariamente branca. Além do viés racial na representatividade, também há um viés na forma em que os grupos raciais são retratados. Enquanto os negros costumam ser representados com estereótipos negativos, os brancos aparecem com traços positivos. Assim, a recorrente propaganda televisiva da fisionomia branca tem o potencial de afetar a percepção que as pessoas têm em relação aos tons de pele e, consequentemente, a narrativa difundida por meio deste veículo de comunicação pode moldar o comportamento da sociedade em relação a raça e apresenta um significativo potencial de afetar negativamente a exclusão social da população negra. Por sua vez, este processo tende a normalizar implicitamente a desvalorização da imagem das pessoas de pele escura, criando no imaginário coletivo o ideal de que a pele branca está associada com um maior status social e que as características da aparência branca apresentam um maior valor intrínseco. Em consequência, uma frequente estratégia adotada por uma parte dos afrodescendentes brasileiros é tentar se integrar à identidade branca. Entretanto, esta tentativa de apagar as origens e a cor da pele se torna em uma força adicional de valorização da imagem branca e degradação da negra. Essa dinâmica apresenta o potencial reforçar a estratificação racial existente na consciência social. Com o intuito de testar a hipótese de que a televisão afeta a percepção racial, o segundo capítulo procura verificar se existe alguma influência na autodeclaração racial brasileira. A proposta deste capítulo é usar a variação no tempo em que a principal emissora comercial do país, chamada Rede Globo, entrou em cada município para estimar se houve algum efeito na identificação racial da população. Desta forma, os resultados da abordagem proposta sugerem que a televisão impactou a autodeclaração no sentindo em que os pais “embranqueceram” seus filhos e, adicionalmente, os resultados indicam que o efeito é maior para as mulheres. Em relação a distribuição de renda, sabe-se que o Brasil é um país marcado pela alta desigualdade e baixa mobilidade social. Nesse âmbito, pouca atenção tem sido dada no debate brasileiro para os possíveis efeitos da distribuição da fecundidade entre os grupos sociais sobre a desigualdade de longo prazo. Com esta perspectiva, o terceiro capítulo procura revisar a literatura teórica e empírica que analisaram tal relação. Em determinados contextos, o diferencial de fecundidade entre mulheres pobres e ricas pode se tornar em um relevante mecanismo em que o status socioeconômico é reproduzido entre as gerações e, assim, possui o potencial de se tornar em um importante vetor de propagação de desigualdades sociais. Embora o diferencial de fecundidade entre as mulheres pobres e as ricas tenha caído ao longo do tempo, ele continua expressivo. Além disso, a significativa diferença dos tamanhos das famílias brasileiras entre as classes sociais verificada no passado pode ter efeito na desigualdade muitos anos depois. Assim, a proposta do último capítulo é verificar se a fecundidade das mulheres de baixa escolaridade entre 1970 a 1991 afetou a desigualdade de 20 anos no futuro. Como resultado, encontrou-se que a fecundidade deste subgrupo populacional tem poder preditivo para a desigualdade de longo prazo. Em seguida, propõe-se uma abordagem metodológica para lidar com a questão de endogeneidade e os resultados encontrados sugerem que a fecundidade aumentou à desigualdade de 20 anos no futuro.
Palavras-chave: Clima, Fecundidade, Televisão, Rede Globo, Identificação Racial, Desigualdade ABSTRACT
Climate change is one of humanity's greatest contemporary challenges. In this regard, several studies have indicated that there will be a considerable increase in the incidence of extreme weather events such as heat waves. Understanding the channels through which climate can affect society has thus become a research agenda of significant importance. In this context, researchers have found evidence in developed countries that temperature negatively affects the number of births. Since several countries in the world have a fertility rate below the level of population replacement and, given climate projections, temperature can become a relevant variable in population issues. Consequently, in order to verify whether there is any influence of temperature on births in a developing country, the first chapter seeks to perform this analysis using data from Brazil. For this, an econometric approach was used in which the objective is to test whether exposure to high temperature shocks has any effect on the number of births months later. Thus, the proposed methodology suggests that a high temperature has a negative effect of approximately 2% on births 8 to 10 months after exposure to shock. Regarding socioeconomic development, perhaps the biggest challenges are overcoming discrimination and social exclusion. In the Brazilian case, which represents the last country on the American continent to abolish slavery and the second largest black nation in the world, television is mostly white. In addition to the racial bias in representativeness, there is also a bias in the way groups are portrayed. While blacks are often depicted with negative stereotypes, whites appear with positive traits. Thus, the recurring white-skinned television advertising has the potential to affect people's perceptions of skin tones and, consequently, the narrative spread through this medium of communication can shape society's behavior toward race and it has a significant potential to negatively affect the social exclusion of the black population. In turn, this process implicitly normalizes the devaluation of the image of dark-skinned people and creates in the collective imagination the ideal that white skin is associated with higher social status and that white appearance features have a higher intrinsic value. As a result, a frequent strategy adopted by Brazilian African descendants is to try to integrate white identity. However, this attempt to erase the origins and color of the skin becomes an additional force for enhancing the white image and degrading black. This dynamic has the potential to create racial stratification in social consciousness. In order to test the hypothesis that television affects racial perception, the second chapter seeks to determine whether there is any influence on Brazilian racial self-declaration. The purpose of this chapter is to use the variation in the time when the country's main commercial broadcaster, called Rede Globo, entered each municipality to estimate whether there was any effect on racial identification of the population. Thus, the results of the proposed approach suggest that television impacted self-declaration in the sense that parents whitened their children and, additionally, the results indicate that the effect is greater for women. Finally, it is known that Brazil is a country marked by high inequality and low social mobility. In this context, little attention has been given in the Brazilian debate to the possible effects of the distribution of fertility among social groups on long-term inequality. With this perspective, the third chapter seeks to review the theoretical and empirical literature that is addressed to analyze such a relationship. In certain contexts, the fertility differential between poor and rich women can become a relevant mechanism in which socioeconomic status is reproduced between generations and thus has the potential to become an important vector for the spread of social inequalities. Although the fertility differential between poor and rich women has fallen over time, it remains significant. In addition, the significant difference in Brazilian family size between social classes in the past may influence inequality many years later. Thus, the purpose of the last chapter is to verify whether the fertility of low-educated women between 1970 and 1991 affected the 20- year inequality in the future. As a result, the fertility of this population subgroup has been found to have considerable predictive power for long-term inequality. Then, a methodological approach is proposed to deal with the issue of endogeneity and the results suggest that fertility increased inequality of 20 years in the future. Keyword: Climate, Fertility, Television, Rede Globo, Racial Identification, Inequality.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...... 21 1. TEMPERATURA E FECUNDIDADE: PODEMOS CONSTRUIR ALGUMA RELAÇÃO? ...... 27 1.1. Introdução ...... 29 1.2. Literatura prévia: temperatura e fecundidade ...... 31 1.3. Base de dados ...... 33 1.3.1. Dados de temperatura ...... 33 1.3.2. Dados de nascimentos ...... 36 1.4. Metodologia proposta ...... 36 1.5. Resultados ...... 37 1.5.1. Estatísticas descritivas ...... 37 1.5.2. Principais resultados ...... 39 1.5.3. Heterogeneidade ...... 40 1.6. Robustez ...... 47 1.6.1. Especificação ...... 47 1.6.2. Base de temperatura ...... 49 1.7. Considerações finais ...... 50 2. NEGRO OU BRANCO? TELEVISÃO E IDENTIFICAÇÃO RACIAL ...... 53 2.1. Introdução ...... 55 2.2. Literatura prévia ...... 59 2.2.1. Viés racial ...... 59 2.2.2. Televisão ...... 60 2.2.3. Economia, cultura e identidade ...... 62 2.3. Estratégia empírica ...... 64 2.4. Base de dados ...... 65 2.4.1. Autodeclaração racial ...... 65 2.4.2. Rede Globo ...... 65 2.5. Resultados ...... 65 2.5.1. Análise descritiva ...... 65 2.5.2. Principais resultados ...... 70 2.5.3. Identificação e exercícios adicionais ...... 72 2.6. Considerações finais ...... 77 Apêndice ...... 79 3. FECUNDIDADE E DESIGUALDADE: TEORIAS E EVIDÊNCIAS EMPÍRICAS ..... 81 3.1. Introdução ...... 83 3.2. Literatura ...... 85 3.2.1. Teoria ...... 85 3.2.2. Evidência empírica ...... 88 3.3. Fecundidade e desigualdade: simulação ...... 90 3.4. Considerações finais ...... 92 4. NOVELAS, FECUNDIDADE E DESIGUALDADE: PODEMOS CONSTRUIR ALGUMA RELAÇÃO? ...... 95 4.1. Introdução ...... 97 4.2. Taxa de fecundidade: alguns fatos estilizados ...... 100 4.3. Fecundidade e desigualdade ...... 104 4.4. Metodologia proposta ...... 107 4.4.1. Estratégia de identificação...... 107 4.1.2 Equações estimadas ...... 110 4.1.3. Base de dados ...... 112 4.1.3.1. Fecundidade e controles ...... 112 4.1.3.2. Rede Globo ...... 112 4.5. Resultados ...... 113 4.6. Considerações finais ...... 117 REFERÊNCIAS ...... 119
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Estatísticas descritivas ...... 39
Tabela 2: Heterogeneidade por cor, idade e escolaridade ...... 46
Tabela 3: Heterogeneidade de região ...... 47
Tabela 4: Robustez – diferentes especificações ...... 48
Tabela 5: Robustez - desvios da temperatura ...... 49
Tabela 6: Robustez – testando outra base de dados climáticos ...... 50
Tabela 7: Responde e não responde o Censo ...... 70
Tabela 8: Percentual de brancos condicional ao gênero de quem responde ...... 70
Tabela 9: Rede Globo e autodeclaração racial – efeitos sobre as filhas ...... 71
Tabela 10: Rede Globo e autodeclaração racial – efeitos sobre os filhos ...... 73
Tabela 11: Efeitos heterogêneos ...... 74
Tabela 12: Efeitos de idade ...... 74
Tabela 13: Regressões placebo ...... 75
Tabela 14: Robustez ...... 76
Tabela 15: Exercício adicional ...... 77
Tabela 16: Estatísticas descritivas ...... 79
Tabela 17: Estatísticas descritivas por Censo Demográfico ...... 80
Tabela 18: Índices de Gini e de Theil da renda domiciliar per capita ...... 91
Tabela 19: Taxa de fecundidade total, segundo as grandes regiões – 1940/2010 ...... 100
Tabela 20: As cidades em que quase metade dos moradores são crianças...... 104
Tabela 21: OLS ...... 114
Tabela 22: Primeiro estágio ...... 115
Tabela 23: IV ...... 115
Tabela 24: Forma reduzida ...... 116 Tabela 25: Primeiro estágio ...... 116
Tabela 26: Forma reduzida ...... 117
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Sazonalidade dos nascimentos médio mensal por região, 1996-2015 ...... 34
Figura 2: Densidade da temperatura média anual das regiões brasileiras, 1927-2015 ...... 38
Figura 3: Choques de temperatura ...... 41
Figura 4: Choques de temperatura com diferentes proporções ...... 42
Figura 5: Heterogeneidade de gênero ...... 44
Figura 6: Heterogeneidade de gênero e diferentes níveis de choques ...... 45
Figura 7: Distribuição percentual da população branca e negra no Brasil ...... 66
Figura 8: Diferença entre o percentual de mulheres e homens por raça...... 68
Figura 9: Histogramas da diferença da proporção de mulheres e homens brancos ...... 69
Figura 10: Modelo Kremer e Chen (2002) ...... 87
Figura 11: Modelo De La Croix e Doepke (2003) ...... 87
Figura 12: Participação das crianças de até 10 anos de idade por nível educacional da mãe 103
Figura 13: Dispersões do Gini e Theil-L com a fecundidade, por AMCs ...... 108
Figura 14: Mecanismo de transmissão entre mídia, fecundidade e desigualdade ...... 110
Figura 15: Entrada e cobertura da Globo ...... 112
Figura 16: Expansão da Rede Globo entre as regiões brasileiras ...... 113
LISTAS DE SIGLAS
AMC: Área Mínima Comparável
ECMWF: European Centre for Medium-Range Weather Forecasts
ERA5: Reanálise Atmosférica de Quinta Geração
IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IV: Instrumental Variables
OLS: Ordinary Least Squares
“Elevador é quase um templo Exemplo pra minar teu sono Sai desse compromisso Não vai no de serviço Se o social tem dono, não vai...
Quem cede a vez não quer vitória Somos herança da memória Temos a cor da noite Filhos de todo açoite Fato real de nossa história
Se o preto de alma branca pra você É o exemplo da dignidade Não nos ajuda, só nos faz sofrer Nem resgata nossa identidade”
Identidade – Jorge Aragão
21
INTRODUÇÃO
A literatura tem apresentado inúmeros resultados científicos indicando que a terra está passando por um severo processo de aquecimento. Deste modo, projeta-se que haverá um aumento dos eventos climáticos extremos e, por sua vez, tal fato trará consideráveis consequências ambientais e humanitárias (IPCC, 2013). Nesse contexto, foi desenvolvida uma prolífera e ativa agenda de pesquisa voltada para melhorar a compreensão dos canais pelos quais o clima pode afetar a sociedade e a economia (DELL; JONES; OLKEN, 2014; HEAL; PARK, 2015; WEI et al., 2017). Desta forma, estudos nessa agenda ajudam a aperfeiçoar o entendimento dos custos das mudanças climáticas e fornece a possibilidade de adotar ações mais efetivas com o intuito de mitigar seus efeitos (HSIANG, 2016).
No que se refere à fecundidade, usando dados dos Estados Unidos e da Europa, pesquisadores encontraram evidências sugerindo que a exposição a altas temperaturas estão associadas com uma diminuição no número de nascimentos em, aproximadamente, nove meses depois (BARRECA; DESCHENES; GULDI, 2018; GRACE, 2017; LAM; MIRON, 1996). Além disso, existe evidência de que a temperatura explica uma parcela considerável da sazonalidade dos nascimentos dos Estados Unidos (BARRECA; DESCHENES; GULDI, 2018). Num cenário em que vários países do mundo apresentam uma taxa de fecundidade abaixo do nível de reposição populacional, tem-se que compreender a dimensão do potencial efeito da temperatura nos nascimentos representa uma questão de pesquisa de considerável importância (World Bank, 2018). Adicionalmente, as estimativas desse efeito poderão subsidiar futuras projeções populacionais (GRACE, 2017; HUNTER; O’NEILL, 2014). Por fim, vale ressaltar que, visto que as pesquisas prévias focaram a análise somente em países ricos, ainda existe uma lacuna na literatura para entender os possíveis efeitos da temperatura em regiões pobres e em desenvolvimento (BARRECA; DESCHENES; GULDI, 2018; GRACE, 2017). Isto porque essas regiões costumam apresentar um baixo uso de tecnologias que ajuda a suavizar os efeitos climáticos, como por exemplo, o ar condicionado e o protetor solar.
Com esse intuito, o primeiro capítulo deste trabalho procura analisar o efeito de choques de altas temperaturas sobre os nascimentos do Brasil. Deve-se pontuar que este país apresenta uma expressiva sazonalidade dos nascimentos e, além disso, há uma significativa heterogeneidade climática e socioeconômica. Deste modo, o país representa um lugar ideal para analisar a relação entre a temperatura e a fecundidade. Entretanto, este capítulo se diferencia dos estudos prévios no sentido em que a unidade de observação usada está mais desagregada. Isto porque, enquanto os estudos existentes usaram dados no nível de estados ou de países, o presente trabalho usou uma unidade de observação que é relativamente próxima ao nível municipal. Assim, espera-se capturar o efeito de um choque de temperatura relativamente próximo ao que o indivíduo foi de fato exposto.
Dessa forma, propõe-se uma metodologia econométrica em que o objetivo da análise é verificar o comportamento do logaritmo do total de nascimentos após alguns meses da exposição do choque de temperatura. Assim, consideram-se diversas medidas de choques de altas temperaturas e avaliou-se o efeito sobre os nascimentos considerando tanto os meses de gestação da criança, quanto os anteriores a concepção e, com o objetivo de verificar a robustez do procedimento, também se avaliou o efeito três meses depois dos nascimentos. Os resultados encontrados sugerem que altas temperaturas têm um efeito significativo nos nascimentos cerca de oito a dez meses após a exposição. Além disso, tem-se que o efeito é maior nove meses após o choque de temperatura e, de forma semelhante ao resultado encontrado por Barreca, Deschenes e Guldi (2018), tal fato sugere que a temperatura mais elevada afeta negativamente a probabilidade de concepção.
Se, por um lado, mudanças climáticas representam um dos maiores desafios contemporâneos da humanidade, por outro lado, no que se refere ao contexto socioeconômico, é razoável afirmar que um dos maiores desafios esteja na superação das discriminações e da exclusão social. Nesse cenário, sabe-se que a vida em sociedade é permeada pela criação de grupos e tem-se que uma categorização natural surge dos diferentes tons de pele. Por sua vez, a construção social ao longo do tempo faz com que alguns grupos se tornem mais proeminentes que outros (AKERLOF; KRANTON, 2000). De todos os mecanismos que potencialmente afetam a valorização social dos diferentes grupos, é possível que um dos mais impactantes seja a mídia.
No que diz respeito especificamente à televisão brasileira, tem-se uma sub-representação racial e um viés nos papéis assumidos pelos brancos e pelos negros (ARAÚJO, 2008; BRELAND, 1998; CAMPOS; JÚNIOR, 2015; PEFFLEY; SHIELDS; WILLIAMS, 1996; TAN; TAN, 1979). Em relação à representação, embora a parcela da população brasileira que se declarou como negros em 2016 foi de 54,9%, o cidadão brasileiro pode ver somente 15% de personagens 23
negros nas novelas da Rede Globo no período compreendido entre 2014 a 2018 (GOULART, 2018). No período de 1984 a 2014 o cenário foi mais adverso, isto porque somente 8,7% dos personagens eram negros (CAMPOS; JÚNIOR, 2015). No que se refere aos papeis assumidos, tem-se que enquanto os brancos costumam ser representados como um ideal de beleza e de prosperidade, os negros tendem a aparecer nos programas televisivos como criminosos, marginalizados ou em papéis de subordinação (ARAÚJO, 2008; BRELAND, 1998; CAMPOS; JÚNIOR, 2015; PEFFLEY; SHIELDS; WILLIAMS, 1996; TAN; TAN, 1979).
Assim, por meio da televisão, a população brasileira tem contato diariamente com uma espécie de propaganda velada de superioridade racial. Desta forma, este veículo de comunicação pode valorizar a imagem da fisionomia branca e desvalorizar a imagem negra, afetando a percepção e as preferências da população em relação aos tons de pele e, consequentemente, seu comportamento em relação a raça (CHILDREN NOW, 1998; MARTIN, 2008; PEFFLEY; SHIELDS; WILLIAMS, 1996; WRIGHT et al., 2016). Essa revalorização racial poderia afetar os grupos raciais de formas distintas, como por exemplo, em aspectos relacionados ao mercado de trabalho, saúde, relações afetivas, violência, abordagens policiais e aspirações sociais.
Nesse contexto, embora a narrativa apresentada nos parágrafos anteriores seja razoável do ponto de vista teórico, existe considerável dificuldade em testar empiricamente a hipótese de que a televisão leva a uma revalorização racial. Desta forma, o segundo capítulo argumenta que no Brasil existe um experimento natural que pode ajudar a fornecer uma evidência empírica para tal questão. Isto porque tem-se que a Rede Globo, que representa a principal emissora comercial de televisão do país, entrou de forma relativamente heterogênea em cada município ao longo do tempo. Em síntese, a expansão do sinal da emissora se deu fundamentalmente pelo clientelismo político do governo militar (LA FERRARA; CHONG; DURYEA, 2012). Assim, pode-se explorar a variação no tempo em que a emissora entrou em cada município para verificar se existiu algum efeito na autodeclaração racial da população. Por sua vez, o “embranquecimento” da população seria uma evidência de que a televisão influenciou a percepção racial da sociedade, criando um ideal no imaginário coletivo de que a fisionomia branca está associada com um maior valor intrínseco.
Com esta perspectiva, o segundo capítulo propõe uma abordagem econométrica para investigar se a televisão influenciou a autodeclaração racial brasileira. Apesar de existir uma vasta literatura entre sociólogos e psicólogos destacando o papel da televisão no processo de formação da identidade, este trabalho representa o primeiro esforço de usar métodos econométricos com o intuito de testar empiricamente esta hipótese de forma causal. Assim, os resultados da estratégia empírica proposta sugerem que os pais embranqueceram seus filhos.
Em seguida, nos dois últimos capítulos, o intuito é procurar analisar o papel da distribuição da fecundidade na dinâmica da desigualdade. Nesse sentido, sabe-se que o Brasil é um país marcado pela alta desigualdade socioeconômica e pela baixa mobilidade social. Em 2017, a sociedade brasileira foi a nona mais desigual do mundo e, em uma pesquisa realizada pela OCDE considerando uma amostra de trinta países, a mobilidade social do Brasil só não foi pior que a verificada na Colômbia (OCDE, 2018; OXFAM, 2018). Por sua vez, há no país um expressivo diferencial de fecundidade entre as mulheres pobres e as ricas. Apesar desse diferencial ter caído ao longo do tempo, tem-se que ele ainda continua relevante.
Com o objetivo de descrever os possíveis canais que relacionam a fecundidade com a desigualdade, o terceiro capítulo procura revisar a literatura teórica e empírica que focaram nessa relação. Nesse sentido, tem-se que as características dos indivíduos que afetam a renda e que tenha uma alta associação entre os pais e os filhos possui o potencial de afetar a transmissão intergeracional do sucesso econômico (BOWLES; GINTIS, 2002). Deste modo, dado que os distintos padrões reprodutivos entre as classes sociais apresentam uma alta correlação intergeracional, tem-se que a distribuição da fecundidade pode se tornar um importante ponto de partida para analisar a desigualdade e a transmissão do status socioeconômico entre as gerações.
Do ponto de vista teórico, a interação entre a distribuição da fecundidade e a desigualdade pode criar um ciclo vicioso ao longo do tempo que faz com que o objetivo de reduzir a desigualdade se torne relativamente difícil (KREMER; CHEN, 2002). Adicionalmente, argumenta-se que a distribuição da fecundidade entre as classes sociais possui o potencial de afetar negativamente o nível de capital humano médio e, consequentemente, poderia ter repercussão na produtividade agregada da economia (DE LA CROIX; DOEPKE, 2003; MOAV, 2005). No que diz respeito a literatura empírica, estudos têm encontrado evidências que a fecundidade pode afetar, por exemplo, o mercado de trabalho, nível educacional, saúde, etc. (BAILEY; HERSHBEIN; MILLER, 2012; BAILEY, 2006; MILLER; BABIARZ, 2016; NARITA; DIAZ, 2016).
25
Apesar do debate relacionado aos possíveis efeitos da fecundidade no desenvolvimento econômico ter mais de meio século, deve-se pontuar que ainda existe pouco consenso (ASHRAF; WEIL; WILDE, 2013). Isso se deve basicamente ao fato de que a fecundidade é uma variável endógena e encontrar variações exógenas não é uma tarefa trivial. Além disso, o efeito de uma redução da fecundidade pode afetar as variáveis socioeconômicas no longo prazo e, assim, isto faz com que a identificação do efeito seja algo significativamente difícil.
Consequentemente, o objetivo do último capítulo é o mais desafiador deste trabalho. Isto porque a intenção é explorar a relação entre a fecundidade e a desigualdade de longo prazo numa perspectiva empírica. Para isso, a proposta é usar a evidência fornecida por La Ferrara et al. (2012) de que a televisão afetou a fecundidade brasileira com o intuito de testar a estrutura teórica fornecida pelo Modelo de Kremer e Chen (2002). Nesse sentido, a literatura tem apresentado evidências de que a televisão afeta negativamente a quantidade de filhos (KEARNEY; LEVINE, 2015; LUCAS; WILSON, 2018; TRUDEAU, 2016). Assim, propõe- se usar a variação exógena da entrada da Rede Globo nos municípios brasileiros como instrumento para a taxa de fecundidade das mulheres de baixo nível educacional. No segundo estágio, o objetivo é verificar se há indícios de que esta variável afeta a desigualdade de vinte anos no futuro. Por sua vez, a medida de desigualdade usada foi a razão do logaritmo do rendimento médio dos mais escolarizados sobre o logaritmo do rendimento médio dos menos escolarizados. Deste modo, os resultados iniciais da implementação dessa metodologia sugerem que a fecundidade das mulheres de baixo nível educacional afetou a medida de desigualdade de longo prazo. Apesar disso, numa próxima etapa da pesquisa, será necessário realizar mais alguns exercícios para analisar a robustez dos resultados encontrados.
27
1. TEMPERATURA E FECUNDIDADE: PODEMOS CONSTRUIR ALGUMA RELAÇÃO?
Resumo
Uma série de estudos tem chamado a atenção para o aquecimento global. Nesse contexto, aumenta-se a importância de um melhor compreendimento dos canais pelos quais o clima pode afetar a sociedade. No que se refere a fecundidade, pesquisas prévias realizadas em países desenvolvidos encontraram que altas temperaturas impactam negativamente a reprodução humana e que o efeito seria maior para a população de baixa renda. No presente capítulo, o objetivo é verificar se tal padrão existe quando se analisa o caso de um país em vias de desenvolvimento. Assim, se explora os dados de clima e de nascimentos do Brasil entre 2000 a 2015 e os resultados do modelo proposto sugerem que a exposição a altas temperaturas tem um efeito negativo e significante nos nascimentos.
Palavras-chave: clima, mudança climática, nascimentos, fecundidade Classificação JEL: I12, J13, Q54 28
TEMPERATURE AND FERTILITY: CAN WE BUILD SOME RELATIONSHIP?
Abstract
Several studies have drawn attention to global warming. In this context, the importance of a better understanding of the channels through which climate can affect society increases. Regarding fertility, previous research conducted in developed countries found that high temperatures negatively impact human reproduction and that the effect would be greater for the low-income population. In the present article, the objective is to verify if such a pattern exists when analyzing the case of a developing country. Thus, we explore Brazil's climate and birth data from 2000 to 2015 and the results of the proposed model suggest that exposure to high temperatures has a significant negative effect on births.
29
1.1. Introdução
“Fica comigo esta noite e não te arrependerás Lá fora o frio é um açoite; Calor aqui tu terás” Fica comigo esta noite - Nélson Gonçalves
Projeta-se que a temperatura média mundial aumentará consideravelmente neste século e, como consequência, espera-se uma incidência maior de eventos climáticos extremos tais como as ondas de calor (IPCC, 2013). Nesse cenário, torna-se fundamental compreender os canais pelos quais o clima pode afetar a sociedade e a economia. De fato, tal tema tem desafiado pesquisadores a séculos e avanços nesse campo geram para a sociedade a possibilidade de dar uma melhor resposta no enfretamento dos futuros desafios climáticos. Adicionalmente, pesquisas nessa agenda poderão permitir um maior entendimento de como o clima tem influenciado o processo de desenvolvimento dos países ao longo do tempo (HSIANG, 2016).
Nesse capítulo, o objetivo é analisar a relação entre as flutuações da temperatura e a quantidade de nascimentos. A literatura da área destaca que temperatura pode impactar diretamente a reprodução de duas formas: i) impactando o comportamento sexual; ii) influenciando fatores de saúde reprodutiva, como a mobilidade do esperma e a menstruação (BARRECA; DESCHENES; GULDI, 2018; LAM; MIRON, 1996; LEVINE, 1991, 1994)1. Apesar dos avanços nessa linha de pesquisa, o impacto da temperatura na fecundidade em países pobres e em desenvolvimento não é bem conhecido e documentado (BARRECA; DESCHENES; GULDI, 2018; GRACE, 2017). Isso porque os estudos existentes focam em regiões ricas e usam dados agregados, geralmente no nível de estados ou de países (GRACE, 2017). Barreca, Deschenes e Guldi (2018) argumentaram que são necessárias mais pesquisas para analisar como a temperatura pode influenciar os nascimentos, especialmente em lugares que apresentam baixa intensidade no uso de tecnologias adaptativas as mudanças climáticas, como por exemplo, o ar condicionado.
Desta forma, o intuito do presente capítulo é contribuir com a literatura da área em, basicamente, dois aspectos: i) usa-se dados do Brasil, país que apresenta uma expressiva heterogeneidade climática e socioeconômica. Assim, o capítulo analisa o impacto das
1 Um outro canal considerado por Eissler, Thiede e Strube (2019) é que a mulheres expostas a períodos quentes ou secos mudariam os objetivos reprodutivos. 30
flutuações de temperatura sobre os nascimentos em um país em vias de desenvolvimento; ii) a base de dados foi construída com um nível de desagregação maior que as pesquisas prévias, visto que a unidade de observação utilizada são as Áreas Mínimas Comparáveis (AMCs). Com isso, se consegue capturar melhor a variação de temperatura em um nível mais próximo do que os indivíduos foram expostos. Vale ressaltar que, no Brasil, diversos municípios se desmembraram criando outros municípios ao longo do tempo. Consequentemente, as AMCs representam as menores divisões regionais que possibilita a construção de painéis de dados de longo prazo.
Além disso, vários países apresentam uma taxa de fecundidade abaixo do nível de reposição da população e, naturalmente, tal fato intensifica a necessidade de uma melhor compreensão da relação entre o clima e a fecundidade. Sabe-se que o menor nível da taxa de fecundidade que assegura a reposição populacional é de 2.1. No Brasil, a taxa de fecundidade em 2017 foi de 1.7 (World Bank, 2018). Este fato trará consideráveis implicações futuramente, como por exemplo, impacto nos sistemas previdenciários e diminuição da população economicamente ativa. Neste cenário, há evidência de que altas temperaturas afetam negativamente a fecundidade e de que o aumento da temperatura derivado das mudanças climáticas poderá reduzir a taxa de crescimento populacional no próximo século (BARRECA; DESCHENES; GULDI, 2018). Entretanto, as projeções populacionais atuais ignoram os possíveis impactos do clima na fecundidade (GRACE, 2017; HUNTER; O’NEILL, 2014).
Com o intuito de investigar o efeito causal da temperatura separadamente de outros fatores que afetam a reprodução humana, como por exemplo, feriados e características socioeconômicas, pesquisas passadas procuraram analisar como as oscilações climáticas afetam a fecundidade (BARRECA; DESCHENES; GULDI, 2018; LAM; MIRON, 1996; SEIVER, 1985). Como pressuposto, considera-se o seguinte experimento natural: as flutuações climáticas mensais em cada região são aleatórias e, consequentemente, um possível teste é verificar se os nascimentos numa determinada área apresentaram alguma variação após um mês relativamente quente ou frio (BARRECA; DESCHENES; GULDI, 2018).
Para examinar se as flutuações da temperatura têm algum impacto nos nascimentos do Brasil, o presente capítulo propõe um modelo econométrico que utiliza uma medida que captura choques mensais da temperatura como variável explicativa para a quantidade de nascimentos. Dessa forma, estima-se um modelo de dados em painel e, para isso, usa-se como variável 31
dependente o logaritmo do total de nascimentos na AMC 푖 num dado mês 푡. Como variável independente, na especificação de referência, usa-se uma variável binária indicando quando a temperatura observada em 푡 extrapola a temperatura da média histórica do mês em uma proporção do desvio padrão histórico da temperatura daquele específico mês 푡 da AMC. No exercício de robustez, usa-se o desvio da temperatura da AMC em relação à temperatura média histórica daquele mês e AMC. Adicionalmente, acrescentam-se os efeitos fixos e os controles.
No que diz respeito aos dados, construiu-se o painel com informações obtidas do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos do DATASUS numa frequência mensal de 2000 a 2015. A segunda fonte de dados advém das informações climáticas do Copernicus Climate Change Service.
Os resultados do modelo proposto sugerem que os choques da temperatura têm um efeito negativo e significante na quantidade de nascimentos. Além disso, os resultados indicam que não há diferenças expressivas entre as estimativas do efeito quando se consideram as especificações sem controles e aquelas que controlam pelas características da mãe, sugerindo assim, que essas características não estão afetando os resultados. Visto que os pesquisadores têm apontado que as ondas de calor ocorrerão numa intensidade maior no futuro, esses resultados são relativamente relevantes para a implementação de políticas de mitigação dos efeitos das mudanças climáticas sobre a fecundidade. Adicionalmente, deve-se considerar a possibilidade de incorporar tais impactos nas futuras projeções populacionais.
1.2. Literatura prévia: temperatura e fecundidade
Nos anos recentes, pesquisadores têm avançado em relação ao instrumental econométrico voltado para a compreensão de como o clima pode impactar os resultados socioeconômicos (HSIANG, 2016). Concomitantemente, foram encontradas evidências da influência do clima em diversas áreas, como saúde, agricultura, personalidade, produção industrial, demanda de energia, crescimento econômico, produtividade, entre outras (DELL; JONES; OLKEN, 2014; HEAL; PARK, 2015; WEI et al., 2017). A literatura recente também tem encontrado impactos significativos do clima sobre a saúde do feto e da mãe (DESCHENES; GREENSTONE; GURYAN, 2009; KIM; LEE; ROSSIN-SLATER, 2019; ROCHA; SOARES, 2015). Em relação à fecundidade, o aparente efeito da temperatura sobre as concepções pode resultar do 32
efeito fisiológico ou da mudança na frequência da relação sexual (BARRECA; DESCHENES; GULDI, 2018; LAM; MIRON, 1996).
Do lado fisiológico, estudos encontraram evidências de que a saúde reprodutiva do homem é impactada pelo clima. Isto porque a contagem e a mobilidade do esperma são afetados por temperaturas elevadas (LAM; MIRON, 1996). Além disso, a temperatura também pode interferir na menstruação e na ovulação das mulheres2 (BARRECA; DESCHENES; GULDI, 2018). A literatura também apresenta evidências de que a fecundidade humana é impactada pela intensidade de luz diária (CONWAY; TRUDEAU, 2019). Dias com maior incidência de luz estimulariam mudanças no cérebro responsáveis pelas atividades endócrinas e reprodutivas. Consequentemente, a luminosidade poderia levar a uma secreção maior dos hormônios reprodutivos que agem no ovário e melhorar a qualidade do sêmen (BECKER, 1991). No que diz respeito à frequência de relações sexuais, especula-se que altas temperaturas poderiam afetar negativamente a probabilidade de coito (BARRECA; DESCHENES; GULDI, 2018). Neste caso, Hajdu e Hajdu (2019) usaram dados da Hungria entre 1986 e 2010 e não encontraram efeito da temperatura sobre o comportamento sexual. Entretanto, Wilde, Apouey e Jung (2017) usaram dados de vários países da África e encontraram uma redução da atividade sexual e do número de pesquisas no Google por palavras-chave com conotação sexual durante períodos de temperaturas elevadas.
De uma forma geral, estudos têm fortalecido a hipótese de que uma temperatura mais elevada teria efeito negativo sobre a fecundidade (BARRECA; DESCHENES; GULDI, 2018; CONWAY; TRUDEAU, 2019; LAM; MIRON, 1996). Alguns autores destacam que tanto um inverno extremamente frio quanto um verão muito quente têm impacto sobre os nascimentos (LEE, 2003; RICHARDS, 1983). Barreca, Deschenes e Guldi (2018) usaram dados de fecundidade e clima dos Estados Unidos entre 1931 e 2010 e encontraram que dias muito quentes causam um forte declínio na taxa de nascimentos após, aproximadamente, 8 a 10 meses. Os resultados apresentados pela literatura também sugerem que o impacto de um verão quente é maior para a população de baixa renda e o uso de ar-condicionado pode suavizar o efeito (BARRECA; DESCHENES; GULDI, 2018; CHAUDHURY, 1972; KESTENBAUM, 1987;
2 Segundo Hansen (2009, p.1): “Heat stress can have large effects on most aspects of reproductive function in mammals. These include disruptions in spermatogenesis and oocyte development, oocyte maturation, early embryonic development, foetal and placental growth and lactation”. 33
LAM; MIRON, 1996; PASAMANICK; DINITZ; KNOBLOCH, 1960; SEIVER, 1985; WARREN; TYLER, 1979).
Apesar da procriação depender de diversas variáveis difíceis de serem controladas ̶ como por exemplo, socioculturais e biológicas ̶ no que se refere ao clima, argumenta-se que a temperatura tem um efeito quantitativamente importante na variação tanto sazonal quanto não sazonal dos nascimentos (LAM; MIRON, 1996). Nesse contexto, vale ressaltar que, desde o século 19, pesquisadores têm observado em vários lugares do mundo uma sazonalidade na reprodução (BECKER, 1991). Mesmo considerando os casos dos países desenvolvidos, que apresentam um alto uso de métodos contraceptivos, o padrão sazonal dos nascimentos encontra- se presente. Na Europa, o maior número de nascimentos ocorre na primavera, enquanto nos Estados Unidos, são mais frequentes no verão (MOREIRA, 2016). Lam e Miron (1996) destacaram que a sazonalidade americana costuma ser maior em grupos de baixa renda. Adicionalmente, Barreca, Deschenes e Guldi (2018) sugeriram que a temperatura pode ser a variável mais importante na explicação da sazonalidade dos nascimentos nos Estados Unidos.
No caso brasileiro, conforme pode-se visualizar por meio da Figura 1, o país apresenta uma expressiva sazonalidade dos nascimentos. Em quase todas divisões regionais, a estação do ano com maior número de nascimentos é o outono. Mais especificamente, tem-se um aumento das concepções nos meses do inverno e uma diminuição nos meses do verão3. Este padrão sugere uma possível relação inversa entre a temperatura e a quantidade de nascimentos. Com o intuito de verificar se existe evidência que sustenta tal hipótese usando técnicas econométricas, as próximas seções apresentam as bases de dados e a estratégia empírica proposta.
1.3. Base de dados
1.3.1. Dados de temperatura
As séries históricas de temperatura e de precipitação foram construídas usando as informações fornecidas pelo Copernicus Climate Change Service, organização que disponibiliza dados do sistema climático com um expressivo nível de qualidade. A base usada foi a ERA5 que representa a Reanálise Atmosférica de Quinta Geração do European Center for Medium-Range
3 Janeiro, que representa um mês em que habitualmente há férias, seria a exceção. Para uma análise mais detalhada sobre a sazonalidade brasileira ver Moreira (2016). 34
Figura 1: Sazonalidade dos nascimentos médio mensal por região, 1996-2015
Nota: O eixo y representa o log dos nascimentos médio mensal. Os dados foram obtidos por meio do DATASUS. Dado que os meses do ano tem diferente número de dias, multiplicamos o número de nascimentos em cada mês por (365/12)/t onde t é o número de dias no mês em questão.
Weather Forecasts4 (ECMWF). A ERA5 combina dados de modelos climáticos com os de observações e fornece uma série de tempo numa frequência mensal de temperatura e de precipitação no formato de grade no nível de 0.25° x 0.25°. Assim, para mensurar a temperatura de uma determinada AMC, usou-se a proporção do território da AMC dentro de cada grade para calcular a média ponderada da temperatura.
4 Para maiores informações, a documentação da base ERA5 encontra-se disponível no seguinte endereço: https://confluence.ecmwf.int/display/CKB/ERA5+data+documentation 35
Em seguida, construiu-se uma variável que procura medir o comportamento das flutuações da temperatura durante os meses de gestação da criança e anterior à concepção. Esta medida representa uma variável binária construída com o intuito de capturar os choques de altas e baixas temperaturas: