A Técnica Narrativa Em Clarice Lispector E James Joyce
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A TÉCNICA NARRATIVA EM CLARICE LISPECTOR E JAMES JOYCE Saulo Gomes THIMÓTEO (G-UNICENTRO) Níncia Cecília Ribas Borges TEIXEIRA (UNICENTRO) ISBN: 978-85-99680-05-6 REFERÊNCIA: THIMÓTEO, Saulo Gomes; TEIXEIRA, Níncia Cecília Ribas Borges. A técnica narrativa em Clarice Lispector e James Joyce. In: CELLI – COLÓQUIO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS. 3, 2007, Maringá. Anais... Maringá, 2009, p. 931- 939. 1. Introdução Ao se produzir romances variados, o artista lança mão de diferentes estilos. Quando se leva em consideração à escrita de James Joyce, técnicas como fluxo de consciência, migração entre os níveis simbolista e naturalista e análise detalhada de seus personagens, permeiam boa parte de sua obra. Um exemplo disso é o romance “Ulisses”, que o crítico literário Edmund Wilson definiu: “Talvez a mais fiel radiografia jamais feita da consciência humana”. E é na mescla de estilos, migrando ora para um questionário com perguntas e respostas, ora para a mais profunda cadência de pensamentos, estendendo-se infinitamente, que o autor irlandês consegue penetrar na mente humana e retirar de lá o retrato das relações dos indivíduos de uma sociedade. Observa-se, na obra joyceana, o estilo do “stream of consciousness” (cf. CARVALHO, 1981, 51), isto é, de que os pensamentos desenvolvem-se de modo contínuo, sem necessariamente existir uma cadência entre eles. Na literatura de um modo geral, esse estilo é usado, sobretudo, “‘para designar qualquer apresentação (...) dos padrões de pensamento ilógicos, não gramaticais e principalmente associativos’, sejam eles ‘falados ou não falados’” (SCHOLES & KELLOGG apud CARVALHO, 1981, 53). Clarice Lispector, por sua vez, utiliza-se da técnica joyceana, ao internalizar o discurso para descrever o interior da mente dos personagens, cria obras exploradas no sentido vertical, isto é, de profundidade. A própria autora explica como ocorre a inspiração para a escritura de seus textos: “Não sigo nenhum plano, nenhuma teoria. Eu trabalho sob inspiração. Não consigo obedecer planos, assim como não consigo planejar minha vida. Tudo me vem impulsivo e compulsivo. Brota de mim” (SÁ, 1993, 212). E é essa impulsividade, o ato 931 de não conseguir conter-se, que faz com que os personagens desenvolvam-se e evoluam aos olhos do leitor. Como acontece com Macabéa, em A hora da estrela, na voz de Rodrigo S.M., o narrador: “Pela aliança viu que ele era casado. Como casar com-com-com um ser que era para-para-para ser visto, gaguejava ela no seu pensamento. Morreria de vergonha de comer na frente dele porque ele era bonito além do possível equilíbrio de uma pessoa” (LISPECTOR, 1995, 57). Vê-se no fragmento que o pensamento “com gagueira” de Macabéa é expresso de forma a explicar a mentalidade da personagem. A autora, utilizando-se da mescla de discurso entre o personagem e o narrador, “procura (...) apresentar, através de uma linguagem truncada ou desordenada, o pensamento ainda não claramente formulado do ponto de vista lógico ou lingüístico” (CARVALHO, 1981, 61). A “realidade ficcional”, sobretudo na escrita dos pensamentos dos personagens e das imagens que os rodeiam, deve apresentar-se de tal forma coesa que, mesmo na mais completa introspecção, ou em uma excessiva descrição dos detalhes da cena, percebe-se a busca do autor por uma aproximação íntima do real. Para que a obra adquira profundidade, não basta apresentar o stream of consciousness e entregá-lo ao leitor. É necessária a descoberta, em meio aos pensamentos, de sua existência, de sua consciência ou de algo que confirme sua presença no mundo enquanto indivíduo. Esse é o conceito de epifania, que conforme Jean-Paul Sartre expôs em “A náusea”: “E subitamente, em um instante, o véu se rasga; eu compreendi, eu vi” (BORNHEIM, 2003, 16-7). Essa “revelação” é concedida ao personagem (e conseqüentemente, ao leitor) por um breve instante, para logo em seguida a “normalidade” regressar. Percebe-se, também, que ambos os autores apresentam concomitantemente a idéia de epifania, do fluxo de consciência e da observação da cena. Dessa forma, criam obras que unem o existencial ao social, fazendo com que os leitores alcancem um novo nível de percepção estilística ficcional (cf. LUCCHESI, 1987: 48), no caso, entre as relações humanas e próprias. Em obras de maior fôlego, como “A hora da estrela”, de Clarice Lispector, e “Ulisses”, de James Joyce, notam-se elementos similares. Neste artigo, três tópicos serão abordados com seus conceitos teóricos, bem como exemplos de ambas as obras, são eles: as imagens criadas pelo texto; as técnicas; o caráter epifânico, e seu despertar da consciência que se nota em ambas. 2. Um toque do artista O conceito de Ivo Lucchesi, aplicado à obra “A hora da estrela”, também apresenta similaridade com “Ulisses”, pois em ambas “instaura-se no interior do universo ficcional o jogo de espelhos a refletir múltiplas faces, como: (...) o questionamento do 'fazer-literário', a angustiada busca pela definição da própria identidade, a delimitação do 'eu' perante a presença do 'tu’”. (LUCCHESI, 1987: 35) [grifo nosso]. Faz-se, então, um minucioso retrato da realidade, não se atendo somente a descrições de situações, mas impingindo ao texto todas as internalizações dos personagens, além de menções ao laborioso trabalho da escritura, como o fazem Rodrigo S. M., durante toda a obra, ou Stephen Dedalus, no capítulo 9, da biblioteca. Na obra de Clarice Lispector, em particular, duas imagens distintas existem concomitantemente: a imagem que Rodrigo pensa e a imagem que Rodrigo escreve, esta última, a história de Macabéa. Ambas se entrelaçam, como se nota na passagem: 932 Já que ninguém lhe dava festa, (...) daria uma festa para si mesma. A festa consistiu em comprar sem necessidade um batom novo, não cor- de-rosa como o que usava, mas vermelho vivante (...) Depois de pintada ficou olhando no espelho a figura que por sua vez a olhava espantada. Pois em vez do batom parecia que grosso sangue lhe tivesse brotado dos lábios por um soco em plena boca, com quebra-dentes e rasga-carne (pequena explosão) (LISPECTOR, 1995: 79) [grifo nosso]. O narrador expõe ao leitor a cena por meio de associações e idéias completamente chocantes, talvez para contrastar com a vida “cinzenta” que Macabéa leva. Contudo, Rodrigo não se mostra como um narrador imparcial, pois ele adiciona ao discurso seus posicionamentos sobre a sua própria obra, a sociedade e até sobre si mesmo, geralmente encerrados entre parênteses, como forma de transmutação para a “história do narrador”. Nas obras clariceanas, como aponta Luis Costa Lima existem “trechos seus [que] indicam uma aguda percepção de detalhe, que têm como condição o desmantelamento da lógica prosaica e a construção de uma prosa mais afim do poético” (COSTA LIMA apud SÁ, 1993: 165). E é por meio dessas imagens e detalhes apontados que se consegue transpor a barreira do superficial e, conforme a célebre frase da autora, render-se como ela se rendeu e mergulhar no que não se conhece como ela mergulhou. Em “Ulisses”, James Joyce criou uma revolução na escritura do romance, ao centralizar a ação de seu livro em um único dia, 16 de junho de 1904, com eventos banais e cotidianos, desvia a atenção do leitor para perceber os detalhes, como ressalta Luiza Lobo, “o estilo de Joyce transmite o sentido de movimento ao máximo que é possível através de uma câmera cinematográfica” (LOBO, 1993: 24), bem como para o interior dos personagens, com suas emoções e pensamentos. No campo lingüístico, James Joyce justapõe ou transforma palavras já existentes para que melhor exemplificassem o sentido que o autor pretende passar, como se percebe na passagem, “Davy Byrne assentiusorriubocejou tudo de uma vez só: - Haaaaaaaaah!” (JOYCE, 2005: 199) [grifo nosso]. É como Haroldo de Campos aponta, “Joyce é levado à microscopia pela microscopia, enfatizando o detalhe (...) a ponto de conter todo um cosmo metafórico numa só palavra” (CAMPOS, apud SÁ, 1993: 191). Assim, a palavra “assentiusorriubocejou”, representa o ato de, concomitantemente, assentir, sorrir e bocejar. Joyce utiliza uma palavra para elaborar uma imagem mais completa da ação desenvolvida e, portanto, melhor descrever a cena ao seu leitor. Outro exemplo, este adentrando no âmbito da tradução da linguagem de Joyce, existe na passagem sobre os pensamentos de Stephen Dedalus na praia, sendo a primeira traduzida por Antônio Houaiss e a segunda por Bernardina da Silveira Pinheiro: De antes dos tempos Ele me quis e possa não querer-me longe agora ou jamais (...) Onde está o caro pobre Ário para tirar conclusões? Guerrando a vida inteira quanto à contransmagnificandjudeibumbatancialidade. (JOYCE, 1983, 49) [grifo nosso] Desde antes dos tempos Ele me quis e agora não pode me querer fora daqui ou jamais existente (...) Onde está o querido e pobre Ário para tentar conclusões? Lutando toda a sua vida com o contransmagnificaejudeubanguebanguelismo (JOYCE, 2005: 46) [grifo nosso]. 933 No original, a palavra é: contransmagnificandjewbangtantiality, significando que Ário (dissidente da doutrina cristã e fundador do arianismo, que defendia a existência simplesmente humana de Jesus), grosso modo, lutou toda a sua vida contra a existência 'magnífica' do judeu, no caso, Jesus. E é utilizando-se da linguagem como mais uma ferramenta dentre várias outras para expor a cena em toda a sua extensão que James Joyce cria este romance. Como Paulo Vizioli observa, graças a esse concentrado enfoque naturalista, podemos dizer que jamais personagens de ficção foram tão implacavelmente investigadas, por dentro e por fora – pelo autor onisciente, pelas demais personagens e por si mesmas – quanto as três figuras centrais de Ulisses. Nesse verdadeiro exame de microscópio, ficamos conhecendo não só os pensamentos mais íntimos de Bloom, por exemplo, mas também (...) os utensílios de sua cozinha, todos os livros de sua estante e todos os objetos em suas gavetas (VIZIOLI, 1991: 66). 3. As rochas ondulantes e o capim A inovação, do ponto de vista técnico, de “A hora da estrela” está no efeito do narrador também ser personagem e possuir uma história própria, enquanto ocorre outra história paralela.