O Faxinal Barra Bonita: Gênero, Memória E História
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586 O Faxinal Barra Bonita: Gênero, Memória e História The Faxinal Barra Bonita: Gender, Memory and History Claudete Maria Petriw1 Resumo: Entendemos que o lugar interfere no modo de ser/estar das pessoas no mundo, por isso o objetivo é historicizar a constituição do Faxinal Barra Bonita, em Prudentópolis/PR, permeando o saber acadêmico com as memórias de entrevistadas/os. Analisamos a articulação dessas memórias com gênero, de modo a observar o/os lugar/es de mulheres e homens em relação à invenção do lugar, como um espaço praticado. Buscamos observar, portanto, como as memórias sobre o lugar e sobre o passado individual dão forma à percepção do lugar a partir de treze entrevistas, realizadas no período de março de 2018 a janeiro de 2019 com moradoras/es idosas/os do faxinal. Palavras-chave: Memória. Gênero. Faxinal. Abstract: The present text is part of a discussion carried out in the first chapter of ongoing research in the History Master’s program from the “Universidade Estadual do Centro-Oeste” - UNICENTRO on the gender relations in the daily life of women from the “Faxinal Barra Bonita”. We understand that place interferes in people’s way of being in the world, and for this reason the aim is to historicize the formation of the “Faxinal Barra Bonita”, in Prudentópolis/PR, permeating the academic knowledge with the interviewees’ recollections. We analyzed the link of these memories with gender so as to observe men’s and women’s place(s) in relation to the invention of the place, as a practiced space. We sought to observe, therefore, how the memories on place and on individual past shape the perception of place, from thirteen interviews carried out with elderly dwellers of the “faxinal”, from March 2018 to January 2019. Keywords: Memory. Gender. “Faxinal”. Introdução As lembranças dão forma à nossa subjetividade. Quem somos, a maneira como vivemos o presente e percebemos a vida está intimamente ligada à memória. Ela nos auxilia a compreender o presente a partir das vivências do passado e nos faz sujeitas/os, uma vez que aquilo que nos constitui, de que podemos nos lembrar, é também algo que está a cargo da memória. No entanto, não são todas as experiências vivenciadas que permanecem gravadas em nossas lembranças. Somente lembramos daquilo que foi significativo para nós. A memória está ligada a emoções, por isso é sempre seletiva. 1 Possui graduação em História pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (2002) e mestrado em História pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (2019). Atualmente é professora da Prefeitura Municipal de Prudentópolis e professora de História - Secretaria de Educação do Estado do Paraná. Aedos, Porto Alegre, v. 12, n. 27, março 2021 587 Qual a relação entre Memória e História? Memória e História estão implicadas nos ditos usos políticos do passado. O conhecimento histórico tem na própria produção de memória uma de suas fontes e de seus objetos privilegiados. Pensar como/se as reconstruções subjetivas, perpassadas pelo gênero2, têm ou não influência sobre relatos históricos e como relatos memoriais podem condensar longos períodos de tempo e fenômenos complexos em histórias curtas e plenas de significados é o que interessa neste texto. Por isso, o objetivo é historicizar a constituição do Faxinal Barra Bonita, em Prudentópolis/PR, permeando o saber acadêmico com as memórias de moradoras/es idosas/os3, analisando a articulação dessas memórias ao gênero. Nosso foco não é a origem em si do faxinal, o que nos interessa são as memórias sobre o lugar e sobre o passado individual, que por sua vez, dão forma à percepção do lugar. O presente texto resulta de treze entrevistas realizadas com moradoras/es idosas/os, residentes no Faxinal Barra Bonita. Dentre estas, 6 são nascidas no Faxinal Barra Bonita e a maior parte delas são netas/os de imigrantes europeus. Por nos utilizarmos de fontes orais, trabalhamos com os sentimentos das pessoas, os quais influenciam naquilo que é lembrado ou esquecido, nas maneiras de dizer e na elaboração de significados. Desta forma julgamos conveniente estabelecer relações entre História, Memória e Gênero, de modo a refletir sobre os lugares de memória de mulheres e homens. Nesse sentido, em primeiro lugar, discutimos sobre memória e a 2 Nos utilizamos da categoria gênero sob a perspectiva de Joan Scott. Essa historiadora desconstrói a dicotomia sexo/gênero, (o primeiro que estaria para a natureza e o segundo para a cultura), provocando o debate sobre o fato de que não existe experiência corporal alheia aos processos sociais e históricos de constituição de significados. Portanto, não há possibilidade de entender o corpo externamente à cultura e dessa forma, gênero estaria imbricado a relações de poder. Tem um sentido eminentemente político, uma vez que é um saber sobre as diferenças sexuais percebidas, que são hierarquizadas dentro de uma forma de pensar dual e limitada, sempre associada a poder. Por isso, gênero é “um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos” e é uma “forma primária de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p.86), mesmo que não absoluta ou universal. Scott não nega as diferenças entre corpos sexuados, o que ela problematiza são as formas como são construídos os significados culturais para as diferenças e ao fazê-lo, dão-lhes um sentido, posicionando-os dentro de relações hierárquicas. Trata-se, portanto, de reconhecer que tais diferenças desenvolvem-se em desigualdades a partir dessas significações construídas historicamente. 3 O Estatuto do Idoso, Lei Federal Nº 1.142/1994, considera idoso a pessoa maior de sessenta anos de idade. Aedos, Porto Alegre, v. 12, n. 27, março 2021 588 ideia de memória feminina,4 uma vez que se trata de uma análise a partir de perspectiva da categoria gênero. Entender como os seres humanos se veem, se percebem, se relatam tem sido salutar para a História, principalmente com a utilização de fontes orais em pesquisas históricas. Com este intuito, e devido à necessidade de rigor acadêmico na escrita da história, muitas/os historiadoras/es que se utilizam de fontes orais recorreram, como recurso metodológico, à discussão com diversas/os pensadoras/es que se debruçaram a refletir sobre memória. A princípio tem-se a impressão de que a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa. Entretanto, Maurice Halbwachs elaborou, em 1925, uma sociologia da memória coletiva, em que sublinha que a memória deve ser entendida como um fenômeno coletivo e social, construído coletivamente e submetido a flutuações e transformações constantes. As memórias estão, dessa forma, impregnadas do meio social do qual fazemos parte. Ele analisou a formação de alguns quadros sociais como o da religião, da família e do trabalho. Para ele, as recordações são diferentes entre as pessoas, uma vez que cada uma tem um trajeto singular e adquire combinações diferentes dos quadros sociais já constituídos. Essa discussão inaugura o debate de que as memórias individuais estão sempre marcadas socialmente. Ou seja, o que as pessoas lembram está conectado com a sociedade na qual vivem e essas lembranças se relacionam a marcos sociais presentes ao seu redor, que carregam representações da sociedade, de suas necessidades, de seus valores. Entretanto, para Myrian Sepúlveda dos Santos (2003), a tarefa de associar a memória apenas a quadros sociais não é tão simples assim “[...], pois frente a tantas construções coletivas caberá sempre ao indivíduo, pelo menos a escolha e seleção das memórias socializadas disponíveis” (SANTOS, 2003, p. 71). A partir da década de 1970, ressalta Santos (2003), houve um dito retorno a histórias de vida de indivíduos e grupos, em oposição às grandes narrativas produzidas 4 Trata-se aqui de uma crítica ao uso do termo, empregado no sentido de separar de antemão as memórias em femininas e masculinas. Ver a esse respeito: MOREIRA, 2011. Aedos, Porto Alegre, v. 12, n. 27, março 2021 589 a partir da perspectiva de etapas evolutivas da história. Essa preocupação se deu através dos estudos sobre memória, posto que nos documentos oficiais não estava expressa a voz dos “excluídos da história”. A historiografia, desde o início do século XX, tem considerado que o passado que existe é aquele que surge através das narrativas do presente. Como afirmou Santos: “o passado que existe, se existe, é aquele inerente à ação social. Em questão está apenas o grau de autonomia e reflexividade do indivíduo ao se lembrar do passado”. (SANTOS, 2003, p. 80). A memória não é um conjunto de dados que recebemos passivamente e de forma totalmente objetiva, como mera informação. Em se tratando de uma reconstrução do passado, o contexto de sua produção tem importante participação nesse processo. Por isso algumas/uns autoras/es preferem, ao invés do conceito de memória coletiva, fazer uso da noção de memórias compartilhadas, sobrepostas, fruto de relações múltiplas, como é o caso de Joël Candau (2016). Para ele, a memória coletiva existe no plano discursivo, mas não no concreto. Este autor entende que seria mais conveniente se utilizar de conceitos como memória pública, comunidade de pensamento, certa memória comum ou o conceito de protomemória5. Além disso, Candau alerta para o fato de que nem tudo é evocado no ato de rememorar e por isso “toda tentativa de descrever a memória comum a todos os membros de um grupo a partir de suas lembranças, em um dado momento de suas vidas, é reducionista, pois ela deixa na sombra aquilo que não é compartilhado” (CANDAU, 2016, p. 34). Assim, tão importante quanto aquilo de que se recorda, é analisar o que é silenciado, pois é a partir de uma ação consciente do presente que se dão os esquecimentos, as falhas de memória e “[...] se podemos dizer que a verdade do homem é o que ele oculta, o fato de ocultar é também sua verdade.