Jean Wyllys É O Primeiro Exilado Político Do Governo Bolsonaro
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Um homem e a sua sombra Jean Wyllys é o primeiro exilado político do governo Bolsonaro. Diz que fugiu para não morrer: assassinado ou de tristeza. Vem a Portugal na próxima semana e já foi ameaçado pelo PNR. O Expresso encontrou-o em Berlim TEXTO CHRISTIANA MARTINS ENVIADA A BERLIM E 48 © Todos os direitos reservados. A cópia ou distribuição não autorizada é proibida. Ficheiro gerado para o utilizador 1724703 - [email protected] - 172.17.21.102 (23-02-19 10:02) MAURO PIMENTEL/AFP/GETTY IMAGES PIMENTEL/AFP/GETTY MAURO E 49 © Todos os direitos reservados. A cópia ou distribuição não autorizada é proibida. Ficheiro gerado para o utilizador 1724703 - [email protected] - 172.17.21.102 (23-02-19 10:02) edófilo, viado escroto, cu ambulante, ladrão, quei- de um mês na Europa, primeiro em Espanha, ago- ma rosca. Durante anos foi assim que Jair Bolsona- ra em Berlim, onde vive com uma amiga. Recebe o ro o tratou. Sem pudor, à frente dos outros parla- Expresso num apartamento soalheiro, cercado por mentares, os insultos foram gravados pelas câma- varandas, numa rua discreta de um bairro multiét- ras das televisões. O atual Presidente do Brasil, que nico. Ao lado do edifício cinzento, o que parece um chegou a afirmar que preferia ter um filho morto a parque arborizado mais não é do que um cemité- ter um descendente homossexual, nunca suportou rio, com lápides disfarçadas entre a relva e as folhas Jean Wyllys, o primeiro deputado federal brasileiro derrubadas pelo inverno. Ele diz que lhe dá paz. assumidamente gay. Até que, em 2016, no dia em Domingo à tarde, nas ruas veem-se famílias, que os deputados federais votaram o impeachment pais com crianças pela mão. Trinta minutos antes da de Dilma Rousseff, o copo transbordou. Wyllys far- hora marcada para a entrevista ainda não é possí- tou-se do assédio moral e cuspiu certeiro na cara vel estabelecer contacto direto com Wyllys. A única de Bolsonaro, quando este, aos microfones, elogiou forma de o fazer é através de um assessor que tam- Carlos Brilhante Ustra, coronel conhecido pela prá- bém deixou o Brasil e vive agora em Barcelona. Uma tica da tortura em quem ousava opor-se à ditadura troca de mensagens informa que, afinal, é possível militar. A imagem ultrapassou fronteiras, tatuou a subir mais cedo até ao apartamento. Na campainha, testa dos dois oponentes, marcando quem cuspiu e um apelido banal, nada brasileiro. Os dois portões quem foi cuspido. E o amargo daquela relação não abrem-se sem que seja preciso especificar quem foi engolido por nenhum dos dois. toca. No último andar, quando a porta se abre, está Dois anos depois da cuspidela, Jean Wyllys vive um homem pequenino, pele de um delicado more- na Alemanha. Chegar a ele não é fácil. Está há cerca no claro, os célebres caracóis cortados, como se uma E 50 P© Todos os direitos reservados. A cópia ou distribuição não autorizada é proibida. Ficheiro gerado para o utilizador 1724703 - [email protected] - 172.17.21.102 (23-02-19 10:02) ter comemorado com a vereadora do Rio de Janei- “Quando ro que lhe seguira as pisadas políticas ao abraçar causas como a defesa das mulheres, negros e mi- Marielle foi norias, Jean recebeu a notícia de que a amiga tinha executada, sido assassinada. CRISTAL PARTIDO tudo mudou “Quando Marielle foi executada, tudo mudou e al- guma coisa se quebrou dentro de mim.” E Jean, que e alguma coisa era ameaçado já há sete anos, finalmente sentiu o arrepio de ser um alvo concreto — “Sempre achei se quebrou que as ameaças tinham apenas o intuito de me ca- lar e intimidar.” Só que não. Dois homens foram dentro de mim.” presos, e com eles foram encontrados planos para fazer explodir uma bomba na Faculdade de Brasília, Jean sentiu onde Jean lecionava, e mapas com os desenhos da localização das câmaras de vigilância e dos pontos o arrepio cegos onde poderia ser atacado sem deixar provas. Também foram descobertas imagens da fachada da de ser um casa da mãe de Jean, na Bahia, as matrículas dos automóveis dos irmãos e os seus e-mails pessoais. alvo concreto Tudo ganhou uma realidade até ali desconhecida. O planeamento da fuga começou a ser desenha- do em dezembro. Wyllys aproveitou o recesso par- lamentar e foi a Alagoinhas, a cidade natal, de onde saiu aos 14 anos, na periferia de Salvador. Reuniu a mãe e os irmãos para os avisar de que estava a par- tir, sem data de regresso. Outra vez ecoa no aparta- mento berlinense a música de Elis: “Cuidado, meu bem, há perigo na esquina!” Gay, nordestino, nascido na extrema pobre- za, imigrante na cidade grande brasileira, mesti- ço, como o próprio se define, Jean percebeu final- mente o que o poderia esperar em qualquer canto. Nem foi preciso pedir ajuda. Depois do assassínio de Marielle Franco, o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, por orientação da força de segurança federal, destacou uma escol- ESPERA Enquanto não pode voltar ta da Polícia Legislativa para acompanhar Wyllys: para o Brasil, Jean Wyllys dá conferências, um carro blindado e quatro homens armados com como na semana passada em Berlim a missão de o levar de casa para o trabalho e do tra- JOANA BELEZAJOANA ou na próxima em Lisboa balho para casa. E a vida? “Passei a viver uma espécie de cárcere privado.” Parou tudo. Ele estancou, mas a violên- brisa fria do Hemisfério Norte os tivesse arrancado. estão a ser expulsos pela especulação imobiliária. cia não. “Os policiais só intervinham se houvesse O homem sorri, educado, mas está triste. Mas, afinal, o diálogo faz todo o sentido: como é vi- violência física, fui empurrado duas vezes na rua O sotaque baiano de Jean Wyllys é leve, ado- ver nas margens, não ter lugar, ser-se empurrado e, se eles não estivessem lá, teria sido espancado; cica a voz já de si açucarada dos brasileiros. Com para fora do ninho? “No momento, sou uma pes- mas contra os insultos não faziam nada. Não havia uma camisola cinzenta e umas calças pretas, o po- soa desterritorializada, alguém que precisou de se lugar em que não fosse xingado, em que não fosse lítico parece um homem mais velho do que os 44 autoexilar, porque os locais que eu frequentava tor- insultado, acusado de algo que não fiz”, conta. Os anos que tem. Brilho, apenas o que emana, suave, naram-se perigosos para mim, devido às ameaças mais agressivos não eram os jovens, diz, “eram as das pulseiras de candomblé cor de âmbar, como se de morte que estava a sofrer no meu país.” Pronto, senhoras, homens, adultos, alguns adolescentes”. a fé não precisasse de se anunciar. Apenas estar lá. vamos lá falar do que interessa: Jean Wyllys, o pri- O ar no Rio de Janeiro e em Brasília ganhou cheiro Naquele domingo berlinense, cai a tarde de forma meiro e mais mediático exilado político do governo a chumbo — “Os ambientes tornaram-se terríveis, lenta, e, como na música de Elis Regina, o homem Bolsonaro, vai contar a história da sua fuga. a minha vida começou a ficar restrita.” sozinho parece uma sombra de Charlot. Lá fora, Sem nome e sem telefone, “sem lenço nem do- E o método instalou-se no cenário político nem a Lua gorda é capaz de iluminar as sombras cumento”, Jean vai explicar como tenta construir brasileiro: “Os insultos eram filmados, as ima- que Jean traz nele. um novo presente e futuro europeus. Mas, entre- gens partilhadas nas redes sociais para humilhar A conversa começa tímida, como se houvesse tanto, chora. E chora muito. Sabe que “é preciso as pessoas, e eu fui o laboratório de uma estratégia um medo mútuo de tocar em feridas expostas, e estar atento e forte”, mas contraria a música e tam- que veio a crescer e acabou por eleger esse sujei- arranca pela questão da gentrificação de bairros tí- bém reconhece que tem “muito tempo para temer to.” Há oito anos diziam que Jean Wyllys era o pai picos, como aquele berlinense onde habita, onde as a morte”. As ameaças contra ele começaram em do kit gay, uma espécie de pacote preconcebido populações já começam a ser empurradas para lon- 2011. Mas o que já era difícil conseguiu ficar pior, para ser aplicado no ensino público e que iria con- ge. Também no Brasil, no Bairro 2 de Julho, em Sal- consegue sempre ser assim. Quatro dias depois de verter as crianças em homossexuais. Ou que se- vador, onde Jean vivia, as meretrizes e os travestis ter feito anos, a 14 de março do ano passado, e de riam distribuí das, pelos candidatos da esquerda, E 51 © Todos os direitos reservados. A cópia ou distribuição não autorizada é proibida. Ficheiro gerado para o utilizador 1724703 - [email protected] - 172.17.21.102 (23-02-19 10:02) “mamadeiras de piroca”, em que a tetina seria a que pertencera Marielle Franco, e tentaram con- substituída por um bico em forma de pénis. “E as D.R. vencê-lo a regressar, mas não havia volta a dar: “Só pessoas acreditaram nisso, foi como uma histeria tenho essa vida, e é essa que tenho de assegurar.” coletiva, e eu fui a vítima preferencial desse modus A notícia caiu como uma bomba. Uma fotogra- operandi, como se a homossexualidade pudesse ser fia do punho fechado e erguido de Wyllys em frente fruto de proselitismo”, destrava Wyllys, como se ti- a uma manifestação, acompanhada apenas da frase vesse aquilo fechado há muito tempo.