Uma Análise Da Metáfora Norte-Americana Da Estrada a Partir Da Vida E Obra De Townes Van Zandt
Total Page:16
File Type:pdf, Size:1020Kb
Departamento de Letras UMA ANÁLISE DA METÁFORA NORTE-AMERICANA DA ESTRADA A PARTIR DA VIDA E OBRA DE TOWNES VAN ZANDT Aluno: Guilherme Victor Testoni Boisson Orientador: Paulo Henriques Britto 1 Departamento de Letras “Two roads diverged in a wood, and I— I took the one less traveled by, And that has made all the difference.” Robert Frost THE HIGHWAY KIND Townes Van Zandt foi em seu tempo o perfeito menestrel viajante. Epítome do trovador solitário e do cantor folk da América, o músico e compositor norte-americano nascido nos anos 40 viveu o que cantava e cantou o que vivia. Sua “derradeira” morte em 1997, aos cinquenta e dois anos de idade foi, para um homem que cantou: “There ain’t much that I ain’t tried/ Fast livin’, slow suicide”, ironicamente tardia. Townes evocou em sua vida e obra a herança de uma duradoura, icônica e rica tradição na cultura americana, um modo mítico de viver e uma forma arcaica de arte na qual o artista e seu ofício são inseparáveis. Jimmie Rodgers riding the rails of the great American West; Woody Guthrie tramping the highways from dustbowl Oklahoma to the migrant camps of Carolina; Robert Johnson playing guitar with the devil at a Mississippi Delta crossroads; Hank Williams driving from roadhouse to roadhouse across the South, drinking and singing with the Drifting Cowboys (HARDY, 2008, p.1) Townes viveu na estrada. Ela foi sua vida e não sem que isso lhe custasse muito. Deixar para trás cada cidade, cada linha no asfalto, cada pôr do sol e, sobretudo, aqueles que amava. “he blew off everything (...) as a father he had a lot of unforgivable shortcomings that can’t be excused by his music” disse seu primeiro filho, J.T. (HARDY, 2008, p.2). Townes, porém, não deixou de tentar se explicar através de sua musa: “I've just begun to see my way clear and it's plain if I stop I will fall (...) My sorrow is real even though I can't change my plans” 1 Assim, o preço pago por Van Zandt traduziu-se no ouro que nos deixou através de sua música e poesia. Vivendo sempre nas “highways” e “roads” da América, Townes foi capaz de como ninguém as caracterizar, eternizar e extrair a totalidade de sentidos e significados do que é viver com o destino no horizonte. Este artigo pretende, portanto, fazer um estudo em sua obra dessa multiplicidade de sentidos e camadas de significado da estrada. Busca entender, a partir de metáforas que tratam especificamente da questão, o que é esse símbolo americano, sua mitologia e consequências. 1 in For The Sake of The Song 2 Departamento de Letras Para isso será analisada a figura da estrada especificamente em três das canções de Van Zandt onde estão presentes literalmente os termos “highway” ou “road”, situando-as dentro de seu contexto poético e filosófico e em seu momento histórico na vida de seu autor, além de relacioná-las com outras canções de sua autoria e de outros compositores. Deu-se também importância especial à performance musical seguindo a conceitualização de Stimmung de Gumbrecht (como atmosfera e ambiência) para entender de que maneira a música de Van Zandt é capaz de evocar a realidade da estrada e produzir efeitos de presença no seu ouvinte, bem como de que maneira ela agrega significado às metáforas estudadas nas canções. Desta forma, são claras duas etapas de análise, bem distintas entre si: a primeira voltada para as letras das canções, utilizando-se de seus aspectos harmônicos, rítmicos e melódicos apenas na medida em que eles agregam sentido à ideia de estrada; e a segunda voltada essencialmente para as performances das canções, de maneira a entender como elas produzem os efeitos de presença e evocam uma atmosfera específica. Essa segunda etapa de análise, mais apoiada em noções pertinentes aos aspectos musicais, foi realizada de forma que um leitor-ouvinte leigo possa compreendê-la, ou seja, foi evitado o uso de termos técnicos e, em casos inevitáveis, eles foram explicados. Townes é uma figura seminal na música americana; transitou entre o folk, o country e o blues. Influenciou artistas eminentes como Bob Dylan, Guy Clark e Kris Kristofferson e exerceu papel fundamental no que se chamou de “outlaw country music”. Willie Nelson, Emmylou Harris, Waylon Jennings, Don Williams e muitos outros regravaram suas músicas. É frequentemente considerado um dos maiores cantores-compositores da América e ainda assim, pouco ou nenhum tratamento acadêmico foi dado a sua obra. É essencial, e este trabalho se esforça para fomentar este movimento, que a musicologia e a academia como um todo comecem a voltar os seus olhos para sua poesia e música. Until you've turned to song: a herança da tradição Dada a distância temporal que nos separa e a imprecisão bibliográfica própria daqueles tempos, as cantigas e canções trovadorescas da Idade Média nos parecem parte de um todo confuso e coletivo. Seus trovadores restam quase apagados, muitas vezes reduzidos a assinaturas e, quando muito, a vidas e razos, os pequenos registros biográficos que acompanhavam as transcrições de suas obras. O mesmo ainda ocorre em tempos recentes com a música folclórica em sua forma tradicional. Tal forma traz alguns atributos específicos, assim definidos pelo historiador Ronald D. Cohen: 1. its origins can perhaps be located in a particular culture or region 2. authorship has historically been unknown, although authors did emerge over 3 Departamento de Letras the past two centuries 3. it has traditionally been performed by nonprofessionals, perhaps playing acoustic instruments 4. its composition has been fairly simple, with perhaps little complexity so that it can be performed and shared communally and 5. the songs have historically been passed down through oral transmission. (COHEN, 2006, p.2) Portanto, historicamente, a música folclórica, a folk music, tal qual seu nome “folk”, derivado do alemão “volk” (povo), nos indica, é, em termos mais simplistas, a música das pessoas, a música dos povos. No caso norte-americano, especificamente, ela se formou a partir de diversas influências europeias e africanas: as baladas inglesas, a música tradicional celta, irlandesa e escocesa (especialmente a música de violino popular, a fiddle music), os hinos religiosos e o blues primitivo, gêneros musicais estruturados, sobretudo, em cima da escala pentatônica2 e suas variações. Se entendermos a pentatonia como a limitação das possibilidades das escalas musicais, percebemos então que ocorre uma limitação das possibilidades melódicas (vale lembrar que, ainda assim, em ambos os casos estamos falando de possibilidades infinitas), o que contribui para a maior “familiaridade” das canções. A melodia de “Heavenly Houseboat Blues” de Townes Van Zandt é, por exemplo, a mesma de “The Wild Side of Life” de Hank Thompson, que por sua vez é a mesma de “I’m Thinking Tonight of My Blue Eyes”, gravada anos antes pela Família Carter e a mesma de "The Great Speckled Bird”, um hino sulista. Pelo menos três outras canções usaram reconhecidamente a mesma melodia, cuja origem permanece desconhecida. O que ocorre com as progressões harmônicas (a base das canções) e com as melodias, costuma ocorrer também com suas letras. Muitas recontam a mesma história, como é o caso de “The Death of Queen Jane”, balada inglesa cuja letra possui várias versões, algumas com finais diferentes, e muitas tratam de temas em comum. Assim, motifs são cristalizados e frequentemente revisitados e, dentre eles, talvez um dos mais fortes na cultura norte- americana seja o da Estrada. 2 A predominância da pentatonia é um fenômeno musical que ocorre em praticamente todas as formas musicais tradicionais ou folclóricas ao redor do mundo. Assim escreveu o educador húngaro Zoltán Kodály “Pentatony is an introduction to world literature: it is the key to many foreign musical literatures, from the ancient Gregorian chant, through China to Debussy.” (KODÁLY, 1947, p. 161-162) É da escala pentatônica que derivam as melodias que nos soam mais familiares. E é nela que estão baseadas quase todos os acalantos. A explicação pedagógica de Kodály é útil para melhor compreendermos esses fenômenos: “Nowadays it is no longer necessary to explain why it is better to start teaching music to small children through the pentatonic tunes: first, it is easier to sing in tune without having to use semitones (half-steps), second, the musical thinking and the ability to sound the notes can develop better using tunes which employ leaps rather than stepwise tunes based on the diatonic scale.” (KODÁLY, 1947, p. 221) 4 Departamento de Letras Se seguirmos a definição tradicional de música folclórica apresentada pelo professor Cohen, fica difícil definir cantores-compositores do folk revival, como Bob Dylan, Dave Van Ronk e Townes, como cantores ou músicos folk, da mesma forma que não podemos dizer que Eric Clapton é um bluesman do Delta do Mississipi, muito embora seja um dos indivíduos mais aptos a emular aquele estilo. Assim, talvez, seja melhor defini-los como o próprio Pete Seeger, também um artista do revival, se definiu: “not a folk singer, but a singer of folk songs.” Diante desse quadro geral o que percebemos é um esvaziamento da figura do artista, do autor, do “folk singer”, em favor da música, das canções e da tradição, em um sentido muito similar ao proposto pelo poeta e crítico T.S. Eliot. Tradition is a matter of much wider significance. It cannot be inherited, and if you want it you must obtain it by great labour. It involves, in the first place, the historical sense, which we may call nearly indispensable to anyone who would continue to be a poet beyond his twenty-fifth year; and the historical sense involves a perception, not only of the pastness of the past, but of its presence; the historical sense compels a man to write not merely with his own generation in his bones, but with a feeling that the whole of the literature of Europe from Homer and within it the whole of the literature of his own country has a simultaneous existence and composes a simultaneous order.