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João Victor Barbosa.Pdf

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

JOÃO VICTOR BARBOSA

Deuses do rock: a construção do mito no audiovisual.

Mestrado em Comunicação e Semiótica

São Paulo 2018 JOÃO VICTOR BARBOSA

Deuses do rock: a construção do mito no audiovisual.

Mestrado em Comunicação e Semiótica

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência para obtenção do título de Mestre em Comunicação e Semiótica sob a orientação do Prof. Dr. Amálio Pinheiro.

São Paulo 2018

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Banca Examinadora

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Agradecemos o apoio da CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – a qual viabilizou esta pesquisa.

4 Agradecimentos

Amálio Pinheiro, essa figura emblemática, orientadora e camarada. E por ser tão compreensivo com a minha atual situação. Cecília Salles e Norval Baitello Junior, pelos ensinamentos, leituras e colaborações. Bernardo Queiroz, pelas dicas valiosas na qualificação e pelos livros emprestados. Silvio Anaz, por compartilhar sabedoria e manter vivo e real o imaginário. Cida, pela paciência de sempre. Aos Bons Amigos, de tempos e espaços distintos, mas que, de alguma maneira, me fizeram sorrir. E, principalmente, aos que passaram noites e mais noites falando sobre rock, bebendo, jogando... (Finão, Lelinha, Kejo e Góvinho). Minha família, especialmente Victinho, Julie, Ceretta, Beth, Thundera, Robocop, Ruivinham e Désirée. Tchellão, irmão e referência. Influência direta para a publicidade. Para a ilustração. Para o photoshop. Para a fotografia. Para o cinema. E para o Palestra! Aos meus pais: Victor e Maria Cristina, que nenhuma palavra é capaz de, sequer, tentar explicar. Aqui, apenas agradeço pelos primeiros discos e por permitir o cabelo comprido desde pequeno. Shimoo, eterno. Meu Sol Fernanda, fonte da minha vida. À vida e pós-vida do , e todos os seus deuses.

5 RESUMO

Esta pesquisa analisa a construção do mito dos “Deuses do Rock” a partir de processos comunicacionais e culturais presentes em documentários musicais produzidos entre os anos 1968-1971 e denominados rockumentários, por abordarem especificamente músicos do gênero rock and roll em suas redes. Em uma época em que o rock and roll tornava-se o principal produto midiático pensado para o consumo dos jovens, Rock and Roll Circus (1968), (1969) e : Live at Pompeii (1971), produções que constituem o corpus da presente pesquisa, capturaram registros de apresentações com o diferencial de trazer conteúdos extras em linguagem documental, como depoimentos e imagens de bastidores. Nas décadas seguintes, os três rockumentários foram reeditados para agregar imagens inéditas e novas propostas de montagem. Investigamos os processos de criação destas obras audiovisuais e argumentamos que, sobretudo em suas reedições, as peças, de formas distintas, se apropriam de narrativas míticas e personagens épicos, fazendo uma tradução dentro de um determinado tempo e espaço para compor o imaginário social dos "Deuses do Rock”. A pesquisa parte da análise dos documentários, com ênfase nas reverberações socioculturais que interferem nos processos de criação dessas peças audiovisuais e na memória social do rock and roll. A fundamentação teórica envolve a reflexão sobre cultura e processos de criação de Edgar Morin e Cecília Salles e discussões acerca do imaginário e dos mitos em Michel Maffesoli e Joseph Campbell.

Palavras-chave: cultura, audiovisual, imaginário, rock and roll

6 ABSTRACT

This research analyzes the construction of the myth of the "Gods of Rock" from the communication and cultural processes that are present in musical documentaries produced between the years 1968-1971 and denominated rockumentaries, for specifically approaching musicians of the rock and roll genre in their networks. In a time when rock and roll became the mainstream media product for young people, The Rolling Stones Rock and Roll Circus (1968), Woodstock (1969) and Pink Floyd: Live at Pompeii (1971), productions which constitute the corpus of the present research, captured images of the presentations mentioned with the differential of bringing extra contents in documentary language, such as testimonials and backstage images. In the following decades, the three rockumentaries were reedited to add unpublished images and new proposals of assembly. We investigate the creative processes of these audiovisuals and argue that, especially in their reissues, the rockumentaries, in different ways, present mythical narratives and epic characters, making a translation within a certain time and space to compose the social imaginary of the " Gods of Rock. "The research is based on the analysis of documentaries, with emphasis on the socio-cultural reverberations that interfere in the processes of creation of these audiovisual pieces and in the social memory of rock and roll. The theoretical foundation is in the reflection on culture and creation processes by Edgar's Morin and Cecilia Salles and in discussions about the imaginary and the myths by Michel Maffesoli and Joseph Campbell.

Palavras-chave: culture, audiovisual, imaginary, rock and roll

7 SUMÁRIO

Introdução...... 10

1. Imaginário, música e mídia...... 22 1.1 A contracultura...... 22 1.2 O rock and roll...... 36 1.3 O contexto da contracultura rock and roll...... 44 1.4 Os rockumentários: apresentando as atrações...... 52 1.4.1 The Rolling Stones Rock and Roll Circus...... 52 1.4.2 Woodstock: Three Days of Peace and ...... 55 1.4.3 Pink Floyd Live at Pompeii...... 57

2. Comunidade musical: sujeitos colaborativos e interações coletivas nos processos de construção de obras e mitos...... 63 2.1 Processos de criação em rede: traduzindo o imaginário em imagens...... 63 2.2 Reverberações...... 79

3. Memória, imagem, movimento e mito...... 84 3.1 Métodos de apropriação de histórias e memórias...... 84 3.2 A força da imagem...... 91 3.3 O poder do filme...... 98

Considerações finais...... 118

Bibliografia...... 120

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“…for a brief moment it seemed that rock ‘n’ roll would inherit the earth.” (David Dalton)

9 INTRODUÇÃO

Esta pesquisa analisou o contexto cultural da emergência do mito do “Deus do Rock” a partir da análise de filmes sobre rock and roll, estes híbridos documentais e musicais, também conhecidos como rockumentários. O professor de música Henrique Autran Dourado, da Universidade de São Paulo, explica que rockumentário é o “neologismo que designa documentário sobre artistas ou assuntos pertinentes ao rock” (Dourado, 2004, p.284). Filmes que trazem apresentações musicais completas são obras presentes no cinema desde os anos 1940. Este gênero é conhecido como filme concerto ( movie). O filme concerto Concert Magic, de 1948, mostra uma apresentação completa do maestro e violinista norte-americano Yehudi Menuhin, em filmagens no Charlie Chaplin Studios, feitas em 1947. Acompanhado por outros músicos, o maestro apresenta releituras de obras clássicas de grandes compositores como Bach, Beethoven, Wieniawski, Paganini, entre outros.

Figura 1. Poster do filme-concerto Concert Magic, de 1948.

10 Em 1958, durante o quinto Festival de de Newport, nos Estados Unidos, foi capturado o primeiro documentário sobre música: Jazz On A Summer’s Day (lançado em 1960). O diretor musical do filme foi George Avakian, produtor de jazz da . O filme mescla imagens da cidade e das águas com os artistas e o público, e cenas da 's Cup Yacht Races, competição de iatismo. O documentário não apresenta narração ou diálogos. Possui apresentações de Louis Armstrong, Chuck Berry, Anita O'Day, entre outros renomados artistas da época. Em 1999, o filme foi selecionado para preservação na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, na National Film Registry.

Figura 2. Poster do filme Jazz On A Summer’s Day, documentário sobre música lançado em 1960.

Na próxima década, em 1964, foi gravado o primeiro filme concerto de rock and roll. T.A.M.I. Show (Teenage Awards Music International) lançado pela American International Pictures, contou com performances de grandes nomes da música rock and roll e R&B (rhythm and blues). Artistas dos Estados Unidos e Inglaterra se reuniram no Auditório Cívico de Santa Mônica, durante dois dias. O

11 público, em sua grande maioria, foi composto por alunos do ensino médio da região, os quais foram presenteados com ingressos. O diretor musical foi Jack Nitzsche, famoso compositor de trilhas sonoras para o cinema e ganhador de um Oscar com a música Up Where We Belong, do filme An Officer and a Gentleman (A Força do Destino, título em português), de 1982. O filme também é considerado como um predecessor dos videoclipes e, em 2006, também foi selecionado para preservação na National Film Registry.

Figura 3. Poster do filme concerto T.A.M.I. Show

No final da década de 1960, foram lançados filmes que uniam imagens de bastidores, entrevistas e concertos. Para dar conta das características do novo gênero, um híbrido entre documentários e filmes concerto, o termo rockumentário foi usado pela primeira vez em 1969, por Bill Drake, em uma

12 transmissão de rádio, no programa The History of Rock and Roll1. A definição está presente na obra “Do Vitascope ao Imax”, na qual George Batista Da Silva, colecionador de memorabilia da cultura pop, define que rockumentário

é o filme que registra em forma de documentário, um show de um conjunto de rock. Diferente dos filmes comuns que só exibem os números musicais, o rockumentary apresenta entrevistas e comentários (DA SILVA, 2008, p.274).

Rockumentário é um dos meios possíveis de divulgação das bandas, mas talvez um dos mais importantes para a construção da imagem dos músicos. Os músicos e as bandas presentes nessas obras são frequentemente endereçados como deuses pelos veículos especializados e pelos fãs, em parte pela qualidade artística e musical, mas também pela construção dos personagens que se dá nas narrativas midiáticas no contexto social, cultural, político e econômico da época em que estão inseridos. Assim, no imaginário social, identifica-se a emergência do mito dos Deuses do Rock. Com base na definição do sociólogo francês Michel Maffesoli, compreende-se que imaginário permanece uma dimensão ambiental, uma matriz, uma atmosfera, aquilo que Walter Benjamin chama de aura. O imaginário é uma força social de ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém ambígua, perceptível, mas não quantificável. Na aura de obra - estátua, pintura - há a materialidade da obra (a cultura) e, em algumas obras, algo que as envolve, a aura. Não vemos a aura, mas podemos senti-la. O imaginário, para mim, é essa aura, é da ordem da aura: uma atmosfera. Algo que envolve e ultrapassa a obra. Esta é a ideia fundamental de Durand: nada se pode compreender da cultura caso não se aceite que existe uma espécie de “algo mais”, uma ultrapassagem, uma superação da cultura. Esse algo mais é o que se tenta captar por meio da noção de imaginário (MAFFESOLI, 2001, p.75).

1 The History of Rock & Roll é um documentário de rádio sobre a música rock and roll, originalmente distribuído em 1969, que teve como objetivo documentar os principais artistas do gênero naquela época. O programa é uma história definitiva que se estende desde o início dos anos 1950 até hoje. O rockumentary, como chamaram os produtores Bill Drake e Gene Chenault, apresenta centenas de entrevistas e comentários de numerosos artistas do estilo e pessoas envolvidas com o rock and roll. (Hopkins, Jerry. 'Rockumentary' Radio Milestone. , New York, n. 30, p. 9, abril. 1969.)

13 Os rockumentários escolhidos parecem resgatar, de diferentes formas, narrativas mitológicas presentes no imaginário, as relacionando com os músicos que apresentam. Desta forma, argumentamos, fazem parte da construção da ideia do mito dos Deuses do Rock. Por mito, nos baseamos na definição do professor de Joseph Campbell, que define os mitos como histórias da busca de verdade, sentido e significação através dos tempos (CAMPBELL, 1990, p.5). A análise destas peças audiovisuais, as quais são importantes para a construção de personagens midiáticos, sobretudo quando feita pelo prisma dos estudos do imaginário, constitui uma fonte interessante para compreender processos de criação que abarcam narrativas mitológicas. Isto porque os rockumentários já propunham a composição de um imaginário acerca de bandas e músicos, mesmo antes do videoclipe, o qual se firma na indústria da música como uma parte fundamental dos processos de divulgação e produção de sentido nos anos 1980, como afirma o professor da Universidade de São Paulo Arlindo Machado (MACHADO, 2009, p.153). Este trabalho busca demonstrar uma das formas pelas quais o homem reconfigura mitos antigos através da memória e como a mídia colabora com estes ressurgimentos, bem como de que forma isso provoca/afeta e é afetado por reverberações culturais. Ressurgimento, esse, através da emergência social a partir do produto audiovisual. Analisamos a forma pela qual, por meio dessa linguagem e das escolhas poéticas dos processos de criação e comunicação, os rockumentários captados no triênio 1968-1970 e lançados ou reeditados anos depois, contribuíram para reavivar – e eternizar – as bandas no imaginário social, buscando relações com o a eclosão do imaginário do mito do salvador, o Deus Popular. Analisamos, no decorrer do presente trabalho, as montagens originais e as reedições de três rockumentários, identificando códigos audiovisuais e os respectivos contextos culturais. Defendemos que estes códigos, em sua significação, sugerem uma relação com o mito do salvador, já que o rock and roll era uma frente expressiva de diálogo e referência para o público jovem.

14 Na análise dos rockumentários, levamos em consideração a abundante quantidade de material ‘extra’, o qual nos deu pistas sobre os processos de criação e projetos poéticos dos profissionais envolvidos. Igualmente, demonstram as as interações entre os sujeitos na comunidade musical e a relação cultual com o público que fez emergir o mito dos Deuses do Rock. Os três rockumentários escolhidos foram produzidos no final da década de 1960. São eles: The Rolling Stones Rock and Roll Circus (1968), Woodstock (1969) e Pink Floyd Live at Pompeii (1971). As três obras, análogas e complementares, possuem formas distintas de retratar imageticamente as manifestações culturais do gênero rock and roll, abrangendo as esferas sociais e políticas. Análogas porque pertencem ao rock and roll como um mega-gênero musical e comportamental e, complementares, pois são compostos por vertentes paralelas e representativos de três movimentos distintos: o blues-rock dos Rolling Stones, o de Woodstock e o progressivo do Pink Floyd. Todos, no entanto, estabelecidos com o movimento psicodélico2 e as questões do culto e do sagrado.

Figura 4. Capas de edições dos três rockumentários que constituem a presente pesquisa. The Rolling Stones Rock and Roll Circus (1968), Woodstock (1969) e Pink Floyd Live at Pompeii (1971).

2 segundo a Enciclopédia Mérito (1964), a definição do significado do termo de composição “psico” é idéia de mente, espírito ou alma. Mas o termo “psicodélico”, parte da composição das palavras gregas psiké (mente) e deluon (sensorial), referindo-se a uma manifestação da mente que produz efeitos profundos sobre a experiência consciente.

15 Em 11 de dezembro de 1968, a inquietação da banda inglesa The Rolling Stones levou-os a promover o Rock and Roll Circus, que demorou vinte e oito anos para ser lançado. Na onda do Swinging London, período pós Segunda Guerra de efervescência cultural em Londres, a banda The Rolling Stones aproveitou e se integrou a essa transformação profunda de costumes, princípios e valores. Como Bill Wyman (baixista do grupo) afirmou certa vez, “os Stones estavam sempre correndo atrás das tendências”, para realizar algo revolucionário e se tornar referência (BEMVINDO, 2012, p.1). Vitor Bemvindo, historiador, em entrevista para o site Whiplash!, também comenta que a ideia central do Rock and Roll Circus era criar uma avant-garde, mesclando tendências culturais da época, tais como a reunião de diversos músicos e artistas talentosos (característica dos festivais), o poder de impacto das imagens utilizadas pelas bandas em filmes e especiais de TV, com a psicodelia típica daquela iminente circunstância (Bemvindo, 2012, p.1).

Figura 5. Fotograma do rockumentário The Rolling Stone Rock n’roll Circus: artistas e plateia se misturas no culto dos Rolling Stones.

Após especulações e longas conversas com inúmeros artistas, as bandas confirmadas foram anunciadas: Jethro Tull, , o bluesman Taj Mahal, a cantora e então namorada de , Marianne Faithfull, The Dirty Mac (a

16 superbanda de e outros astros do rock) com intervenção artística de e, por fim, os anfitriões (BEMVINDO, 2012, p.1). As filmagens foram feitas num velho galpão londrino conhecido como Roundhouse, onde toda a plateia se vestia igual, com batas e chapéus, em referência a algum tipo de culto. Menos de um ano depois, nos Estados Unidos, três dias em agosto de 1969 marcaram um dos maiores festivais musicais e culturais da história ao ar livre. Inspirado no Festival de 1967, o primeiro grande festival de rock do mundo (GRUNENBERG; HARRIS, 2005, p. 347), organizado por produtores, músicos e publicitários, o Woodstock Music & Art Fair entrou para a história. Conhecido popularmente como Festival de Woodstock ou, simplesmente, Woodstock, o evento foi anunciado como “Uma Exposição Aquariana: 3 Dias de Paz & Música”. A pequena província de Bethel (a cerca de 160 quilômetros de Nova York) que, na época, tinha cerca de 2.300 habitantes, esperava um grande público entre 60 e 80 mil pessoas (somando os três dias). Não foi o que aconteceu. A fazenda de 600 acres de Max Yasgur ficou pequena para um público de mais de meio milhão de , forçando o proprietário a retirar as cercas para que o público pudesse se espalhar até as propriedades vizinhas. Apesar de alguns artistas relevantes do rock, tais como Led Zeppelin, , , e John Lennon, terem recusado a oferta do festival, os organizadores tiveram êxito na busca por outros nomes consagrados. Entre as trinta e duas bandas confirmadas, participaram do evento nomes como , , Joe Cocker, Santana, The Who, , Creedence Clearwater Revival e .

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Figura 6. Fotograma do rockumentário Woodstock, um dos maiores festivais de música da história.

Pouco tempo depois, no ano de 1970, aconteceu o – considerado – show mais egocêntrico da história. Pink Floyd: Live at Pompeii é um rockumentário que flerta com a estética surrealista, mostrando a banda em meio às ruínas do Piazza Anfiteatro em Pompeia, na Itália, um lugar castigado pelas forças da natureza. Foi dirigido por Adrian Maben e gravado sem plateia. A relação vida- morte ganha corpo e alma ao som das músicas progressivas e psicodélicas e às imagens perturbadoras de uma cidade abandonada.

Figura 7. Fotograma do rockumentário Pink Floyd: Live at Pompeii. O concerto “considerado” o mais egocêntrico da história.

18 Estes rockumentários possuem mais de uma versão, já que, posteriormente, as três obras foram reeditadas diversas vezes, com diferentes montagens. Quanto as reedições, Cecília Salles, pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, afirma que:

O percurso criativo observado sob o ponto de vista de sua continuidade coloca os gestos criadores em uma cadeia de relações, formando uma rede de operações estreitamente ligadas. O ato criador aparece, desse modo, como um processo inferencial, na medida em que toda ação, que dá forma ao sistema ou aos “mundos” novos, está relacionada a outras ações e tem igual relevância, ao se pensar a rede como um todo. Todo movimento está atado a outros e cada um ganha significado, quando nexos são estabelecidos (SALLES, 2011, p. 94).

Dada a relevância das reedições, na tabela abaixo apresentamos as as versões posteriores dos rockumentários que fazem parte do corpus da presente pesquisa.

Rockumentário Ano de produção Lançamento Reedições

The Rolling 1968 1996 *2004, com extras de Stones Rock n' entrevistas, comentários e Roll Circus performances “perdidas”.

Woodstock 1969 1970 *versão do diretor do vigésimo quinto aniversário do festival em 1994.

*edição do quadragésimo aniversário com duas versões – edição especial e edição definitiva de colecionador, em 2009.

*versão do diretor revisitada do quadragésimo aniversário em 2014.

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*1974, contendo sessões Pink Floyd: 1971 1972 da gravação do álbum The Live at Dark Side of the Moon. Pompeii

*versão do diretor em 2003, que conta com extras de comentários, uma hora de entrevista com o diretor, imagens computadorizadas do espaço e de Pompéia, e filmagens do programa espacial Apollo.

*versão Surround Sound, de 2016. Apenas disponível como parte do boxset The Early Years 1965-1972.

Tabela 1. Reedições dos rockumentários do corpus da pesquisa.

Tendo os rockumentários e de suas respectivas reedições como o fenômeno observado na presente pesquisa, abordamos, no decorrer dos capítulos, desde o contexto em que se enquadram até a análise dos códigos audiovisuais presentes nas obras, bem como as motivações dos autores presentes em documentos de processos de criação. No primeiro capítulo, este estudo apresenta uma breve introdução ao contexto de contracultura e do mega-gênero musical e comportamental rock and roll, fazendo também uma relação entre esses dois movimentos sociais com o imaginário de Michael Maffesoli e com o contexto cultural da década de 1960, e fechando com a história dos três rockumentários. No segundo capítulo é mostrada uma teoria de apropriação de narrativas, discursos e sujeitos míticos e a exploração da memória para reviver deuses já conhecidos em novas formas. Junto com esse estudo, foi analisado a forma e a força da imagem e dos recursos fílmicos. No terceiro e último capítulo, apresentamos uma análise dos processos de produção e criação, construção das obras e dos mitos, através de interações coletivas e colaborativas. Extras com diretores, editores e músicos, bem como

20 comentários de outras pessoas envolvidas, mapearam o ponto de partida e a intenção de quem produziu esses rockumentários.

21 1. Imaginário, música e mídia

1.1 A contracultura

A emergência do mito do Deus do Rock se dá em relação a um contexto específico que permeia os rockumentários analisados. Iniciamos a pesquisa, portanto, buscando compreender as especificidades culturais do final dos anos 1960. O presente trabalho compreende o rock and roll como uma manifestação de contraculturas cujo ápice se deu nos anos 1950 e 1960. Entende-se por contracultura uma subcultura cujos princípios e regras de comportamento são diferentes ou opostos às da sociedade tradicional. Esse movimento declara as vontades de um grupo em um determinado tempo e essa força acaba promovendo mudanças culturais. Consequentemente, acarreta também em mudanças sociais e políticas. Temos como exemplos de contracultura na história movimentos como o Romantismo3 e o Bohemianismo4. No caso, a contracultura que abordamos aqui é a que surgiu na década de 1940 com a Geração Beat (1944-1964) e ganhou força no início da década de 1960 com o movimento Hippie e Swinging Sixties (1964-1974), através da atmosfera efervescente alimentada pelos jovens daquela época. Este contexto projetou o rock and roll e seus artistas.

3 O romantismo foi um movimento artístico, literário, musical e intelectual que se originou na Europa no final do século 18, e na maioria das áreas estava no auge no período aproximado de 1790 a 1850. O romantismo foi caracterizado por sua ênfase na emoção e no individualismo, bem como na glorificação de todo o passado e da natureza, preferindo o medieval ao invés do clássico. Foi em parte uma reação à Revolução Industrial, às normas aristocráticas sociais e políticas da Era do Iluminismo e à racionalização científica da natureza - todos componentes da modernidade. Foi incorporado mais fortemente nas artes visuais, música e literatura, e teve um efeito significativo e complexo na política. 4 é a prática de um estilo de vida não convencional, muitas vezes na companhia de pessoas com ideias semelhantes. O movimento que durou entre 1850 e 1910 envolvia atividades musicais, artísticas, literárias ou espirituais. Esse uso da palavra boêmio apareceu pela primeira vez na língua inglesa no século XIX para descrever os estilos de vida não tradicionais de artistas, escritores, jornalistas, músicos e atores marginalizados e empobrecidos nas principais cidades européias. Os boêmios estavam associados a pontos de vista políticos ou sociais pouco ortodoxos ou anti-establishment, que muitas vezes se expressavam através do amor livre, da frugalidade e - em alguns casos - da pobreza voluntária.

22 Esta mencionada atmosfera efervescente tratava-se do imaginário daquela geração, multicultural e diverso, cheio de ferramentas. Era pagão. Era ver para crer. Marcou o mundo, a história e influenciou gerações. Não mudou o mundo, mas mudou mentalidades. Essa juventude de uma tribo global contestava as instituições sociais, os valores e princípios, bem como as regras e padrões vigentes. Buscava a liberdade para pensar de uma maneira nova. Importante mencionarmos que compreendemos imaginário e cultura sob a ótica de Michel Maffesoli. Em entrevista publicada na Revista Famecos, Maffesoli traz resumidamente as definições de imaginário e cultura, termos que são frequentemente mencionados na presente pesquisa.

O imaginário, parece-me uma noção que deve muito à maneira francesa de pensar. Quero dizer que, tratando de imaginário em outros países, mesmo europeus, sempre observei que havia certa ambigüidade. Em geral, opõe-se o imaginário ao real, ao verdadeiro. O imaginário seria uma ficção, algo sem consistência ou realidade, algo diferente da realidade econômica, política ou social, que seria, digamos, palpável, tangível. Essa noção de imaginário vem de longe, de séculos atrás. A velha tradição é a romântica, em luta contra a filosofia e o pensamento então hegemônicos na França. Tratava-se de demonstrar como as construções dos espíritos podiam ter um tipo de realidade na construção da realidade individual. Durante muitos séculos tudo isso foi abandonado em função da dominação da filosofia racionalista. (...) A cultura, no sentido antropológico dessa palavra, contém uma parte de imaginário. Mas ela não se reduz ao imaginário. É mais ampla. Da mesma forma, agora pensando em termos filosóficos, o imaginário não se reduz à cultura. Tem certa autonomia. Mas, claro, no imaginário entram partes de cultura. A cultura é um conjunto de elementos e de fenômenos passíveis de descrição. O imaginário tem, além disso, algo de imponderável. É o estado de es pírito que caracteriza um povo. Não se trata de algo simplesmente racional, sociológico ou psicológico, pois carrega também algo de imponderável, um certo mistério da criação ou da transfiguração (MAFFESOLI, 2001).

O conjunto específico de imagens e narrativas da época, o imaginário dos jovens, foi a base para o surgimento das contraculturas que antecedem o rock and roll.

23 A obra Image Nation (2002), dos autores P. Braunstein (jornalista) e Michael Williem Doyle, famoso liberal americano, é referência para compreendermos a construção do caminho de contestações que são a fundação do rock and roll, por abordar as contraculturas da história dos Estados Unidos nos anos 1960 e 1970. A primeira das fundações para o surgimento do rock and roll, culturalmente, foi a Geração Beat. Esta nasceu nos Estados Unidos no final da Segunda Guerra Mundial (1945) com um grupo de escritores e poetas nômades que eram contra a vida materialista, a qual era produto do fim da guerra e da abundância de recursos presentes no país ao se tornar a principal potência economica mundial, a qual também englobava uma significativa desigualdade social (BRAUNSTEIN; DOYLE, 2002, p.54). O movimento começou com literatura anti-intelectualista e tradições boêmias, partindo para a pintura e outras formas de arte, até chegar na música através do folk, blues e rock and roll. Foi através da música rebelde que o movimento teve seu maior alcance. Esta expressava o descontentamento com as instituições e seu modo de dirigir o povo, com o industrialismo e consumismo. (BRAUNSTEIN; DOYLE, 2002, p.54). A Geração Beat também teve representação na política, a partir do Youth International Party (Partido Internacional da Juventude). Desta forma, começaram a debater temas polêmicos nunca discutidos publicamente, entre eles homossexualidade, drogas, sexo livre e nomadismo (BRAUNSTEIN; DOYLE, 2002, p.54). O jazz influenciava a invenção de novos termos e gírias e, com o movimento em expansão, surgiu o termo , que unia a expressão beat (batida ou ritmo, em inglês) ao sufixo ‘nik’, em referência ao pioneiro satélite soviético Sputnik (lançado em 1957). Este termo identificava o artista que pertencia a esse grupo e evidenciava o caráter revolucionário da criação de uma palavra dicotômica entre capitalismo e socialismo. Foi a partir da Geração Beat que surgiram as vertentes hippie e swinging sixties, nos Estados Unidos e na Inglaterra, respectivamente. Inclusive, muitos remanescentes hippies se auto-

24 intitulam beatniks, como John Lennon, que se inspirou na palavra beat para batizar o seu grupo musical, . (BRAUNSTEIN; DOYLE, 2002, p.56).

Figura 8. Foto de integrantes da . Fonte: circulodepoesia.com

Posteriormente, hippie foi um movimento jovem que surgiu nos Estados Unidos na década de 1960 e se difundiu por outros países ao redor do globo, reverberando e readaptando o movimento , seus princípios e linguagem. Os hippies montaram suas próprias aldeias com a filosofia de oposição ao racionalismo, sendo que a família era a comunidade e promovia a transição da cidade para o campo. Baseando-se no psicodelismo das drogas e da música, na revolução sexual e no misticismo oriental. , norte-americano ativista, poeta, filósofo e escritor, é considerado a voz pioneira da geração beat durante os anos 1950 e foi um dos muitos escritores americanos influentes de seu tempo conhecido desse movimento, junto com e William S. Burroughs. Ginsberg é o responsável pela transição entre as gerações beat e hippie. (BRAUNSTEIN; DOYLE, 2002, p.63).

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Figura 9. Jovens do movimento hippie. Fonte: hypeness.com.br

A década de 1960 foi marcada por diversas manifestações batizadas de ‘be-ins’, que eram eventos populares de protestos sociais e políticos. Dentre os temos abordados, estavam a segregação racial, a homossexualidade e a Guerra do Vietnã. Estas manifestações aconteciam em sua maioria no Central Park, em Nova Iorque, Estados Unidos e, por isso, ficaram conhecidas como Central Park be-ins. Esse local foi escolhido porque, em 1965, foi declarado patrimônio histórico nacional e os organizadores acreditavam que seria o lugar perfeito para se manifestar. De 1967 a 1970, o parque foi tomado por diversas manifestações, com milhares de pessoas, tendo também a participação de artistas e profissionais da mídia. Contavam com apresentações e participações de cantores folk, bandas de rock and roll, veteranos de guerra, grupos religiosos, afro-americanos, grupo de mulheres porto-riquenhas e grupos indígenas. Além disso, nestas manifestações discursaram lideres influentes, como Martin Luther King, Jr. (ativista e pastor batista norte-americano que se tornou o mais visível porta-voz e líder do movimento dos direitos civis de 1954 até seu assassinato

26 em 1968), Benjamin Spock (pediatra norte-americano, autor do best-seller Baby and Child Care [1946]) e James Bevel (pastor e líder do Movimento dos Direitos Civis nos Estados Unidos) (BRAUNSTEIN; DOYLE, 2002, p.24-25). Também do outro lado do país, em São Francisco, acontecia a principal popularização do movimento, no ano de 1967, com o evento Human Be-In. Igualmente, diversos pensadores e artistas discursavam, desta vez no Golden Gate Park, sobre filosofia hippie, descentralização cultural e política, vida comunitária, consciência ecológica, uso de drogas psicodélicas para uma consciência superior e direitos individuais. Bandas locais, como Jefferson Airplane, The Grateful Dead e Santana fizeram apresentações musicais (BRAUNSTEIN; DOYLE, 2002, p.135).

Figura 10. Poster do evento Human Be-in, em São Francisco, Estados Unidos. Fonte: recordmecca.com

27 O Human Be-In desencadeou outras manifestações culturais, como o de São Francisco e o Festival de Woodstock. Summer of Love, (verão do amor) foi um fenômeno social que ocorreu durante o verão de 1967, quando cerca de 100.000 pessoas, a maioria jovens hippies, se reuniram no bairro de Haight-Ashbury, em São Francisco. Embora também se reunissem em muitos outros lugares nos EUA, no Canadá e na Europa, São Francisco era, naquela época, o local mais divulgado para a subcultura hippie. (BRAUNSTEIN ;DOYLE, 2002, p.7). O movimento também provocou reverberações em outros países, dispostos na tabela abaixo:

Reunem-se no Festival Rock y Ruedas de Avándaro (1971). formando , um movimento artístico multidisciplinar de vanguarda, criado por artistas e intelectuais como parte das ondas mundiais da contracultura dos anos 1960 (MARROQUIN, 1975), jipitecas (hippies abrangendo produções artísticas nos mundos do cinema, mexicanos) literatura, artes visuais e música. Também abordou questões sociais da época como os direitos das mulheres, ecologia, espiritualidade, liberdade artística, uso aberto de drogas e democracia (GARCIA; PARMENIDES, 1972). Reunem-se no Festival de Nambassa, uma série de housetruckers festivais de artes e rock and roll ocorridos entre 1976 e (nômades da 1981 em grandes fazendas ao redor das cidades Waihi e Nova Zelândia) Waikino, na Nova Zelândia, defendendo um estilo de vida ecológico, medicina alternativa, energia limpa/sustentável e alimentos não adulterados. Reunem-se no Nimbin , festival de hippies contracultura de artes e música, organizado pela União australianos Australiana de Estudantes, em 1971 e 1973. Reunem-se no evento Festival em 1970,

28 hippies chilenos festival de rock and roll no Chile conhecido como uma expressão da contracultura hippie na América do Sul, semelhante ao Woodstock. em 1970, no Reino Unido, reunindo cerca de 400.000 pessoas. Esse foi o último de três hippies ingleses festivais consecutivos entre 1968 e 1970, e contou com bandas de rock and roll como Jefferson Airplane, T. Rex, Joe Cocker, The Who e Bob Dylan, entre outros. Tabela 2. Reverberações do movimento hippie no mundo.

Paralelamente com o movimento hippie, uma vertente de jovens no Reino Unido batizada de Swinging Sixties ou Swinging London, lançava uma revolução contracultural na década de 1960 que exaltava o hedonismo, enfatizando a modernidade. Nessa época, o serviço militar obrigatório foi cancelado gerando, assim, jovens com menos responsabilidades e maior liberdade para começar a moldar mudanças culturais, sociais e políticas. O crescimento na música, na arte e na moda fortaleceu a . A British Invasion foi um fenômeno cultural na década de 1960, quando o rock and roll e a cultura pop do Reino Unido tornaram-se populares nos Estados Unidos e significantes para a crescente contracultura de ambos os lados do Atlântico. Bandas como The Beatles e The Rolling Stones eram os líderes do movimento, acompanhados de The Who, e The Small Faces. A minissaia de Mary Quant, estilista britânica, chegava para abalar padrões e ajudar nas discussões da liberdade sexual (PERONE, 2004, p.22).

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Figura 11. A estilista Mary Quant usando uma minissaia. Fonte: vogue.it

O ativismo político e antiguerra fazia parte do movimento, e atraia para Londres todos os tipos de artistas de diferentes áreas. Um movimento com liberdade de expressão, direitos individuais, experimentações, muita cor e comédia. A capital escura do pós-guerra se tornou “um epicentro luminoso” (BRAUNSTEIN ;DOYLE, 2002, p.207). , guitarrista do The Rolling Stones, em depoimento no rockumentário The Rolling Stones Rock and Roll Circus, fala um pouco sobre essa época e nos elucida:

(…) a geração de 1960 teve um peso especial. Foi a que nasceu da guerra, ou pouco depois dela. Estávamos maduros o bastante para saber que não queríamos continuar daquele jeito. Queríamos mudar as coisas. Obviamente teve suas repercussões. Todo mundo pensava da mesma maneira. Quero dizer, por que os anos 1960 foram especiais? Provavelmente porque a Segunda Guerra foi especial. Ela teve muita repercussão nas gerações seguintes. Quando tudo está calmo, as coisas não mudam muito. Não que eu esteja defendendo uma guerra para incitar mudanças. Os anos 1960, especialmente o que saiu da Inglaterra, se deve àquela geração pós-guerra. Cidades bombardeadas e o velho estilo de vida já não funcionavam mais. Havia uma sensação no ar de que as coisas precisavam mudar e, como éramos adolescentes na época, havia muita testosterona e rebeldia à solta. Aboliram o

30 recrutamento militar. Isso deve ter ajudado. Não haveria tantas bandas de rock se continuasse havendo serviço militar. Só pararam dois anos antes de chegarmos à maioridade. E isso inclui os Beatles, a mim e as pessoas da minha idade. Crescemos com a ideia de que aos 18 anos, iríamos para o exército por dois anos. Mesmo que tenham abolido o serviço militar, já tínhamos crescido com a ideia de que isso ia acontecer e de que não tinha como se livrar. Acho que as bandas surgiram do alívio. 'Aboliram!'. Aí, de repente, íamos fazer o que ao chegar aos 18 anos? De repente, tínhamos todo aquele tempo livre, tudo mudou. Deve ser por isso também que os anos 1960 explodiram, especialmente na Inglaterra.

Yoko Ono, artista multimídia e mulher de John Lennon na época, no mesmo rockumentário, ao falar sobre o processo de criação do mesmo, completa:

foi apenas um dia de nossas vidas, e não sabíamos o quanto ele seria importante. Do jeito que levávamos a vida, todo dia era importante. E também estávamos muito doidos. Isso foi feito em um momento de loucura muito bom. As coisas eram assim na Londres dos anos 1960.

Além dos músicos que participaram do movimento, Simon Rycroft, pesquisador da Universidade de Sussex, em sua obra Mapping Swinging London. Swinging City: A Cultural Geography of London 1950–1974, fala da “importância de Swinging London como um momento poderoso de criação de imagens com um efeito material muito real” (RYCROFT, 2016, p.87). Na década de 1960, é importante ressaltar especificamente o ano de 1968 como um dos marcos da história da contracultura pelo mundo. Nos Estados Unidos, jovens inspirados pelos valores de igualdade e liberdade foram às ruas contra a guerra do Vietnã e pelo assassinato de Martin Luther King, Jr. Além disso, o México protestava em razão da chacina de mais de duzentos estudantes pelas forças de ordem, no que ficou conhecido como o Massacre de Tlatelolco5. No Brasil, as manifestações de sindicalistas e estudantes

5 1968: exército mexicano abre fogo contra multidão de estudantes. Disponível em < http://operamundi.uol.com.br/conteudo/historia/24628/hoje+na+historia+1968+- +exercito+mexicano+abre+fogo+contra+multidao+de+estudantes.shtml > . Acesso em 10/04/2018.

31 continuaram até a implantação do Ato Institucional 5, o AI 5, que censurava qualquer tipo de arte que abordava temas políticos e valores supostamente imorais6. Na França, o movimento dos estudantes entrou em choque com a polícia, pelo fim da sociedade conservadora, causando uma greve geral da população francesa. Vários países europeus se mobilizaram e entraram na onda da manifestação francesa7. A manifestações reuniu um grupo de intelectuais críticos da sociedade francesa daquela época, guiados por Guy Debord, que em sua obra A Sociedade Do Espetáculo era a principal referência. A crítica era sobre uma sociedade mediada por uma cultura de imagens, e o livro ataca exatamente esse ponto: a sociedade de consumo e a relação entre as pessoas/espectadores inertes aos assuntos. A crítica é a mesma: uma sociedade construída e guiada pelos valores familiares, religiosos e políticos. Mas essa década foi base para toda revolução sócio-cultural e ascensão das minorias. (SIQUEIRA, 2013). Guy Debord afirmava:

Nunca a tirania das imagens e a submissão alienante ao império da mídia foram tão fortes como agora. Nunca os profissionais do espetáculo tiveram tanto poder: invadiram todas as fronteiras e conquistaram todos os domínios – da arte à economia, da vida cotidiana à política -, passando a organizar de forma consciente e sistemática o império da passividade moderna (DEBORD, 1997)

Em 1973, Debord lança o filme A Sociedade Do Espetáculo, uma versão audiovisual do livro que pretendia usar o meio para criticar a sociedade. Sendo assim, usou a “cultura de imagens” para fins subversivos, como o próprio rock and roll fez. No livro 1965: o ano mais revolucionário da música, o autor Andrew Grant Jackson (2016, p.27), cita uma entrevista do cantor e compositor Arlo Guthrie, que diz:

6 Fatos e imagens: o AI5. Disponível em < http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/AI5 >. Acesso em 10/04/2018. 7 Grande greve de Maio de 1968 na França completa 50 anos. Disponível em < http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-05/grande-greve-de-maio-de-1968-na-franca- completa-50-anos >. Acesso em 10/04/2018.

32 As empresas, os empresários e as mulheres que controlavam o ramo do entretenimento não entenderam as letras das músicas que estavam vendendo. Os caras nas rádios não compreenderam. Os donos das rádios não compreenderam. Os donos das rádios não tinham ligação com a música, no sentido de entendê-la. Pela primeira vez, houve uma explosão de toda a diversidade de música tocada. Com letras incompreensíveis. Não só as letras. Sua filosofia, e essência eram ilegíveis, incompreensíveis para as pessoas que comandavam a indústria. Por isso, de repente, em todo o mundo, durante um breve espaço de tempo... imagine um mundo no qual todos têm um rádio e subitamente todo mundo sai dizendo o que de fato pensa, em palavras que você pode entender, mas seus pais, não... uma comporta tinha sido aberta, porque estávamos usando uma linguagem que não podia ser compreendida por quem estava fora do sistema usado para veiculá-la. e isso era muito maravilhoso. pessoas andavam pela rua apenas rindo, se divertindo, porque, de repente, tinha liberdade (JACKSON, 2016, p.27).

Para compreendermos este novo momento de expressão cultural nos meios de comunicação, precisamos retornar um pouco na história americana e citar dois importantes momentos: a ascensão econômica do pós-guerra (neste caso, a Primeira Guerra Mundial), levando à concepção do American Way of Life e o baby boom dos anos 1950. O American Way of Life era a tentativa de um estilo de vida único do povo dos Estados Unidos. Refere-se à um ethos nacionalista que adere ao princípio da vida, da liberdade e da busca da felicidade. No centro do American Way of Life está o American Dream, de que a mobilidade ascendente é alcançável por qualquer americano através do trabalho duro. Este conceito está entrelaçado com o conceito de excepcionalismo americano, que vê os Estados Unidos como país superior, com uma cultura única (SAMUEL, 2017, p.5). Já o baby boom, fenômeno dos anos 1950, durante a Guerra Fria, foi um período marcado por um aumento significativo da taxa de natalidade nos Estados Unidos. As causas do baby boom envolvem vários fatores, sendo a mais importante o fim da Segunda Guerra Mundial. Ocorreu em meio a um período de melhoria da economia e melhora do padrão de vida do povo americano (REHER, 2015, p.58).

33 Richard Sennett, historiador norte-americano, complementa que a onda capitalista gerada por fenômenos como os recém descritos destrói a relação entre as pessoas sobretudo em razão da competitividade. Desta forma, as relações de trabalho, os laços de afinidade com os outros não se processam no longo prazo, em decorrência de uma dinâmica de incertezas e de mudanças constantes de emprego e de moradia que impossibilitam os indivíduos de conhecer os vizinhos, fazer amigos e manter laços com a própria família. Este é o grande desafio, segundo Sennett, que as pessoas têm que enfrentar. É um cenário onde as relações humanas são uma simulação teatral, lugar de um poder sem autoridade. O problema do caráter nesse tipo de sistema é que há história, mas não existe narrativa partilhada com os outros e, assim, o caráter se corrói em um sistema capitalista que valoriza o descartável, o volúvel, o curto prazo, e, acima de tudo, o individualismo. Em suas palavras, Sennett complementa que “caráter é (...) o valor ético que atribuímos aos nossos próprios desejos e às nossas relações com os outros, ou se preferirmos (...) são os traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem” (SENNETT, 1999, p.10-27). O cenário criticado por Sennet, sobretudo no pós-Segunda Guerra, era precisamente o contexto que o jovem dos movimentos contraculturais mencionados na pesquisa pretendia tensionar, ao trazer em suas ideologias a sugestão de uma nova onda cultural e estilo de vida. Desta forma, os meios de comunicação em massa (cinema, televisão e rádio), em plena ascensão, foram o espaço que jovens aproveitaram para propagar suas manifestações e aproximar a juventude em torno do mesmo propósito. Edgar Morin, antropólogo, sociólogo e filósofo francês, explica que a transformação na organização, produção, distribuição e aquisição do conhecimento é apenas um dos aspectos entre outros de uma transformação mais visceral que envolve processos cognitivos que se entrelaçam com aparatos de cultura, modelos comunicacionais, recursos tecnológicos e dispositivos de interação (MORIN, 2002, p.19-25).

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As sociedades só existem e as culturas só se formam, conservam, transmitem e desenvolvem através das interações cerebrais/espirituais (troca que se estabelece através de capacidades cognitivas biológicas, sociais, antropológicas e culturais) entre os indivíduos. (...) O conhecimento de um indivíduo alimenta-se de memória biológica e memória cultural associadas em sua própria memória (memória biológica, de memória cultural, associadas em sua própria memória, que obedece a várias entidades de referência, diversamente presentes nela) que obedece às várias entidades de referência diversamente presente (MORIN, 2002, p.19-25).

Os valores hippies, tais como a vida comunitária, os direitos das minorias raciais e culturais, direitos civis das mulheres e homossexuais, legalização das drogas psicodélicas, liberdade sexual, valorização da natureza, alimentação natural, luta contra qualquer tipo de conflito e críticas ao consumo e a política, tiveram um grande efeito na cultura, influenciando a música popular, a televisão, o cinema, a literatura e as artes. E, principalmente, o rock and roll. A construção do mito no audiovisual (deuses do rock) passa primeiro pela pela construção do mito no âmbito sócio-cultural (deuses populares), os quais surgem do imaginário dos jovens infiltrados nesses movimentos e manifestações. Estes viram, através da arte, e especificamente através da música rock and roll, uma forma de mediar e reverberar questionamentos e críticas sociais, políticas e culturais, pela linguagem utilizada e pelo alcance da voz. E pela propagação das ideias e ideais em canções e comportamento. No livro O Poder do Mito, Joseph Campbell e Bill Moyers explicam que “... aquilo que os seres humanos têm em comum se revela nos mitos” (1990, p.5). E que “mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação, através dos tempo” (ibidem). Desta forma, os mitos

nos proporcionam a experiência de estar vivos, de modo que nossas experiências de vida, no plano puramente físico, tenham ressonância no interior de nosso ser e de nossa realidade mais íntimos, de modo que realmente sintamos o enlevo de estar vivos (CAMPBELL, 1990, p.5).

35 A partir destas definições, consideramos que o rock and roll, em seu conjunto de narrativas e imagens, seja a fundação para a emergência do mito do Deus do Rock, personificado nos maiores expoentes deste gênero musical. A seguir, falaremos sobre este conjunto de narrativas e imagens, o imaginário do rock and roll.

1.2 O rock and roll

Para entender o poder da significação das bandas de rock nos processos comunicacionais e sociais, é preciso entender a força maior do signo rock and roll e o poder que representa esta contracultura. O rock and roll é um mega-gênero musical e comportamental, que nasceu de uma rede de criação misturada entre ritmos de diversas ordens. Criado por pessoas várias idades, classes, sexos, raças, cores, credos e religiões, em um movimento de serpente eletrizante entre homem, natureza, paisagem e alegorias. Uma criação barroca, na definição do jornalista e poeta Severy Sarduy, o qual define “barroco” como “expressão” singular (SARDUY, 1999, p.1199). E é esse motivo e essa mistura mutante-metamórfica que permite o rock and roll trilhar o tempo. Ainda sobre o barroco, Sarduy nos recorda as origens do termo que, em português, é a pérola irregular. Porém é no espanhol barrueco/barrocal que o significado é mais intenso: áspero conglomerado; objeto elaborado, minucioso, rebuscado (ibidem). O rock and roll e todo o seu materialismo cultural, como o crítico cultural Raymond Williams relata, é uma “teoria das especificidades da produção cultural e literária material, dentro do materialismo histórico” (WILLIAMS, 1979, p.12). O gênero nasceu como um símbolo de libertação para uma geração angustiada, censurada, reprimida e oprimida. Essa luz da contracultura surgiu na necessidade da liberdade individual e de expressão. Aproxima-se do que fala Morin na apresentação de seu livro Método 4, no qual diz que "o método trata da vida, do espírito, das ideologias, do imaginário, da luta entre escolas diferentes de pensamento e da necessidade de tolerância"

36 (MORIN, 2011, p.9). É assim que compreendemos a contracultura rock and roll. Para entendermos o movimento, não objetivamos as coisas que existem no mundo real, mas sim as coisas que recebem sentido por meio do discurso. Williams aconselhava a compreensão da cultura como modo de vida, sugerindo uma ideia mais ativa de um campo de forças que se determinam mutuamente, mas também de forma desigual (WILLIAMS, 2005, p.20-25). Sendo assim, além de estudar as expressões e os significantes nas artes, temos de interligá-las também às formas e relações da vida social geral, incluindo o sujeito coletivo e suas reflexões na sociedade e visão de mundo. Para ele, todos e quaisquer atos criativos estruturam, dentro de um demarcado intervalo histórico, uma identidade específica: “uma comunidade visível na estrutura de sentimento e demonstrável, acima de tudo, na fundamental escolha das formas” (ibidem). O termo rock and roll (em tradução livre, "balançar e rolar"), nasceu no rádio. A expressão era uma gíria entre os afro-americanos desde o início do século XX, para referir-se ao ato sexual. O batismo do gênero musical costuma ser atribuído ao disc jockey (DJ) norte-americano Alan Freed (1922-1965), também conhecido como Moondog, cujo programa de rádio foi um dos principais responsáveis pela popularização do termo e do estilo da nova onda dançante que logo contagiou a juventude dos Estados Unidos e de muitos outros países.

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Figura 12. Alan Freed, o Mister Rock n’Roll. Fonte: wbur.org

Além de apresentar artistas e lançar novos talentos em seu programa, Freed fazia a promoção de shows conhecidos como Rock‘n’Roll Jamboree (reunião para comemoração do rock and roll e diversão de jovens de todo o mundo). Esses shows, além de divulgar o novo estilo musical, tinham um propósito social frente a forte segregação racial: a reunião de plateias miscigenadas em um mesmo auditório, com jovens negros e brancos, assim como no palco. Era um ensaio da liberdade e da igualdade que os jovens tanto pareciam almejar. Bruno Latour, antropólogo, sociólogo e filósofo francês, comenta que esse “conjunto de práticas cria, por tradução, mistura entre gêneros de seres completamente novos, híbridos de natureza e cultura” (LATOUR, 1994, p.149). O clima de exteriorização de todos os sentimentos reprimidos nas Jamborees causava explosões de êxtase e demonstrações de selvageria contra o sistema,

38 resultando na destruição dos cinemas, teatros ou qualquer outro lugar escolhido para a confraternização. Podemos relacionar este comportamento, bem como o processo de identificação que representa, com o que é dito pelo antropólogo brasileiro Mauro Guilherme Pinheiro Koury em seu artigo Processo comunicacional e intersubjetividade em Gabriel Tarde.

A imitação para Tarde, deste modo, encontra-se ligada ao processo de identificação, em suas múltiplas e possíveis direções de propagação. Este processo de identificação, porém, se serve, de um lado, como elemento estruturador de um olhar contemporâneo de um tempo e de um espaço específico, ocupa também e, sobretudo, de outro, o vasto terreno que vai das categorias de dominação a de controle e influência, indo até às categorias de resistência e de contra-repetição. A categoria da imitação é, para Tarde, portanto, uma fonte de oposição e de inovação. Segundo Vargas, cada progresso do saber “tende a nos convencer de que todas as semelhanças são devidas a repetições”. (...) O sujeito da ação ao imitar, repassa todas as formas sociais dispostas como dominantes e que o colocam como ser no mundo. (KOURY, 2005, p. 139)

Este processo de identificação, resultando na replicação de comportamento por vezes considerados agressivos, tornou-se o ponto de partida para todos os tipos de perseguição que o rock and roll iria sofrer durante sua longa jornada, relata Marcos Tottene ao site dizzmusic, em seu artigo "Alan Freed - O Herói do Rock"8. Mesmo assim, como uma forma de aproveitar a veloz e já consolidada popularidade do rock and roll, produtores, diretores e artistas resolveram trabalhar em conjunto para elevar mais ainda o gênero e, consequentemente, seus nomes. De volta ao fim dos anos 1960, este é considerado um dos períodos mais culturalmente frenéticos do século XX por haver uma grande convergência de ideias e conceitos precursores, enriquecidos pelo espírito da contracultura e pelo

8 TOTTENE, Marcos. Alan Freed - O Herói do Rock. Disponível em: . Acesso em 25/11/2015.

39 ímpeto inovador e criativo de uma geração que não tinha limites para seus sonhos e delírios utópicos. Festivais musicais revolucionários e manifestações artísticas vanguardistas propagavam ideais e dominavam o contexto intelectual. Este contexto é importante para compreender o rock and roll, pois Morin destaca que A construção social da realidade, portanto, está em reintroduzir o objeto em seu contexto reconhecendo a relação parte-todo, em considerar a diversidade na unidade e a unidade na diversidade, de distinguir sem fragmentar, de reconhecer a completude, a hibridação, entre o caos e a ordem, o modelo e o desvio concebendo o enraizamento do conhecimento/sociedade como um “anel recursivo” (...) o conhecimento se porta como produto/produtor de uma realidade sociocultural em que a dimensão cognitiva é preponderante. (MORIN, 2002, p. 25-26)

O rock and roll atravessou a barreira entre gênero e cultura, ou melhor, contracultura, para se imortalizar na história. Por isso entende-se que o rock and roll é um modelo de representação que possui a significação que o discurso adquire, sendo produzida pelo processo de interação entre os diferentes sujeitos. Essa contracultura, como explica Boaventura de Souza Santos, professor da Universidade de Coimbra, deve “passar de monoculturas a multiculturalismo, reconhecendo as diferenças entre as culturas com seus respectivos saberes” (SANTOS, 2005, p.107-108). Complementando a ideia do autor: O conhecimento-emancipação tem de converter-se num senso comum emancipatório: impondo-se ao preconceito conservador e ao conhecimento prodigioso e impenetrável, tem de ser um conhecimento prudente para uma vida decente. A reinvenção do senso comum é incontornável dado o potencial desta forma de conhecimento para enriquecer a nossa relação com o mundo. Apesar de o conhecimento do senso comum ser geralmente um conhecimento mistificado e mistificador, e apesar de ser conservador, possui uma dimensão utópica libertadora que pode valorizar-se através do diálogo com o conhecimento pós-moderno (SANTOS, 2005a, p. 107-108).

O rock and roll, produto da dimensão utópica citada por Santos, se reproduz através de manifestações. Esta manifestação cultural é uma forma de expressão humana baseada na cultura de um povo e maneira de expor esses

40 pensamentos para o mundo, seja através de celebrações, rituais e/ou qualquer forma de registro (verbal, escrito, linguístico, artístico, etc.). Mas não podemos confinar a palavra cultura apenas ao seu conceito, pois na estrutura de seus significados, como cita Williams, a cultura é “um movimento amplo e geral de ideias e sentimentos” (WILLIAMS, 1969, p. 19).

Figura 13. Fotografia de uma manifestação contra a Guerra do Vietnã. Fonte: pinterest.com

Sendo assim, constrói-se um patrimônio que expressa uma forma de sentir e uma visão do mundo. Como afirma o doutor em Sociologia Cristiano Bodart “em sua origem, o patrimônio estava ligado às estruturas familiares, econômicas e jurídicas de uma sociedade estável, enraizada no tempo e no espaço” (BODART, 2010) e que a transição do significado de patrimônio histórico para patrimônio cultural “designa um bem destinado ao usufruto de uma comunidade, constituído pela acumulação contínua de uma diversidade de (...)

41 trabalhos e produtos de todos os saberes das comunidades humanas” (ibidem). E ele complementa:

O patrimônio também se constitui como uma linguagem que expressa uma forma de sentir e pensar um acontecimento, um tempo, uma dada forma de ver as coisas do mundo (...). Deste modo, o significado de patrimônio cultural é muito mais amplo, incluindo diversos produtos do sentir, do pensar e do agir humano. Portanto, tem-se que o patrimônio pode abarcar manifestações culturais intangíveis, como as tradições orais, a música, idiomas e festas, além dos bens artísticos. Neste sentido, as festas populares expressam as formas identitárias de grupos locais, onde o motivo de encontro (...) atrai e identifica devotos e indivíduos de mesma identidade. (...) é a valorização e o conhecimento dos bens culturais que podem contar a história ou a vida de uma sociedade, de um povo, de uma comunidade. (...) Será através do contato com tais bens que conheceremos a memória ou até mesmo a identidade de um povo (BODART, 2010).

Na prática, uma das características deste patrimônio são os trajes e performances dos cantores, que se apropriavam da fauna e da flora, como fontes de diversos adereços e alegorias multiculturais.

Figura 14. Fotograma do rockumentário Woodstock. Mulher usa chapéu com penas e colar simbolizando um pavão.

42 Norval Baitello Junior, pesquisador da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nos explica que o corpo é um veículo de imagens, que é muito explorado pelos artistas. Baitello afirma que:

Uma das maneiras de apropriar-se das superfícies e dos planos que podem carregar imagens foi a invenção da vestimenta. Inspirado nas máscaras e nas pinturas corporais, o homem começou a vestir-se com outras peles e superfícies estranhas ao próprio corpo (...) E como as superfícies são apropriadas para carregar imagens, as roupas também o fazem: emprestam aos corpos que as vestem suas cores, suas formas, seus sentidos, que podem mudar de acordo com a situação social, de festa, de guerra ou de culto (BAITELLO, 2012, p.43).

Sendo o corpo dos músicos um suporte para esta comunicação de imagens atreladas aos ideais do rock and roll, com características visuais andrógenas e com o corpo se movimentando com as músicas agitadas, transparecia uma energia sexual. Os músicos do rock sabiam deste potencial e usavam seus corpos como veículos de imagens, os quais Aby Warburg, historiador de arte alemão, chamaria de Bilderfahrzeug9. Essa imagem impactante que se desdobra, era criatura e criadora de um ambiente. A vida começou a se expressar nessas manifestações, nessas festas, nessas ruas, de forma paralela, sem contiguidade espaço-temporal. E essa arte era o veículo imagético da cultura. Arte como leitura globalizante, sensível da obra (ver o que não se está vendo), e não apenas imanência estetizante (a beleza que restringe a amplitude). É inteligência de associação.

Alimentar-se de imagens significa alimentar imagens, conferindo-lhes substância, emprestando-lhes os corpos. Significa entrar dentro delas e transformar-se em personagem. Ao contrário de uma apropriação, trata-se aqui de uma expropriação de si mesmo. (BAITELLO JUNIOR, 2014, p.130)

9 Aby Warburg e os arquivos da memória. Disponível em < http://www.educ.fc.ul.pt/hyper/resources/aguerreiro-pwarburg/ >. Acesso em 13/05/2018.

43 Para Antônio Paiva Moura, historiador, "as manifestações populares possuem um caráter ideológico uma vez que comemorar é, antes de mais nada, conservar algo que ficou na memória coletiva" (MOURA, 2001). Por isso, todas as características do rock and roll, desde as vestimentas até o comportamento, são importantes para a sua inserção na memória coletiva. Estas manifestações diversas, portanto, alimentam o imaginário. Morin diz que "o conhecimento está ligado, por todos os lados, à estrutura da cultura, à organização social, à práxis histórica", que "todo conhecimento, inclusive o científico, está enraizado, inscrito no e dependente de um contexto" (MORIN, 2002, p. 17), e completa que “um indivíduo alimenta-se de memória biológica e de memória cultural" (MORIN, 2002, p.27). Para Williams os atos culturais- criativos compõem, dentro de determinado período histórico, uma comunidade específica: “uma comunidade visível na estrutura de sentimento e demonstrável, acima de tudo, na fundamental escolha das formas” (WILLIAMS, 2005, p. 20 e 24-25). Formas que são a sobrevida de imagens em movimento.

1.3. O contexto da contracultura rock and roll

Como explicado acima, não existe uma forma de estudar o rock and roll sem também levar em consideração os movimentos de contracultura, afinal o contexto é fundamental para o conhecimento. Para compreender o contexto cultural que nos ajuda a elucidar as questões da pesquisa, fazemos uso de uma linha do tempo do ano de 1965, composta por Andrew Grant Jackson no livro 1965, O ano mais revolucionário da música. Em apenas um ano, esta tabela consegue transparecer o quanto foi importante fazer uso das mídias para transmitir ideologias e como os acontecimentos foram andando lado a lado para a ascensão do mito do deus do rock.

44 1965 Eventos Janeiro “I Feel Fine”, dos Beatles, permanece no topo das paradas pela segunda 1 semana, num total de três, com a primeira utilização intencional de microfonia em uma gravação. O presidente Lyndon Johnson anuncia os planos de seu programa de 4 governo para a “Grande Sociedade”, como o Medicare, que tem o intuito de gerar “fartura e liberdade para todos”. Os Rolling Stones gravam sua versão da canção gospel dos Staple Singers, 11-12 “The Last Time”, e o pop de câmara barroco “Play with Fire”. Bob Dylan grava Bringing It All Back Home, misturando letras folk 13-15 psicodélicas com rock and roll. “Once a Day”, de Connie Smith, encerra sua temporada de oito semanas no 16 primeiro lugar nas paradas country, que foi recorde para uma mulher até 2012. Posse de Lyndon Johnson atrai o maior público já registrado até a de Barack 20 Obama, em 2009. gravam “Mr. Tambourine Man”, juntando as guitarras estridentes e 20 o ritmo dos Beatles com as letras surrealistas de Dylan e uma introdução inspirada em Bach Fevereiro John Coltrane lança sua obra-prima, A Love Supreme, em fevereiro (a data 1 exata é desconhecida). James Brown grava “Papa’s Got a Brand New Bag” em uma hora, inventando 1 o funk. “You’ve Lost That Lovin’ Feeling” se torna a música mais longa a alcançar o 6 primeiro lugar até então, com 3:45. Martha and the Vandellas lançam “Nowhere to Run”, que se tornaria um hino 10 para soldados e manifestantes, além de uma inspiração para o riff de “Satisfaction”. Durante manifestação pelo direito ao voto, o negro Jimmie Lee Jackson é 18 baleado no estômago e morto por um policial estadual em Selma, Alabama. “I’ve Got a Tiger by the Tail”, de Buck Owens, chega ao topo da parada 20 country, incorporando a essência do som de Bakersfield . 21 Malcolm X é assassinado. Março Presidente Johnson ordena a campanha de bombardeio 2 contra o Vietnã do Norte. “My Girl”, dos Temptations (composta em parceria e coproduzida por Smokey 6 Robinson ), chega ao topo das paradas. O hino do movimento pelos direitos civis de Sam Cooke, “A Change Is Gonna 6 Come”, alcança sua melhor posição, o 31º lugar. A rede de TV ABC interrompe o filme da noite de domingo, Julgamento em Nuremberg, para transmitir imagens de manifestantes a favor dos direitos 7 civis sendo espancados por policiais do Alabama em um incidente que ficou conhecido como “Domingo Sangrento”. The Deacons for Defense and Justice, uma organização armada pródireitos 8 civis, é formada na Louisiana. Os primeiros combatentes chegam ao Vietnã. Três mil e quinhentos fuzileiros 8 desembarcam em China Beach e se juntam aos 2.300 assessores militares norte-americanos que treinavam os sul-vietnamitas. Lançamento de Today!, disco de precursor de 8 Pet Sounds, que exibia uma variedade instrumental impressionante. Durante um discurso na TV, em apoio aos manifestantes em Selma, o 15 presidente Johnson promete que o país vai superar a situação (“We Shall

45 Overcome”). A ativista de 82 anos Alice Herz ateia fogo ao próprio corpo em Detroit para 16 protestar contra o envolvimento norte-americano no Vietnã. Três mil e quinhentas pessoas comparecem a um seminário sobre o Vietnã 24-25 na Universidade de Michigan, promovido pela organização Students for a Democratic Society (SDS). A marcha de Selma a Montgomery se encerra com 25 mil pessoas reunidas 25 diante do capitólio estadual do Alabama. Martin Luther King Jr. faz seu discurso “How Long? Not Long!”. O hino do movimento pelos direitos civis de Curtis Mayfield and , “People Get Ready”, alcança o 14º lugar nas paradas, sua 27 melhor posição. Mais tarde no mesmo ano, Bob Marley and The Wailers o adaptam em “One Love”, na Jamaica. 27 Lançamento de Bringing It All Back Home, de Dylan. John Lennon e recebem pela primeira vez, sem seu 27 consentimento, uma dose de LSD das mãos do dentista de Harrison. Abril “Got to Get You Off My Mind”, de Solomon Burke, inspirada na morte do 3 amigo Sam Cooke, chega ao primeiro lugar das paradas de R&B. Os Staple Singers gravam “Freedom Highway”, sobre a marcha de Selma a 4 Montgomery, na igreja New Nazareth, em Chicago (em um domingo não especificado de abril). O guitarrista deixa os Yardbirds por achar a faixa “For Your 13 Love” marcada pelo excesso de clavecino, pop demais. A banda tenta recrutar Jimmy Page, que recusa e indica Jeff Beck . Lançamento de O homem do prego nos cinemas norte-americanos, que 20 exibia os primeiros seios nus aprovados pelo órgão de classificação de filmes dos Estados Unidos Maio O hino do movimento pelos direitos civis “We’re Gonna Make It”, de Little 1 Milton, chega ao primeiro lugar das paradas de R&B. O Grateful Dead (sob o nome de Warlocks) estreia no Magoo’s Pizza, na 5 área da baía de São Francisco. James Brown regrava “I Got You (I Feel Good)” em Miami, Flórida, em seu 6 novo estilo funk. Os Rolling Stones compõem “Satisfaction” à beira da piscina de um hotel em 6 Clearwater, Flórida, como uma canção folk estilo Dylan. A Invasão Britânica nos Estados Unidos chega ao auge: oito dos dez singles 8 mais vendidos no país são ingleses (e um australiano). Os Rolling Stones adaptam “Satisfaction” ao ritmo de “I Can’t Help Myself 12 (Sugar Pie, Honey Bunch)”, dos Four Tops . De 10 a 30 mil pessoas comparecem a um seminário antiguerra em 21-23 Berkeley, Califórnia. The Who lança “Anyway, Anyhow, Anywhere”, com um instrumental 21 vanguardista usando microfonia. “I’ll Be Doggone”, de Marvin Gaye (escrita em parceria com o produtor 22 ), chega ao topo das paradas de R&B com um riff influenciado pelo proto “Needles and Pins”, dos Searchers 22 Os Beatles chegam ao topo com o pop estridente “Ticket to Ride” O hino do rock de garagem de Van Morrison e o Them, “Gloria”, alcança o 22 93º lugar, sua melhor posição nos Estados Unidos. Junho Bob Marley and The Wailers lançam o hino do ska “Rude Boy” (data 1 aproximada). 2 Lançamento de “Papa’s Got a Brand New Bag”, de James Brown . Em 14 de

46 agosto, a música alcança o topo das paradas de R&B, e lá permanece por oito semanas. “Wooly Bully”, de Sam the Sham and the Pharaohs, alcança o segundo lugar. 5 Posteriormente, a Billboard declara ter sido a música mais vendida do ano. Lançamento de “(I Can’t Get No) Satisfaction”. Em 10 de julho, chega ao 6 primeiro lugar, e lá continua por quatro semanas. No caso Griswold vs Connecticut, a Suprema Corte Norte-Americana decide 7 que os estados não podem proibir o uso da pílula anticoncepcional porque a Constituição Norte-Americana garante “privacidade matrimonial”. As Supremes e a equipe de produção Holland-Dozier-Holland alcança o topo 12 das paradas pela quinta vez consecutiva com “Back in My Arms Again”. 19 Phil Ochs interpreta “I Ain’t Marching Anymore” no New York Folk Festival. Três membros do Rat Pack (Frank Sinatra, Dean Martin e Sammy Davis Jr. ) 20 fazem sua última apresentação por 23 anos. The Byrds lançam o LP Mr. Tambourine Man com uma foto psicodélica na 21 capa tirada com lente olho de peixe. 23 Smokey Robinson and the Miracles lançam “The Tracks of My Tears”. 26 O single “Mr. Tambourine Man”, do The Byrds, chega ao primeiro lugar. Inauguração do The Red Dog Saloon em Virginia City, Nevada, com show 28 dos Charlatans e LSD fornecido por Owsley Stanley, que dá início à cena psicodélica de São Francisco. Julho As East Coast Homophile Organizations (ECHO), organizações em defesa dos homossexuais da Costa Leste, fazem protesto no Independence Hall, na 4 Filadélfia. A manifestação se tornou um evento repetido todo ano pelo restante dessa década, uma “Recordação anual” pelos direitos dos gays. “I Put a Spell on You”, de , alcança o 49º lugar no Reino Unido. 8 Mais tarde, no mesmo ano, os Beatles adaptam o interlúdio da música “I love you” para “Michelle”. 15 Barry McGuire grava “Eve of Destruction” em apenas um take. O hino pró-direitos civis de Curtis Mayfield and the Impressions, “Meeting 17 Over Yonder”, alcança o 48º lugar. Os Beatles lançam “Help!”, single confessional de John Lennon . O filme 19 homônimo estreia dez dias depois. Dylan lança “”, que alcança a segunda posição em setembro. Com 6:13, é de longe o single mais longo a alcançar as 20 paradas pop, com a letra mais expressionista e deprimente ouvida até então nas rádios AM. The Lovin’ Spoonful estreia com seu clássico folk rock “Do You Believe in 20 Magic”. Paul Simon interpreta “I Am a Rock” sozinho no programa de TV britânico 23 Ready Steady !, em Londres. Jackie DeShannon conquista a sétima posição com a canção idealista de 24 Burt Bacharach e Hal David, “What the World Needs Now Is Love”. Bob Dylan é vaiado no Newport Folk Festival por tocar uma versão de 25 “Maggie’s Farm” com guitarra elétrica. John Coltrane interpreta A Love Supreme ao vivo pela única vez no Festival 26 Mondial du Jazz Antibes, na França. The New York Times anuncia que a modelo Edie Sedgwick é a nova estrela 26 de Andy Warhol . O presidente Johnson dobra o número de homens a serem recrutados 28 mensalmente para o Vietnã, inflando o contingente de 17 mil para 35 mil militares. Como parte dos programas “Grande Sociedade” e “Guerra contra a 30 Pobreza”, Johnson transforma em lei os projetos de saúde Medicare e

47 Medicaid. Os Kinks lançam “See My Friends”, imitando a música e os vocais que 30 escutaram na Índia. Agosto O telejornal CBS Evening News with Walter Cronkite exibe cenas de 5 soldados norte-americanos queimando choupanas de camponeses vietnamitas. Johnson, revoltado, reclama com o presidente da emissora. O presidente Johnson aprova o Voting Rights Act (lei do direito ao voto) em 6 cerimônia de assinatura na Rotunda do Capitólio, com presença de Martin Luther King Jr. Os Herman’s Hermits chegam ao primeiro lugar com “I’m Henry VIII, I Am”, cover de uma canção de music hall de 1910. Pouco depois, outras bandas 7 britânicas iriam redescobrir o gênero, que tem semelhanças com o vaudeville norte-americano. Hunter S. Thompson, os Hells Angels, Allen Ginsberg e vão a 7 uma festa regada a LSD na casa de . “In the Midnight Hour”, de Wilson Pickett, chega ao topo das paradas de R&B 7 com a batida marcada pelo delay que se tornaria marca da Stax Records . O Massachusetts Institute of Technology (MIT) implementa o 9 Compatible Time-Sharing System (CTSS), com a primeira forma conhecida de e-mail, chamada MAIL. 11-15 Irrompem manifestações violentas na região de Watts, em . 13 O Jefferson Airplane estreia no clube Matrix, em São Francisco. Cher defende o cabelo comprido de Sonny em “I Got You Babe”, que 14 permanece em primeiro lugar por três semanas. lança seu cover do hino antiguerra de Buffy St. Marie, “Universal Soldier”, que quase bate de frente com a versão de Glen Campbell . Em 15 outubro, Campbell dirá que quem queima seu cartão de alistamento deveria ser enforcado. 15 lança a composição “Respect”. Os Beatles fazem seu primeiro show em um estádio esportivo, o Shea 15 Stadium, batendo recorde de público (55.600), que duraria até 1973. Waylon Jennings lança seu primeiro single de Nashville, “That’s the Chance 21 I’ll Have to Take”. Os Beatles passeiam com The Byrds e Peter Fonda em Los Angeles, e três 24 dias depois visitam Elvis Presley . Três membros da Liga de Liberdade Sexual são condenados a três meses de 25 prisão (sentença suspensa) por promoverem um banho de mar nudista em São Francisco. Os Beach Boys chegam ao terceiro lugar com “California Girls”. A introdução 28 de Brian Wilson inspirada em Bach merece destaque. 30 Bob Dylan lança sua visionária obra-prima, . O presidente Johnson decreta que queimar cartões de alistamento é crime, e 31 tem pena de cinco anos de prisão e multa de mil dólares. Setembro A turnê “Youthquake”, de Mary Quant, por lojas de departamento em oito 1 cidades dos Estados Unidos, atinge o clímax em Nova York, exibindo modelos que usam minissaias e dançam ao som da banda The Skunks. 6 Merle Haggard, de Bakersfield, lança seu primeiro LP, Strangers. Lançamento de “The Sounds of Silence”, de Simon and Garfunkel, após ser 13 “eletrificado” pelo produtor de Dylan, Tom Wilson, no estilo do The Byrds . Bill Cosby se torna o primeiro negro a estrelar uma produção para a TV 15 norte-americana com seu papel em I Spy. Quatro emissoras do Sul se recusaram a exibir o programa. 25 “Eve of Destruction”, de Barry McGuire, torna-se a canção com temas mais

48 atuais a chegar ao topo das paradas. Além de atacar o racismo sulista, destaca injustiças como ser jovem demais para votar, mas velho o suficiente para ser convocado. Os Yardbirds chegam ao nono lugar com “Heart Full of Soul”, na qual Jeff 25 Beck imita uma cítara indiana com sua guitarra e um pedal fuzz box. “We Gotta Get out of This Place”, dos Animals, escrita pelos compositores do 25 Brill Building Mann and Weil, alcança sua melhor posição na parada, o 13º lugar. Os Barbarians alcançam o nº 83 com sua defesa dos cabelos compridos em 25 “Are You a Boy or Are You a Girl?”. Outubro 1 Os Yardbirds simulam cânticos gregorianos no lado B britânico “Still I’m Sad”. “Yesterday”, dos Beatles, com seu quarteto de cordas barroco, chega ao 9 primeiro lugar, onde permanece por quatro semanas. A música acaba se tornando a canção mais regravada da década. O Comitê do Dia do Vietnã ajuda a coordenar os Dias Internacionais de 15-16 Protesto contra a Intervenção Militar norte-americana, com grupos antiguerra em mais de quarenta cidades nos Estados Unidos e na Europa. Country Joe (McDonald) and the Fish interpretam “I-Feel-Like-I’mFixin’-to-Die 15 Rag” em um seminário em Berkeley. O grupo The Great Society, com Grace Slick, estreia no Coffee Gallery, em 15 North Beach, São Francisco. Apesar de Allen Ginsberg cantar “Hare Krishna”, membros dos Hells Angels 16 atacam manifestantes antiguerra em Oakland. Frequentadores assíduos do psicodélico Red Dog Saloon, chamados de Family Dog, organizam a festa “A Tribute to Dr. Strange” no salão do 16 International Longshore and Warehouse Union (ILWU), em São Francisco, com Jefferson Airplane, os Charlatans e Great Society. A música pró-guerra “Hello Vietnam”, gravada por Johnnie Wright, fica no 23 topo das paradas country por três semanas. A Family Dog realiza “Um tributo a Sparkle Plenty” no salão do ILWU, em 24 São Francisco, com o Lovin’ Spoonful e os Charlatans. A rainha Elizabeth II nomeia os Beatles “Membros da Ordem do Império 26 Britânico”, no Palácio de Buckingham. Os Rolling Stones gravam “As Tears Go By” com cordas, imitando 26 “Yesterday”. Otis Redding chega ao topo da lista de LPs de R&B com Otis Blue, que 30 incluía seu cover de “Satisfaction”, dos Rolling Stones . A top model Jean Shrimpton é criticada por usar minivestido no 30 Victoria Derby, na Austrália. Fontella Bass chega ao topo das paradas R&B, e fica por quatro semanas, 30 com “Rescue Me”. Novembro 1 Smokey Robinson and the Miracles lançam o LP Going to a Go-Go. O ataque de Bob Dylan à sua antiga comunidade folk, “Positively 4th Street”, 6 alcança sua melhor posição nas paradas, o 7º lugar. O single dos Rolling Stones “Get off My Cloud”, com “I’m Free” no lado B, 6 chega ao 1º lugar, e permanece por duas semanas. The Lovin’ Spoonful lança “You Didn’t Have to Be So Nice”, que inspira a 13 melodia de “God Only Knows”, de Brian Wilson . Nancy Sinatra grava o futuro hino da emancipação feminina, “These Boots 19 Are Made for Walkin’”. The Berkeley Barb publica o ensaio de Allen Ginsberg “Demonstration or 19 Spectacle as Example, as Communication, or How to Make a March/Spectacle”, 1 que enaltece o uso de flores em passeatas, conceito que

49 mais tarde será chamado de “”. 19 Os Leaves lançam o clássico do rock de garagem “”. Bob Dylan se casa em segredo com Sara Lownds . Seu primeiro filho, Jesse 22 Byron, nasce no dia 6 de janeiro. 22 lança “Uptight”, com uma batida inspirada em “Satisfaction”. Ken Kesey organiza a primeira edição pública da festa Acid Test, em Santa 27 Cruz, que incluiu tigelas de ponche batizadas com LSD. O clássico do anticonformismo dos Turtles, “Let Me Be”, chega à sua melhor 27 posição, o nº 29. 29 Johnny Cash grava sua paródia folk “The One on the Right Is on the Left”. Ralph Nader publica revelações bombásticas sobre a indústria 30 automobilística em Unsafe at Any Speed. Dezembro No álbum Rubber Soul, os Beatles usam a cítara pela primeira vez em uma 3 canção pop para deixar “Norwegian Wood” menos dylanesca, com uma letra que descreve a crescente revolução sexual. Os Beatles tentam uma equivalência a “Satisfaction” com seu próprio 3 sucesso de influência dançante do soul, “Day Tripper”, e se esforçam para ser mais estridentes que The Byrds com “Nowhere Man”. Os Rolling Stones começam a gravar Aftermath, com 3 tocando vários instrumentos exóticos. O disco The Who Sings explode com algumas das 3 combinações de guitarra, bateria e baixo mais agressivas já registradas em vinil. O segundo single de funk de James Brown, “I Got You (I Feel Good)”, chega 4 ao topo das paradas de R&B, onde permanece por seis semanas, com o baixo mais famoso do rádio, cortesia de Bernard Odum, membro da banda. Até o Natal, The Byrds ficam em primeiro lugar com seu cover de “Turn! 4 Turn! Turn! (To Everything There Is a Season)”, de Pete Seeger, que tem versículos retirados da Bíblia. O Grateful Dead toca na segunda Acid Test, em San Jose, tornando-se a 4 banda residente de Ken Kesey . A Suprema Corte de Justiça de Massachusetts mantém o direito das 7 autoridades escolares de suspender alunos com cabelos compridos. Com a ajuda do amigo Barry McGuire, The Mamas and the Papas lançam o 8 folk rock “California Dreamin’”, que é acompanhado de flauta barroca. 9 O Natal do Charlie Brown estreia na CBS. O Velvet Underground abre para o Myddle Class na Summit High School, em 11 Nova Jersey. Mary Beth Tinker e Christopher Eckhardt são mandados para casa por usarem braçadeiras negras na escola secundária em Iowa, a fim de protestar 16 contra a guerra. Os estudantes levam o caso para os tribunais, e, em 1968, a Suprema Corte decide a favor de seus direitos de liberdade de expressão pessoal. 18 O clássico sobre independência dos Animals “It’s My Life” chega ao nº 24. O boletim do Comitê Não Violento de Coordenação Estudantil (SNCC) 20 anuncia a formação da Organização pela Liberdade do Condado de Lowndes. Tem como símbolo a pantera negra. Com a ajuda de seu novo manager, Andy Warhol, o Velvet Underground 31 aparece em um trecho do telejornal CBS Evening News with Walter Cronkite. 31 As tropas norte-americanas no Vietnã chegam a 184 mil no fim do ano.

Tabela 3. Acontecimentos que permearam as mídias no ano de 1965. (JACKSON, 2016, p.9-19),

50 Os acontecimentos do ano de 1965 são reverberações das mesmas narrativas em outros tempos, outros espaços, com outros sujeitos. Como diz Campbell, em O Poder do Mito,

“Além disso, não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em toda a sua extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói, e lá, onde temíamos encontrar algo abominável, encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter o centro da nossa própria existência. E lá, onde pensávamos estar sós, estaremos na companhia do mundo todo”. (Campbell, 1990, p. 131).

Figura 15. Martin Luther King Jr. “Herói é alguém que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo” (Campbell, 1990, p. 131).

Em meio a tantos acontecimentos políticos relevantes e tantas mudanças na sociedade, foi o rock and roll a manifestação cultural que conseguiu traduzir os anseios dos jovens desta geração. Desta forma, os discursos e exemplos dos líderes das bandas de rock tinham relevância para além do espetáculo.

Uma das oportunidades para externalização destes discursos era a composição da imagem dos músicos através das mídias. Entre estes espaços possíveis, o cinema e os rockumentários foram importantes expoentes para a emergência do mito dos deuses do rock. Apresentaremos agora os três

51 rockumentários pesquisados e seus contextos de produção, para compreendermos de que forma estes colaboram com a construção desta narrativa.

1.4 Os rockumentários: apresentando as atrações

1.4.1 The Rolling Stones Rock and Roll Circus

The Rolling Stones Rock and Roll Circus é o rockumentário que parte de um show organizado pela banda de rock The Rolling Stones em parceria com o director Michael Lindsay-Hogg (que já havia feito alguns trabalhos com os músicos), nos dias 11 e 12 de dezembro de 1968. Bandas convidadas fizeram parte do espetáculo, dentre eles Jethro Tull, The Who, Taj Mahal, Marianne Faithfull e a super banda The Dirty Mac, que contava com Eric Clapton (Cream), Mitch Mitchell (The Jimi Hendrix Experience) e Keith Richards (The Rolling Stones). Yoko Ono também se apresentou com o The Dirty Mac. Outras bandas como Led Zeppelin e The Small Faces foram cogitadas, mas acabaram por não participar. O conceito de produção foi pensado por Mick Jagger e Michael Lindsay- Hogg, com a premissa de divulgar o album de estúdio recém lançado, Beggars Banquet. A intenção inicial era fazer um programa de TV, com alguns convidados a cada episódio. As bandas se apresentaram em uma replica de big- top10 decadente, em um palco montado em velho galpão, como um picadeiro. De acordo com o livro de Bill Wyman, Rolling with the Stones, os Stones também tocaram as músicas Confessing the Blues, Route 66 e uma versão alternativa de Sympathy for the Devil, com Brian Jones na guitarra. No entanto, essas performances se perderam, assim como muitos outros materiais brutos da gravação. A última música, Salt of the Earth, foi cantada ao vivo por Mick Jagger

10 Big-Top ou circus é um formato de circo antigo com artistas que apresentam diversas performances de entretenimento que incluem palhaços, acrobatas, animais treinados, trapezistas, músicos, dançarinos, equilibristas, malabaristas, mágicos, monociclistas, bem como outras formas de manipulação de objetos e dublês.

52 e Keith Richards para a fita pré-gravada do álbum Beggars Banquet, no qual a música foi lançada.

Figura 16. Cartela inicial do rockumentário The Rolling Stones Rock and Roll Circus

A expectativa dos produtores era a de que o show fosse exibido pela emissora britânica BBC mas os Rolling Stones não permitiram a divulgação. O argumento pra a não autorização era o desempenho da banda, supostamente não ideal. Além disso, o show foi a última aparição de Brian Jones com a banda, o qual faleceu enquanto o material passava pela editado. Isso ajudou na decisão pois a banda acreditava que a divulgação seria uma falta de respeito com o integrante. Estes fatores fizeram com que este material ficasse retido até 1996. Em 1992, o director Michael Lindsay-Hogg tentou retomar o projeto e editar o filme mas, como muitas gravações tinham sido perdidas, o projeto foi novamente suspenso. Em 1993, a equipe de direção e produção do The Who, Michael Gochanour e Robin Klein, encontrou em um cofre, na sala de cinema particular da banda, algumas gravações do show, completando a edição do filme em 1996.

53 A apresentação do The Who no The Rolling Stones Rock and Roll Circus apareceu no documentário The Kids Are Alright (1979), exibido nos cinemas. Foi a única exibição pública de algum trecho do rockumentário até então.

Figura 17. Fotograma da banda The Who se apresentando no The Rolling Stones Rock and Roll Circus.

Em 1996, as gravações foram restauradas e editadas, sendo exibidas por dois dias nas salas de cinema durante o Festival de Cinema de Nova York, com as apresentações das bandas e poucas imagens de bastidores. Esta versão foi lançada posteriormente em CD, VHS e laserdisc. Este show teve algumas particularidades, entre elas a primeira filmagem ao vivo do Jethro Tull, incluindo a única aparição e participação de Tony Iommi, que depois fundou o . As filmagens também mostram Ian Anderson ensaiando os primeiros passos da sua performance, aonde toca flauta de pé, apoiado em uma perna.

54 Em 2004, uma versão em DVD foi produzida e lançada pelos mesmos Michael Gochanour e Robin Klein, com áudio remixado em Dolby Surround11, incluindo extras de performances perdidas, imagens de bastidores e entrevistas com vários artistas que participaram do evento. Nesta versão, assume as características de um rockumentário. Posteriormente às gravações do The Rolling Stones Rock and Roll Circus, em 1968, a banda lançou um rockumentário intitulado Gimme Shelter, em 1970.

1.4.2. Woodstock: Three Days of Peace and Music

O Festival de Woodstock foi gravado em 1969 e lançado em 1970. Aconteceu em uma fazenda perto de Bethel, Nova Iorque, nos Estados Unidos. O diretor foi Michael Wadleigh, que também participou da edição do rockumentário, junto com Martin Scorsese e Thelma Schoonmaker, entre outros. O rockumentário de Woodstock recebeu aclamação universal dos críticos e foi um sucesso de bilheteria e um dos filmes mais lucrativos do ano. sendo indicado e premiado com o Oscar de Melhor Documentário. Também foi indicado ao Oscar nas categorias de Montagem e Edição de Som. O filme foi exibido no Festival de Cannes de 1970, sem concorrer a categorias da premiação. A versão do filme de 1970 para o cinema tem 185 minutos. A versão do diretor, lançado em 1994 tem 224 minutos. Wadleigh incluiu mais de cinquenta minutos de cenas extras, entre elas performances cortadas na primeira edição e muitas filmagens do público presente nos shows e na cidade durante o festival. Nesta versão extendida, o diretor acrescentou uma lista de nomes importantes para a sociedade e para a cultura na época. Dentre os participantes, conhecidos como a Geração Woodstock, constam Janis Joplin, Jimi Hendrix, Jim Morrison, John Lennon, John F. Kennedy, Malcolm X, Che Guevara, Martin Luther King

11 Formato sonoro analógico multicanais.

55 Jr., entre outros. Além disso, o rockumentário também abrange depoimentos de Max Yasgur, o dono da fazenda onde tudo aconteceu.

Figura 18. Fotograma do rockumentário Woodstock: Three Days of Peace and Music

A versão especial de 2009, comemorativa dos 40 anos de aniversário do Festival, foi lançada em DVD e Blu-Ray e chamada de Ultimate Collector’s Edition. Nesta versão do diretor, as imagens e o som foram remasterizada em alta definição, com muitas performances inéditas. Dentre estas, , Creedence Clearwater Revival, The Grateful Dead, Johnny Winter e Mountain, que estavam presentes e tocaram no Festival de Woodstock, mas nunca tinham aparecido em nenhuma versão. Além das apresentações exclusivas desta versão, imagens inéditas de bastidores e dos arredores do evento também foram incluidas. A versão de 2014, com o título de Woodstock: 3 Dias de Paz e Música, é a versão comemorativa do aniversário de 40 anos, mas revisitada pelo diretor. É a mesma versão do Blu-Ray de 2009, com os extras em alta definição. A diferença está na presença de um terceiro disco, chamado Untold Stories

56 Revisited, que contém performances inéditas e mais oito extras que cobrem o festival nos bastidores, a história, o legado e a restauração do filme. A apresentação de Jimi Hendrix no Woodstock também foi lançada separadamente em DVD e Blu-Ray.

Figura 18. Fotograma da intermissão presente no rockumentário Woodstock: Three Days of Peace and Music.

Em 1996, a Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos selecionou Woodstock para a preservação no Registro Nacional de Filmes, como sendo “cultural, histórica ou esteticamente significativo”.

1.4.3. Pink Floyd Live at Pompeii

O rockumentário Pink Floyd Live at Pompeii foi gravado em 1971 nas ruínas e no anfiteatro da cidade de Pompéia, na Itália. Lançado em 1972 e dirigido por Adrian Maben, trata-se de um show sem a presença do público. Pompeia é conhecida como a cidade petrificada pelo vulcão. No ano de 79, após uma erupção do Monte Vesúvio, a cidade foi tomada por gás vulcânico e cinzas. Esta combinação petrificou os habitantes da cidade. Sua silhuetas são

57 encontradas pela cidade até hoje, sendo considerada um grande sítio arqueológico12. O rockumentário foi gravado no anfiteatro de Pompeia durante o dia e nas paisagens de vulcões em erupção à noite. A filmagem principal durou quatro dias, dentro e a banda utilizou o próprio equipamento de som das turnês.

Figura 19. Fotograma do rockumentário Pink Floyd Live at Pompeii, mostrando as ruínas de Pompéia.

O Pink Floyd já fazia experimentações de filmagens de um show fora dos padrões convencionais. O diretor Adrian Maben viu na banda a combinação perfeita entre música e arte e, assim, entrou em contato com o empresario Steve O’Rourke para discutir o projeto. A ideia inicial, a qual não foi aprovada, era mesclar pinturas e outras obras de arte com a música psicodélica. Maben explica no rockumentário que, durante esse tempo de negociações, sem contato com o empresario, viajou a passeio para Pompeia e, na visita ao anfiteatro, perdeu o passaporte. Ao perceber que tinha perdido o documento, ele voltou ao anfiteatro a noite. Andando pelas ruínas, sozinho, ele

12 10 curiosidades sobre a tragédia de Pompeia. Disponível em < https://hypescience.com/10- curiosidades-pompeia/ >. Acesso em 05/05/2018.

58 percebeu que o som ambiente e o silêncio, bem como a constituição do anfiteatro, provocavam uma reverberação particular às emissões sonoras lá geradas. Maben então pensou na gravação do show no anfiteatro e também teve a ideia de fazer alguma coisa diferente dos rockumentários de sucesso da época, como Woodstock e Gimme Shelter, dos Rolling Stones. Assim, surgiu a ideia de gravar sem público, com foco total nos artistas. Um amigo de Maben, que era professor na Universidade de Nápoles, conseguiu convencer as autoridades a concederem a autorização para fecharem o anfiteatro para as gravações. Mesmo com todas as portas do anfiteatro fechadas, algumas crianças conseguiram entrar e assistir as gravações, escondidas em um canto. A filmagem começou com uma montagem dos membros da banda andando por Boscoreale, cidade próxima a Pompeia, com fusões de imagens da lava vulcânica. Samuel Sleiman, autor do e-book The Making Of Pink Floyd Live at Pompeii, explica que o Pink Floyd só aceitou participar do projeto se tocasse ao vivo. Assim, a banda trouxe caminhões (que viajaram durante três dias) de equipamentos para a gravação. Eles queriam um som que fosse, ao máximo, aproximado daquele obtido por meio de uma gravação de estúdio. Para conseguir fazer a captação ao vivo em um ambiente externo, a banda gravava trechos das músicas em seções, e depois as reunia e mixava. No filme, vemos os membros do Pink Floyd escutando as gravações com fone de ouvido (SLEIMAN, 2017, p. 13). As apresentações das músicas Echoes, A Saucerful of Secrets e One Of These Days foram gravadas de 4 a 7 de outubro de 1971. Foi a banda quem decidiu pelas músicas apresentadas, mas o diretor conseguiu convence-los que seria bom incluir material do álbum novo, Meddle. Sendo assim, Careful With That Axe, Eugene e A Saucerful of Secrets foram colocadas no repertório, já que Maben achava que seriam boas canções para filmar (SLEIMAN, 2017, p. 27). Durante essas gravações em Paris, a banda sugeriu a gravação de um blues com um cachorro uivando, parecido com a música “Seamus”, do álbum

59 “Meddle”. Maben conhecia Madonna Bouglione, filha de dono de circo, que era conhecida na cidade por passear com seu cão chamado Nobs. As músicas que não foram gravadas em Pompeia foram finalizadas no Studio Europasonor, em Paris, de 13 a 20 de dezembro (SLEIMAN, 2017, p. 28). Maben usou telas transflex13 em algumas tomadas, para mesclar as imagens de Pompeia com as imagens de estúdio. Cenas de mosaicos romanos e desenhos do Museu Arqueológico Nacional de Nápoles também foram adicionadas ao filme (SLEIMAN, 2017, p. 22). O filme estreiou no Edinburgh International Film Festival, em 2 de dezembro de 1972. Essa versão inicial tinha apenas imagens da banda ao vivo. Maben, no entanto, não gostava dessa primeira versão por considerá-la muito curta. Então, no início de 1973, o diretor foi pescar com Roger Waters (baixista do Pink Floyd) e sugeriu uma nova versão. Voltando com a banda aos estúdios, Maben levou uma câmera 35mm no Abbey Road Studios, para realizer algumas tomadas nas sessões de gravação do álbum The Dark Side Of The Moon. O diretor também realizou algumas entrevistas na lanchonete do estúdio, enquanto a banda comia e conversava. Assim, conseguiu capturar, de forma espontânea, o dia a dia da banda. A última versão, contendo este material extra, estreou em Montreal, Canadá, no Teatro Alouette, em 10 de novembro de 1973. O lançamento foi organizado pela Mutual Films e pela George Ritter Films. Foi um sucesso financeiro no país. O filme só foi para as telas americanas em abril de 1974, onde arrecadou muito mais (SLEIMAN, 2017, p. 36).

13 Uma máquina de projeção que cria efeitos de fusões e sobreposições.

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Figura 20. Fotograma do rockumentário Pink Floyd Live at Pompeii, em sua versão extendida de 2003, mostrando o diretor Adrian Maben.

Como resultado, Maben ficou satisfeito com as críticas. Em geral, os críticos em veículos especializados elogiaram o conceito do filme, o qual ia além de gravar um concerto de rock ao vivo por ser um rockumentário, mostrando um material bem diverso sobre o Pink Floyd. Uma curiosidade é que algumas filmagens alternativas que foram feitas mas não colocadas nas versões, foram incineradas por um funionário da MHF Productions. Detalhe: no total, eram 548 latas de negativos originais (SLEIMAN, 2017, p. 5). Em 2003 foi lançada uma versão do diretor, a qual traz entrevistas originais realizadas durante a gravação do álbum Dark Side Of The Moon, no Abbey Road Studios, em Londres, e filmagens da banda em Paris, gravando tomadas com efeitos visuais para agregar às imagens da gravação em Pompeia. Também apresenta uma entrevista com Maben, na qual este fala sobre a criação do filme e sobre esta versão extendida. Mesclando filmagens aéreas da cidade de Pompeia, e do anfiteatro, com cenas do Programa Espacial Apollo14 e imagens computadorizadas do espaço, a

14 Programa de exploração espacial da NASA, agência espacial dos Estados Unidos, em curso entre os anos de 1961 e 1972.

61 versão do diretor traz uma montagem criativa sobre a visita de um extraterrestre a Pompeia, que veio para assistir o show.

Figura 21. Fotograma do rockumentário Pink Floyd Live at Pompeii, em sua versão extendida de 2003.

62 2. Comunidade musical: sujeitos colaborativos e interações coletivas nos processos de construção de obras e mitos

2.1. Processos de criação em rede: traduzindo o imaginário em imagens

Neste capítulo, trazemos detalhes dos processos de criação dos rockumentários. Quando o filme termina, ele acaba para a maiorira das pessoas mas não para os pesquisadores. Eles sabem que nos créditos, cada indivíduo tem sua devida importância na participação da construção de uma obra. E, bem além dos créditos, os extras. A rede de criação é assim. Cada qual com sua contribuição. Mas antes de falarmos sobre os personagens envolvidos nos rockumentários, vamos analisar o próprio gênero, que nasceu da interação entre redes e reverbera vertentes até os dias de hoje. Cecilia Salles, no blog Redes da Criação, utiliza Pierre Musso para definir rede como uma estrutura de interconexão instável, composta de elementos em interação e cuja variabilidade obedece a alguma regra de funcionamento, eventualmente modelizável. A gênese de uma rede (de um elemento de uma rede) e sua transição de uma rede simples a outra mais complexa são consubstanciais a sua definição. A estrutura da rede inclui, portanto, sua dinâmica15.

Essa dinâmica como movimento interno é responsável por estimular algo a evoluir e, pensando no mega-gênero rock and roll, podemos analisar esse desenvolvimento na figura a seguir.

15 Disponível em < http://redesdecriacao.org.br/>. Acesso em 1/06/2018.

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Figura 22. Organograma do rock and roll. Fonte: whiplash.net

Dentro dessa rede musical, que vem acompanhada por movimentos sociais, destacamos um recorte de espaço e tempo, que é o nosso objeto de estudo. Mais precisamente, final da década de 1960 e início da década de 1970, período de efervescência cultural que ajudou na produção de muitos materiais na comunidade musical. Muitos artistas (músicos, diretores e produtores) se juntaram nesse período para criar tendências, formando redes em construção, que Cecilia Salles, no blog Redes da Criação, nomeia de criação como rede que é um processo contínuo de interconexões instáveis, gerando nós de interação, cuja variabilidade obedece a alguns princípios direcionadores. Essas interconexões envolvem a relação do artista com seu espaço e seu tempo, questões relativas à memória, à percepção, recursos criativos, assim como, os diferentes modos como se organizam as tramas do pensamento em criação. O artista deixa rastros deste percurso nos diferentes documentos do processo criativo16.

Levando em consideração essas interconexões, podemos citar alguns trechos dos nossos objetos de estudo que respaldam os princípios direcionadores do processo dos artistas e o que eles buscam em sua obra. As

16 Disponível em < http://redesdecriacao.org.br/>. Acesso em 1/06/2018.

64 palavras abaixo são ditas por David Dalton, fundador da revista americana Rolling Stone: Você está prestes a entrar em outra era: o Swinging London do final dos anos 1960. O The Rolling Stones Rock And Roll Circus é uma cápsula do tempo. Dois dias em dezembro de 1968 que, de várias formas, capturaram a espontaneidade, as aspirações e o espírito comunitário de toda uma era. Por um breve momento parecia que o rock and roll poderia herdar a Terra.

É dessa forma que começa o rockumentário The Rolling Stones Rock and Roll Circus. O diretor Michael Lindsay-Hogg, em parceria com Mick Jagger, tentou desenvolver um programa para a TV que, por erro de planejamento, acabou se tornando o rockumentário The Rolling Stones Rock and Roll Circus. Em uma época em que os Rolling Stones tentavam criar tendências, o desenvolvimento desse show no ápice do Swinging London, foi produzido em 1968 e engavetado no ano seguinte. Salles chama esse fenomeno de "tempo de gaveta" e justifica que "a obra espera pelo tempo do artista" (SALLES, 2006, p.61). Foi lançado apenas vinte e oito anos depois da sua produção (1996). Talvez, por isso, a reedição de 2004 foi lançada contendo extras, nos quais o diretor, e alguns artistas que participaram do evento, nos contam algumas curiosidades. Intitulado de Framing the Show, esse conteúdo é gravado na forma de ‘áudio comentário’, enquanto os artistas assistem o filme e vão comentando baseados em lembranças.

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Figura 23. Fotograma do rockumentário The Rolling Stones Rock and Roll Circus. Musicos e artistas circenses se misturam nesse espetáculo.

Lindsay-Hogg, e o diretor de fotografia Anthony B. Richmond, por exemplo, nos contam sobre os nós de interação que levaram à produção do rockumentário:

Mick Jagger e os Rolling Stones, em geral, queriam fazer algo além de um simples lançamento de disco, porque tinham começado a fazer vídeos. Tony e eu fizemos Jumping Jack Flash. Então Mick me perguntou, já que eu estava encarregado da direção, pela minha experiência com os vídeos, se eu teria uma ideia para um show de tv. O tempo era curto, e nem eu nem Mick sabíamos o que fazer. Ninguém sabia como um show dos Rolling Stones para a tv deveria ser. Um dia, no escritório deles em Maddox Street, em Londres, eu estava rabiscando em um bloco e fiz um círculo. De círculo foi para circo. E assim surgiu o nome para o show. Circus tinha apelo. Federico Fellini estava na moda, e eu sabia que os Stones queriam trabalhar com ele. Tony fez o filme do Jean-Luc Godard com os Stones, Sympathy For The Devil. Tínhamos a ideia do show sem saber como ele seria. Então, iniciamos o trabalho, imaginando como seria o The Rolling Stones Rock and Roll Circus. E pensamos em um circo sem muita ostentação, deveria ser um circo mambembe tipicamente europeu. Esse foi o cenário que imaginamos. Nós queríamos artistas que tivessem a ver com circo. Contratamos equilibristas, acrobatas e palhaços.

E no segundo extra, intitulado Life Inder The Big Top, Mick Jagger complementa:

66 Michael Lindsay-Hogg, o diretor e um cara muito criativo, e eu tivemos a ideia de misturar vários números musicais e circenses, tirando-os da normalidade e tornando-os um pouco surrealistas, no contexto de um circo estranho. Também queríamos todo o tipo de música. E começamos a pensar em quem melhor se encaixaria no show. Como sempre gostamos de blues, tentamos conseguir um favorito nosso, o Taj Mahal. Convidamos o Taj e o Jethro Tull, que tinha acabado de lançar um sucesso e tocava um rock muito diferente do nosso. Tínhamos Marianne Faithfull, minha namorada na época, que estava linda, para trazer elementos belos e feminilidade ao show. E tínhamos muitas outras ideias. Tínhamos um pianista clássico chamado Julius Katchen, muito famoso. Isso dá uma ideia do que tínhamos em mente. Queríamos o Rei Zog, da Albânia. Mas ele não pôde vir para ficar assistindo no camarote. Queríamos os Beatles, mas como não podiam, convidamos John Lennon, que estava com Yoko Ono, que por sua vez faz umas coisas... Em suma, era para ser uma grande bagunça. Tínhamos animais, leopardos, mulheres lindas, os Rolling Stones e o The Who.

Figura 24. Fotograma dos bastidores do rockumentário The Rolling Stones Rock and Roll Circus, com Mick Jagger, e .

67 Sem esses extras, não saberíamos o uso dessas referências do cinema, nem ao menos o porquê do nome escolhido. É por isso que Cecilia Salles fala da relevância dessas entrevistas, bastidores e making ofs para o estudioso de processos. O objetivo de registrar o processo de criação passa pelos modos de mediação de como os making ofs são conduzidos por seus diretores, e pelo contexto da produção, entre tantas outras questões (SALLES, 2010, p. 188).

Lindsay-Hogg explica que a roupa destinada à plateia (os ponchos e os sombreiros) foi uma boa ideia, porque com tanta gente colorida não haveria problemas de continuidade. E que Mick Jagger teve a ideia de fazer uma super- banda, algo que ainda não tinha sido feito na comunidade musical. Reunir músicos de várias bandas que queriam tocar juntos. Ou a performance de Yoko Ono durante a apresentação do The Dirty Mac, que foi uma surpresa até para o próprio diretor. A criação pertence também ao universo lúdico: um mundo que se mostra um jogo sem regras. Se estas existem, são estipuladas pelo artista, o espectador não as conhece. Jogar é sempre estar na aventura com palavras, formas, cores, movimentos. O artista vê-se diante das possibilidades lúdicas de sua matéria (SALLES, 2004, p.85).

Outro fato interessante que Lindsay-Hogg conta sobre o rockumentário The Rolling Stones Rock and Roll Circus é que Mick Jagger não ficou satisfeito com a apresentação dos Stones e tinha decidido regravar. Segundo o diretor, a ideia era graver no circo original, no Coliseu, em Roma. A equipe já tinha tudo acertado para as gravações, inclusive saíram até notícias em um jornal italiano que dizia: “onde os leões rugiram um dia, os Stones vão tocar” (informação contida na entrevista de Linday-Hogg), mas os vereadores de Roma proibiram na última hora. Além disso, o que também é interessante, é que o Pink Floyd Live at Pompeii foi filmado em uma arena, no anfiteatro de Pompeia. E Keith Richards resume: “é um clássico do cinema moderno”.

68 Passando para o próximo rockumentário, em Woodstock: Three Days of Peace and Music, a tela de abertura do filme, com o logo da Warner Brothers junto com o som de guitarra de Jimi Hendrix sendo afinada e o começo de Voodoo Child. Em seguida, a tela muda para o "aviso de conteúdo". Aparece a letra "R" de restrição para maiores de 18 anos. Um riff de guitarra do Hendrix tocando o hino dos Estados Unidos e um efeito computadorizado coloca em chamas o aviso de restrição, até explodir o aviso (com efeitos sonoros de explosão mixados com o som reverberante da guitarra).

Figura 25. Fotograma da tela inicial do rockumentário de Woodstock. O aviso de restrição é queimado.

Esse rockumentário foi considerado pela mídia especializada como uma ‘revolução cinematográfica’ (mesmo porque, também foi uma revolução social), tanto pela quantidade de filme capturado (mais de 111km), quanto pelas reedições. Foram três no total, todas com mais de três horas de filme e dezenas de conteúdos extras. Salles fala sobre todo esse material que permite sequências modificadas: Estou mais interessada, no momento, nos objetos que são, por natureza, processuais: obras que são formas que se transformam. Nesses casos, a obra é processo. O crítico, com a

69 intenção de compreender esses objetos, necessita de instrumentos que falem de mobilidade, interações, metamorfoses e permanente inacabamento, isto é, uma crítica de processo. São objetos que oferecem resistência diante de teorias habilitadas a lançarem luzes sobre o estático; pedem por uma crítica que lide com as diferentes possibilidades de obra, pois estas estão permanentemente em estado provisório (SALLES, 2006, p. 162).

Para Cecilia Salles, todos os extras presentes nos DVD's são fontes de pesquisa para o crítico de processo, pois há relação "entre os diferentes documentos e entre as informações oferecidas pelos documentos e o filme" (SALLES, 2008, p.90). Esse material extra, como entrevistas e comentários, dá ao crítico e ao próprio artista, incontáveis detalhes sobre todos os processos e sujeitos envolvidos. Talvez esse seja um dos motivos de fazer reedições da obra, como Salles elucida: Estamos diante da não-linearidade do processo de criação e do tempo da reflexão: olhar para trás que parece auxiliar o artista a compreender o que vem fazendo, que o ajuda muitas vezes a dar significado para o que fez (SALLES, 2008, p.90).

Desta forma, "oficializa-se a possibilidade de mais de uma forma, dessacralizando, para o grande público, a perfeição e unicidade daquela (obra) entregue ao público" (SALLES, 2008, p.91). O diretor Michael Wadleigh fala sobre a camera Éclair NPR (1963), que praticamente criou o conceito de 'cineasta independente' com seu design inovador de câmera de 16mm que permitia mudar rolos de filme rapidamente. Ele elogia a câmera e diz que ela ajudou em todo processo de criação, pois foram distribuídas várias aos cinegrafistas da equipe para sair por todo o espaço do festival e filmar tudo o que podiam. Esse processo de criação do rockumentário gera uma organização complexa em rede, pois, como diz Cecilia Salles, as interações entre os diferentes sujeitos presentes na obra incorporam "a simultaneidade de ações e a ausência de hierarquia, e intenso estabelecimento de nexos” (SALLES, 2006, p.27).

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Figura 26. Michael Wadleigh filmando no palco, com uma grande angular.

Já em Pink Floyd Live at Pompeii, o filme começa com um efeito sonoro de batimento cardíaco e uma respiração ofegante, na tela preta. Entra outro efeito sonoro, de vento em movimento, e aparece um satelite passando pelo espaço. Vemos então a imagem do lançamento de um foguete com efeito sonoro de combustão e chamas (imagens reais do programa especial Apollo 11). Entram imagens computadorizadas do espaço e planetas, e começa o início da primeira música Echoes, junto com os efeitos sonoros. O diretor Adrian Maben trabalha uma mescla da realidade da nave espacial com essas imagens de computador, para simular uma viagem pelo espaço. Quando a nave entra na atmosfera da Terra, acontece uma fusão de imagens, com o efeito de aproximação (zoom-in). Aparece, então, a equipe e os membros do Pink Floyd no meio do anfiteatro de Pompeia, tocando. Imagens da cidade, do oceano e do vulcão estão presentes em inserções constantes, incluindo mosaicos, esculturas e pinturas do Museu Nacional de Arqueologia de Nápoles. Entre uma música e outra, a montagem com as gravações de estúdio do álbum Dark Side Of The Moon e as entrevistas, vão se intercalando com o show.

71 Adrian Maben adotou para a edição narrativa, o mesmo da música progressiva, que é começar lentamente, evoluir ao ponto máximo e retroceder ao ponto de partida. Todas as técnicas utilizadas na primeira parte do filme, são reutilizadas na segunda, como uma espécie de espelhamento. Panorâmicas e travellings foram constantemente usados para “passear” em volta da banda enquanto tocavam. As imagens em Pompeia são coloridas, enquanto as de estúdio, pretas e brancas. Esse é um processo de criação de multi-linguagens. Salles explica que o projeto poético é o que orienta o trabalho do artista como um todo, por meio de gostos e crenças, e complementa: O grande projeto vai se mostrando, desse modo, como princípios éticos e estéticos, de caráter geral, que direcionam o fazer do artista: princípios gerais que norteiam o momento singular que cada obra representa. Trata-se da teoria que se manifesta no 'conteúdo' das ações do artista: em suas escolhas, seleções e combinações. Cada obra representa uma possível concretização de seu grande projeto (SALLES, 2004, p.39).

Como relatado anteriormente, o diretor Adrian Maben, nos extras do rockumentário, responde a algumas questões sobre os processos de criação e da construção da obra. Ele explica que após contato com a banda para a ideia de gravação, eles ficaram um tempo sem se falar. Nesse período ele viajou para Pompéia com uma amiga, e durante um passeio a tarde, ao anfiteatro, ele perdeu o passaporte. Quando percebeu, resolveu voltar ao local para ver se recuperava o documento. Já era tarde. Maben diz:

Enquanto procurava o passaporte, pensei: É isso! Era de noite e estava tudo muito quieto, meio assustador. Pensei: É aqui que o Pink Floyd tem que vir". Porque Pompeia é o lugar certo. Tem morte. Tem sexo. E ainda tinha algo vivendo lá. O Pink Floyd, no anfiteatro, poderiam trazer vida ao lugar.

Quando começaram as gravações, ele conta que estavam no meio do anfiteatro, ele, o Pink Floyd, com toda a equipe e 20 toneladas de equipamentos e, ainda assim, podia-se ouvir um alfinete cair. Maben relata que

72 Era sinistro e silencioso. Parecia que algo estava acontecendo. Sentimos que algo estava acontecendo. Não sabíamos o quê, mas você sentia que estava no lugar certo, na hora certa. Então sabíamos que temos um filme.

Levando em consideração toda essa trama pré e durante as gravações, podemos fazer uma reflexão sobre essas experiências e referências que enriqueceram a construção da obra, pois, como salienta Salles,“essas imagens que agem sobre a sensibilidade do artista são provocadas por algum elemento primordial” (SALLES, 2011, p. 61).

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Figuras 27. Esboços de gravação, presentes no conteúdo extra do rockumentário Pink Floyd Live at Pompeii.

O acaso também fez parte desse processo, quando Maben conta que, durante as filmagens em Paris, na primavera de 1972, subitamente o grupo decidiu fazer uma sequência de blues com uivos de um cão. Ele diz:

É claro que naquela época, eu não conhecia nada de uivos de cão. Mas eu conhecia Madonna Bouglione, a filha de 30 anos de Joseph Bouglione, dona de circo, que por casualidade caminhava pelas ruas de Paris com um enorme galgo afegão, chamado Nobs. Gilmour tocou gaita, Waters a guitarra acústica e Rick Wright pôs o cão na mesa e o apontou para o microfone. Nobs acabou virando estrela, e fez um trabalho perfeito de uivos ao som de blues, tudo em sintonia, e nos lugares certos.

E a pergunta principal foi: "O que é a versão do diretor?". Maben responde que, desde o início de 1970, muita coisa aconteceu na corrida espacial. Sondas enviadas à outros planetas e sobre tudo, as fotos fantásticas do telescópio Hubble, de nebulosas há milhões de anos luz.

Vemos imagens que eram totalmente impossíveis antes. E eu pensei, com o passar dos anos e estas imagens voltando à Terra, de alguma forma havia uma boa união entre a música e estas imagens. Assim como dar vida a Pompéia novamente com a música deles pareceu uma boa e intuitiva ideia, essa também pareceu ser. Então pensei, não poderia alguém, em algum outro planeta, ou num mundo extraterrestre, ter ouvido essa música vindo da Terra, vindo deste anfiteatro de pedra em Pompéia, e ficar intrigada com ela? E enviaram pessoas à Terra num foguete para ouvirem melhor. Seria invisível, uma vez que

74 chegasse aqui. No fim do concerto, iriam para casa. Assim, o foguete no começo do filme não está decolando da Terra. Está decolando de um mundo exterior. Essa era a Edição do Diretor.

Figura 28. Fotograma do rockumentário Pink Floyd Live at Pompeii, com imagens do programa especial Apollo 11.

Encarando a memória tão importante quanto qualquer outro dispositivo dos artistas, tendo em vista a quantidade de referências presentes no repertório imagético dos envolvidos, Cecilia Salles diz que

a estreita relação nos leva a examinar seus modos de ação nos processos criativos, sem separá-las, mantendo exatamente o que as conecta: interagem por meio de emoções ou de sensações, como vimos. A percepção do mundo exterior se dá por intermédio de nossos receptáculos sensoriais e sensitivos, que geram sensações intensas, mas fugidias. Para que um aspecto desta percepção fique na memória é necessário que o estímulo tenha uma certa intensidade (SALLES, 2006, p.68).

O interessante é perceber a soma dessas imagens, uma vez que cada músico, banda, a identidade visual, o material gráfico, as letras e as músicas são imagens individuais que constroem uma imagem maior, um símbolo. Essas

75 figuras contextualizadas à imagem símbolo de um mega-gênero musical e comportamental, por meio de todos esses elementos públicos e midiáticos, mostram a criação em cima de criações. Podemos analisar a construção das imagens das bandas para entender a construção delas dentro de um rockumentário. Nesse caso, como são muitas bandas envolvidas nas três peças, utilizaremos de exemplo a banda The Who, que esteve presente no The Rolling Stones Rock and Roll Circus e no Woodstock: Three Days of Peace and Music, e por ser considerada uma das bandas mais influentes do gênero. The Who é uma das bandas de rock and roll mais importantes das décadas de 1960 e 1970. Formada em 1964 com esse nome, tinha Roger Daltrey nos vocais, Pete Townshend na guitarra, John Entwistle no baixo e Keith Moon na bateria. É considerado o pioneiro no estilo ópera rock, e já vendeu mais de 100 milhões de discos no mundo todo.

Figura 29. Logomarca da banda The Who. Fonte: pinterest.com

A logomarca, em formato de alvo, tem como elementos característicos uma flecha saindo da letra “o”, parecido com o símbolo que representa o homem (simbolizando masculinidade). As duas letras “h” sofrem uma fusão, passando

76 um sentimento de equilíbrio e união. As cores são representativas da bandeira britânica. A fonte especialmente personalizada para essa logomarca, em negrito, foi desenvolvida em 1964 por Brian Pike, famoso pintor e artista visual. O curioso quanto a flecha é que, como explica William T. Stearn, no livro The Origin of the Male and Female Symbols of Biology, de 1962, o símbolo masculino foi criado pela alquimia em alusão aos Deuses da Roma antiga. Esse símbolo é chamado de Escudo de Marte, pois Marte era o deus da guerra e representava força e impulsividade. A partir disso, temos toda a biografia dos integrantes e da banda. Também temos a discografia e filmografia completa. Só nessas duas obras audiovisuais, teremos a arte de capa, as letras e músicas, os pôsteres de divulgação. Junto vem as notícias de jornal, as aparições em TV, a crítica, a pirataria, entre outras muitas formas que ajudam na construção desse mito. O The Who tocou nos maiores festivais de música da história. E junta todos esses signos com outros signos de outras bandas, formando um signo maior em movimento, um rockumentário de rock and roll, aonde todas as mensagens analisadas são transmitidas pela voz musical. A análise da música em sua performance, técnicas vocais e gestuais, usos das tecnologias de gravação, arranjos, reverberação ajuda a compreender paisagens sonoras em mudança, onde a escuta, para além de ser musical, é entendida como uma escuta do mundo (ZUMTHOR, 1997). O rock and roll atravessou a barreira entre gênero e cultura, ou melhor, contracultura, para se imortalizar na história. Por isso entende-se que o rock and roll é um modelo de representação que possui a significação que o discurso adquire, sendo produzida pelo processo de interação entre os diferentes sujeitos. Morin destaca: A construção social da realidade, portanto, está em reintroduzir o objeto em seu contexto reconhecendo a relação parte-todo, em considerar a diversidade na unidade e a unidade na diversidade, de distinguir sem fragmentar, de reconhecer a completude, a hibridação, entre o caos e a ordem, o modelo e o desvio concebendo o enraizamento do conhecimento/sociedade como um “anel recursivo” (...) o conhecimento se porta como

77 produto/produtor de uma realidade sociocultural em que a dimensão cognitiva é preponderante (MORIN, 2002, p. 25-26).

No artigo Musical Communities: Rethinking the Collective in Music, Kay Kaufman Shelemay faz várias associações entre nós da rede, projeto poético e práticas comunicativas e explica:

Na história da musicologia, o envolvimento de longa data entre compositores, artistas e repertórios individuais mudou decisivamente na segunda metade do século XX para contextos cada vez mais amplos, sejam eles os cenários geográficos, culturais, religiosos, nacionais ou políticos dos quais a música é tão parte integrante (SHELEMAY, 2011, p. 353).

Ainda sobre essa efervescência cultural, Shelemay explica que cultura é formada sobre “os hábitos de pensamento e prática que são compartilhados entre os indivíduos” (SHELEMAY, 2011, p. 355). e “subcultura

a um grupo de jovens, em geral em oposição as convenções (imprinting cultural), definidos por suas classes, claramente reconhecíveis e estilosos, convenções comportamentais e uso de linguagens específicas (SHELEMAY, 2011, p. 360).

Todos tinham em mente que aquele festival de três dias poderia ser a recompensa por um futuro livre e consciente. A união entre público, artistas e organizadores era a maior das recompensas, mesmo que por um breve momento, naquele ano de 1969. Salles explica que

São manifestações artísticas que envolvem um grupo de artistas e técnicos, que desempenham papéis de uma grande diversidade. Como consequência, mostram uma rede criadora bastante densa. Tudo que está sendo descrito, e comentado ganha complexidade da interação (nunca fácil, de uma maneira geral) entre indivíduos em contínua troca de sensibilidades (SALLES, 2011, p. 56).

Vincent Colapietro, professor de filosofia da Pensylvania State University, explica que, segundo o filósofo Charles Sanders Peirce, “o self (que é

78 considerado um signo) representa o sujeito como uma interface entre os âmbitos individuais e coletivos” (COLAPIETRO, 2014, p.84), pois para Peirce “a completude de um sujeito se refere à condição de sua participação numa comunidade” (COLAPIETRO, 2014, p.108). A continuidade das coisas, dos signos, dos fenômenos, reitera a condição de atravessamento em que o self se encontra por meio da semiose e, portanto, a conclusão de que a individualidade de um sujeito está face a face com o incessante e dinâmico crescimento da atuação da semiose. E essa semiose reverbera, readapta e ressignifica.

2.2. Reverberações

Pete Townshend (The Who) nos conta que a primeira ideia do The Rolling Stones Rock and Roll Circus, antes mesmo de ser um programa de TV, era fazer uma turnê de trem pelos Estados Unidos. Townshend, nos extras, diz que

Eu imaginava o rock and roll crescendo e se tornando uma grande instalação, uma escultura. A visão que Ronnie (The Faces) tinha do rock and roll era de algo que vivia em tendas, viajava em vagões. E Mick (The Rolling Stones) era adepto da ideia de uma turnê eterna. O triângulo ia ser o The Who, os Stones e o The Faces. nunca entrou no circuito. Acho que não gostou da ideia. Mas a ideia era criar um circo que viajasse pelos Estados Unidos. Mick contratou , projetista de teatros e de iluminação (que trabalhou no Woodstock um ano depois). Ele projetou um dos primeiros grandes palcos para os Stones e faria o esboço da proposta de compra de uma tenda do circo Barnum and Bailey, dos caminhões e do material rolante ferroviário. E nós planejamos essa grande turnê. Fizemos uma reunião em LA, Mick, Chip e eu, e fomos ficando muito entusiasmados. Era óbvio que faríamos um filme... O que fez tudo ir por água abaixo foi o fato de as ferrovias americanas da época só serem usadas para transporte de carga e não de passageiros. Os trilhos eram ruins. Os trens só alcançavam, em trechos de até 500 km, a velocidade máxima de 10km/h. Teria sido muito entediante ficar no trem, mesmo que ele tivesse cinema, teatro, escola e estúdio. Tudo isso fazia parte do plano do Chip. Teria dado um filme fantástico. De qualquer forma... esse plano foi abandonado, e

79 Mick se voltou para sua ideia de fazer um filme, que não ia muito além.

De qualquer maneira, as ideias dentro da comunidade rock and roll se espalhavam depressa. Dois anos depois dessa ideia, em 1970, foi gravado o rockumentário , que foi uma excursão de trem pelo Canadá e contava com grandes deuses do rock na época, entre eles: Janis Joplin, The Grateful Dead e The Band. O rockumentário só foi lançado em 2003, e mostra, além dos shows realizados durante a turnê, tomadas feitas dentro do trem e entrevistas atuais com alguns participantes das bandas.

Figura 30. Fotograma do rockumentário Festival Express.

Festivais musicais sempre existiram, mas não podemos dizer que são todos por uma boa causa. Esse é o legado do Woodstock. Ele mesmo reverberou em outras duas oportunidades, mas já sem a mesma força inicial. Alguns outros festivais pelo mundo tentaram adotar o Woodstock como pseudômino, mas também sem êxito.

80 Podemos dizer que, pela essência, o (1985) foi um festival de rock com o objetivo de arrecadar fundos pela causa da fome e da miséria na Etiópia. Os shows, com dezenas de artistas famosos, ocorreram no Wembley Stadium (Londres) e no John F. Kennedy Stadium (Filadélfia). Alguns desses artistas também se apresentaram em , Moscou e Japão. Foi uma das maiores transmissões em larga escala por satélite e de televisão de todos os tempos (a estimativa é que 1,5 bilhão de espectadores, em mais de 100 países, tenham assistido a apresentação ao vivo). Nessa linha, Podemos citar o USA for Africa, para combater a fome e as doenças no continente; o , feito para pressionar os líderes mundiais para perdoar a dívida externa dos países mais pobres; o , que aconteceu em sete continentes com o objetivo de sensibilizar a opinião pública mundial para o aquecimento global; e o The Freddie Mercury Tribute Concert, que juntou muitas bandas de rock para prestar homenagem à morte do vocalista do Queen Freddie Mercury, causada pela AIDS. Todos os lucros do evento foram revertidos para o Mercury Phoenix Trust (instituição que combate a AIDS pelo mundo). O que também podemos afirmar é que as reverberações do Woodstock estão presentes até hoje em manifestações culturais sócio-políticas – no cinema, na moda, nas ruas e nos jornais. Protestos de todas as ordens contra qualquer tipo de repressão e a favor dos direitos individuais.

Figura 31. Imagem de manifestação social no Estados Unidos (greve dos professores contra corte na educação). Fonte: Horadopovo.org.br

81 Quanto as reverberações de Pink Floyd Live at Pompeii, o diretor Adrian Maben conta que produtores, em diversas ocasiões, perguntaram e ele: "Não podemos fazer algo no mesmo tom? Deep Purple no Taj Mahal? Que tal os Moody Blues tocando no Grand Canyon?" Eles acharam que isto deveria virar moda (produto midiático). Adrian não quis mais dirigir rockumentários desse jeito, mas esse formato reverbera até hoje, principalmente no formato videoclipe. O grupo de hip-hop Beastie Boys fez um videoclipe para a música "Gratitude"17, inspirado em Pink Floyd Live at Pompeii. Foi gravado na Nova Zelândia, e praticamente fez uma cópia do vídeo original. O estilo de direção, travellings horizontais, fotos aéreas, planos close-up dos instrumentos e vários quadros de guitarra preenchendo a tela. O videoclipe ainda mostra um amplificador que o grupo conseguiu comprar, ainda chamado de "Pink Floyd, London". Ao final do clipe, uma mensagem diz: "Este vídeo é dedicado à memória de todas as pessoas que morreram em Pompeia”. A banda de rock Korn filmou um show similar, Korn Live: The Encounter 18(2010), para promover seu nono álbum de estúdio, Korn III: Remember Who You Are. O show aconteceu em um círculo agrícola em Bakersfield (Califórnia), e não teve audiência além da equipe de produção. Em outro exemplo, os integrantes do Radiohead eram conhecidos por serem fãs do filme e por assistir-lo regularmente quando estavam em turnê19. De acordo com o baixista Colin Greenwood, seu irmão Jonny fez a banda inteira assistir ao filme, dizendo: "agora é assim que devemos fazer vídeos". Em julho de 2016, David Gilmour retornou ao anfiteatro em Pompeia, onde as filmagens ocorreram, e realizou dois shows ao vivo, desta vez com uma plateia. Enquanto esteve lá, foi nomeado cidadão honorário de Pompeia.

17 "Gratitude: Official music video". Disponível em < http://youtube.com >EMI. Acesso em 7/9/2017. 18 "Korn's Blog". Korn Official MySpace Channel. Disponível em < http://myspace.com >. Acesso em 10/9/2017. 19 Pierre Perrone (18 August 2012). "Prog – a genre that still has a firm grip on the British psyche". The Independent. Disponível em < http://theindependent.co.uk >. Acesso em 10/9/2017.

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Figura 32. Fotograma do videoclipe Gratitude, do grupo Beastie Boys.

E para concluir, temos o santuário da música: o Rock and Roll Hall of Fame and Museum, é um museu e uma instituição em Cleveland, Ohio (USA), dedicado a registrar a história de alguns dos mais conhecidos e influentes artistas, produtores e outras pessoas que tiveram grande impacto na indústria do rock e do pop.

Figura 33. Logomarca Rock and Roll Hall of Fame

83 3. Memória, imagem, movimento e mito

3.1 Métodos de apropriação de histórias e memórias

O rock and roll se apropria de narrativas, personagens e elementos épicos, míticos e históricos para ressignificar dentro de um novo ambiente, o musical. Desde os primórdios da civilização, os povos demonstram a necessidade da representatividade de algo ou alguém, um mito para ser chamado de divino. Que transmita esperança e realize milagres. Na metade do século XX não foi diferente. A família tradicional, os governantes e as religiões predominantes não pareciam estabelecer diálogos com o imaginário da juventude. Essa, por sua vez, precisava de algo novo para depositar a esperança e renovar a fé. Parecia procurar o pertencimento a uma tribo que lhe preenchesse os espaços vazios. E, desta forma, ter alguém ou algo com quem se identificasse e que a representasse, o que as instituições acima mencionadas falhavam em fazer. Foi essa atmosfera de mudança e esperança por dias melhores a detonadora de todos os questionamentos contra o imprinting cultural, juntamente com representantes e seus instrumentos. Morin explica que o imprinting cultutal é um determinismo cultural que normaliza as ideias e vidas dos indivíduos. No entanto, o próprio Morin fala que efervescências, reações, podem enfraquecer este imprinting (MORIN, 2002). Esta atmosfera, reagindo ao imprinting cultutal, evidenciava a noosfera como ponto de equilíbrio entre as três esferas da vida, o que era defendido como a equação perfeita por Morin. Resumidamente, para Morin, a vida se dá em três esferas: a biosfera (cérebro), a sociosfera (cultura) e a noosfera (espírito/mente) (MORIN, 2002). Sendo a religião, em suas diferentes formas, um sistema cultural repleto de símbolos e presente em várias sociedades desde o início das civilizações, o sujeito, pelo mito, quebra a barreira entre a transcendência espiritual e o sobrenatural místico. Muitas vertentes religiosas pregam que o transcendental

84 pode ser atingido se tornando um estado de espírito, como por exemplo, a 'salvação’ no cristianismo. Levando em consideração as estruturas metafísicas corpo-mente-alma (individual) e religião-deus (coletivo) para entender a natureza-noosfera e, assim, como um mito é construído. Morin explica que a noosfera é dividida em duas camadas: a sub- realidade se concentra na realidade do indivíduo, a realidade sócio-cultural; e a super-realidade, que se refere às ideias e às coisas próprias do espírito, criadas por este em um ambiente sócio-cultural, o qual molda sua forma como instrumento de conhecimento (MORIN, 2002, p.131-132). Essas formas são:

“As representações, símbolos, mitos, ideias, são englobados, ao mesmo tempo, pelas noções de cultura e de noosfera. Do ponto de vista da cultura, constituem a sua memória, os seus saberes, os seus programas, as suas crenças, os seus valores, as suas normas. Do ponto de vista da noosfera, são entidades feitas de substância espiritual e dotadas de certa existência”. (MORIN, 2002, p.139).

Dito isso, o ponto analisado aqui é de se apropriar de narrativas, discursos e sujeitos já conhecidos anteriormente, seja através de contos religiosos, de manifestações culturais de outros povos e épocas ou mesmo a questão de imagens recentes, explorando a memória como fator de identificação e projeção. Reunimos alguns exemplos para fazer essa combinação entre elementos significativos que estão na memória coletiva. Levamos em consideração principalmente a religião cristã e suas vertentes (protestante nos Estados Unidos e anglicana na Inglaterra). A juventude detonadora dos movimentos que fundamentam o surgimento dos filmes pesquisados cresceu com essas crenças na família e na sociedade. Estas, portanto, são as principais referências do sagrado e de uma concepção de deus/deuses que esta geração teve em seu repertório. Desta forma, analisamos passagens e trechos bíblicos explorados pelas manifestações artísticas da época (metade do século XX) lembrando que muitos pastores, como citado anteriormente, eram oradores em manifestações

85 contraculturais. A seguir, um combinado de imagens dessas narrativas e personagens, a forma como transmitem mensagens e seu impacto na sociedade. Começamos por Ben-Hur, justamente pela produção, alcance e por ter ganhado onze dos doze Oscars que concorreu, o que representa um poder considerável de influência no fazer cinematográfico. Ben-Hur é um filme épico norte-americano de 1959, que conta como o personagem principal é devoto de sua fé e da liberdade do povo (no caso, judeu). A seguir, uma compilação de imagens do filme que nos mostram temas como amizade, poder, união, missão, repressão e amor.

Figura 34. Mosaico com fotogramas do filme Ben-Hur (1959), as quais representam momentos de amizade, poder, união, missão, repressão e amor.

Outro filme que também esteve presente em várias categorias do Oscar, mas acabou ganhando apenas uma estatueta, foi Os Dez Mandamentos, que

86 também é um filme épico norte-americano, de 1956. Apresenta uma leitura romântica da vida de Moisés: das dificuldades da sua vida desde o nascimento às suas missões como um deus-herói. Podemos fazer a associação das dificuldades da vida do protagonista com o sentimento que os jovens tinham perante a sociedade e, também, relacionar os mandamentos como guias para uma vida e sociedade em harmonia. Eles também tinham missões, mas não poderes. É aí que entra a representatividade dos escolhidos entre eles, a representação e ascensão do mito dos deuses do rock.

Figura 35. Imagem do filme Os Dez Mandamentos (1956)

Saindo do gênero épico-mítico, em filmes feitos para o público jovem podemos encontrar exemplos de narrativas que dialogam com os anseios da juventude e com o sagrado. James Dean era um ícone jovem do cinema. Juventude Transviada é um filme norte-americano de 1955, do gênero drama, que já contava a história de

87 jovens “problemáticos”, que não toleravam ordens e regras. Assim Caminha a Humanidade também é um filme do gênero drama, norte-americano de 1956, dirigido por George Stevens, que ganhou Oscar de Melhor Diretor. O filme foi considerado pela revista Time o mais contundente legado anti-intolerância racial já levado às telas, considerando-o o retrato de uma era.

Figura 36. Fotograma do filme Juventude Transviada (1955).

Figura 37. Fotograma do filme Assim caminha a humanidade (1956).

88 Outro filme que segue essa linha é Sem Destino. Trata-se de um road movie (história que acontece durante uma viagem) norte-americano de 1969, que narra a história de motociclistas que viajam pelos Estados Unidos em busca da liberdade. Dirigido por Dennis Hopper e produzido por Peter Fonda, ambos estrelaram o filme e escreveram o roteiro com Terry Southern. A obra teve duas indicações ao Oscar, levando o prêmio de Melhor Filme de Diretor Estreante no Festival de Cannes. O filme capta o estilo de vida em comunidades hippies, o uso de drogas, bem como temas sociais e políticos daquela década. Por este motivo, é considerado um marco nos filmes de contracultura e a base de uma geração que expressava a imaginação da juventude.

Figura 38. Fotograma do filme Sem Destino (1969).

Por último, no nosso levantamento, não poderíamos deixar de mencionar um musical. A Noviça Rebelde, de 1965, traz ligações com o repúdio à guerra, a

89 educação rígida aos filhos (com uma dose de rebeldia escondida) e a doutrina religiosa. O filme musical foi dirigido e produzido por Robert Wise e, em 1966, ganhou cincos Oscars e dois Globos de Ouro. O filme conta a história de uma moça que quer se tornar freira mas é enviada para ser governanta na casa de um ex-oficial da marinha, que é viúvo e tem sete filhos. Durante este percurso, a obra foca em valores pessoais como a tranquilidade, a bondade e o equilíbrio, permeados com amor e música. Mesmo não se tornando freira, a protagonista não deixa de perder a fé.

Figura 39. Fotograma que mostra a sequência das freiras “pecadoras” em A Noviça Rebelde (1965).

Estas referências, presentes na memória coletiva, servem de suporte para ajudar na construção do mito dos deuses do rock no audiovisual, como mostraremos a seguir.

90 3.2. A força da imagem

Na apresentação do livro de Roberto Marques (2004), Contracultura, tradição e oralidade: (re)inventando o sertão nordestino na década de 70, a doutora em história Marieta de Moraes Ferreira esclarece de forma breve aquilo que muitos teóricos explicam sobre a força da memória. Ela diz que:

(...) considerando a memória como um exercício de reconstrução do passado a partir de exigências de auto-invenção do presente e de projeção de um dado futuro (...), como é capaz de se reinventar (...) espraiando seu discurso para a significação (...), dotando-se de uma especifidade e unidade forjadas em jogos de representações múltiplos e agregadores de diferentes informações (FERREIRA in MARQUES, 2004).

Sendo assim, partindo das referências imagéticas presentes no cinema que há pouco citamos, como não associar, enquanto tradução, os hippies de Woodstock que nadam pelados no lago com índios que tomam banho nos rios? Ou até mesmo com Adão e Eva, seguindo as narrativas religiosas já citadas? Como olhar as imagens do espaço e da missão Apollo 11 em Pink Floyd: Live at Pompeii e não lembrar de Georges Méliès em Viagem à Lua (1902)?

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Figura 40. Fotograma do filme Viagem à Lua, de Georges Meliès (1902).

Imagens históricas importantes carregadas de significados, que adaptadas a um contexto sócio-político-cultural ganham uma sobrevida e uma sobrecarga que invadem nosso imaginário, ressignificando momentos e fortes o suficiente para fundamentarem o surfimento de novos mitos. Norval Baitello Junior diz que o melhor jeito de analisar uma imagem é no sentido globalizante (todos os significados que ela carrega), e não apenas no sentido estetizante (forma artística). No livro Emoção e Imaginação: Os Sentidos e as Imagens em Movimento, de 2014, no qual ele e Christoph Wulf são os organizadores, no capítulo Imagem e Emoção: movimentos interiores e exteriores, de sua própria autoria, ele explica que:

Se há uma propriedade inerente às imagens, em todas as suas formas e manifestações, é sua capacidade de

92 condensar e carregar sentidos, vale dizer, energia, vale dizer, emoções e sentimentos, histórias e estórias, memórias do passado e memórias do futuro como anseios, sonhos e projetos. Tal qual diagnosticou Aby Warburg, imagens carregam uma ‘pós-vida’ (Nachleben) de camadas profundas da história e atuam como um dínamo que gera energia ao amplificar sentidos e sentimentos soterrados (BAITELLO, 2014, p. 21).

Com suas palavras redirecionadas ao objeto da pesquisa, a criação do mito no audiovisual, percebemos o quão importante é a figura de uma banda de rock and roll, desde a imagem da capa de um álbum, um riff eletrizante de guitarra ou da letra de uma música e, mais contundente, a produção de um rockumentário que envolve tudo isso mesclado as causas sociais de uma juventude. E ele complementa:

Daí emerge o poder de captura e o poder de mobilização das imagens. Reunindo tanta potência condensada, muitas vezes em uma simples configuração como uma cor, um traço ou um esboço, tantas vezes em um único elemento evocador, um gesto, um olhar, sua presença na história do homem foi sempre a presença de uma ferramenta ou arma essencial, com grande poder de síntese e com grande poder de impacto, por seu potencial de captura emocional, por sua “fórmula de pathos” (Pathosformel) (BAITELLO JR., 2014, p. 21).

Dessa forma, fizemos uma seleção de imagens dos três rockumentários que reverberam as imagens apresentadas anteriormente.

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Figura 41. Fotograma do rockumentário Woodstock.

Figura 42. Fotograma do rockumentário Woodstock.

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Figura 43. Fotograma do rockumentário Woodstock.

Figura 44. Fotograma do rockumentário Woodstock.

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Figura 45. Fotograma do rockumentário The Rolling Stones Rock and Roll Circus.

Figura 46. Fotograma do rockumentário Pink Floyd Live at Pompeii.

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Figura 47. Fotograma do rockumentário Pink Floyd Live at Pompeii.

Seguindo a linha de raciocínio da captura emocional da imagem através de sentidos, Baitello diz que “uma imagem não se esgota apenas no sentido da visão” (BAITELLO, 2014, p.22), já que tudo pode ser chamado de imagem. E complementa:

“Esse trânsito de imagens (que podem ser palavras, imagens acústicas, gestos, imagens performáticas, cheiros, imagens olfativas, sabores, imagens gustativas, formas e texturas, imagens táteis, ou ainda as importantes e pouco estudadas imagens proprioceptivas) é o que se denomina comunicação humana em seu sentido mais primordial e abrangente, em sua capacidade de vincular seres, espaços e tempos”. (BAITELLO JR., 2014, p. 22).

E por meio dessa comunicação de múltiplas imagens, que une sujeitos e sentidos, podemos observar ambientes sociais e culturais através do processo de imaginação nas análises imagéticas e fílmicas.

97 3.3. O poder do filme

Como visto, as imagens têm um papel fundamental na construção de sentidos e, sendo assim, estabelecem uma relação de interação com o discurso musical através da imaginação. Segundo Baitello,

as imagens que se incubam dentro do homem, (...) quando emergem, criam ambientes de sociabilidades – parcerias, complementaridades, cumplicidades – e de cultura – crenças, imaginários, comunhões – que, por sua vez, alimentam e estimulam a geração e a incubação de mais imagens. A este processo chamamos de imaginação: a geração de imagens a partir de sentimentos, sensações, percepções, e seu oposto, a geração de sentimentos e sensações a partir de imagens, ou ainda a criação de imagens a partir de imagens, imagens sobre imagens, que por sua vez, com sua capacidade de captura, evocam sempre emoções, novas ou revisitadas, explosivas ou silentes. Imaginação pode ser definida simplificadamente como imagens em ação, em movimento, como o movimento das imagens (BAITELLO JR., 2014, p. 22).

E são essas imagens em ação que formam nossos objetos de estudo, os rockumentários. Por exemplo, a imagem do “paz e amor”, representada abaixo, originalmente usada para a campanha do desarmamento nuclear e posteriormente popularizada como símbolo da paz.

Figura 48. Símbolo do “paz e amor”.

98 Considerada símbolo do ativismo hippie (pode ser representado dessa forma, como na figura acima, ou com as mãos, erguendo indicador e médio), tem como objetivo reproduzir seus ideais. Possui representação junto ao ativismo e à identidade de um grupo social unido, identidade que também reforçada pelas imagens das audiências e dos músicos, os quais assumiram a sua ideologia perante o mundo.

Figura 49. Fotograma do rockumentário The Rolling Stones Rock and Roll Circus, que mostra Taj Mahal, ao final da sua apresentação, fazendo com a mão o símbolo do “paz e amor”.

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Figura 50. Fotograma do rockumentário Woodstock, que mostra uma das freiras presente no público, gesticular o mesmo símbolo.

Essa representação através de símbolos, de uma sociedade unida, livre e, o mais importante, respeitando as diferenças de cada um e os direitos individuais, regada a música e psicodelia, possui grande força no imaginário. Christoph Wulf, professor de antropologia e edução da Universidade Livre de Berlim, fala sobre “as características e qualidades de como as emoções podem ser caracterizadas do ponto de vista dos estudos culturais e sociais onde a imaginação tem um papel importante” (WULF, 2014, p.14), e é por esse estudo de conceitos técnicos que veremos a seguir, como se constroem os conceitos significativos da imaginação. Wulf complementa:

A imaginação pode ser designada como uma energia com cuja atuação pessoas ausentes, objetos ausentes e sensações ausentes podem estar presentes. (...) A imaginação tem como raízes os processos vivos do corpo humano (...) no sentido de estar intimamente ligada com as atividades, emoções e ações físicas do ser humano. (...) Cria representações de emoções no mundo imaginado e com isso produz um pressuposto muito importante para poder comunicar as emoções. Mesmo em sonhos, visões e alucinações, a imaginação faz aparecer emoções e possibilita a sua configuração nas obras da cultura, arte, literatura, teatro, música,

100 arquitetura, mas também na política, na economia e na tecnologia (WULF, 2014, p.14-15).

E nessa análise cultural, da arte audiovisual dos três rockumentários, Ismail Xavier, professor de cinema da Universidade de São Paulo, esclarece alguns dos aspectos técnicos usados neste meio de comunicação, por meio de seu livro O Discurso Cinematográfico: A Opacidade e a Transparência, de 2008. Baseados em sua obra, montamos uma tabela com os recursos utilizados na chamada “decupagem clássica”, com elementos técnicos do cinema, presentes nos objetos de estudo.

Técnica Conceito Decupagem Decomposição do filme em planos (sequências e cenas, marcadas por sua função dramática e/ou por posição narrativa). Plano Tomada de cena (extensão do filme entre dois cortes), ou seja, segmento contínuo da imagem. Tipos de plano Ponto de vista (distância e ângulo em relação ao objeto). Plano Geral Cenas em ambientes amplos (posição da câmera que mostra todo o espaço da ação). Plano Médio (ou de Conjunto) A câmera mostra o conjunto de elementos envolvidos na ação (figuras humanas e cenário). Mostra um campo de visão menor em relação ao Plano Geral.

101 Plano Americano As figuras humanas têm um corte, aproximadamente, na cintura (dentro do enquadramento próximo a câmera). Primeiro Plano (Close-Up) Bem próxima a figura humana, a câmera mostra apenas o rosto ou algum detalhe qualquer, que ocupa quase a totalidade da tela. Primeiríssimo Plano O maior detalhamento dentro do enquadramento – um olho ou uma boca ocupando todo o espaço da tela. Plongée (Câmera Alta) Ângulo (posição da câmera acima da altura dos olhos de um observador). Contra-Plongée (Câmera baixa) Ângulo (posição da câmera abaixo da altura dos olhos de um observador). Panorâmica Movimento de rotação da câmera em torno de um eixo fixo. Travelling Movimento de translação da câmera ao longo de uma direção determinada. Câmera Subjetiva Assume o ponto de vista de algum personagem, observando os acontecimentos de sua posição. Shot/Reaction-Shot O novo plano explicita o efeito dos acontecimentos mostrados anteriormente, no comportamento de algum personagem. Tabela 4. Recursos de linguagem do cinema e sua descrição, baseado em XAVIER, 2008, p.27-38.

Além destes recursos, podemos citar outras técnicas, como o zoom-in e zoom-out, quando a câmera se aproxima e se afasta de algum assunto, sem a necessidade de corte entre os planos.

102 No começo de Pink Floyd: Live at Pompeii, a câmera fixa no topo do anfiteatro, em um Plano Geral (mostrando a arena inteira e, no centro dela, a banda, a equipe de produção, bem como todos os equipamentos e instrumentos), utiliza a técnica do zoom-in, lentamente se aproximando da banda, sem cortes, enquanto ouvimos a primeira música, Echoes, que também começa lentamente. Antes mesmo dessa cena, a viagem pelo espaço em forma de travelling (nas imagens computadorizadas), quando o planeta Terra é avistado, a técnica de zoom-in também é aplicada como forma de mostrar a entrada e chegada ao planeta. A continuação dessa cena é, como explicada acima, o Plano Geral do anfiteatro de Pompéia com o zoom-in para a banda. Mais para frente, abordaremos os processos de criação e, então, iremos perceber o porquê do uso dessas técnicas. Outro exemplo de zoom-in e zoom-out é utilizado nos rockumentários The Rolling Stones Rock and Roll Circus e Woodstock: Three Days of Peace and Music, quando a câmera explora esses recursos, sem cortes, de um Plano Geral para um Primeiro Plano, e vice-versa, da plateia ou dos artistas no palco. Nos rockumentários, mesmo em Woodstock (que foi construído com base em uma narrativa paralela), o Plano Geral foi utilizado no começo e no fim (salvo em momentos pontuais durante a sequência do filme) para introduzir o espectador ao espaço e para se despedir dele.

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Figura 51. Início do rockumentário The Rolling Stones Rock and Roll Circus, que usa o Plano Geral para apresentar o espaço do picadeiro e a plateia.

Figura 52. Final do rockumentário Woodstock: Three Days of Peace and Music, que precisou de uma tomada aérea para fazer um Plano Geral, para mostrar a dimensão do espaço e do público.

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Figura 53. Final do rockumentário Pink Floyd: Live at Pompeii, que usa o Plano Geral (com zoom-out do centro do anfiteatro) para se despedir da locação de gravação (antes de retornar para as imagens computadorizadas do espaço).

O Plano Médio/Conjunto, por sua vez, já é bastante utilizado nos três rockumentários em questão, visto que os personagens precisam aparecer nos espaços e interagir dentro dele. É um processo de aproximação do maior para o menor, invertendo ao final da peça.

105 Figura 54. Fotograma do rockumentário The Rolling Stones Rock and Roll Circus, que usa o Plano Conjunto para mostrar a banda e, ao mesmo tempo, contextualizar o espectador sobre o espaço onde acontece o concerto.

Figura 55. Fotograma do rockumentário Woodstock: Three Days of Peace and Music, que usa o Plano Conjunto, ao mostrar a banda, o palco e alguns objetos.

Figura 56. Fotograma do rockumentário Pink Floyd: Live at Pompeii, que usa o Plano Médio.

106 Os Planos Americano, Primeiro (Close-Up) e Primeiríssimo são os mais utilizados, já que o assunto principal dos rockumentários são as pessoas (artistas, diretores, produtores, equipes e plateia). Através desses planos é que se pode chegar mais perto dos sujeitos, de sentir a sua presença.

Figura 57. Fotograma do rockumentário The Rolling Stones Rock and Roll Circus, que usa o Plano Americano para enquadrar o assunto no meio da tela.

107 Figura 58. Fotograma do rockumentário Woodstock: Three Days of Peace and Music, que usa o Primeiro Plano (Close-Up) para enquadrar bem de perto uma ação que caracteriza algumas das transgressões no evento.

Figura 59. Fotograma do rockumentário Pink Floyd: Live at Pompeii, que usa o Primeiríssimo Plano para enquadrar, mais de perto, um detalhe.

Já o Plongée (câmera alta) e o Contra-Plongée (câmera baixa), que podem ser utilizados em qualquer tipo de plano e enquadramento, significam inferioridade e superioridade, respectivamente. Isso se deve a alguma situação ou sentimento do personagem.

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Figura 60. Fotograma do rockumentário The Rolling Stones Rock and Roll Circus, no qual é mostrada uma cena com o Plongée.

Marianne Faithfull foi a única a ser gravada com uma grua e é a única sequência com Plongée de todo o rockumentário The Rolling Stones Rock and Roll Circus. A cantora apresentava Something Better, do lado B do álbum Sister Morphine. Na época da gravação (segundo relatos nos extras do rockumentário) ela estava viciada em heroína.

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Figura 61 Fotograma do rockumentário Woodstock: Three Days of Peace and Music. Uma cena com o Contra-Plongée.

Jimi Hendrix encerrou o festival de Woodstock. Na época, e até os dias de hoje, ele é considerado pela mídia especializada e pelos fãs de rock and roll, um dos maiores deuses da guitarra. O efeito Panorâmica não foi utilizado no The Rolling Stones Rock and Roll Circus e pouco se fez uso dele no Woodstock, mas em compensação, foi muito explorado no Live at Pompeii, principalmente nas cenas da cidade, das ruínas e da natureza da cidade de Pompeia. Já o Travelling foi muito utilizado nos três rockumentários, não só nas cenas abertas, mas principalmente para percorrer o corpo dos artistas e seus instrumentos, em sincronia com as músicas. Cada vez que algum instrumento se destacava em determinada canção, o Travelling era utilizado para captar a imagem junto ao som e, conforme o ritmo da música acelerava, os efeitos técnicos de filmagem aceleravam junto e se misturavam em Travelling, Close-Up e Zoom-In e Out. O recurso da montagem permite essa mescla de cortes, como diz Xavier: A sequência de imagens, embora apresente descontinuidades flagrantes na passagem de um plano para outro, pode ser aceita como abertura para um mundo fluente que

110 está do lado de lá da tela porque uma convenção bastante eficiente tende a dissolver a descontinuidade visual numa continuidade admitida em outro nível: o da narração (XAVIER, 2008, p. 30).

A câmera subjetiva também foi pouco utilizada no rockumentário dos Stones e do Pink Floyd, porém foi muito bem aproveitada no Woodstock, ora no palco “olhando” para o público, ora no público “olhando” para o palco. E, principalmente, nas cenas com a audiência e nas ruas, quando o Shot/Reaction- Shot também entra em ação. Por exemplo, na sequência da discussão entre dois senhores nas ruas de Bethel (NY). Um defende os jovens hippies enquanto o outro desaprova toda a situação e o festival.

Figura 62. Fotograma do rockumentário Woodstock: Three Days of Peace and Music. Sequência de discussão entre dois senhores, com o uso do Shot/Reaction-Shot.

Ao analisar esse conjunto de técnicas e conceitos, nos vem a mente a multiplicidade citada por Arlindo Machado, no capítulo Formas Expressivas da Contemporaneidade, de seu livro Pré-cinemas & pós-cinemas, de 1997. Ele explica como opera a multiplicidade na edição e de processamento digital, utilizando recursos que possibilitam a fusão incontável de imagens ou

111 fragmentos delas, criando novas imagens. Dentro de uma tela se pode abrir novas telas, virando um espaço híbrido de textos, vozes e imagens múltiplas (MACHADO, 1997, p. 237-238). Citando Italo Calvino, ele diz:

A multiplicidade é definida por Calvino como um conjunto de ‘redes de conexões entre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo’. Se for possível reduzir a uma palavra o projeto estético e semiótico que está pressuposto em grande parte da produção audiovisual mais recente, podemos dizer que se trata de uma procura sem tréguas dessa multiplicidade que exprime o modo de conhecimento do homem contemporâneo. O mundo é visto e representado como uma trama de relações de uma complexidade inextricável, em que cada instante está marcado pela presença simultânea de elementos os mais heterogêneos e tudo isso ocorre num movimento vertiginoso, que torna mutantes e escorregadios todos os eventos, todos os contextos, todas as operações (MACHADO, 1997, p. 237-238).

Figura 63. Fotograma do rockumentário Woodstock: Three Days of Peace and Music, no qual a tela se torna um espaço híbrido.

Baseado em Christian Metz, teórico do cinema, J. Dudley Andrew, no seu livro As Principais Teorias do Cinema: Uma Introdução, de 2002, explica essa mistura de materiais, como um sistema de comunicação.

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Para Metz, a matéria-prima do cinema é sem dúvida a própria realidade ou um modo particular de significado, como as atrações da montagem. (...) a matéria-prima são os canais de informação a que prestamos atenção quando assistimos um filme. Estes incluem: 1. Imagens que são fotográficas, em movimento e múltiplas; 2. Traços gráficos que incluem todo o material escrito que é lido, em off; 3. Discurso gravado; 4. Música gravada; 5. Barulho ou efeitos sonoros gravados (ANDREW, 2002, p.174).

E é nessa linha de imaginação e emoção, às condições de percepção presentes na leitura da imagem através dos conceitos e técnicas aplicadas, que entra Morin (2014), buscando os códigos responsáveis pelo poder significante do cinema, na sua obra O Cinema ou o Homem Imaginário.

113 Figura 64. Tabela presenta na obra O Cinema ou o Homem Imaginário, em MORIN, 2014, p.237.

114 No cinema, portanto, encontramos imagens que se confundem com emoções pessoais e coletivais, reais ou imaginárias. E, pela tabela na figura acima, Morin explica que “é isso o cinema”, fazendo uma analogia a alma inocente de uma criança, “que traz em si, ainda indistinta e misturada, toda a totalidade humana” (MORIN, 2014, p. 236). E complementa:

O cinema, como a música, encerra a percepção imediata da alma por ela mesma. Como a poesia, ele se desenvolve no campo do imaginário. Mas, mais que a poesia, mais que a pintura e a escultura, ele opera por e através de um mundo de objetos dotados de determinação prática, e expõe narrativamente um encadeamento de acontecimentos (...) ele fervilha com todas as virtualidades do espírito humano (MORIN, 2014, p. 236).

E é por esse afeto ao cinema e a música, pela participação (projeção- identificação) por meio da associação entre conceito e processo, que Morin diz que “toda massa se liga à energia” (MORIN, 2014, p. 255). Que essa participação é o elo “biológico, afetivo e intelectual das energias humanas primordiais” (ibidem), e complementa que a participação é

a duplicação, a noção mágica ou espírita, parece-nos um processo elementar de projeção. O antropocosmomorfismo não é um tipo de faculdade especial, própria às crianças e aos primitivos, mas o movimento espontâneo da projeção- identificação. Esta se prolonga, depura-se, prossegue nas obras da razão e da técnica, assim como se aliena nas reificações e nos fetiches (MORIN, 2014, p. 256).

E ele conclui, com base nos processos de projeção-identificação, que é preciso “considerar os conteúdos dos filmes em sua tríplice realidade: antropológica, histórica e social” (MORIN, 2014, p. 256), para entender o papel social do cinema. Desta forma, acreditamos que o cinema possui todos os recursos necessários para explorar narrativas que, dado o poder de representação do meio, podem fazer emergir figuras míticas.

115 Uma celebridade midiática, a qual passa a fazer parte do dia a dia dos sujeitos ou comunidades, explorada pela linguagem do cinema, pode influenciar o público de várias formas, através de novos costumes e valores pela cumplicidade envolvida. Pelos mesmos mecanismos do star system, vemos “alguém popular” se transfirmar em “deus popular”, em torno das relações subjetivas dos fãs com os ídolos. Esse relacionamento entre espectador e espetáculo, repleto de conexões psicoafetivas e sensações de pertencimento, em projeção-identificação, faz parte do processo que gera a assimilação imagética entre eles. Em As estrelas: mito e sedução no cinema, Morin nos conta como uma “estrela-deusa” sai do anonimato para se transformar referência para multidões. Ele fala, também, como tudo é executado de forma sublime para que o espectador seja capturado por esses deuses. Essa referência física, portanto, se transforma em referência espiritual, em imagens na alma. Alma, essa, que é

precisamente o lugar de simbiose no qual imaginário e real se confundem e se alimentam um do outro; o amor, fenômeno da alma que mistura de maneira mais íntima nossas projeções- identificações imaginárias e nossa vida real, ganha mais importância (MORIN, 1989, p.11).

Essa projeção-identificação que ocorre no cinema pode ser, segundo o autor, um fenômeno em que o “espectador vive, no nível psíquico, a vida imaginária, intensa, valorosa, apaixonada dos heróis dos filmes, isto é, identifica- se com eles” (MORIN, 1989, p.64). E que também tem a ver com “o que é mais comum, uma identificaçao dirigida a um alter ego” (ibidem).

(…) no nivel dos fenômenos coletivos, a história das estrelas retomou a seu modo a historia dos deuses. Antes dos deuses, antes das estrelas, o universo mitico, a tela, estava povoado de espectros ou fantasmas portadores do estigma do duplo. Progressivamente, algumas dessas presenças tomam corpo e substância, sao magnificadas, expandem-se em deuses e deusas. E, assim como determinados deuses do panteão da Antigüidade se metamorfoseavam em deuses-heróis da salvação, as estrelas-deusas humanizam-se, tornam-se novos

116 mediadores entre o mundo maravilhoso dos sonhos e a vida quotidiana (Morin, 1989, p. 20-21).

Como já dito antes, esses deuses eram pessoas normais, do meio da comunidade, que se levantaram e usaram a voz para espalhar uma filosofia, imaginária e real. E é esse o ponto da relação entre a juventude da contracultural rock and roll e os deuses do rock, construídos pela música e pelo audiovisual.

117 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao término deste estudo, chegamos a conclusão de que a construção do mito moderno dos deuses do rock and roll, ultrapassa os estudos de uma única disciplina. É uma comunidade em rede complexa de um mega-gênero musical, que representava uma juventude contracultural e que se apropriava de narrativas, discursos e personagens histórico-míticos para a construção de sentidos no audiovisual. A criação do mito está ligada diretamente ao imaginário contracultural. Os processos de criação no audiovisual são só os meios. O mito, como um suporte de valores coletivos, promove o culto. O culto é o show e o show é o culto, que reverbera no tempo e resignifica, por intermédio da memória, da imaginação e da emoção. O pensamento mítico continua vivo em nós, porque continua vivo na cultura. Warburg tinha a concepção de que os povos primitivos de cultura pagã poderiam iluminar o avanço do pensamento ocidental civilizado:

Em que medida as reminiscências de uma cosmologia pagã, que ainda podem ser obtidas entre os índios Pueblos, nos ajuda a entender a evolução do paganismo primitivo, passando pela cultura pagã altamente desenvolvida da antiguidade clássica até chegar ao homem moderno civilizado? (WARBURG, 2010, p.527)

O rockumentário foi criado além do simples e puro prazer do entretenimento. Ele veio para informar. Informações, essas, de um cenário cultural, social e político, de tempos e espaço diversos, mas que reverberam até os dias de hoje nas nossas sociedades. A contracultura e o rock and roll não se resumem por um ato ou ator isolado, mas dentro de uma atmosfera, aonde o todo age em conjunto, por diversos caminhos, serpenteando em zigue-zague, elétrico, de baixo para cima, em uma das suas sobrevidas dentro de um determinado tempo e espaço. Esse todo em forma de emoção, reflexão manifesta em conjunto atualizado, se exibe de forma autoexplicativa.

118 Morin diz que “as sociedades só existem e as culturas só se formam, conservam, transmitem e desenvolvem através das interações cerebrais/espirituais entre os indivíduos” (MORIN, 2011, p. 19), logo a contracultura se resume por por grupos organizados dentro de espaços comuns. Seus projetos poéticos contra o imprinting cultural, a materialidade no espaço/tempo dessas interações e, principalmente, a intertextualidade de princípios direcionadores. Esse todo em formas de semiose, manifesto em conjunto, busca nos deuses a nossa própria recriação. Os olhares atentos fazem experimentação via percepção. A percepção se transforma, a memória transcende e a obra nunca acaba. São décadas desse mega-gênero musical apresentado pelo audiovisual, que já se mostrou em vários formatos em incontáveis produções, readaptados, mas sempre com os mesmos valores.

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