Catumbi, um bairro de passagem. As Transformações urbanísticas na cidade do (1960 a 1984): uma análise do bairro do Catumbi.

Catumbi, a passing neighborhood. The urban transformations in the city of Rio de Janeiro (1960 to 1984): an analysis of the neighborhood of Catumbi.

1ALMEIDA, Cintia Oliveira de.

Resumo:

O presente trabalho tem como objetivo investigar as intervenções urbanas ocorridas no bairro do Catumbi entre 1960 a 1984. A escolha desse recorte cronológico justifica-se pela pequena quantidade de trabalhos que abordam as reformas urbanas nas décadas referidas. O bairro foi afetado por essas transformações urbanísticas, que alteraram seu espaço físico e sua organização social. A partir desse recorte cronológico, será feita a análise dos impactos socioespaciais que as reformas urbanas provocaram no local. Nesta pesquisa, partiremos da questão central de como a intervenção do poder público no bairro do Catumbi reconfigurou a espacialidade desse sítio evidenciando o contexto político, econômico e social que envolveu os processos urbanísticos. As reformas urbanas se alastraram no bairro através da construção de túneis, viadutos e do Sambódromo, alterando bruscamente as relações sociais e a estrutura física do Catumbi e acarretando grandes modificações no significado que o espaço representava para aqueles que se apropriavam do lugar, seus moradores e frequentadores. Nesse sentido, vale

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Mestranda do PPGH/UERJ, orientada pelo Prof. Dr. André Nunes de Azevedo, bolsista CAPES, e-mail: [email protected].

ressaltar o papel do bairro enquanto reduto de blocos carnavalescos, festividades religiosas e outras atividades culturais que preenchiam o cotidiano do seu espaço.

Palavras – chave: Catumbi. Transformações urbanísticas. Bairro. Reformas urbanas..

Palavras – chave: Catumbi. Transformações urbanísticas. Bairro. Reformas urbanas.

Abstract:

The present study aims to investigate the urban interventions that occurred in the Catumbi neighborhood between 1960 and 1984. The choice of this chronological section is justified by the small amount of work that addresses the urban reforms in the decades of reference. The neighborhood was affected by these urban transformations, which altered its physical space and its social organization. From this chronological section, the socio-spatial impacts that the urban reforms provoked in the place will be analyzed.

In this research, we start from the central question of how the intervention of the public power in the district of Catumbi reconfigured the spatiality of this place evidencing the political, economic and social context that involved the urbanistic processes. Urban reforms spread through the neighborhood through the construction of tunnels, viaducts and the Sambódromo, abruptly altering the social relations and the physical structure of Catumbi and provoking great changes in the meaning that space represented for who appropriated the place, its inhabitants and goers . In this sense, it is worth emphasizing the role of the neighborhood as a stronghold of carnival blocks, religious festivities and other cultural activities that fill the daily life of its space.

Keywords: Catumbi. Urban transformations. Neighborhood. Urban reforms.

OS PROCESSOS DE SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL DO BAIRRO DO

CATUMBI

“(...)Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara do Catumbi. (...)” (Assis, 2004, p. 12)

‘'Rio sombreado’’ ou ‘'Rio na Sombra’’ (Gerson, 2015), este é o significado, na língua Tupi, de Catumbi. Um dos bairros mais antigos da época do Império. As terras que abrangem essa área e suas redondezas foram doadas por Estácio de Sá aos jesuítas, ainda na época Colonial. (Nunes, 1978). A partir da expulsão dos jesuítas das colônias portuguesas, em 1759, aos poucos as terras que lhes foram concedidas, passaram a ser ocupadas permitindo assim os primeiros passos do povoamento de bairros cariocas como, por exemplo, Catumbi e (Fridman, 1999, p. 342).

Brasil Gerson em “A História das Ruas do Rio”, uma obra de grande valor para a história do Rio de Janeiro, revela trechos da carta escrita pelo naturalista João Emanuel Pohl, vindo ao Brasil na comitiva da Imperatriz Leopoldina, onde este mencionava que o bairro era um dos lugares mais insalubres da época. Tal afirmação, pode-se dizer, está atrelada ao fato de que o bairro está assentado numa área alagadiça, cercado de rios e mangue. Não obstante, a região era cercada por belas chácaras e casarões de grandes proprietários de terra. Como exemplo da grande extensão das terras, verifica-se a chácara de Dionísio Orieste, que foi vendida à irmandade de S. Francisco de Paula (em 1851) para a construção do Cemitério que se encontra até hoje no mesmo local de origem. Memoráveis enterros foram celebrados no cemitério do Catumbi, a exemplo, o de Duque de Caxias e do músico, Catulo da Paixão Cearesnse. Havia também a chácara do Dr.

Francisco Alves da Cunha, o Barão do Catumbi, a dos Coqueiros de Francisco Xavier Pires, a do barão de Canindé, entre outras muitas (Gerson, 2015).

Foram muitos os moradores abastados que ostentavam riqueza e prestígio à época Imperial. A casa do jornalista e deputado Justianno da Rocha, era famosa pela arquitetura refinada e por celebrar grandes bailes. Ao longo do tempo, com o aumento da população do Rio de Janeiro, era necessária a construção de moradias e, para isso, era preciso abrir espaço. Foi assim que muitas chácaras foram retalhadas para a abertura das ruas.

A partir do século XIX a cidade começa a assistir a divisão do espaço urbano em classes sociais. É notório que uma parte da população com poder de mobilidade, passa a tomar os rumos da zona sul, em especial Catete, Gloria e . Todavia, as camadas com pouco poder aquisitivo iniciam, à medida que são feitos os trabalhos de drenagem do Mangue e do Saco de São Diogo, o processo de ocupação da Cidade Nova e, em consequência disso, os bairros vizinhos sofrem um processo de intensificação da sua ocupação. (Abreu, 2013).

“A rapidez da ocupação dessa “Cidade Nova” foi tão intensa que, a partir de 1865, criou-se a do Espírito Santo, que tinha jurisdição sobre os atuais bairros do Catumbi, Estácio, Rio Comprido e parte de Santa Teresa, tendo sido desmembrada de terrenos pertencentes às freguesias de Santo Antônio, Engenho Velho, Santana e São Cristóvão (...) Os vestígios deste tipo de ocupação são visíveis até hoje nas áreas que conseguiram sobreviver às cirurgias urbanas. São prédios estreitos e muito profundos, “onde a iluminação é feita através de claraboias e áreas internas, sempre de frente da rua e colados uns aos outros.i”, em tudo revelando a preocupação de aproveitar intensamente o espaço próximo ao centro, numa época em que, devido à inexistência de transportes coletivos rápidos, a cidade praticamente andava a pé.” (Abreu, 2013, p. 41).

O bairro do Catumbi expressa, nos dias de hoje, as consequências dessas “cirurgias urbanas” que marcaram o seu espaço provocando profundas alterações na sua forma-aparência e na forma-conteúdo2. De Certo, a partir do século XIX o bairro sofre

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Os conceitos de Forma-aparência e forma conteúdo são desenvolvidos por Maurício Abreu em sua obra: A Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio de janeiro: IPP, 2013.

alterações no seu espaço devido às obras de drenagem e aterramento do Mangue e do Saco São Diogo. Deste modo, a ocupação da região é intensificada, e o bairro do Catumbi passa a servir de moradia à imigrantes, em principal italianos portugueses e espanhósis que eram em geral pequenos comerciantes, e à trabalhadores assalariados, tornando-se um bairro de classe média baixa. (Nunes, 1978).

O BAIRRO DE PASSAGEM

“Peguemos todas nossas coisas E fumos pro meio da rua Apreciá a demolição Que tristeza que nós sentia Cada táuba que caía Doía no coração (…) Saudosa maloca, maloca querida Dim-dim donde nós passemos os dias feliz de nossas vidas” (Adoniran Barbosa.) O surgimento maciço dos automóveis, a partir da década de 1950, como consequência da concetração de renda das camadas médias cariocas, acarretou a criação de inúmeros projetos que visavam a construção de vias que pudessem facilitar a mobilidade dessa classe. O Catumbi, bairro de localização privilegiada, próximo ao centro da cidade, como também, da zona sul, ganhou um papel de destaque no que se refere às reformas urbanas. O bairro foi transformado em grande corredor viário, para muitos dos seus moradores o termo “bairro de passagem” define a representação atual do Catumbi no cenário carioca.

A construção do túnel Santa Bárbara, iniciada em 1948, uma das primeiras obras ocorridas no bairro que seguiam os ditames do automóvel, teve sua inauguração em 1963, durante o Governo de Carlos Lacerda. E, no entanto, para que as obras fossem inicidas

diversas famílias foram desaprorpiadas (Mattos, 2005, p. 36). A respeito da intensificação do uso do automóvel, Debord em “A sociedade do espetáculo” dilucida este processo: “A ditadura do automóvel, produto-piloto da primeira fase da abundância mercantil, se enraizou no terreno com a dominação da auto-estrada, que desloca os centros antigos e comanda uma dispersão sempre mais pronunciada” (Debord, 1997, p. 115).

“As necessidades de ampliação da malha viária da cidade em prol da redução do tempo do percurso entre a zona sul e o centro (...) não estabeleceram um consenso com os moradores e frequentadores do Catumbi e podem ser apontadas como as duas principais modificações estabelecidas neste bairro.ii”

O texto exprime a fragmentação ocorrida no espaço do Catumbi e revela que não existiu uma conformidade dessas intensas transformações urbanas com seus moradores. E, de fato, a notícia das desapropriações causou um grande descontentamento. Os moradores se orgnizaram para reivindicar o direito de permanecerem no bairro Porém, o esforço não foi compensado na mesma proporção.

“(...) Como em todas as fases precedentes, esta expansão mais recente do processo urbano trouxe com ela incríveis transformações no estilo de vida. A qualidade de vida urbana tornou-se uma mercadoria, assim como a própria cidade, num mundo onde o consumismo, o turismo e a indústria da cultura e do conhecimento se tornam os principais aspectos da economia política urbana. (...) O poder financeiro apoiado pelo Estado força a desobstrução dos bairros pobres, em alguns casos, tomando posse violentamente da terra ocupada por toda uma geração. A acumulação de capital através da atividade imobiliária é incrementada, já que a terra é adquirida quase sem custo. (...) A urbanização, podemos concluir, desempenhou um papel decisivo na absorção de capitais excedentes, em escala geográfica sempre crescente, mas ao preço do explosivo processo de destruição criativa que tem desapropriado as massas de qualquer direito à cidade.” (Harvey, 2012, pp. 81; 84-85).

Os processos de urbanização que assolaram o bairro do Catumbi também foram incorporados no discurso modernizador. Defendendo que o bairro era, demasiadamente, deteriorado, feio e velho o que justificava as intervenções urbanísticas em prol do desenvolvimento e progresso da região e da cidade. Em “Quando a rua vira casa”, uma das poucas obras, porém de muito fôlego, que se preocupou em tomar como objeto o Catumbi, expõe o descaso do poder público com o bairro.

“A base de estudo foi o bairro do Catumbi, eleito há mais de quinze anos pelo governo com o assessoramento de importantes técnicos em urbanismo nacionais e internacionais, para sofrer um processo radical de renovação urbana. Pode-se depreender desta escolha, portanto, que o bairro foi julgado como não servindo mais, como sendo obsoleto. Tudo o que existia dentro dele, incluindo ruas, casas, equipamentos urbanísticos, pessoas e suas atividades deveriam desaparecer para dar lugar as estruturas e modos de vida mais modernos, e, naturalmente, a novos moradores que tivessem o “status” adequado para consumi-las e praticá-los. Em suma, o Catumbi como modelo urbano era visto como superado, carregado de negatividade e indesejado.” (Santos, 1985, pp. 8-9).

O bairro correu o risco de ser arrasado. Não obstante, hoje, ele ainda é tratado com indiferença pelas autoridades públicas. O espaço, atual, do bairro reflete os resquícios do passado. Os escombros ainda permanecem em seu território, mesmo que de forma simbólica. O bairro foi enxugado pela modernização urbana que o sugou para o centro de um turbilhão. No governo de Lacerda (1960-1965) foi implementado o projeto Doxiadis, criado pelo urbanista e arquiteto grego Constatino Doxiadis. Este plano havia sido solicitado por Lacerda, quando este era governador do recém criado Estado da Guanabara.

“(...) Entre 1963 a 1965, foi desenvolvido pelo escritório grego Doxiadis Associates, para o então Estado da Guanabara, a pedido de seu primeiro governador, Carlos Lacerda, um plano físico-terriotorial para o Rio de Janeiro. Intitulado Plano de Desenvolvimento para o ano 2000, ficou mais conhecido como Plano Doxiadis e representou também a possibilidade da ascensão política do governador através da demonstração de confiabilidade, eficiência técnica, e do desenvolvimentismo que pautou a ideologia do seu governo. O plano, objeto de marketing, seria o registro para o futuro da competência política e administrativa daquele governo. A imagem de uma administração equilibrada com base em um planejamento racional e pautado pela ideologia desenvolvimentista (1946 a 1964) iria atrair empresários internos e externos. (...).” (Borges, 2007, p. 26).

Após o mandato de Carlos Lacerda, Negão de Lima assumiu o governo do estado do Rio de Janeiro. Em sua administração foi criada a CEPE, Comissão Executiva de Projetos Específicos, mais tarde trasformada em Superintendência Executiva (SEPE), responsável por coordenar o Plano de renovação urbana da Cidade Nova. A ideia inicial era transfomar a região da Cidade Nova numa área voltada para a habitação de uma

classe média, defirentemente da população que ali residia. Com o decorrer do tempo, as obras viárias foram acontecendo, assim como também as desapropriações (Nunes, 1978). Os moradores do bairro, se organizaram em cooperativas para reinvindicarem o direito de permanecer no Catumbi. Muitos moravam no bairro há anos, outros além de residirem mantinham algum comércio ou trabalhavam nos comércios que existiam no bairro àquela época. O Catumbi era ocupado por uma classe média baixa, existindo ainda pessoas de condições financeiras mais humildes. O poder público adotava a estratégia de “cozinhar a banho maria” a população que esperava do Estado uma providência que fosse, de fato, resolver os problemas de moradia que enfrentavam. Os moradores não eram, todavia, contrários à renovação urbana, porém desejavam fazer parte dela, podendo usufrir de todos os seus benefícios (Fridman, 1980, p. 79).

“A experiência do espaço urbano fundamenta a intuição de que rua é mais que vias, trilho ou caminho. (...) Só em mapas, plantas e planos, ruas podem ser vistas apenas como meios de circulação entre dois pontos distantes. (...) A expressão “alma da rua” significa um conjunto de veículos, transeuntes, encontros, trabalhos, jogos, festas e devoções. (...) A par de caminhos, são locais onde a vida social acontece ao ritmo do fluxo constante que mistura tudo.” (Santos, 1985, p. 24).

Entretanto, no início da década de 1980 os moradores do Catumbi se deparam com mais uma intervenção urbanística, a construção de uma passarela designada aos desfiles das escolas de samba e, para isso, haveria mais demolições (Nunes, 1978, p. 191).

“(...) Poucos anos depois, a facilidade de acesso à área pelos turistas e moradores da zona sul e , fez com que a rua Marquês de Sapucaí fosse escolhida para ser palco da construção do Sambódromo. A referência ao passado da festa, dos blocos de carnaval e da alegria espontânea, característicos dos moradores do Catumbi “pré-viaduto”, é inevitável. (...) No entanto não cabe o comentário sobre o fato de que o carnaval dos ricos se assentou (literalmente) sobre um bairro de passagem pobre, “favelado” e com alto índice de criminalidade. A festa, hoje, não faz parte do Catumbi, mas acontece no Catumbi. O bairro virou um cenário montado para o carnaval e para a circulação viária. Devemos, espetacularmente, fechar os olhos para os bastidores deste cenário.”iii

O texto acima descreve a espetacularização feita no espaço do bairro. Sobre a festa mencionada no fragmento acima, existe aí, mesmo que implícita duas ideias diferentes sobre o sentido de festa. Para elucidar melhor essa distinção, Lefebvre possibilitou a comprensão de que: “O uso principal da cidade, isto é, das ruas e das praças, dos edifícios e dos monumentos, é a festa (que consome improdutivamente, sem nenhuma outra vantagem além do prazer e do prestígio, enormes riquezas em objetos e em dinheiro)” (Lefebvre, 2012, p.12). A festa, para Lefebvre, é o sentido que possibilita a apropriação da cidade, de forma improdutiva, ou seja, sem que seja atribuído à festa o valor de mercadoria. A festa quando procede da relação metabólica entre as pessoas e o espaço o qual elas povoam, não possui o mesmo significado quando incorporada a um evento. Sendo assim, realmente, não há como relacionar o evento à festa. Dessa maneira, também não é possível associar o evento do desfile das escolas de samba com o passado de festas e de samba do bairro Catumbi. É interessante a percepção do que se tornou o bairro do Catumbi, na atualidade. O bairro teve seu espaço retalhado por túneis, viadutos e pelo Sambódromo onde os seus habitantes vivem em meio aos escombros do espaço que sobrou dessas intervenções.

O CATUMBI E SUAS REMINISCÊNCIAS

“A memória é uma ilha de edição”

(fragmento do poema Câmara de Ecos, de Wally Salomão)

Uma parte desta pesquisa foi reservada à História Oral. Tendo em vista a pequena quantidade de materiais de estudo que abordam o bairro do Catumbi, conseguir organizar um arquivo, mesmo que pequeno, de depoimentos de moradores e moradoras, principalmente os mais antigos, é de alguma relevância.

Entretanto, para o uso desse mecanismo foi necessário cuidado e rigor para evitar alguns ruídos no resultado deste empenho.

MEMÓRIAS DE UM PASSADO FESTIVO E MUSICAL. ENTRE OUTRAS RECORDAÇÕES.

“Se a memória é socialmente construída, é obvio que toda documentação também o é. Para mim não há diferença fundamental entre fonte escrita e fonte oral. A crítica da fonte, tal como todo historiador aprende a fazer, deve, a meu ver, ser aplicada a fontes de tudo quanto é tipo. Desse ponto de vista, a fonte oral é exatamente comparável à fonte escrita. Nem a fonte escrita pode ser tomada tal qual ela se apresenta.” (Pollak, 1992, p. 8).

Uma das entrevistas realizadas foi feita com um antigo morador do bairro, Seu Toninho. Figura muito conhecida e ilustre do Catumbi. Morador do bairro, desde 1934, reside na mesma casa desde dois meses e meio de vida, localizada na Rua Emília Guimarães, número 8. Filho de pai Português e mãe Brasileira, Seu Toninho é um dos moradores mais antigos da “Rua dos Ciganos”, apelido o qual era dado à Rua Emília Guimarães, pelo grande número de famílias Ciganas que moravam naquele lugar.

Como o senhor compreende o Catumbi, hoje?

“Construíram aqui um sambódromo que não serve de nada. Eu não posso sair do Catumbi no carnaval, seu eu for sair tenho que levar uma conta de luz, um comprovante de que eu moro aqui. Isso é um absurdo! Eu moro aqui vai fazer 82 anos! O Catumbi está jogado às traças, completamente diferente, até o modo de vida.”

E porque o bairro está jogado às traças?

“O desenvolvimento social de Catumbi foi nulo. As mudanças que fizeram não valem nada. (...) A construção do sambódromo é que foi um atraso de vida para o Catumbi. Não beneficiou em nada o Catumbi. Metade do pessoal que foi desapropriado lá, não viu dinheiro nenhum. (...) Eu quando era novo ia a pé pra tudo quanto é lugar. Aqui é um lugar muito bem localizado, é aí que entra o olho grande.”

O Senhor se recorda de algum morador que foi desapropriado na época em que ocorreram as transformações urbanísticas?

“Conheço. A casa que hoje é a loja de material de construções do Gabriel era do Seu Reis. Ele tinha duas casas nos Coqueiros, ele morreu e não recebeu nada do Governo. Brigamos muito por Catumbi, eu briguei muito pelo Catumbi. Espalhávamos panfleto para não desapropriarem o Catumbi. Chegou o

Negrão de Lima e desapropriou quase tudo. Eu participei do movimento do Catumbi. Eu, Pe. Mário e o falecido Damico. Inclusive o Pe. Mário foi em cana, na época do movimento.”

E como era o Catumbi antes das remoções?

“O Catumbi era muito bom! Tinha um circo, na Rua do Chichorro, chamado Olimeshe, tinha o cinema Catumbi, onde hoje é o sambódromo. Quantas casas foram desapropriadas ali! Inclusive o pai da D. Lourdes tinha um botequim lá, ele foi obrigado a sair. A prefeitura é esse negócio: chega, desapropria, e daí você fica com uma mão atrás e a outra na frente, sem defesa.”

Como era o carnaval no bairro, antes da construção do sambódromo?

“Era melhor do que é hoje. Tinham três ranchos: Os caçadores de Veado, Os inocentes de Catumbi e o Unidos do Cunha”

Havia samba no catumbi?

“O Catumbi tinha muitos sambistas. Um dos primeiros sambas que saiu do Catumbi foi esse aqui”:

“Depois de tantos anos de silêncio:

Catumbi, volta ao cartaz.

Jamais esquecerei-me de ti Catumbi,

Terra de onde eu nasci.

No catumbi eu nasci e me criei

Conheci o meu amor

e com ele me casei

Lugar assim como esse

Eu nunca vi

Quem quiser ser feliz

Venha morar em Catumbi.”

“Um dos primeiros sambas que saiu daqui do Catumbi. Uns dizem que a autoiria é do Zeca, que vem ser tio do Lauro, se eu não me engano.”

O que o Catumbi significa para você?

“Tudo! Aqui era quase uma família.”

E com essa frase de impacto a entrevista se deu por encerrada. É notório que há alguns pontos de contato entre as falas do Seu Lauro e a do Seu Toninho. Ambos sentem falta do passado do bairro e se descontentam com as consequências das transformações urbanas, refletidas no espaço do Catumbi. Recordam, com nostalgia, um tempo que se passou.

A última entrevistada, Mirian de Almeida, 58 anos, moradora do bairro desde que nasceu. Residente à Emília Guimarães, número 16. Entretanto morou mais de 25 anos na Rua Van Erven, número 34.

Como você enxerga a reurbanização ocorrida no bairro?

“O viaduto, praticamente, acabou com o Catumbi. O bairro ficou quase sem comércio e perdeu a sua característica de bairro carnavalesco. (...) Ali no sambódromo tinha um cinema. (...) Havia todo o tipo de comércio aqui. Cinema, padarias, correios, carvoaria. Tinha um parque de diversões, na Avenida Marquês da Sapucaí. Ali também morava o Tião Maria, do Bafo da Onça, a casa dele foi demolida para a criação do sambódromo. Tinha loja de fazenda, loja de massa. Ficou desvalorizado o Catumbi, porque com as demolições saiu boa parte do comércio. O Catumbi estacionou, não evoluiu. Foi um bairro que ficou de passagem, aqui é um acesso de viadutos e túneis. Muitas moradias foram abaixo. A Rua Elione de Almeida e a Rua dos Coqueiros praticamente acabaram. Essa “modernização” descaracterizou o bairro. Aqui era um bairro que tinha de tudo, era muito movimentado tinha o carnaval tinha as festividades. Acho que se fizer uma enquete com as pessoas mais antigas do bairro, elas vão dizer a mesma coisas. A gente não precisava sair do bairro para comprar as coisas tinha sapataria tinha loja de roupa, se você quisesse dar um presente para alguém tinha aonde comprar. Não precisava pegar um ônibus para comprar um carretel de linha. Hoje você tem que pegar um ônibus para comprar as coisas. Com as demolições muitos comerciantes foram embora do bairro. Se as moradias fossem mantidas, o comércio voltava. Eu vejo bastante prejuízo. Até a Igreja N. Sra. da Conceição eles conseguiram tirar do bairro. O bairro foi reduzido.”

E com relação às habitações que foram construídas no bairro. Qual a sua opinião?

“Até construírem esses prédios que hoje existem no bairro, demoraram muito tempo. As pessoas tiveram que sair das suas moradias e quem não tinha pra onde ir teve que se virar do jeito que dava.

Algumas pessoas foram indenizadas, mas a maioria não foi. As pessoas não podiam esperar 10 anos para que o prédio ficasse pronto. Antes de desapropriarem já deveriam ter feito casas, para que as pessoas não ficassem sem ter pra onde ir.”

Como você enxerga o carnaval no bairro?

“Só fazem alguma coisa pelo Catumbi na época do carnaval, aí botam calçamento, podam árvore, botam iluminação, botam asfalto pra esconder os buracos. Nós aqui somos esquecidos o ano inteiro pelo Governo, só no carnaval que o bairro é lembrado e, ainda assim, o carnaval aqui é só para turista. A apoteose não foi feita para o morador. O ingresso é caro!”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desta pesquisa as evidências foram contundentes. Os processos de segregação socioespacial ocorridos no bairro do Catumbi impôs a transformação do espaço, à posse da mercadoria e, junto dela, vieram os interesses dos agentes que possuem o poderio econômico. As consequências das intervenções urbanísticas são verificadas no descaso e no esquecimento, propositado, o qual o bairro foi entregue. É bem comum que muitas pessoas sequer saibam da existência do Catumbi. O que é de certa forma incoerente, tendo em vista a localização central do bairro, e todo o aparato cultural que ele carrega. O bairro tem em seu espaço, o sambódromo, onde ocorre um dos grandes eventos que compõem a Cidade. Entretanto, existe um vácuo entre a Apoteose do Samba e o bairro que cede lugar a ela. Este vácuo é causado pela incompatibilidade entre os dois elementos. O bairro e o sambódromo não dialogam entre si, não mantém uma relação. O sambódromo é um corpo estranho dentro do bairro do Catumbi. Todavia, o bairro foi altamente destruído, fragmentado e segregado, para que nele fosse levantado o palco do “maior show da terra”.

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NOTAS DE FIM

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