MANUELA CARNEIRO DA CUNHA (ORG.) FRANCISCO M. SALZANO NIÉDE GUIDON ANNA CURTENIUS ROOSEVELT GREG URBAN BERTA G. RIBEIRO LÚCIA H. VAN VELTHEM BEATRIZ PERRONE-MOISÉS ANTÓNIO CARLOS DE SOUZA LIMA ANTÓNIO PORRO FRANCE-MARIE RENARD-CASEVITZ ANNE CHRISTINE TAYLOR PHILIPPE ERIKSON ROBIN M. WRIGHT NÁDIA FARAGE PAULO SANTILLI MIGUEL A. MENÉNDEZ MARTA ROSA AMOROSO TERENCE TURNER BRUNA FRANCHETTO ARACY LOPES DA SILVA CARLOS FAUSTO MARY KARASCH MARIA HILDA B. PARAÍSO BEATRIZ G. DANTAS JOSÉ AUGUSTO L. SAMPAIO MARIA ROSÁRIO G. DE CARVALHO SILVIA M. SCHMUZIGER CARVALHO JOHN MANUEL MONTEIRO SÓNIA FERRARO DORTA

HISTÓRIA DOS ÍNDIOS NO BRASIL

2? edição

FaPESP ^fefe. _SMC

Fundação DE AMPARO Á Pesquisa y, i -T^ i ltlUsicir«i o! Ti in s DO ESTADO Dt SÃO PAuuí COMHAN H I A DaS LiriRAS iD... JL1"l>.. 1 .., Biblioteca Digital Curt Nimuendajú http://www.etnolinguistica.org/historia

C:op>rinht © 1992 hy os Autores

Projeto editorial: NrCIS.O DF. HISTÓRIA INDÍGF^A E DO INDIGENISMO

Capa e projeto gráfico: Motmd CMvakanti

Assistência editorial: Mjrta Rosa Amoroso

Edição de texto:

Otanlío Fernando Nunes Jr.

Mapas: Alíàa Roíla Tuca Capelossi

Mapa das etnias: Clame CA)hn FJmundo Peggion

índices:

Beatriz Perrvne-Moisés Clame C^hn Edgar Theodoro da Cunha Edmundo Peggion Sandra Cristina da Silva

Pesquisa iconográfica: Manuela Cimeiro da Cunha Marta Rosa Amoroso Oscar Cuilávia Saéz Beatriz Calderari de Miranda

Revisão: Cármen Simões da Costa FJiana Antonioli

1^ edição 1992

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (iip) (Câmara Brasileira do Lixro, sp. Brasil)

Carneiro História dos índios no Brasil / organização Manuela das letras Se- da Cunha. — São Paulo : Companhia AL BR f*pf.sp. cretaria Municipal de Cultura : 1992 F2519 Bibliografia .H57 ISBN S5-7164-260-5 1998x

Brasil História 1 1. índios da América do Sul — — Cunha. Manuela Carneiro da.

921393 (Di>-980.41

índices para catálogo sistemático 41 1 Brasil índios História 980

1998

Todos os direitos desta edição leservados à

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e-niail: ct)leiiasiííinleiiu't.sp. ioin.br "O APARECIMENTO DOS CARAIBA'

Para uma história e alto-xinguana

Bruna Franchetto

tratar dos povos que habitam até hoje nomia, parentesco, cosmologia, valores, rituais formadores rio Xingu, intra e intertribais — e se distinguem en- Aoa bacia dos do que no norte do Mato Grosso, pressupõe- tre si por outros traços, que funcionam como se uma unidade tanto geográfica e eco- emblemas de identidades contrastivas, como lógica como sócio-poh'tica. a manufatura de artefatos para troca, o terri- Seus Hmites geográficos são claros. A bacia tório de ocupação histórica e a língua ou dia- dos formadores, área de transição entre o cer- leto. rado e a floresta, é drenada por um leque de A sociedade alto-xinguana é multilingue;

rios, sendo os principais os rios Kuliseu ou Ku- seus povos falam línguas que pertencem aos risevo, Kuluene e Ronuro, interligados por um troncos Tupi e Arawak e à família Karib, além emaranhado de igarapés, canais e lagoas, que do Trumai, língua considerada isolada. O Ka- confluem a 11°55' de latitude sul e a 53''35' mayurá e o são línguas Tupi-Guarani; de longitude oeste, no ponto chamado pelos Mehináku, Waurá e são línguas Ara- índios de "centro do mundo", palco da cria- wak; Kuikuro, , e Nahukwá são ção do universo físico e humano. A bacia é fe- línguas Karib. Os Bakairi, grupo karib outro- chada ao sul pelo chapadão mato-grossense, ra limítrofe dos alto-xinguanos na fronteira me- a oeste pela serra Formosa que divide a dre- ridional e tendo em comum com eles elemen- nagem entre o rio Xingu e o rio Teles Pires, tos culturais, não pertencem a esse sistema, ao leste pela serra do Roncador que a separa não somente por estarem dele separados já há da bacia do rio das Mortes-Araguaia. O aces- quase um século, como também por apresen- so à região pelos rios nunca foi fácil; impossí- tarem diferenças culturais significativas e fa- vel procedendo do norte pela interposição da larem uma língua que não pode ser conside- cachoeira Von Martins e pelas corredeiras do rada próxima do Karib alto-xinguano.' No in- médio-baixo Xingu, obstáculo natural à nave- terior de cada agrupamento lingiiístico — Tu- gação rumo às nascentes do rio Xingu, resta pi, Arawak ou Karib — há variação de tipo dia- a transponibilidade do limite meridional, da- letal, com graus variados de inteligibilidade da a navegabilidade sazonal dos muitos tribu- mútua. O bilingiiismo ou até poliglotismo é fe- tários que correm no sentido sul-norte em área nómeno pouco difuso e de tipo essencialmen- de depressão (Menget, 1977:7; Menezes, te passivo, ou seja, vale para a compreensão 1990:210-1). e não para a execução; contudo, as barreiras Do ponto de vista sócio-político, a socieda- lingiiísticas não significam impossibilidade de de alto-xinguana é um conjunto bastante ho- comunicação intertribal (Franchetto, 1986). mogéneo de grupos locais inter-relacionados Nas últimas décadas, como resultado de um ([ue compartilham traços culturais em diver- longo processo de depopulação, cujo início sos domínios — padrão de aldeamento, eco- coincide com os primeiros contatos com os uo IlISTÓRU !X>S (NDIOS \0 BR\SIl.

brancos, cada agrupainento liniíiiístico tem atualizada de pesquisas antropológicas e, em constituído uni único grupo local, reunido nu- menor número, linguísticas. ma só iildeia. Com relação à história anterior a 1884 Nosso objetivo, neste capítulo, não é deli- parece existir um grande vácuo, só preen- near uma história geral da sociedade alto- chível por conjeturas deduzíveis de umas xinguana, embora seu perfil seja traçado di- poucas investigações arqueológicas, todas retamente nesta introdução e na seção seguin- apenas de caráter preliminar, e da tradição

te, e indiretamente no restante do trabalho. E, oral indígena. mais limitadamente, procurar reconstruir a A ocupação humana do alto Xingu parece história de um subsistema da sociedade alto- ser bastante antiga. Escavações realizadas por xingiiana, o dos grupos karib, ainda mais es- Dole (1961-2) e por Simões (1967) re\elaram pecificamente entre eles a história dos Kuiku- resíduos se acumulando num espessor de mais ro. Esta será enfocada cada vez mais a partir de um metro, onde se distinguiriam duas tra- do pano de fimdo alto-xinguano, para em se- dições ceramistas de origem amazônica. A pri- guida, à guisa de conclusão, nos reportarmos meira dataria dos séculos XII e XIII e a segun- àquele mesmo sistema abrangente nos dias de da, semelhante à cerâmica decorada plastica- hoje, definitixamente cercado pelas fronteiras mente e zoomorfa fabricada hoje pelos grupos de uma reserxa, o Parque Indígena do Xingu. arawak, dataria por volta de 1200-1300 d.C. A história do contato com os brancos, ou ' ca- Outro achado arqueológico tem sido apresen- raíba", é o fio condutor ou o ponto de irradia- tado para sustentar a hipótese de que po\os ção do discurso aqui desem ol\ ido, que pre- distintos dos atuais alto-.xinguanos teriam ha- tende incorporar o fio condutor da história bitado a região; trata-se da interpretação de cu- contada pelos próprios índios. Veremos como, riosas formações em forma de valetas como a partir deste século, a história indígena passa que enclausurando territórios delimitados. a se confinidir inextricavelmente com a histó- Produto de processos geológicos ou fortifica- ria do indigenismo brasileiro e da penetração ções feitas por mãos humanas? As supostas va- e estabelecimento da presença dos brancos em letas fortificadas, contemporâneas da segun-

território indígena. da fase ceramista e encontradas em antigos sí- tios karib, mostrariam a existência no passado "PRÉ-HISTÓRIA" AUO-XINGUANA: de sociedades "guerreiras" e mais "comple- UM GRWDE VÁCUO xas" (Heckenberger, 1991). Tais sociedades te- E ALGUMAS CONJETLTIAS riam sido dizimadas por epidemias decorren- A história documentada dos povos indígenas tes dos primeiros contatos com os brancos e da região dos formadores do rio Xingu come- por conflitos com grupos indígenas invasores. ça no fim do século passado com os relatos das Monod (1978), ao relatar os resultados de es- viagens do alemão Karl \on den Steinen rea- cavações por ele realizadas em 1973, obserxu lizadas em 1884 e 1887 (Steinen, 1940, 1942). a existência de aldeias circulares circundadas A partir da leitura de O Brasil Central. Expe- por paliçadas cortadas por três amplos e re- dição em 1884 para a exploração do rio Xingu tos caminhos de entrada. Monod fala ;únda de

e de Entre os aborígines do Brasil Central, cui- uma grande quantidade de sítios, gnuides ;il-

dadosas crónicas das duas expedições e pri- deias e, sobretuda chama a atenção para a ílJta meiras obserxações etnográficas, é possí\el de- de provas arqueológicas de continuidade en- hnear o quadro do povoamento indígena da tre a fase datada de 1200-1350 d.C. e o siste- área no fim do século passado. Graças à docu- ma intertribal encontrado por \"on den Stei- mentação produzida pelas expedições que se nen, ponto iniciiil da história ;iltt>xingiuuui. As- sucederam às de \bn den Steinen, em perío- sim, o alto Xingu permanece um mistério à dos bastante regulares, a história dos índios do espera de pesciuisas cjue consigam traçar sua alto Xingu neste século se desenrola median- "pré-história".

te relatórios, publicações científicas ou de di- .\ pergiuita fundamental que permanece vulgação jornalística, debates políticos, mani- não obstante as \arias hipóteses é; cinno e festos, projetos. Tal produção tem se intensifi- quando se formou o sistema multihngxie e in- cado desde meados dos anos 40. acrescen- tertribal do alto Xingu? Há consenso quanto tando-se uma contribuição mais regular e ao fato de que não seja unui criação itHvnte o APARECIMENTO DOS CAR.\fBA" 341

e que, pelo menos, tenha evoluído e se conso- sionomia cultural comum dos grupos que ne- Membros da expedição Von den lidado num processo contínuo nos últimos tre- le foram se sedentarizando, ligados por laços Steinen de 1887. de interdependência por trocas zentos ou quatrocentos anos (Heckenberger, meio das co- Da esquerda para 1991). Sucessivas migrações arawak, karib e merciais e matrimoniais (Agostinho, 1967). A a direita: (em pé) tupi, provenientes provavelmente do norte via sociedade alto-xinguana foi se constituindo ao o "velho e bom arrieiro" Januário; rio Xingu, teriam penetrado no "cul de sac" marcar suas fronteiras com os povos vistos co- Peter Vogel, ou área de refúgio da bacia dos formadores, mo "bárbaros", "não gente": Kayapó ao norte, responsável pelas se defrontado com populações preexistentes Kabixi e Kayabi a oeste, Xavante ao leste, en- pesquisas topográficas, — ou as teria absorvido parcialmente — e com tre outros, e os próprios brancos. Sem dúvi- geológicas e invasores ocidentais, e, com o tempo, se adap- da, ela se mostrou capaz de exercer papel he- astronómicas; KarI tado num sistema de relações pacíficas e de gemónico ao absorver e influenciar cultural- von den Steinen; o tenente Perrot; permeabilidade cultural generalizada. Não há mente outros povos indígenas que com ela António, o guia evidências para reconstruir a sucessão crono- travaram contato.-^ Podemos falar, metaforica- Bakairi; (sentados) lógica dessas migrações, embora se fale em mente, de uma Grécia culturalmente conquis- Wilhelm Von den precedência arawak ou, com menor convicção, tadora. Steinen, desenhista karib.- Outras hipóteses enfatizam a possibi- Informações mais precisas relativas pe- ao e pintor; Paul lidade de o sistema alto-xinguano ter se for- ríodo que poderíamos chamar de "proto-his- Ehrenreich, mado por meio — e em consequência — de tória" alto-xinguana, dos últimos duzentos ou fotógrafo especializado deslocamentos e de uma crescente proximi- trezentos anos, são obtidas pelo exame dos in- em antropometria. dade espacial entre grupos outrora mais afas- dícios contidos nas narrativas indígenas que tados, compelidos a conviverem numa área contam sobre o contato com os caraíba — os geograficamente protegida pela pressão, dire- brancos —, sobre a origem dos grupos locais ta e indireta, do avanço dos brancos (Hecken- hoje existentes e sobre o desaparecimento de berger, 1991). Características geográficas e outros já extintos. Já foi dito que dessas narra- ecológicas (jualificariam o alto Xingu comou- tivas apreendemos, contudo, mais do (}ue in- ma área de refúgio ideal, condicionando a fi- dícios para nós históricos — ou seja, fatuais 342 HISTORIA IK)S índios \0 BKASlL

Nilo Veloso e jovens Kaiapalo. Expedição do SPI. 1944. no Kuliseu.

— que nos permitam formar alguma ideia do "outros nós", aos "outros," aos "nào-gente", ou que existia e se passou antes de 1884: figuras seja, dos próprios Kuikuro aos outros Karib. discursivas, imagens, símbolos e construção do aos outros grupos alto-xinguanos, aos povos estilo da memória histórica indígena e sua in- selvagens e aos brancos. terpretação, e fruição de experiências históri- "O APARECIMENTO DOS C.\R\ÍBl\": cas selecionadas como marcos significativos OS KUIKURO COMAM para a rememoração e transmissão dessa tra- A HISTÓRIA DO CONT\TO dição oral (Basso, 1985; Ireland, 1988; Fran- chetto, 1993). Akiná {aki, "palavra, língua(gem)") é termo Pretendemos, aqui, explorar em conjunto Kuikuro traduzível por "narrativa", "estória", indícios factuais, imagens interpretativas e di- qualquer peça de narrativa executada segun- nâmica cognitiva da memória histórica indí- do o estilo oral de domínio sobretudo dos aki-

gena, cujo cerne parece ser, hoje, o evento e ná óto, "dono de estórias '. Narrar é uma arte a questão da chegada dos brancos. A perspec- verbal (Franchetto, 1986, 1989). A vida kui- tiva, como já foi dito, será a contida nas narra- kuro é animada por uma fabulação quase con- tivas de um dos grupos karib dos formadores tínua, que comenta, explica e discorre sobre orientais do alto Xingu, os Kuikuro.^ A quase tudo. Todo viajante, ao chegar à aldeia, história-estória interessa, portanto, em primei- relata aventuras e eventos testemunhados ou ro lugar aos próprios Kuikuro, depois aos ou- ouvidos; executa, assim, suas akiná, cujo con-

tros grupos karib vizinhos e, por último, de mo- teúdo poderá se tornar, com o tempo e filtra- do indireto, fragmentariamente, quando pos- do pela transmissão de conhecimentos, p»u-te sível, aos grupos imediatamente além das do acervo da memória coletÍN*i. tradiçãa en-

fronteiras do subsistema karib e que vêm for- fim. Quanto mais antigas as "estóri^us '. mais mando ao longo dos últimos séculos o chama- elas são 'verdadeiras" {^vkuni) e respeitosa- do sistema intertribal e multilingue do alto mente escutadas pela audiência. Quanto mais

Xingu. A história kuikuro é, como (}ualquer recentes os acontecimentos relatados, me- outra, reflexiva e se dilui até silenciar quanto nos "verdadeiras" elas são para os Kuikurvx mais nos afastamos de seu centro, do "nós" aos confundindo-se com a "fofix^a-mentira" pelos o APARECIMENTO DOS CARAIBA" 343

Aldeia karib ao longo do rio Kuliseu visitada pela expedição do SPI de 1944. efeitos ilusórios inerentes à transfiguração dos cabeceiras do rio Buriti, Agaliúku em Kuiku- fatos em discurso (Franchetto, 1986; Basso, ro, ao sul da atual aldeia de Ipace e próximo

1985, 1987). O género akiná inclui diversos ti- dos limites meridionais do Parque Indígena do pos de narrativas, que vão desde as relativas Xingu (ver Mapa 1). Otí ótomo é a designação às origens de bens culturais, gestas de heróis do conjunto de grupos locais de óti. O termo míticos criadores como Ríti e Aulukúma (Sol ótomo é usado pelos Karib alto-xinguanos pa- e seu irmão gémeo), às "estórias feias", obs- ra definir, de fato, qualquer grupo local, não cenas e "feitas para rir", às "estórias dos anti- importa se ocupe uma aldeia ou uma única ca- gos". E a este último tipo que pertencem as sa isolada; define, assim, uma identidade so- narrativas que podemos reconhecer como con- cial vista sempre como "dona" de um territó- tendo indícios e informações sobre o passado: rio e como grupo parental extenso.^ Em óti giholó kitárâ, "os de antigamente diziam", ou viviam os antepassados dos atuais Kuikuro e tisihurú kitárâ, "nossos (exclusivo) antepassa- Matipu, ainda "todos misturados", ainda não dos diziam" (literalmente, tis-ihúru, "nossas divididos. costas"). Essas akiná se referem a uma época cuja Dentre as narrativas tradicionais, interes- extensão temporal pode ser calculada com sam-nos, aqui, as que contam "o aparecimen- aproximação em cem anos, entre o início do to dos brancos" (karaihá apakipârâ, onde apa- século XIX ou o fim do século XVIII e o início ki é "aparecer de algo-alguém já existente vin- deste, incluindo, portanto, as viagens de Von do de outro lugar"), a origem do ótomo, "grupo den Steinen, personagem este explicitamente local", kuikuro (kuk-oporipârâ, "nosso (inclu- lembrado nas akiná kuikuro. Nessa época, se- sivo) começo" — exatamente no sentido de gundo os Kuikino, havia dois outros grandes origem de qualquer bem cultural), as estórias agrupamentos karib, além do otí ótomo, falan- relativas à época da aldeia de óti, "campo", na do uma mesma variante do Karib alto- região considerada pelos Kuikuro o território xinguano: os Jâramâ ótomo a oeste, ao longo original onde se desenrolam os eventos da me- dos altos cursos dos rios Batovi e Kuliseu, an- mória do passado. Óli se situava, segundo os tepassados dos atuais Nahukwá; e os Ahikú iníonnantes mais velhos, nas proximidades das ótomo ao leste, antepassados dt)S Kalapalo, na )

544 insTt">Ri\ i"His ivnios \i> bkvsm

Ocupação karib dos os brancos matam à procura dos chetes indí- I

formadores orientais do río Xingu { genas, bem como aprisionam e raptam mulhe- VVf^B > res, crianças e também homens. Eis alguns

>c" \nahuk^ exemplos desses blocos narrativos: 1 H >c^ / l^ PI LEONAROOLf o r. "Depois mudaram para outra aldeia no\a- ^S» ><-v«TANGURO,>-' ^ 1 1 A^ -^/l^'^ /kpi«\ madrugada e o pessoal de Aráha estava dan- lfP9 ""^"^I í ^-/ \ y/^KKi ) ) ^VS—~v~J<^ y^ çando ntuhé kwérâ. Escondidos, os soldados / «^ / ^èíLl^-V^ nr/\ AKUKU l»^\5^5w^'' ^(KP) i*«X.^^K^ (atátu) fecharam as pessoas dentro das casas. /!l ^y Golpearam os que ainda estaxam quase dor- ^) r mindo e que tentaram fugir. Morreram. O san- ^ y^T^ "f 7 X «\!/ gue correu como fio d'água [...]. Os caraíba fo- /. ^ ,/\ ^X A% 1 J>UEHHÀn)/ \ até o pessoal Urihihâtâ, sempre noi- y % ram de de te. De novo tentaram fugir por entre as pernas A HdaMSMuae KK2 Kuhikuro(1880)

« "lazsndis" kukuro KK3 AtÂka-unaiuá (1930) dos soldados. Juntaram os mortos e pergunta- • MaiasaniigK KK4 Lamakúl(a(l950) ram: 'Onde está o chefe? Onde está Kuiaici?'. .— limias do PQXM (1972) KK5 Ahagitaharâ(1970) KP1 KalapàkH

res do rio Xingu. dos do perigo, "os mais fracos e ingénuos" fi- Quanto à natureza agressiva dos primeiros cam e acabam morrendo. Obser\e-se que os contatos com os brancos, a abertura das akiná "chefes" mencionados pelas akiná kuikuro são que foram coletadas é esclarecedora: os mesmos que aparecem como "donos" (ó/o), "Os chefes (anétâ) dos caraíba vieram nos líderes dos grupos de óti não apenas no mapa

matando; o nosso pessoal fugia para outras al- 2, desenhado por um \elho Kuikura como deias e logo os caraíba chega\am nos matan- também são celebrados como epônimos dos do todos, contavam nossos antepassados, con- Kuikuro no discurso cerimonial que apresen-

tavam nossos antigos [...]. ta a identidade distinti\a do ótomo kuikuro "Os antepassados caraíba chegaram muito quando pronunciado na abertura das grandes

tempo atrás. Os antepassados caraíba \ ieram "festas" intertribais do alto Xingu (Franchet-

até o Kuluene, montaram acampamento em to, 1989, 1991). Turi. construíram muitas canoas de casca de Segimdo essa versão kuikunx os bnuicv^s jatobá, muitas enfileiradas para matar os nos- cheganun na região de óti. nniito puAuxelmen-

sos antigos. Estavam em Agahúku [...]". te, pelo rio Kuliseu, de onde iiloiuiçimun ;is ca- A primeira parte dessas narrati\as se desen- beceiras do rio Buriti, mais ao leste: aqui dei- volve por episódios sucessivos, numa repeti- xa\am suas embiurações, ponto de p;irtida pa- ção paralelística característica de um estilo de ra sucessiNas incursões. O loc;il de Ag»ihuku arte verbal, a construção de uma cronologia como "porto" dos canul\i é lembnído tiunlHMU do tempo narrativo expressa por deslocamen- em narrati\as dos K;ilapalo (Bassa I9S5h por

tos espaciais dos caraíba de um átomo a ou- issa é plausível pens;u- cjue .is incursõt^s no ter- tro. Em cada episódio-etapa dessas andanças. ritório dos Akuku ótonuK situado mais a su- o APARKCIMENTO DOS CARAIB.V 345

deste, viessem exatamente da região de óti. Es- mero deles morreu nas hostilidades com os se dado se acrescenta à reconstrução da pioneiros". "proto-história" kuikuro proposta por Gertrud A hipótese histórica de Dole, como se vê, Dole (1984:319-20), a partir das tradições orais recua até a metade do século X\III e situa pelo kuikuro e kalapalo e de fontes documentais. menos parte dos antepassados dos Karib alto- As narrativas registradas por Dole entre os xinguanos ao leste do Kuluene, região de on- Kuikuro confirmam os conflitos com bandei- de teriam se deslocado para oeste do mesmo rantes os quais, "vestindo lenços azuis e ama- rio em consequência dos conflitos com ban- relos [...] destruíram plantações e comida [...]. deirantes e onde deviam estar localizados na Os ancestrais dos Kuikuro fugiram para o gran- época os Yarumá, outro grupo karib logo ex- de lago de Tafonuno, na fronteira oriental da tinto mas ainda mencionado por Von den Stei- bacia do alto Xingu. Os caraíba voltaram e ma- nen. A coincidência entre a personagem de Pai taram mais gente. Alguns Karibe resistiram e Pêro das narrativas kalapalo — que encontra- cinco grupos se juntaram para formar uma úni- mos como Paypegi na versão completa cole- ca aldeia na região do rio Kuliseu, do qual mais tada por Basso (1985) — e o bandeirante An- tarde os Kuikuro se deslocaram até o lago por tónio Pires do Campo é convincente. Na eles chamado de Kuhikúru". versão registrada por Basso, Pavpegi é apresen- Dole calcula que o massacre aconteceu por tado como o filho mais moço de Saganafa — volta de 1755. Por outro lado, lembra, uma um Kalapalo que abandona os seus para se jun- lenda kalapalo conta de "um cruel homem tar aos brancos após longa viagem aos confins branco chamado Pai Pêro" que, acompanha- do mundo conhecido — e uma mulher bran- do por índios, atacou repetidas vezes as anti- ca. Os acontecimentos são situados, logo na gas aldeias, levando consigo vários prisionei- abertura da narrativa, no local de Kwapârâ, al- ros. Numa última incursão. Pai Pêro acabou deia contemporânea à de Kalapalo no fim do sendo flechado quando estava sendo carrega- século passado, segundo os Kuikuro, também do em sua rede... "ele nunca mais voltou". Fon- contemporânea, então, da(s) aldeia(s) de óti. tes históricas, enfim, registram os mesmos No mapa 1, colocamos Kwapârâ e Kalapalo na acontecimentos: confluência dos rios Tanguro e Sete de Setem- "Bandeiras para busca de ouro e caçado- bro; é possível que estivessem até mais ao res de índios invadiram a região do rio das leste. Mortes algumas centenas de milhas ao leste As contradições reveladas pelas tentativas da bacia do alto Xingu já por volta de 1663. de datação histórica na base da tradição oral Naquele tempo muitos índios foram levados indígena e das poucas informações documen- como prisioneiros. Um século mais tarde, um tadas mostram a dificuldade de tradução, pa- famoso bandeirante da terceira geração, An- ra nossos esquemas de sucessão cronológica tónio Pires de Campo Júnior, realizou várias fatual, dos indícios encaixados na estrutura e expedições na mesma região, onde dizimou ín- dinâmica temporais do discurso narrativo, que dios 'a ferro e fogo', pois eles representavam por sua vez já é uma codificação da estrutura ameaça para os colonos. Em 1775 Pires de e dinâmica dos processos de rememoração Campo com sua tropa de cinquenta Bororó, oral. Por enquanto, restam perguntas, que tal- que o chamavam de Paí-Pirá, de novo atacou vez possam ser respondidas futuramente com um grupo de nativos no rio das Mortes e cau- o aprofundamento de pesquisas históricas, ar- sou 'perdas terríveis entre os nativos'. Nacjue- queológicas e linguísticas: os antepassados dos la ocasião foi atingido por uma flecha e carre- Karib alto-xinguanos vieram do leste, de além gado para seu quartel numa rede pelos com- do rio Kuluene, para se refugiarem em segui- panheiros Bororó. Ele morreu logo depois". da na região de óti, entre os rios Buriti e Ku-

Conclui Gertrud Dole que "a impressio- luene, ainda antes do fim do século \\ III? Ou nante correspondência entre essas três versões já existiam grupos karib em óti que acabaram indica que os antepassados de pelo menos al- absorvendo os (jue vinham do leste encalça- guns dos grupos karib do alto Xingu estavam dos pelos bandeirantes, que não muito tempo no rio das Mortes há dois séculos e que eles depois incursionaram também em óti a partir fugiram para oeste se adentrando no alto Xin- do rio Kuliseu? Se podemos ter uma ideia da gu. Fica claro, também, que um grande nú- separação entre Kuikuro e Matipu, como \e- 346 mSTORIV DOS i\nios \o iíkvsu

remos adiante, cjiiando se deu a separação des temas do contato \isto pelos Kuikuro. A entre Kiilap;iIo e Xaliukwá, que falam uma primeira, como dissemos, trata de uma crono- mesma língua-dialeto? Desde quando os logia espacial ou das andanças assassinas dos

Xaluikw á habita\am a região entre os rios Bu- caraíba de um ótomo para outro em óti, "pro-

riti e Kuliseu. onde os encontrou Von de Stei- curando os chefes". Mulheres e homens que nen no fim do século passado? espreitam a sua aproximação da beira dos rios De qualquer maneira, as akiná que contam e lagoas se perguntam ansiosos e curiosos se "o apiu-ecimento dos caraíba" no tempo de óti são icéke, ou seja, "não-gente" (kuréhágâ) da fornecem informações quanto a alguns fatos mesma natureza dos seres perigosos, impre- importantes. O primeiro diz respeito ao gran- visíveis, monstruosos em suas transformações, de número de aldeias ou átomo existentes, pro- excessivos, causadores de doenças e mortes já \avelmente formando um sistema de satélites que podem "bater o peito" dos "gente" {kuré menores em volta de um centro maior, a pró- otampa-) ou "comê-los" (kuré ege-), morado- pria aldeia de ótU são assim lembrados os óto- res das matas e do fundo das águas. Os bran-

mo de Ajikúm, líiá, Isagá, Aráha, Urihihâtâ, cos são chamados de icéke até hoje. Aratahârâ, Uahâtâ, Uarihâtâ, Sahutáha, Kuná- A segunda parte introduz as gestas de Kui- rà, Ahakúru, Intárâ, Márâ. A guisa de ilustra- rálu, o herói "vingador", que representa o la- ção de suas akiná, um dos Kuikuro mais ve- do reativo, o contra-ataque, já que ele conse- lhos quis certa vez desenhar no chão um ma- gue, com ciladas, matar os caraíba e "roubar"

pa, aqui reproduzido (ver Mapa 2), da distri- os bens dos brancos. Interessante é observar

buição de alguns grupos de óti ao longo do al- que Kuirálu é também o matador de Pavpegi, to curso do rio Buriti. ou Pai Pêro, na narrativa kalapalo menciona- O segundo fato se deduz das descrições, da, um exemplo de elemento narrativo recor- que exemplificamos, das perambulações dos rente pan-karib:

caraíba, vistos como verdadeiros "caçadores de "Foram-se, os caraíba, para Intárâ [...]. Em índios", de uma aldeia a outra, matando e apri- Agahúku, os antigos não conheciam os caraí- sionando; ou seja, trata-se de uma história de ba. Novamente estes golpearam e atacaram.

ataques, perseguições, massacres e aprisiona- Morreram, enfileiraram os mortos [...]. Kuirá- mentos que, na memória indígena, precedem lu estava lá para matar o chefe dos caraíba, ele as epidemias, para em seguida se confundirem tinha fugido com o seu sobrinho. Cavou um

com elas. Há várias narrativas que relatam o buraco na beira d'água [...] os caraíba chega- desaparecimento de ótomo inteiros como que ram queimando a mata. A noite, os soldados por "suicídios" coletivos em decorrência da foram se banhar; no meio deles estav^a seu che-

quebra de proibições, por exemplo pela po- fe, carregado na rede até a água. Flecharaiu luição de máscaras rituais com sangue femi- e Kuirálu voltou correndo para se esconder no

nino; poderíamos interpretar esses episódios buraco [...]. Os caraíba levaram o corpo do che- como simbolização mnemónica de verdadei- fe até o acampamento e ficariuu esperando ros choques bacteriológicos resultantes de epi- que Kuirálu e outros fugitivos aparecessem. demias. Essa história sangrenta se interrom- Enterraram seu chefe junto com seus perten-

pe, iniciando-se nova fase do contato, no pe- ces, flechas, facas, cobertor, tesouras, tudo [...]. ríodo em que se situa a visita de Von den Kuirálu escondido os observou durante qua-

Steinen. tro dias [...]. Os CiU^aíba se fonun, sobre o tú-

Um terceiro fato é o pano de fundo da aki- mulo ficou uma cruz [...]. Kuirálu se aproxi- há que conta a origem do grupo dos Kuhiku- mou, cavou e desenterrou tudo. Ficou com us rú ótomo, ponto zero da identidade dos Kui- coisas de ciu^iulía. O chefe deles foi aquele que

kuro de hoje. Examinemos, a seguir, cada um as tinha trazido e que tinha sido morto [...]. Os desses fatos, procurando reconstituir mais in- caraíba foram para o córrego das palmeiras

dícios e, ao mesmo tempo, prestando mais kâá, onde Kuinílu estav^a cortando uma pvilmei-

atenção, agora, à visão indígena da história do ra bem alta [...] ele derrulxni uma ^xilmeira que

contato. caiu sobre a ciuioa dos c;u\ul>a e a ;itimdou [...] Vbltemos à história contada pelos Kuikuro. outros caraíba tinham deixado nuntas carabi-

Podemos dividir a akiná sobre "o aparecimen- nas encostadas nas árvores [...]. .\i estav^i Kiú-

to dos caraíba" em quatro partes, quatro gran- rálu, nosso vingador, p;u-a pegiu* ;is arm;is". o APARECIMENTO DOS CARAIBA" 347

Kuirálu não é o único "herói vingador" das Os grupos de óti narrativas kuikuro. Em outras contam-se as pe- ^^ y^Oq 7

raíba darem 'presentes' [...]. Chegaram as fa- emblemas de identidades sociais contrastivas. cas, os machados, poucos. Era outro o instru- Robert Carneiro (1957) calculava, em sua vi- mento para cortar, nos tempos antigos. Con- sita aos Kuikuro em 1953-4, que Kuhikúru de- :

34S 111STl^RI\ rXlS índios \0 BRVSIl

\ ia ter sido abuiiclonacla ciuareiUa anos antes, po das viagens dos caraíba. Contam os anti- depois de uma ocupação de \inte ou trinta gos que os colares de olho de peixe' eram en-

anos, o que corresponde à época da \ iageni terrados com os mortos. Kálusi foi embora. de \bn den Steinen. Passou um ano e o pessoal de Kuhikúru via- Kiílusi é uma fieira importante. Seíjimdo os jou até os caraíba, até as aldeias dos Bakairi. \elhos Kuikura ele não apenas \eio '"para tro- De lá trouxeram a tosse. Tinham ido buscar car bens", como também "trocou seu nome", facas, contam. Deram facas, tesouras, macha- sinal definido de amizade; ainda hoje existe e dos. Veio a tosse". é transmitido o nome de Kálusi no alto Xin- As akiná kuikuro nos contaram uma histó- gu. A partir desse momento a tradição oral in- ria que de algum modo configura uma ima- dígena corre paralela, com alguns desencon- gem do que se passou até \bn den Steinen. tros, à história documentada. De fato, o explo- uma história de conflitos sangrentos com os rador alemão não alcança as aldeias karíb do brancos, de fugas, abandono de aldeias, des- Kuluene; é entre os Nahulcvvá do Kuliseu que locamentos, epidemias, com ciclos de crises é informado da existência de um grupo cujo e recuperações demográficas ("ficaram pou- nome ele registra como Puikuru, Guikuru ou cos", "ficaram muitos de no\o"). E possível que Kuikutl. mais ao leste. Também a passagem de os grupos de óti. estabelecidos entre os rios \'on den Steinen se tornou um conteúdo das Kuliseu, Buriti e Kuluene, tivessem sido for-

akiná karib e, muito provavelmente, de todos mados ou, possibilidade mais interessante, ti-

os grupos alto-xinguanos: vessem absorvido grupos karib v indos do les- Tempo depois, quando ha\ia muitas crian- te do rio Kuluene. Houve, assim, a consolida-

ças, chegou Kálusi [...] na época em que os ca- ção progressiva e processual do subsistema

raíba já eram bons [...]. Le\aram as coisas tra- karib alto-xinguano que, sofridos subsequen- zidas por Kálusi no meio da aldeia para a par- tes reordenamentos territoriais e redimensio-

tilha [...]. Os antigos saíram das casas, as namentos populacionais, existe até os dias de

mulheres fizeram fila [...]. Os chefes deram os hoje. Recuamos até, aproximadamente, mea- colares nas mãos das mulheres, colares bran- dos do século XVTII; não podemos excluir, ahás

cos, miçangas olho de peixe' [...]. Depois as é plausível considerar, a hipótese de que as facas para os homens, machados, anzóis... Foi consequências do contato, embora ainda in- Kálusi que trouxe primeiro as miçangas, mui- direto, alcançassem a região já naquele tem- to tempo atrás, dizem as mulheres. Partilha- po limite da memória histórica. Não seria por

ram tudo [...]. Kálusi foi trocando por colares demais conjetural projetar nesse passado mais

de caramujo [...]". longínquo as vicissitudes dos alto-xinguanos

A última parte da narrati\ a fala das % iagens que podemos acompanhar a partir de \bn den para as aldeias Bakairi, já deslocadas ao sul no Steinen. rio Paranatinga e em contato intenso com as O SÉCIXO XX NO ALTO XlNGl frentes colonizadoras, após a partida de Kálu- HISTÓRU INDÍGENA si, de onde os alto-xinguanos retornam com E HISTÓRIA ESCRITA mais bens e com doenças, primeiro registro ex- plícito das epidemias. As "coisas" dos caraíba \bn den Steinen nos deixou um quadro bas- são assim representadas nas akiná por três tante detalhado do pov OiUiiento da bacia do al- perspectivas: num primeiro momento são to Xingu no fim do século passado. Graças a "roubadas", depois objeto de trocas, enfim as- ele, temos uma ideia do número de aldeias e sociadas claramente às doenças. A partir des- de habitantes: 3 mil índios, pelos cálculos te último, os brancos passam a ser chamados, apro.ximados do viajante, distribindos nimia re- também e até hoje, de kuríhe, termo que de- de de numerosos grupos locais de língiuis di-

signa o feitiço acionado pelos kurihé óto, os ferentes e relacionados entre si. .\ siviedade "donos de feitiço", outra causa de eventos de alto-xinguana já existia; em cada iildeia, \"on doença e morte: den Steinen encontra indi\ íduos punenientes "Começaram as mortes. Chegaram as de outras, \isitantes ou residentes.

doenças-feitiço (kuríhe). Ficamos poucos [...]. .\ primeira expedição em 1SS4 r^iilizii o le-

As flechas feitiço voaram. Muitos morreram. \ antamento get)grátlco do curso do rio Xingu. Os de Kuhikúru acabaram, acredite, no tem- Partido de Chiiaba, o explorador ;ilcança as o APARECIMENTO DOS CARAÍBA 349

nascentes do rio Batovi, desce até a confluên- linguístico karib com diferentes dialetos e cia com os rios Ronuro e Kuliseu e, finalmen- acrescenta que "os Bakairi possuem um sen- te, entra no rio Xingu. Ao longo da viagem, en- timento de nacionalidade mais pronunciado, contra várias aldeias indígenas: as dos Bakairi pois todos eles se chamam de Bakairi, quer ha- (Karib) "mansos" dos rios Paranatinga, Novo bitem a nascente do Arinos, quer do Parana- e Arinos e quatro dos Bakairi do rio Batovi. tinga, do Batovi ou do Kuliseu". Recebe informações sobre os Kamayurá e os Sintetizando a situação encontrada por Von Nahukwá ao leste, sobre Kustenau e Trumai den Steinen, as aldeias Aweti, Yawalapiti, Ka- mais rio abaixo, e sobre os . Ainda no Ba- mayurá e Trumai estavam nas margens do rio tovi depara com os Kustenau; prosseguindo, na Kuliseu entre 12°30' e 12° de latitude sul. O embocadura do rio Kuliseu encontra os Tru- mesmo valia para as aldeias Waurá e Kuste- mai. Já em pleno Xingu, lá estão os Suyá com nau nas margens do Batovi. Apesar da depo- dez Manitsawá deles prisioneiros. E um ma- pulação que reduziu drasticamente o número pa desenhado na areia por um velho Suyá in- de aldeias e extinguiu os Kustenau, cujos pou- dicando a localização dos grupos do Kuliseu cos sobreviventes foram absorvidos pelos Wau- e do Kuluene que convence Von den Steinen rá, podemos afirmar que esses grupos perma- a empreender a sua segunda viagem, agora neceram no mesmo território até hoje. Os gru- com o objetivo de explorar detidamente o cur- pos karib do Kuluene ocupavam as margens so do rio Kuliseu. do dito rio entre as latitudes 12° e 13° sul. Co- Em outubro de 1887, Von den Steinen vol- mo veremos a seguir, houve a partir da passa- ta ao rio Batovi (Steinen, 1940:191-7); supera- gem do século mudanças da localização dos do o divisor entre este e o Kuliseu, atravessa Karib alto-xinguanos em decorrência da inten- a porção ocidental do território karib. Quatro sificação do contato. De qualquer maneira, aldeias bakairi constituem passagem obrigató- eles se consideram até hoje os senhores da re- ria antes de se chegar às três aldeias nahukwá gião entre Kuliseu e Kuluene, incorporando do Kuliseu. Mais rio abaixo, estão localizadas nela os sítios ocupados no século passado. três aldeias mehináku (arawak), uma aweti (tu- Três outras expedições alemãs retomam os pi), duas yawalapiti (arawak), quatro kamayu- rastros de Von den Steinen. Em 21 de maio rá (tupi) e uma araweté, grupo que Von den de 1986, Hermann Meyer e sua caravana dei- Steinen considera um "cruzamento de Yaula- xam Cuiabá para uma viagem de sete meses piti e Aueto". No Kuluene, acima da confluên- pelos rios Jatobá e Ronuro até as cabeceiras cia com o Kuliseu, os Trumai, sofrido mais um do Xingu, e voltam pelo Kuluene e Kuliseu ataque dos Suyá, planejam instalar-se na aldeia (Meyer, 1897a, 1897b). Retornava três anos de- aweti. Quanto aos Karib do Kuluene, Von den pois à mesma região, contatando novos grupos Steinen resume as informações obtidas na pri- karib, mas sem conseguir alcançar os Nahukwá meira aldeia bakairi do Kuliseu, dando as coor- e os Akúku (Kalapalo) mais afastados do per- denadas geográficas a partir daquele ponto: os curso. Meyer fez importantes observações so- Anuakúru ou Anahuku a sudeste (são os nos- bre as mudanças ocorridas (Emmerich, sos grupos de óti), os Aluiti ou Kanaluiti ao les- 1984:43). Observou uma tendência de as al- te, os Yamurikumá ou Yaurikumá de leste pa- deias se aproximarem do Kuliseu, o qual, da- ra leste-sudeste, os Apalaquiri a leste-nordeste, das as relações entre os Bakairi do Kuliseu e os Puikuru a leste-nordeste (os de Kuhikúru), do Paranatinga, passou a assumir cada vez mais os Mariápe a nordeste. Conclui que, incluin- o papel de via de acesso de bens industriali- do os Guapiri, Yanumakapu e Naliukwá do Ku- zados. Das aldeias bakairi, uma tinha desapa- liseu, existiriam nove aldeias "nahukwá". Von recido e as outras mostravam sinais de declí- den Steinen reconhece que "cada aldeia tem nio; grande parte de seus moradores já ha\ ia seu nome e o estrangeiro não pode, ao ouvi- se transferido para o Paranatinga, atraída pe- lo, discernir se se trata de uma tribo nova ou los patrícios "mansos" e pela facilidade de ob- de outra já conhecida". Muito provavelmente tenção de bens "civilizados". Além disso, su- havia mais "aldeias" ou grupos locais além dos cessivas epidemias se abateram sobre os gru- mencionados em toda a região entre Kuliseu pos situados nos caminhos de entrada do alto e Kuluene. Von den Steinen usa o termo "na- Xingu, os Bakairi e Nahukwá do Batovi e do hukwá" para referir-se a um agrupamento Kuliseu. 350 lusuMxU nos i\nu)s xo hkvsii

Max Schiuidt (1905, 1942), outro disc ípulo \iróticas, contraídas entre seus patrícios semi- da escola etnológica de Berlim, ietoina\ a coi»- ci\ilizados ou 'mansos'; os sobrex iventes se in- tuto com os Bakairi, Niiliukwá e Mehiiiáku do tegraram às duas aldeias Bakairi do Parana- Kuliseu por ocasião de sua expedição em Ma- tinga". to Círosso em 1900-1. Schmidt nos faz saber No segundo período da história documen- que o Bakairi António, guia de Von den Stei- tada do alto Xingu, entre 1915 e 1946, há dois nen e de outros viajantes, tinha voltado ao Xin- novos fatores, inter-relacionados, em jogo. Em gu em 1886 trazendo índios xingnanos em vi- primeiro lugar, as terras do Mato Grosso co- sita às aldeias do Paranatinga, acontecimento meçaram a ser valorizadas para fins de colo- registrado nos relatos kuikuro (Emmerich, nização. Em segundo lugar começou a se con- 1984:45). Menget (1977:15) resume os resul- cretizar a vontade política de proceder à ocu- tados dessa primeira tase do * contato científi- pação e exploração dos territórios que esta\am co" que "possibilitou calcular aproximada- sendo mapeados pelas expedições militares da

mente a população indígena, identificar a fi- Comissão Rondou. Se o alto Xingu ficou pre- liação lingiiística de cada tribo, comparar essas servado da invasão dos seringalistas, dada a au-

sociedades [...] com os grupos indígenas já co- sência da matéria-prima, a borracha, em suas

nhecidos no Brasil [...] as expedições tiveram matas, foi, contudo, alvo dos planos da Comis- a curto prazo conseqiiências muito mais ne- são Rondou, que realizou duas expedições, em fastas para os próprios índios. Os Bakairi do 1920 e em 1924. Na figura e na idelogia do alto Xingu, primeiro grupo encontrado por marechal Cândido Mariano da Sil\a Rondon \'on den Steinen em 1884, retomam as rela- se unificavam o espírito da conquista, do "des- ções interrompidas com seus irmãos do Para- bravamento" do interior brasileiro, e o indige- natinga, já aculturados e explorados pelos fa- nismo inspirador do Ser\ iço de Proteção aos zendeiros locais. As oito aldeias recenseadas Índios, órgão do goxerno brasileiro criado pelo explorador alemão em 1884 no alto Ba- em 1910. tovi e no alto Kuliseu haviam desaparecido to- O capitão Ramiro Noronha (1952) inaugu- talmente em 1914. Cronologicamente, o segun- ra a exploração do rio Kuluene em 1920, após

do serviço a eles prestado pela civilização oci- ter fundado o Posto Indígena (P. I.) Simões Lo- dental (depois dos pagamentos pelo seu pes ou Bakairi, no rio Paranatinga. Na \iagem

trabalho como guias e pelos objetos 'de cole- encontra "Cuicuru, Calapiílo, Navuquoro ' e ção' etnográfica) foi a gripe e outras doenças no Kuliseu os "Nahuaquá"'. O posto de assis-

Na aldeia kuikuro, servidores do SP! (na foto Nilo Veloso) recebem pequi fermentado dos índios: troca de "presentes". Expedição ao longo do rio Kuliseu, 1944. o APAKKCIMENTO DOS CARAIBA 351

tência aos Bakairi do Paranatinga já estava li- gado por uma estrada à cidade de Cuiabá e até 1946 o P. I. Simões Lopes foi a porta de entrada para o alto Xingu. índios dessa região visitavam o posto com frequência. Foram sem dúvida esses contatos que, mais uma vez, pos- sibilitaram a difusão de doenças que reduzi- ram ainda mais e de modo drástico a popula- ção alto-xinguana. Em 1931, Vincent C. Petrullo (1932), pro- curando notícias do coronel inglês Percy Faw- cett, desaparecido alguns anos antes, percor- re de barco e sobrevoa com um hidroavião Kuluene e Kuliseu. Petrullo acrescenta aos grupos karib já conhecidos outros como os Na- ravute, Tsuva e .\ipatse. Em 1944-5, continuan- do as atividades da Comissão Rondou, a equi- pe do cineasta Nilo Veloso visitou Kuluene e Kuliseu (Veloso, 1947). Até então, os grupos alto-xinguanos, em particular os karib, apesar de já terem sofrido uma queda demográfica, continuavam nos mesmos territórios do fim do século XIX. Os anos 40, contudo, representam a mudança mais dramática deste século, com o recrudescimento das epidemias e a entrada em cena da Expedição Roncador-Xingu, que acaba instalando definitivamente a presença entre os índios dos "caraíba", agora agentes in- tecimentos testemunhados em primeira pes- Em cima: digenistas. soa pela geração dos atuais akiná óto, por isso Distribuição de "presentes" dos ano de 1943 foram criadas pelo gover- relato ainda atual, narrativa que não pode ser No Caraíbas em uma no de Getúlio Vargas a Fundação Brasil Cen- considerada ainda parte da memória tradicio- aldeia karib do tral e sua frente de campo, a Expedição nal. Lembram como chegaram as notícias do Kuliseu. Expedição do SPI de 1944. Roncador-Xingu, o objetivo colonizar "aparecimento" dos caraíba entre os Kalapa- com de Embaixo: toda a região de Goiânia à Amazónia." Em lo, o pouso dos aviões e a decisão de alguns índios posam com 1946, a expedição, integrada pelos sertanistas curiosos de partir para as cabeceiras do Ku- roupas dadas pela expedição do SPI, Cláudio, Orlando e Leonardo Villas Boas, atin- luene para ver de perto as novidades, sempre 1944, rio Kuliseu. giu as cabeceiras do rio Kuluene, onde foram na expectativa de conseguir os já cobiçados abertas duas pistas de pouso, embrióes dos pri- bens industrializados. Lembram como entre meiros postos militares do Xingu, Garapu e Se- esses curiosos estivessem alguns Kamayurá e te de Setembro. Logo foram estabelecidos os Yawalapiti, que iriam levar os expedicionários contatos com a população karib dos rios Tan- até o Jacaré, na confluência dos formadores, guro. Sete de Setembro e Kuluene. Assim, os antigo sítio trumai, onde surgiria a maior ba- Akúku, Kalapalo e Naravute passaram a fre- se militar aérea do Brasil Central, estação de quentar assiduamente outro posto da expedi- controle da rota Rio de Janeiro-Manaus- ção, o posto Kuluene (12°44'40" de latitude Miami. Graças a uma aliança firmada naque- sul). A expedição partiu desse ponto rumo ao le momento no Kuluene, Kamayurá e Yawala- Morena, confluência dos formadores e origem piti se tornariam os grupos "de confiança" dos do rio Xingu, não sem deixar os grupos karib irmãos Villas Boas, já ocupados em organizar contaminados pela gripe. a fixação da assistência indigenista no alto Xin-

Os Kuikuro lembram a chegada dos Villas gu. Os Yawalapiti, dispersados por várias al- Boas e contam as akiiiá "Orlando apakipâra' deias, numa fase crítica de sua sobrevivência, ("o aparecimento de Orlando"), akiíiú consi- encontrariam nessa aliança a possibilidade de derada "não verdadeira", já que trata de acon- sua reconstituição enquanto grupo distinto ao 352 HISTORIA miS índios no BHVSIl

reerguer uma aldeia estrategicamente apoia- teriores à aldeia de Kuhikúru. Os Kalapalo, ab-

da ao P. I. Leonardo. Entre os curiosos que as- sor\'idos alguns poucos sobre\ iventes dos des- sistiam às operações da Expedição Roncador- cendentes dos antigos Akúku, Kanurijahátá e Xingu no Kuluene, havia um índio que iria ser Agarahâtâ (os Naravute ou Navuquoro men- guia dos bnuicos da expedição até suas aldeiiis, cionados por viajantes e pesquisadores), já es-

um Kuikuro, descendente de Naliukwá, taini- tavam reunidos em volta do P I. Kuluene, aco- liiu-izado com a língua portuguesa por ter tra- lhendo os expedicionários e em processo de

biilhado no P. I. Bakairi Simões Lopes e nas abandonar as aldeias mais afastadas. Os fazendas \izinhas. Lembram que foi esse pri- Niihukwá, osjâramâ ótomo, do Bato\i e do Ku-

meiro guia dos brancos a exercer, daí em dian- liseu e os Matipu, os Uarihâtâ ótomo que ti-

te, o papel de "dono dos caraíba", mediador nham ficado na região de óti após a separação prestigiado, poderoso e imejado entre os dois dos Kuhikurú ótomo, ha\iam já pago um pre- mundos, um novo género de "chefia" hetero- ço alto por estarem situados nos antigos pon- doxa e conflitiva. Lembram que foi "o dono tos de acesso ao alto Xingu. Dizimados, 28 de caraíba" a convencer os Kuikuro a acatar Nahukwá e dezesseis Matipu se juntaram por os planos da administração do recém-criado volta de 1950 na aldeia de Mahjapéi, sítio dos Parque Indígena do Xingu e abandonar suas Mariape de Vbn den Steinen no baixo Kuluene. aldeias tradicionais, num mo\imento, como ve- O ano de 1954 é duplamente significativo remos, dramático e ine\itável. Além disso, os para os índios do alto Xingu. Nele foi criado

próprios Yawalapiti que tinham encontrado re- o P I. Capitão Vasconcelos (depois P L Leo- fugio entre os Kuikuro durante a fase de crise nardo Villas Boas), novo ponto de referência de seu grupo funcionariam como instrumen- para a procura de assistência médica e de bens to de aproximação entre seus antigos anfitriões industrializados, principais sustentáculos do e os novos "chefes" brancos. regime tutelar e da dependência em relação

A entrada da Expedição Roncador-Xingu aos brancos. O P 1. Leonardo passou, assim, significou a retomada, agora de modo mais sis- a representar o marco definitivo da presença temático, de pesquisas científicas. Em 13 de do Estado brasileiro em território indígena, fevereiro de 1947 foi apresentado ao Depar- centro de irradiação de uma experiência, a dos tamento Cultural da Fundação Brasil Central irmãos Villas Boas, que se tomaria um filão da o plano de investigações por parte de antro- tradição indigenista nacional. A fórmula \illas- pólogos e naturalistas do Museu Nacional do boasiana seria uma síntese de presenacionis- Rio de Janeiro, entre os quais Eduardo Gal- mo isolacionista, proteção efetiva com gradual vão, Pedro Lima, Helmut Sick.^ As viagens de e controlada integração dos índios, niimuten- pesquisas foram realizadas entre 1947 e 1952 ção de um espaço imemorialmente indígena e dos relatórios de seus resultados depreen- apropriado pelo Estado como reser\-a não so- demos, em particular, uma nova configuração mente para seus habitantes originais, como da ocupação dos grupos karib e as perdas de- também para outros grupos que ali iriiuu "se

mográficas. Estamos aqui nos referindo espe- refugiar", uma \ez que suiis terras fossem li- cificamente às informações contidas nos rela- beradas para a colonização. tórios de Pedro Lima que visitou os Karib em No mesmo ano de 1954 uma violenta epi- 1948 e em 1952 (Lima, 1950a, 1950b). demia de sarampo abiilou ainda mais o iilto Se em 1947 ainda existia uma pequena al- Xingu. O sarampo atingiu todas as lUdeias, Os

deia tsuva perto da lagoa de Tahunúnu e ou- grupos karib mais iiíastados do P \. Leomu"- tra igualmente reduzida dos Aipatse próxima do, enfracjuecidos e apa\orados, resoKenun do local da atual aldeia kuikuro, em 1949 só aceitar as propostas dos \'illas Boas de muda- restava uma casa tsuva com dezesseis pessoas rem suas aldeias para perto do posto: no co- e em 1951 podiam ser identificados remanes- meço dos anos 60 um nun imento genil deslo- centes tsuva e aipatse entre os Kuikuro. Es- cou os Kuikuro e os Kalap^Jo dos ;iltos Kuli- tes se encontra\am ainda dentro dos limites seu e Kuluene para o baixo Kuluene. .\o

de seu território tradicional, subindo mais al- sanuupo de\emos acrescentar outra torte ra-

gumas horas o Kuluene, em duas aldeias qua- zão que compelia ao abandono d;is antig;is ;il- se geminadas chamadas de Lahatuá e Atàka, deias. Com a concivti/açào do ptvjelo do Par- nas margens dos lagos homónimos, sítios pos- cjue Indígena do .Xingu em 1961. os limites me- o APARECIMENTO DOS CARAIBA" 353

ridionais da reserva excluíram as terras awe- gripe com letalidade de 13,8%; 1954, saram- ti, mehináku, kalapalo e kuikuro. Somente em po com letalidade de 26,66%; a partir de 1970, 1968 e em 1971 foram sucessivamente incor- aumento anual de 1,9%; 1968, 109 pessoas; porados esses territórios, estabelecendo a fron- 1980, 169 pessoas; 1984, 191 pessoas (Agosti- teira sul do parque na altura da latitude 13° nho, 1973; Basso, 1981; arquivo PIX, CEDI-SP); sul. Com a demarcação realizada em 1978, es- 1987, 229 pessoas (EPM); 1990, 249 pessoas se perímetro passou a representar para os ín- (EPM). dios dos formadores o fechamento definitivo Matipu-Nahukwá: 1947, 44 pessoas; a par- de seus territórios. Os Kalapalo se transferi- tir de 1963, aumento anual de 4,1%; 1977, 68 ram, assim, para a localidade de Aiha e os Kui- pessoas; 1984, 74 pessoas nas duas aldeias de kuro para Ipace, sítio do já extinto grupo ho- Marijapéi e de Agahâga (Agostinho, 1973; Pic- mónimo (os Aipatse da literatura etnográfica). chi, 1983; arquivo PIX, CEDI-SP); 1987, 84 pes- A partida de Lahatuá foi dolorosa; lá, lembram soas (EPM); 1990, 102 pessoas (EPM). os velhos, deixaram os mortos do sarampo, en- CHEGANDO AO SÉCULO XXI: terrados às pressas em valas comuns; a aldeia PERSPECTIVAS PARA O FUTURO era grande e bonita, com muito peixe, muito pequi e muitos caramujos, matéria-prima dos O sistema social e político da região dos for- preciosos colares karib. madores do rio Xingu é produto histórico de Os anos 50 se fechavam com um balanço muitos séculos e o processo de sua formação dramático para os povos dos formadores. Fe- continua em face de novos acontecimentos e lizmente, entre 1960 e 1970 o processo de de- por meio de novos redimensionamentos. população se inverteu e deu lugar a uma len- Com as epidemias sob controle, a redução ta mais gradual recuperação, com a consoli- significativa da mortalidade e o incremento po- dação de uma assistência médica constante e pulacional, este fim de século XX representa, eficaz e com o início das campanhas de imu- pelo menos, uma definitiva recuperação demo- nização, frutos positivos do reconhecimento gráfica e prepara uma nova fase de reprodu- oficial e internacional do parque. Com isso, por ção de grupos locais em um maior número de outro lado, os índios alto-xinguanos se torna- aldeias. Por outro lado, assiste-se, desde a saí- vam cada vez mais dependentes dos brancos, da dos Villas Boas da administração do Par- protetores e fonte aparentemente inesgotável que Indígena do Xingu em 1975, e após su- de bens. cessivas e atribuladas gestões da Funai, a um Cabe aqui dar uma ideia do perfil das vi- progressivo declínio da assistência oficial, uma cissitudes demográficas da população alto- crise hoje em dia crónica e irreversível. xinguana dos formadores à guisa de ilustração. O rearranjo territorial dos ótomo alto-xin- Em 1887, Von den Steinen calculava a popu- guanos parece ser agora influenciado não tanto lação da região em 2500 até 3 mil pessoas, com pela dependência dos postos de assistência um número de aldeias estimado entre 28 e 34. dentro do parque, como acontecia na época Em 1926, o cálculo desce para 1840 pessoas de maior fragilidade e de presença mais sóli- em doze ou treze aldeias; em 1948 são cerca da do indigenismo de Estado. Há hoje um mo- de 735 índios em nove aldeias. Segundo da- vimento espontâneo que, por um lado, volta dos da Escola Paulista de Medicina (EPM), a a obedecer, na medida do possível, à lógica po- população alto-xinguana cresceu para cerca de lítica interna das fissões dos ótomo e, por ou- 1500 pessoas em 1987, e para 1659 em 1990. tro lado, se dirige cada vez mais para o exte- Se tomarmos mais especificamente os grupos rior, para os centros urbanos mais próximos, karib, temos o seguinte quadro: como as cidades "de fronteira" de São José do Kuikuro: 1947, 130 pessoas; 1954, sarampo Xingu e de Canarana, onde os índios se de- com letalidade de 6,71%; a partir de 1970, au- frontam, agora sem mediações, com novas ex- mento anual de 1,3%; 1981, duzentas pessoas; periências. Cresce a consciência dos limites 1984, 221 pessoas (Agostinho, 1973; Franchet- definitivos do parque, de seu perímetro não to, 1986; arquivo Parque Indígena do Xingu mais circundado de florestas virgens, mas sim (PIX), CEDI-SP); 1987, 240 pessoas (KPM); 1990, por um anel de fazendas; cresce, assim, a cons- 277 pessoas (KVM). ciência da necessidade de fiscaliziU" permiuien- Kalapalo: 1947, 142 pessoas; 1946, surto de temente esses limites e de ocupar a faixa pe- 354 msTOKU nos i\nic>s nd bk\sii

ritérica do purciue, controlando as intrusões, norias indígenas, aprendendo, por exemplo, a os desmatamentos e a poluição das nascentes. reivindicar o controle sobre a venda da ima- Os Kuikiira por exemplo, continuam pensan- gem, uma vez que o alto Xingu se firmou co- do em \oltar a seus antigos territórios — Ta- mo "o cartão-postal" do índio genérico brasi- hunúnu e Laliatuá — nunca de fato abando- leiro por meio de fotos, filmes, reportagens. nados, já que continuaram a ser visitados pe- A dependência definitiva dos bens indus- riodicamente. trializados e a crise da assistência oficial exi- Inicia-se outro capítulo da história alto- gem que os índios procurem formas de inser- xinguana. No\os arranjos das alianças políti- ção no sistema caraíba que lhes permitam cas internas estão se delineando, incluindo, manter-se como consumidores sem perder sua agora, não apenas os kúre, os próprios grupos autonomia das leis de mercado dos brancos e dos formadores, mas também, os "outros ín- sua diferença cultural. Há hoje no parque pro- dios", os gikóro, os "bárbaros" definitivamen- fessores e monitores de saúde, tratores, cami- te vizinhos dentro dos limites do parque (Ka- nhões, antenas parabólicas, energia solar, rá-

Niibi, Ka\^ipó, Txikão), ou aliados potenciais nu- dios em cada aldeia, enfermarias, bicicletas, ma identidade geral de "índios" fora desses gravadores... os velhos morrem e os jovens es- limites. As políticas internas estão cada vez tão se mostrando cada vez mais fascinados pelo mais se projetando e assimilando problemas universo caraíba, empreendem \iagens para as para além do mundo indígena: Funai, políti- cidades, circulam por Brasília, São Paulo, Rio cas goxernamentais; uma pluralidade de orga- de Janeiro... projetos e propostas "educacio- nizações assistenciais que se apresentam com nais" se sucedem, com escolas e experimen- soluções para os problemas de sobrevivência tos de alfabetização... pesquisadores e produ- e dependência, e com as quais os índios têm tores de imagens de todos os tipos continuam que saber negociar e barganhar; saber dos di- frequentando o parque... e os alto-xinguanos reitos bem ou mal assegurados pela lei às mi- continuam com o mesmo orgulho de serem os

Os irmãos Villas-Boas. O gesto da dádiva dos caraíba imortalizado em estúdio. o APARECIMENTO DOS CARAIBV 355

índios "de verdade", pacificadores e civiliza- parativo, são os de Ellen Basso e de Thomas dores de um mundo que é selvagem, espan- Gregor. Entre os trabalhos não publicados, toso em suas invenções e poder de sujeição. menciono o de Eduardo B. Viveiros de Cas- tro sobre os Yawalapiti. Apesar de não existir FONTES até hoje nenhum estudo aprofundado sobre o As principais informações sobre as sociedades sistema intertribal alto-xinguano, cada uma das indígenas da bacia dos formadores do rio Xin- obras mencionadas contém informações gerais gu anteriores aos anos 40, início das pesqui- sobre ele; estas podem ser encontradas tam- sas científicas com trabalho de campo, estão bém na introdução da tese, não publicada, de contidas nas crónicas de viagem dos explora- Patrick Menget sobre os Txikão, grupo karib dores alemães Karl von den Steinen, Hermann não pertencente ao sistema alto-xinguano, mas Meyer e Max Schmidt. Destacam-se as duas hoje em dia vivendo às suas margens. obras de Von den Steinen, com tradução em Com relação às informações arqueológicas, português de difícil acesso e sem reedição des- infelizmente dispomos apenas dos resultados de 1942; seus relatos, de leitura extremamen- de investigações preliminares realizadas por te agradável, são ricos em dados etnográficos Simões, Dole e Monod (publicados somente e históricos. os dois primeiros). Dos trabalhos produzidos na primeira fase Para quem queira saber mais sobre a histó- das pesquisas modernas, o mais importante é ria do alto Xingu e do processo de criação do o de Eduardo Galvão, onde se propõe a defi- Parque Indígena do Xingu, com dados mais re- nição do alto Xingu como "área cultural" com centes e contextualizados no cenário da polí- características específicas, área de refugio mul- tica nacional, são relevantes a argumentação tilíngiie. jurídica do procurador Gilmar Ferreira Men- O período posterior à década de 40 enri- des, baseado em Laudo Antropológico (Fran- queceu os conhecimentos sobre o alto Xingu chetto, 1987), e a dissertação (não publicada) graças, sobretudo, a uma intensa produção de de M. Lúcia Pires Menezes. Ambos os traba- etnografias sobre os diferentes grupos. Entre lhos reconstroem a ocupação indígena imemo- os trabalhos publicados, os de maior peso e al- rial do parque e a negociata de terras em Mato cance, tanto do ponto de vista de detalhamento Grosso, nas décadas de 50 e 60, que levou à descritivo como pelo alcance teórico e com- tentativa de loteamento do território do parque.

NOTAS (3) Veja-se Seeger (1978) para uma análise das influên- cias alto-xinguanas na cultura dos índios Suyá, grupo

(1) Os Karib alto-xinguanos — Kuikuro, Kalapalo, Ma- jê do alto curso do rio Xingu. tipu, Nahukwá — ou pelos seus etnônimos — Laha- (4) As narrativas kuikuro que constituem fontes da his- tuá ótomo, Aiha ótomo, Uarihâtâ ótomo, Jâramâ áto- tória oral foram coletadas durante pesquisa de cam- mo — formam junto com Bakairi, Txikão e Arara o po realizada em 1981 e 1982 na aldeia de Ipacejunto conjunto karib meridional, ao sul do rio Amazonas. aos "donos de estórias" Ijáli, Atahúlu, Náhu e Irúka. Dentro desse conjunto, podemos reconhecer dois sub- (5) O termo ótomo pode se referir também ao con- conjuntos linguisticamente diferenciados: de um la- junto de parentes considerados não afins da mesma do os grupos da bacia dos formadores do rio Xingu geração de ego (Basso, 1973; Franchetto, 1991). e, do outro, Bakairi e Txikão-Arara. A proposta dessa (6) A narrativa sobre a origem do ótomo kuikuro co- divisão precisa ser melhor fundamentada linguistica- loca este evento claramente numa dimensão históri- mente e, se confirmada, levaria a uma revisão da clas- ca, ao alcance da memória fatual, é uma "estória" de sificação corrente dos grupos karib (Durbin, 1977). tipo secular. Nesse sentido, contrasta com a narrati\ a (2) As evidências normalmente apresentadas para sus- sobre a origem dos brancos, de natureza mítica, on- tentar a hipótese da precedência de migrações de po- de estes são colocados como criação do herói "triks- vos arawak seriam: o fato de serem grupos ceramis- ter" Ríti ao lado das outras duas categorias do uni- tas cujos artefatos parecem pertencer à mesma tradi- verso humano: os kúre ou "gente de verdade", que se- ção ceramista encontrada em sítios arqueológicos; o riam os povos dos formadores, e os 0kóro, "os conservadorismo cultural e a chefia centrafizada dos bárbaros", "outros índios". grupos arawak atuais e o "respeito" com que são tra- (7) A Fundação Brasil Central (FBc) e a Expedição tados pelos outros grupos dos formadores; a origem Koncador-Xingu (KHX) foram empreendimentos de de vários rituais a eles atribuída pelos seus vi/.inhos; cunho militar-econômico-científico cjue abriram vastas o léxico arawak de vários cantos rituais e da maior par- regiões à exploração económica e ao controle mili- te das fórmulas de cura e mágicas. tar, contatando e "pacificando" vários grupos indíge- 356 mSTOKIV DOS índios no BKASll.

nas ao longo de sua penetração. FBc:, KK\ e rondonis- neiro), Ileloisa Alberto Torres, e sua equipe de natu- nu) do Sen iyo de Frote(;ão ao Índio (órgão federal in- ralistas e antropólogos foram os principais responsá-

digenista que antecedeu a Funai). com e apesar de \ eis, junto com figuras como Darc\' Ribeiro e os irmãos seus conflitos internos, formaram a base da experiên- Villas Boas, pela elaboração e defesa do anteprojeto pa- cia indigenista concretizada no Parque do Xingu pe- ra a criação do Parque Nacional do Xingu apresenta- los irmãos \'illas Boas. Por outro lado, não podemos do em 1952. Com um perímetro muito maior do que esquecer as vicissitudes de antagonismos e alianças o concretizado por decreto em 1961, o projeto \isava, entre a FBC e os go\ernos estaduais de Mato Grosso como explicitado em sua justificativa, preser\ar uma nos anos 50 que constituíram o pano de fundo do lo- amostra do "Brasil prístino" — com sua flora, fauna e teamento da grande maioria das terras indígenas em índios — para as futuras gerações e em prol da f>esquisa Mato Grossu cujas conseqiiências repercutem até hoje científica. A partir desse momento o alto Xingu e o Par- ^Menezes, 1991; Mendes, 1988). que se consagraram como laboratório, acer\o \i\o de (S) A então diretora do Museu Nacional (Rio de Ja- imagens exóticas, depósito do imaginário nacional.