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Motrivivência v. 28, n. 48, p. 300-315, setembro/2016

http://dx.doi.org/10.5007/2175-8042.2016v28n48p300

Neymar, defensor da tradição brasileira

Francisca Islandia Cardoso da Silva1 Janete de Páscoa Rodrigues2

RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar como jovens universitários de Teresina-PI se apropriam da mensagem de uma reportagem do programa televisivo Esporte Espetacular. Fez-se uso da técnica de grupos focais e do método analítico-descritivo para coleta e análise dos dados. A amostra foi constituída por 24 jovens universitários, na faixa etária entre 18 e 24 anos. A reportagem pauta a responsabilidade de em seguir a “tradição” dos brasileiros que chegam ao Barcelona e sagrar-se como o melhor jogador do mundo. Para tal feito o único empecilho a ser vencido é o colega de clube, Lionel . Os sujeitos da pesquisa afirmaram que o discurso veiculado pela reportagem pode reproduzir e criar uma realidade por vezes onírica, uma vez que objetiva conferir a Neymar grande importância no tocante à identidade nacional.

Palavras-chave: Discurso Midiático; Televisão; Estudo de Recepção; Neymar

1 Mestre em Comunicação. Educadora Física na Fundação Municipal de Saúde de Teresina (FMS). Teresina/Piauí, Brasil. E-mail: [email protected] 2 Doutora em Ciências da Comunicação. Professora da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Teresina/ Piauí, Brasil. E-mail: [email protected] V. 28, n° 48, setembro/2016 301

INTRODUÇÃO cessário que suas proezas sejam constantes, ou seja, o mito será sustentado à medida que Para Campbell (1997), o herói se o rito for reproduzido. Esse fortalecimento é arrisca para oferecer ganhos aos seus seme- em parte exercido pelo discurso dos meios lhantes. No caso de um jogador de futebol, de comunicação. este defenderia, no imaginário popular, não apenas um time, mas uma nação. As [...] o mito é um sistema de comunica- características que fazem do ídolo um herói, ção, é uma mensagem. Eis por que não explica Helal (2003), convertem o futebol poderia ser um objeto, um conceito, ou uma ideia: ele é um modo de sig- em campo fecundo para a produção de nificação, uma forma. Será necessário, mitos importantes para a comunidade, por mais tarde, impor a esta forma limites serem dotados de talento e carisma, o que históricos, condições de funcionamen- os destaca dos demais. Porém, observa-se to, reinvestir nela a sociedade: isso não impede que seja necessário descrevê-la que parte dessas características é criada ou de início como forma. salientada, e veiculada pela mídia. Já não mais se entende o trabalho Seria, portanto, totalmente ilusório pre- da imprensa como reprodução dos aconte- tender fazer uma discriminação substan- cimentos, mas como uma mediação na qual cial entre os objetos míticos: já que o são selecionadas as informações a serem mito é uma fala, tudo pode constituir um mito, desde que seja suscetível de ser transmitidas, bem como a perspectiva de julgado por um discurso (idem, p. 131). análise desses fenômenos. As trajetórias dos ídolos são editadas pela mídia, destacando No contexto brasileiro e, conse- alguns aspectos e desprezando outros quentemente, na Educação Física brasileira, (HELAL, 2003). em virtude do significado atribuído e dos A televisão toma para si o esporte contornos identitários, o futebol goza de e torna-o um espetáculo por meio de status privilegiado em detrimento de outras estórias com heróis e vilões, aliando a ima- modalidades. Em outras palavras, o futebol gem dos personagens a um grupo social e tornou-se o esporte representante da tradi- aproximando o telespectador das emoções ção e identidade do povo brasileiro por, vividas. O esporte possibilita a construção supostamente, ser uma representação do de um cenário de espetáculo oferecendo jeito de ser brasileiro, da alegria, ginga e mercadorias necessárias para a produção de talento nato da nação. um telejornal esportivo, especialmente por trabalhar com o entretenimento de grande Justifica-se a realização deste estudo parte da população, desenvolvendo enredos por considerar que a Educação Física estu- mirabolantes, enfatizando o fazer/lazer/ da e atua sobre o ser humano, buscando consumo contemporâneo. compreender os sentidos e significados das A transformação de um atleta em práticas corporais por este protagonizadas. ídolo, ou nas palavras de Morin (2009), em Portanto, avaliar a leitura que futuros pro- olimpiano, concretiza o elo entre o esporte fissionais da área fazem das informações e a mídia, em especial, o telejornalismo es- veiculas pela mídia é importante para averi- portivo. Para que o ídolo se robusteça, é ne- guar sua formação crítica e o andamento da 302 formação acadêmica, que são importantes A reportagem aborda a suposta missão de fatores para que sua atuação profissional Neymar em seguir os passos de Ronaldo atenda satisfatoriamente à sociedade e suas (Fenômeno), Romário, Gaúcho necessidades. e e ser o próximo brasileiro a ganhar O objetivo deste artigo é analisar o prêmio FIFA, concedido ao como jovens universitários de Teresina- melhor jogador de futebol da temporada. -PI se apropriam da mensagem de uma Para legitimar tal aposta, o programa compa- reportagem do programa televisivo Esporte ra as trajetórias dos jogadores anteriormente Espetacular em que o jogador Neymar citados, ressaltando a atuação de Neymar Júnior encarna o estilo brasileiro de jogar no Barcelona Futebol Clube, e aponta como e herda a missão de vangloriar a nação a único empecilho para sua vitória a exube- partir do futebol. rante atuação do jogador . Para análise do conteúdo da matéria e das respostas obtidas por meio dos grupos MATERIAIS E MÉTODOS focais utilizou-se o método analítico-descri- A opção por trabalhar com o pro- tivo, que, segundo Minayo (2008), é aplicá- grama Esporte Espetacular (EE) deu-se em vel a estudos que objetivem compreender razão deste ser um dos principais telejornais a dinâmica de um determinado fenômeno esportivos de transmissão nacional do Brasil através do estudo e avaliação aprofundados e, também, da maior facilidade de acompa- de informações disponíveis sobre este e, nhamento das matérias e coleta e registro assim, interpretá-lo e explicar seu contexto das informações. e as variáveis envolvidas. O EE é uma revista eletrônica sema- A amostra do estudo foi constituída nal de esportes, exibida pela Rede Globo por 24 jovens universitários na faixa etária nas manhãs de domingo com aproximada- entre 18 e 24 anos, de ambos os sexos. mente três horas de duração. O programa A escolha por universitários se deu em estreou no dia 08 de dezembro em 1973, decorrência de considerar que a educação inspirado no Wide World of Sports, veicu- pode ampliar a capacidade de pensar e lado pela rede americana ABC. Com 41 contribuir para a formação de um homem anos, o EE tem como proposta a divulgação preocupado com a coletividade, apto a de esportes que, em geral, recebem pouca levar a efeito ações que possam mudar a atenção da mídia brasileira, como ginástica sociedade (VYGOTSKY, 2004). olímpica, hipismo e esportes radicais, assim A amostra foi constituída conforme como produzir reportagens que abordem o método de conveniência, um dos mais com mais profundidade um acontecimento flexíveis métodos de amostragem e, por isso, esportivo. privado de rigidez estatístico (MARCONI; A reportagem selecionada, intitula- LAKATOS, 2009). Os participantes foram da pelo site do programa como “Agora no convidados admitindo-se que pudessem de Barça, Neymar luta para seguir caminho alguma forma representar a população de de Ronaldinho, Romário, Fenômeno e Ri- jovens universitários do curso de Educação valdo”, exibida em 25 de agosto de 2013. Física da Universidade Federal do Piauí. V. 28, n° 48, setembro/2016 303

Considerando as vantagens finan- graduação, o estudante deve amadurecer ceiras e práticas, a pesquisa utilizou como seu senso crítico quanto ao esporte como estratégia inicial de recrutamento de par- espetáculo ou ferramenta pedagógica. ticipantes convites divulgados em redes Os dados foram colhidos por in- sociais. Nos convites foram apresentados termédio de grupos focais, e as entrevistas os objetivos da pesquisa, metodologia e gravadas e transcritas. Conceitualmente, custos e benefícios relacionados à possível o grupo focal é uma técnica de entrevista participação. Para tornar maiores as taxas de utilizada em pesquisas qualitativas, que tem resposta foram enviados lembretes periódi- o propósito de coletar dados através da inte- cos, ao longo de um mês, para a participa- ração grupal e consiste em uma exposição ção ou disposição com outros dispositivos, oral específica dos envolvidos para que o como o aplicativo de troca de mensagens pesquisador possa obter mais respostas atra- WhatsAap. Após o contato virtual e caso o vés de sondagens sobre as razões ocultas em participante aceitasse, agendou-se um con- relação a um determinado comportamento tato presencial entre a autora do estudo e os dos participantes (MUNARETTO; CORRÊA; jovens universitários para esclarecimentos CUNHA, 2013). sobre a pesquisa e cadastro dos interessados O grupo focal girou em torno da te- em participar. Logo depois, foram organiza- mática da peça jornalística, sem, no entanto, dos os grupos focais e marcadas as sessões. desprezar as informações diversas que por Para montagem dos grupos focais, ventura surgissem durante o grupo focal além de abarcar os critérios de participa- desde que pertinentes ao tema da pesquisa. ção anteriormente expostos, seguiu-se dois Na sessão, os participantes assistiram à peça critérios: (i) evitou-se alocar em um mesmo jornalística e a seguir foram solicitados pela grupo pessoas do mesmo círculo imediato mediadora a verbalizar suas impressões de convivência; (ii) apenas estudantes do sobre o que tinham assistido. curso de Educação Física poderiam partici- Foram realizados três grupos focais par. A inclusão do último critério deu-se em com oito jovens em cada grupo em função decorrência do importante papel do profis- da complexidade do tema. Os grupos focais sional de Educação Física, principalmente foram compreendidos como contextos na escola, em orientar os sujeitos quanto aos únicos por serem constituídos por pessoas modos como o esporte e seus personagens diferentes. podem ser retratados na mídia. Durante a

Tabela 1. Características dos sujeitos integrantes dos grupos focais.

SEXO IDADE MÉDIA GRUPO FOCAL (anos) Feminino Masculino G1 50% 50% 20,8 G2 62,5% 37,5% 19 G3 62,5% 37,5% 21,5 304

Conforme as condições apresenta- de ídolo: “Você desiste de sua vida pessoal e das no Termo de Consentimento Livre e aceita uma forma socialmente determinada Esclarecido (TCLE) entregue a cada um dos de vida, a serviço da sociedade de que você participantes, os mesmos estavam cientes é membro”. Os ídolos têm sobre si a possi- de que as informações por eles concedi- bilidade virtual de êxito de outras pessoas, das seriam usadas exclusivamente para a uma responsabilidade imensa vinculada a pesquisa em questão e que os seus nomes valores e referências que a sociedade espera seriam mantidos em sigilo. que ele transmita. Neymar está, segundo o O presente estudo foi aprovado pelo discurso do EE, a serviço da nação brasi- Comitê de Ética em Pesquisa da Universi- dade Federal do Piauí – UFPI sob parecer leira, “ele pode reescrever uma história de nº 874.966. sucesso de brasileiro no clube espanhol” e seu sucesso ou decadência está relacionado ao seu desempenho profissional e ao bom RESULTADOS E DISCUSSÃO exemplo que passa às outras pessoas. A reportagem descreve as primeiras Julga-se ser de extensa contribuição partidas de Neymar pelo Barcelona como analisar as mensagens consumidas através uma batalha do jogador para mostrar seu dos telejornais esportivos, pois é por meio talento aos torcedores e colegas de time. destes que grande parte da população tem acesso a informações sobre o esporte. Para Na primeira vez de Neymar com a nova uma melhor apreciação da peça jornalística camisa, poucos minutos contra a dura e maior interação com a literatura consulta- marcação do Legia na Polônia. Na es- da, optou-se por analisá-la previamente no treia em casa no , o reencon- tópico a seguir. Em seguida, será descrito tro com o Santos e uma bola na trave. O primeiro gol saiu num amistoso de como os participantes se apropriaram do pré-temporada contra a seleção da Tai- discurso veiculado. lândia. E depois mais um, contra a Ma- lásia. Até que chegou a vez da estreia oficial. Jogo pra valer, primeira rodada O discurso do esporte espetacular acerca do campeonato espanhol. Barcelona de Neymar 7x0 no Levante. E o Neymar no ban- co. Só entrou quando o Barça já tinha Exibida em 25 de agosto de 2013, feito 6. Três dias depois nova chance de começar como titular. Decisão da Su- a reportagem pauta a responsabilidade de per Copa da Espanha contra o Atlético Neymar em seguir a “tradição” dos brasi- de Madri, mas o Neymar outra vez no leiros que chegam ao Barcelona e sagrar-se banco. O Atlético vencia por 1x0 com como o melhor jogador do mundo. Para tal esse golaço do Villa. O técnico Gerar- feito o único empecilho a ser vencido é o do Martino, então, resolveu tirar Pedro e colocar Neymar. Sete minutos depois colega de clube, Lionel Messi. com passe de e cruzamento de Da- A assertiva de Campbell (1990, p. niel Alves, de cabeça, sim de cabeça, o 13), ao examinar rituais importantes para os novo camisa 11 do Barça marcou o pri- sujeitos, pode ser tomada para a condição meiro gol em jogos oficiais (ESPORTE ESPETACULAR, 2013). V. 28, n° 48, setembro/2016 305

O que se averigua é a estruturação A mídia enfatiza mais um determina- de uma narrativa onde uma sequência de do atleta ou uma determinada modalidade barreiras, privações e, enfim, a vitória, é conforme os seus interesses em satisfazer/ acompanhada de uma história de deter- atrair a audiência (BOURDIEU, 1997). No minação e profissionalismo. Neymar – processo midiático, o sujeito que se destaca suscetível a derrotas e sofrimentos – sobe é carismático e consegue envolver e entreter ao posto de ídolo, um ser especial que por o público, é eleito ídolo e passa a ser explo- meio de muito trabalho e esforço ultrapas- rado ao seu máximo valor de símbolo pela sou as barreiras e alcançou a glória, o gol mídia até sua total acomodação no imaginá- decisivo. No final das contas, está-se diante rio do público. As massas o apropriam pela de um vitorioso. repetição e são iludidas pela necessidade de O gol feito por Neymar vem legi- que o ícone apareça nas telas sempre até timar a oposição do EE quanto à decisão que se esgote e, aos poucos, saia do foco. do técnico Martino de não o escalar como No processo midiático de fabricação titular. A narrativa do EE enfatiza sobrema- de ídolos são construídas eras, que passam a neira a genialidade e o improviso como identificar o período de apogeu dos ídolos. características marcantes de Neymar ao Longe da doutrina das eras geológicas, que ressaltar que o primeiro gol com a nova duraram bilhões de anos, as eras esportivas camisa foi “de cabeça”, prática atípica do duram pouco. O termo “era”, usado para jogador. Tal discurso objetiva criar no ima- indicar a divisão temporal, ganha nos textos ginário coletivo em relação a Neymar uma esportivos dos jornais novos sentidos. A projeção de singularidade, diferenciando-o rapidez com que essas eras são construídas dos demais. e propagadas está ligada à força dos meios O extenso currículo de vitórias do de comunicação no processo de fabricação futebol brasileiro faz dele uma referência dos ídolos. Os ídolos do passado deixam global. Desde a Copa de 1950 realizada no espaço para outros que já se preparam para Brasil, o futebol passou a ser a mais impor- assumir seu lugar implantando no círculo da tante expressão esportiva no país, aparecen- fama suas promessas. Nesses termos, pode- do termos como “pátria de chuteiras” e “país -se pensar que a mídia manipula a imagem do futebol”. Diversos jogadores brasileiros do ídolo e, como radicaliza Adorno: “A tal são reconhecidos como astros nacional e in- ponto as pessoas são reduzidas a meras coi- ternacionalmente, desenvolvendo por meio sas que aqueles que delas dispõem podem de lances e gols fantásticos a paixão pelo colocá-las por um instante no céu para logo futebol. Neymar é desses jogadores. Mais em seguida jogá-las no lixo; e que vão para do que comentar sobre a partida Barcelona o diabo com seus direitos e o seu trabalho” versus Atlético de Madri, o EE pretendeu (ADORNO, 2009, p. 27). envolver o público com o futebol e seus Como a reportagem anuncia, exis- personagens, principalmente com Neymar. tem diferentes eras em que um pequeno nú- Caracterizado como um ídolo, Neymar seria mero de jogadores brasileiros consagrou-se um exemplo para muitos brasileiros que por ser destaque no futebol mundial e ga- depositam toda a sua confiança e esperança nhar o prêmio Bola de Ouro FIFA. O texto em uma vitória, em um título. jornalístico fala das eras Romário, Ronaldo 306

Fenômeno, Rivaldo e Ronaldinho Gaúcho, Essas vozes polemizam-se, rematam-se ou eras que já não retornam mais. replicam umas às outras. A voz do Outro, reproduzida no discurso do Eu, estabelece Em 94, Romário foi o primeiro brasi- o fenômeno polifônico, o qual é assinalado leiro a ser eleito o melhor do mundo, por vozes são plenas de valor. jogando pelo Barcelona. A era Ronaldo Além de um tom de descontração e no Barça foi curta, mas rendeu dois títu- los de melhor do mundo ao fenômeno, de transformação do esporte em espetáculo, 96 e 97. Rivaldo, o craque tímido, mas a narrativa da matéria utiliza um conjunto de pés falantes, foi eleito o melhor do de elementos audiovisuais, envolvendo mundo em 99. E daí em diante, foram assim, não apenas o relato oral, mas a lin- 5 anos até que outro brasileiro fosse o número 1. 2004 e 2005 foram os me- guagem corporal, o modo de falar, a trilha lhores anos da carreira de Ronaldinho sonora e os cortes com o objetivo de chamar Gaúcho: duas vezes melhor do mundo, a atenção e prender o olhar do telespecta- aplaudido pela torcida do Real dor. Valendo-se em suas produções do culto em pleno Estádio Bernabeu. (ESPORTE ESPETACULAR, 2013) ao ídolo, a reportagem constrói uma gama de representações imagéticas, interferindo, Quando estavam no auge, as marcas assim, nas relações sociais cotidianas. Ao Romário, Ronaldo, Ronaldinho e, em menor determinar Neymar como representante da proporção, Rivaldo, eram requisitadas em nação brasileira, o EE pode cooperar para todos os produtos possíveis. Entretanto, a constituição das convicções dos sujeitos na disposição da realidade. Essa narrativa quando já não mais correspondiam aos diz respeito ao ponto de vista ideológico objetivos que um ídolo deve cumprir (atra- do EE e estabelece relações com discursos ção de público e excelente desempenho na apreendidos no passado – interdiscurso –, prática do futebol), foram dispensados e a na produção de discursos que em parte indústria cultural passou a preparar o pró- reproduzem, em parte elaboram novos ximo candidato a ídolo. O ciclo reiniciado sentidos (ORLANDI, 2001). foi com Neymar, eleito como modelo e que O tom da reportagem evidencia preenche os pré-requisitos para tornar-se um Neymar como o herói do Barcelona na ídolo. O EE alega que agora cabe a Neymar partida e ainda o põe em um patamar su- “honrar a tradição” brasileira e erguer a taça perior aos colegas de clube, com exceção (Bola de Ouro), ato já executado por outros de Messi. No entanto, o discurso adotado jogadores brasileiros quando integrantes aponta que Neymar tem potencial para igua- do Barcelona. É chegado o momento da lar e, posteriormente, superar o argentino criação de uma nova era em substituição Messi em qualidade de futebol apresentado. às passadas, a “era Neymar”. O Barcelona configura-se, então, como um Na visão bakhtiniana (BAKHTIN, campo de duelo entre Messi e Neymar pelo 1988), o discurso é formado nas relações status de melhor jogador. A mensagem da dialógicas, como um palco de disputa de matéria expressa os valores da sociedade vozes. O discurso marca o ponto de inter- capitalista com sua ideologia neoliberal, secção de vários diálogos, de interseção de de que tudo é consequência do esforço e vozes originárias de práticas linguísticas. sorte do sujeito. Ademais, o discurso mostra V. 28, n° 48, setembro/2016 307 interdiscursividade (BRANDÃO, 2004) com autor, por trás dessa democratização racial, os discursos de autoajuda, os quais propa- espelha-se uma ideologia racista dominante. lam a confiança no potencial de superação Ainda que a posição do negro no de cada um, em todos os campos da vida. futebol brasileiro tenha melhorado após a É estabelecido e aceito em nossa Segunda Guerra Mundial, o preconceito sociedade que o importante é estar em continua sendo forte. A partir deste pe- primeiro lugar e ser derrotado pode ríodo despontou outro modo de racismo, significar a entrada no ostracismo, com duas categorias de negros no jargão tornando-se mais um numa sociedade futebolístico: os negros do “meu clube” e caracterizada pela luta da sobrevivência os “negros dos outros clubes” (GORDON diária. O EE parece apoiar essa ideologia, JÚNIOR, 1996, p. 67). Ao passo que os do pois não é suficiente para o programa “meu clube” eram protegidos e tratados Neymar ser um dos melhores jogadores do socialmente como brancos; os dos “outros mundo. Para honrar a tradição brasileira clubes” continuavam “sendo o os mesmos ele deve ser o melhor, “falta só superar um ‘negros sujos’, ‘moleques’, ‘sem caráter’ de pequeno grande obstáculo, Messi”. antes” (idem, p. 67). Essas normas levam a Essa cobrança do EE sobre Neymar presumir que: também pode ser justificada pelo fato do jogador não ser ainda considerado um [...] a inferioridade da raça subsiste por ídolo pelos espanhóis. Para que a imagem trás de uma ilusória explicação em ter- mos de classes sociais, pois só é capaz de ídolo de Neymar não se restrinja aos de alcançar uma posição social mais brasileiros, o jogador deve construir um elevada o negro que ‘deixa de agir e vi- vínculo de identificação junto ao clube e a ver como negro’ – seja por ter adquirido torcida, precisa realizar algum feito impor- metafisicamente características do bran- co (alma), seja por procurar adotar um tante em uma situação capaz de mitificá-lo comportamento social considerado típi- como, por exemplo, ganhar a Bola de Ouro co do branco (mais facilmente adquirido FIFA. Neymar deve seguir o exemplo de com enriquecimento e o consequen- Ronaldinho Gaúcho que, quando jogador te aumento do padrão de consumo). A consequência disso é que os próprios do Barcelona, teve seu talento reconhecido negros, aqueles que se acham embran- ao ser reverenciado como ídolo e “aplaudi- quecidos, passam a discriminar outros do pela torcida do Real Madrid em pleno negros, como se também não o fossem Estádio Santiago Bernabéu”. (GORDON JÚNIOR, 1996, p. 67). Na peça jornalística também é possível perceber a posição ideológica do Um exemplo do preconceito racial EE sobre a posição do negro na identidade presente na sociedade é o caso do próprio nacional brasileira ao citar Ronaldo, Ronal- Neymar, que questionado pelo jornal Es- dinho Gaúcho, Romário, Rivaldo e Neymar tadão, em abril de 2010, se já havia sido como representantes do futebol e da nação vítima de racismo respondeu: “Nunca. Nem brasileira. Cezar Gordon Júnior (1996) diz dentro e nem fora de campo. Até porque eu que o futebol foi um elemento fundamental não sou preto, né? ”. Anos mais tarde, em na ascensão social e econômica dos negros abril de 2014, Neymar lançou a campanha e mulatos brasileiros. Entretanto, segundo o “Somos todos macacos” após Daniel Alves, 308 também jogador do Barcelona ser chamado Se for parar pra comparar ele (Ney- de “macaco” por alguns torcedores durante mar) com o Ronaldo e o Ronaldinho Gaúcho – apesar das confusões em partida contra o Villareal. A campanha foi que os dois se meteram –, e o Romá- abraçada por muitos, mas rechaçada por rio – que pra mim não foi lá essas coi- sas, não me chamou atenção o futebol vários outros que consideraram infame o ter- dele – o Neymar não chega aos pés de mo “macacos” que o jogador utilizou. Dias nenhum deles. Muito menos do Mes- mais tarde, descobriu-se que a campanha si. (Aluno 7, G3) não partiu de Neymar, mas foi arquitetada por uma agência de publicidade associada Conforme os grupos, a cobertura ao jogador, o que manchou, ao menos tem- do EE buscou criar um enredo, de modo a porariamente, sua imagem. Não sabemos ao facilitar a compreensão dos telespectadores acerca da possibilidade – aposta do EE – certo se Neymar se considera branco, mas de Neymar ser eleito melhor jogador do o EE o enxerga como um “negro especial”, mundo. Pierre Bourdieu (1997) considera que conseguiu livrar-se de todas as amarras que a mídia tem a função de escolher os e prejuízos que sua etnia traz. fatos a serem expostos conforme sanções predispostas, sem o dever de buscar uma Modos de apropriação do discurso do es- reflexão sobre o caso. porte espetacular por jovens universitários Não há discurso (análise científica, ma- nifesto político, etc.) nem a ação (mani- Na reportagem, os participantes dos festação, greve, etc.) que, para ter acesso três grupos focais identificaram o desen- ao debate público não deva submeter-se volvimento de uma teoria sobre o talento a essa prova da seleção jornalística, isto futebolístico de Neymar e o conflito pelo é, a essa formidável censura que os jor- nalistas exercem, sem sequer saber dis- posto de melhor jogador do mundo entre so, ao reter apenas o que é capaz de lhes ele e Messi. interessar, de “prender sua atenção”, isto é, de entrar em suas categorias, em sua Eles (produtores da matéria) comentam grade, e ao relegar à insignificância ou o futebol do Neymar como algo espeta- à indiferença expressões simbólicas que cular e fora do comum. Pois bem, pode mereceriam atingir o conjunto dos cida- até ser fora do comum aqui no nosso dãos. (BOURDIEU, 1997, p. 67) campeonato brasileiro, mas na Europa é outra história. No Barcelona princi- Em discussão sobre as características palmente. O Neymar ainda não está fazendo o que os europeus chamam de necessárias para ser um talento no futebol, espetacular. Se não melhorar o desem- os integrantes do G2 questionaram a defi- penho, a Bola de Ouro será uma paixão nição exposta no discurso do EE. Os parti- platônica eternamente. (Aluno 8, G1) cipantes julgam o talento como resultado individual de um processo dependente das Pra chegar ao futebol que a própria características físicas individuais do atleta, matéria citou ainda falta muito. As atua- ções de Ronaldo, Romário, Ronaldinho mas também do contexto geral em que ele Gaúcho e Rivaldo estão anos-luz à fren- será desenvolvido, desde o grupo em que te de Neymar. (Aluna 4, G2) será inserido até a forma que será treinado. 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Como estudantes de Educação Física, fazer acreditar o programa. Acho que nós sabemos que devem ser levados em eles não sabem, mas o campeonato consideração os valores antropométri- europeu tem os melhores jogadores do cos, motores e cognitivos pra determi- mundo. (Aluno 6, G1) nar um talento. Mas, também sabemos que tudo dependerá da forma como esses aspectos serão trabalhados para Ainda no G1 surgiu a expressão o desenvolvimento do atleta. O tipo “planejamento sazonal de ídolos”, cuja de- de treinamento, condições físicas para finição é semelhante à de “era” já aplicada esse treinamento e os colegas de time, neste trabalho. As projeções do programa no nosso caso, também são variáveis importantes. No Santos, o Neymar era para a Copa do Mundo de Futebol 2014 ‘o cara’, no Barcelona a água rola pro levam a mídia a definir uma nova aposta outro lado. Enquanto no Santos todos de craque, já que Ronaldo Fenômeno, os jogadores jogavam pra ele, no Barce- Ronaldinho Gaúcho, Kaká e outros que lona ele, pelo menos no início, terá que fazer isso. (Aluna 3, G2) participaram da conquista em 2002 já não estavam mais em seu auge de desempenho. De acordo com G1, esse processo ocorre a Em adição ao discurso de G2, os cada quatro anos, para que no período da integrantes do G3 afirmaram que o discurso Copa já se tenha alguém apto a ser idola- da reportagem põe Messi como empecilho trado pela nação. para Neymar vencer o prêmio Bola de Ouro. Para os participantes do estudo, Neymar Eles precisam fazer ídolos, heróis pra tem a si mesmo como único obstáculo para vender o produto deles. Na época de atingir seu máximo potencial e, consequen- 2002 todos os jogadores jogaram mui- temente, títulos importantes. “O aspecto to bem, mas a mídia atribui o título a que deveria ser pontuado pela matéria é quem fez mais gols, Ronaldo. Mas não foi só por causa dos gols, eles (meios a confiança em si. No esporte, o atleta de- de comunicação) jogaram a responsa- pende apenas dele mesmo” (Aluna 2, G3). bilidade do título pra cima do Ronaldo A mídia pode ser considerada como pra crescerem em cima dele e vende- a grande força que transforma imagens e rem os produtos usando o nome dele. Isso é importante pra que o programa eleva pessoas desconhecidas à categoria consiga mais audiência e, também, pro de mito, especialmente no futebol, o qual jogador conseguir mais patrocínios. não existe sem a comunicação e sem a (Aluna 2, G1) mídia para divulgar e vendê-lo. Com isso, a mídia goza de poder de influenciar as Todos os grupos citaram que o crianças em seus modos de agir e de pensar discurso veiculado pela reportagem tem o (CHARAUDEAU, 2010). Segundo o G1, o poder de reproduzir e criar uma realidade discurso da matéria questiona a existência por vezes onírica, uma vez que usa técnicas de outros jogadores no nível de Neymar e de edição para torná-la mais atraente do que Messi ao citar somente os dois como possí- ela é de fato. veis candidatos à Bola de Ouro. O Esporte Espetacular tem o poder de al- O Messi não é o único pequeno cançar um grande número de telespec- problema do Neymar não, como quer tadores e ao mostrar incessantemente o 310

Neymar, transmite uma imagem que o conjunto de tradições, valores e atitudes qualificam como, no mínimo, perfeito. para conservar a coesão do grupo e rati- É uma lógica simples: a partir da fala do programa, as pessoas passam a pensar ficar sua reprodução. As instituições de mais no Neymar. Boa parte com mais ensino, em geral, envolvem uma série de carinho e até mesmo idolatria, mesmo conhecimentos e orientações sancionados sem conhecê-lo pessoalmente. Outra socialmente como adequados para ser parte, pequena acredito eu, consegue analisar criticamente aquilo que vê e formalmente ensinados aos jovens e assim ouve. (Aluna 1, G2) facilitar a reprodução cultural e a formação de cidadãos funcionais ao Estado e à socie- Nesse sentido, deve-se considerar a dade civil. Outras mediações são a igreja, interferência das mediações cognitiva e ins- empresa, o partido político, dentre outras titucional – propostas por Orozco-Gómez (OROZCO-GÓMEZ, 2005). (2005) – sobre o processo de recepção. Há que se reconhecer, também, A mediação cognitiva diz respeito ao apara- o conhecimento prévio dos sujeitos da to cultural do indivíduo. Numa perspectiva pesquisa acerca de Neymar, sua vida pro- integral da recepção, ela pode ser temati- fissional e pessoal. É evidente a busca e zada como script, o qual toma por foco a uso de informações transcendentes à tela atuação dos indivíduos e define sequências da televisão (websites, jornais impressos, redes sociais, entre outros) para satisfação específicas para a ação e o discurso, para de necessidade de informação e aquisição o que se tem que fazer e dizer em cenário de subsídios para um confronto de ideias social e momento determinados. Desta e leitura crítica das mensagens recebidas. maneira, os scripts estabelecem ao indiví- Segundo o G3, para o êxito comer- duo formas culturalmente admitidas para cial importaria ao EE privilegiar histórias que a interação social. Não requer um ensino atendam aos interesses da audiência, que para a sua aprendizagem, embora, certas falem sobre dinheiro, sexo, culto do ídolo e situações requeiram uma instrução deter- da fama e conflitos. A relação telespectador- minada por meio do exame de atuações -programa estaria baseada, então, em uma próprias e dos outros. lógica comercial, onde um se alimentaria A mediação institucional diz res- do outro. peito ao pertencimento do telespectador a diversas instituições sociais, além da Seria ingenuidade, pensar que todas as possibilidade dele assumir outros papéis e empresas privadas se baseiam na lógica interagir em outros cenários. Um cenário comercial com exceção da imprensa. no qual transcorre o processo de recepção Não dá pra retirar os meios de comu- nicação das regras de mercado e dar a é a instituição escolar no aspecto de que eles uma aura superior, divina, bondosa têm suas próprias esferas de significação e imune às leis implícitas no sistema ca- – resultado da particular historicidade e pitalista. (Aluno 7, G3) institucionalidade – a partir das quais con- sentem importância aos guias da audiên- Essa relação mercadológica corrobo- cia, e legitimam sua atuação nos cenários ra o pensamento de Orlandi (2001), quando sociais. A cosmovisão familiar compõe um a autora afirma que não há neutralidade V. 28, n° 48, setembro/2016 311 nem mesmo no uso mais aparentemente aos jogadores manifestariam os atributos de cotidiano dos signos. E como nenhum brasilidade que a imprensa procura exaltar discurso é inocente (FOUCAULT, 1996), no futebol. as matérias jornalísticas também não são. Seguindo essa concepção de inten- Sobre o Rivaldo eles não falaram 10 cionalidade do discurso, um dos integran- segundos completos. Sobre o Ronaldo comentaram as dificuldades físicas por tes do G3 acrescentou que é necessário que passou e o fato de mesmo não es- reconhecer que o telespectador por vezes tando 100% em todos os jogos, se sair pode ser ludibriado pelo discurso da mídia, bem, superar a dor. (Aluna 2, G2) mas isso não significa que ele seja “um cordeirinho indefeso nas garras de um leão A partir do discurso de integrantes faminto”. Esse discurso revela a ocorrência do G1, constata-se que a aposta do EE tanto do assujeitamento ideológico quanto em Neymar é decorrente do estereótipo da recepção ativa. Sobre o assujeitamento promovido pela afirmação do Brasil como ideológico, Brandão (2004) afirma que celeiro dos melhores jogadores de fute- bol. Retomamos, assim, a concepção de Na reprodução das relações de produ- estereótipo postulada por Charaudeau e ção, uma das formas pela qual a ins- tância ideológica funciona é a da “in- Maingueneau (2004, p. 216), ao afirmarem terpelação ou assujeitamento do sujeito que “o locutor não pode se comunicar com como sujeito ideológico”. Essa interpre- os seus alocutários, e agir sobre eles, sem tação ideológica consiste em fazer com se apoiar em estereótipos, representações que cada indivíduo (sem que ele tome consciência disso, mas, ao contrário, te- coletivas familiares e crenças partilhadas”. nha a impressão de que é senhor de sua própria vontade) seja levado a ocupar A matéria mostra jogadores brasileiros seu lugar em um dos grupos ou classes que ganharam a Bola de Ouro e entre- de uma determinada formação social. É laçada a elas a figura desse rapaz (Ney- o mesmo que interpelação ideológica. mar). Isso faz com que na mente do bra- (BRANDÃO, 2004, p. 46) sileiro comece a surgir a esperança de que Neymar será o próximo a ganhar o Partindo da premissa de que há prêmio. E não é assim. Não é por ele ter nascido aqui que irá ganhar. Ainda fal- uma distinção na maneira como a mídia ta muito ao Neymar pra ganhar a Bola. brasileira apresenta os ídolos futebolís- (Aluno 4, G1) ticos, o G2 ressaltou as distinções feitas pela matéria nas descrições dos jogadores Em reposta aos enunciados acima, Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, Romário e um integrante do G1 declarou duvidar que Rivaldo. Enquanto sobre os três primeiros seus colegas de grupo não fiquem felizes são ressaltadas características ligadas à caso Neymar ganhe o prêmio Bola de Ouro. genialidade, malandragem, superação e ao talento nato – aspectos típicos do herói na- Quer dizer que se o Neymar ganhar a cional, macunaímico, segundo Helal (2003) Bola, vocês vão chorar? (Aluno 5, G1) –, Rivaldo foi mencionado como o “craque calado”. Esses diversos simbolismos ligados Não, também não é assim. (Aluno 8, G1) 312

Pois eu vou ficar feliz sim, porque é papel chave que este último desempenha um brasileiro ali. Chato, mas brasileiro. como fator de poder nas sociedades con- (Aluno 5, G1) temporâneas, percebe-se o poder que uma empresa de telecomunicações como as Constata-se nesse discurso a imagem Organizações Globo tem como operadora pré-construída (ethos pré-discursivo) do que da realidade e espaço de trocas simbólicas Neymar representa para o enunciatário, entre diferentes campos sociais; poder esse pautada em representações cristalizadas, as citado pelos sujeitos da pesquisa, conhe- quais retomam discursos anteriores, a fim cedores das intervenções da empresa nos de construir um ethos (MAINGUENEAU, cenários político, econômico, cultural e 2005) otimista do jogador. Neymar, antes esportivo nacional. de tudo, seria brasileiro e, portanto, nosso O “padrão Globo de Qualidade” representante no futebol mundial. não é garantido apenas pela sua superiori- São vários os episódios em que, se- dade de base técnica em relação à concor- gundo os grupos, percebe-se a interferência rência, seguida na mesma escala por uma do EE exercendo o que Bourdieu chama de superioridade econômica/administrativa. poder simbólico (1989), uma força invisível Para se estabelecer na memória do público que faz o sujeito agir de uma maneira, mes- e levá-lo a consumir seus produtos, a Rede mo sem refletir muito sobre isso. Globo procurou espelhar a opinião pública brasileira, objetivando gerar capital simbó- Neymar mal chegou ao Barcelona e lico e instituir-se como exemplar e dotada eles estão lançando ele como candi- dato à Bola de Ouro. De tanto falarem de credibilidade inabalável na cobertura isso, até eu tô começando a acreditar. jornalística. Ainda mais que o Esporte Espetacular é o programa esportivo mais assistido da TV aberta. (Aluno 1, G1) CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sempre quando se aproxima a Copa do Ao analisar a reportagem do EE Mundo, percebe-se a criação de uma imensa cobertura midiática sobre um deparou-se com o começo de uma narrativa jogador específico. A bola da vez éo estruturada sob os pilares da jornada do Neymar. Até quem odeia futebol sabe herói, propostos por Campbell (1997). Ney- quem é o Neymar. (Aluna 5, G2) mar é apresentado como um olimpiano e projetado para possibilitar a identificação do A Globo ignora todos os outros exce- público para com o jogador, principalmente lentes jogadores que participam do campeonato europeu e cita só Messi e no que se refere aos anseios da sociedade. Neymar como candidatos à Bola. Com A apropriação crítica do discurso certeza, isso tem um objetivo. A Globo midiático é parte de um processo que inci- não faz nada sem pensar um milhão de ta os indivíduos a observarem o processo vezes antes. (Aluna 1, G3) de seleção de determinada informação, e por que temas são omitidos e outros Considerando a relação existente tratados com mais ênfase nas notícias. O entre informação e conhecimento, e o discurso dos sujeitos da pesquisa explicita o V. 28, n° 48, setembro/2016 313 protagonismo de matérias como a produ- que a luta pelo poder seja instaurada. O zida pelo EE como principais responsáveis EE não pode contrariar deliberadamente o pela representação de Neymar na socieda- público, que não pode impor ao programa de. Para os participantes, Neymar não é um exatamente o que acha que deve ser exibido simples jogador de futebol, mas um astro em sua programação. que se tornou garoto propaganda de diver- sas marcas mundiais e cuja carreira tem sido construída não apenas nos gramados, mas REFERÊNCIAS também em torno de uma imagem eficaz e cuidadosamente gerida por uma agência de ADORNO, T.W. Indústria cultural e assessoria e por veículos de comunicação sociedade. 5. ed. São Paulo: Paz e como, por exemplo, o EE. Terra, 2009. Neymar não foi reconhecido como BAKHTIN, M. Problemas de la poética de ídolo, pelos participantes da pesquisa, Dostoiesvski. México: Fondo de Cultura mas como uma produção da mídia que Económica, 1988. o trata, ao mesmo tempo, como sujeito e BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de mercadoria, uma marca. Essa configuração Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. de Neymar como ídolo se configuraria ______. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: como um modo de controle social pelo Zahar, 1997. grupo hegemônico na sociedade. O ídolo BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise Neymar é ícone da redenção do oprimido, do discurso. 2. ed. Campinas: Unicamp, pois daria aos excluídos a possibilidade de 2004. visualizar perspectivas de mudança da sua CAMPBELL, J. O poder do mito. São Paulo: condição social. No caso da nação brasi- Palas Athena, 1990. leira, Neymar representaria a chance de ______. O herói de mil faces. 10. ed. São superar as nações mais desenvolvidas do Paulo: Cultrix, 1997. mundo através do futebol, o que para os CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, sujeitos da pesquisa seria apenas mais uma D. Dicionário de análise do discurso. forma de sobrepujar-se às últimas, uma vez São Paulo: Contexto, 2004. que a real superação viria somente quando CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. 2. o país solucionasse os vários problemas nos ed. São Paulo: Contexto, 2010. campos político, econômico e social. ESPORTE ESPETACULAR. Agora no Barça, As ressignificações dos sentidos Neymar luta para seguir caminho emitidos pelo EE reforçam a ideia de que o de Ronaldinho, Romário, Fenômeno processo de recepção das mensagens é ativo e Rivaldo. 2013. 5’55’’. Disponível e dialógico, além de demonstrar que, como diz Foucault (2008), o poder não é algo em: . iguais, todos os atores são necessários para Acesso em: 20 dez. 2014. 314

FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 3. de pesquisa, elaboração análise e ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996. interpretação de dados. 7. ed. São ______. Microfísica do poder. 25. ed. Rio Paulo: Atlas, 2009. 277 p. de Janeiro: Graal, 2008. MINAYO, M.C. de S. O desafio do GORDON JÚNIOR, C. “Eu já fui preto e conhecimento: pesquisa qualitativa em sei o que é isso”: história social dos saúde. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2008. negros no futebol brasileiro – segundo MORIN, E. Cultura de massas no século tempo. Pesquisa em campo, n. 3-4, p. XX: neurose. 9. ed. Rio de Janeiro: 65-78, 1996. Disponível em: . Acesso em: 8 mar. 2015. grupo focal, como técnicas na obtenção HELAL, R. A construção de narrativas de de dados em pesquisas exploratórias. idolatria no futebol brasileiro. Alceu, v. Rev. Adm. UFSM, v. 6, n. 1, p. 09-24, 4, n. 7, p. 19-36, jul./dez. 2003. jan. /mar. 2013. MAINGUENEAU, D. Análise de textos de ORLANDI, E.P. Análise de discurso: comunicação. 3. ed. São Paulo: Cortez, princípios e procedimentos. 3. ed. 2004. Campinas: Pontes, 2001. ______. Ethos, cenografia e incorporação. OROZCO-GÓMEZ, G. O telespectador In: AMOSSY, Ruth (Org.). frente à televisão: uma exploração Imagens de si no discurso: a construção do processo de recepção televisiva. do ethos. São Paulo: Contexto, 2005. Communicare, v. 5, n. 1, p. 27-42. p. 69-92. 2005. MARCONI, M.A.; LAKATOS, E.M. Técnicas VYGOTSKY, L.S. Psicologia pedagógica. de pesquisa: planejamento e execução 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. de pesquisas, amostragens e técnicas V. 28, n° 48, setembro/2016 315

Neymar, defender of brazilian tradition

ABSTRACT

The purpose of this article is to analyze how university students of Teresina-PI appropriate of the message of a report of the television show Esporte Espetacular. There was use of the technique of focus groups and analytical-descriptive method for collecting and analyzing data. The sample consisted of 24 university students, aged between 18 and 24 years. The report features Neymar as responsible to follow the “tradition” of Brazilians and to be crowned as the best player in the world. The subjects of research said that the speech conveyed by the report can reproduce and create a reality sometimes dreamlike, because objective to confer to Neymar great importance with regard to national identity.

Keywords: Media Discourse; Television; Study reception; Neymar

Neymar, defensor de la tradición brasileña

RESUMEN

El propósito de este artículo es analizar cómo los estudiantes universitarios de Teresina- PI hacen la lectura de un informe del programa de televisión “Esporte Espetacular”. Hubo uso de la técnica de grupos focales y método analítico-descriptivo para recopilar y analizar datos. La muestra estuvo conformada por 24 estudiantes universitarios, con edades comprendidas entre 18 y 24 años. El informe agenda responsabilidad de Neymar de seguir la tradición de los brasileños que vienen a Barcelona y consagrarse como el mejor jugador del mundo. Por esta hazaña el único obstáculo que hay que superar es su compañero de club, Lionel Messi. Los sujetos de la investigación dijeron que el discurso del informe puede crear una realidad, a veces sueño, ya que tiene como objetivo introducir a Neymar una gran importancia con respecto a la identidad nacional.

Palabras clave: Discurso de los Medios; Televisión; Estudio de recepción; Neymar

Recebido em: novembro/2015 Aprovado em: maio/2016