UNIVERSIDADE DO ESTADO DA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL

A VIDA NO VAI-E-VEM DAS ÁGUAS: MULHERES MARISQUEIRAS DE SALINAS DA MARGARIDA TRABALHO, CULTURA E MEIO AMBIENTE (1960-1990)

ROSANA COSTA GOMES

SANTO ANTONIO DE JESUS

JUNHO/2009 1

ROSANA COSTA GOMES

A VIDA NO VAI-E-VEM DAS ÁGUAS MULHERES MARISQUEIRAS DE SALINAS DA MARGARIDA TRABALHO, CULTURA E MEIO AMBIENTE (1960-1990)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia -UNEB, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História Regional e Local.

Orientador: Prof. Dr. Charles D‟Almeida Santana.

JUNHO/2009

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G633 Gomes, Rosana Costa. A vida no vai-e-vem das águas: mulheres marisqueiras de Salinas da Margarida,

trabalho, cultura e meio ambiente (1960-1990)./ Rosana Costa Gomes - 2009. 146 f.; il Orientador: Prof. Dr. Charles D‟Almeida Santana. Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Programa de pós- graduação em História Regional e Local, 2009.

1. Pescadoras - Marisqueiras. 2.Meio Ambiente. 3. Pesca artesanal I. Santana, Charles D‟Almeida. II. Universidade do Estado da Bahia, Programa de Pós-graduação em História Regional e Local.

CDD: 639.2092

Elaboração: Biblioteca Campus V/ UNEB Bibliotecária: Juliana Braga – CRB-5/1396. 3

A VIDA NO VAI-E-VEM DAS ÁGUAS MULHERES MARISQUEIRAS DE SALINAS DA MARGARIDA TRABALHO, CULTURA E MEIO AMBIENTE (1960-1990)

ROSANA COSTA GOMES

BANCA EXAMINADORA

______Charles D‟Almeida Santana (orientador) Doutor em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

______Márcia Maria da Silva Barreiros Doutora em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) Universidade Estadual de (UEFS)

______Vilma Maria do Nascimento Doutora em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) Universidade Católica do Salvador (UCSAL)

JUNHO/2009 4

Às mulheres marisqueiras de Salinas da Margarida. 5

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus por grandes coisas ter feito por mim. Sinceros agradecimentos ao meu orientador, professor Charles D`Almeida Santana, pela amizade, confiança, incentivos, senso profissional, paciência, indagações e sutis insistências nas conversas que me ajudaram na descoberta de novos caminhos para a pesquisa. Minha eterna gratidão, as minhas ex-alunas e aos meus ex-alunos de Salinas da Margarida muitos filhos e filhas de marisqueiras que com os seus jeitos de ser me despertaram para perceber e buscar conhecimentos sobre suas histórias. As catadoras de chumbinho, mulheres marisqueiras ou mariscadeiras, como são também conhecidas, que perceberam a importância do estudo e receberam-me sem resistência, mas sim com muita boa vontade concedendo-me informações preciosas sobre o seu viver. O meu profundo agradecimento a essas mulheres e a todas as demais pessoas que conversei em Salinas, as quais abriram as portas de suas casas, de suas vidas, de suas memórias e que busquei com zelo deixar aqui registrada. Agradeço a todos da Universidade do Estado da Bahia – UNEB que se envolveram, e conseguiram a implantação do Curso de Pós- Graduação em História Regional e Local no CAMPUS V. Proporcionando a ampliação do leque da produção historiográfica. A todos os professores e colegas do curso que me ajudaram a alcançar subsídios para este estudo. Ao Professor Dr. Walter Fraga Filho pelas orientações que deu quando estava na frente da coordenação desse mestrado. A Professora Drª Márcia Maria da Silva Barreiros e a Professora Drª Vilma Maria do Nascimento sou profundamente grata pela ajuda que me deram para dar prosseguimento a esse estudo. Não posso esquecer de agradecer as secretárias do curso Ane e Consuelo obrigada pela paciência e carinho que tiveram comigo. As ex-colegas de trabalho de Salinas da Margarida pelo ensino e a aprendizagem adquiridos através do convívio, da experiência compartilhada que muito me ajudaram no desenvolvimento da pesquisa. As amigas e amigos que me ajudaram com palavras de confiança e estímulo. A Lauro Souza serei sempre grata pela paciência e carinho que dedicou, quando eu tanto precisei nos primeiros passos dessa pesquisa. 6

As colegas de trabalho e alunos de Santo Antonio de Jesus sou grata pela compreensão que tiveram quando precisei me afastar do trabalho por conta dos estudos. A colega Rita Loyola, agradeço pela revisão ortográfica. Aos funcionários da Câmara Municipal de Salinas da Margarida, que permitiram-me consultar os documentos arquivados e aos funcionários da Prefeitura Municipal quero agradecer pela cordialidade que me receberam e pela ajuda que me prestaram. Agradeço também a todas as demais pessoas de outros arquivos que me receberam e permitiram o desenvolvimento da pesquisa. A amiga Rosineide pelas orações que fizemos juntas, para conseguirmos o ingresso e conclusão desse curso. Não poderia deixar de agradecer ao meu cachorrinho Amstad pela sua amizade e companheirismo, pois nos momentos que se tornava angustiante a produção da escrita, as brincadeiras dele serviram para distrair-me e fazer com que retornasse ao texto com mais ânimo. Enfim, sou profundamente grata a todos aqueles que me ajudaram na realização desse estudo.

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ACMSM – Arquivo da Câmara Municipal de Salinas da Margarida. Ceb – Companhia Eletroquímica da Bahia. CQR – Companhia Química do Recôncavo. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pescon – Pesqueira do Recôncavo Ltda.

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ÍNDICE DE FIGURAS

FIGURA 1: Mapa do Recôncavo Sul, com destaque para Salinas da Margarida. (Fonte: CEI). FIGURA 2: Mapa de Salinas da Margarida. (Fonte: CEI). FIGURA 3: Crianças mariscando. (Fotografia de pesquisa, 2003) FIGURA 4: Mulher mariscando. (Fotografia de pesquisa, 2003) FIGURA 5: Comemoração religiosa dedicada à Iemanjá. (Fotografia de pesquisa, 2003). FIGURA 6: Mariscos sendo transportados. (Fotografia de pesquisa, 2008). FIGURA 7: Homem na mariscagem segurando o puçá com chumbinhos. (Fotografia de pesquisa, 2008). FIGURA 8: Puçá, instrumento usado na mariscagem. (Desenho adquirido via internet). FIGURA 9: Homem mariscando. (Fotografia de pesquisa, 2008). FIGURA 10: Viveiros da Maricultura e locais das mariscagens. (Croqui produzido por Ana Louíse Gomes Cruz durante a pesquisa de campo, 2008). FIGURA 11: Viveiros da Maricultura e locais das mariscagens. (Croqui produzido por Ana Louíse Gomes Cruz durante a pesquisa de campo, 2008). FIGURA 12: Prédio onde funcionava o Antigo Escritório da Companhia Salinas da Margarida. (Fotografia de pesquisa, 2007). FIGURA 13: Empreendimentos imobiliários da orla marítima de Salinas da Margarida. (Fotografia de pesquisa, 2007). FIGURA 14: Residência do Comendador Campos. (Fotografia de pesquisa, 2003.) FIGURA 15: Tanque da Maricultura da Bahia onde são criados os camarões com destaque para a cerca. (Fotografia de pesquisa, 2007). FIGURA 16: Formatura do curso de magistério de algumas marisqueiras e de filhas de marisqueiras. (Fotografia de Lauro Souza, 2001). FIGURA 17: Criança brincando sobre cascas de chumbinhos. (Fotografia de Lauro Souza, 2001). FIGURA 18: Artesanato feito com conchas de chumbinhos e de outros mariscos. (Fotografia de pesquisa, 2003.).

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Cooperação no relacionamento com os residentes locais de áreas ecologicamente frágeis são de extrema importância para compreendermos o meio ambiente natural e os efeitos do uso de seus recursos. Não podemos, porém, negligenciar nossas responsabilidades em tais relacionamentos ou subestimar o efeito (positivo ou negativo) que temos sobre uma comunidade rural. De nossa parte, devemos prestar ajuda e dividir as informações às quais temos acesso. Desse modo, a população local poderá entender sua situação em um contexto mais amplo e tomar decisões fundamentadas sobre suas vidas e suas terras.*

*Arturo Gómez-Pompa & Andrea Kaus. Domesticando o Mito da Natureza Selvagem. In; Antônio Carlos Diegues (Org.). Etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. São Paulo: Annablume, 2000, p. 142.

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RESUMO

Esta pesquisa se refere ao cotidiano das marisqueiras de Salinas da Margarida, município localizado no Recôncavo Sul da Bahia, situado na Bacia Hidrográfica do Rio Paraguaçu, na Baia de Todos os Santos. A mariscagem feita por estas mulheres é uma prática que consiste no processo de catar pequenas conchas nas areias das praias, das quais são retirados os mariscos, conhecidos no local como chumbinho ou sarnabitinga. Esta atividade envolve relações de trabalho em grupo, que perpetua uma tradição marcada por aspectos próprios, referenciando a luta pela sobrevivência das marisqueiras e suas famílias. Buscou-se neste estudo, através da exploração de fontes orais, documentos escritos, fotografias, croquis, mapas e outras fontes, a compreensão do viver das marisqueiras, dos seus costumes, os mecanismos de socialização, como a prática da mariscagem é passada de geração para geração, as formas utilizadas na superação das dificuldades, seus sonhos, desilusões e as mudanças sócio-geográficas e ambientais ocorridas na cidade e que interferiram na mariscagem. As marisqueiras inseridas na abordagem da história regional, com suas histórias que retratam o concreto do cotidiano e a especificidade da singularidade de suas práticas de vida, contribuem para a compreensão da história local. É no espaço das areias das praias, embebidas pelas lamas dos manguezais e nos pontos de vendas dos mariscos que elas se lançam vivificando uma tradição que lhes foi passada por gerações de outrora. Mesmo com o avanço tecnológico no campo da ciência moderna, e diante da evolução urbana pela qual Salinas da Margarida atingiu no contexto da globalização, a arte de mariscar, não perdeu importância na vida dessas mulheres que se engajam com vigor na sedenta peleja em prol da sustentação de suas vidas.

Palavras-chave: Mulher. Trabalho. Cultura. Meio Ambiente.

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ABSTRACT

This research is about the daily life of shellfish workers of Salinas da Margarida, town located in southern Recôncavo, Bahia, in the Watershed of Rio Paraguaçu, Todos os Santos Bay. The “mariscagem” practiced by these women is a process where small shells in the sands of the beaches are collected, from which is taken the shellfish, locally known as “chumbinho” or “sarnabitinga”. This activity involves working relations in a group which perpetuates a tradition marked by peculiar aspects, referencing the struggle for survival of the workers and their families. This study aimed to understand, through the use of oral sources, written documents, photographs, sketches, maps and other sources, the life of these shellfish workers, their customs, the mechanisms of socialization, how the practice of “mariscagem” is passed from generation to generation, the ways used to overcome the difficulties, their dreams, disappointments and the socio-geographical and environmental changes occurred in the city that interfered in the “mariscagem” practice. The shellfish workers included in the regional history approach, with their stories that portray the real of daily life and the specificity of uniqueness of their practices of life, contribute to the understanding of local history. It is in the sand of the beaches area, absorbed by the mud of the mangroves swamps, and in the points of sale of shellfish that they live a tradition that was passed to them by ancient generations. Even with technological advances in the field of modern science, and in the face of the urban development reached by Salinas da Margarida in the context of globalization, the art of “mariscar” didn‟t lose importance in the lives of these women who engage with energy in the thirsty battle for the support of their lives.

Keywords: Woman. Work. Culture. Environment.

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS...... 13

CAPÍTULO I

O VAI-E-VEM DAS MARÉS...... 33 PASSAVA FOME, MAS A MINHA ALEGRIA ME ALIMENTAVA...... 34 FESTEJOS: ALEGRIA ALÉM DA MARÉ...... 50

EU VOU À MATA, À MARGARIDA E AO MANGUEZAL...... 59

CAPÍTULO II

MARÉS DA MODERNIZAÇÃO...... 67 VIAGENS E MERCADO...... 68 QUEM TEM TELHADO DE PALHA VAI MORAR EM OLHO DE VIDRO...... 76 MARISCAGEM E BIODIVERSIDADE AMEAÇADAS...... 90

CAPÍTULO III

RELAÇÕES NOS ESPAÇOS DA MARISCAGEM...... 101 TERRA OCUPADA...... 102

OUTRAS VEREDAS...... 109 ESPAÇOS DE SOLIDARIEDADES...... 117

A MARÉ TAÍ!...... 122

CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 132 FONTES ...... 139 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 141 BIBLIOGRAFIA...... 144

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este trabalho é o resultado da pesquisa que realizei a respeito das marisqueiras, mulheres que desenvolvem um tipo de pesca artesanal em Salinas da Margarida, município localizado no Recôncavo Sul da Bahia, (ver figura1) situado na Bacia Hidrográfica do Rio Paraguaçu, na Baia de Todos os Santos, a 280 Km da capital Salvador via BA-001 BR-324. O enfoque é a vida das mulheres que catam mariscos, moluscos que estão em pequenas conchas nas areias das praias conhecidos na região como chumbinho ou sarnabitinga. O recorte de tempo privilegiado foi o período entre as décadas de 1960-1990. Este período foi estabelecido a partir das observações feitas do cotidiano do viver das marisqueiras e das transformações ocorridas em Salinas da Margarida. Nos primeiros anos, destaca-se o fechamento da Companhia Salinas da Margarida e nos últimos notamos as significativas modificações urbanas operadas pelo poder público municipal. Ponta da Margarida foi um sítio que outrora teve suas terras pertencentes à Capitania dos Portos de Salvador. Ponta é um nome dado em referência a sua estrutura geográfica, pois esta faixa territorial apresenta uma ponta de terra que se estende do continente em direção à Baía de Todos os Santos, próximo da Ilha de Itaparica (ver figura 2). O nome Margarida, segundo a versão de alguns moradores da localidade, trata-se do fato de ter existido neste local, muitas flores conhecidas por margarida ou malmequer.

A mudança do nome para Salinas da Margarida ocorreu devido à exploração do sal desenvolvida em grande escala neste local. A implantação do empreendimento industrial para a exploração salineira por evaporação, foi concedida em 02 de junho de 1877, pelo então presidente da província da Bahia, Senhor Henrique Pereira de Lucena, ao Senhor Comendador Manoel de Souza Campos e ao Senhor Horácio Urpia Júnior. Assim, em 20 de março de 1891, foi fundada a Companhia Salinas da Margarida e teve seus estatutos aprovados. 1

Apesar de toda a glória da indústria do sal, no período que sucedeu os anos de 1953, foi registrada uma queda vertiginosa na produção. Em 25 de outubro de 1963, a companhia requereu licença para transferir parte de suas áreas territoriais à

1 Ver Almir de Oliveira. Salinas da Margarida; Notícias Históricas. Minas Gerais: Minas Editora, 2000, p. 79. 14

Companhia Eletroquímica da Bahia - Ceb. Em 18 de maio de 1964, requereu novamente outra área à Ceb e outra para a Companhia Química do Recôncavo – CQR, a qual, em 9 de outubro de 1981, solicitou licença para transferir as áreas

FIGURA 1: Mapa do Recôncavo Sul, com destaque para Salinas da Margarida. (Fonte: CEI). 15

territoriais para a Pescon -Pesqueira do Recôncavo Ltda. Esta empresa tinha como finalidade explorar a criação dos camarões em cativeiro, utilizando, assim, os espaços já existentes que eram propícios a esta cultura. Em 17 de setembro de 1996 a Pescon, agora, Pescon Empreendimentos e Participações Ltda., vendeu suas áreas para a Maricultura da Bahia S. A. Esta empresa também se destinava à cultura do camarão de cativeiro. 2

Assim, encerrou o ciclo da exploração do sal cujo esgotamento pode ser atribuído a muitos motivos “entre os quais podem ser apontados, a falta de modernização dos equipamentos e de continuidade administrativa.”3 Apesar do grande sucesso da exploração salineira, conseguido pelos antigos administradores, seus sucessores, não conseguiram manter o mesmo resultado, o que acabou gerando o fechamento da companhia. Tal fato gerou descontentamento em muitas famílias, pois desempregou centenas de pessoas. Afinal, a empresa representou para Salinas da Margarida, um célebre desenvolvimento e inserção no contexto econômico nacional, ainda que tenham sido benefícios propiciados, sobretudo pelos proprietários da companhia. Os poderes públicos, apesar de recolherem altos impostos da companhia, pouco ou nenhum investimento favoreceram a Salinas da Margarida.4 Senhor Raimundo Nonato fala com nostalgia sobre o fechamento da fábrica:

Um gerente aqui, por nome José Granjeiro Coelho, achou que a fábrica de sal não estava dando resultado, quando era mentira dele que dava muito resultado. Mas não sei porque devia só ficar com o fabrico de dendê, a seção agrícola, e desprezou o sal. Quando chegou lá, disse ao gerente. Aos donos em Salvador, acreditou nele, só ficou com o outro e aí foi a baixo, nunca mais foi como era.5

Ter conseguido o depoimento de Senhor Raimundo foi um motivo de muita alegria e satisfação. Suas lembranças permitiram um maior esclarecimento e entendimento do funcionamento da empresa e da produção do sal em Salinas da Margarida. Remanescente da Companhia Salinas da Margarida, Senhor Raimundo,

2 Idem, op.cit. , passim. 3 Idem, op.cit. , p. 130. 4 Idem, op.cit. , p. 119. 5 Raimundo Nonato Ferreira. Entrevistado em 7 Jun. 2003. 16

com 84 anos de idade, foi um dos poucos homens que trabalhou nesta companhia e que ainda morava em Salinas.

FIGURA 2: Mapa de Salinas da Margarida. (Fonte: CEI). 17

Como ele mesmo afirmou, muitos foram embora após o fechamento da companhia, outros companheiros não estão mais vivos. Apesar de tanto tempo ter passado, ele ainda guardava indignação pelo fechamento da empresa, pois segundo ele, a exploração salineira ainda rendia muitos lucros. Senhor Raimundo manifestou ter consciência de classe, ao demonstrar a importância que a produção salineira representava na vida dos moradores que diretamente viviam dessa produção. A sua preocupação era com as conseqüências que a decisão de terminar com o cultivo do sal acarretaria tanto para ele, bem como para outros funcionários da companhia. Foi triste ver seus companheiros demitidos e alguns irem embora de Salinas em busca de trabalho. Senhor Raimundo começou a trabalhar na Companhia muito novo, com apenas 12 anos de idade. Permaneceu no trabalho, desenvolvendo várias funções e, como ele fez questão de frisar algumas vezes na entrevista, permaneceu na empresa durante trinta e três anos, três meses e vinte e seis dias. Trabalhou diretamente com o sal, quando fazia um trabalho manual que precisava de força física, pois tinha que deslocar o sal de uma determinada área para outra da Companhia. Trabalhava na condução do sal na linha férrea, botando os trilhos para as locomotivas passarem levando o sal para os barracões. Este Senhor lembrou da fartura do sal que existia naquela época. Muitas pessoas beneficiavam-se ganhando sal de presente, ou mesmo apropriando-se dele de outras maneiras, pois geralmente o sal ficava por algum tempo em áreas abertas. Saveiros vinham durante a noite e levavam grande quantidade do produto sem o devido consentimento dos donos da companhia. A abundância era tão grande que os proprietários tomavam poucas medidas de segurança para proteger a produção salineira. O jornalista soteropolitano Almir de Oliveira fez um estudo sobre Salinas e em suas reflexões a respeito da exploração do sal, observou que até a implantação da Companhia, Salinas da Margarida - ainda chamada Ponta da Margarida - não tinha respaldo, importância alguma no cenário baiano ou nacional, pois não havia nenhuma igreja no local, já que a existência de igrejas era tão importante nas localidades brasileiras durante o século XIX, momento da implantação salineira. Após a implantação da Companhia, passaram a relacionar o nome da mesma ao lugar, mesmo quando ainda quando era distrito, e mais tarde como município, permanecendo desde então o nome desta localidade Salinas da Margarida. Com o 18

sucesso da exploração do sal, Salinas, que antes não tinha nenhum reconhecimento, entra no cenário baiano e nacional tornando-se conhecida também internacionalmente, pois seu produto fora reconhecido e circulava nos estados do Brasil e era exportado para outros países, sendo premiado em várias oportunidades pela qualidade do sal. 6

Lamentavelmente, com o fim da exploração do sal, muitos pais de famílias ficaram desempregados, como lembrou Senhor Raimundo. Sem emprego e conscientes da falta de opção em Salinas, muitos dos ex-funcionários foram embora com suas famílias em busca de êxito profissional em outras localidades. Outros que estavam com idade de se aposentar conseguiram o benefício junto ao INSS. Aos demais que permaneceram em Salinas, predominou as águas salinenses de onde poderiam tirar o pão de cada dia. Elimar Pinheiro do Nascimento fez considerações sobre a exclusão social que atinge os brasileiros. A exclusão é tida como uma preocupação que abrange vários seguimentos da sociedade como a política e o meio acadêmico. Segundo ele “é um problema na sociedade moderna, pois esta nasce sob o signo da sua negação, a igualdade”.7 Ele salienta que a exclusão social pode, nos ideais da modernidade, servir como incentivo para a busca do crescimento, no entanto, tem como conseqüência a negação do acesso pleno à igualdade. Nesse contexto, as marisqueiras de Salinas da Margarida que a longos anos viveram sem desfrutar de uma justa igualdade social, buscaram não se abater por conta disso, a necessidade pela manutenção da própria vida e a responsabilidade pelo sustento familiar, fez com que elas se lançassem na pescaria em busca de suprimentos. Atividade que elas e os homens desenvolviam, mesmo durante a exploração salineira. Foi a essa “fábrica”, com mais intensidade que recorreram para garantir o ganha-pão, através da pesca e da coleta de frutos do mar, atividades tradicionais em Salinas como em tantas outras praias da Baía de Todos os Santos. Durante a pesquisa, ouvi algumas marisqueiras que além de trabalharem com o chumbinho lidavam com outros tipos de mariscos, como o siri, a lambreta e a ostra. Tanto as marisqueiras como os demais entrevistados que fui à procura em

6 Nas suas descrições Oliveira aponta 3 prêmios: o Grande Prêmio, conquistado na Exposição Baiana de 1916, a medalha de Ouro, obtida na Exposição Baiana no mesmo ano e a Medalha de Ouro obtida na Exposição Nacional de 1908, realizada no Rio de Janeiro, então capital da República. Almir de Oliveira, op.cit. p. 121. 7 Elimar Pinheiro do Nascimento. A exclusão social no Brasil: Algumas hipóteses de trabalho e quatro sugestões práticas. Caderno do CEAS, n. 152, 1994. p. 58. 19

suas casas, nos manguezais, nos locais de vendas dos seus produtos, na Associação das Marisqueiras, nas praias ou em outros setores de trabalho, foram muito atenciosos. Elas e eles contribuíram ao revelarem as riquezas de suas experiências, vivências e saberes, propiciando, assim, um vasto leque de informações que possibilitou-me alargar o meu conhecimento em relação à importância deste trabalho na sociedade local e a sua interatividade com a natureza. Em Salinas da Margarida, a mariscagem de catar chumbinho é em grande escala praticada por mulheres, tendo elas desempenhado um papel importante para o desenvolvimento histórico-cultural local. A atividade desenvolvida por elas envolve relações de trabalho em grupo e perpetua uma tradição vivida por várias gerações e que é marcada por aspectos próprios, referenciando a luta pela sobrevivência das marisqueira e suas famílias. São mulheres populares, algumas chefes de famílias, que sobrevivem do fruto do seu trabalho. O meu interesse em desenvolver esta pesquisa vem dos contatos que tive com as marisqueiras a partir do ano de 1998. Após finalizar o curso de graduação em História na UNEB-Universidade do Estado da Bahia, Campus V, localizado no município de Santo Antonio de Jesus, cidade em que resido, lancei-me em busca de campo de trabalho onde pudesse desenvolver-me profissionalmente. Dessa forma, no período de dois anos trabalhei como regente de classe em Salinas da Margarida. Como docente, tive a oportunidade de conhecer este grupo de trabalhadoras, o que favoreceu a chance de trazer à tona um debate sobre esse segmento popular, contribuindo com a produção do conhecimento histórico regional. Os primeiros contatos que tive em sala de aula com meus alunos logo me revelaram que teria sérios problemas com choques culturais, pois me assustei com a agressividade e a falta de respeito que grande parte deles dispensavam aos professores, bem como aos seus colegas. O sentimento de desafio e a necessidade do trabalho fizeram-me buscar meios de poder desenvolver as atividades em sala de aula. Procurei informações a respeito dos meus alunos na tentativa de compreender aqueles comportamentos agressivos. Então, iniciei uma série de diálogos com eles, com a direção do colégio, com os professores mais antigos e com outras pessoas do lugar. Vários motivos apresentados como responsáveis por aqueles comportamentos e muitos são os mesmos que atingem milhares de famílias brasileiras, como o desemprego, subemprego, filhos que não chegaram a conhecer 20

os pais, moradia precária e outros. Porém, uma informação me despertou maior atenção: muitas alunas eram filhas de marisqueiras ou eram marisqueiras. A partir da insistência de alguns em querer apontar o trabalho que as mulheres desenvolviam como fator determinante do comportamento de certas alunas, é que despertou em mim o interesse em melhor conhecê-las. Com o passar do tempo, crescia o sentimento de respeito e admiração por suas histórias de vida. Fui, em algumas oportunidades, com as alunas e alunos até os locais das mariscagens, esses contatos foram gratificantes, pois permitiram-me conhecer um pouco do universo que fazia parte da vida deles. Em uma tarde quando havia terminado de ministrar as aulas, fui dar uma caminhada na praia e lá me encontrei com Floraci, uma ex-aluna que tem um jeito muito alegre e que costuma sorrir ao falar. Assim que me viu perguntou-me se não queria ir com ela de canoa em águas mais distantes da margem, colocar as gaiolas para pegar o siri; eu de imediato aceitei. Lembro-me que Floraci demonstrou em sua fisionomia espanto e satisfação quando aceitei o convite. E lá fomos nós! Experimentei uma adrenalina excitante: mistura de apreensão à medida que nos afastávamos da margem, e alegria em me ver fazendo parte daquela imensidão de água que se confundia entre as cores azul e verde. Floraci conhecia bem os locais para melhor capturar os siris. Remava e fazia rápidas paradas lançando nas águas as armadilhas que iria, possivelmente, lhe trazer o fruto do seu trabalho. Naquele momento ela era a mestra das águas e eu, uma leiga naquela natureza imensa, apenas contemplava aquele infinito ao mesmo tempo em que me divertia com a conversa animada de Floraci, ensinando-me a arte de lidar com a maré. Muitas foram as ocasiões em que comprei das alunas o chumbinho, o fruto do seu trabalho. Foi gratificante vê-las tão empolgadas quando me ensinaram como cozinhar o marisco, lembrando-me que não esquecesse de fervê-lo, escorrer o caldo e, só depois desse cuidado, ele estaria pronto para o cozimento final e daí a degustação. Esses momentos vividos com as alunas e alunos tiveram uma importância grandiosa, pois favoreceram o crescimento do vínculo de confiança, respeito e amizade que, aos poucos, foram se solidificando. Como resposta ao meu comportamento, tive um resultado positivo, pois consegui um ambiente mais harmônico em sala de aula, o que proporcionou o desenvolvimento de um trabalho 21

satisfatório durante o período em que lecionei em Salinas da Margarida. Percebi, então, que as atitudes interpretadas por mim como agressivas e mal educadas, poderiam ter sido formas encontradas por algumas, para darem respostas às dificuldades em suas vidas, ou eram a maneira que encontravam para reagirem e se protegerem da minha presença que, naquele momento, era o novo, o desconhecido. Depois de dois anos deixei de lecionar em Salinas da Margarida e voltei a trabalhar em Santo Antonio de Jesus. No entanto, o meu interesse e amizade pelas pessoas dessa comunidade não se restringiram apenas ao período em que estive trabalhando lá. Mesmo afastada da cidade, continuei mantendo contatos. Em conversas com amigos e alguns professores dessa Universidade, sobre a história de vida dessas mulheres, fui muito estimulada a levar o tema para ser discutido na Academia. Dessa forma, logo que surgiu a oportunidade para o debate, trouxe para a discussão acadêmica um recorte da história dessas mulheres, no intuito de contribuir com a aquisição do conhecimento histórico das pessoas comuns dessa região: o trabalho, as experiências, e as vivências de sujeitos sociais que, até então, estavam à margem da historiografia tradicional. Para conhecê-las, foi preciso adentrar no seu mundo, perscrutar suas memórias, escutar e registrar os seus depoimentos. Percorri o cotidiano por elas vivenciado, conheci o seu trabalho, suas experiências, suas mudanças, quando saíram da maré por acreditar que eram capazes de realizar coisas diferentes e foram experimentar outras formas de trabalho em outros espaços. Outras continuaram sua trajetória de vida fazendo o que acreditavam, permaneceram nas marés. Observei atenta a vivência nos manguezais, nas areias das praias, nos seus quintais, nas cozinhas, nas salas de visitas, nas matas, nos locais de vendas dos seus produtos. Entendi, através dos seus depoimentos, os mecanismos utilizados para a sobrevivência que resiste a força da norma capitalista, valorização e manutenção da vida e de seus costumes. Compreendi, com isso, suas relações familiares, as formas de socialização desenvolvidas por elas no cotidiano do costeiro, espaço onde tinha uma maior quantidade de chumbinho, nas viagens para a venda do marisco, nas suas festividades e em outras situações do dia-a-dia. Notei a maneira como a prática da mariscagem é passada de geração para geração, os meios viabilizados na superação das dificuldades, seus sonhos e desilusões e as mudanças sócio-geográficas, urbanísticas e ambientais ocorridas na cidade que interferiram na vida dessas pessoas e na mariscagem. 22

Este estudo associa-se à história vista de baixo, que para Jim Sharpe “proporciona também um meio para reintegrar sua história aos grupos sociais que podem ter pensado tê-la perdido, ou que nem tinham conhecimento da existência de sua história”8. Nesse sentido, foi fundamental para a construção da pesquisa trazer as vozes dessas pessoas. Como afirma Paul Thompson, a história oral “pode devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugar fundamental, mediante suas próprias palavras”.9 A exploração de fontes orais, ao torna-se um importante suporte na pesquisa histórica, rompe com a tradicional distância entre o pesquisador e as fontes. Além disso, faz com que a subjetividade do pesquisador venha à tona no processo da pesquisa, no contato com os entrevistados em análise. A respeito da pesquisa feita através da oralidade, Paul Thompson afirma que a história oral:

Torna possível um julgamento muito mais imparcial: as testemunhas podem, agora, ser convocadas também de entre as classes subalternas, os desprivilegiados e os derrotados. Isso propicia uma reconstrução mais realista e mais imparcial do passado, uma contestação ao relato tido como verdadeiro. Ao fazê-lo, a história oral tem um compromisso radical em favor da mensagem social da história como um todo.10

A oralidade favorece o esclarecimento da dimensão do viver, enquanto, indiscriminadamente traduz o real segundo a consciência individual, envolta por olhares coletivos dos acontecimentos, tornando possível uma maior imparcialidade dos historiadores ao relatar os momentos que cursam do tempo aos homens que interagem entre si na edificação da história. Essa imparcialidade, no entanto, não significa fazer do historiador incapaz à percepção do inefável, pois o mesmo se envolve subjetivamente na reflexão sobre o significado das falas, bem como dos gestos e silêncios dos sujeitos entrevistados. O historiador, ao fazer estas leituras, é imerso em sentimentos que afloram do momento e do contexto da entrevista e daquele em que vive, quando uma gama de experiências próprias vem à tona ao analisar o seu material de estudo.

8 Jim Sharpe, A história vista de baixo. In; BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p. 59. 9 Paul Thompson. A voz do passado: História Oral. Paz e Terra. Rio de Janeiro: 1992, p. 22. 10 Idem, op.cit. , p. 26. 23

Na riqueza das formas de expressão experimentada pela humanidade, as palavras ganham um significado maior e mais amplo quando são pronunciadas através dos sons, produzidos por meio das cordas vocais e acompanhadas de gestos. A esse respeito Paul Zumthor acrescenta:

A palavra pronunciada não existe (como o faz a palavra escrita) num contexto puramente verbal: ela participa necessariamente de um processo mais amplo, operando sobre uma situação existencial que altera de algum modo e cuja totalidade engaja os corpos dos participantes.11

A palavra, quando pronunciada, expressa o quanto é rica a comunicação humana, pois é carregada de significados apresentados em signos através de entonações vocálicas, expressões faciais, gesticulações, enfim, todas as formas que tem o ser humano de se expressar através do corpo para fazer-se compreender ao usar a peculiaridade de sua comunicação. Desse modo, as entrevistas realizadas durante a pesquisa me levaram a observar com mais atenção à forma como os entrevistados se comportavam mediante determinados assuntos, ou por mim abordados ou por eles lembrados, pude aguçar o sentido da percepção e sentir na sutileza de seus gestos e de suas palavras a riqueza de informações que essas manifestações transmitiam. Na pesquisa, utilizei documentos escritos como as atas produzidas pela Câmara Municipal de Salinas da Margarida e busquei perceber nesses documentos o discurso do poder constituído quando essa cidade se emancipava e era objeto de reformas urbanas. Os documentos da Associação das Mariscadeiras proporcionaram-me valiosas informações como essas mulheres organizadas buscaram uma maior afirmação e representatividade como trabalhadoras. Através da imprensa escrita, jornais pesquisados na Biblioteca Central em Salvador tentei contextualizar Salinas no novo processo dos empreendimentos modernistas do qual ela estava sendo palco. O poema de autoria do Senhor Ademir Cerqueira da Cruz, morador de Salinas, provocou-me mais sensibilidade para entender a convivência amorosa de algumas dessas mulheres. A literatura escrita sobre Salinas da Margarida forneceu- me informações sobre o contexto histórico dessa cidade. Ao analisar com mais

11 Paul Zumthor. A letra e a voz: A “literatura” medieval. São Paulo: Cia das Letras, 1993, p. 244. 24

atenção às fotografias, pude perceber e entender melhor o cotidiano das marisqueiras busquei com os croquis e os mapas expor com mais detalhes os espaços de vivências das marisqueiras. Os historiadores têm buscado novos caminhos, novos olhares para a produção do conhecimento historiográfico, o que rompe com aquelas velhas formas que concediam ao documento escrito respeito maior na aquisição do conhecimento. Isso, no entanto, não diminui a importância da fonte escrita no debate histórico contemporâneo, pois uma fonte não suplanta uma outra fonte. Pelo contrário, múltiplas fontes tendem a oferecer mais informações à produção historiográfica. Inseridas dentro dessas variadas formas de busca do conhecimento, as imagens ganham espaço, propiciando ao homem maior riqueza de informações sobre o mundo que o cerca. Willian Meirelles a respeito das imagens produzidas pelo homem afirma:

As imagens que o homem elaborou através dos tempos estão carregadas de propostas, questionamentos, tensões, acomodações, desejos, enfim expressões presentes nas relações sociais que modelam e ao mesmo tempo são modeladas pelas formas de pensar e agir.”12

São variadas as formas que os homens têm de compreenderem as imagens produzidas pelo próprio homem ao longo do tempo, no processo de interpretação dessas fontes, eles são embalados por valores, experiências, idéias, saberes de uma sociedade da qual fazem parte e se transportam com sensibilidade para períodos passados distantes dos vivenciados por sua geração, na busca incessante da compreensão daquela sociedade que as imagens representam. Longe de congelar o real, as fotografias ao serem analisadas dentro do contexto em que estão inseridas, elas contribuem com sua riqueza de informações que vão muito além de simples imagens estáticas. Elas apresentam momentos singulares de interação homem e natureza, homem e homem, homem e urbanização, enfim tudo que compõe o visível. Por outro lado, é uma pausa no constante transcorrer do tempo, pois a fotografia sustenta vivificando a memória das presentes e futuras gerações.

12 Willian Reis Meirelles. História das imagens: uma abordagem, múltiplas facetas. Unitermos: história e imagens; fotografia; cinema, São Paulo: n. 3, 1995, p. 95. 25

Os contatos com estes documentos ajudaram-me no entendimento do viver mariscando das mulheres de Salinas da Margarida. A medida do possível entrecruzei essas fontes, na intenção de enriquecer o conhecimento acerca do mundo que as circundam. Esta pesquisa sobre as marisqueiras de Salinas da Margarida insere-se também no campo de estudo da História social, que possibilita a utilização de uma variedade de fontes e caminhos de pesquisas, enquanto exige que os pesquisadores tenham uma maior atenção e sensibilidade nas suas análises. E como diz Déa Fenelon, permite “extrair o não dito, as entrelinhas e aquilo que potencialmente permite olhares e leituras diversas”13. Assim, se descortinará um leque maior de informações para uma ampla compreensão dos agentes históricos no contexto socioeconômico e cultural, imbuídos na sua diversidade são arquitetos dos fatos históricos. Na perspectiva de nova abordagem da História social, os estudos a respeito das mulheres ganham espaço em decorrência dos movimentos feministas que explodiram a partir de 196014, cujo objetivo inicial buscava “apreender o passado legítimo das mulheres, introduzindo-as, definitivamente, na história”.15 O estudo da mulher está no centro da historiografia, ele é de suma importância para uma melhor compreensão da participação delas na construção do desenvolvimento de toda e qualquer sociedade. Nesse sentido, Rachel Soihet apresenta seu ponto de vista:

A grande reviravolta da história nas últimas décadas, debruçando-se sobre temáticas e grupos sociais até então excluídos do seu interesse, contribui para o desenvolvimento de estudos sobre as mulheres.16

A valorização de suas histórias tiram-nas do esquecimento e da exclusão que a historiografia tradicional as colocou. Márcia Maria Leite assevera que “mulheres não consideradas sujeitos históricos e condenadas a formar uma coletividade

13 Déa Ribeiro Fenelon. Cultura e história social: história e pesquisa. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP.São Paulo, Educ, l981, p. 77. 14 A esse respeito ver, Rachel Soihet. História das Mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.) Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus. 1997, p. 276. 15 Mary Del Priore. História das mulheres: as vozes do silêncio. In: FREITAS, Marcos Cezar de (org.) Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998. p. 217. 16 Rachel Soihet, História das Mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.) Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 275. 26

anônima vão sendo, aos poucos, recuperadas para além de um discurso e histórias oficiais.”17 A história vista de baixo, ao tratar de temas das camadas populares, possibilita o conhecimento de mulheres que em prol de sua valorização humana, e na luta por sua sobrevivência ou de seus familiares, souberam romper laços convencionais de preconceitos e tabus de uma sociedade machista que muito se preocupou em retratar os “grandes feitos dos grandes homens”.18 Em contraposição à historiografia tradicional que revela os acontecimentos que rodeiam principalmente o universo das elites, dos homens “monarcas, primeiros- ministros ou generais”19, nos últimos tempos, em especial os períodos que marcam as décadas de 70 e 80, “período em que a reação contra o paradigma tradicional tornou-se mundial, envolvendo historiadores do Japão, da Índia, da América Latina e de vários lugares”20, vem surgindo estudos que muito tem se preocupado em trazer à tona temas que mostram o dia-a-dia das classes populares. Nesse contexto, Leite afirma que “as mulheres vêm sendo pensadas nas complexas redes de sociabilidades e nas experiências dos espaços público e privado.”21. Ganha voz suas experiências cotidianas, os mecanismos acionados por essas pessoas na luta pelo sustento diário de suas vidas, de seus costumes, suas tradições, as formas viabilizadas para serem respeitadas e valorizadas no meio em que estão inseridas. Leite continua suas explicações sobre a contribuição do estudo de outras histórias:

Além da contribuição propriamente científica, o estudo de outras histórias embasa projetos políticos que visam ao resgate de variados sujeitos e atores, não mais abstratos e universais, e, consequentemente, das suas experiências e lutas, proporcionando assim, a construção de uma sociedade mais plural em identidades e cidadanias.22

Cada vez mais os historiadores estão se aproximando de outras ciências sociais como a Sociologia e a Antropologia, “e, nesse bojo, as mulheres são alçadas à condição de objeto e sujeito da história,”23 obtendo analises e valorização de suas experiências. Para Joan Scott “precisamos pensar sobre este campo como um

17 Márcia Maria da Silva Barreiros Leite. Entre a tinta e o papel: memórias de leituras e escritas femininas na Bahia (1870-1920). Salvador. Quarteto. 2005, p. 25. 18 Peter Burke (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p. 12. 19 Jim Sharpe, op.cit. , p. 60. 20 Peter Burke, op.cit. , pp. 16 -17. 21 Márcia Maria da Silva Barreiros Leite, op.cit. , p. 27. 22 Idem, op.cit. , p. 23. 23 Rachel Soihet, op.cit. , p. 275. 27

estudo dinâmico na política da produção de conhecimento”24. Logo, é preciso observar, mais atento, a participação dessas pessoas nas mudanças sociais, e como chama a atenção Giovanni Levi observar “o papel ativo do indivíduo que antes parecia simplesmente passivo ou indiferente”25, pois a história não existiria se não existisse o ser humano, já que a concepção histórica é fruto da manifestação do racional em interação com o semelhante e a natureza que o circunda. Nessa perspectiva, esse estudo harmoniza-se com as considerações feitas por Erivaldo Fagundes Neves sobre a história regional e local, a qual busca analisar as práticas realizadas por indivíduos em um determinado espaço territorial em contato com o próprio grupo de pertencimento e com outros em diferentes espaços.26 Neves acrescenta em seu estudo outras interpretações elaboradas sobre o sentido de regionalizar , a exemplo ele cita as análises de Michel Foucault e Durval Muniz. Para ambos as regiões, antes de qualquer coisa, teriam um significado de poder. O espaço seria dividido para que houvesse uma maior vigilância e daí o controle e comando. O poder regionalizado poderia se manifestar nas atividades políticas, econômicas, culturais entre os grupos de indivíduos localizados nos espaços divididos de um território. Para Durval Muniz, no processo de regionalizar, variados discursos tentaram homogeneizar “os costumes, as crenças, as relações sociais, as práticas sociais de cada região”27 na tentativa de torná-las modelo para toda a nação. Nesse propósito, enalteciam determinadas manifestações sociais que emanava de locais que era o centro do poder, em contrapartida negligenciavam as particularidades oriundas de outros espaços. No propósito de ampliar o conhecimento da dinâmica regional de Salinas da Margarida com a inserção das marisqueiras, busquei também como inspiradoras as reflexões de Janaína Amado:

A historiografia regional tem ainda a capacidade de apresentar o concreto e o cotidiano, o ser humano historicamente determinado de fazer a ponte entre o individual e o social. Por isso, quando emerge das regiões economicamente mais pobres, muitas vezes ela

24 Joan Scott. História das Mulheres. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. p. 66. 25 Giovanni Levi. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p. 160. 26 A esse respeito ver Erivaldo Fagundes Neves. História Regional e Local: fragmentação e recomposição da história na crise da modernidade. Salvador: Arcádia. 2002, pp . 45-59. 27 Durval Muniz de Albuquerque Jr. A Invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 1999, pp. 48-49. 28

consegue também retratar a História dos marginalizados, identificando-se com a chamada “História popular” ou “História dos vencidos”.28

As marisqueiras inseridas nesta abordagem da história regional, com suas histórias de vida que retratam o concreto do cotidiano e a especificidade da singularidade de suas práticas de vida, contribuem para a totalidade da história local. O estudo dessas mulheres oferece possibilidades novas e enriquecedoras de análise dos sujeitos excluídos pela historiografia tradicional, porém são sujeitos importantes que constroem a história, edificando, assim, a produção do conhecimento histórico regional. Para o estudo da trajetória dessas mulheres junto com suas praticas de trabalho, faz-se necessário apontar que o trabalho feminino foi por muito tempo pouco valorizado no sistema econômico brasileiro. Isso aconteceu mediante a discriminação que havia por parte da sociedade em requisitar a mão-de-obra feminina. Muitas mulheres ficavam fora do processo produtivo. Entretanto, o fato de a mulher trabalhar fora de casa, significou em muitos momentos a ruptura de padrões machistas estabelecidos na sociedade. Ruíram aqueles velhos estereótipos da mulher submissa, esposa, mãe, dependente e frágil, considerada por muitos, incapazes de desenvolver atividades que fugissem às prendas do lar. Mary Del Priore apresenta um conceito de uma sociedade machista:

A mulher deve estar sujeita a seu marido, reverenciar-lhe, querer-lhe, obsequiar-lhe; não deve fazer coisa alguma sem seu conselho; seu principal cuidado deve ser educar e instruir a seus filhos cristamente, cuidar com diligencia das coisas de casa, não sair dela sem necessidade e permissão de seu marido.29

Esta visão apresenta um exemplo de conceitos de uma sociedade em que vivenciavam idéias machistas de exclusão das mulheres dos direitos igualitários, permitindo apenas o cumprimento de restritos deveres à esfera do lar. Ao contrário,

28 Janaína Amado. História e região: reconhecendo e construindo espaços. In: SILVA, Marcos A. da (org.) República em migalhas: História regional e loca . São Paulo: Marco Zero, 1990, p. 13. 29 Mary Del Priore. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Colônia, Rio de Janeiro, José Olympio, Brasília, EDUNB,1. ed. 1993,p.130. apud. PRIORE, Mary Del. História das mulheres: as vozes do silêncio. In: FREITAS, Marcos Cezar de (org.) Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998, p. 223. 29

a mulher é um ser humano dotado de atributos tanto quanto o homem, em toda a sua riqueza de possibilidades e capacidades praticando qualquer atividade. Nesse sentido, na conjuntura brasileira em que cresce largamente a participação feminina no mercado de trabalho, as marisqueiras de Salinas da Margarida são retratos desta realidade, apesar da atividade de mariscar vir de tempos longínquos, bem como a participação de muitas marisqueiras de Salinas na contribuição do sustento do lar. São mulheres envolvidas em um cotidiano de trabalho regido pelo movimento das águas do mar. É no vai-e-vem das marés, quando as águas apresentam um menor volume nas areias das praias que as marisqueiras se dirigem para a sua oficina de trabalho e ali permanecem por horas a fio, independente de chuva ou sol, todos os dias, cavando e catando as pequenas conchas onde estão guardados os chumbinhos. A questão ambiental tem sido tema de intensa discussão no rol das ciências naturais e sociais. Muitas pesquisas nas últimas décadas vêm realizando a discussão que mostra como ocorre essa simbiose entre a natureza e o homem.30 Isto sinaliza uma maior preocupação em investigar como o ser humano vive o seu papel na natureza, e como a natureza em sua sabedoria devolve ao homem os benefícios ou malefícios que ele provoca no meio natural. Assim, as marisqueiras de Salinas da Margarida levam diariamente o meio ambiente não só para dentro de suas casas, mas também para dentro de suas vidas. O trabalho que elas fazem proporciona experiências e saberes múltiplos. As considerações elaboradas por Edna Castro explica o que ocorre no interior dessas populações tradicionais:

Uma integração entre a vida econômica e social do grupo, onde a produção faz parte da cadeia de sociabilidade e a ela é indissociavelmente ligada, facilitando encontros interfamiliares, realização de festas, perpetuação de rituais e outras modalidades de trocas não econômicas.31

Existe uma preocupação por parte de alguns estudiosos do meio ambiente com as populações que fortemente dependem do ecossistema. É importante que essas populações sejam pensadas e chamadas cada vez mais a participarem de

30 A esse respeito ver Edna Castro. Território, Biodiversidade e Saberes de Populações Tradicionais. In; Antônio Carlos Diegues (Org.). Etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. São Paulo: Annablume, 2000, p. 165. 31 Idem, op.cit. , p. 167. 30

estudos que forneçam saberes de sua prática social cotidiana, que está intensamente associada com a natureza e que vai além do trabalho que elas desenvolvem. Como esclarece Arturo Gómez-Pompa & Andrea Kaus nos estudos sobre a conservação ambiental “dentro desse grupo de indivíduos existe um conjunto de conhecimentos sobre aquele terreno, um conhecimento de êxitos e fracassos que deve ser levado em conta nas nossas avaliações ambientais”.32 Logo, o entendimento do viver dessas pessoas, a analise das teias de relacionamentos elaboradas no cotidiano, poderá contribuir para o conhecimento de como elas interagem com o meio ambiente e poderá fornecer informações valiosas para a preservação do espaço natural. É imprescindível lembrar que o homem também é natureza e a continuação da própria existência dessas populações, bem como de toda a humanidade depende diretamente dos atos positivos e negativos que ele pratica na natureza no âmbito local, regional e não esquecer que tais práticas repercutirão em toda a esfera global. O trabalho da mariscagem em Salinas não se limita apenas aquele que é desenvolvido nas areias. No momento em que se eleva o nível da maré, as marisqueiras se dirigem para diferentes espaços onde são desenvolvidas outras etapas do seu trabalho. Esses espaços, palco de esperanças, sustentabilidade, interesses, conflitos e negociações transformam-se e transformam a vida dessas mulheres ao longo do tempo. Nos estudos realizados por Milton Santos sobre o espaço ele lembra que: “o espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá,”33 Nesse sentido, as marisqueiras percorrem variados caminhos que as levam a lugares diferentes, dentre eles os das matas onde buscam madeira seca para fazer o fogo e escaldar o chumbinho, para assim poderem tirá-los das conchas, alimentarem-se, empacotá-los e vendê-los em outros lugares. Embora a mariscagem do chumbinho seja prioritariamente conduzida pela mulher em Salinas, durante a produção da pesquisa foi observado que o homem salinense também buscou sustento através da cata desse molusco. Vilma

32 Arturo Gómez-Pompa & Andrea Kaus. Domesticando o Mito da Natureza Selvagem. In; Antônio Carlos Diegues (Org.). Etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. São Paulo: Annablume, 2000, p. 143. 33 Milton Santos. A Natureza do Espaço. São Paulo. Edusp. 2006, p. 63. 31

Nascimento esclarece: “As culturas não são imóveis e estão sempre em processo relacionais, até porque para serem revitalizadas pressupõem tensões, confrontos que, não raro, resultam em transformações.”34 A mudança de comportamento dos homens de Salinas que cata o chumbinho, revela que eles souberam recriar conceitos, pois é notório o conceito local que a cata do chumbinho é uma atividade feminina. Como já afirmou Raymond Williams, “numa cultura particular, certos significados e práticas são escolhidos para ênfase e certos outros significados e práticas são postos de lado, ou negligenciados.”35 A presença desses homens nesse trabalho demonstra que muitos priorizaram dar manutenção a vida, garantir o pão de cada dia A dissertação foi estruturada em três capítulos. No primeiro capítulo intitulado “O VAI-E-VEM DAS MARÉS”, foram analisados os costumes, os mecanismos de socialização, como a prática da mariscagem é passada de geração para geração, as formas utilizadas na superação das dificuldades, as lutas das marisqueiras em acionarem formas para a manutenção da vida e a de seus familiares, a preocupação com a legalidade da profissão, as relações familiares e com as colegas de trabalho, o cuidado com os seus corpos e as festividades em que participavam. Foi dado destaque também a alguns dos aspectos do cotidiano dessas pessoas, fora da maré. Quando as águas avançam em direção as areias e ao manguezal, elas saem desses locais para desenvolverem outras atividades que continuavam imbricadas com os mariscos. Aqui foram apresentados alguns aspectos que sinalizam a devastação do meio ambiente salinense que foi pouco a pouco ocorrendo para dar lugar à construção da cidade Salinas da Margarida. No segundo capítulo, que traz como título “MARÉS DA MODERNIZAÇÃO”, foi ressaltado muitas das experiências vividas por marisqueiras e ganhadeiras em outros espaços na busca do sustento. São apontadas as incertezas quanto ao retorno financeiro que a mariscagem oferecia, dando destaque ao que sentiam quando voltavam para casa sem dinheiro, alimento e outros mantimentos necessários para a vida diária. Nesse capítulo, foram identificadas, através de suas falas e de documentos escritos, as mudanças urbanísticas e ambientais geradas na cidade que atendiam aos interesses políticos e empresariais e a novos ideais de

34 Vilma Maria do Nascimento. Sagrado/Profano no trato do corpo e da saúde na “Metrópole Negra”: Salvador nos anos 1950/1970. Tese de Doutorado. PUC, São Paulo, 2007, p. 14. 35 Raymond Williams, Marxismo e Literatura. Zahar. Rio de Janeiro, 1979 , p. 119. 32

modernização. Foi observado até que ponto essas mudanças refletiam no trabalho e em outros aspectos da vida dessas pessoas. No terceiro capítulo, que tem como título “RELAÇÕES NOS ESPAÇOS DA MARISCAGEM”, salientou-se a forma como marisqueiras reagiram diante da imposição dos novos empreendimentos durante as apropriações dos espaços naturais de Salinas. Foram apresentados outros caminhos que essas pessoas buscaram como estratégia de sobrevivência, como a busca de emprego, além dos manguezais, espaços tão bem conhecidos por elas. Foram feitas reflexões sobre algumas modificações ocorridas na vida das marisqueiras, geradas com a chegada de novos serviços oferecidos à população, a exemplo do transporte coletivo terrestre. As mudanças vindas com esse novo meio de transporte definiram de forma marcante as viagens, as perspectivas para a vendagem e a própria segurança das marisqueiras. Foram apresentadas formas como elas solidificavam os laços de amizades e companheirismo através dos gestos de solidariedades criados e recriados em múltiplos espaços de suas vivências. Por fim, foi analisado como essas pessoas superaram dificuldades e continuaram a cultivar os sonhos, alguns desfeitos durante os envolvimentos que tiveram no decorrer da vida. Procurou-se explicar que mesmo com toda a adversidade vivida, elas continuavam a cultivar suas esperanças na crença maior que através da maré teriam a conquista do alento diário.

33

CAPÍTULO I

O VAI-E-VEM DAS MARÉS

[...] foi desde o tempo de minha mãe e a gente, os filhos, seguindo o mesmo costume, e tamos até hoje. Quase a maioria da população daqui, todo mundo vive de maré. Dilza Spínola de Souza

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PASSAVA FOME, MAS A MINHA ALEGRIA ME ALIMENTAVA.

O crescimento da conscientização do valor próprio e a necessidade do trabalho impulsionaram as mulheres a irem à luta por sua sobrevivência. Em muitos momentos, isso também significava a sobrevivência do seu lar. Como expressa Maria Odila, ao abordar a sociedade paulista no século XIX: “Mulheres pobres, sós, chefes de família, viviam precariamente de trabalho temporário, antes como autônomas do que como assalariadas”.36 Marginalizada nesse processo produtivo brasileiro, a mulher sofreu por um longo período a ausência de condições favoráveis ao seu desempenho em atividades que lhe rendessem um salário digno, de reconhecimento social e de igualdade no mercado de trabalho. Assim, continua Maria Odila, “multiplicavam-se mulheres pobres que o sistema social era incapaz de absorver e que apenas tangencialmente se inseriam na sociedade escravista”. 37 No entanto, no que diz respeito às mulheres das classes dominantes daquele período, a historiadora aponta alguns exemplos que, “longe de ser uma história de clausura e passividade” 38, muitas mulheres exerceram papéis fundamentais na organização de seus lares, de suas propriedades, bem como na política local. No decorrer dos séculos, a participação da mulher no processo produtivo é cada vez mais marcante. São elas que respondem sozinhas em muitas localidades pelo sustento de seus lares. Os estudos realizados por Tânia Cunha fornecem os seguintes dados:

No Brasil, quase 25% dos lares são, atualmente, chefiados por mulheres. As estatísticas confirmam que justamente nas camadas mais pobres encontra-se o maior contingente de mulheres que respondem sozinhas pelo provimento da família. Existem evidências que esse fenômeno tende a se ampliar na medida em que nos aproximamos da zona rural e da periferia das áreas metropolitanas.39

36 Maria Odila Leite da Silva Dias. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 15. 37 Idem, op.cit. , p. 111. 38 Idem, op.cit. , p. 104. 39 Tânia Rocha Andrade Cunha . A mulher chefe de família e o fenômeno da violência. In: Politeia: história e sociedade/ revista do departamento de história da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia- V. 1 n 1 (2001). Vitória da Conquista - Bahia: edições UESB, 2001, pp. 270-271. 35

Em informações fornecidas pelo IBGE no ano de 1987 era de 21,1% o número de famílias sustentadas por mulheres. Em 1996 esse percentual aumentou para 25,23 %.40 Estes dados apontam o aumento da participação feminina no mercado de trabalho e sua aptidão como sustentáculo de lares. Fatos que determinam esta realidade social, segundo as análises de Cunha, são as separações, a viuvez, as mães solteiras, os parceiros que não conseguem sozinhos sustentar os lares.

Na conjuntura social brasileira em que cresce largamente a participação feminina no mercado de trabalho, as marisqueiras de Salinas da Margarida constituem-se um segmento desta realidade. Praticantes de uma atividade que vem de tempos longínquos, existentes em inúmeras partes do litoral brasileiro, são mulheres envolvidas em um cotidiano de trabalho regido pelo movimento das águas do mar. Trata-se de uma marcação cronológica do briquitar da vida que, assemelha- se às considerações elaboradas por Thompson quanto à temporalidade no porto marítimo: “a padronização do tempo social no porto marítimo observa os ritmos do mar; e isso parece natural e compreensível para os pescadores ou navegantes: a compulsão é própria da natureza.” 41 É ela quem delega o tempo que as tarefas devem ser realizadas. As atividades da vida diária se alongam e se estreitam de acordo com o vai-e-vem das marés. Essa noção de tempo é vivenciada pelas marisqueiras em Salinas. As considerações elaboradas por Vilma Nascimento trazem mostra de como populares souberam construir estratégias para continuarem a viver praticando formas diferentes de trabalho. Ela afirma:

Para além do universo do trabalho já definido pelo mercado, a cidade não deixou de criar outros espaços regidos por lógicas imbricadas a culturas populares, que não apenas resistem a determinadas imposições de modernização, como ampliam suas redes de relações sociais, promotoras de modos de trabalho e estratégias de sobrevivência decorrentes de tradições familiares.42

40 IBGE – Pesquisa de Orçamentos Familiares. 41 Edward P. Thompson. Costumes em Comum; estudos sobre a cultura popular tradicional. Companhia das Letras, São Paulo: 1998, p. 271. 42 Vilma Maria do Nascimento. Sagrado/Profano no trato do corpo e da saúde na “Metrópole Negra”: Salvador nos anos 1950/1970. Tese de Doutorado. PUC, São Paulo: 2007, p. 36. 36

A todo instante, as pessoas viabilizam formas diferentes de trabalhos que extrapolam aquelas marcadas pelo mercado. Empurradas daqui e dali, mulheres e homens buscam corresponder ao chamado que a vida lhes atribui. Muitas vezes, esses formatos de sobrevivências derivam de práticas tradicionalmente construídas no âmbito familiar.

No cotidiano de Salinas, a mariscagem de catar chumbinho, que é considerada uma pesca artesanal, tem como características ser desenvolvida com a participação de membros familiares, sendo saliente a importância desse meio de trabalho para a própria família. As crianças eram educadas durante o convívio com suas mães, nas jornadas das mariscagens, pois já afirmou Agnes Heller, “O homem nasce já inserido em sua cotidianidade.”43 O tempo da convivência entre os filhos e as mães se repetia todos os dias por longas horas. As crianças enquanto trabalhavam e brincavam, presenciavam também as conversas dos adultos.

Sobre peculiaridades da pesca artesanal, Claúdia Cristina Souza faz algumas considerações:

A pesca artesanal, talvez, por estar historicamente ligada a agricultura de subsistência, guarda certas características semelhantes àquela atividade. Uma delas é certamente o fato de que a pesca artesanal ainda se desenvolve como um trabalho familiar, do qual participam mulheres e crianças. Essa participação geralmente se dá na produção e manutenção de apetrechos da pesca, ou no processamento do pescado e sua comercialização. Mas não exclui a participação de mulheres, em atividades diretamente relacionadas à captura do pescado. 44

A contribuição infantil no trabalho além de representar uma quantidade maior de mariscos catados e ajuda no transporte, assegurava a difusão da tradição. Na rotina das mariscagens, as crianças observavam o trabalho que suas mães faziam, absorviam esses saberes e realizavam a mariscagem. Não esquecendo o que lembra Michelle Perrot “as mulheres do povo têm outros saberes e poderes, principalmente médicos, religiosos e mesmo culturais.”45 Era também nesses

43 Agnes Heller. O Cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 1992, p. 18. 44 Claúdia Cristina Souza. Mulheres da Maré: Um estudo sobre as marisqueiras de – Bahia. Monografia de Graduação. Salvador: UFBA / Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de Antropologia Etnologia. 1991, p. 9-14. 45 Michelle Perrot. Os Excuídos: operários, mulheres, prisioneiros. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 181. 37

espaços que suas mães preparavam-nas para a vida. Imbuídas de conceitos, transmitia-os ensinando aos seus filhos o caminho que deveriam andar.

O desempenho dessas mães pode ser comparado as análises elaboradas por Perrot, a respeito do comportamento das mães francesas no século XIX, no que diz respeito à criação dos seus filhos. Para Perrot “A dona-de-casa está investida de todos os tipos de função. Primeiramente, dar à luz e criar filhos que leva consigo e, a partir do momento em que sabem andar, acompanham-na por toda parte.”46 Em Salinas, adultos que mariscavam disseram que quando crianças não o faziam obrigadas, colocavam-se a disposição para ajudar e lançavam-se em direção da maré com risos e brincadeiras. Lá, ao contrário dos adultos, não sentiam tanto o peso da responsabilidade de mariscar e acabavam divertindo-se com a criatividade própria da infância.

A imagem seguinte sugere reflexões acerca de tais questões:

FIGURA 3: Crianças mariscando. (Fotografia de pesquisa, 2003)

A fotografia captou um momento divertido em que elas faziam a mariscagem. Nota-se que estavam descalças, com os pés em contato direto com o chão úmido, e sem nenhuma proteção em suas cabeças, expostas ao sol e ao vento. A foto foi

46 Idem, op. cit. , p. 214. 38

tirada a pedido das próprias crianças, que apesar de terem demonstrado com risos a alegria que sentiam em serem fotografadas, não exibiram seus rostos, isso, talvez por timidez.

É possível perceber os buracos que foram feitos com as mãos das crianças na areia, para recolherem o chumbinho. Esta água que brotava da areia era usada para uma pré-lavagem dos mariscos, o que diminuía o excesso de lama e areia que estavam nas conchas. Este cuidado aliviava o peso no momento em que elas os transportavam. Como surge indicado na imagem, é importante ressaltar que grande parcela das marisqueiras identificavam-se como negra. Quanto a essa particularidade, Rose, ex-marisqueira com a idade de 34 anos, quando foi entrevistada, falou sobre o seu trabalho. Ela trouxe em suas palavras, elementos diante dos quais é possível observar o quanto se identificava com a atividade que fazia desde criança e como se orgulhava dele. Surgiram em sua fala, o significado do ser marisqueira e ser negra.

Nunca, nunca me senti discriminada por mariscar. Nem nunca fui contra, e nem senti revolta de ninguém dizer nada. Sempre nós fomos criadas valorizando aquilo que nos favorecia. Por ser chamada de marisqueira? Somos mesmo! Suas negrinhas marisqueiras! Somos mesmo! E temos prazer de viver mariscando. 47

Rose e suas irmãs não admitiam discriminações por serem marisqueiras e negras. Ouvir frases que tinham como intuito denegri-las, não abatia a certeza do que eram e do trabalho que desenvolviam. Logo, Eva Alterman Blay traz análises da mulher no mercado de trabalho paulista e esclarece que “A forma como a mulher assume o trabalho reflete, pois a maneira como ela se autodefine socialmente.”48 Para Blay, a mulher passa a se considerar uma profissional quando o trabalho pode vir a ter um sentido inseparável na sua vida. É possível observar que, a criação que os pais de Rose deram a ela e a suas irmãs, era imbuída de valores que sublimavam o trabalho que desenvolviam. Tanto na fala de Rose, como de outras marisqueiras, foi acentuada a maneira pela qual elas se identificavam como mulheres negras, bem como profissionais da maré.

47 Rosangela Áurea Caetano (Rose). Entrevistada em 15 fev. 2003. 48 Eva Alterman Blay. Trabalho Domesticado: A Mulher na Indústria Paulista. São Paulo: Ática, 1978, p. 269. 39

FIGURA 4: Mulher mariscando. (Fotografia de pesquisa, 2003)

Na figura 4, nota-se uma profissional mo exercício do seu trabalho: o cavador na mão esquerda, que revolve a areia na procura do marisco e a sacola de plástico que serve para armazenar e transportá-lo. Em destaque está a posição que é realizada a mariscagem: debruçada sobre a areia a marisqueira cava em busca dos chumbinhos. Na cabeça, está um boné para se proteger da ação do vento, do sol e para aquelas que o transportavam na cabeça, o boné ajudava a equilibrar melhor a vasilha com os chumbinhos no momento em que ele era transportado.

Uma outra particularidade na coleta do chumbinho é a necessidade do uso de qualquer instrumento que sirva para cavar as areias da praia em uma rasa profundidade, como o cavador presente na mão da marisqueira. A simplicidade dos instrumentos necessários à pescaria é mais uma característica geralmente presente na pesca artesanal.

Por outro lado, deve-se lembrar que essa atividade é marcada por aspectos próprios e que uma de suas características é ser desenvolvida de maneira difícil e estafante. O depoimento abaixo de Cleide, marisqueira indica essa peculiaridade:

É cansativo, é difícil pra caramba! Cavar de um em um ali no sol quente, pegar o peso... Pra você pegar um quilo de marisco, você 40

passa horas ali mariscando, raspando aquela areia todinha. Lava o marisco, coloca na vasilha e leva na cabeça o peso. À distância de casa é sempre muito, muito quilômetro, muito mesmo! E você vai lá no sol, na areia quente [...] No inverno não se fala... A chuva é chuva demais, aqui chove demais. Aí, tem que ir para a maré debaixo de chuva, trovoada... 49

Cleide tinha 22 anos de idade quando concedeu a entrevista. É filha e neta de marisqueiras. Começou a mariscar com a idade de 12 anos. Teve duas filhas, mas não morava com os pais das crianças – as filhas eram de pais diferentes – Quando começou a mariscar era apenas para ajudar na renda familiar. Sustentava sozinha a família. Trabalhou temporariamente em uma das pousadas de Salinas. Segundo ela, esse trabalho não lhe oferecia nenhum vínculo empregatício e o salário que recebia era pouco. Assim, continuava mariscando. Neste depoimento, nota-se dificuldades que perpassam os aspectos físicos e abrangem os aspectos naturais, como o mal tempo vivenciados. Elas o faziam de cócoras ou debruçadas sobre a areia, cavavam e catavam as pequenas conchas com grande maestria.

A quantidade do produto pescado sempre dependia do peso que se agüentava transportar. A denominação que é dada ao marisco (chumbinho), parece fazer sentido, pois eles são pequenos, não tão pequenos quanto à esfera do chumbo industrializado para arma de fogo, mas consideravelmente pequenos e pesados. Antes de serem degustados, os chumbinhos eram retirados das conchas e depois passavam por um processo duplo de fervura; a primeira vez é para poder tirá-los das conchas, e a segunda, faz-se necessária para que seja retirada uma substância, um caldo da cor de chumbo, que pode provocar mal estar nas pessoas. Quanto as conchas do chumbinho, chamadas de cascas, eram lançadas na frente, no lado ou no fundo das casas das marisqueiras que, acumuladas formavam montes, e outras revestiam o solo como se fosse um tapete branco, onde naturalmente as pessoas caminhavam sobre elas.

Cleide prosseguiu seu depoimento e destacou a dificuldade em realizar a mariscagem. Apesar disso, toda a falta de tranquilidade é relativamente deixada de lado quando, diante das dificuldades que passam, agradecem a Deus por dar-lhes a maré e terem através dela o sustento. É o que Cleide expõe:

49 Cleide França Silva. Entrevistada em 1 mai. 2002. 41

É muito difícil mesmo, é péssimo mariscar. Mas... É bom! Eu agradeço muito a Deus de ter a maré, como muitas pessoas, porque é um meio de sustento. Porque se não tivesse a maré... Eu já chorei várias vezes porque não tinha o que dar às minhas filhas, e naquele dia eu amanhecia aí, ia mariscar. Voltava e de noite já tinha o leite, a farinha de mingau, coisas que se fosse em Salvador, ou em outro lugar não tinha, né? Porque aqui, apesar de ser pequena, pouco conhecida, tem o recurso que é a maré. 50

O depoimento de Cleide é caracterizado por sentimentos ambíguos, que marcam a sua relação com o trabalho da mariscagem. O difícil, o péssimo e o bom se mesclam durante todo o período em que ela se refere ao seu trabalho. Ela apontou Salinas como uma cidade pequena, que apesar de não oferecer muitas outras possibilidades de trabalho, tem a maré que permite a conquista do pão diário. Cita a capital Salvador que, embora possua muitas outras possibilidades de trabalho, ela acreditava que se morasse lá passaria dificuldades ainda maiores do que aquelas que passava em Salinas. Ela fez questão de ressaltar que gostava de mariscar, apenas não gostaria que fosse esse o único meio de sustento. Pois sem essa preocupação, a maré se tornaria um lugar de lazer, onde seria possível brincar, tomar banho, e não apenas pegar frutos do mar. Já que a lida na maré era tão desgastante e o retorno financeiro muito baixo.

Nas conversas mantidas com as marisqueiras, ocorriam sempre desabafos. Eram queixas quanto ao valor em que era comercializado o chumbinho. Depois de todo o trabalho que envolvia a prática desta mariscagem, não ocorria o merecido valor. Esse ponto de vista é defendido por Rose:

Eu acho que o chumbinho precisava ser valorizado, pra que as pessoas reconhecessem que ele tem um valor bem maior que o camarão. Sem contar que você não aproveita as cascas do camarão. As cascas do chumbinho servem pra você fazer artesanato, serve pra alicerce, serve pra moer, pra fazer ração de galinha. Algum tempo atrás já serviu de cal, pra misturar no cal, tanto o casco do chumbinho como o casco da ostra. 51

No momento que falou sobre o valor do chumbinho, ela deslizava com força e de maneira rítmica o dedo médio no dedo polegar. A intenção era acentuar o valor

50 Cleide França Silva. Entrevista citada. 51 Rosangela Áurea Caetano. Entrevista citada 42

mediante as utilidades do produto, com um gesto que “contribuía com a voz para fixar e para compor o sentido” 52. Isso no intuito de se obter mais compreensão e de transmitir mais veracidade na idéia que se deseja divulgar. O gesto é um parceiro primordial nesse propósito da comunicação oral.

Rose procurava fazer sua parte na tentativa de mudar esta discriminação. Mantinha conversas com as pessoas para que reconhecessem o valor deste produto. Na sua barraca em Salinas, vendia petiscos feitos com os chumbinhos a um valor nivelado aos demais mariscos e afirmou a variedade que as cascas de forma criativa poderiam ser aproveitadas.

Com o tempo, Rose buscou outras formas de trabalho, desenvolveu funções fora da maré. Formou-se em magistério, mas não exerceu a profissão. Teve um bar na orla marítima de Salinas da Margarida e outro em Salvador onde vendia, entre outras coisas, frutos do mar. Viveu desenvolvendo mecanismos para desdobrar-se entre Salvador e em Salinas da Margarida. Este viver foi mais uma forma de luta pela manutenção de sua vida e da sua família. Entre as marisqueira, multiplicam-se as memórias sobre as estratégias criadas para enfrentarem as adversidades que viveram. Dona Sofia, por exemplo, relata os momentos na maré em companhia de sua mãe, quando esta ainda mariscava. Falou com entusiasmo e saudosismo de sua infância quando dividia seu tempo entre os estudos e a mariscagem:

No tempo de minha mãe eu tava na escola, eu fazia assim... Na minha época, a escola era duas vez no dia. Não é hoje que é uma vez só, não! Era de manhã e de tarde... Eu ia pra escola quando chegava eu perguntava por mamãe, arriava os livros, já sabia onde ela estava, a maré que ela ia, era aqui perto, ia todo dia. Quando chegava, almoçava e ia pra escola de novo, que era duas vezes por dia... Naquela época tava de uns 8 a 10 anos, 8 a 10 anos não perdia a minha escola, nunca perdia, já gostava da minha escola. 53

É possível notar que a atividade de mariscar vem de tempos longínquos. Nesse sentido, esclarece Hall “As culturas, é claro, têm seus „locais‟. Porém, não é mais tão fácil dizer de onde elas se originam.”54. Chegar em casa depois da escola,

52 Paul Zumthor . A letra e a voz: A “literatura” medieval. São Paulo: Cia das Letras, 1993, p. 244. 53 Sofia Lima Pinheiro. Entrevistada em 13 fev. 2003. 54 Stuart Hall. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Org. Liv Sovik; Trad. Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da Unesco no Brasil, 2003, p. 36. 43

era um momento marcado de euforia para Dona Sofia, por significar que iria até a maré ao encontro da mãe e junto com ela iria desfrutar alguns momentos de lazer brincando e ajudando-a na coleta dos mariscos. Ela trouxe em suas lembranças o período que tinha a idade de 8 a 10 anos, e desenvolvia junto com sua mãe a mariscagem. No período da entrevista Dona Sofia tinha 82 anos de idade. Com o referencial da idade dessa senhora, foi possível observar que essa atividade marítima é realizada há bastante tempo em Salinas da Margarida, configurando-se assim, como uma prática tradicional. Dona Sofia, viúva e mãe de 10 filhos, sorriu quando falou que não sabe quantos netos e bisnetos têm. Com alegria, lembrou que aguarda os tataranetos. Disse que gostava muito de estudar, estudou da primeira até a quarta série do curso primário; seu grande sonho era tornar-se professora. No entanto, este sonho ela não conseguiu realizar por seu pai não ter tido condições de patrocinar os seus estudos e por sérios problemas de saúde que ela teve. Ela afirmou ter deixado de mariscar por insistência dos filhos e netos preocupados com a saúde dela. Associou-se à Colônia dos Pescadores de Salinas, que viabilizou os meios legais para que ela se aposentasse como pescadora. Porém, aposentada, afirmou que se deixassem, ela ainda iria para a maré, trabalho iniciado ainda criança e que sempre gostou de fazê-lo. Mesmo quando estudava e tinha que permanecer na escola durante a maior parte do dia, mas sempre que podia, dedicava algum tempo na maré em companhia de sua mãe. Quando casou e vieram os filhos foi dos recursos do mar o principal meio de sustento. Criou os filhos e dessa forma foram criados os netos. Ela atribuiu à mariscagem todos os bens materiais que conseguiu obter durante a sua trajetória de vida, e muitos dos saberes que adquiriu através das experiências que vivenciou com amigos, companheiros das jornadas de trabalho. Algumas marisqueiras fizeram questão de falar do cuidado que elas dedicavam ao corpo. A esse respeito nos conta Cleide:

Pode a gente passar o dia todo mariscando, mas quando a gente chega, todo mundo toma banho, aí almoça, ou toma café, dependendo do horário, e depois é que a gente vai continuar o processo. Vai escaldar, catar, embalar pra vender. Mas tem gente que não, que anda todo sujo pelo meio da rua [...] você tem que se conscientizar que você também é gente. Você tem que andar 44

limpinho, calçadinho, as unhas cortadas, cabelo penteado. Mesmo que você não tenha um tempinho, mas você uma hora vai ter que parar, se cuidar também.55

A marisqueira Cleide fez questão de relembrar, com consciência do valor próprio, que não era pelo fato delas fazerem um trabalho tão “desvalorizado” diante da sociedade capitalista, que deveriam descuidar da sua condição feminina. Nesse propósito, as análises sobre o cotidiano elaboradas por Agnes Heller vêm esclarecer que “São partes orgânicas da vida cotidiana: a organização do trabalho e da vida privada, os lazeres e o descanso, a atividade social sistematizada, o intercâmbio e a purificação.”56. Tais explicações sintonizam-se com aspectos do dia-a-dia das marisqueiras, o cuidado que elas tinham com o trabalho, era vinculado a outras esferas da vida: Apesar desse vai-e-vem na labuta diária em que múltiplas atividades precisavam ser realizadas, para Cleide não deveria faltar o batom adornando o sorriso, unhas , cabelos frisados, roupas limpas para levantar a auto-estima do que de fato são: pessoas, mulheres. Quanto aos meios utilizados para que relaxassem no cotidiano da labuta, Dona Amor, outra marisqueira, lembrou de uma canção que costumava cantar na sua lida diária. Fazer isso amenizava um pouco o cansaço do corpo e a dureza do trabalho. Com uma voz suave e bastante afinada, essa marisqueira de 70 anos cheia de energia cantou a canção:

Violão, eu estou tão sozinho Sem amor, sem carinho Solitário na dor

Violão, já chorei tanto, tanto Que hoje eu não tenho mais pranto Pra chorar pro meu amor.

Violão, companheiro dileto És meu único afeto Tudo que me restou.

Meu violão, meu amigo Nem anos separou Hoje eu trago comigo

Na saudade que ela deixou Fiquei entre a cruz e a espada

55 Cleide França Silva. Entrevista citada. 56 Agnes Heller, op.cit, , p. 18. 45

Quando ela desesperada Obrigou a me escolher

E agora, o meu dilema persiste Viver sem ela é tão triste Sem ti não posso viver.57

Aí eu ia, botava a boca no mundo a cantar, mariscando e cantando, e toda hora ia na maré, tomava um banho, essas coisas. Eu era a alegria da maré!58

Meu Dilema é o nome dessa música cuja autoria é de Adelino Moreira, gravada por Nelson Gonçalves. 59 Dona Amor foi mãe de 15 filhos, dos quais oito morreram. Os demais sobrevivem da maré. Sofreu muito durante o tempo em que esteve casada, pois teve que ser pai e mãe dos filhos, já que o lucro que seu marido obtinha da pescaria era consumido em bebidas. A forma serena como Dona Amor cantou entrou em contradição com a aspereza que esse trabalho provocava em seu corpo. Foi possível observar, enquanto ela falava, que as mãos e os pés apresentavam cicatrizes de cortes que foram geradas nas longas jornadas de trabalho, realizadas no decorrer da vida. As dores na coluna é outro problema que normalmente as marisqueiras apresentaram por ter permanecido tantas horas debruçadas na areia mariscando o chumbinho. A pele, os cabelos e a visão eram afetados pelos efeitos negativos do sol, devido ao longo tempo de exposição, não apenas ao sol, mas também ao vento, a chuva e ao sereno. No entanto, apesar da intensidade desses efeitos gerados em seu corpo, Dona Amor guardava uma grande sensibilidade musical, e a alegria de expressar o seu canto para as colegas.

Apesar de todo o cansaço que podia significar ir mariscar, ela sublimava essa fadiga diária fazendo-se a “alegria da maré”. Ao mesmo tempo em que trabalhava, buscava alegrar as demais companheiras com a sua cantoria, brincadeiras e anedotas. Em intervalos se banhava nas águas, para refrigerar seu corpo do calor

57 Música Meu Dilema que Dona Amor cantou quando foi entrevistada em 25 set. 2007. Os grifos são meus por preferi apresentar a letra da música da forma como foi composta. Ela está disponível no site: http://letras.terra.com.br/adelino-moreira/303018/. 58Heloiza Marcelina Ramos ( Dona Amor). Entrevistada em 25 set. 2007. 59A respeito de Adelino Moreira e Nelson Gonçalves ver: http://www.paixaoeromance.com/50decada/a_volta_do_boemio/h_a_volta_do_boemio.h tm. 46

provocado pelo contato direto com o sol, e para afastar a canseira que enfraquecia suas forças com o passar das horas do trabalho.

Sobre esse cotidiano de pessoas que estão em contato direto com a natureza Jacques Laberge esclarece: “Chuva e água, sol e água, noite e água. Pode faltar o peixe, pode romper a rede, mas nunca este contato direto com a natureza: sol - chuva - noite - água.” 60 Ao seguir as riquezas das informações diversas do senso comum, observando a lua, a direção dos ventos e a formação das nuvens, muitos homens e mulheres que vivem do mar, sabiamente discernem o momento daquilo que devem fazer e como pôr em prática seus conhecimentos relativos à natureza.

Associado ao trato com os seus corpos é perceptível a preocupação com a legalidade de sua profissão. Por ser um trabalho sem garantias de salário fixo, acabam ficando desprotegidas. Assim, elas buscavam na Legislação, seus direitos trabalhistas. Em Salinas da Margarida, essas mulheres que se denominam como marisqueiras e mariscadeiras, na busca de afirmar a sua identidade através dessa prática artesanal, denotaram a percepção do seu valor ao se organizarem, apoiando a criação da Associação das Mariscadeiras de Salinas da Margarida, sociedade civil sem fins lucrativos. O estatuto da associação apresenta como primordial finalidade defender democraticamente a idéia de compromisso com o trabalhador sem distinção de nacionalidade, raça, cor ou religião, valorizando a força do trabalho artesanal por elas. 61

Constam no estatuto da Associação das Marisqueiras, os seguintes objetivos:

I- Representar os associados nas suas relações com os Órgãos Públicos em geral, Sociedade Privada ou de Economia mista, concluindo, efetivando ou retificando acordos, convênios, solicitações, pedidos ou outras reivindicações que visem ao bem da comunidade representada; II- Prestar aos associados serviços de natureza jurídica, educacional, médico-odontológico, cultural, recreativa e outros de acordo com os recursos disponíveis que possam contribuir para elevação dos padrões de vida da comunidade;

60 Jacques Laberge . As naturezas do pescador. In: DIEGUES, Antônio Carlos (Org.) A imagem das águas. São Paulo: Hucitec, 2000, p. 45. 61 Ver Estatuto da Associação das Mariscadeiras. f. 1. 47

III- Administrar os recursos financeiros advindos da contribuição de todos os sócios e de outras contribuições ou doações de órgãos Públicos, privados ou de pessoas físicas. 62

Segundo a vice-presidente, Ângela Lima, alguns destes objetivos iriam sofrer mudanças, por não ser possível a realização dos mesmos, como o serviço jurídico, educacional, médico-odontológico. Os trabalhos da associação estavam voltados para o lado social. Ângela Lima contou sobre os trabalhos que a associação desenvolvia:

A associação faz pelas mariscadeiras um esclarecimento melhor sobre sua realidade: o serviço social. Conseguem hoje saber o direito que ela tem perante a justiça, perante a aposentadoria... Dar ajuda, dar remédio, dar cesta básica. Quando a gente também tem condições, que a associação tem também conta pra pagar. Aí tem que pagar as contas, do que sobra a gente compra. A gente faz bingo, fazemos seresta pra poder beneficiar alguma associada. 63

Para as marisqueiras participarem dos benefícios da Associação era preciso que estivessem em dias com o pagamento da mensalidade. Segundo Ângela, apesar de ter 110 associadas, nem todas pagavam a mensalidade, o que dificultava os trabalhos que a associação buscava fazer. Além da renda que vinha da mensalidade, a associação contava com o aluguel de um restaurante localizado na orla marítima de Salinas.

Em Salinas da Margarida, funcionava uma Colônia de Pescadores, a Z13, um Órgão que dentre outras funções, recolhe as contribuições dos pescadores e repassa para a Previdência Social os valores recolhidos. No caso das marisqueiras, elas se associavam à colônia, como pescadoras, e participavam dos benefícios garantidos pela Previdência Social.

Segundo o depoimento de Ângela, para conseguirem através da Colônia dos Pescadores os benefícios da Previdência Social, era necessário que elas se associassem à Colônia e pagassem em dias a taxa da mensalidade. Quando completavam no mínimo 10 anos de contribuição e com a idade de 50 anos, elas então tinham o direito à aposentadoria. Além desse benefício, podiam contar com

62 Idem, op. cit., , ff. 1e 2. 63 Ângela Ribeiro de Lima. Entrevistada em 31 mai. 2002.

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outros serviços como auxílio maternidade e auxílio doença. As dirigentes da associação faziam o trabalho de divulgação dos direitos das marisqueiras, e as estimulavam a irem buscar os mesmos. Ao que se pode observar, estar representada por uma categoria traz um sentimento de complemento. Quanto às marisqueiras, elas buscavam os valores legais dessa prática, que também estão em vigência em todo território nacional.

A associação foi fundada em 16 de Julho de 1982, data que consta no estatuto, e teve como fundadora Elba Chagas Santos, moradora de Salinas que nesse período trabalhava como funcionária pública na Assembléia Legislativa de Salvador. Segundo sua entrevista, já havia exercido dois mandatos como vereadora em Salinas da Margarida. Fundou a Associação das Marisqueiras, auxiliada por uma amiga que trabalhava em associações, em Salvador. Durante o período que exerceu a função de presidente da Associação das Mariscadeiras, viabilizou verbas para a construção de quatorze casas, distribuídas entre as marisqueiras. Anos depois de ter fundado a Associação das Marisqueiras, ganhou a eleição popular para líder maior da Prefeitura de Salinas da Margarida, tornando-se prefeita. 64 Isto sinaliza que o seu desempenho em abraçar causas das marisqueiras trouxe-lhe um retorno positivo.

Ao que parece, existe um movimento ampliado de associações de pescadores. Segundo Simone Maldonado:

Atualmente, no Norte e Nordeste do Brasil, as marisqueiras e as coletoras de sargaço e caranguejo, assim como as mulheres que fazem uma pequena pesca, ou pesca de mar raso, estão se inscrevendo na Sudepe como pescadeiras, num movimento de apropriação em termos produtivos e institucionais do espaço feminino por elas ocupados no mar.65

Ao buscarem estar representadas em órgãos legais como pescadeiras, elas apontam estar conscientes de que são possuidoras de direitos pela atividade que desenvolvem. Este tipo de pescaria está inserida na Organização Internacional do Trabalho que as define como pescadores:

64 Elba Chagas Santos. Entrevistada em 13 fev. 2003. 65 Simone Carneiro Maldonado . Pescadores do Mar. São Paulo: Ática. Princípios, 1986. p. 21. 49

A Organização Internacional do Trabalho define como pescadores os trabalhadores que se dedicam à captura de pescado e (...) Ainda fazem parte dessa definição os coletores de esponjas e pérolas, algas e sargaços, moluscos e crustáceos, os ostreicultores, baleeiros e caçadores de focas.66

De todo modo, a resistência das mulheres marisqueiras mostrou influência no poder local, em Salinas da Margarida. No entanto, foram muitas as marisqueiras que falaram de suas aflições, venturas, desventuras e desilusões experimentadas por elas em seu cotidiano. Como Dona Maria José, em um clamor franco e pleno de dificuldades vivenciadas, lembrou que precisavam muito da ajuda do poder político constituído para que amenizassem a labuta diária da mariscagem. Apontou a doação de um meio de transporte como forma de ajuda para que elas desenvolvessem o trabalho com menos entraves.

O que a gente precisa aqui em Salinas é de uma ajuda, de um transporte. Pra gente que vai lá que traz que pega, e que tenha o transporte pra trazer. A gente, as mulheres de Salinas, é o peso que a gente pega no dia-a-dia e isso é todo dia. A gente sente cansada, é trabalho sim! Um trabalho cansado, mas é um trabalho também que a gente se sustenta, com isso que a gente vive. Eu criei 11 filhos através da maré e eu fiz sempre um trabalho que eu precisava fazer porque não tinha outra oportunidade de fazer. Só tinha essa mesmo, e eu ia fazer esse trabalho. Mas nunca fui zangada por fazer isso não, eu sempre tive orgulho de trabalhar na maré, acho que isso aqui não é desprezo não [...] A gente tá precisando de ajuda, a gente tem que fazer muito apelo pra ver se o governo estadual, federal, qualquer um deles dá uma ajuda de transporte. Como eu mesmo tô com 53 anos, mas se eu for mariscar eu marisco, e agora pra trazer? Como é que traz? À distância... A gente não pega aqui perto, a gente vai pra longe pra pegar. 67

Dona Maria José não vai mais catar chumbinho. O desabafo mostrou sinais de cansaço físico e psicológico acumulados ao longo dos anos, gerados tanto pela labuta diária de mariscar quanto pelas promessas feitas por políticos. Que segundo ela, não faziam uma política digna que atendesse as demandas das primordiais necessidades da população pobre, e ainda colocando-as num estado de segregação pós-período eleitoral. Algumas marisqueiras reclamaram com veemência por um projeto social que as fizessem sentir-se pessoas respeitadas no âmbito de seu

66 Idem, op.cit. , p. 11. 67 Maria José Pinheiro (Dona Baga). Entrevistada em 13 fev. 2003. 50

trabalho. O transporte para locomoção dos mariscos foi apontado por muitas marisqueiras como um bem necessário e que muito lhes fazia falta, pois o suprimento desta necessidade favoreceria muito na diminuição do cansaço diário.

FESTEJOS: ALEGRIA ALÉM DA MARÉ

As pessoas produzem cultura enquanto vivem. E a própria vida transforma-se e edifica-se na complexidade dinâmica das relações de conflito gerados no social, na interação com o outro, na luta pela manutenção da vida, do poder, de valores políticos, religiosos, morais e artísticos. Sobre este comportamento, é interessante trazer a reflexão que Thompson faz de que o homem – na experiência – constrói sua própria história e através do seu existir, atuar, sentir, interagir ele compõe um processo ao dar continuidade a existência e assim passa a ser recolocado na história.68 As marisqueiras precisavam se desdobrar para atuarem em suas atividades como mãe, pescadora, ganhadeira, estudante, namorada, esposa. No decorrer de suas histórias, viviam em uma permanente busca, para acionarem meios de não negligenciarem na atividade diária, o que não significa dizer, que isto sempre ocorresse. A dinâmica pulsação do viver, era o que caracterizava o dia-a-dia dessas mulheres. Atrelado ao cotidiano do trabalho, elas vivenciavam momentos festivos, quando a diversão era o ingrediente principal. Com base nas explicações de Ribeiro júnior, entende-se que “o desafio pedagógico da festa é alargar-se a formidável energia expressa/suscitada nela, para que esta energia penetre e transforme o cotidiano e a sociedade.”69 Nessas ocasiões, as pessoas com alegria desprendiam- se da rotina cansativa, e extravasavam suas emoções, entregando-se as brincadeiras próprias dessas comemorações. Dona Sofia guardou na sua memória boas lembranças de grandes festas religiosas que marcaram sua vida em Salinas. As indagações feitas a essa senhora a conduziram para remotas recordações festivas de sua infância. Ela trouxe com bastante entusiasmo em suas palavras, essas reminiscências. Ao relatar, deixou a

68 Edward P. Thompson. A Miséria da Teoria: ou um planetário de erros. Zahar, Rio de Janeiro: 1981, p. 189. 69 Jorge Cláudio Ribeiro Júnior Noel. A festa do povo; Pedagogia de resistência. Vozes. Petrópolis: 1982, p. 50. 51

impressão de que estava vivenciando a essência das preparações e realizações de algumas dessas festas.

Antigamente, quando eu era menina, eles saiam daqui de jornada... É um bocado de homem, que saia com a imagem pra esses cantos tudo, saia pra Encarnação, Conceiçao, Barra. Esses canto tudo ai, levava oito, dez dias. Andando e tirando esmola e cantando, era cantada nas casas de violão e pandeiro, era bonito mesmo, ainda me lembro da canturia quando chegava. Era beleza, era bonito mesmo!70

A importância dada por Dona Sofia, para que fosse conhecida a jornada, que se realizava em Salinas, no tempo em que ela era menina, justifica o seu registro nesse estudo, pois ela ocorreu em um período que vai além do marco temporal da pesquisa. Essa jornada tinha o objetivo de arrecadar fundos para a comemoração da festa da padroeira de Salinas da Margarida, Nossa Senhora do Carmo, comemorada no dia 16 de Julho. Consistia em grupos de homens que saíam e visitavam os povoados circunvizinhos, onde pediam às pessoas ajuda financeira – que denominavam de esmola – em nome da santa. Ao retornarem a Salinas, com o dinheiro arrecadado, era hora de planejar quais os investimentos que poderiam fazer para que pudessem abrilhantar as comemorações. Havia a necessidade de pagar o padre, a celebração da missa e da procissão, aos músicos, os fogos de artifício utilizados e tudo o que fosse necessário para a realização da festa. A jornada com o tempo foi deixando de acontecer. Dona Sofia apontou como motivo a falta de interesse popular para continuarem a buscar, através da jornada, ajuda financeira para a festa da padroeira.

Júlia, filha de Dona Sofia, presente no momento em que sua mãe falava, contou com o mesmo entusiasmo da mãe, as lembranças que guardou das festas que aconteciam em Salinas, na sua mocidade e que participava tão ativamente:

As festa era assim... Tinha um tesoureiro. Uma pessoa responsável pela festa, aí aquele tesoureiro procurava umas pessoas pra sair arrecadando dinheiro. Tinha um livro chamado livro de ouro pra pessoas anotar o dinheiro que desse, tinha também a gente que saia com as bandeiras ia pra Conceição. Um domingo era em Conceição,

70 Sofia Lima Pinheiro. Entrevista citada. 52

outro em Encarnação o outro na Enseada. A gente saia dia de domingo arrecadando dinheiro pra aquela festa. 71

A arrecadação financeira que Júlia fazia era também para a festa da padroeira. Tal levantamento de fundos era feito tanto em Salinas como nos povoados próximos, como uma forma de integrar a população de toda região de Salinas. Os mecanismos utilizados eram os mais variados possíveis, desde o livro de ouro, até envelopes, chamados de cartas, que eram endereçados a membros da comunidade os quais colocavam dentro a contribuição para a festa. É o que Júlia continuou a contar:

A gente arrecadava dinheiro pra Nossa senhora do Rosário. Então, todo domingo a gente saia pra arrecadar em um lugar. Aquele dinheiro a gente vinha, prestava contas ao tesoureiro da festa, aí o tesoureiro no fim do ano, quando chegava na data da festa de comemoração, então ele contratava músicos pra tocar durante três dias é... Pagava pra realizar a missa, a procissão, comprava foguete. Tudo isso aí, quer dizer, fazia a missa durante os três dias. As três noites era tocado ali na sede, que hoje em dia é ali na praça.72

Júlia trouxe em suas lembranças marcas de sua vivência no âmbito da cultura local. No período em que foi entrevistada, tinha 39 anos de idade, mas desde criança acompanhava sua mãe nas idas e vindas das mariscagens. Mantendo a tradição, continuou junto ao marido e aos filhos com essa prática.

Nas recordações de Júlia, o padre, morava em Salinas, o que facilitava a realização da celebração religiosa, pois assim não havia a preocupação de providenciar um pároco em outra comunidade. Durante três dias havia a comemoração. Os músicos que vinham de Maragojipe, município próximo, cuidavam da animação. Além de pagar aos músicos, financiar a procissão e a missa, no final da celebração religiosa, havia uma comemoração feita com a população na rua. A qual as pessoas denominavam de “gandaia”: os músicos tocando e as pessoas presentes pulavam, brincavam como se fosse uma festa de carnaval. Afinal, como esclarece Paul Zumthor “Não há festa sem dança; e esta, em cada localidade, tem

71 Júlia Pinheiro dos Santos. Entrevistada em 13 fev. 2003. 72 Idem. Entrevistada em 13 fev. 2003. 53

seu lugar próprio.”73 A dança é uma expressão corporal e que vem a concretizar os sentimentos que estão associados a momentos como nascimento, casamento, celebrações populares religiosas, aniversário, batizado, e outras ocasiões vivenciadas por pessoas sozinhas ou em grupos, expressando tanto alegria quanto tristeza.

Júlia prosseguiu com mais detalhes:

Tinha gandaia... Era gandaia tocando, era saxofone, carnaval pela rua, o povo pulando aquelas coisas. E quando acabava tudo... Ás vezes o dinheiro que sobrava, ele prestava contas de tudo as pessoas que trabalhou. O que sobrou ia fazer um tipo, chamado cozinhado que era pro povo que trabalhou na festa.

Júlia guardou na memória as comemorações que envolviam a comunidade quanto ao resultado positivo da realização da festa de Nossa Senhora do Carmo. Muitos participavam imbuídos pelo sentimento de alegria e satisfação, principalmente aqueles que de maneira mais direta haviam contribuído para a efetivação da festa.

Júlia recordou que na “gandaia” estava presente uma bandeira, que era um símbolo festivo, levado pelo responsável da festa. O circuito era feito também com o propósito de chegar até a casa de um membro da comunidade para entregar a bandeira. Este já havia sido contactado antes e concordado em aceitar a ser o responsável pela organização da festa de Nossa Senhora do Carmo no ano seguinte.

Há 20 anos Júlia não mais participa da organização desses festejos. Ela apontou este período como marco do final dessas formas de envolvimento das pessoas da cidade para a preparação da festa da padroeira. “Porque ninguém quis mais o compromisso de arrecadar dinheiro, de sair arrecadando dinheiro, tomar aquele compromisso, de fazer tudo aquilo. Então a festa morreu, parou por aí.” 74 O desinteresse popular foi lembrado como possível conseqüência do fim das articulações para conseguir os benefícios para a comemoração dos festejos.

73 Paul Zumthor, op.cit. , p. 247. 74Júlia Pinheiro dos Santos. Entrevista citada. 54

Outro festejo lembrado por Dona Sofia, foi à festa do Senhor dos Navegantes. Ao cruzar as águas salinenses, traziam muito agito para os povoados. Era uma romaria marítima chamada de “bordejo”, sendo que um dos barcos levava a imagem do Senhor dos Navegantes. Populares embarcavam com muita animação, seguiam todo o trajeto cantando, visitando as localidades próximas. Dona Sofia contou que havia muitas embarcações que participavam da romaria, e canoas que chegavam a disputar velocidade. Ela registra também a presença de saveiros e de um navio, onde ela esteve a bordo, em uma das romarias. Dona Sofia, muito saudosa, disse não haver mais essa comemoração em Salinas. Ela não aponta nenhum fato especial que tenha provocado o fim dessa comemoração.

Mas, entre as festas nas quais as marisqueiras divertiam-se, não apenas a do Senhor dos Navegantes desapareceu no tempo. A de São Benedito também. Nessa comemoração, Salinas era visitada por andarilhos vindos de outras localidades, que em nome do santo, buscavam ajuda financeira para a realização da festa. Dona Sofia contou e cantou a passagem desses homens:

Abrindo as portas devoto Ao senhor do mundo inteiro O rei do céu e da terra O nosso pai verdadeiro... É chegado nessa casa E a viagem chegar E o rei Benedito Que hoje vos veio visitar.

Aí eles tirava as frases. Era bonito como que menina. Ele vinha daí de cima, do sertão.75

Dona Sofia não lembrou com exatidão de qual lugar vinham esses homens, geralmente em número de cinco ou seis. O que marcava a passagem deles com a imagem de São Benedito na localidade era a alegria e a curiosidade que tomavam conta de muitos moradores. Entravam nas casas cantando e pedindo a esmola e

75 Sofia Lima Pinheiro. Entrevista citada. 55

rapidamente se enchia de curiosos, gente como Dona Sofia que gostava de vê-los e ouvi-los cantar. Ela lembrou que, além dos motivos religioso e cultural, as moças gostavam muito de ir ver os homens, pois os achavam bonitos. E após a visita em Salinas e nos demais lugares, retornavam ao local de origem no intuito de providenciar as devidas providências para as comemorações dos festejos. Com muito pesar, ela falou sobre o fim dessa manifestação, em Salinas e em outras localidades. Os andarilhos não mais retornaram à Salinas. Ela não soube identificar o motivo. Deixaram muitas saudades para ela e para muitas outras pessoas que admiravam estas manifestações culturais e de fé.

Apesar de todas essas mudanças ocorridas com o tempo e a perda dessas tradições religiosas, Dona Sofia fez questão de ressaltar que a fé que sempre teve em Jesus Cristo não se perdeu. Lembra que quando bem jovem, teve sérios problemas de saúde e foi a fé que a fez recuperar sua saúde. Disse não sentir nem mesmo dores nas costas, sintoma que cedo, muitas marisqueiras, como sua filha Júlia com 39 anos de idade, já apresentava.

Apesar de algumas manifestações festivas ter deixado de acontecer em Salinas, foi possível identificar que determinadas comemorações resistiram ao tempo. É o caso da festa dedicada a São Pedro, padroeiro dos pescadores, que no calendário católico é comemorado no dia 29 de junho. O lugar dedicado ao santo é uma pequena capela que muitos chamam de gruta. A capela fica de frente para o mar, no local chamado de Veneza que fica em Porto da Telha, dentro de Salinas. Onde também está localizada a Casa das Mariscadeiras. Pescadores e marisqueiras se unem com o propósito de abrilhantarem a realização da festa do seu padroeiro. Dona Reinalda, ex-marisqueira, falou sobre esta festa:

Aqui tem uma Igrejinha de São Pedro, que todo ano celebra uma missa em conveniência dos pescadores e as marisqueiras, que comemora no dia de São Pedro e no dia 2 de janeiro. Tem essa festinha dos pescadores e das marisqueiras para agradar São Pedro, depois tem uma festinha que sai brincando pela rua com instrumentozinho de assopro vai por aí pela rua. 76

76 Reinalda Áurea da Silva. Entrevistada em 7 jun. 2003. 56

A organização desta festa sugere o sentimento de harmonia e cumplicidade entre marisqueiras e pescadores nos ritos de suas devoções religiosas. Os dois grupos se empenhavam pelo brilhantismo da festa. Nela ocorre a celebração da missa na capela dedicada ao Santo. Após a cerimônia religiosa, os participantes percorrem em ritmo de folia algumas ruas de Salinas. Saiam do Porto da Telha – também chamado de Dendê – em direção ao centro de Salinas.

Segundo Dona Reinalda, era como se fosse um carnaval, as pessoas cantavam, dançavam e se divertiam com bebidas e com a participação de músicos os quais abrilhantavam ainda mais o ritmo da festa. Não tinha hora para terminar a folia. O motor condutor era deixar fluir a alegria em espontaneidade, sentimento próprio dessas ocasiões, em que a fadiga, tensão, o compromisso com a hora da maré era momentaneamente deixados de lado. Saber divertir-se nessas ocasiões festivas poderia proporcionar um retorno mais relaxado ao trabalho.

O sagrado e o profano que estão imbricados nessas festividades. São duas dimensões que, do ponto de vista de Ordep Serra, uma não existe sem a outra.77 Ambos são conjunturas que abrangem comportamentos complementares dos participantes. No sagrado faz-se presente a prudência, e um ritual dogmático que deve ser seguido à risca. Em outro pólo está o profano, onde ocorre uma manifestação extrovertida do público sem regras a seguir, a folia é quem reina no conjunto da expressão popular, o efêmero é uma característica presente e marcante. Portanto, ocorre uma ligação entre práticas sagradas e práticas profanas.

Uma outra comemoração vivida pelas marisqueiras e outros habitantes de Salinas, que continuou em destaque, diz respeito à festa dedicada a Iemanjá, a rainha do mar no candomblé. Que embora comemorada em Salvador no dia 2 de Fevereiro, em Salinas, ocorria no mesmo mês, entretanto, sem data fixa. A festa foi registrada na imagem a seguir:

77 Ordep Serra. Rumores de Festa. O sagrado e o profano na Bahia EDUFBA. Salvador: 2005, pp. 59-60. 57

FIGURA 5: Comemoração religiosa dedicada à Iemanjá. (Fotografia de pesquisa, 2003).

Na imagem, uma mistura de fé e alegria determinam o ritmo da comemoração. Muitas marisqueiras e pescadores participam dos festejos, adornam- se a caráter, onde o branco é a cor predominante. Abastecem-se de flores e de água de cheiro e saem em cortejo pelas ruas da cidade até a praia. Ao passar em frente da Igreja Católica de Nossa Senhora do Carmo, em sinal de respeito, param e cantam em homenagem à Santa, mesmo que o templo esteja fechado. Continuam a caminhada e logo embarcam rumo a um determinado local das águas para lançarem ao mar as oferendas à Iemanjá. Nem todos embarcam. Os que ficam na terra se reúnem ali mesmo na praia, numa cerimônia marcada com cantorias e palmas.

Uma festa criada mais recentemente, em 1997, possivelmente que dará início a mais uma tradição, é a festa do Festival do Marisco, cujos principais símbolos são a escolha da Garota Marisco e a apresentação dos mais variados pratos, todos tendo o chumbinho como ingrediente principal. Essa festa envolve muito a comunidade e conta com a decisiva contribuição da Associação que busca propiciar diversão para todas as trabalhadoras da maré. A escolha da Garota Marisco significa para muitas, um momento célebre, em que o corpo é valorizado além da 58

sua capacidade de mariscar. Continua ligada ao marisco, no entanto, o manguezal é substituído por uma passarela onde desfila sendo o centro das atenções, pois seu corpo é admirado e estimado em outra dimensão. Estar nesse espaço pode denotar uma demonstração de resistência, e uma alegre pausa na fadiga do corre-corre diário do ser marisqueira.

Para tornar a festa mais comemorativa, ocorrem regatas, contando com um maior fluxo de turistas, na cidade. Com a divulgação do chumbinho, as marisqueiras têm a oportunidade de expandirem mais os seus produtos, aprimoram a culinária e sentem que aumenta a valorização do seu trabalho.

Nessa festa, está presente um dos pratos mais comumente encontrados nos bares e restaurantes locais: o caldo de chumbinho. Na receita desse prato tem o chumbinho, coentro, cebola, pimentões, tomates maduros, alho, limões, óleo e farinha de copioba. Para preparar o caldo, é necessário ferver o chumbinho, depois bater no liquidificador os temperos com um pouco de chumbinho, juntar tudo e levar ao fogo, acrescentando a farinha aos poucos até alcançar a consistência desejada.78 Esta é uma das iguarias muito apreciada em Salinas, tanto por moradores como por visitantes, encontrado à venda em diversos bares e restaurantes da cidade. Na localidade existe uma crença popular que este caldo é muito nutritivo e energético.

Porém, entre tantas festas que contavam com a presença e a participação das marisqueiras, uma das mais aguardadas, principalmente por aquelas que eram mães, era a festa do dia das mães. Essa festa é aberta para todas que queiram participar e não apenas para as associadas, agitando bastante a cidade durante todo o dia e adentrando pela noite.

Essa comemoração é realizada pela Prefeitura Municipal de Salinas da Margarida, com a colaboração da Associação das Marisqueiras e demais colaboradores e parceiros que promoviam esses eventos com interesses diversos. 79 Nesse sentido, a Associação das Mariscadeiras não deixava de ser uma bandeira política para muitos políticos, pois a associação representava uma categoria da população que era a maioria e a mais carente de Salinas da Margarida.

78 Ingrid Vita . III Festival do Marisco. Salinas da Margarida: 2002, p. 15. 79 Sobre as comemorações populares e seus patrocinadores, ver Jorge Cláudio Ribeiro Júnior Noel , op.cit. p. 51. 59

O festejo do dia das mães é comemorado com bebidas, comidas, músicas e danças. Nessas ocasiões, podiam ocorrer confusões em decorrência da acentuada ingestão de bebida alcoólica ou pela insatisfação de ter recebido um prêmio que não gostou ou ainda por não ter recebido nenhum brinde.

Esses momentos festivos representavam para os salinenses, um meio pelo qual afloravam suas alegrias, com danças, brincadeiras, envolvendo adultos e crianças na tentativa de refrigerarem as tensões, que se fazem presentes na vida da maioria dos seres humanos, pois, como esclarece Ribeiro Júnior em relação às festas populares: “Quanto mais lúdica e expressiva for uma festa, mais contraste ela terá com o cotidiano fatigado, calado, reprimido.”80 Assim, festejar, para eles, mesmo com as adversidades que surgiam com o passar das horas, era antes de tudo, sinônimo de celebrar a vida. Após esse período de diversão, as energias eram retomadas para o retorno às suas atividades. Os dias seguintes eram marcados por comentários referentes às festas, em que cada um trazia a sua opinião do que viu, ouviu, gostou e não gostou.

EU VOU À MATA, À MARGARIDA E AO MANGUEZAL

Quando as águas avançavam nos locais da mariscagem, elas retornavam para suas casas, e continuavam a desdobrarem-se para a manutenção de seus lares e de suas vidas. Dona Dilza trouxe em suas palavras marcas desse cotidiano:

Quando acaba vai lavar aquele marisco, pra não trazer cheio de terra, de cascalho. A gente lava, tira tudo, pra botar na vasilha pra vir. O peso... É uma distância boa de vir, de lá pra cá! A gente vem com aquele peso na cabeça. Aí, quando chega aqui, tem que procurar lenha pra cozinhar, a gente vai panhar lenha pra cozinhar! Então isso tudo é cansativo, a pessoa cansa mesmo! Chega em casa vai catar, cozinhar, sustentar. Leva àquela hora catando, aí perde quase uma manhã toda, ou uma tarde fazendo só aquele trabalho. 81

Dona Dilza tem 52 anos de idade, começou a mariscar quando ainda era criança, junto com sua mãe e irmãs. O motivo dela ter trabalhado quando criança se misturava com as histórias de outras, pois vinha da necessidade de ajudar os pais

80 Idem. , op.cit. , p. 49. 81 Dilza Spínola de Souza. Entrevistada em 31 mai. 2002. 60

na manutenção de suas vidas. Suas lembranças indicam os múltiplos cuidados com os frutos do mar. Na praia mesmo, elas faziam a primeira limpeza do marisco, onde lavavam nas águas salgadas as lamas e areias que ficavam grudadas na parte externa das conchas. Este tratamento favorecia a limpeza e a diminuição do peso no momento do transporte.

Algumas marisqueiras, lá mesmo na praia, catavam madeiras secas, faziam o fogo, escaldavam e tiravam os mariscos das conchas. Isto aliviava o peso do transporte e ajudava essas mulheres a levarem para casa uma quantidade maior de chumbinhos. Outras, em grupo ou sozinhas, davam prosseguimento ao seu trabalho, dirigindo-se até as matas para recolher lenhas que eram utilizadas no fogo para o pré-cozimento dos mariscos. São “eternas catadoras de coisas” para quem, como diz Perrot:

O „trabalho doméstico‟ não é „fazer faxina‟ por dia, mas fazer suas compras, preparar as refeições – cozinhar é um meio de aproveitar matérias-primas baratas e duras – ocupar-se da roupa, cuidar das crianças.”82

A vida das marisqueiras se assemelha a práticas desse viver, dessas donas- de-casa. Ir à mata denotava múltiplos significados no cotidiano dessas catadoras do mar, embora a queima de madeira nos manguezais, provocava certo desequilíbrio à natureza. Quanto ao solo, ele recebia um bom nível de fertilidade, pois as conchas, ricas em cálcio, eram deixadas nesses locais, o que propiciava o seu fortalecimento, servindo como adubo natural. Algumas marisqueiras questionadas sobre o motivo de não praticarem o trabalho dessa forma, argumentaram preferir fazer a atividade em casa para que, assim, elas ficassem mais protegidas dos efeitos do sol e da chuva. Era importante a comodidade de suas casas, além de poder contarem com a ajuda da família, amigos, vizinhos no trato com os mariscos. Mas não só Dona Dilza relata significados de ir à mata. As recordações da marisqueira Dona Amor, como é carinhosamente chamada pelos moradores do local, indicaram um outro significado do ir à mata em Salinas.

Ah! Ir pro mato... Que aqui era um matagal, muito matagal! Aqui em Salinas hoje tá cheio de casa. Mas tinha cajueiro! Tinha, e por sinal

82 Michelle Perrot, op.cit., pp. 200-201. 61

eu fui até mordida de cobra dentro de casa, que era tanto mato, era tanto mato aqui, que hoje a gente pode dizer que tá na cidade. 83

É fácil identificar através das palavras de Dona Amor como era marcante a grande vegetação existente em Salinas da Margarida. Realidade que, com o tempo, foi sofrendo modificações que decidiram os novos traçados e deram o atual formato a cidade.

Porto da Telha, e Dendê trata-se do mesmo local. Receberam estes nomes respectivamente por ter servido como porto para desembarque de telhas e devido a grande quantidade de dendezeiros que existia no local. Ele fica situado nos arredores de Salinas. Algumas pessoas que moravam nesse local, quando precisavam dirigir-se até o centro de Salinas, costumavam se referir a este centro como a mata. Dona Amor externou, no decorrer da conversa, que alguns dos moradores do Dendê zombavam de quem morava nessa “mata”. Eram considerados por eles como mateiros. No entanto, era nesse local que eles vinham tratar de seus assuntos. Dona Amor continuou com suas lembranças desse período:

E a gente passava pra mariscar, assim... Três horas da manhã. Elas ficavam no caminho, em vez de ir mariscar, ficava no caminho esperando a gente pra bulir, a cambada de lá: “A gente hoje vai pra mata, a gente vai pra mata.” O povo chamava a gente de mateiro. Porque quando ela vinha, tudo era pra resolver aqui em Salinas.

Expressões ditas pelos moradores do Porto da Telha como ”Hoje eu vou pra mata” eram recheadas de significados que poderia indicar uma simples zombaria, na tentativa de desvalorizar o lugar perante aqueles que lá moravam, bem como podia significar dizer que teria que ir até lá para comprar algum alimento. Além disso, poderia denotar que os moradores iriam pegar a embarcação para viajarem até a capital baiana e lá venderem os frutos do mar, produtos da práxis diária dessa população. A fala de Dona Amor sinaliza a necessidades desses moradores para se dirigirem até a mata.

Não tinha venda, não tinha nada! Tinha uma vendazinha, mas não tinha o que tinha aqui. Elas vinham de lá pra cá, pra comprar aqui.

83 Heloisa Marcelina Ramos ( Dona Amor). Entrevista citada 62

Não tinha farmácia, mas vendia assim remédio. [...] Ai essa base naval trouxe uma cooperativa pra aqui, onde a gente ia, por menor preço, quando adquiria um trocado. Ai a gente ia nessa cooperativa.

Dona Amor lembrou que em Porto da Telha não tinha nem sequer uma venda, no sentindo de um comércio mais amplo, enquanto que aponta no centro de Salinas a existência desse serviço, que era oferecido pela Base. Durante o período que a Base ficou instalada em Salinas, representou uma importante ajuda para a população carente, principalmente no que se refere aos alimentos que eram vendidos em uma cooperativa com preços acessíveis. Nesses estabelecimentos que funcionavam na base, moradores compravam “um pouquinho de qualquer coisa” 84, recebiam assistência médica, distribuição de medicamentos, entre outros serviços que eram realizados por médicos, marinheiros e demais funcionários que trabalhavam na Base. Porém, esses momentos iam além de consultas e compras, os moradores aproveitavam para conversar, fazer mexericos e acabavam criando, nesses espaços, vínculos de amizades, solidariedade e diversão. Almir de Oliveira retrata o período em que a Base esteve instalada em Salinas da Margarida:

Durante muitos anos Salinas da Margarida abrigou uma estação de rádio da Marinha. Era o posto de recepção PWF 4 [...], na sede do município, no local que terminou ficando conhecido por “Base”. Os trabalhos de montagem ocorreram no ano de 1943, durante o desenrolar da Segunda Guerra Mundial e foram executados pela Marinha dos Estados Unidos da América.85

A Base naval que Dona Amor fez referência diz respeito à estação PWF – 4, uma estação de rádio da marinha que foi instalada em Salinas pela Marinha dos EUA, no período da Segunda Guerra Mundial. No final do conflito, a estação foi entregue a marinha do Brasil. Em 1954 a Estação de Rádio de Salvador, localizada na Capitania dos Portos, necessitava ser ampliada, assim a Diretoria de Eletrônica e Telecomunicações – DET reativou as instalações de Salinas. 86 A Base não ficava na mata onde as trablhadoras do chumbinho catavam lenha, nem no manguezal. Mas quer fosse em relação a esses espaços ou à cidade, o viver das marisqueiras não se orientava por marcos mecânicos do tempo. Aliás,

84 Idem. Entrevistada em 25 set. 2007. 85 Almir de Oliveira . Salinas da Margarida; Notícias Históricas. Minas Gerais: Minas Editora, 2000, p. 152. 86 Idem, op. cit. , passim. 63

por seguir o tempo da natureza, as pessoas que vivem do mar não tem um horário fixo para desenvolverem o seu trabalho. Ele poderia ocorrer qualquer horário do dia ou da noite. Cleide, em sua narrativa apresentou aspectos importantes sobre essa pculiaridade:

Conseguia! Tinha que conseguir [um leve sorriso], se não mariscasse aquele período não mariscava mais hora nenhuma. Porque era o período da maré. 4:00h da manhã, a gente tinha que ir rapidão. A gente ia com escuro mesmo e turvo, um não enxergando o outro, se batendo no outro, mas tinha que sentir o marisco com a mão. A gente sentia a terra, cavando. Com os olhos, a gente não enxergava quase nada. A gente tinha que fazer um esforçozinho.87

Quando as águas baixavam e deixavam as areias e manguezais descobertos independente do horário, Cleide ia mariscar com a sua mãe e suas irmãs. Às vezes desfrutavam da luz das estrelas e da lua que clareava o caminho por onde passavam, e os locais das mariscagens. Algumas pessoas faziam uso de um improvisado candeeiro para obterem uma melhor visão no trajeto e na coleta. Cleide falou que ela e suas irmãs não costumavam levar nada para obterem iluminação. Nas noites escuras, constantemente se batiam umas nas outras, e pegavam os mariscos através do tato.

Dona Sofia lembrou que em períodos da Semana Santa, chegou a mariscar de noite com a mãe, na maré por ela definida como a maré boca da noite, por ser durante o crepúsculo, o momento em que a maré oferecia boas condições para a mariscagem. Por outro lado, não poderia deixar de lembrar que “É também pelas mulheres – mulheres crepusculares – que se transmite, muitas vezes de mãe para filha, a longa cadeia de histórias de família ou aldeia.”88 Foi possível notar durante a entrevista, nos olhos de Dona Sofia, sua alegria em se sentir parte viva da natureza ao interagir e respeitar o ciclo natural das marés. Ela demonstrou, como tantas outras marisqueiras, ter o conhecimento empírico da natureza. Para Dona Sofia, não importava se a atividade era feita durante o dia ou à noite, já que para ela o importante era viver aquele momento com a satisfação de sobreviver com os recursos oferecidos pela natureza e por estar dividindo estes momentos na companhia de sua mãe.

87 Cleide França Silva. Entrevista citada. 88 Michelle Perrot. op.cit. , p. 206-207. 64

Quando faziam isso durante a noite, ao amanhecer, tinham a satisfação de ter o marisco já limpinho dentro de casa. Com essa missão cumprida, podiam então partir para outros trabalhos, pois já tinham conquistado o pão sagrado. Na busca para perceber recriações elaboradas no mundo das marisqueiras, foi observado que devido à distância da casa delas para os locais das mariscagens, elas incluíram em seu trabalho os mais diversos meios de transportes para a locomoção dos mariscos. A vinda do Costeiro para casa, por exemplo, requeria sempre uma boa disposição física. Em alguns casos, fazia-se necessário o uso de canoas para trazer o chumbinho até a margem da maré e, daí, o uso de vasilhas plásticas, panelas, sacos plásticos, cestos de cipó, que eram levados na cabeça até as casas das marisqueiras. Foi observado por vezes o uso de animais, carros de mão e bicicletas (ver figura 6).

A distância para levar o marisco, era sempre grande. O significado dos quilômetros e tempo percorrido por elas vai muito além do tempo do relógio e da distância em quilômetro. Isto perde a importância ao analisar o esforço já gasto por elas nos momentos dedicados à coleta dos mariscos. É grande o cansaço de seus corpos, pois já permaneceram horas a fio debruçadas e de cócoras sobre o solo, debaixo do sol ou da chuva. O trajeto que é feito para casa foi lembrado como um trajeto longo e cansativo, mas não comparado com o tempo decorrido da mariscagem.

FIGURA 6: Mariscos sendo transportados. (Fotografia de pesquisa, 2008). 65

A figura 6 apresenta uma imagem que se tornou costumeira em Salinas, quando alguns moradores passaram a ter a seu dispor a bicicleta, um meio que favorece mais praticidade ao transporte do marisco, veículo que pode ser identificado, em Salinas, como um elemento da modernidade. Nota-se no fundo da fotografia outras pessoas que terminaram de realizar a mariscagem e levam frutos do meio ambiente em suas cabeças.

Ir à ponte Margarida era um outro espaço que se entrecruzava no vai-e-vem das experiências diária dos pescadores, marisqueiras e outros moradores de Salinas. Representava irem a outro elo de resistência. A ponte Margarida, era o acesso que os levava às embarcações em direção a Salvador, outra distância. Dirigiam-se para a Margarida os que iriam receber aqueles que chegavam de viagem, e aqueles que ajudavam outros a embarcarem. Rose trouxe um pouco deste cotidiano:

Eles já sabiam quem viajavam todo dia com marisco. Ele tinha um carrinho de mão de madeira, ele saía à madrugada pelas portas pegando esses mariscos, pra levar pra lancha e tinha o cuidado de separar um por um e marcar. 89

Para aquelas pessoas que podiam pagar um carregador, esta ajuda representava alívio nas madrugadas em que pescadores, marisqueiras e ganhadeiras e outros moradores se dirigiam até ao pequeno porto para embarcarem. Para isto era preciso acordar às 3:00h, 4:00h da manhã. Aqueles que não tinham condições de pagar a um carregador, o jeito era contar com a ajuda da própria família para transportarem a mercadoria até a ponte. “Morava em Encarnação, trazia pra aqui salgado. A gente morava em Encarnação e trazia de animal. Juntava a semana toda e trazia de animal.”90 Neste caso, a marisqueira Maria José sinalizou um dos aspectos do cotidiano enfrentado por ela e suas irmãs. Os mariscos eram trazidos de Encarnação, povoado de Salinas, no lombo de um animal e entregues à ganhadeira que os levaria para serem vendidos em Salvador. Sobre esses momentos do embarque Júlia descreveu:

89 Rosangela Áurea Caetano. Entrevista citada. 90 Maria José Caldas Costa. Entrevistada em 4 out. 2007. 66

Ah! Geralmente ela [a mãe de Júlia] ia só. A gente ia embarcar ela e aí ela viajava. Depois ela retornava, e a gente ia buscar ela novamente na Albatroz, na ponte, ela vinha na Albatroz, A gente esperava descarregar as coisas que ela trazia, muitas vezes não revendia tudo.91

Os que viviam dos frutos do mar colocavam os peixes, caranguejos e demais mariscos em sacolas e vasilhas plásticas e de alumínio. Levavam na cabeça e no ombro para serem embarcados. Nesse período, por não ter ainda geladeira, os mariscos eram salgados para não estragarem facilmente. Os que retornavam, eram misturados a outros para serem vendidos em outra oportunidade. Os dias adentravam as noites e estas se alongavam preenchidas de muito trabalho. As madrugadas árduas desses trabalhadores se mesclavam em idas ao manguezal, à mata, à Margarida e ao mar. Eram momentos cheios de expectativas quanto ao futuro, povoavam suas mentes a ansiedade, o medo e a angústia. Pensamentos incertos em relação ao resultado que obteriam no dia seguinte nas investidas do trabalho. A inconstância, numa vida cheia de lutas tidas no dia anterior, não influenciava e não determinava que o dia seguinte fosse ser fácil. Era simplesmente, um dia vivido após o outro. Uma nova batalha e novas conquistas tidas a cada dia. Toda a inquietude que as marisqueiras viviam transpassava a todos ao seu redor, e acabava por influenciar por completo a vida dessas mulheres. Seu relacionamento com os familiares, amigos, esposos, dependia de como tinha sido o dia de trabalho. Cada mulher que chegava em casa e via que seus filhos estavam esperando-a para poder se alimentar, e percebia que não tinha conseguido o dinheiro, se sentia impotente, incapaz. O que tornava ainda mais difícil e penosa a falta de remuneração fixa para essas famílias. Casos mais complexos existem quando as mulheres são os lideres da casa, e sustentam sozinhas todas as despesas. Vêem-se numa situação complicada e ao mesmo tempo presas ao comodismo matrimonial. Impossibilitando-as de tomarem um rumo mais ameno, para melhoraria de sua vida.

91 Julia Pinheiro dos Santos. Entrevista citada. 67

CAPÍTULO II

MARÉS DA MODERNIZAÇÃO

É que sempre queriam uma indústria para uma cidade! Sempre é um desenvolvimento, apesar de quê, traz algum transtorno. Porque inclusive, alguns caminhos que davam acesso às marisqueiras, foram impedidas, foram impedidos. Edson Benedito Caetano

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VIAGENS E MERCADO

Apesar das incertezas quanto ao lucro que iriam conseguir do fruto do trabalho, marisqueiras, pescadores e outros trabalhadores que moravam em Salinas da Margarida, colocavam a bordo suas esperanças nas embarcações que faziam o trajeto Salinas da Margarida ao porto marítimo de Salvador. Nos estudos realizados por Charles D‟Almeida Santana sobre trabalhadores rurais de cidades do Recôncavo baiano, ele revela que “Neste período, Salvador foi eleita como principal praça de pequenos comerciantes que para lá transportavam carne-de-sol e flores, entre outras mercadorias.”92 Os de Salinas tinham como objetivo conseguir vender o fruto do seu trabalho e retornarem às suas casas trazendo aquilo que o mar de maneira direta não lhes fornecia. As embarcações Albatroz, Mar-Grande, Loirinha, Espera, Maragojipe, Gil 2 e João das Botas, foram algumas das embarcações lembradas pelos moradores como o meio de transporte que os levavam de Salinas para Salvador. A lancha Albatroz foi a mais lembrada pelas marisqueiras nas entrevistas, a distância entre Salinas da Margarida à Capital, via “ferry-boat”, é de 56 km93. Entretanto, não só trabalhadoras de Salinas atribuíam relevâncias a essas embarcações. O jornal A Tarde, por exemplo, divulgou uma notícia sobre a Albatroz. A notícia divulgava um passeio recreativo que iria ocorrer de Salvador a Salinas da Margarida, promovido pelo Esporte Clube Londres Magazine. A partida aconteceria no cais da Navegação Baiana nessa lancha. Em Salinas, os funcionários da empresa participariam de um jogo amistoso e depois de uma festa dançante,94 os quais experimentaram variadas emoções. Outra nota divulgada pelo jornal A Tarde, foi sobre a construção da lancha Espera. Que foi uma produção nacional, destinada para 150 passageiros, construída com motores alemães cuja finalidade era servir para à linha do Recôncavo. Essa nota foi divulgada na primeira visita do presidente Juscelino Kubitschek a Salvador, quando este desenvolvia no país o projeto de obras do seu governo, para estimular o desenvolvimento econômico do Brasil. Os investimentos estenderam-se para a fabricação de outras embarcações bem como para a ampliação do porto de

92 Charles D’Almeida Santana. Fartura e Ventura Camponesas. Trabalho, Cotidiano e Migrações . Bahia: 1950- 1980 Annablume. São Paulo: 1998, p. 85. 93 Pedro Tomás Pedreira . Pequeno Dicionário dos Municípios Baianos. Santo Amaro: 1981, p. 131. 94 A Tarde, 21 fev. 1970, Passeio de recreio a Salinas das Margaridas. 69

Salvador.95 Faz-se notar a Bahia nas metas do então presidente Juscelino Kubitschek, o que oportunizou a Salinas da Margarida e seus moradores que provassem dos empreendimentos governista do presidente Jk. Quando as marisqueiras foram questionadas sobre as viagens que realizavam de Salinas da Margarida para Salvador, algumas traduziram situações por elas vivenciadas de forma engraçada e outras. Dona Amor relata uma situação muito triste:

Coisa ruim já teve, já peguei mastro de lancha quebrando com o vento, com a lancha perdendo a direção, todo mundo gritando por Deus e socorro. Era aquela acabação! Criança e tudo. E teve uma época também que foi numa lancha que ela deu um vira assim, aí desceu uma criatura e ficou muita pessoas em pânico.96

Esses momentos em que a natureza se manifestava, avessa a viagem marítima, trazia angústias para aqueles que necessitavam sair de Salinas e enfrentarem o mar em barcos movidos a vela ou a motor. Santana observa: “Durante o período anterior à construção da BR 101, a viagem à capital da Bahia era representada como repleta de dificuldades.”97 Quando tinha problemas com a embarcação, a viagem tinha que parar e esperar o socorro. Em suas recordações, Dona Amor falou que a pessoa lançada ao mar era uma gestante e que faleceu. O seu corpo foi encontrado em uma praia de Salvador. Um acontecimento como esse, que foi trazido pelas lembranças de Dona Amor podia representar um motivo forte para afastar essas pessoas a continuarem fazendo essas viagens. Mas, como afirma Lúcia Cunha, “a água não só representa a virtude, a beleza, a liberdade e a purificação; é, ao mesmo tempo, fonte de criação e de destruição, vida e morte.”98 O medo que repercutia em suas mentes, da possibilidade de vir a ser a próxima vítima, a ter também esse fim trágico, poderia fazer com que não mais buscassem enfrentar tão diretamente o mar. Mas, para essas pessoas, a sobrevivência vinha do que tiravam do mar, e era navegando através dele que dariam prosseguimento a manutenção de suas vidas. A busca de

95 A Tarde, 9 Jul. 1960, A Companhia de Navegação Bahiana presta o seu público reconhecimento ao presidente Juscelino Kubitschec na sua primeira visita a Salvador; A Bahia nas metas de JK: Ampliação do Porto de Salvador. 96 Heloisa Marcelina Ramos. (Dona Amor). Entrevistada em 25 set. 2007. 97 Charles D’Almeida Santana, op.cit. , p. 91. 98 Lúcia Helena de Oliveira Cunha . Significados múltiplos das águas. In: DIEGUES, Antônio Carlos (Org.) A imagem das águas. São Paulo: Hucitec, 2000, p. 20. 70

outros provimentos em outros espaços era necessário, mesmo com todo o risco que corriam. Apesar de tantas aflições e inseguranças que significava o sair de casa, do território sólido e conhecido, da proteção de estar em família e na companhia dos amigos e camaradas, ainda assim, navegar era preciso. Esse mesmo espaço marcou a memória da ex-marisqueira Rose como o caminho que deu acesso ao lugar que tornou possível o nascimento do seu irmão.

Ah! Vou lhe contar uma! Mainha estava com dor de pari. E aí a estrada ainda era inacabada, daquelas estradas de barro, tinha até trilhos de ferro, até! E era muito difícil pra se tirar um carro de dentro de Salinas até Bom Despacho. Então o parto foi ficando difícil, difícil. Eu me lembro que meu pai teve que pagar 500 mil cruzeiros pra Albatroz levar mainha até Salvador, com a criança atravessada na barriga.99

As embarcações tinham escalas de dias e horários para fazerem o trajeto de Salinas à Salvador. Mas em muitos momentos os moradores se viam em situações extremamente desesperadoras, quando tinham necessidade de se deslocarem de Salinas em horários que não condiziam com aqueles seguidos pelas embarcações. Rose contou que a sua mãe conseguiu chegar a Salvador a tempo de receber atendimento e de dar a luz ao seu irmão. O pai de Rose teve condições de pagar o valor do serviço que na época, segundo Rose, foi referente a uma lotação. Dificuldades maiores passavam aqueles que não tinham recursos para isso. Júlia, outra marisqueira, falou que muitas pessoas chegaram a morrer em Salinas quando não adquiriam socorro, por não conseguirem transporte que os levassem a um atendimento mais especializado, daqueles que Salinas não dispunha.100 Em suas recordações Rose também guardou momentos cômicos dessas viagens:

Teve uma situação de um rapaz que se chamava Miranda. Ele é morto hoje. Ele tinha assim, distúrbio mental, e só tinha um sanitário na lancha. Esse sanitário tava ocupado com uma pessoa que tava com medo do mar, sentindo dor de barriga, e ele também estava com dor de barriga. Andou a lancha toda pra lá e pra cá, [...] Quando ele não agüentou mais ele chegou assim na popa da lancha [...] E foi

99 Rosangela Áurea Caetano. Entrevistada em 15 fev. 2003. 100 Júlia Pinheiro dos Santos. Entrevistada em 13 fev. 2003. 71

uma tremenda confusão. As pessoas correndo pra um lado, só querendo ficar contra o vento.101

Foi com risos que Rose relatou esse episódio. Gritos, correrias, risos e confusão marcaram esse momento que foi dividido entre Miranda e os outros passageiros. Ele não perdeu muito tempo em se livrar do que lhe incomodava. Os passageiros, assustados, buscaram se proteger como puderam. Miranda, já conhecido em Salinas, a partir de então sua popularidade aumentou ainda mais. Por onde passava provocava nas pessoas risos que geralmente vinham acompanhados de piadas e de mais risos. A ex-marisqueira Dona Sofia, também falou com alegria dos momentos que viveu durante essas viagens:

Já gostava da minha viagem, já gostava minha filha! E no tempo da lancha... Era beleza também, que saia daí da ponte, saltava lá na rampa. Nunca tive que dizer da lancha. Beleza aquela lancha, do finado Elias. O mestre já morreu, ele e o finado Elias. Saía da ponte saltava na rampa. Era pertinho dali, do Mercado Modelo.102

Dona Sofia lembrou com risos das viagens que fazia. É possível que, nessas viagens marítimas, apesar dos perigos inerentes, Dona Sofia deixava-se seduzir pelo balanço do mar, com o seu cheiro e o som produzido pelo vento em suas ondas. No momento em que concedia a entrevista, ela preferiu destacar apenas as boas lembranças de quando estava a bordo. Ela recolhia os moluscos, entre eles o chumbinho, a lambreta e a ostra, que eram catados por suas filhas e outras marisqueiras, e os levava para serem vendidos em Salvador. Sobre esse período ela contou:

Eu cavava aqui e ia vender em Salvador, no Mercado Modelo, tinha a freguesia certa. Chegava lá e entregava... Ia três vezes na semana... Graças a Deus ladrão nunca me atacou. Eu cochilava ali no Mercado Modelo até a hora de vir. E outro dia quando eu fui fazer o exame da vista, os camaradas quando me viu, só você vendo! Tem uma menina lá que mim chama mãe, quando me viu... Ô minha mãe! Me abraçou. Não tenho o que dizer daquele Mercado Modelo, já gostava dali.103

101 Rosangela Áurea Caetano. Entrevista citada. 102 Sofia Lima Pinheiro. Entrevistada em 13 fev. 2003. 103 Idem. Entrevistada em 13 fev. 2003.

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Ao chegar em Salvador, na Cidade Baixa, dirigia-se ao Mercado Modelo, na esperança de conseguir vender toda a mercadoria. Assim, essas mulheres souberam burlar momentos de crises. Semelhante às mulheres estudadas por Perrot, as marisqueiras aprenderam a desdobrar “uma extrema engenhosidade para encontrar nos múltiplos comércios das cidades [...], recursos complementares que empregam para completar o orçamento da família.”104 Não se enclausuraram ou se deixaram ser enclausuradas. Evitaram o estereótipo que impuseram a elas: a Maternidade e a Casa. Com determinação, não se deixaram intimidar, arregaçaram as mangas e saíram do interior de suas moradias. Foram para as marés para as ruas, conquistaram as calçadas de onde realizavam atividades e tiravam recursos, para defenderem a sua sobrevivência e de seus entes queridos. As marisqueiras uniram forças e desenvolveram os mecanismos necessários para levar para casa o que fosse possível levar. Era através do mar que chegavam até o mercado, o ambiente em que desenvolviam outra função, passavam a vender os frutos do mar para continuar mantendo sua família. Dona Sofia lembra que determinadas quantidades de mariscos, ela deixava com uma moça para que fossem comercializados, pois era melhor fazer isso do que trazer o produto de volta. Uma quantidade dos produtos que Dona Sofia levava já tinha a clientela certa, os seus fregueses já haviam feito as encomendas, inclusive de outros produtos, como fruta-pão, carambola, manga, coco. No entanto, acontecia algumas vezes dos mariscos retornarem para Salinas. Em vários momentos da entrevista Dona Sofia, procurou demonstrar o quanto gostava das viagens que fazia através das lanchas. Ela salientou que gastavam menos com a viagem marítima, e que nunca teve medo do mar; nas lembranças guardadas dessas viagens não apresentou os momentos ruins, pelo contrário, o que lhe alegrava era lembrar dos momentos vividos com companheiros no Mercado Modelo. Disse ter feito muitos amigos lá, e com saudades lembrou desses amigos. Dona Sofia desenvolvia em Salinas da Margarida, as funções de marisqueira e ganhadeira, uma espécie de intermediária na venda dos mariscos.105 Trata-se de passagens dos depoimentos que levantam outra característica presente na pesca artesanal, a presença dos atravessadores, fato já apontado por Simone Maldonado:

104 Michelle Perrot. Os Excuídos: operários, mulheres, prisioneiros. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 190. 105 Sobre o trabalho desenvolvido por mulheres, tanto no campo como na cidade, ver Rachel Soihet. História das Mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.) Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 285. 73

Os pescadores artesanais [...] dependem também de intermediários para comercializar seu produto, tanto devido à perecibilidade deste como porque, geralmente, não dispõem de infra-estrutura para a sua conservação e de meios para transportá-lo aos mercados mais distantes.106

Em Salinas da Margarida, os intermediários dos mariscos eram em maioria mulheres denominadas de ganhadeiras. Uma profissão importante, uma vez que, em sua maioria, as marisqueiras não tinham condições de viajarem para venderem os seus produtos, bem como, não possuíam meios para conservá-los por muito tempo. A geladeira ou o freezer eram bens que não faziam parte de suas vidas. Por outro lado, a ausência delas na maré, ainda que por apenas um dia, significaria prejuízo no processo da coleta dos mariscos. Apesar de ser pequeno o lucro que adquiriam quando vendiam seus produtos para as ganhadeiras, era preferível poder contar com esse pouco, a correrem o risco de ficarem sem nenhum ganho como fruto do seu cansativo trabalho. Ao retornar a Salinas, Dona Sofia fazia o pagamento a suas filhas e demais marisqueiras que lhe haviam passado os mariscos fiados; ela afirmou que nunca ficou devendo a nenhuma delas. Os mariscos que retornavam eram logo salgados na tentativa de conservá-los por mais algum tempo. Com o dinheiro da vendagem dos mariscos, tanto Dona Sofia, como as demais marisqueiras, abasteciam suas dispensas com outros alimentos. As marisqueiras, nos seus arranjos, compravam os produtos de limpeza, higiene, roupas, calçados, móveis, eletrodomésticos e outros objetos para suas casas e para uso pessoal. Quanto aos maridos, à participação de muitos deles no orçamento familiar vinha das vendas que faziam dos peixes pescados. O marido de Dona Sofia ajudava com o trabalho que desenvolvia como pescador. Outros maridos trabalhavam como biscateiros, como pedreiros. Dona Sofia contou com muita alegria dos bens materiais que possuía em casa, conseguido com as vendas dos frutos do mar e a participação do marido. Em Salinas da Margarida, este fato é bem perceptível, já que muitas são mulheres que participam ativamente da renda familiar, ajudando seus maridos. Se não existisse cooperação por parte deles, era gerado um ambiente familiar de

106 Simone Carneiro Maldonado. Pescadores do Mar. São Paulo: Ática. Princípios. 1986, p. 15. 74

desentendimentos, brigas e insatisfações. Muitas foram as marisqueiras que sustentavam sozinhas seus lares sem a participação masculina. Júlia, com 39 anos de idade, marisqueira, presente e atenta durante o tempo em que sua mãe concedia a entrevista, fez questão de retratar a sua experiência com as ganhadeiras.

Depois que mãe deixou, ficou uma criatura que também trabalha lá no Mercado Modelo que leva a lambreta da gente. Agora o chumbinho eu junto dos meninos, eu junto na geladeira, junto à semana toda e na sexta-feira eu entrego e no sábado a moça me paga... Tem ganhadeira que já paga na hora. A pessoa entrega o marisco e paga na hora, mas algumas paga assim, deixa pra pagar quando ela vem de Salvador.107

As ganhadeiras pegavam os mariscos por um custo menor nas mãos das marisqueiras e os revendiam em Salvador, em praias da Ilha de Itaparica e em outras cidades do Recôncavo Sul como Nazaré das Farinhas e Santo Antonio de Jesus. Era uma tendência forte das ganhadeiras essa desenvoltura de estar em outros locais fora de Salinas para venderem os chumbinhos e outros mariscos. No seu dia-a-dia, lá estavam elas, rompendo com o mundo particular de suas casas e indo para o ambiente livre das ruas para fazerem à entrega, como restaurantes, bares e outros pontos comerciais. Outras não tinham clientela certa e assim, aventuravam-se na venda dos produtos. Ao se aproximar o momento de retornarem, as ganhadeiras vendiam os mariscos pelo mesmo preço que pegavam nas mãos das marisqueiras para que não tivessem que levar de volta, e não corresse o risco de terem como prejuízo o marisco estragado. Não foram observadas insatisfações das marisqueiras com as ganhadeiras, as quais na sua maioria pertenciam a mesma comunidade. Além de Dona Sofia, outras mulheres faziam este trabalho, companheiras de Dona Sofia das quais algumas ainda estavam vivas. Em Salinas era uma prática normal os mariscos serem vendidos nas ruas. Filhos das marisqueiras vendiam nas casas, restaurantes, pousadas, hotéis e bares. Pessoas que estivessem interessadas em comprar os mariscos tinham que pega-los os buscavam nas casas das marisqueiras e em pontos comerciais.

107 Júlia Pinheiro dos Santos. Entrevista citada. 75

Em sua narrativa, Dona Amor explicou que além de mariscar, viajava também para Salvador para vender o marisco. Sua entrevista trouxe mais detalhes dessa sua vivência:

Eu vendia no Mercado Modelo, mesmo! Dentro do Mercado Modelo, que era o mercado... Era mesmo de pesca. Hoje tem o mercado de turismo, mas antes era o mercado de pesca mesmo. A gente assim, vendia o marisco, vinha pra casa [quando não vendia] sem dinheiro sem nada. Tinha época que levava 20 [kg], mas pra vender por qualquer preço. Tinha ocasião que o marisco até voltava, não tinha quem comprasse, chegava lá o comprador dizia: Hoje eu não quero! Aí, vinha lágrima no olho.108

Com palavras carregadas de emoção, Dona Amor sintetizou a agonia de muitas marisqueiras. Parecia ter sido em vão toda a aventura do percurso realizado. A esperança desbotava-se ao ouvirem o “não quero”. A negativa significava que não levariam para suas casas o dinheiro, e outros bens necessários à manutenção diária, que viria através da venda do seu pescado, como o feijão, a farinha, o café, arroz, o leite e até mesmo o carvão para fazer o fogo e cozinhar os alimentos. De imediato vinha-lhes a lembrança dos que aguardavam pelo retorno delas. Eram os filhos, outras marisqueiras, o marido, a conta a pagar que haviam deixado pendente em alguma venda. A própria viagem não poderia ser paga ao mestre da embarcação. Este, entretanto, conhecia a labuta e era possível que deixasse para receber o pagamento na próxima viagem. Afinal, como explica Gláucia Oliveira da Silva:

A faceta ingrata da vida de pesca, a imprevisibilidade determinada pelo comportamento dos caprichosos peixes (a serviço de uma instância maior) ou do mercado que, imperfeito como muitas realizações sociais, desfavorece os pequenos produtores do pescado. 109

Ventura! Palavra que tem um significado forte no cotidiano de pessoas que tiram do mar o sustento. Correm o risco de não obter o sucesso desejado com a pescaria, além da incerteza que o mercado pode significar ao não favorecer um ganho imediato e justo. Isto pode ocorrer, mesmo com o conhecimento técnico

108 Heloisa Marcelina Ramos. (Dona Amor). Entrevista citada . 109 Gláucia Oliveira da Silva. Tudo que tem na terra tem no mar. A classificação dos seres vivos entre os trabalhadores da pesca em Piratininga – RJ. In: DIEGUES, Antônio Carlos (Org.) A imagem das águas. São Paulo: Hucitec, 2000, p. 85. 76

adquirido e os saberes que foram passados de geração para geração, quanto à maneira de obter os benefícios que o mar hospeda. Em suas análises, Maldonado expõe que “Os pescadores têm o seu acesso aos recursos condicionado pelo nível tecnológico do instrumental pesqueiro e, sobretudo, pelo conhecimento do meio marítimo que cada grupo constrói e desenvolve na sua atuação frente à natureza.”110 A expectativa é marcante quanto à ida ao mar. Ainda que leve-se em conta o período do ano, fases da lua, posição dos ventos. No entanto, tudo isso pode ser em vão, se os benefícios que pescadoras e pescadores esperam ganhar com esses investimentos não forem concretizados. Na cultura de homens e mulheres que labutam com o mar, é marcante a paciência na espera do momento sagrado, o prazer de conseguir o seu pescado e o de vendê-los. A paciência está presente no comportamento dessas pessoas, quando retornam a terra sem o fruto do seu trabalho, ou quando não conseguem que seu pescado seja vendido. Ela, a paciência, os eleva à perseverança, pois apesar da imprevisibilidade do mar em fornecer o galardão de sua labuta, e do comércio, por não ter comprado ou por não ter sido justo na compra da sua mercadoria, eles e elas continuam acreditando no sucesso da próxima pescaria e da próxima viagem ao mercado.

QUEM TEM TELHADO DE PALHA VAI MORAR EM OLHO DE VIDRO

Até o século XIX Salinas da Margarida pertenceu a vila de . No entanto, por interesses políticos e administrativos, a jurisdição administrativa passou para o município de Itaparica em 15 de janeiro de1901. Conquistou a emancipação em 27 de julho de 1962, com o então governador Juraci Magalhães. Teve como primeiro prefeito Manoel Dias de Albuquerque que tomou posse no dia 14 de Abril

110 Simone Carneiro Maldonado. No mar: conhecimento e produção. In: DIEGUES, Antônio Carlos (Org.) A imagem das águas. São Paulo: Hucitec, 2000, p. 86. 77

de 1963111. Dias antes, 7 de Abril de 1963, foi instalada a Câmara Municipal e tomou posse os vereadores eleitos.112 Ocorrida à emancipação, foi dado prosseguimento a implantação de novas modificações em Salinas, inaugurando um novo momento em sua história. As marisqueiras e demais moradores sentiram pouco a pouco os reflexos dessas mudanças, em seu cotidiano de trabalho, bem como em outras esferas da vivência local. Nas decisões administrativas foram criadas portarias municipais para dar funcionamento a essas mudanças. Um processo que atendia mais os interesses e vaidades dos setores privilegiados da população do que a expressiva parcela de pescadores e marisqueiras, que já sofriam um processo de desigualdade social e com as novas investidas do poder político por certo pagariam um ônus ainda maior.113 Apesar das modificações que foram ocorrendo em Salinas através das novas medidas da administração pública, que visava inserir a cidade em um contexto de modernização, que acontecia em diversas regiões do país, a coleta do chumbinho continuou sendo o principal alimento e meio de sustentação dos desprovidos economicamente. Alguns dos elementos da modernidade que foram pouco a pouco se configurando na paisagem salinense não refrearam a cultura da mariscagem. Mulheres e homens que viviam dessa prática resistiram e recriaram meios de conservarem essa cultura. No Recôncavo baiano, a forma de utilização do espaço natural em espaço social não é percebida apenas em Salinas. No processo de implantações dos interesses imobiliários, muitos foram os espaços que se transformaram em palco de investidas financeiras, ações que alteraram de forma determinante as paisagens. É o que nos apresenta Wellington Castellucci nos estudos que realizou a respeito da Vila de Tairu, localizada próxima à Salinas, na Ilha de Itaparica, na Baia de Todos os Santos. Ele considera que “Corretores imobiliários, que barganharam grande parte dos terrenos nativos, modificou sensivelmente o panorama

111 Ata de posse do Prefeito Senhor Manoel Dias de Albuquerque. Arquivo da Câmara Municipal de Salinas da Margarida (ACMSM) de 14 de abril de 1963. f . 2. 112 Ata da sessão especial destinada à instalação da Câmara Municipal de Salinas da Margarida e posse dos vereadores diplomados. (ACMSM) 7 abril 1963. f. 1. 113 Nicolau Sevcenco, em relação ao Rio de janeiro, traz importantes reflexões sobre esse processo que guarda semelhanças a esse observado em Salinas. Ver, Nicolau Sevcenko . Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na primeira República. 2ª ed. São Paulo: Cia. Das Letras, 2003, p. 225. 78

arquitetônico e social da vila”114 Sua pesquisa sugere que as transformações ocorridas não se destinaram apenas a Tairu. As transformações afetaram toda a ilha bem como a vida dos seus moradores. Castellucci lembra como motivos dessas mudanças as obras realizadas na década de 70, que intensificaram o acesso a Itaparica, como a construção da Ponte do Funil que liga a Ilha ao continente, em direção a Nazaré, e a implantação do sistema Ferry Boat, embarcações que fazem o transporte de veículos e passageiros que vão e vêm de Salvador à Ilha.115 O sistema de Ferry Boat, a construção de rodovias asfaltadas e a Ponte do Funil, são apontados como mecanismos implantados no intuito de atender interesses econômicos, facilitando o escoamento de produtos agrícolas vindos do Recôncavo Sul da Bahia para a capital baiana. Muitas foram às empresas que se interessaram em fazer uma corrida de investimentos imobiliários na Ilha visando turistas tanto de cunho nacional como internacional.116 Salinas da Margarida, por situar-se próxima a Itaparica e possuir uma natureza prodigiosa, rica na sua marinha, não ficou a parte desta corrida de investimentos imobiliários. Ela foi palco das conseqüências provenientes deste tipo de investimento, realizado ou não com prudência e respeito à natureza, a hábitos e valores das pessoas do lugar. De algum modo, ocorre aqui desdobramentos iguais àquelas questões ambientais e sociais trabalhadas por Nunes, sobre os pescadores de Nagé. 117 Atrelado a isto, em muitos destes locais, ocorreu uma profunda transformação na flora, como foi lembrado por Dona Sofia:

O Araça! Quem era o Araçá? O Araçá era mato puro. Hoje em dia eu passei ali na caminhada... Cada casa linda! [risos] O Araçá era mato, só tinha mato. Já botaram o nome Araçá porque só tinha araçá, araçazinho, cajueiro, essas coisas... Agora, cada casa bonita mesmo! Passei lá no dia da caminhada e vi o Araçá. Quem era o Araçá?!118

Este lugar, trazido através da oralidade, está localizado nos arredores de Salinas. Como observou Dona Sofia, existia nesse local uma vasta flora com a

114 Wellington Castellucci Júnior. Pescadores da Modernagem Cultura, Trabalho e Memória em Tairu Bahia: 1960-1990. Dissertação de mestrado. PUC, São Paulo: 1999, p. 47. 115 Idem, op.cit. , pp. 16-17. 116 Idem, op.cit. , pp. 58-59. 117 Eduardo José Fernandes Nunes. Pescadores de Nagé: Um estudo sobre relações sociais e impacto-ambiental. Salvador: UFBA / Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Mestrado em Ciências Sociais. 1988, p. 43. 118 Sofia Lima Pinheiro. Entrevista citada. 79

presença de variadas espécies de árvores frutíferas, que com o tempo desapareceram para dar lugar a muitas casas, respondendo ao processo urbanístico. A interação do homem com a natureza, provoca uma constante mutação de conceitos e conflitos entre o que é fundamental para o nosso bem estar pessoal e social, como sendo o homem parte singular de um todo, e o que é movido baseado apenas no interesse do crescimento urbano capitalista. A respeito de algumas dessas mudanças, foram importantes as informações cedidas pelo Senhor Serafim, com 83 anos de idade, nascido em Salinas, trabalhou na Companhia Salinas da Margarida. Teve uma grande participação na primeira administração pública, ao lado do prefeito Manoel Dias de Albuquerque e trabalhou ativamente para que fossem implantadas as metas da administração pública. Na entrevista que concedeu demonstrou ter sido um grande representante do poder em Salinas e sobre a formação desta cidade, Senhor Serafim, trouxe as seguintes lembranças:

Abriu essas ruas, todas aqui. O pessoal derrubando dendezeiro, a gente pediu ao pessoal: Vamos deixar passar aqui, que aqui melhora a rua, a cidade e tal. Então, o pessoal disse: Tá certo! E foi assim que começou Salinas, com tenente Ozinho. 119

Para responder ao novo processo administrativo, áreas verdes tiveram que ser desmatadas, dendezeiros e outras árvores que estavam fora do alinhamento projetado pelo poder público. 120 Muitos moradores em Salinas tiveram que ceder os espaços de seus quintais para o alinhamento das ruas e para que elas fossem alargadas. Essa medida, no entanto, não deve ter sido bem vinda pelos munícipes, como pode-se concluir com as palavras do Senhor Serafim. Até onde foi possível averiguar, não houve indenizações para as marisqueiras e pescadores que perderam seus quintais, nesses espaços havia árvores cujas frutas eram consumidas pela própria família ou vendidas para ajudar na manutenção financeira do lar. Outra perda diz respeito ao velho sonho da casa própria. Os quintais eram locais que serviriam, no futuro, para outro membro da família, irmão, irmã, filho ou

119 Serafim de Souza Conceição. Entrevistado em 26 de set. 2007. 120 Sobre as transformações no meio ambiente urbano, ver, por exemplo, Sandra Jatahy Pesavento. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias. In; Cidades. Revista brasileira de história. Órgão Oficial da Associação Nacional de História. São Paulo, ANPUH, vol. 27, nº 53, jan.,jun., 2007, p. 13. 80

filha que quisessem construir a futura moradia. Assim, não iriam precisar comprar outro terreno. Neste processo, as ruas também tiveram seus nomes suplantados. Exemplo disso foi a rua “Vai quem quer”, cuja denominação se deve por ser distante do centro de Salinas, que passou a ser chamada de Rua Getúlio Vargas. A Praça do Cruzeiro passou a ser chamada de Praça Manuel Dias de Albuquerque. Na praça foi erguido um busto do homenageado. O projeto de mudanças dos nomes das ruas foi apresentado pelo Vereador João Ferreira ,121 em um violento processo de rompimento com a apropriação popular dos espaços citadinos a exemplo da “monumentalidade das cidades modernas, das grandes e largas vias de trânsito, aparece como expressões de um poder que está por toda parte e em parte alguma”.122 Assim, o então prefeito ganhava mais um meio de demonstrar o seu poder. A harmonia que o Senhor Serafim tenta demonstrar como característica desse processo entre moradores e a administração pública é imprecisa, já que outras medidas estavam sendo tomadas como a proibição de casas cobertas de palhas e construídas de taipa. A mágoa ainda era visível quando Dona Amor lembrou da expressão “Quem tem telhado de palha vai morar em olho de vidro”123. A tristeza rememorou a forma como ela e os demais pobres de Salinas foram tratados pelo prefeito da época, Manuel Dias de Albuquerque, o qual chegou a utilizar um sistema de som, com intuito de informar a medida para os moradores despojados de sua habitação. Dona Amor, como muitas outras mulheres e homens do povo, rejeitou esse modernismo no aspecto urbano. Tais mudanças exigiam reformas radicais na vida das pessoas. Um exemplo era a destruição da casa das marisqueiras e imediata construção de novas habitações. A frase pronunciada pelo prefeito foi interpretada como aviso, direcionado a essas pessoas de baixo poder aquisitivo, na intenção de fazê-las mudar o telhado de palha para o telhado de cerâmica. As casas deveriam ser construídas de bloco e não de barro, caso contrário, esses moradores deveriam

121Ata de apresentação do projeto do Vereador João Ferreira Juazeiro que propôs mudar o nome da Praça do Cruzeiro para Praça Manoel Dias de Albuquerque (ACMSM) de 13 de novembro de 1964. f. 45. 122Reinaldo Lindolfo Lohn. Limites da utopia: cidade e modernização no Brasil desenvolvimentista (Florianópolis, década de 1950). In; Cidades. Revista brasileira de história. Órgão Oficial da Associação Nacional de História. São Paulo: ANPUH, vol. 27, nº 53, jan.,jun., 2007, p. 307. 123Heloisa Marcelina Ramos ( Dona Amor). Entrevista citada. 81

ir morar em um lugarejo chamado, Olho de Vidro, próximo de Salinas, e de lá também é que vinham as palhas que cobriam as casas dos pobres. Afinal, como diz Reinaldo Lindolfo Lohn o espaço “é lugar de disputa e conflito que envolve relações de força suscitadas por expectativas sociais”.124 É possível que os moradores de Salinas sem condições financeiras de se adequarem às novas exigências, tenham entrado em choque com a administração. Mas, por outro lado, o Senhor Serafim fez questão de afirmar que o prefeito “Não tomou as casas das pessoas, não derrubou, não tomou as casa de ninguém, não! O que fez foi melhoramento na cidade.”125 Dona Amor lembrou que ela, como outras marisqueiras e pescadores, se sentiu bastante humilhada pelas palavras pronunciadas pelo então prefeito. É provável que as palhas que não estivessem bem arrumadas nos telhados deixassem, em épocas de chuvas, molhar o interior das casas. O barro nas paredes de taipa, quando se soltava, deixava passagem para que a chuva e bichos, como o barbeiro,126 entrassem para o interior das moradias. Infelizmente, a população não obtinha meios financeiros e nem recebeu ajuda dos representantes municipais para melhorar as condições de moradia e assim, atender aos propósitos impostos pelo Executivo. Foram dias vividos e registrados na memória como de intensa angústia e conflitos com o poder público, entretanto, paulatinamente ocorreu às mudanças exigidas. Um detalhe importante que não passou despercebido quanto às funções que o Senhor Serafim desempenhou, é que ele trabalhava como policial militar, quando foi convidado, para trabalhar nos dias de folga na administração pública da cidade. Essa sua condição profissional, possivelmente ajudou o prefeito a conseguir alcançar seus objetivos administrativos. É presumível que tenha sido favorável a administração pública o fato desse funcionário desenvolver essa profissão. Um representante da lei, em dose dupla, pode ter intimidado alguns desses moradores impedindo-os de fazerem manifestações contra as novas exigências do poder público municipal. Outra medida de cunho sanitarista e modernista foram tomadas para disciplinar à vida urbana, no município recém emancipado. Uma delas diz respeito à

124 Reinaldo Lindolfo Lohn , op.cit. , p. 307. 125 Serafim de Souza Conceição . Entrevista citada. 126 Rosangela Áurea Caetano. Entrevista citada 82

proibição referente à criação de animais soltos pelas ruas de Salinas. A cerca disso Júlia relatou que:

Eu nunca criei animal aqui não! Mas ouvia falar que, os animais aqui criados, era criados soltos mesmo. Era boi, era porco, era cavalo, tudo no meio da rua, a gente às vezes sentava na porta vinha aquele monte de boi correndo, era um monte de cavalo correndo. Aquela coisa toda, mas aí tinha que sair todo mundo correndo da frente. Mas aí depois criaram essa lei, proibiram de colocar cavalo, fizeram um negócio de uns corredores, uns curral, pra prender todos cavalos.127

Para dar uma nova postura à cidade, os moradores tiveram que manter os seus animais longe da via pública. Aquele animal que fosse pego vagando, o dono era multado. Acontecia que alguém que quisesse prejudicar o dono do animal, soltava-os e o proprietário tinha que arcar com as conseqüências. As medidas punitivas de multar, e até mesmo de matar animais ocorreram como mecanismo disciplinador, rememorou a marisqueira. Mas, muitos foram os conflitos gerados entre os que criavam esses animais e os políticos responsáveis por tais decisões. Este fato repercutiu até mesmo na Câmara Municipal da cidade, notificado no registro da Ata da Sessão Ordinária pelo Senhor Presidente Eunápio Amorim: “Sobre queixas dos munícipes quanto a conduta de propostas da Prefeitura na apreensão de animais no perímetro urbano”.128 O Vereador Almir Martins de Araujo levou a pleito a importância de ser construído um curral em Conceição (povoado de Salinas), pois no centro desse povoado funcionava um curral de forma imprópria.129 É possível notar que o Legislativo estava preocupado com a insatisfação popular. Queria estender as modificações para além da sede municipal, entendendo que tais decisões administrativas justificavam-se no sentido de levar em conta à saúde da população e a inserção de Salinas em um processo urbanístico moderno. Contudo, como lembra Thompson: “a cultura popular é rebelde, mas o é em defesa dos costumes,”130 O povo, contrariado, não perdeu a oportunidade de mostrar a sua

127 Júlia Pinheiro dos Santos. Entrevista citada. 128 Ata que registrou insatisfação de populares quanto a atos administrativos do Executivo (CMSM) de 11 outubro de 1963. f. 18. 129Ata que registrou o pedido de informações do Vereador Almir Martins de Araujo a respeito da construção do curral de Conceição (ACMSM) de 27 de dezembro de 1965. f. 58. 130 Edward P. Thompson. Costumes em Comum; estudos sobre a cultura popular tradicional. Companhia das Letras, São Paulo: 1998, p, 19. 83

insatisfação quando foi possível fazer valer seu apreço por costumeiros usos dos espaços do município e tradicionais maneiras de construções residenciais . É possível que populares depois dessas transformações, em período de eleição, não tenham esquecidos dos conflitos vivenciados, e muitos foram os votos perdidos para os políticos que apoiaram tais medidas. A criação de animais soltos pelas ruas colocava em risco a saúde dos moradores. As crianças viviam mais soltas nas ruas, e mais propensas a adquirirem alguma doença transmitida por esses animais. Aquelas de famílias desprovidas de recursos financeiros, normalmente filhas de marisqueira e de pescador, dificilmente tinham atendimento médico, além de permanecerem em constante estado de alerta, pois, não se sabia a hora, de onde e como esses animais apareceriam e iriam reagir mediante as pessoas. No entanto, as novas regras chegavam até a população de forma autoritária. Muitos desses animais foram sacrificados. Muitas pessoas sobreviviam criando esses animais e não tinha como aloja-los com facilidade. Era difícil que essas normas fossem tão rapidamente aceitas e acatadas. Nesse contexto, Rose vivenciou um episódio singular e marcante na sua infância. Ela trouxe através da oralidade a alegre lembrança da época em que porcos eram criados soltos em Salinas:

Tinha um rapaz lá próximo ao cemitério, chamado Seu Almiro, ele criava porcos, enormes. Enormes mesmo, os porcos. Então quando o pessoal ia enterrar seus mortos, tinha que ir uma pessoa na frente, pra saber se os porcos de Seu Almiro tava solto. Pra não tomar carreira de porco, levando o defunto. Tinha que ir na frente, tangendo os porcos ou avisar Seu Almiro pra prender os porcos, que ia passar um cortejo fúnebre, pra poder prender os porcos.131

Nas lembranças da ex-marisqueira, esses momentos eram marcados de expectativas quanto ao desenrolar do sepultamento. Sua memória guardou a lembrança de porcos enormes. Era assim que ela os via quando criança. Criaturas enormes, capazes de devorar aqueles que por acaso não fugissem deles. Com risos, Rose disse que “o defunto, ficava pra lá e pra cá, esperando os porcos saírem da frente”.132 Momentos peculiares como esse vivenciado por Rose e demais

131 Rosangela Áurea Caetano. Entrevista citada. 132 Idem. Entrevistada em 15 fev. 2003. 84

moradores desapareceram à proporção que as ações punitivas vindas do poder constituído se tornavam eficazes. As marcas dos novos tempos eram fincadas pouco a pouco na cidade, e ressoavam nas experiências vividas desses moradores. As transformações não aconteciam apenas no aspecto urbanístico. Certos valores, cultivados por gerações ganharam novos significados, em momentos em que o mais importante era a vida, como assevera Thompson, “embora a vida social esteja em permanente mudança e a mobilidade seja considerável, essas mudanças ainda não atingiram o ponto em que se admite que cada geração sucessiva terá um horizonte diferente”133 e que “as práticas e as normas se reproduzem ao longo das gerações na atmosfera lentamente diversificada dos costumes.”134. Ocorre que, conforme pode-se perceber nas fontes trabalhadas, as transformações ocorridas na cidade, após sua emancipação deram-se concomitantemente as modificações na prática da mariscagem. Uma delas apontada pelas marisqueiras refere-se à presença de homens na cata do marisco. A figura 7 traz em destaque, um exemplo do que foi apontado por algumas entrevistadas.

FIGURA 7: Homem na mariscagem segurando o puçá com chumbinhos. (Fotografia de pesquisa, 2008).

133 Edward P. Thompson, op.cit. , p. 18. 134 Ibidem. 85

Muitos pescadores encaravam a atividade de mariscar como algo restrito à mulher. Porém, a presença deles na mariscagem do chumbinho, tornou-se cada vez mais necessária. Assim esclarece Williams: “Em todas as nossas atividades, no mundo, produzimos não só a satisfação de nossas necessidades, mas também novas necessidades e novas definições das necessidades.”135 Disso dependia a sustentação desses homens e a de seus familiares. Gilberto Costa de Jesus (figura 7), disse que começou a mariscar desde os cinco anos de idade na companhia da sua mãe.136 Falou que mariscava durante o dia, e durante a noite pescava. Em suas mãos estão os instrumentos necessários para efetuar a mariscagem. Na mão direita está o cavador, instrumento usado para cavar a areia para desenterrar os chumbinhos. Na mão esquerda, está o puçá “um pedaço de rede preso a um aro feito de arame grosso e torcido em círculo. O aro de arame grosso termina em um cabo para que possa ser usado diretamente com a mão”.137 O jereré é outro apetrecho da pescaria, com características parecidas com as do puçá que também é usado nas mariscagens. A figura a seguir mostra com maior precisão o puçá.138

FIGURA 8: Puçá, instrumento usado na mariscagem. (Desenho adquirido via internet)

135 Raymond Williams. Marxismo e Literatura. Zahar. Rio de Janeiro: 1979, p, 94. 136 Gilberto Costa de Jesus. Entrevistado em 23 mai. 2008. 137.Jair Malisek Santos A pesca do siri patola. Encontrado no site: http://www.estacaocapixaba.com.br/textos/memoria/jair_santos/vila_velha/pesca_siri.htmil. 138 Ibidem. 86

Trata-se de um instrumento usado para armazenar os chumbinhos. Dentro dele os mariscos são lavados, para tirar a areia e a lama que ficam grudadas nas conchas. Depois são acumulados ali mesmo na areia para serem colocados em outros recipientes e serem transportados. Foi impressionante a maneira rápida e precisa que Gilberto catava os chumbinhos, velocidade permitida pelo uso adequado por tal apetrecho da pesca. A figura 9 mostra a posição corporal mais comumente utilizada para desenvolver essa atividade. O trabalho é feito de uma forma em que é exigido que fiquem agachados por muito tempo, sobre a areia, cavando-a em busca do marisco. Existe um conceito local a essa posição como um dos motivos que afastam alguns homens da mariscagem. Muitos deles associam como não desrespeitosa à mulher. Mas ao homem sugere dúvidas de sua masculinidade. Aqueles poucos homens que a exercem se justificam com a carência da oferta de outro tipo de trabalho e a falta de recursos em obterem o barco e a rede, instrumentos necessários para a pesca em alto mar.

FIGURA 9: Homem mariscando. (Fotografia de pesquisa, 2008)

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A fotografia mostra outras pessoas que mariscam distribuídas no costeiro – forma pela qual é chamado o banco de areia, onde tem em grande quantidade os chumbinhos –. Estão presentes mais alguns homens, mulheres e crianças. Para entender melhor os significados das entrevistas dos homens que disseram que a arte de mariscar é um atributo feminino, é interessante destacar a opinião de Senhor Amando, pescador casado com uma marisqueira. A opinião dele é semelhante de outros homens entrevistados durante a pesquisa.

Em 70 minha vida era melhor do que hoje, eu tinha telefone, tinha tudo em casa... O pescar de rede tava dando mais dinheiro, então, quer dizer, que as mulheres que pegavam esse chumbinho pra poder ajudar em casa também. Aí ficava, nós saia, pra pescar de rede, panhar peixe, coisa. E as mulher pra não ficar em casa assistindo televisão... Televisão, televisão era coisa pra barão, né? Então começou o que? Cavar isso aqui, o chumbinho, cavar chumbinho pra poder ajudar em casa.139

Na fala do Senhor Amando, ele lembrou da década de 70, como um período de relativa prosperidade financeira, fato analisado e apontado por Charles Santana no que se refere à fartura camponesa nesse período. “Se andarmos pelos caminhos das roças, no centro do Recôncavo Sul da Bahia, poderemos enxergar restos de um passado recente, quando pessoas viviam ativamente dos frutos da terra.”140 Além dos frutos da terra citados por Santana, também na região litorânea do Recôncavo Sul, os frutos do mar propiciavam uma certa fartura aos moradores dessa região. Senhor Amando esclareceu que nessa época tinha uma grande variedade de pescado e em grande quantidade. Era um período de fartura em que chegavam a pegar de cem a duzentos quilos de peixes em um dia de pescaria, que eram logo levados para serem vendidos em Conceição, Itaparica, Bom Despacho e Salvador localidades próximas de Salinas da Margarida. O Senhor Amando justifica como motivo dele e de outros homens não mariscarem o fato de terem a pescaria. Ir para o alto mar pegar o peixe, essa sim, segundo ele, era uma atividade mais rentável, trazia resultado imediato e satisfatório e, por isso, não mariscavam. As mulheres não iam para o mar fazer essa pescaria para ajudarem no sustento diário, elas mariscavam o chumbinho que era um trabalho visto, na visão masculina, como um passa tempo lucrável, pois era melhor

139 Amando Oliveira de Jesus. Entrevistado em 7 jun. 2003. 140 Charles D’Almeida Santana, op.cit. , p.35. 88

fazer isso a ficarem em casa ociosas. Suas palavras denunciaram um sentido de inferiorização quanto ao trabalho que as mulheres faziam. Catar chumbinho não foi um consentimento dado pelos homens às mulheres, e sim uma atividade que elas com muita propriedade realizavam independente da opinião deles. Simone Maldonado apresenta uma importante reflexão acerca da divisão dos tipos de pescas efetuadas entre homens e mulheres:

Tradicionalmente as mulheres têm sido excluídas da pesca de alto, sendo largamente conhecidos os mitos existentes sobre a sua presença nas embarcações e até mesmo o perigo do seu contato com o instrumento do trabalho dos homens.141

Dentro dessa perspectiva é visível a presença de superstições quanto à participação feminina na pesca em alto mar, observando-se um conceito mítico de que o manuseio dos instrumentos de trabalho por mulheres, pode provocar azar e prejuízos quanto ao sucesso da pescaria. Aliás, como propõe Thompson, “Homens e mulheres discutem sobre os valores, escolhem entre valores, e em sua escolha alegam evidências racionais e interrogam seus próprios valores por meios racionais,”142 embora ocorra à aceitação por parte de algumas mulheres em Salinas da opção dos homens de não praticarem esta mariscagem. Dona Dilza, marisqueira, fala a esse respeito:

A gente tinha aquilo como trabalho nosso, que era obrigação da gente. Não! Negócio de maré, marisco, é a mulher, mulher que chega, cava! Homem tinha aquela, aquele preconceito assim... Aquela vergonha de ir e de mariscar no meio da gente. Hoje em dia que tá mais liberal. Porque era coisa de mulher, aí não ia, não fazia, não ajudava a catar. A gente chegava em casa, pedia ajuda e ele dizia que não, que isso era coisa de mulher, que ia procurar outra coisa pra fazer. A gente se conformava porque já encontrava naquele ritmo, aí não estranhava mais, já achava natural. 143

No cotidiano de Salinas, é marcante a resistência de alguns homens em não realizarem a mariscagem do chumbinho, cheios de preconceitos, como apontou a marisqueira, em desenvolverem essa atividade eles davam preferência a realização de outros tipos de trabalhos. A relativa aceitação de Dona Dilza em não contar com

141 Simone Carneiro Maldonado, op.cit., p. 19. 142 Edward P. Thompson. A Miséria da Teoria: ou um planetário de erros. Zahar, Rio de Janeiro: 1981, p. 194. 143 Dilza Spínola de Souza. Entrevistada em 31 mai. 2002. 89

a ajuda do marido pode ser justificada por esse fato. Outro motivo apontado por alguns homens, para não catarem o chumbinho diz respeito ao longo tempo gasto para a realização da mariscagem. É imprescindível a paciência para se sustentar horas a fio debaixo de sol ou chuva nesse difícil ofício. Considera-se que depois de catados nas areias das praias em média 15 kg do chumbinho com as conchas e, depois de retiradas às conchas, é que se obtém 1 kg do marisco como resultado da mariscagem. Carregados desse significado, muitos homens se afastam desse trabalho em que concebem ser a figura feminina a única dotada de paciência, uma das principais características exigidas para esta labuta, bem como para a pescaria de modo geral. É curioso o fato do Senhor Amando ter trazido lembranças que aproximam prosperidade ao fato de possuir uma linha telefônica, e de possuir tudo em casa, apesar de que quando se refere ao aparelho de televisão deixa indícios de que ter televisão neste período era coisa pra pessoas ricas. Sem esquecer que,naquele período, como anota Reinaldo Lohn:

As cidades refletiriam o engajamento do Brasil nos novos tempos de sonhos de consumo de bens que exprimissem progresso e de novidades tecnológicas que reinventavam o cotidiano, como modernos automóveis e aparelhos eletrodomésticos de todos os tipos.144

Desse ponto de vista a chegada da energia elétrica em Salinas, inseriu esta cidade no engajamento dos novos tempos, como acontecia em outras localidades brasileiras. Mas, nem todos os pescadores e marisqueiras experimentaram de imediato em seu cotidiano, melhoramentos que essa tecnologia poderia lhes favorecer. Foi o que Dona Amor esclareceu. No momento em que narrava sobre este período, estava sentada no chão de sua casa, catando siri. Alguns dos membros da família presentes sentaram-se no sofá e outros no passeio da casa. Silenciosos e atentos ouviram a narrativa:

Mas, nem todo mundo tinha água de Embasa, não! Porque muitas pessoas construíram cisternas. A gente que não tinha condições de ter água da Embasa era quem se utilizava dessa água. Os próprios

144 Reinaldo Lindolfo Lohn , op.cit. , p. 309. 90

donos das cisternas, abria o portão, mandava a gente panhar a água, a gente bibia disso! Era poço, que a gente cavava, nós mesmo, pra ter água! E a água era uma água boa, que não prejudicava a ninguém. [...] A luz quando chegou para aqui, na minha época, era uma luz de poste de pau, com um gerador. Aí, chamavam a usina elétrica, chamavam a usina elétrica, aqui. Ligava assim, aquelas lâmpadas 6:00 a 5:00h, quando era 10:00, 11:00h apagava o gerador, desligava o gerador todo mundo ia dormir. 145

Dona Amor, como muitas outras pessoas que não tinham condições para usufruir desses serviços, continuou por muito tempo usando a água de poços artesianos, tanto para beber, cozinhar como para todos os outros serviços da casa. Muitas faziam suas trouxas de roupas sujas, e dirigiam-se para essas fontes para lavarem suas roupas. Sobre a energia elétrica, ela contou que só quem tinha condições é que tinha em casa esse serviço. Os pobres continuaram vivendo iluminados pelo candeeiro. A sua família e demais marisqueiras por muito tempo não conseguiram ter suas casas iluminadas com a energia elétrica, não usufruindo, diretamente, das vantagens desse serviço. Portanto, a aquisição de eletrodomésticos não ocorreu de imediato para essas pessoas, era grande a dificuldade para a obtenção de uma geladeira ou de um freezer. Os mariscos continuaram por muito tempo sendo salgados para serem conservados. A iluminação pública proporcionava às crianças a brincadeira na rua, e aos adultos, as conversas e o namoro – para aqueles casais que não podiam e não queriam o escuro – esses encontros aconteciam até o horário em que o gerador fosse desligado.

MARISCAGEM E BIODIVERSIDADE AMEAÇADAS

Uma das características básicas da atividade pesqueira é a noção da não apropriação do mar, pois ele é concebido pelas pessoas que vivem usufruindo os seus frutos, como uma dádiva da natureza. A este respeito, Maldonado argumenta: “A condição de patrimônio comum do mar, implica a sua indivisibilidade sistemática e a ausência de apropriação formal e contínua do meio.”146 Nesse contexto, a

145 Heloisa Marcelina Ramos (Dona Amor). Entrevista citada. 146 Simone Carneiro Maldonado. A caminho das pedras: percepção e utilização do espaço na pesca simples. In; DÍEGUES, Antônio Carlos (Org.) Imagem das águas: São Paulo: Hucitec. 2000, p. 60. 91

indivisibilidade dos espaços em que são realizadas as mariscagens flui “naturalmente” na consciência coletiva das marisqueiras. É deste espaço que se favorecem, centenas delas fazem-se presentes nas faixas litorâneas de Salinas há muito tempo, mas nenhuma delas se diz dona da maré.

Na década de 1990, Salinas da Margarida recebeu a instalação de empresas que exploraram áreas de sua marinha. Os empreendimentos eram voltados para interesses comerciais, direcionados para a criação do camarão em cativeiro; empreendimentos para o turismo e veranistas, comércio de produtos para a pesca e outros. De certa forma, esses investimentos geraram empregos para uma pequena parte da população, entretanto, a grande parcela do benefício foi revertida em lucro para aqueles que já detinham o capital financeiro. 147 Paralelo a existências desses investimentos, houve em Salinas da Margarida uma profunda transformação no meio ambiente. Muitas áreas de manguezais foram destruídas, fato que prejudicou a vida marinha existentes nesses espaços. Sem esquecer que cerca de “90 por cento dos peixes marinhos consumidos pela humanidade são provenientes de zonas costeiras e, destes, cerca de dois terços dependem direta ou indiretamente dos estuários e mangues”.148 A presença dos manguezais é de grande relevância para as marisqueiras que tiram desses espaços o necessário para a sua alimentação e a comercialização dos mariscos. A falta dos manguezais para o homem que vive do pescado, significa desventuras em suas vidas, e para o ambiente, perdas irreversíveis como argumenta Samuel Murgel Branco:

Alterar a paisagem típica de nossas regiões costeiras; por eliminar grandes reservatórios de águas de enchentes e grandes marés que, de outra forma, poderiam causar inundações; por acelerar o assoreamento dos portos e regiões costeiras e, finalmente, por eliminar uma das maiores fontes de alimento de que dispõe o homem, com uma produção vegetal quase duas vezes superior à da agricultura mecanizada e que é responsável pela riqueza em pescados que caracteriza as regiões costeiras bem como pela produção de alguns alimentos típicos, como o caranguejo.149

147Nesse sentido, Harvey explica que, o especulador imobiliário que tem dinheiro para esperar enquanto controla o desenvolvimento dos espaços adjacentes está numa situação muito melhor, para obter ganhos pecuniários. Ver David Harvey. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1996, p. 207. 148Samuel Murgel Branco; Aristides Almeida Rocha. Elementos de ciências do ambiente. CETESB/ASCETESB. São Paulo: 1987, p. 142. 149 Idem, op.cit. , p. 142-143. 92

A sobrevivência humana está intimamente ligada a outros ciclos de vida. Os manguezais representam uma fonte rica na cadeia alimentar de imensa fauna, e que tem sua vida constantemente alimentada através da manutenção de nutrientes que normalmente são trazidos pelos rios, pois têm em suas águas substâncias essenciais para a vida dos manguezais. Quando há quebra em algum desses ciclos ocorre uma desestrutura nos ecossistemas o que provoca uma desarmonia para o processo vital dos seres que dependem dos manguezais. Nos aterros desses espaços são construídos pontes, portos, praças, enfim, é investido um grande capital para dar lugar a áreas urbanizadas, e assim atender aos princípios civilizatórios. No entanto, é interessante ressaltar como o patrimônio cultural e natural tem ganhado reconhecimento como instrumento que ajuda a sustentar e fundamentar a personalidade do homem quanto ser social. Sandra Pelegrine faz uma reflexão a esse respeito:

A atitude de proteger o patrimônio local tem sido incentivada, de modo a conservar as raízes plurais dos povos e suas tradições culturais, uma vez que estas expressam as origens étnicas e implicam a manutenção de suas identidades.”150

Segundo Pelegrini, desde a década de 1990, existe essa preocupação pelos povos latino-americanos. Proteger o patrimônio cultural e natural representa um meio eficaz para garantir a sobrevivência das pessoas que estão ligadas diretamente a estes patrimônios. Nesse sentido, pode-se notar que em Salinas da Margarida a utilização dos recursos naturais por aquela população consiste em preservar o mar como patrimônio natural. Ela forma um grupo social que tradicionalmente vive a utilizar de forma preponderante os recursos naturais oriundos do mar. Desta forma foi fácil observar em algumas marisqueiras a preocupação na conservação deste patrimônio natural. A fala da marisqueira Lucinha traduziu esta preocupação. Quando foi questionada sobre esse problema, ela lembrou da destruição que se verifica nos manguezais, no espaço da marinha de Salinas. Ela desabafou: “Vai bater na lama que nem tainha”.151 Nesta frase, a marisqueira expôs a sua apreensão, quanto ao

150 Sandra Pelegrini. Cultura e natureza: os desafios das práticas preservacionistas na esfera do patrimônio cultural e ambiental. In; Natureza e cultura. Revista brasileira de história. Órgão Oficial da Associação Nacional de História. São Paulo: ANPUH, vol.26, nº 51, jan.-jun., 2006, p. 122 e 125. 151 Lúcia Maria Caldas Costa. Entrevistada em 24 de jan. 2008. 93

futuro daqueles que ali, sobrevivem da vida que é gerada a partir dos manguezais. A frase fez alusão àqueles que cortam os manguezais para a retirada das ostras. “O bater na lama que nem tainha”, Lucinha explicou que é quando o volume de água está bem baixo, ou não tem água na lama do manguezal e o peixe – a tainha – não encontra água para nadar até o mar. É assim que as pessoas ficarão, quando não existir mais os manguezais. Lucinha explicou que tem conversado muito com seus filhos e colegas na tentativa de conscientizá-los para a conservação desses espaços, tarefa que não tem sido fácil, pois a mesma justificou esta coleta, como meio de sobrevivência. No entanto, ela disse que é possível tirar as ostras sem cortar os galhos dos mangues e também escolher aquelas ostras que já estão em tamanho de serem coletadas. Esta forma de Lucinha agir é um exemplo de que existe a preocupação entre membros dessa população em preservar os manguezais, como patrimônio natural, uma vez que esse é campo de manutenção das famílias que vivem dos mariscos. É no espaço das areias das praias que elas se lançam vivificando uma tradição que lhes foi passada por gerações de outrora. Mesmo com o avanço tecnológico no campo da ciência moderna e diante da evolução urbana que tem atingido Salinas da Margarida, a arte de mariscar não perdeu importância na vida daquelas mulheres que se engajam com vigor na exigente peleja em prol da sustentação de suas vidas. Não obstante os avanços contemporâneos, o mar ainda é a referência central da sobrevivência de muitas famílias salinenses. Um dos exemplos da utilização extensiva das áreas da marinha é a Maricultura da Bahia S. A., que se instalou em Salinas da Margarida na década de 1990 e faz regularmente fertilizações nos viveiros. Nos períodos da retirada dos camarões, uma grande quantidade de água é liberada dos viveiros e lançada na maré. A água que sai dos viveiros, conseqüentemente, possui uma determinada quantidade de adubo que se instala nos manguezais e na vida marinha ali presente. Esta pode ser uma das explicações para justificar a riqueza de nutrientes nos manguezais que foi apontado por Rose152, proporcionando a abundância de alguns dos frutos do mar que existem em Salinas, em contraposição com as demais localidades tão próximas. No entanto, apesar de toda esta riqueza, já houve em

152 Rosangela Áurea Caetano. Entrevista citada. 94

Salinas um período em que a população que vive da maré “amargou”. Foi o que Rose apontou:

Quando a Maricultura chegou... Era a CQR, passou a PESCON, de PESCON passou a Maricultura, e eu lembro que o marisco amargou, a região toda aqui. E nós amargamos juntos. Porque nós íamos pra maré todos os dias. Catava o marisco não tinha condição de vender, pra ganhar dinheiro e não tinha condição de comer pra se sustentar.153

Rose tinha 34 anos de idade quando foi entrevistada. Formou-se em magistério, mas não exerce a profissão. Tinha um bar na orla marítima de Salinas da Margarida e outro em Salvador, onde vendia, entre outras coisas, frutos do mar. Vivia desenvolvendo mecanismos para desdobrar-se entre duas cidades. Este viver era mais uma forma de luta que impregnava seu cotidiano atingido pelo amargo dos mariscos, que provocou uma calamidade na cidade. Pescadores, marisqueiras, donos de bares e restaurantes e demais pessoas, que de maneira direta ou indireta precisavam dos produtos que vinham do mar, passaram dificuldades. Foram afetados peixes, caranguejos, siris e tantos outros crustáceos. Segundo as lembranças de Rose, o problema permaneceu durante dois a três meses. Ela lembrou que isto ocorreu em um período da Semana Santa, tempo da quaresma em que alguns cristãos tiram à carne vermelha e o frango de suas refeições diárias, e fazem mais uso de peixes e de outros frutos do mar. Rose tinha 34 anos de idade quando foi entrevistada Tiveram muitos prejuízos as ganhadeiras e demais atravessadores, pessoas que compravam os produtos em Salinas e em outras localidades vizinhas para venderem em cidade mais distantes. Não foi possível vender aos turistas que chegavam à cidade para o feriado da Semana Santa, apesar de que alguns tentaram vender esses alimentos à pessoas que desconheciam o problema, como Rose narrou. Muitos atribuem o motivo desse desequilíbrio ecológico a substâncias nocivas que foram lançadas irresponsavelmente nas águas da maré, e que trouxe tanto prejuízo. Thompson em seus estudos analisa como a plebe da sociedade inglesa do século XVIII recebia as inovações capitalistas que se processavam no interior de sua

153 Idem. Entrevistada em 15 fev. 2003.

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cultura “como uma exploração, a expropriação uso de direitos de uso costumeiros, ou a destruição violenta de padrões valorizados de trabalho e lazer.”154 De toda sorte, as lembranças de Rose dizem da extrema importância da mariscagem na vida da população. A sua escassez é traduzida na oralidade como algo amargo tanto para os frutos do mar como para as pessoas, como uma forma de experimentar a inovação capitalista. São recordações que revelam o quanto é importante essa prática secular em Salinas, constitui-se numa dimensão fundamental do cotidiano do lugar. A sua interrupção, mesmo que de curto prazo, provoca depoimentos que tratam de desventuras e infortúnios em suas vidas, enfim, atos irresponsáveis e inconseqüentes gerados pela ação do homem na natureza com a finalidade apenas de beneficiar um pequeno grupo. Tais atitudes demonstram falta de preocupação com a totalidade das famílias que vivem com os frutos do mar. Para Pelegrini, foram irresponsabilidades que, durante o Século XX, concorreu com o fato de que “a noção de patrimônio ambiental urbano amplia-se e também passa a ser considerada fator de reconhecimento dos núcleos históricos”.155 Ganham importância os manifestos sociais que lutam pelo equilíbrio entre o homem e o meio ambiente. As chamadas populações tradicionais surgem como possibilidades de manutenção e conservação do meio ambiente cuja preservação da cultura, valores e tradições estão intrinsecamente ligados ao meio natural. Em Salinas da Margarida, era possível coletar mariscos em áreas mais próximas, no entanto esses espaços foram gradativamente tomados. Aquelas que desejassem mariscar nesses locais o faziam com mais rapidez, era possível realizar várias viagens de ida e vinda da maré até a casa, já que a distância que se percorria levando o marisco era menor. Com a extensiva apropriação da marinha de Salinas, o que restou para as pessoas foram alguns estreitos caminhos até o costeiro, local distante e de maior quantidade de mariscos (ver figura 10 e 11).

154 Edward P. Thompson, op.cit., p. 19. 155 Sandra Pelegrini, op.cit. , p. 119. 96

FIGURA 10: Viveiros da Maricultura e locais das mariscagens. (Croqui produzido por Ana Louíse Gomes Cruz durante a pesquisa de campo, 2008).

Legenda: I- Mercado das Mariscadeiras; II- Ponte que dá acesso aos viveiros da Maricultura; III-Viveiros para criação de camarão da Maricultura; IV- Guarita da Maricultura; V- Via de acesso da Maricultura ( lado esquerdo, entrada proibida); VI- Ponte que dá acesso a Praia do Amor, no Camburuí; VII- Costeiro, local de mariscagem; VIII- Associação das Mariscadeiras, chamada de Casa das Mariscadeiras; IX- Capela de São Pedro, chamada de Gruta; X- Casa do pescador; XI- Costeiro, local de mariscagem.

Na figura11, outro caminho que é percorrido para a realização das mariscagens: 97

FIGURA 11: Viveiros da Maricultura e locais das mariscagens. (Croqui produzido por Ana Louíse Gomes Cruz durante a pesquisa de campo, 2008).

Legenda: I- Rua da Banca; II- Guarita da Maricultura; III-Ponte que dá acesso aos viveiros da Maricultura IV-Ruínas da Companhia Salinas da Margarida (companhia que explorava o sal em Salinas); V- Casa das Mariscadeiras (onde funciona a Associação das Mariscadeiras); VI- Capela de São Pedro, chamada de Gruta VII- Casa do Pescador VIII- Residências; IX- Costeiro, local de mariscagem; X-Viveiro para criação de camarão da Maricultura; XI- Área da Maricultura.

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As figuras 10 e 11 apresentam caminhos usados por pescadoras e pescadores em seu dia-a-dia de labuta. Para chegarem aos costeiros – locais das mariscagens – essas pessoas precisam andar pelas passagens, entre os viveiros da Maricultura, antigos tanques construídos desde o período da Companhia Salinas da Margarida, com a finalidade de armazenar a água para a obtenção do sal, através da evaporação. A Maricultura ampliou esses tanques – chamados também de viveiros – para a criação do camarão em cativeiro. O que podemos observar é que a interação do homem na natureza provoca uma constante mutação de conceitos em conflitos, entre o que é fundamental para o nosso bem estar pessoal e social como sendo o homem parte singular de um todo, e o que é movido baseado apenas no interesse do crescimento urbano capitalista. Para Raymond Williams, quando ocorre o uso da terra como objeto de exploração com fins lucrativos,

Os efeitos sobre as comunidades humanas, bem como sobre formas de vida tradicionais e com peculiaridades locais, são em muitos casos bem semelhantes. A terra, encarada em termo de fertilidade ou de riqueza mineral, em ambos os casos é vista abstratamente. Ela é utilizada no empreendimento que, durante certo tempo, deixa de lado todas as outras considerações.156

Na incessante busca pelo lucro capitalista, o valor concreto durável dos espaços naturais é sucumbido e suplantado pela ganância que não tem uma visão prudente e dual de um benefício humano que respeite também o ciclo natural da vida. Em Salinas, tudo indica que as mudanças ocorridas no meio ambiente sintonizam-se com as reflexões de Williams. As áreas que foram desmatadas correspondiam a espaços necessários à implantação de empresas. A cidade obteve ascensão econômica no âmbito estadual, já que contribuiu economicamente com impostos, sem esquecer que “o modo de produção capitalista continua a ser, em termos de história do mundo, o agente mais eficiente e poderoso de todos estes tipos de transformação física e social.”157 Esses empreendimentos foram sinônimos de “progresso” e “desenvolvimento” e, para muitas famílias, empregos. Nesse

156 Raymond Williams. O Campo e a Cidade na História e na Literatura. São Paulo: Cia das Letras, 1990, p. 392. 157 Idem, op. cit. , p. 393. 99

contexto, serve como um alerta um dos princípios da corrente chamada de economia ecológica que Ademar Ribeiro Romeiro apresenta:

A existência de limites absolutos e o risco de perdas irreversíveis que podem ser catastróficas em um contexto de incertezas científicas irredutíveis tornam absolutamente necessário que se defina coletivamente, e numa atitude de precaução, os limites (escala) para o consumo total de bens e serviços ambientais.158

O emprego de atitudes coletivas talvez poderá regular e direcionar a forma como os bens e serviços ambientais estão sendo explorados; no entanto, tais atitudes entram em oposição a dimensão de uma sociedade que tem como característica marcante o consumo. A sustentabilidade seria, para Romeiro, transformar a mentalidade do ter em uma mentalidade de ser, sem, no entanto, abrir mão da dinâmica cientifica e tecnológica que caracteriza o processo civilizatório. As restrições à acumulação de capital são para que se evitem perdas irreversíveis ambientais e sociais. Esses princípios se associam com as medidas do processo de gestão ambiental que é explicado por Aracéli Cristina de Sousa Ferreira: “o estabelecimento de políticas, planejamento, um plano de ação, alocação de recursos, determinação de responsabilidades, decisão, coordenação, controle.”159 São algumas das formas que visam fundamentalmente o desenvolvimento sustentável. Aracéli Ferreira esclarece que a intensidade com que os empreendedores capitalistas vêm agindo no meio natural é uma demonstração de que pouco se está levando em conta a degradação dos mesmos.

Embora esse seja um objetivo a ser alcançado, num mundo que se depara com questões tão primordiais como a fome, a educação, a saúde; enfim, condições de sobrevivência do homem que a humanidade ainda não conseguiu resolver.160

Nessa perspectiva, as universidades entram nos centros das discussões e surgem como possibilidades de criarem condições para resolverem ou amenizarem

158 Ademar Ribeiro Romeiro. Economia ou economia política da sustentabilidade. In: MAY, Peter H. LUSTOSA, Maria Cecília. VINHA, Valéria da (Orgs) Economia do Meio Ambiente. Teoria e Prática. Rio de Janeiro: Campus, 2003, p. 25. 159 Aracéli Cristina de Sousa Ferreira Contabilidade Ambiental. Uma informação para o desenvolvimento sustentável. São Paulo: Atlas, 2003, p. 33. 160 Idem, op. cit. , p. 33. 100

essas situações, contudo encontram-se em uma cruzilhada, pois são centros formadores de tecnologia, opiniões e concentram uma gama de valores humanistas ao mesmo tempo em que são representantes do Estado.161 Assim, como núcleo tecnológico que busca atender a um chamado cada vez mais exigente de um mercado consumidor, os profissionais que são formados por essas universidades, em muitos momentos devem ponderar as suas ações na possível utilização desenfreada dos recursos ambientais, pois elas podem gerar a ignorância do conhecimento, onde se sabe as conseqüências nocivas de suas ações e ainda assim, alguns as praticam na cegueira egoísta do capitalismo. Em contraposição a mentalidade desse uso descomedido, as universidades hospedam, desenvolvem e propagam idéias de conscientização, preservação e sustentabilidade. E como Antonio Moraes aponta, o desenvolvimento tecnológico representa de um lado a salvação e do outro o perigo para a humanidade. Ao que tudo indica, a questão ambiental é bem evidente, e deve ser bem cuidada.

161 A esse respeito ver, Antonio Carlos Robert Moraes. Meio Ambiente e ciências humanas. São Paulo: Hucitec. 1997, p. 60. 101

CAPITULO III

RELAÇÕES NOS ESPAÇOS DA MARISCAGEM

As empresas trazem o progresso, mas muitas vezes prejudica o solo nativo. [...] Em Valença os viveiros são 17 km fora da cidade. Aqui, você passa ali, você vê viveiro dentro da cidade. Edson Benedito Caetano

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TERRA OCUPADA

Atendendo ao “progresso”, Salinas da Margarida, conhecida como Ponta da Margarida, sofreu mudanças para dar lugar aos novos empreendimentos que o mercado exigia. Seus espaços naturais foram alterados, para atender a esse momento inaugurado pelos empreendedores. Uma das particularidades atribuída à companhia salineira foram as mudanças na flora em Salinas. A instalação da companhia estendeu-se por boa parte da marinha. Como lembrou Almir de Oliveira, até mesmo uma linha férrea foi instalada, cujo propósito foi transportar o sal, interligando todos os estabelecimentos aos depósitos e à ponte por onde escoava a produção. Utilizaram os espaços para a construção da linha férrea, construção dos prédios residenciais dos proprietários e os escritórios.162 A figura 12 mostra uma das construções dessa empresa:

FIGURA 12: Prédio onde funcionava o Antigo Escritório da Companhia Salinas da Margarida. (Fotografia de pesquisa, 2007).

162 Ver Almir de Oliveira. Salinas da Margarida; Notícias Históricas. Minas Gerais: Minas Editora: 2000, p. 118. 103

O prédio que se observa em destaque na fotografia é um dos investimentos dos proprietários da empresa que explorava o sal em Salinas. Trata-se do local onde funcionava o escritório da Companhia Salinas da Margarida, localizado em frente ao mar cuja rua recebeu o nome de Avenida Comendador Campos, nome de um dos sócios da Companhia. A seguir, ao lado do escritório, está um hotel. O antigo escritório faz parte na atualidade do hotel e funciona como restaurante. O escritório foi construído, no período da implantação da Companhia, a qual foi formada no ano de 1891. Junto a ele foram construídos o casario e as ligações férreas. 163.

Como é possível perceber nas analises realizadas por Marshall Berman, no processo de domínio capitalista, o que pode significar novo nesse momento já não o será, segundos depois.164 De maneira mais arrojada ocorre um enfrentamento de capitais, saberes, vaidades e tecnologias os quais mexem diariamente com o modo de viver das pessoas e de tudo que é edificado ao seu redor. É uma capacidade feroz de construir e de se reconstruir a todo instante. O lucro é o objetivo que deve ser alcançado a qualquer custo.

Senhor Serafim, morador de Salinas lembrou que, antes de seu fechamento, a Companhia Salinas da Margarida além do sal explorava também em suas terras a piaçava, o dendê e o azeite. Sentado na porta de sua casa, com entusiasmo ele trouxe com suas palavras esse momento:

Esse era o lucro da fabrica o dendê. Tinha fabrica do dendê, a piaçava. Nisso o sal já tinha caído de produção. Muitas pessoas trabalhavam catando dendê, subindo em pé de dendê pra cortar o cacho. As mulheres catando o dendê no chão e outras trabalhavam na fábrica fazendo o azeite. Parte dessas mulheres hoje, algumas são mariscadeiras.165

Apesar desse estudo não trazer como marco temporal o período da implantação em Salinas da Companhia Salinas da Margarida, é interessante observar que os investidores centralizaram em suas mãos determinados lugares de

163 Idem, op.cit. , p.117 e 131. 164 Ver, Marshall Berman. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 92. 165 Serafim de Souza Conceição. Entrevistado em 26 de set. 2007.

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Salinas que possibilitaria um próspero retorno lucrativo. Quando o sal já não possibilitava mais os lucros esperados, esses empreendedores buscaram ganhar com outras fontes como o dendê e a piaçava.

No espaço que pertenceu a Companhia está um hotel (fig. 13), ao lado, o antigo escritório e logo depois a instalação onde funcionou a fábrica Santa Bárbara, que fazia o beneficiamento do siri para exportação.

FIGURA 13: Empreendimentos imobiliários da orla marítima de Salinas da Margarida. (Fotografia de pesquisa, 2007).

Essas construções foram realizadas em boa parte da orla de Salinas. A cidade que é, também, conforme José D‟ Assunção Barros, “a sede de uma cultura material específica. Sinais, placas de trânsito, bancas de jornal, postes, viadutos, arranha-céus – são estes os artefatos da cidade moderna.”166 Nesse sentido, para inserir a área em frente ao hotel, dentro da perspectiva do moderno e propícia ao banho de mar, quantidades significativas de areia foram colocadas para encobrir a lama do manguezal ali presente. Esse local não era necessariamente o das

166 José D’Assunção Barros. Cidade e História. Rio de Janeiro: Vozes, 2007, p. 83 105

mariscagens. No entanto, com o aterro junto com o lamaçal, parte da vida marinha foi também transportado, o que prejudicou o meio ambiente de trabalho de mariscagem.

Para Oliveira, “A devastação do passado, fruto direto da insensibilidade que nasce da ignorância, prosseguiu sem qualquer controle.”167 A crítica expressa sua insatisfação quanto à falta de cuidado com o patrimônio arquitetônico que foi deixado pelos antigos proprietários da empresa. Pouco a pouco novos investidores adquiriram as antigas edificações e às suplantaram, sem o cuidado da preservação histórica. Entretanto, desse período ainda restam o escritório, a residência do Comendador Campos e a Igreja de Nossa Senhora do Carmo.168

A figura 14 mostra um pouco da relíquia arquitetônica salinense:

FIGURA 14: Residência do Comendador Campos. (Fotografia de pesquisa, 2003.)

A foto mostra a residência do Comendador Campos, bastante arejada, rodeada de janelas, varanda e de pés de tamarindo. Porém, como Senhor Serafim

167 Almir de Oliveira, op.cit. , p. 132. 168 Idem, op. cit. , pp.132-133. 106

esclareceu, esta residência era usada pelos proprietários para receber visitas. A casa que a família morava era em uma outra, próxima dessa que já não existe mais. Em decorrência do sucesso da exploração do sal, Salinas da Margarida passou por certo desenvolvimento, notado através das construções realizadas no local, como a residências dos proprietários da fábrica e a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, considerada por algumas pessoas, na época, a mais bela do Recôncavo. Para atender a um antigo desejo do seu pai, o Coronel Manoel de Souza Campos Filho construiu a Igreja que teve as obras finalizadas em 1914.169 .

A Igreja está localizada próxima ao cais. Senhor Serafim lembrou que no passado, em períodos de férias, as freiras costumavam banhar-se com outras jovens na frente da Igreja. Em frente à Igreja tem um cruzeiro, com um lado pendente em conseqüência das águas do mar que tem avançado com o passar do tempo, em determinados períodos do ano. 170 Com o processo de urbanização, entre outras transformações, a rua onde está localizada a Igreja foi calçada e houve a construção do cais.

Senhor Serafim afirmou que bancos de areia que se formavam em áreas mais distantes desse cais, com o tempo foram se formando em locais mais próximos. É possível que com a chegada das construções ocorridas na orla marítima de Salinas, inclusive do próprio cais, tenha provocado o avanço das águas e isso tenha empurrado a areia fazendo com que os bancos se formassem em outros lugares.

Senhor Edson, outro morador de Salinas, trouxe através da oralidade mais informações sobre a ocupação do ambiente marinho em Salinas. Ele lembrou que os tanques para a aquisição da água do mar para o processo de obtenção do sal, foram construídos pela Companhia Salinas da Margarida, que anos depois passaram para a Companhia Química do Recôncavo – CQR que também explorava o sal, e a Pescon – Pesqueira do Recôncavo Ltda. que criava camarão em cativeiro. Na década de 90, a maricultura foi implantada em Salinas ocupando esses tanques, os quais foram ampliados e continuaram a servir como viveiros para a criação de camarão.171

169 Idem, op. cit. , p.146. 170 Serafim de Souza Conceição. Entrevista citada. 171 Edson Benedito Caetano. Entrevistado em 10 set. 2007 107

FIGURA 15: Tanque da Maricultura da Bahia onde são criados os camarões com destaque para a cerca. (Fotografia de pesquisa, 2007).

Essa fotografia revela um dos viveiros da Maricultura da Bahia. Uma imagem intrigante. Onde estão as marisqueiras e seus maridos: os pescadores? A esse respeito, é bom registrar aquilo que Marshall Berman busca sustentar em seus estudos: “Apesar de todos os maravilhosos meios de atividade desencadeados pela burguesia, a única atividade que de fato conta, para seus membros, é fazer dinheiro, acumular capital, armazenar excedentes.”172 Foram esses os propósitos daqueles empreendedores que desfrutaram do ambiente salinense.

Foi interessante buscar saber das marisqueiras qual a repercussão da maricultura em seu trabalho cotidiano. Apesar de muitas serem relutantes em falar sobre o assunto, a marisqueira Júlia, sem constrangimento, lembrou como os moradores utilizavam-se dos tanques quando estavam em desuso:

Porque esses viveiros foram abandonados pela Salinas. Salinas, era uma empresa aqui que fazia sal. Que veio pra aqui, fazia sal aí fez todo esse viveiro pra fazer sal, produzia sal, no qual eles foram embora, abandonaram esses viveiros, no que ficaram, a todos eles começou a entrar água salgada, criar marisco, a criar siri, caranguejo, ostra, sururu. Essas coisas... Então a gente aproveitava

172 Marshall Berman , op.cit. , p. 92. 108

essas área mais perto e a gente fazia lugar... De qualquer lugar a gente entrava, chegava mais perto e agora, depois que a Maricultura chegou eles cercaram tudo isso.173

A chegada de uma nova empresa provocou expectativa nas pessoas. Salinas não oferecia muitas possibilidades de emprego. Era o mar, a fábrica onde a maioria das pessoas tirava seu sustento. Os tanques usados para a aquisição do sal, que a marisqueira fez referência ficaram desativados e serviram como local para a criação e da vida marinha ali presente. Pelo fato desses viveiros estarem localizados mais próximo das margens e consequentemente mais perto de suas casas, era possível fazer a coleta dos mariscos por mais de uma vez durante o dia. Os cercamentos que a imagem traz desses espaços geraram ansiedades e conflitos entre a população e os empresários. Ambos buscaram meios de tomarem posse do que lhes pertencia. Marisqueiras e pescadores burlaram, sempre que foi possível, determinações impostas pela Maricultura. É o que Julia conta:

Tinha gente que cortava a cerca. Era gente que passava por de baixo de cerca, quando achava uma brecha aqui, alguém já tinha cortado, a gente passava. Eu nunca cortei nenhuma, viu? Porque eu nunca tive essa coisa de levar ferramenta pra cortar. Eu acho que levavam ferramenta, começavam a tirar as madeiras, acho que gente de mais perto pra queimar, não sei. Então aí a gente aproveitava aquela brechinha aí, se não tinha nenhum vigia, a gente entrava ali pra chegar mais perto, no lugar que tinha chumbinho.174

Esses momentos eram vividos plenos de tensão, medo, correria. Era uma aventura conseguir passar nas aberturas que alguém tinha feito, e chegar de forma mais rápida aos locais onde estavam os mariscos. Tinha sempre o perigo de ser impedida pelo vigia e ser obrigada a voltar. No costeiro, local da mariscagem, acontecia o desabafo, que vinha acompanhado por xingamentos para a empresa que tanto proibia a mariscagem nos viveiros e como dificultava o acesso a outros locais.

Com as cercas, outros caminhos tiveram que ser usados para dar acesso a outros lugares de mariscagem, através da vegetação e entre viveiros e canais.

173 Júlia Pinheiro dos Santos. Entrevistada em 13 fev. 2003. 174 Idem. Entrevistada em 13 fev. 2003. 109

De algum modo, a apropriação de praias e manguezais em Salinas assemelha-se a outras tantas:

O que as companhias de petróleo e de mineração fazem é o mesmo que faziam os proprietários de terras, o mesmo que faziam e fazem os donos de grandes fazendas coloniais. E muitos, seguindo seu exemplo, passaram a encarar a terra e suas propriedades como objetos de exploração com fins lucrativos: um lucro tão nítido que as necessidades muito diversas das diferentes comunidades locais são ignoradas, muitas vezes de modo brutal.175

Raymond Williams fez questão de frisar que a apropriação extensiva da terra realizada pelo homem é uma característica marcante do capitalismo que atende aos interesses de uma pequena esfera da população. No entanto, como assinala Milton Santos “O território em que vivemos é mais que um simples conjunto de objetos, mediante os quais trabalhamos, circulamos, moramos, mas também um dado simbólico.”176 Essas pessoas tiveram que articular formas para se locomoverem nesse ambiente com o qual se sustentavam, pois a existência delas, a grande maioria, ficou a mercê dos interesses do pequeno grupo que monopolizava para si a gratuidade da natureza. O lucro foi o motivo das ações nocivas ao meio ambiente que, ao mesmo tempo, levavam à apropriação de bens que não lhes pertenciam.

OUTRAS VEREDAS

O transporte marítimo foi o meio utilizado nas viagens de Salinas da Margarida a Salvador, através de lanchas que diariamente faziam o transporte de passageiros. A partir da década de 70 é que teve início à ligação rodoviária com a estrada BA-001, cujo acesso conduz ao terminal do sistema Ferry Boat, em Bom Despacho, na Ilha de Itaparica. Com a construção dessa estrada, deu-se origem anos depois, o serviço de ônibus intermunicipal e outros serviços de transporte coletivo, o que ocasionou o fim dos transportes de passageiros por via marítima, a

175 Raymond Williams. O Campo e a Cidade na História e na Literatura. São Paulo: Cia das Letras, 1990, p. 392. 176 Milton Santos. O espaço do cidadão. São Paulo: EDUSP, 2007, p. 82. 110

não ser em alguns casos de lanchas particulares. Senhor Edson fez a sua interpretação sobre esse final do transporte coletivo marítimo:

No momento que aconteceu a falta de manutenção, foi ficando precária, entendeu? Aconteceu vários acidentes, parava no meio do mar, acontecia esse problema e aí foi acabando esse tipo lancha. Foi chegando as estradas, entendeu? E aí a lancha acabou ficando lá como sucata.177

Senhor Edson tem 49 anos de idade, com 9 anos mariscava com a mãe. Como ele disse, é “pai de uns 10 filhos”178 e tem uma neta: 11 filhos. Ele era o mais velho dos irmãos. Com a idade de 19 anos foi ser funcionário público, trabalhava como polícia militar e anos depois saiu da polícia e retornou à Salinas. Ao retornar à terra natal, ao trabalho de pescador, teve que se adequar à nova forma de se locomover. Muitos gostaram dessa mudança, outros não. Júlia trouxe um pouco do que significou para as marisqueiras essa modificação:

Não ficou pior a estrada, ficou pior o jeito. Porque ela já chegava, ela já saltava ali no Mercado Modelo e já vendia tudo ali. Então, quando passou viajar de ônibus, mãe chegava aqui se queixando muito, porque tinha que descer do ônibus, ai tomar uma kombi pra voltar, pra vir pra cá. Quer dizer já se tornou tudo mais caro. Você pagava, só pagava um transporte, que é a lancha Albatroz.

Enquanto Júlia expunha essa situação Dona Sofia, mãe de Júlia estava presente e atenta ao que a filha dizia, infelizmente não pôde interagir na conversa por ter sido vítima de um AVC, e já não falava com muita clareza. Mas demonstrava entender tudo que era conversado e sempre pronunciava algumas palavras para falar algo que Júlia lhe perguntava. A mudança do transporte provocou para as marisqueiras novas formas de adaptação para a locomoção e venda de seus produtos. Mas, como assinala Perrot, “o que importa reencontrar são as mulheres em ação”179, que, perspicazes nos momentos de crise, souberam em vários momentos da história acionar estratégias para saírem de situações adversas. Assim, para as marisqueiras já não era chegar em Salvador, saltar no Mercado Modelo e vender os mariscos. Novos trajetos

177 Edson Benedito Caetano. Entrevista citada. 178 Idem. Entrevistado em 10 set. 2007. 179 Michelle Perrot. Os Excluídos: operários, mulheres, prisioneiros. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p, 187. 111

marcavam o seu cotidiano: a locomoção via terrestre, chegar em Bom Despacho, pegar o Ferry Boat, lá pegar uma Kombi e ir até o local da venda dos mariscos. Para aquelas que não tinham ponto certo e freguesia certa, foram ficando ali mesmo, em São Joaquim, logo que saltava do Ferry Boat,. Sobre a construção dessa estrada, o jornal A tarde noticiou que o Consórcio Rodoviário Intermunicipal, em determinação com o plano da Secretária dos Transportes, construiu 420 quilômetros de estradas municipais, a maioria delas localizadas nas regiões do Recôncavo e do Litoral Norte. Dentre os municípios que o jornal citou estava Salinas da Margarida.180 Esse mesmo jornal divulgou nota sobre a chegada do sistema Ferry Boat, esclarecendo que, de acordo com a Secretária dos Transportes e Comunicações, a partir do dia 31 de Abril de 1970 o sistema Ferry Boat já estaria à disposição dos baianos, ligando Salvador ao município de Nazaré, com acesso à rodovia BR-101. O jornal apontava deficiência de outras linhas da Companhia de Navegação Baiana que dava acesso a Salvador, apresentava a nova via de acesso à capital baiana como um sistema de características modernas que corrigiria essas falhas e que aliviaria o trânsito na estrada Rio – Bahia. O tom indicava uma satisfação generalizada. Esse aspecto foi apontado por Castellucci que advertiu quanto à forma em que os meio de comunicação divulgaram esses empreendimentos capitalistas. A idéia era defender esses investimentos como benfeitorias que alcançaria a todos.181 Contudo, na Câmara Municipal de Salinas, os vereadores discutiam sobre os serviços oferecidos pela Companhia de Navegação aos moradores de Salinas. O vereador e Vice-Presidente da Câmara João Ferreira Joazeiro trouxe ao plenário comentários a respeito da chegada de um novo navio, para transporte dos passageiros em substituição a lancha Albatroz que se encontrava em péssimas condições. Acusou o dirigente da Companhia de Navegação de vender os bilhetes de passagens para outras localidades e o mesmo se recusava a vender para os salinenses: dizia não haver talões de passagens para essa localidade. Outro

180 A Tarde, 13 Fev. 1970. Consórcio Rodoviário aprontou 420 Km de Estradas Municipais. 181 A esse respeito ver, Wellington Castellucci Júnior. Pescadores da Modernagem Cultura, Trabalho e Memória em Tairu Bahia: 1960-1990. Dissertação de mestrado. PUC, São Paulo: 1999, p. 25.

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Vereador Leonardo José de Santana apontou sobre a importância da estrada de rodagem e os benefícios que iria trazer para os moradores de Salinas182 Pode-se concluir que muitas marisqueiras gostaram da chegada dessa estrada e do novo meio de transporte. Elas apontaram como fator positivo dessa mudança, a diminuição do perigo nas viagens, os naufrágios, o mar violento, a chuva, os ventos fortes, que tanto marcaram suas memórias. Foram muitas as situações de dores e aflições que vivenciaram durante as viagens marítimas. Essa nova maneira de viajar surgia como uma possibilidade de segurança em suas idas e vindas à capital baiana. Apesar disso, experimentaram formas diferentes de desventuras nesse novo trajeto. Foi o que Dona Amor retratou:

Saia daqui 4:30h da manhã, chegava no ferry 5:40h, cinco e pouca e pegava o ferry de 6:00h. Comprava a passagem do ferry, de povão ida e volta. A gente não pagava mais o ônibus coletivo, porque dali daquela área mesmo a gente vendia o marisco e dependendo se a gente fosse em outro lugares a gente pagava o coletivo. Mas não era necessário a gente sair, porque muitas vezes demorava de vender, demorava mesmo de vender. Hoje tá mais fácil, e antes era mais dificultoso. A gente demorava de vender, e quando retornava pra casa... Muitas vezes que tinha greve também [...] Nós passava aquela noite de cansaço, e quando dormia aquele pouquinho, despertava e os guardas querendo conversar com a gente, vinha distraia até o dia clarear. Às vezes, quando eles tinha o plantão que já iam embora, eles cediam aquelas quentinha prá gente pra passar o dia. Ou eles mesmo chegavam assim naqueles bar... Porque antes não era rodoviária. Na época da Viazul não era rodoviária, não. Era só um abrigozinho que a gente ficava ali naquele abrigo, só pra pegar os carros. Não tinha como a gente se aquecer naqueles abrigo, não. Os policiais botavam a gente no modulozinho que só tinha dois bancos, um sanitário e aquele vãozinho da gente ficar. Aquecia a gente ali.

Com a construção da estrada e conseqüente mudança dos meios de transportes, as marisqueiras inventavam novas rotinas. Retornar para Salinas pelo sistema Ferry Boat poderia significar que teriam de enfrentar outras adversidades. Por demorarem mais de vender os mariscos em Salvador, se atrasavam para a travessia e não era sempre que encontravam transporte de Bom Despacho para Salinas. Isso acontecia, algumas vezes, por motivo de greves que paralisavam o

182 Ata que registrou a opinião do Vereador Leonardo José de Santana sobre a estrada e suas vantagens como meio de comunicação (ACMSM) de 23 de abril de 1971. f. 109.

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transporte coletivo ou simplesmente pelo fato dos ônibus e caçambas que faziam o trajeto já terem partido. O sentimento de impotência que lhes vinha nessas circunstâncias era amenizado com os gestos de camaradagem que foram solidificados com as próprias colegas de trabalho e com os policiais que trabalhavam de plantão em Bom Despacho. Era muito válido poder contar com aquele “vãozinho” do módulo policial, o cafezinho ou até mesmo a quentinha que eles lhes ofereciam. Mesmo sabendo que correriam o risco de não acharem mais o transporte para Salinas, era preferível pernoitar em Bom Despacho a ficarem em Salvador. Lá sim, o perigo era maior de passarem a noite desabrigadas, no relento. Entretanto, como lembrou Dona Amor, havia perdas irreversíveis como a de alimentos perecíveis, como a carne de boi fresca, que compravam na capital baiana. Quanto a isso nada podiam fazer, o jeito era tentar tirar um cochilo ou se distraírem conversando com os policiais enquanto aguardavam o amanhecer que traria o transporte que as levaria para casa. A impressão é a de que não mediam dificuldades. A prioridade do amanhecer até o final o dia recaia em dar conta do que a vida lhes deu para tomar conta. Ao acordar já conseguiam vislumbrar as dificuldades que poderiam vir a sofrer. Dona Amor cautelosa quanto às dúvidas do dia e horário que retornaria para casa quando viajava para vender os mariscos, costumava dizer aos filhos que sabia a hora que saia, mas não sabia a hora que chegava. Tinha esse cuidado de deixá-los prevenidos quanto à incerteza do regresso no percurso à Salvador. Tipos diferentes de trabalhos permitiram que essas mulheres andassem por variados espaços. Rose é um exemplo: formou-se em magistério, mas não exerceu a profissão. Tinha um bar na orla marítima de Salinas da Margarida e outro em Salvador, onde vendia, entre outras coisas, frutos do mar. Vivia desenvolvendo mecanismos para desdobrar-se entre Salvador e Salinas da Margarida. Este viver era mais uma forma de luta pela manutenção de sua vida e de sua família.

Muitas dessas mulheres foram trabalhar na Santa Bárbara, fábrica instalada em Salinas e que fazia o beneficiamento de um fruto do mar: o siri. Eles eram pescados nas águas da Baía de Todos os Santos por pescadores de Salinas e de outras localidades vizinhas. Os pescadores vendiam para a Santa Bárbara. Na 114

fábrica, eles eram fervidos em caldeiras e após o cozimento passavam pelo processo de catar – o alimento era retirado da casca, selecionado e enlatado – para serem exportados para os EUA. Mulheres e homens desenvolviam esse trabalho dentro da fábrica. As marisqueiras nada tinham de dóceis e submissas no lar, estavam sempre na intenção de solucionar seus problemas cotidianos. Algumas delas, inclusive, saíram da atividade que realizavam para se empregarem na Santa Bárbara. Em conversas mantidas com Dona Reinalda, ela contou do grande transtorno que era trabalhar nesse local. Pois eram pouco ventilados, e em altíssima temperatura, devido às caldeiras que funcionavam em pleno vapor para o pré-cozimento dos siris. Para entrar na fábrica, Dona Reinalda disse que tomava banho, e tinha que entrar molhada para poder suportar o calor do lugar. Apesar da necessidade que tinha do emprego, não conseguiu permanecer por muito tempo. Logo teve que sair por estar com problemas cardíacos. O que demarcava o ritmo habitual dessas mulheres eram as estratégias elaboradas para conseguirem cumprir o duplo papel de operária e mãe de família, submetidas a um tempo demarcado, em espaços insalubres e desenvolver tarefas repetitivas, cumprir produção, estar vulnerável as investidas dos superiores. Ao mesmo tempo essa mulher era também dona de casa e tinham que comprar, lavar, passar, cozinhar, limpar, arrumar e amar. Cabia a elas a cada dia viabilizarem condições para corresponderem aos compromissos os quais estavam imbuídas. Dona Reinalda era marisqueira quando começou a trabalhar na Santa Bárbara. Estava acostumada a trabalhar em um ambiente livre, sem paredes e pessoas que conduzissem a sua rotina diária de trabalho, respeitava apenas as regras da natureza. Trabalhar na fábrica significou para ela, além de um salário fixo, direito trabalhista. No entanto, sentiu fortemente de ter que suportar uma outra rotina, a de ser comandada por um chefe, ter que seguir um horário rigorosamente controlado, dar conta da produção, conviver várias horas com pessoas com as quais nem todas tinham afinidades. Ainda tinha que dar conta da dupla jornada, chegar em casa e cuidar dos afazeres domésticos. Essas foram algumas das dificuldades enfrentadas por ela, dentro da Santa Bárbara. Essa narrativa foi feita com palavras e expressões de dor e fadiga, por uma marisqueira que teve a saúde fragilizada diante desse cotidiano. Assim, depois de 115

um ano e dez meses, não conseguiu mais suportar o trabalho e se aposentou. Afinal, como Perrot esclareceu:

As mulheres não são passivas nem submissas. A miséria, a opressão, a dominação por reais que sejam, não bastam para contar a sua historia. Elas estão presentes aqui e além. Elas são diferentes. Elas se afirmam por outras palavras, outros gestos. Na cidade, na própria fabrica, elas têm outras praticas cotidianas, formas concretas de resistência – à hierarquia, à disciplina – que derrotam a racionalidade do poder, enxertadas sobre seu uso próprio do tempo e do espaço. Elas traçam um caminho que é preciso reencontrar. Uma história outra. Uma outra história.183

Cada mulher com a sua maneira de encarar e viver o mundo se torna arquiteta de suas histórias e dessa forma marcam a sua trajetória de vida. Dona Reinalda, desempenhou várias funções para manter-se e também manter a sua família: fez de sua casa escola onde lecionou para várias crianças, adolescentes e adultos. Havia escolas públicas em Salinas, mas ela ressalta que muitas foram às mães e os pais que preferiram deixar aos seus cuidados os estudos dos filhos, mesmo não sendo formada na profissão. Recebia dos pais uma remuneração pelo serviço prestado. Com o passar do tempo, tendo os filhos para criar, e sem paciência para continuar exercendo a profissão de professora, deixou de lecionar. Mas, como a necessidade de ajudar na renda familiar era algo imprescindível, teve então que buscar outras formas de trabalho e assim foi ser lavadeira, marisqueira, funcionária pública até conseguir aposentar-se. Longe de exercer o protótipo de fragilidade defendido pela medicina social184, Dona Reinalda segue a tendência de muitas mulheres que imbuídas de zelar pela vida dela e dos seus, não mediu esforços e tentou de variadas formas se engajar em um trabalho que a tornasse provedora do seu lar.185 Além do sentido financeiro, o trabalho trazia para muitas dessas mulheres o interagir com o outro de forma que poderia ser harmônica ou não; propiciava a aprendizagem e o fazer de uma atividade; causava o diálogo, a troca de idéias, e conselhos. Não era pelo fato de

183 Michelle Perrot, op.cit. , p. 212. 184Rachel Soihet. Mulheres pobres e violência no Brasil Urbano. In: Mary Del Priore (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2001, p.363. 185 Ver, a respeito da “mulher pública”, Cláudia Fonseca. Ser mulher, mãe e pobre. In: Mary Del Priore (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2001, p. 516.

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estarem longe de casa desenvolvendo funções que não eram as domésticas, que significasse pensar e dizer que o sentimento maternal não as acompanhava. As orações estavam em clamor para a proteção dos filhos e da organização familiar que delas e daqueles momentos suados dependiam. Na ocasião da pesquisa, Dona Reinalda tinha 67 anos de idade, e seis anos de viuvez, perdeu o marido devido a um acidente de carro. Ela teve 13 filhos e tinha 30 netos. É mãe de Rose, que muito contribuiu para a pesquisa. Rose e mais 7 irmãos conseguiram concluir o ensino médio, realizando assim, parte do grande sonho de Dona Reinalda que era o de ver os filhos formados, mesmo alguns não exercendo as funções correspondentes as suas formaturas. Assim como Dona Reinalda, muitas outras marisqueiras cultivaram sonhos para seus filhos em territórios que não fosse a maré. Dona Dilza, com emoção, lembrou que seus filhos concluíram o ensino médio, porém continuavam suas atividades na maré. Com tristeza e lágrimas ela narrou sobre seus anseios e frustrações:

Ah! É um orgulho muito grande, é muito bom, a pessoa saber que lutou pá ver aquele filho, né? Conseguir aquilo que a gente não conseguiu... [Ela interrompe o relato com choro] É o meu sonho é como eu já disse, é ver eles independentes trabalhano, ter um meio de vida melhor do que a gente teve. Um trabalho pra viver, pra se sobreviver e não viver também assim só na maré, nessa vida que a gente já viveu sempre tudo. É isso!186

Os sonhos são parte daquilo que profundamente somos, sublimam as vidas humanas de estados em que se encontra em desânimo, em descrença e fadiga de frustrações. Mas quando esses sonhos não se realizam, a vida das pessoas é marcada por tristezas e desilusões. Dona Dilza apesar de sentir-se feliz pelo sucesso da filha em ter conseguido concluir o ensino médio, estava incompleta, pois a totalidade dos seus sonhos em relação a sua filha não foi concretizado. Suas lágrimas manifestam o sentimento de uma marisqueira que mesmo agradecendo a Deus pelo presente dos recursos da natureza que o mar lhe oferece, seus sonhos, para com a filha, são realizações em outro campo de trabalho que vão além do que a maré lhe proporciona.

186 Dilza Spínola de Souza. Entrevistada em 31 mai. 2002. 117

A fotografia revela a alegria daquelas e daqueles que, apesar das adversidades enfrentadas, conseguiram alcançar mais um objetivo na vida.

FIGURA 16: Formatura do curso de magistério de algumas marisqueiras e de filhas de marisqueiras. (Fotografia de Lauro Souza, 2001)

Essa imagem expressa um momento de imensa satisfação experimentado por pessoas que muito valorizaram e persistiram na realização de um sonho, que era a conclusão do curso de magistério. Serem congratulados por amigos e parentes e terem o regozijo festivo efêmero, não significa que atingiram o cume do que ainda anseiam para suas vidas, que é poder se sustentar exercendo funções com as habilidades das quais foram capacitadas. Muitas entre elas continuam sobrevivendo da arte de mariscar nas praias de Salinas da Margarida.

ESPAÇOS DE SOLIDARIEDADES

A mariscagem normalmente realizava-se em grupo. As mulheres na véspera de irem para o trabalho marcavam o encontro. Antes se informavam do horário da maré, o momento em que a maré apresentava um volume menor de água nos locais 118

da mariscagem, deixando as areias descobertas, propícias ao trabalho. Cientes do horário encontravam-se e dirigiam-se caminhando para a “oficina” de trabalho. Normalmente iam a grupo de quatro, cinco, seis ou mais mulheres.

Os espaços de trabalho constituem-se como locais de sociabilidade e solidariedade. Em geral, quando as marisqueiras chegavam à praia, lá encontravam outros grupos de trabalhadoras da maré já em plena atividade, iniciava-se, então, um convívio quase sempre marcado por relativa descontração. Elas conversavam sobre os acontecimentos do dia-a-dia, contavam anedotas e cantavam, tudo isso com o intuito de tornar o trabalho mais leve, o que fazia o tempo passar mais rápido e o trabalho se tornar até divertido. Contudo, em alguns momentos ocorriam conflitos gerados, por exemplo, quando alguma marisqueira pegava o produto da outra ou quando problemas familiares eram discutidos com os próprios parentes ou colegas no local de trabalho. Cleide fez referência a esse assunto:

Dificilmente tem atrito, dificilmente. Só tem atrito assim... Se uma pegar o marisco da outra ou então quando tem problemas fora... Problemas de família, problemas pessoais mesmo, ai que misturam tudo na hora que chega na maré, começa a briga. Mas sem ser isso, não tem atrito nenhum, é legal até às vezes tem muita gente que brinca mesmo pra descontrair passar o tempo.187

Algumas marisqueiras quando abordadas sobre possíveis desavenças ocorridas nos espaços das mariscagens, mostraram-se relutantes em falar sobre o assunto. Cleide, com ponderação, deu mostras de como elas reagiam nesses espaços de socialização quando pressionadas por algum problema. As brigas surgiam para se defenderem, reivindicarem seus direitos, enfim expressarem suas idéias. Apesar de ocorrerem os desentendimentos, a relutância de muitas em não querer explicitá-los pode ser interpretado como uma vontade delas não quererem colocá-los como uma característica marcante nos contatos durante as mariscagens. Buscavam com isso evitar que se tenha uma visão negativa desse convívio. É possível observar indícios da ética profissional que permeiam essas ações. Cuidam com isso para que não haja visões que de alguma forma transgridam os espaços “sagrados” de onde elas tiram seus sustentos.

187 Cleide França Silva. Entrevistada em 1 mai. 2002.

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No cotidiano das mariscagens, era comum o uso de um produto que servisse como repelente para os insetos. Elas levavam uma mistura de querosene e óleo que passavam em seus corpos, para afastá-los. Era comum acontecer de alguma marisqueira ter esquecido de levar esta mistura, mas logo, uma companheira ali presente manifestava com amizade o interesse de suprir a sua necessidade, emprestando-lhe o produto para que a mesma conseguisse trabalhar com mais conforto.

Esse tipo de relacionamento é um dos sustentáculos de uma união que caracteriza o cotidiano dessas pessoas. A solidariedade nesse meio social é uma marca que o capitalismo não destruiu com a sua força feroz, de ditar o preço de tudo. O sentimento solidário é demonstrado de várias maneiras nas experiências diárias das pessoas comuns. Dona Reinalda trouxe um exemplo:

Se eu fizer uma coisa em minha casa um pouquinho a mais, nunca na vida acho que isso tudo tem que ficar só pra dentro de casa. Eu tenho que procurar um vizinho, uma pessoa assim eu tenho que dividir, eu tenho que repartir qualquer coisa com essa pessoa, com pessoa qualquer daqui da rua. Entendeu? Se alguém chegar em minha casa e dizer: Oh D.Reinalda, a senhora tem isso? Por mais que eu queira assim dizer não, mas eu não digo.188

Do ponto de vista humano, é importante que haja este espírito de doação em qualquer segmento social, já que a vida, por mais independente que seja jamais se encontrará dissociada de uma comunidade. Assim, “a solidariedade tem sido também um traço muito forte entre os membros das comunidades de pescadores.”189 vivenciada cotidianamente pelas marisqueiras de Salinas da Margarida. O exemplo citado por Dona Reinalda é uma indicação vigorosa.

Deve também ser destacado outra manifestação de solidariedade, é o fato dessas mulheres terem em suas casas guardadas, em demasia, as conchas dos chumbinhos. São montes que estão presentes em várias partes: no quintal, na frente, no lado da casa. Em muitas ocasiões elas cedem significativas quantidades dessas conchas para vizinhos e pessoas que elas tenham afinidade para serem usadas no artesanato e na construção de casas, substituindo a brita. A fotografia

188 Reinalda Áurea da Silva. Entrevistada em 7 Jun. 2003. 189 Simone Carneiro Maldonado. Pescadores do Mar. São Paulo: Ática, Princípios, 1986 , p. 61. 120

revela a grande quantidade de conchas dos chumbinhos que ficam alojados nas proximidades das residências das marisqueiras:

FIGURA 17: Criança brincando sobre cascas de chumbinhos. (Fotografia de Lauro Souza, 2001).

Entre tantas utilidades, as conchas serviam também para a recreação das crianças, como se pode ver na Fig. 17, o lazer e o trabalho infantil parecem que se encontram irremediavelmente unidos ao marisco.

No mesmo sentido, certamente, uma imagem que salta aos olhos, está relacionada às múltiplas invenções dos artesanatos feitos com suas conchas, que são produzidos também pelas marisqueiras. A imagem abaixo revela um pouco da cultura artística dessas pessoas:

FIGURA 18: Artesanato feito com conchas de chumbinhos e de outros mariscos. (Fotografia de pesquisa, 2003). 121

Muitas esclareceram que doam significativas quantidades das conchas, mas quando chega alguém para comprar, elas também vendem aproveitando mais uma forma de ganho através do marisco. Às vezes conseguem trocar determinadas quantidades de conchas por material de construção, telha, cimento, areia e outros produtos com comerciantes locais. A quantidade necessária para as referidas trocas depende das negociações estabelecidas entre as marisqueiras e o comprador no momento da troca das mercadorias. Outra forma de burlar a crise econômica e deixar acesos os laços de amizade é a utilização culinária com os mariscos. Rose apresentou mais uma mostra de ajuda mútua presente na relação das marisqueiras. Em um dos encontros durante as entrevista, para reafirmar o valor nutricional do marisco e demonstrar seus dons culinários, ela explicou como criou uma gostosa sopa de chumbinho. Ao mesmo tempo em que falava da sopa ela serviu uns saborosos bolinhos feitos desse marisco. Eis a receita da sopa:

Eu peguei o chumbinho escaldei como tem que escaldar. Então, eu escaldei o marisco escorri e fiz um tempero de sopa com cebola, pimentão, tomate, hortelã, vinagre. Cortei umas verduras. Cortei beterraba, cenoura, batatinha, fatiei um repolhozinho e depois refoguei. Botei uma cebolinha pra fritar. Despejei o marisco já temperado, envolvido nesse tempero e deixei refolgar, quando vi que ele tava cozido eu coloquei um pouco de água e coloquei as verduras. Depois eu coloquei um cubinho de Knor, uma pitadinha de orégano, botei massa e tomei e achei muito gostosa.190

Rose conclui a receita da sopa com risos, e afirma ter ensinado a receita a uma amiga que passava por grandes dificuldades financeiras que não tinha como sustentar os filhos. Após ficar sabendo da receita, a amiga passou a prepará-la em todas as refeições diárias para ela e para seus filhos, pois o seu custo era mais barato do que a aquisição de outros alimentos.

Esse território de solidariedade e sociabilidade, conta também com a presença das crianças regularmente. Vários são os motivos que as fazem acompanhar suas mães. Vejamos no depoimento da marisqueira Cleide um desses motivos:

190 Rosângela Áurea Caetano. Entrevistada em 15 fev. 2003. 122

Minha mãe não tinha uma boa condição, uma condição melhorzinha pra poder manter a gente sem mariscar. A gente fazia de tudo, mas meu pai tava desempregado. Esse período foi que meu pai tava seis anos desempregado, sem fazer nada. Aí tinha que ir todo dia pra maré. Aí a gente ia pra ajudar. Minha mãe não queria, às vezes. Mas só que a gente... As maiores, como era eu e minha irmã e a outra que vêm depois de mim. Eu tinha doze, dez a menor e a maior quatorze, a gente achava na obrigação de ajudar a minha mãe, e como a gente não ficava fazendo nada em casa, só fazia no período da Escola, a gente achava melhor ir.191

Apesar de serem tão novas, o comportamento de Cleide e de suas irmãs revelam um alto grau de conscientização da ajuda delas na manutenção familiar, pois com o pai desempregado, o sustento da casa deveria ser mantido, e não achavam justo que a mãe fizesse sozinha o trabalho. O pai de Cleide dava sua contribuição através da pesca e ajudava mãe e filhas, cavando e transportando os mariscos. São memórias de momentos compartilhados com atos de solidariedade experimentados que revelam a compreensão e o significado da importância da ajuda mútua.

A MARÉ TAÍ!

Lembrando o testemunho de Dona Francisca o costeiro está sempre cheio de chumbinho para quem precisa e não tem preguiça. Esta reflexão manifesta a leitura que faz do mar, tendo-o como bem comum e fonte de sustentação para aqueles que assim quiserem. Nesse sentido, “a natureza é perfeita na medida em que tudo que a ela pertence tem uma função própria e fundamental para a harmonia do todo.”192 Com muita propriedade outro morador de Salinas, o Senhor Raimundo Nonato reafirmou essa análise: “Deus pisou aqui, botou essa maré aqui, ninguém morre de fome , só muita preguiça! Porém se quiser trabalhar, amanheceu o dia vai pegar seu siri, vai pegar seu chumbinho, seu rala-coco, sua lambreta e aí por diante.”193 Esse senhor refere-se às terras salinenses como espaços sagrados, como terras que foram pisadas por Deus, o qual cuidou de nunca deixar faltar o pão de cada dia para

191 Cleide França Silva. Entrevista citada. 192 Gláucia Oliveira da Silva . Água, vida e pensamento: um estudo de cosmovisão entre trabalhadores da pesca. In: DIEGUES, Antônio Carlos (Org.) A imagem das águas. São Paulo: Hucitec, 2000, p. 30. 193 Raimundo Nonato Ferreira. Entrevistado em 7 Jun. 2003. 123

a população carente. O tom é o mesmo de Dona Francisca ao tentar mostrar como é significante a riqueza do chumbinho em Salinas:

Esse chumbinho, esse chumbinho nunca falta. O pessoal fica se queixando, mas ele nunca falta, não é uma nem duas pessoas, é várias. Quantas mil pessoas têm aqui em Salinas? Se tira de ponta de dedo que em uma casa não vá duas ou três pessoas e outras vai a casa toda. Então, acha todos os dias e não tem tempo ruim pra eles, pra o chumbinho não tem tempo ruim. Na hora que o costeiro tá ruim, um dia, no outro dia que vai o costeiro tá melhor.194

Dona Francisca com 58 anos de idade, aposentada, conta da grande abundância do marisco e confirma a importância deste alimento na vida das famílias salinenses e que para consegui-los é preciso que tenham coragem para irem à busca daquilo que a natureza com gratuidade extensivamente oferta. O costeiro, referenciado é o local onde elas coletam os mariscos. Ela conta, no decorrer da conversa, que no tempo em que mariscava, os mariscos por ela catados eram os siris e ostras; o chumbinho pegava em menor quantidade. Os filhos que a acompanhavam nas jornadas do trabalho, pegavam uma quantidade pequena, pois eram crianças e não tinham a mesma desenvoltura dos adultos, mas mesmo assim já ajudavam.

Quando foi entrevistada tinha dez anos que havia deixado de mariscar e seis que havia ficado viúva. Deixou a mariscagem por apresentar problemas de saúde, sentia fortes dores na coluna e ficava tonta ao abaixar a cabeça. Mesmo não podendo mariscar, ela continuou extraindo o seu sustento do mar, exercendo a função de ganhadeira, comercializava os mariscos que outras marisqueiras catavam e os levava para vender em Salvador. Batia de porta em porta para vender os mariscos: o chumbinho, a ostra, a lambreta, o siri e o catado de caranguejo.

Rose, ex-marisqueira com 34 anos de idade, expõe bem este aspecto:

Aqui nós temos a lambreta, tem em quantidade; o caranguejo, em quantidade; o sururu, em quantidade. Tudo em fim de espécie de marisco aqui nós temos em quantidade. Entendeu? E nos outros distritos que é tão próximo não tem...Não tem. Essa região toda aí. Esses distritos daí, todo, o único lugar que tem mesmo em

194 Francisca de Jesus Santos. Entrevistada em 31 mai. 2002. 124

quantidade é Salinas. E hoje eu, eu, eu me sinto feliz quando eu vejo a divulgação.195

A Maricultura da Bahia S. A., que se instalou em Salinas da Margarida na década de 1990 e que tem como fins o cultivo do camarão em cativeiro, faz regularmente nos viveiros fertilização, e nos períodos da retirada dos camarões uma grande quantidade de água é liberada dos viveiros e lançada na maré. Estes viveiros estão localizados na marinha de Salinas. A água que sai dos viveiros, possui uma determinada quantidade de adubo que se instala nos manguezais e na vida marinha ali presente.196 Esta pode ser uma das explicações para justificar a riqueza de nutrientes nos manguezais e o que foi apontado por Rose, a abundância de alguns dos frutos do mar que existem em Salinas, em comparação com as demais localidades tão próximas.

É interessante observar a relação trabalho-estudo dos filhos de marisqueiras. Saber o nível da preocupação dos pais, se eles se importavam com a freqüência dos filhos na escola, já que participavam tão ativamente das longas jornadas das mariscagens. Se os pais estimulavam o interesse nos filhos para que eles aprendessem outra profissão ou se o que predominava era o fato de saberem que “A maré taí!”. O que poderia significar dizer que, qualquer necessidade que eles viessem a ter, as águas salinenses estariam lá, com a riqueza extensiva desse fruto do mar, o chumbinho, que os supriria.

A respeito do cuidado com os filhos na escola e na mariscagem, Dona Francisca expõe sua preocupação:

Deixar em casa pra procurar confusão? Pra quando eu chegar ter confusão? Eu levava na minha frente. Eu só deixava quando era de noite. Quando eu saia daqui 4:00h da manhã, que eu chegava cedo, pra ainda acordar eles pra ir pra Escola, na maré de ponta. Mas quando não era maré de ponta era maré tardeira quem não fosse pra escola, ou quem fosse estudar de manhã, ia pra Escola, quem estudasse de manhã ia pra Escola, quem estudasse de tarde ia comigo.197

195 Rosangela Áurea Caetano. Entrevista citada. 196 Raymond Williams, op. cit. , p. 392. Afirma que alguns dos mais antigos e notáveis efeitos ambientais, tanto negativo quanto positivos, decorreram de práticas agrícolas: em alguns casos, a terra tornou-se mais fértil. 197 Francisca de Jesus Santos. Entrevista citada. 125

Dona Francisca não tinha com quem deixar os filhos e por este motivo eles a acompanhavam durante as mariscagens. A maré de ponta é quando as águas vazam pouco, e isto ocorre pela manhã, bem cedo. Vazando pouco só ficam um pouco das areias descobertas propícias ao trabalho. A tardeira, é quando elas vazam normalmente e mais tarde. Esta não atrapalhava o sono dos filhos e sempre de acordo com o horário da escola, eles iam com ela para a maré. Neste depoimento é notável o cuidado da mãe com os estudos dos filhos em sintonia com o mundo do trabalho. Aliás, como em outros tempos e outros lugares, “A criança faz seu aprendizado das tarefas caseiras primeiro junto à mãe ou avó, mais tarde (frequentemente) na condição de empregado doméstico ou agrícola.”198 A preocupação primeira era o estudo e, para que não ficassem em casa sozinhos, acompanhar as mães nas jornadas da mariscagem tinha também o significado de lazer para essas crianças. Nos locais do trabalho, encontravam-se com outras crianças filhos de outras marisqueiras que juntos, além de catarem os mariscos, brincavam nas areias e nas águas onde se divertiam.

Sobre esse assunto,são denunciadoras as memórias de Rose:

Mainha tinha essa preocupação, ela tinha essa preocupação. A gente mariscava na fase do inverno mesmo por necessidade, porque não tinha outra coisa pra fazer. Os meus irmãos todos acompanhavam a carreira de painho, de pedreiro, então na fase de inverno não tinha como conseguir trabalho porque o morador de Salinas ele mesmo dava um jeitinho de levantar suas paredes. Então, a gente tinha que esperar o pessoal vir de fora pra poder contratar os serviços de painho. Então, o que é que acontecia? Mainha tinha uma preocupação muito grande que nós só íamos pra maré, se pudesse está em casa no horário de ir pra escola. Entendeu? Nunca aconteceu a gente perder aula porque tinha que está na maré. Nunca aconteceu. 199

Em momentos gritantes de ausência de recursos, quando os maridos não conseguiam arcar com as despesas da família, elas se empenharam para darem continuidade a vida e conseguir com zelo obter os mantimentos dos quais se favorecia toda a família. Contudo, nas lembranças de Rose acentua a preocupação

198 Edward P. Thompson. Costumes em Comum; estudos sobre a cultura popular tradicional. Companhia das Letras. São Paulo: 1998, p.17-18. 199 Rosângela Áurea Caetano. Entrevista citada. 126

da mãe com relação aos estudos dos filhos, e consequentemente, com o futuro deles: aprender a fazer crochê, frequentar as aulas de catecismo e participar dos atos da Igreja Católica. Quanto aos planos para o futuro, Rose diz que sempre pensou junto com os irmãos nunca ter que deixar Salinas, e sim viver do que a cidade lhes patrocinassem, pensava em crescer dentro de Salinas passando para outras pessoas o que aprendessem. Esses são valores defendidos por Rose e que sintetizam o pensamento comum de muitas marisqueiras. Valores que constituem o viver dessas mulheres e seus filhos e que não são “pensados”, nem “chamados” por quem quer que seja. Thompson disserta com minúcia este conceito de valor:

Os valores (...) são vividos, e surgem dentro do mesmo vínculo com a vida material e as relações materiais em que surgem as nossas idéias. São as normas, regras, expectativas etc. necessárias e aprendidas (e “aprendidas” no sentimento) no “habitus” de viver; e aprendidas, em primeiro lugar, na família, no trabalho e na comunidade imediata. Sem esse aprendizado a vida social não poderia ser mantida e toda produção cessaria.200

Os valores são produzidos e reproduzidos na prática social, emergindo nas individualidades como conteúdo de sua historicidade. Na vida de muitas marisqueiras e nos seus depoimentos, o valor básico da vida traz sempre à tona a conquista do alimento e o esforço para aprender sempre algo novo, de modo a ampliar os horizontes para além da cata de crustáceos nas praias.

Eram circunstâncias que marcaram a vida de muitas marisqueira, desamparadas por seus ex-companheiros, viúvas ou mesmo morando com seus maridos, passavam por envolvimentos afetivos que muito as fizeram sofrer. Maria José, marisqueira, muito emocionada fez um desabafo do sofrimento que viveu quando casada.

Eu sofri muito com o casamento, muito. Eu preferi ficar sem ter onde dormir, sem ter, o que comer. Mas eu preferi ficar só. [...] Aí eu botei uma coisa em minha cabeça. Eu quero dormir com fome, mas quero deitar em meu travesseiro e acordar em paz e ir pra maré. E isso aconteceu!201

200 Edward P. Thompson. A Miséria da Teoria: ou um planetário de erros. Zahar, Rio de Janeiro: 1981, p.194. 201 Maria José Caldas Costa. Entrevistada em 4 out. 2007. 127

Maria José conseguiu se separar do marido. Tentou algumas vezes através da justiça que ele ajudasse financeiramente na criação dos filhos, mas segundo ela, foram tentativas inúteis. Como não tinha mais para quem apelar resolveu sozinha assumir a família. O desabafo feito por esta marisqueira sintetiza o sofrimento de muitas outras que sem receber o devido valor de seus companheiros e ajuda para criação de seus filhos, encaravam na atividade de mariscar a motivação para continuarem sua trajetória. Em trechos do poema de Ademir Cerqueira da Cruz, morador de Salinas, essas mulheres são:

Mulheres Guerreiras [...] Passa fome, passa sede Um sofrimento danado É hora de retornar Com aquele bicho pesado Quando ela chega em casa Encontra o marido mamado [...] Essa sofrida mulher Com coração apertado Ainda será vítima Desse marido malvado Bateu na pobre coitada estava Anestesiado[...] 202

Senhor Ademir poeta, morador e professor de Salinas demonstrou, através das conversas e do seu poema, ser um homem consciente da exploração que muitas marisqueiras sofriam dos maridos. Essas relações estavam longe de sinalizarem a essência do amor, não havia respeito, amizade, afeto, companheirismo, reconhecimento pelo que elas eram e faziam. Para Perrot viviam “as heroínas domésticas, pelos seus sofrimentos, sacrifícios e virtude, restabelecem a harmonia do lar e a paz da família. Elas têm o poder – e o dever – de agir bem.”203 Recaía para as mulheres o ônus pela manutenção, em largo sentido, da harmonia

202 Ademir Cerqueira da Cruz. Poema Mulheres Guerreiras. 203 Michelle Perrot, op.cit. , p.181. 128

no lar. Como mostrou o poema, apesar do esforço que muitas marisqueiras faziam para realizar as tarefas cotidianas, elas foram vítimas da violência em seus próprios lares. Sofriam no físico e no psicológico as dores da humilhação de não serem respeitadas da sua condição de ser humano e de ser mulher.

No entanto, muitas marisqueiras não eram tão passivas quanto a realizarem sozinhas as tarefas do lar, pois elas atuavam no mercado de trabalho, participavam do orçamento familiar e, dessa forma, também se esgotavam tanto quanto seus maridos e, além disso tinham que desempenhar as obrigações de casa sem nenhuma ajuda. Nair Gonçalves faz uma abordagem ao que se refere à conscientização da mulher quanto ao seu valor na família e na sociedade.

O papel da mulher já é, e continuará sendo, cada vez mais, lutar pelo seu espaço na família e na sociedade. Lutar pelo seu espaço não significa declarar guerra aos homens. Ao contrário, significa proporcionar que cada um seja inteiro no espaço que ocupa e, o que é muito importante, passar essa atitude frente à vida para as gerações futuras. 204

Gonçalves faz um comentário ao mesmo tempo em que lança uma diretriz conscientizadora para o homem e para a mulher. À mulher, ela estimula a não querer ser melhor do que o homem, e sim buscar o melhor para si própria, para a família, para a sociedade e deixar marcas positivas de um caráter sensato para o futuro dos que virão. Ao homem ela faz uma abordagem sugerindo não temer a aproximação e a permanência cada vez maior da mulher em espaços antes considerados do homem. Ao que tudo indica, essa é a posição de muitas mulheres marisqueiras salinenses que conquistam seu espaço. Elas manifestam o melhor de suas habilidades, não com o fim de sublevar-se ao homem, e sim pelo fato de ter a satisfação de poder contribuir financeiramente na renda familiar, ser um sustentáculo na tradição de seu povo e participante ativo na marcha da história.

Dona Amor, apesar de ser casada, ela demonstrou não ter tido do marido nenhuma ajuda para a criação dos filhos. O dinheiro que ele obtinha era usado para pagamento das bebidas que consumia. Da sua vivência ela trouxe outro exemplo forte:

204 Nair Teresinha Gonçalves . Escutando a voz das mulheres.In: STREY, Marlene Neves et al (Orgs). Construções e perspectivas em gênero. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2001, p. 9. 129

Eu tive uma menina, essa aí que tem essa filhinha aí. Eu tive ela dentro, quase dentro da maré. Porque eu fui mariscar numa barriga grande [risos] quando eu cheguei lá na maré não tava sentindo nada, marisquei a minha vontade. Quando vir, na hora de vir embora, todo mundo veio embora eu fiquei lá sozinha pra trazer uma canoa que vinha com marisco. Canoa foi essa que a maré veio enchendo e eu fiquei arrastando a canoa até cá no local de ficar, da botar a canoa no lugar. Olho pra um lado, olho pro outro, vinha um rapaz longe em outra canoa. Aí eu esperei ele chegar. Esperei ele chegar para botar, infincar a canoa que infica numa vara para poder a canoa ficar presa e não sair dali com a maré encheno. Minha senhora, daqui a pouco bateu uma dor eu com uma barrigona cheguei, assim sentei. Sentei. Mas... Quando sentir a dor eu fiquei parada, mas... sozinha ali. Eu disse poxa eu já tô com dor de ter menino! Aí tava com aquela dor e com fome. Quando a dor dava, eu parava, quando a dor parava eu corria. Quando a dor dava eu corria, corria um tanto bom. Quando chegava uma certa quantidade do caminho a dor dava de novo, sentava. Chegava ali ficava até ela passar. Minha senhora que quando eu vinha correndo que dava pa correr mesmo eu chegava aqui azuando.Quando fui chegando ali na porta eu já fui logo gritando bota água no fogo, que eu não ia tomar banho frio. Bote água no fogo e bote a minha comida no prato. Comi. Quando acabei de comer tomei um banho e mandei as meninas arrumar a sacola pra ir pra maternidade.205

A narrativa reafirma as dificuldades vividas pelas marisqueiras, inclusive nas últimas horas antes de dar à luz a uma nova vida. Dona Amor carregava em seu ventre o peso da barriga, as dores do parto e a angústia de estar sozinha naquela situação. Mesmo desamparada foi capaz de reunir forças para conseguir sair da maré e ir ganhar o seu bebê, que também já lutava para ganhar o mundo. Mesmo com toda aflição que passava em uma situação como essa, era um alento muito bom poder contar com a gratuidade da natureza que ofertava diariamente os alimentos para ela e para a sua família.

Assim, ocorre também com Floraci. Em suas palavras surgem explicações de como conseguiu burlar os costumes do mundo da pescaria onde o mar é de primazia masculina e foi para esse espaço em busca de suprimentos.

Eu pesco siri, pesco peixe, camarão e marisco. Marisco também ostra. É! Tudo do mar eu faço. [...] Agora o que eu mais gosto

205 Heloisa Marcelina Ramos ( Dona Amor). Entrevistada em 25 set. 2007. 130

mesmo de fazer, é pescar o siri de gaiola. Pesco peixe que eu tenho rede, ai a gente pesca, tenho tarrafa, tenho tudo.206

A forma como Floraci buscou o seu sustento e o sustento dos seus, se diferencia um pouco do habitual das demais mulheres da camada popular salinense. Ela pesca desde os nove anos de idade, com o tempo preferiu desenvolver essa atividade sozinha. Com muita dificuldade conseguiu concluir os estudos até o ensino médio. Ingressou na faculdade, porém por dificuldades financeiras não conseguiu concluir o curso de pedagogia. Solteira, mãe de dois filhos teve que abandonar os estudos para poder dar sustento a casa. Floraci com orgulho de se própria falou que além da mariscagem com o chumbinho pratica também outras pescarias. Vai ao manguezal e para o mar e de lá traz o que é possível trazer. Consciente de sua perspicácia com o manejo dos apetrechos que envolvem o mundo da pescaria, não se intimida em enveredar-se por caminhos que são prioritariamente habitados pelos homens. De posse de sua canoa e da gaiola ela rema nas águas salinenses para fazer o que disse mais gostar, que é a pesca do siri. A gaiola a qual ela fez referência é uma espécie de armadilha de cipó que são lançadas na maré a certa distância da margem para capturar o siri.

Floraci confessou ter ido algumas vezes à Prefeitura Municipal em busca de emprego. O seu interesse era conseguir um trabalho que lhe fornecesse alguns direitos trabalhistas como um salário fixo, férias, décimo terceiro e outras vantagens. Com o semblante calmo no momento em que conversava, relatou que suas investidas para consegui um trabalho que lhe trouxesse tais direitos não deram certo. Bastante a vontade disse que a funcionária da prefeitura que sempre a recebia, costumava a lhe perguntar se realmente iria valer a pena para ela trocar a liberdade que tinha no ambiente da pescaria, por um ambiente fechado sujeita as intrigas de colegas, tendo que respeitar os horários impostos e a outras situações que ela não estava acostumada.

Floraci disse que meditava sobre essas palavras e só conseguia ver a maré a esperar por ela e por seus colegas pescadores, com os quais mantinha um relacionamento harmonioso. Naturalmente ela obedecia aos horários das marés, a força e o capricho da natureza quando se manifestava através dos ventos, chuvas,

206 Floraci Pereira de Souza. Entrevistada em 9 de Jun. 2007. 131

tempestades e quando a fazia voltar para casa sem o fruto da pescaria. Diante da realidade que vivia e das desventuras que um trabalho ao modelo capitalista poderia trazer para ela, Floraci se convencia a continuar no trabalho de pescar siri. As palavras dela denotam possibilidades do que pode ser para essas pessoas a vantagem de não ter um trabalho no modelo que o mercado impõe.

A vida de Floraci, Cleide, Rosangela, Francisca é como a de muitas mulheres de Salinas da Margarida, que desamparadas por seus ex-companheiros, viúvas ou mesmo morando com seus maridos e os seus pais, não medem dificuldades na luta pela sua sobrevivência e de seus entes queridos. Um recorte da história de vida dessas mulheres que anuncia reflexões sobre o lugar da oralidade ao propiciar aos agentes históricos tornarem suas estratégias de sobrevivência conhecidas mediante suas próprias palavras.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Salinas da Margarida é abastecida de recursos naturais, os quais são em grande escala provenientes do mar, o que propicia há bastante tempo um meio estável de sobrevivência à população carente. Nesta localidade, muitas são as mulheres que assumem o papel de desempenharem com sucesso a liderança de um tipo de mariscagem, que é catar uma espécie de molusco conhecido na região como chumbinho. Essas mulheres têm uma participação ativa e efetiva na renda familiar, provocando um maior envolvimento na comunidade no aspecto do desenvolvimento econômico, cultural e social. Na mariscagem do chumbinho, muitas são as crianças que juntas com suas mães, há muito tempo, fazem esse trabalho verificando-se, aí, a contribuição frequente do trabalho infantil, e da tradição que é passada às gerações.

Assim, esse trabalho se caracteriza como uma atividade familiar realizada também por alguns homens. Em conversas mantidas com marisqueiras, elas me explicaram que a presença destes nas mariscagens se deve ao fato de eles estarem, por algum motivo, sem condições de desempenharem a pesca de alto mar, provocada pela falta de barco, da rede ou de outros instrumentos necessários à pescaria.

A forma que a mariscagem se desenvolve é de maneira rudimentar, nela se destaca o trabalho artesanal e primitivo. Através de suas atividades, as famílias buscam com a dignidade do suor de seu briquitar o necessário para se manterem vivas com qualidade, serem respeitadas como pessoas, atingirem a valorização e sustentação de sua cultura. As marisqueiras e suas famílias contribuem na formação da história local e dessa forma oferecem uma ampliação do respeito desta atividade pesqueira. Pois a consolidação do valor de uma atividade existe a partir do momento em que o indivíduo que a pratica reconhece e busca o reconhecimento de outrem do valor de sua produção.

O mar, como patrimônio comum, é palco da permanência dessas famílias que vivem dos mariscos. É no espaço das areias das praias embebidas pelas lamas dos manguezais, que elas se lançam vivificando uma tradição que lhes foi passada por gerações de outrora. Segundo Thompson “com a transmissão dessas técnicas 133

particulares, dá-se igualmente a transmissão de experiências sociais ou da sabedoria comum da coletividade.”207 Não obstante os avanços contemporâneos, o mar ainda é a referência central da sobrevivência de muitas famílias salinenses.

Nas conversas mantidas com a ex-marisqueira Rose, percebi a satisfação desta pelo fato de ter sido marisqueira e ter conseguido no desenrolar de sua vida a oportunidade de conquistar outros objetivos. Formou-se em magistério, realizou, assim, seu sonho e o de seus pais, no entanto, não teve oportunidade de trabalhar como professora, conseguiu montar o seu comércio na capital baiana e em Salinas negociando entre outras coisas com frutos do mar.

Em contraste com essa realidade, muitas foram às filhas das marisqueiras que tinham a mariscagem como única forma de sustento e de renda. Dona Dilza transmitiu, com lágrimas, toda sua insatisfação ao falar sobre a filha que teve oportunidades de concluir o ensino médio e teve que continuar trabalhando tão ativamente na maré.

Durante o convívio que mantive com as marisqueiras, senti que o trabalho na maré era naturalmente incorporado à vivência diária. Elas afirmavam a dificuldade que era trabalhar na mariscagem do chumbinho, no entanto, procuravam demonstrar que gostavam do que faziam, mas também queriam galgar outros espaços de trabalho. A exemplo a marisqueira Cleide trabalhava em uma pousada em Salinas, mas mesmo assim continuava mariscando, por gostar de mariscar e para ajudar no orçamento familiar.

Uma das características básicas dessa atividade pesqueira é a noção de não apropriação do mar, pois ele é concebido pelas pessoas que vivem usufruindo os seus frutos, como uma dádiva da natureza. A indivisibilidade dos espaços em que são realizadas as mariscagens flui “naturalmente” na consciência coletiva das marisqueiras. É deste espaço que se favorecem, centenas delas que se fazem presentes nas faixas litorâneas de Salinas há muito tempo. Mas nenhuma delas se diz dona da maré.

A disciplina do trabalho das marisqueiras é regida pela natureza, é o tempo natural, o tempo das marés que coordena o horário de ir para o trabalho, o horário

207 Edward P. Thompson. Costumes em Comum; estudos sobre a cultura popular tradicional. Companhia das Letras. São Paulo: 1998, p. 18. 134

de permanência e o horário de voltar para casa onde continua a lida. Entretanto, elas precisam criar estratégias para conciliarem em sua vida cotidiana, o tempo natural e o tempo criado pela sociedade capitalista. Sabem que se não seguirem esse horário, perderão o programa preferido, o horário da escola, do transporte, das refeições dos filhos e do marido, o horário marcado do encontro com o namorado, da conversa com amigos, da ida à festa. Enfim, é a dinâmica da pulsação do viver que caracteriza o dia-a-dia dessas mulheres que buscam associar o tempo social ao tempo natural para darem prosseguimento em suas vidas.

Fazer essas análises mais apuradas e cautelosas sobre o viver das mulheres marisqueiras de Salinas da Margarida, me propiciaram a oportunidade de desmistificar determinados conceitos, que construí durante o período em que estive trabalhando como professora nessa cidade. Dentre esses conceitos destaco a visão que tinha quando presenciava em muitos momentos, várias marisqueiras na sua lida diária, enquanto muitos homens não desempenhavam função alguma; ou pior, como me parecia, se encontravam em portas de bares se distraindo, bebendo e jogando com amigos.

No decorrer da pesquisa, percebi que este comportamento se justificava. Alguns homens apontaram o fato de estarem fora da lida, nos horários que as marisqueiras trabalhavam, era por já terem desenvolvido ou ainda irem desenvolver suas funções. Pelo fato de muitos serem pescadores trabalhavam também no ritmo das marés, atendiam o tempo natural e por isso nem sempre o horário do trabalho deles coincidia com o horário das mulheres. Muitas foram às que manifestaram compreensão ao comportamento desses homens, não entrando assim, na competitividade de funções, nem na guerra dos sexos para ver quem domina mais em casa ou na sociedade. Nair Gonçalves faz uma abordagem ao que se refere à conscientização da mulher quanto ao seu valor na família e na sociedade:

O papel da mulher já é, e continuará sendo, cada vez mais, lutar pelo seu espaço na família e na sociedade. Lutar pelo seu espaço não significa declarar guerra aos homens. Ao contrário, significa proporcionar que cada um seja inteiro no espaço que ocupa e, o que 135

é muito importante, passar essa atitude frente à vida para as gerações futuras. 208

Gonçalves faz um comentário ao mesmo tempo em que lança uma diretriz conscientizadora para o homem e para a mulher. À mulher, ela estimula a não querer ser melhor do que o homem, e sim buscar o melhor para si própria, para a família, para a sociedade e deixar marcas positivas de um caráter sensato para o futuro dos que virão. Ao homem, ela faz uma abordagem sugerindo não temer a aproximação e a permanência cada vez maior da mulher em espaços antes considerados do homem. Esse comentário de Gonçalves está de acordo com a posição de muitas mulheres marisqueiras salinenses que conquistam seu espaço. Elas manifestam o melhor de suas habilidades, não com o fim de sublevar-se ao homem, e sim pelo fato de ter a satisfação de poder contribuir financeiramente na renda familiar, ser um sustentáculo na cultura de seu povo e participante ativo na marcha da história.

Contudo, com pesar determinadas marisqueiras me relataram experiências vividas em suas relações afetivas que marcaram de forma dolorosa a vida delas. Envolvimentos que vivenciaram os quais submeteram-nas a um exaustivo processo de exploração físico e emocional, e era nas águas salinenses que choravam suas lágrimas de dor, decepção e mágoa. Também nessas águas muitas conseguiram enxugar as lágrimas, quando decidiram romper com os laços que as amargurava e provocava tristeza em suas vidas. Descobriram, assim, que o poder de liberta-se e buscarem a felicidade estava em cada uma delas e não no outro. Algumas que tive a oportunidade de conversar, percebi que pouco a pouco restabeleceram a auto estima e viabilizaram condições para libertarem-se daqueles que as mantinham cativas.

Muitas foram às queixas e desabafos das marisqueiras que atentamente ouvi e registrei. Em muitos momentos me senti como se fosse sua porta-voz, meio pelo qual, suas reclamações, reivindicações, esperanças, crenças, tristezas, desgostos, enfim, seu viver chegariam a determinadas pessoas, ou simplesmente podiam desabafar. Busquei ao longo do trabalho manter-me como historiadora, num estado de imparcialidade possível, para poder sentir o fluir de suas memórias sem interferir

208 Nair Teresinha Gonçalves . Escutando a voz das mulheres.In: STREY, Marlene Neves et al (Orgs). Construções e perspectivas em gênero. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2001, p. 9. 136

muito na rememoração de suas vidas. Para que assim, tivessem a certeza de estarem conversando com alguém que as respeitava acima de tudo.

O fato de ter trabalhado em Salinas e assim ser conhecida por muitos, facilitou o meu trabalho de pesquisa, pois houve confiança e respeito mútuo nos encontros e na convivência que mantive com os entrevistados. Notei que nos últimos anos, as marisqueiras têm ganhado mais espaço e respeito na cidade. Mostra disso é a realização do festival do marisco que ocorre anualmente em Salinas da Margarida com a criação de vários pratos. São crescentes os pontos de vendas do chumbinho e desta forma cresce a divulgação e consumo do produto. O festival do marisco culminou na publicação de um livro de receitas, o que valorizou ainda mais a cultura local e trouxe uma realização pessoal, engrandecendo aqueles que trabalham diretamente com o chumbinho e os que colaboram com o festival usando a sua criatividade ao idealizar novas receitas.

Foi possível perceber o quanto essa atividade é imprescindível na vida dessa população e como o meio ambiente está associado a suas vidas. Apesar das fortes investidas do poder capitalista para dominar o espaço natural salinense, as marisqueiras não se deixaram sucumbir e buscaram, a medida que foi passível, viabilizarem meios para assegurarem o direito de continuarem extraindo o seu alimento da natureza. Essa atividade mostra o quanto a natureza precisa ser de maneira prudente mantida para que a cultura da mariscagem do chumbinho prossiga sustentando vidas.

As análises realizadas sobre as mulheres marisqueiras de Salinas da Margarida, descortinam dimensões do cotidiano de suas vidas, possibilitando que se adentre em suas histórias e ponha em destaque as estratégias por elas criadas para garantirem a sua sobrevivência e a de suas famílias. São alternativas as quais apontam que apesar de muitas portas da sociedade terem sido fechadas ao longo de suas vidas, para elas, a descrença nos sonhos não as dominaram, e continuam a extraírem da natureza recursos que asseguram de maneira honesta a manutenção de suas vidas.

Um recorte da história de vida dessas mulheres anuncia reflexões sobre o lugar da oralidade ao propiciar aos agentes históricos tornarem suas estratégias de sobrevivência conhecidas mediante suas próprias palavras. Como diz Paul Thompson: 137

A história oral é uma história construída em torno de pessoas. Ela lança a vida para dentro da própria história e isso alarga seu campo de ação. Admite heróis vindos não só dentre os líderes, mas dentre a maioria desconhecida do povo. Estimula professores e alunos a se tornarem companheiro de trabalho. Traz a história para dentro da comunidade e extrai a história de dentro da comunidade.209

A história das classes sociais populares nos últimos tempos tem ganhado força, respeito e espaço com a História oral. A produção historiográfica que outrora em sua maioria apenas exaltava a história mitificada dos que se intitulavam ou eram canonizados como heróis, agora passa a olhar para outros ângulos. Com essa nova vertente, os silenciados hoje têm voz ativa, construindo com seus feitos, mesmo parecendo simples em seu impacto social, são considerados importantes contribuintes e edificadores da história. Assim, podem fornecer para as futuras gerações, através dos registros históricos de suas vidas, orientações com exemplos que foram por eles vivenciados para que sirvam como referencial para outras pessoas, na busca da concretização de novas metas que poderão ser atingidas com êxito, ainda que sejam “coisas deixadas “de lado”. Mas nesse inventário de aparentes miudezas, reside a imensidão e a complexidade através da qual a história se faz e se reconcilia consigo mesma.”210

Hoje, as pessoas simples aparentemente banais têm suas vidas sublimadas pelo respeito, a sua condição de sujeito histórico, até porque “A história vista de baixo ajuda a convencer aquele de nós nascidos sem colheres de prata em nossas bocas, de que temos um passado, de que viemos de algum lugar.”211 Uma lágrima de um homem considerado comum pode ser invisível aos olhos da sociedade que ele vive, mas pode não ser apenas uma lágrima diante dos olhos de um historiador envolvido com a produção historiográfica contemporânea.

Muito mais ainda há para ser analisado a respeito dessas pessoas que, com simplicidade, persistem como o tempo, vivendo o seu dia-a-dia. Marcado por um cotidiano no qual, o briquitar com os chumbinhos lhes favorece a certeza maior

209Paul Thompson,. A voz do passado: História Oral. Paz e Terra. Rio de Janeiro, 1992. P. 44. 210Mary Del Priore, História do cotidiano e da vida privada. In: CARDOSO,Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (Org.). Domínios da História: Rio de Janeiro: Campus, 1997. P. 274. 211 Jim Sharpe, A história vista de baixo. In; BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p. 62.

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para a sobrevivência, o pão de cada dia, conquistado com a dignidade de um trabalho que enriquece a história local e regional.

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FONTES

Acervos Consultados:

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Fontes impressas:

Jornal:

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Francisca de Jesus Santos (D.Elza), 58 anos de idade, ex-marisqueira, residente em Porto da Telha. Salinas da Margarida. Entrevista em 31 de maio de 2002. Gilberto Costa de Jesus, pescador, 18 anos de idade, residente em salinas da Margarida. Entrevistado em 24 de maio de 2008. Heloisa Marcelina Ramos ( Dona Amor), marisqueira, 70 anos de idade, residente em Salinas da Margarida. Entrevistada em 25 de setembro de 2007. Júlia Pinheiro dos Santos, 39 anos de idade, marisqueira, residente em Salinas da Margarida. Entrevista em 13 de fevereiro de 2003. Lúcia Maria Caldas Costa. 42 anos de idade, marisqueira, residente em Salinas da Margarida. Entrevista em 24 de janeiro de 2008. Maria José Caldas Costa. Marisqueira, residente em Salinas da Margarida. Entrevistada em 4 de outubro de 2007. Maria José Pinheiro, 53 anos de idade, marisqueira residente em Salinas da Margarida. Entrevistada em 13 de fevereiro de 2003. Raimundo Nonato Ferreira, 84 anos de idade, ex-funcionário da Companhia Salinas da Margarida, residente em Salinas da Margarida. Entrevista em 7 de junho de 2003. Reinalda Áurea da Silva, 67anos de idade, ex-marisqueira, residente em Salinas da Margarida. Entrevistada em 7 de junho de 2003. Rosangela Áurea Caetano (Rose), 34 anos de idade, ex-marisqueira, comerciante, residente em Salvador. Entrevista em15 de fevereiro de 2003. Serafim de Souza Conceição, militar da reserva, 83 anos de idade, residente em Salinas da Margarida. Entrevistado em 26 de setembro de 2007. Sofia Lima Pinheiro, 82 anos de idade, ex-marisqueira, residente em Salinas da Margarida. Entrevista em 13 de fevereiro de 2003.

Fontes Iconográficas:

Fotografias da pesquisa de campo Fotografias de particular.

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