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Rodrigo da Silva Teodoro

O Crédito no Mundo dos Senhores do Café: Franca 1885-1914

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELO CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DO INSTITUTO DE ECONOMIA

Teodoro, Rodrigo da Silva. T264c O crédito no mundo dos senhores do café: Franca 1885- 1914/ Rodrigo da Silva Teodoro. - , SP : [s.n.], 2006. Orientador: Jose Jobson de Andrade Arruda. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual de Campi- nas. Instituto de Economia.

1. Cafeicultura - Franca (SP) -1885-1914. 2. Credito. 3. Politica moneta ria. I.Arruda, Jose Jobson de A. (Jose Jobson de Andrade),1942-. 11.Universidade Estadual de Campinas. Insti- tuto de Economia. 111.Titulo. O Crédito no Mundo dos Senhores do Café: Franca 1885-1914

Rodrigo da Silva Teodoro

Dissertação apresentada ao Instituto de Economia da Unicamp, sob orientação do Prof. José Jobson de Andrade Arruda, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em História Econômica

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a CAPES, por ter me fornecido as condições materiais para realizar este trabalho. Agradeço também ao meu orientador, José Jobson de Andrade Arruda, homem de conhecimento invulgar nos domínios da história, além de historiador apaixonado pelo trabalho e grande defensor da disciplina, pela confiança e estímulo e sobretudo pelo aprendizado; foi, com certeza, um privilégio ser seu orientando e aluno. Aos professores presentes na minha banca de qualificação, aos ilustres Profs. Hernani Maia Costa e José Ricardo Barbosa Gonçalves, pelas sugestões que tanto enriqueceram este modesto estudo. ‘O Crédito no Mundo dos Senhores do Café’ não existiria sem a participação nesta empreitada de três amigos muito queridos: o Prof. Pedro Geraldo Tosi, amplo conhecedor de questões relacionadas à especificidade da formação econômica e mesmo social do Brasil, pela disposição em discutir os vários problemas que surgiram no decorrer da elaboração desta dissertação e mesmo por ter nos ajudado a construir a problemática central deste estudo, bem como o Prof. Rogério Naques Faleiros, grande estudioso dos problemas atinentes à economia cafeeira, notadamente no que diz respeito às relações de trabalho, que com seu entusiasmo e estímulo contribuiu para que trilhássemos o caminho que agora o leitor percorrerá, nas páginas que seguem; Valdir Geraldo Ferreira, por outro lado, nos concedeu a maior parte da documentação que utilizamos aqui, na verdade o veio documental central para nosso estudo, as escrituras de dívida do cartório de 2º ofício, que este dedicado pesquisador tão arduamente coletou e sistematizou. Mas a participação de Valdir Ferreira não se encerrou aí: as inúmeras discussões que travamos sobre o papel do crédito na economia cafeeira lançaram muitas luzes sobre vários pontos abordados neste trabalho, esperamos que isto tenha sido recíproco; consideramos sua dissertação de mestrado ‘Homens do Crédito’ e este estudo como mutuamente complementares. Agradeço também a todos os professores que ministraram aulas no curso de história econômica da Unicamp e que tanto colaboraram para minha formação: O Professor Fernando Antonio Novais, referência obrigatória para qualquer iniciante nos difíceis, porém recompensadores caminhos de nossa disciplina; sua aguda crítica, seus raciocínios extremamente sofisticados e sua capacidade de expor questões complexas de forma vi simples, contudo sem a perda da densidade dos argumentos, torna-o um exemplo, não apenas para historiadores como para qualquer Professor, qualificação que merece acima de qualquer outra. Não menos profícuo foi o auxílio que obtivemos do Prof. José Ricardo Barbosa Gonçalves, que discutiu conosco em profundidade alguns aspectos do pensamento social contemporâneo, tais como o pós-modernismo; sua firme posição em defesa da função crítica da Universidade e dos trabalhos acadêmicos serviu-nos de inspiração. Seus conhecimentos acerca dos ‘Intérpretes do Brasil’, conosco compartilhados, certamente enriqueceram sobremaneira este estudo, que de outra forma correria o risco de restringir-se apenas à discussão dos aspectos econômicos dos problemas que levantamos, afastando a possibilidade de uma pesquisa de viés mais totalizante. Agradeço também às Professoras Lígia Osório Silva e Wilma Perez Costa, que, embora sociólogas de formação, pelos seus trabalhos e preocupações poderiam ser consideradas historiadoras de ofício; por isso mesmo, muito bem situadas para levar a cabo o sempre difícil debate entre história e ciências sociais, de forma que muito me beneficiei de seus conhecimentos. Agradeço ao Professor Waldir Quadros, pelos estímulos e por juntamente com os professores Francisco Lopreato, Frederico Mazzuccheli e Paulo Baltar iniciarem a mim e aos historiadores de minha turma nos domínios da ciência econômica. Agradeço aos funcionários do Museu Histórico Municipal de Franca ‘José Chiachiri’, especialmente a Margarida e ao Daniel Saturno; aos funcionários do Arquivo Histórico Municipal de Franca ‘Capitão Hipólito Pinheiro’, Graziela, Marinês, Consuelo e Meire. Também aos amigos, que, de uma forma ou de outra, por meio de discussões e debates, deixaram sua participação neste estudo: Leandro “Bife” Torelli e Michael Luiz dos Santos, estes companheiros de curso que muito colaboraram para a conformação final que ganhou este trabalho e enriqueceram muito minha formação; Marcelo “Beraba” de Souza, Reginaldo Oliveira Pereira, ‘Paulinho’ e Gustavo Bueno também muito me auxiliaram na empreitada. A todos os funcionários do Instituto de Economia, sempre muito solícitos e eficientes, em especial Alberto e Cida. Aos colegas da combativa e inesquecível turma de 2002 do curso de história econômica do IE, Renata, Tupã, Fabi, Carla, Ivaldo, Rodrigo e nossos “agregados” Márcia, Fábio, Adriana e João, entre outros. A Adriana, amiga que cursa história na USP, por ter me disponibilizado uma bibliografia que foi fundamental na fase final de redação. Aos amigos da Economia Social e do Trabalho, a convivência com vii vocês certamente foi inestimável. Aos amigos Lalo, André, Milena, Joely, Wolfgang, Gláucia e vários outros que não citei. Agradeço também ao Gabriel, amigo que tenho em comum com o Professor José Ricardo Barbosa Gonçalves e que muito me auxiliou a pensar os problemas da dissertação além de colaborar decisivamente na redação desta. Entretanto, asseveramos que possíveis falhas ou insuficiências neste trabalho são de exclusiva responsabilidade do autor. Finalmente, agradeço a toda minha família pelo apoio decisivo no que talvez tenha sido a pior situação pela qual passei em toda minha vida. Agradeço a meus pais, Antônio Carlos e Irene e a meus irmãos, Gustavo e Talita pela dedicação e carinho que demonstraram nestes momentos tão difíceis. A meu tio, Mauro, igualmente dedicado e preocupado bem como à sua família: Maria Helena, Viviane e Cristiane. Agradeço também a meus tios Américo de Sá e Fátima e a seus filhos, Tales e Débora. Agradeço a todos os meus avós, a meus tios Fernando e Julieta e ao Jean, que de forma tão prestativa ofereceram seu auxílio; a meus tios Nilda e Vítor, ao Henrique e aos meus primos e amigos: Jader, Josiane e Jane e aos amigos Anderson, Marciel, C.A., Samuel de Jesus, Mex, André e muitos outros que porventura não foram citados aqui. Agradeço também ao meu médico, Dr. Joviano Jardim, que demonstrou que não pode haver verdadeira medicina sem humanidade. Também ao Dr. José Reynaldo, à Célia, Marli, Graciele e Goreti pelo tratamento atencioso que me dispensaram e a muitos outros, que da mesma forma procederam. A Adail e a toda a administração da Escola Altmira Pinke, onde sou hoje professor, por terem facilitado tanto meu processo de afastamento. Por último, mas certamente não menos importante, agradeço a Fernanda, por seu apoio apaixonado e amoroso, que tanto me revigorou nos momentos mais difíceis. ix

“É necessário fazer história raciocinada, única esperança de algum dia a ‘racionalizar’ ” (Pierre Vilar, Desenvolvimento econômico e análise histórica)

“O pós-moderno sem dúvida traz ambigüidades – aliás é feito delas e deve ser criticado e superado. É isso que ele propõe: a prudência como método, a ironia como crítica, o fragmento como base e o descontínuo como limite. (...) O aprendizado humilde, que já tarda, da convivência difícil mas fundamental com o imponderável, o inefável – depois de séculos de fé brutal de que tudo pode ser conhecido, conquistado, controlado ” (Nicolau Sevcenko, O enigma pós-moderno In: Pós- Modernidade)

“... o interesse pelo conhecimento rigoroso, determinado, diminui bastante quando uma autêntica transformação política parece fora de questão. (...) A razão, na melhor das hipóteses, relaciona-se com generosidade, com ser capaz de admitir a verdade ou justiça da reivindicação do outro mesmo quando ela vai contra os nossos interesses e desejos pessoais. Nesse sentido, ser racional não só envolve certo cálculo frio, mas coragem, realismo, justiça, humildade e nobreza de espírito”

(Terry Eagleton, As ilusões do pós-modernismo)

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 01

CAPÍTULO I – CRÉDITO E CAFÉ: DINÂMICAS ENTRELAÇADAS...... 29 Uma breve comparação entre o Oeste Paulista e o Vale do Paraíba...... 29 Os braços do complexo cafeeiro: as ferrovias...... 60 O complexo cafeeiro e sua reprodução no município de Franca...... 73

CAPÍTULO II – A CADEIA DO CRÉDITO EM MOVIMENTO: PELA ÓTICA DOS CREDORES...... 103 Os credores e o crédito...... 103 Ligações familiares e laços monetários: ajustes em torno do processo de acumulação.....160

CAPÍTULO III – A CADEIA DO CRÉDITO EM MOVIMENTO: PELA ÓTICA DOS DEVEDORES...... 187

CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 237

REFERÊNCIAS...... 245

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INDICE DE MAPAS, GRÁFICOS, QUADROS E TABELAS

CAPÍTULO I – CRÉDITO E CAFÉ: DINÂMICAS ENTRELAÇADAS

Mapa 1 – Idéias defendidas para o prolongamento da Mogiana a partir de São Simão...... 72

Tabelas

Tabela 1 – Resultado da eleição para deputado geral pelo 9º Districto de – Comarca de Franca...... 67 Tabela 2 – Resultado da eleição para deputado geral pelo 9º Districto de São Paulo – Várias Localidades...... 68 Tabela 3 – Quantidades de café embarcadas na Estação Franca da Companhia Mogiana entre 1888-1898 em toneladas...... 83 Tabela 4 – Quantidades de café embarcadas na Estação Franca da Companhia Mogiana entre 1899-1906 em toneladas...... 88 Tabela 5 – Produção e produtividade dos cafeeiros em Franca para alguns anos...... 90 Tabela 6 – Quantidade produzida e embarcada de café em Franca 1907-1914...... 91 Tabela 7 – Solicitação de Empréstimos por procuração firmada no Município de Franca...... 99 Gráficos Gráfico 1 – Volume de empréstimos efetivamente tomados no município de Franca 1880-1914...... 97 Gráfico 2 – Volume de empréstimos efetivamente tomados no município de Franca 1889-1914 dados deflacionados...... 101

CAPÍTULO II – A CADEIA DO CRÉDITO EM MOVIMENTO: PELA ÓTICA DOS CREDORES

Tabela 8 – Valor do mil-réis frente a libra esterlina (pence por mil-réis) de 1901 a 1914...... 109 Quadro 1 – Ligações familiares entre capitalistas, comissários e comerciantes francanos...... 182 Gráficos Gráfico 3 – Proporção por ocupação nos créditos concedidos no município de Franca em períodos selecionados...... 103 Gráfico 4 – Proporção no montante dos empréstimos da Silva Ferreira & Cia. por faixa de valor no município de Franca entre 1907-1914...... 117 Gráfico 5 – Maiores capitalistas de Franca entre 1880 e 1914...... 145 xiv

Gráfico 6 – Movimento do montante de empréstimos efetuado pelos capitalistas e total da atividade creditícia – Franca 1889-1914...... 147 Gráfico 7 – Taxas de juros aplicadas nos empréstimos registrados no município de Franca por períodos selecionados...... 148 Gráfico 8 – Prazos aplicados nos empréstimos registrados no município de Franca por períodos selecionados...... 153 Gráfico 9 – Total de empréstimos realizados por lavradores e total de empréstimos – Franca 1889- 1914...... 156 Gráfico 10 – Montante de empréstimos de comerciantes e total emprestado em Franca – Franca 1889- 1914...... 158

CAPÍTULO III – A CADEIA DO CRÉDITO EM MOVIMENTO: PELA ÓTICA DOS DEVEDORES

Gráficos Gráfico 11 – Proporção por tipo de bem hipotecado nas escrituras de dívida em Franca, períodos selecionados...... 187 Gráfico 12 – Proporção por tipo de bem hipotecado nas escrituras de dívida de Franca excluindo compras a prazo, períodos selecionados...... 189 Gráfico 13 – Proporção dos créditos registrados em Franca por faixa de valor, períodos selecionados...... 192 Gráfico 14 – Proporção por tipo de bem dado como garantia nos empréstimos de até 10 contos registrados no município de Franca entre 1880 e 1914, por valor...... 224 Gráfico 15 – Comparação entre créditos e débitos dos comerciantes locais de Franca segundo as escrituras – 1889-1914...... 235

ABREVIATURAS UTILIZADAS

AHMF – Arquivo Histórico Municipal de Franca MHMF – Museu Histórico Municipal de Franca TNPLTF – Tabelionato de Notas e Protesto de Letras e Títulos de Franca AHMRP – Arquivo Histórico Municipal de Ribeirão Preto

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RESUMO

Este trabalho tem por foco analisar a forma como a lavoura cafeeira do município de Franca, bem como todos os outros setores da economia local, financiavam suas atividades entre o período que vai de 1885 a 1914. Também nos deteremos nas condições de financiamento, de obtenção de recursos por parte dos credores e a lucratividade destas operações. Pautamo-nos por avaliar separadamente determinados subperíodos, conforme a conjuntura monetária enfrentada em cada um deles, engendrada pelos próprios movimentos de expansão e retração da lavoura cafeeira – que por sua vez respondiam às oscilações do preço do produto nos mercados internacionais – e pelas políticas monetárias adotadas pelo governo federal. Para melhor situar a atuação de cada agente na intrincada cadeia do crédito, buscamos separá-los por estratificação ocupacional, além de estudar alguns desses personagens com maior profundidade, visando delinear um quadro o mais completo possível da atividade creditícia nesta região. Percebemos que se procedia ao crédito à lavoura de forma amplamente baseada nas relações pessoais, por vezes familiares, o que, em certa medida, propiciava um amplo predomínio de credores locais nestas operações. Também notamos que pelas próprias condições de produção que se impunham aos cafeicultores, financiá-los implicava na posse de grande quantidade de capital, dificuldade contornada, pelos senhores do crédito, por meio de ligações familiares que acabavam por consolidar associações de cunho econômico. Assim, o estudo dos laços de família entre os personagens que atuavam no comércio de dinheiro, acabou se impondo à nossa pesquisa. Ao constatarmos a importância das propriedades rurais nas garantias hipotecárias, verificamos a necessidade de também analisarmos como se deu a apropriação territorial, que muitas vezes não obedecia a mecanismos estritamente de mercado, a fim de estabelecer como e em que medida as formas de apropriação territorial poderiam haver jogado sua influência sobre o teor que assumiram as operações de crédito. Visamos, portanto, traçar um quadro bastante complexo e completo das relações creditícias na economia cafeeira paulista, que incluiria não apenas o caráter econômico dessas, mas também o conjunto mais amplo das relações em que estavam enredadas.

Unitermos: Complexo Cafeeiro, Crédito, Política Monetária, Apropriação Territorial, Ligações Familiares.

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Introdução

A história econômica surgiu, como é bem sabido, de uma convergência entre a história e a economia. Conseqüentemente, muito esforço se despendeu em definir a natureza das relações entre estes dois ramos do conhecimento, debate fundamental para o desenvolvimento da história econômica, já que esta se torna possível exatamente nos pontos em que se realiza o diálogo. Entretanto, ao contrário do que poderia parecer ao leigo, este diálogo não ocorreu (e ocorre) de forma harmoniosa, não se trata apenas de uma simples soma, de uma mera fusão, mas da tentativa, por parte de uma especialidade da história, de estabelecer laços com uma disciplina que se liga a uma tradição completamente diversa da sua. Referimo-nos ao fato de a história, já no seu nascedouro, fundamentar-se em uma cultura humanística que remonta à Grécia antiga, enquanto que a economia se constitui como um ramo autônomo do conhecimento durante o século XVIII e deitou suas raízes fundamente no arcabouço científico que se começava a construir. Ora, torna-se claro que o grande problema a se considerar não respeita apenas a como utilizar o instrumental teórico da economia no estudo das sociedades do passado, outrossim, a aproveitar este instrumental levando-se em conta as grandes diferenças de método e prisma existentes entre as duas disciplinas. Ou seja, como combinar a cultura humanística com a cultura científica1. Ao contrário das ciências ditas naturais, onde o recurso à experimentação está sempre ao alcance, às ciências humanas afigura-se impossível provocar a repetição de um dado fenômeno com o fito de melhor estudá-lo. A forma de contornar esta dificuldade é ater-se à própria repetibilidade de determinados processos sociais. Assim, pode-se afirmar que a economia, enquanto disciplina científica, buscou sempre explicar as regularidades presentes nas diversas sociedades a fim de extrair delas leis gerais. Inflação, crescimento econômico, distribuição de renda podem ser estudados em qualquer lugar e época. A história, contudo, lida com o que é específico, com o que é particular, mesmo quando este se encontra carregado de permanências, de imutabilidades, de situações que se repetem no tempo, pois cada situação histórica, em seu conjunto, é única. Ademais à economia interessa apenas o que é econômico, ou melhor, apenas os processos atinentes à produção e

1 Cf. Carlo M. Cipolla. Introdução ao Estudo da História Econômica. Lisboa: edições 70, 1993, pp. 8 e 9. 2 consumo de bens. Ainda que outras esferas do social (como o político, as mentalidades) possam impor sua influência sobre a vida econômica, devem ser considerados como fatores exógenos no universo dos modelos produzidos pelos economistas2. Um economista de grande influência como Schumpeter escreveria que: “Quando conseguimos achar uma relação causal definida entre dois fenômenos, nosso problema estará resolvido se aquilo que representou o papel ‘causal’ for não econômico”3. Ao historiador não é permitido o privilégio de parar neste ponto: não pode simplesmente ignorar um fator crucial para os movimentos da economia ou de um fenômeno econômico como uma guerra; como as crenças em dada época condenando ou legitimando a usura; como as relações de poder que se encontram na base das relações de produção ou nas relações de poder que balizam a atuação do Estado na economia. De fato, a realidade é composta por todas estas instâncias, intrincadas umas com as outras, e sua divisão (artificial) em economia, política, cultura, efetuada pelos pesquisadores, visa apenas facilitar seu estudo. Conseqüentemente, o campo de atuação da história mostra-se sobremaneira mais vasto que o da economia4, embora aquela perca em generalidade em relação a esta. Ou de maneira mais simples, porém com bastante poder explicativo, afirma o historiador Fernando Antonio Novais: “O cientista social (economista, sociólogo, antropólogo, lingüista, demógrafo, etc.) faz reconstituição para chegar à explicação; o historiador usa a análise para fazer a reconstituição(...) A ciência precisa recortar para poder conceitualizar, ela sacrifica a totalidade pela conceitualização; a História sacrifica a conceitualização para não perder a totalidade”5. Há ainda uma diferença fundamental no tocante à postura diante da duração, do tempo histórico em sentido lato. O economista orienta suas análises para o futuro, seu objetivo fundamental é a previsão, ou nas palavras de Cipolla: “...sua posição implícita permanece sempre a de que, de qualquer modo, o futuro apagará o passado”6. Em um outro sentido a concepção de duração que tem o economista também se diferencia da do historiador (pelo menos de uma certa linha da história), pois a complexidade que este lhe

2 Cf. idem, ibidem, pp. 20 a 25. 3 Joseph Alois Schumpeter. Teoria do Desenvolvimento Econômico: uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juro e o ciclo econômico. 3ª edição. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 10. 4 Cf. Eric Hobsbawn. Sobre História: Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 123. 5 Fernando Antonio Novais. Aproximações: estudos de história e historiografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 380. 3 confere é muito maior que a do economista. Os historiadores, desde que a Escola dos Analles a partir de 1929 passou a atacar uma história que poderíamos chamar de factualista, que elencava os fatos ‘importantes’ em uma narrativa linear, presa aos ‘grandes acontecimentos’, celebrando os feitos dos ‘grandes personagens’, abriram-se para uma multiplicidade de tempos. Fernand Braudel sempre insistiu na existência de pelo menos três dimensões principais do tempo: o tempo breve, recheado de acontecimentos espetaculares, que causam muito alarde e mostram-se mais visíveis, porém, por natureza efêmeros e de pouco impacto sobre os grandes movimentos da história; a média duração, ou tempo cíclico, ou ainda tempo da conjuntura, de ritmo um pouco mais lento que o anterior, corresponderia, no plano econômico, aos seus ciclos e interciclos; e a longa duração, o tempo por excelência das estruturas, daqueles fenômenos que perduram por séculos, quase imóveis. Qualquer processo social acha-se enredado nestes três níveis da duração, que devem ser submetidos, pelo historiador, em suas análises, ao tempo cronológico e uniforme do calendário7. As ciências sociais, inclusive a economia, tenderam, ao contrário, há se concentrar em apenas uma dessas dimensões8. Esta problemática do tempo nos desperta ainda para questionamentos sobre a relevância da história para o presente, que não se resume apenas, para grande parcela dos historiadores, ao grau em que o passado vive neste, em que fenômenos estruturais ainda o perturbariam. É, portanto, uma discussão acerca da legitimidade de incursões no passado, debate sempre reposto entre história e ciências sociais. Poderia-se argumentar, contra a história, que o passado se nos apresenta na forma de uma série de testemunhos mortos, de uma documentação previamente preservada segundo critérios que escapam à seleção do pesquisador, e que, portanto, o passado é inerentemente incognoscível, pois sua reconstituição depende de uma reconstrução realizada pelo historiador. Ora, o conhecimento do presente também depende de reconstruções, não se nos mostra tal como é ao primeiro olhar: “...o inquiridor do tempo presente só alcança as ‘finas’ tramas das estruturas, sob a condição de reconstruir, ele também, de superá-lo; operações que

6 Carlo M. Cipolla. Op. cit., p. 20. 7 Cf. Fernand Braudel. História e Ciências Sociais. Lisboa: Editorial Presença, 1972, pp. 60 a 61 e 143 a 144. 8 Cf. Idem, ibidem, pp. 29 a 32 e 64. 4 permitem todas elas escapar aos dados para os dominar melhor, mas que – todas elas sem excepção – constituem reconstruções”9. Ademais, passado e presente iluminam-se reciprocamente, posto que se confinar à atualidade, significa dirigir-se para “...o que se move rapidamente, para o que sobressai com ou sem razão, para o que acaba de mudar, faz ruído ou se manifesta dum modo imediato”10. Quando o investigador se dirige para o passado, o faz sempre munido de preocupações originadas pelos problemas postos por sua própria época, que atuam sobre seu objeto de várias maneiras, operando, sobretudo, nas seleções prévias efetuadas pelo pesquisador, tais como o que estudar, como estudar, sobre qual período se debruçar, em que lugar; questões que, para serem respondidas, demandam critérios que indiquem o que é relevante e o que não é para o estudo em questão, critérios construídos segundo juízos de valor presentes na sociedade em que vive o investigador. Por isso, responder a uma pergunta acerca do passado não é solucionar uma problemática já morta e ultrapassada, mas responder a uma série de questionamentos de nossa própria época, como sempre argumentaram Lucien Febvre e Marc Bloch11. Entretanto uma incursão pelo tempo não se realiza impunemente, há que se evitar o pecado mortal do historiador, o anacronismo. Este consiste na atribuição ao seu objeto, de valores, crenças, dinâmicas atuais, turvando uma melhor compreensão daquele. Evitar completamente o anacronismo afigura-se impossível, já que o historiador, enquanto homem do presente, busca em outras épocas respostas a questões produzidas no seio de sua própria sociedade; mas deve evitar ao máximo o anacronismo, sob pena de distorcer, com uma miopia ‘presentista’, o olhar que lançamos sobre as sociedades do passado12. De qualquer forma, referíamo-nos a um diálogo, fundamental para a formação da chamada história econômica e, no entanto, apontamos uma série de discrepâncias no tocante ao método entre suas duas disciplinas constituintes. A grande questão foi como aliar o instrumental teórico criado com objetivos diversos dos do historiador, com uma perspectiva diferente daquela do historiador, ao trabalho deste e consoante as várias respostas possíveis, existiram e existem várias formas de se fazer história econômica – por

9 Idem, ibidem, p. 33. 10 Idem, ibidem, p. 34. 11 François Dosse. A História em Migalhas: Dos annales à nova história. São Paulo: Ensaio; Campinas: Editora da UNICAMP, 1992, pp. 43 a 49. 5 meio da historiografia marxista, da história serial, da história quantitativa, etc. – mas há algo de comum entre todas elas: seu caráter eminentemente explicativo, visando responder o porquê, por meio da construção de problemáticas acerca das sociedades do passado. Esta ‘história-problema’ foi defendida de forma vigorosa principalmente pela chamada Escola dos Annales, não apenas em seus diálogos com a economia, mas com todo o conjunto das ciências sociais. O nome de Escola dos Annales originou-se da revista lançada em 1929 e intitulada Annales d’histoire économique et sociale na França, sob a direção de Lucien Febvre e Marc Bloch, que a partir de então passaria a concentrar os intelectuais comprometidos em demolir uma história chamada de ‘historicizante’, por demais devotada à narrativa factual e ao isolamento em relação às ciências sociais e a construir uma nova história, aberta ao diálogo com as outras disciplinas e de viés totalizante. Ora, este debate com a teoria13 levou a construção de uma história que não apenas narrasse, mas propusesse ‘problemas’ ao passado. O historiador, após a crítica interna dos documentos, não mais os compilaria em séries lineares de fatos, mas interviria na criação de seu material, ao procurar neste respostas para suas perguntas e não apenas reviver o passado ‘tal como aconteceu’. O historiador deveria submeter os fatos a um certo número de hipóteses, ou melhor, adentraria no terreno da explicação ao invés de se restringir apenas à reconstituição14. Mas se a problemática deve nascer em grande medida atrelada às teorias ou aos modelos das ciências sociais, por outro lado repõe o sério problema do anacronismo, posto que os conceitos criados por aquelas, muitas vezes para interpretar processos sociais das sociedades modernas, certamente não se encaixariam de todo nas sociedades do passado. Fernand Braudel, principal expoente da segunda geração dos Annales, debateu principalmente com a economia e decepcionava-se com as teorias criadas pelos economistas pela ausência em suas análises, de uma perspectiva histórica15. O próprio Braudel defendia que os modelos criados pelas ciências sociais eram válidos enquanto fosse válida a realidade que registrassem, sua aplicação dependendo, portanto, da duração.

12 Fernando Antonio Novais. Op. cit., pp. 395 a 399. 13 Obviamente, em todo o texto usamos ‘teoria’ não para designar uma teoria da história enquanto teoria de todo o devir humano, mas das teorias criadas pelas ciências sociais para explicar fenômenos específicos. 14 Cf. François Dosse. Op. cit., pp. 49 a 59. 15 Cf. Idem, ibidem, pp. 145 a 147. 6

Dever-se-ia confrontá-los com as realidades pretéritas e acaso não demonstrassem poder de explicação voltar ao modelo a fim de ajustá-lo às realidades observadas16. De fato, o historiador da economia pode mesmo criar problemáticas a partir da teoria, mas o papel que esta pode desempenhar na explicação posterior do objeto deve sofrer ponderações, a fim de se evitar o anacronismo. Segundo Eric Hobsbawn: “Se o uso da teoria deve ser mais que marginal para os historiadores (e também na prática social, eu diria), ela precisa ser especificada de maneira a trazê-la mais para perto da realidade social. Ela não pode se permitir, mesmo em seus modelos, desviar-se do verdadeiro fardo da vida”17. Isto significa que o uso da teoria econômica pela história deve incluir uma maior preocupação com a sua aplicação a outras temporalidades e o papel de outras instâncias do real. Ainda assim, reafirmamos que a história econômica, ao tentar realizar este diálogo, enriquece a teoria econômica ao lhe dar perspectiva histórica e enriquece a história ao lhe abrir a possibilidade da explicação pela via do econômico. A distinção entre história econômica e outros ramos da historiografia, contudo, recai sobre a ênfase dada a determinados fatores em relação a outros, como demonstra Braudel ao expor as suas dificuldades na tentativa de se fazer uma história da economia em escala mundial: “A história econômica do mundo é, portanto, toda a história do mundo, mas vista de um certo observatório, o da economia. Ora, escolher esse observatório e não outro é privilegiar de antemão uma forma de explicação unilateral (e também, por isso mesmo, perigosa), da qual sei de antemão que não me libertarei inteiramente. Não se privilegia impunemente a série dos fatos chamados econômicos. Por mais que nos empenhemos em dominá-los, reordená-los e sobretudo, superá-los, poderemos evitar um ‘economismo’ insinuante e o problema do materialismo histórico? É o mesmo que atravessar areias movediças”18. O trato com o número, a construção de séries, desde a crise de 192919 também se tornou uma característica dos historiadores cujo ponto de partida se situa nos fatos econômicos ou em uma problemática de raiz econômica. Esta característica da

16 Cf. Fernand Braudel. Op. cit., pp. 41 a 54. 17 Eric Hobsbawn. Op. cit., p. 31. 18 Fernand Braudel. Civilização Material, Economia e Capitalismo: séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1998, vol. III O tempo do mundo, p. 9. 19 A crise de 1929 despertou os historiadores para o estudo dos ciclos econômicos ou das flutuações econômicas, que por sua vez demandou a aplicação de métodos quantitativos à história, fornecendo um instrumental indispensável para o desenvolvimento da história econômica, que desde 1840 vinha se 7 história econômica lhe conferiu a força de ser “...a forma de história baseada no documento que depende menos da intervenção do historiador”20, ou seja, em menor grau depende de sua interpretação. A sua característica distintiva, no entanto, reside em suas problemáticas, pois a quantificação constitui-se apenas em um instrumento. Toda história, ao tratar de seu objeto, é totalizante, ainda que o abarque primordialmente sob uma determinada instância do real. Entretanto, uma característica marcante da história econômica, e que a distingue de certas tendências historiográficas atuais, reside exatamente na tentativa de explicação dos fenômenos que estuda, na não recusa de um diálogo com a teoria. Essas tendências da historiografia atual às quais nos referíamos conformam-se a novas maneiras de se pensar a realidade que surgiram consoante mudanças no mundo contemporâneo cujas raízes são múltiplas e de difícil determinação: a falência dos grandes movimentos políticos de massa após a década de 1970 que conduziram alguns de seus proponentes a assumirem políticas localizadas, setorizadas (movimentos feministas, movimentos gays, étnicos) com a conseqüente exaustão do modernismo e de suas promessas de progresso universal guiado pela razão21; o esgotamento dos sistemas éticos tradicionais (a ética cristã e a ética revolucionária, escudada no marxismo)22; uma compressão do espaço-tempo ligada ao aumento da velocidade da circulação de mercadorias, do consumo, da troca de informações e da própria força de trabalho na mudança de um modelo fordista de produção para a ‘produção flexível’23; a crise do colonialismo e do imperialismo europeus e o desenvolvimento da media de massa, que “...expuseram diante da opinião pública todo tipo de culturas e subculturas, marcando a

constituindo a partir de seus diálogos com o marxismo e a escola histórica alemã da Economia Política. José Jobson de Andrade Arruda. O Brasil no Comércio Colonial. São Paulo: Ática, 1980, pp. 34 a 37. 20 Pierre Vilar. Desenvolvimento Econômico e Análise Histórica. Lisboa: Editorial Presença, 1996, p. 206 (grifos nossos). Isto de forma nenhuma significa que o número por si mesmo é um dado objetivo e que dispensa a crítica documental. O historiador deve averiguar sua autenticidade, verificar se a quantidade presente no documento não derivava de opiniões ou apreciações, ou melhor, se a quantidade era resultado involuntário de um conjunto de ações ou decisões e avaliar se não há modificação na série quanto à definição e medida do fato observado. Apenas após todos estes passos o historiador está diante de um documento objetivo. Idem, ibidem, p. 205. 21 Terry Eagleton. As Ilusões do Pós-modernismo. : Jorge Zahar editor, 1998, pp. 13 e 38 a 48. 22 Cf. Ciro Flamarion Cardoso. Ensaios Racionalistas: filosofia, ciências naturais e história. Rio de Janeiro: Campus, 1988, p. 109. 23 Cf. David Harvey. Condição Pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 9ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 2000, pp. 187 a 195. 8 passagem à pós-modernidade”24; e muitos outros conforme adentrássemos nessa bibliografia. Mas a realidade que estes vários autores tentam abarcar e mais especificamente sua forma específica de representação aponta na mesma direção: uma desconfiança em relação à razão e uma perda de perspectiva unitária do mundo, vislumbrado agora sob múltiplos pontos. Esta nova forma de representação do mundo vem recebendo a denominação de pós- modernidade: “...é uma linha de pensamento que questiona as noções clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade, a idéia de progresso ou emancipação universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas ou os fundamentos definitivos de explicação. Contrariando essas normas do iluminismo, vê o mundo como contingente, gratuito, diverso, instável, imprevisível, um conjunto de culturas ou interpretações desunificadas gerando um certo grau de ceticismo em relação à objetividade da verdade, da história e das normas, em relação às idiossincrasias e a coerência de identidades”25. Esta forma de pensar não pode aceitar que exista uma totalidade ou que haja um sentido na história, algumas de suas vertentes chegando a afirmar que o mundo não existe de nenhuma maneira específica e que, portanto, não podemos conhecê-lo em sua totalidade, já que esta não existe26. Mas quais os seus impactos sobre a história feita pelos historiadores? Em história, esses movimentos se orientaram para uma mudança de assunto. Ora, uma história em nível mundial, tal qual a imaginou Braudel, parece impensável para esta nova linha – geralmente chamada, no Brasil, de Nova história – dada a sua desconfiança com relação às totalidades (ainda que, como já afirmamos, ao tratar de seu objeto, toda história deva ser totalizante, ou seja, não pode negligenciar nenhum de seus aspectos). Ciro Flamarion Cardoso chegou a afirmar que esta mudança de assunto ocorreu “...em função de distorções ou inversões radicais de perspectiva: 1) valorização do periférico em relação ao central: preferem-se, como objetos de estudo, os loucos, os marginais, os homossexuais, as bruxas, as prostitutas (ao sabor, na verdade, de modismos descartáveis); 2) valorização, não da realidade à econômico-social; tematicamente, pululam as danças macabras, as

24 J. Russen. La historia, entre Modernidad y Postmodernidad. In: José Andrés-Gallego (org.). New History, Nouvelle Histoire hacia una Nueva História. Madrid, 1993 apud José Jobson de Andrade Arruda. Linhagens Historiográficas Contemporáneas por uma Nova Síntese Histórica. Economia e Sociedade, nº 10, junho de 1998, pp. 175 a 192, p. 181. 25 Terry Eagleton. Op. cit., p.7. 26 Idem, ibidem, pp. 34 a 39. 9

‘pulsões reprimidas do desejo’, os sabbats, os fantasmas e obsessões, e é freqüente o anacronismo na forma da projeção de percepções atuais feitas em função da sociedade de hoje (feminismo, ‘problema gay’) a épocas em que elas carecem de qualquer sentido ou realidade”27; critica também alguns dos métodos desta nova história: “...o tecnicismo que valoriza o computador e outras técnicas de vanguarda oculta uma grande pobreza metodológica: as fontes são escolhidas em forma arbitrária, tratadas sem rigor, usadas de maneira pouco crítica e racional”28. Este divórcio com a teoria, responsável por essa pobreza metodológica, também foi apontado por José Jobson de Arruda: “ Literalmente, a nova história poderia fazer-se sem os homens, à qual, sob o império das idéias de Foucault, aderia mais ao procedimento do que à explicação. Interessava o como, muito mais do que o porquê. Enfatizava-se a dimensão descritiva do arquivo, prevalecendo um certo positivismo”29. Esta linha historiográfica despontou no próprio seio dos Annales, correspondendo na verdade à sua terceira geração30, que buscou firmar suas posições a partir de várias publicações, tais como na coleção La bibliothéque dês histoires levada a cabo por Pierre Nora em 1971, fortemente influenciado pelas idéias de Michel Foucault ou a coletânea Faire de l’histoire, dirigida por Jacques Le Goff e Pierre Norra e publicada em 197431. Mas o que levou a esta guinada no interior da própria revista e do próprio grupo que antes defendia a história-problema não nos é relevante aqui. Mais relevante é o fato de a historiografia francesa ainda hoje permanecer como a mais influente na América Latina32, portanto suas mudanças repercutem com enorme força entre nós. Na verdade, especificamente no Brasil, passou-se de uma produção historiográfica nos anos 60 e 70, fortemente influenciada pelo marxismo e pela segunda e em menor escala primeira geração dos Annales, para uma inversão quase que completa nos temas, nos métodos (ao menos predominantemente), elegendo-se, como terreno para estudo, preferencialmente as

27 Ciro Flamarion Cardoso. Op. cit., p. 100. 28 Idem, ibidem, p. 100. 29 José Jobson de Andrade Arruda. Linhagens...op. cit., p. 179. 30 Cf. François Dosse. Op. cit., p. 164. 31 José Jobson de Andrade Arruda. Linhagens...op. cit., p. 178. 32 Ciro Flamarion Cardoso. Op. cit., p. 94. 10 mentalidades, encaradas sob um prisma microscópico e enfatizando a descrição em prejuízo da explicação33. Por isso devemos analisar as características gerais dessa nova história. Os apologistas da nova história, na verdade, defendiam uma ampliação do território dos historiadores (na forma de novos objetos, novas temáticas, novas técnicas) a fim de escapar às arremetidas que, segundo estes, as ciências sociais lançavam no tocante à explicação da dinâmica histórica. Curioso que esta ampliação acabasse resultando em sua subordinação à antropologia e à etnologia. Segundo Jobson: “A subsunção real e formal do Historiador à antropologia histórica envolve ambigüidades lamentáveis. A formalização do procedimento da antropologia e da etnologia decorre de uma experiência única que, repassada aos procedimentos e à escrita da História, produz incompreensões brutais na apropriação de conceitos, no estudo das fontes, na diferença entre sociedades primitivas e sociedades históricas, na forma regressiva de tratamento do tempo em um e evolutiva no outro. O historiador renuncia ao seu ofício, à sua personalidade científica e produz uma história impressionista, na qual a falta de explicação teórica, de análise abstrata, sobreleva a descrição das práticas, incrementando a força da narração” 34. Como a antropologia e a etnologia nasceram de um esforço empreendido pelos europeus para melhor compreender os povos colonizados do século XIX (essencialmente África e Ásia), com suas sociedades ditas primitivas, onde a mudança quase não ocorre ou demora a ocorrer, altamente ritualizadas, por meio do trabalho de campo, num esforço, portanto, de descoberta do Outro, em história (como já apontado na citação acima) busca-se repetir acriticamente estes procedimentos. Assim, concentra-se no tempo longo, descartando os tempos médios e remetendo os tempos curtos a este tempo estrutural, focando sua atenção nas permanências e desprezando as rupturas35; também interessa-se muito mais pelo irracional que pelo racional, pelo estudo das mentalidades que pela economia; ao invés de realizarem uma incursão no passado munidos de conceitos preferem

33 José Jobson de Andrade Arruda e José Manuel Tengarrinha. Historiografia Luso-brasileira Contemporânea. : Edusc, 1999, pp. 98 e 99. 34 José Jobson de Andrade Arruda. Linhagens...op. cit., p. 180. 35 Jacques Le Goff deixa este ponto bem explícito: “A teoria fecunda da longa duração propiciou a aproximação entre a história e aquela ciência humana que estudava sociedades ‘quase imóveis’ – a etnologia ou, como se diz mais naturalmente hoje, a antropologia. Daí o interesse crescente pelo nível dos costumes, do que Marcel Mauss chamava técnica do corpo, das maneiras de se alimentar, de se vestir, de morar, etc. Foi o programa de estudo do homem selvagem e do homem cotidiano que François Furet e eu tentamos esboçar”. Jacques Le Goff. Uma Ciencia em Marcha, uma Ciencia na Infancia. In: Jacques Le Goff (org.). A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 46. 11 recorrer à noção de descrição densa do antropólogo Clifford Geertz, retornando, sob nova roupagem, à história puramente narrativa de dantes36. Como se trata de descobrir o Outro no passado, deve-se resgatar seu testemunho acerca de si e de sua sociedade, deixá-lo falar ao invés de impor-lhe um discurso. Como Le Roy Ladurie afirma na introdução de Montaillou, estudo sobre um pequeno povoado do sul da França durante o final do século XIII e início do XIV: “A quem pretenda conhecer o camponês dos antigos e antiqüíssimos regimes, não faltam as grandes sínteses – regionais, nacionais, ocidentais: penso nos trabalhos de Goubert, Poitrineau, Fourquin, Fossier, Duby, Bloch... O que falta, por vezes, é o olhar direto: o testemunho, sem intermediário, que o camponês dá de si mesmo37. Dá-se a impressão que qualquer intervenção dos historiadores (por um esforço de interpretação) distorceria estes testemunhos do passado, como se fosse possível ao historiador não intervir em seu objeto (o que se dá já na sua construção) e como se, pelo simples fato de os personagens de um tempo passado não possuírem consciência de um determinado processo histórico que estivessem vivenciando este não houvesse existido. Aqui não se trata de um diálogo com uma ciência social, mas de total subordinação, com o resultado curioso de um retorno à narrativa pura. Entretanto, como assinalam alguns historiadores, as novas temáticas introduzidas pela nova história em si mesmas não excluem uma noção de totalidade do social: “Mantendo-se a posição conseqüente de que o social é um todo estruturado e cognoscível, e partindo-se de uma teoria desta globalidade, o estudo monográfico de temas restritos – na verdade de quaisquer temas relativos ao homem em sociedade – não somente será iluminado pela noção que se tenha acerca da totalidade do social, como expressará, ao nível de cada tema, tal totalidade, ajudando a revelá-la, a corrigir quando necessário a visão teórica que dela se tenha”38. Portanto, os temas em si não representam um obstáculo ao conhecimento histórico, embora, em geral, as crenças que os acompanharam, de que a realidade é incognoscível em sua totalidade, e que conseqüentemente possamos abandonar as teorias, representem. Hobsbawn também insiste nesta posição: “Não há nada de novo em preferir olhar o mundo por meio de um microscópio em lugar de um telescópio. Na medida

36 José Jobson de Andrade Arruda. Linhagens...op. cit., pp. 179 a 182. 37 Emmanuel Le Roy Ladurie. Montaillou: povoado occitânico, 1294-1324. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 11. 38 Ciro Flamarion Cardoso. Op. cit., p. 108. 12 em que aceitemos que estamos estudando o mesmo cosmo, a escolha entre micro e macrocosmo é uma questão de selecionar a técnica39. Por isso José Jobson defende uma nova síntese histórica, talvez resultante dos próprios impasses da nova história ou nova Nouvelle histoire como o autor a chama em contraposição a Nouvelle histoire, representada pelas duas primeiras gerações dos historiadores dos Annales. Ora, a quebra de unidade da experiência histórica, para o autor, se tornará um beco sem saída para estes historiadores, que se afundando progressivamente em um relativismo que dissolve cada vez mais os laços de seus objetos com o restante do edifício social, a fim de preservar-lhes a ‘especificidade’, a ‘diferença’, de recuperar as vozes esquecidas do passado e preservá-las do viés ‘autoritário’ e ‘determinista’ das teorias, preservarão alguma noção de sentido apenas na medida em que se debruçarem sobre unidades cada vez menores, passando-se das micro-histórias diretamente para as ego- histórias. Este impasse, para o autor, poderia levar a uma “...síntese de elementos modernos e pós-modernos, que enlace microhistória e macrohistória, gestando uma estrutura cognoscitiva que represente uma nova aproximação com a experiência histórica e que sintetize, ao mesmo tempo, a unidade do gênero humano e seu desenvolvimento temporal ao lado da variedade de culturas40. A microhistória certamente enriqueceria sobremaneira uma história-problema ao recuperar fragmentos da experiência humana que esta certamente negligenciou e que seguramente se constituem em peças a compor o grande quebra-cabeças das sociedades. Mas um quebra-cabeças não é apenas uma somatória de peças (e em se tratando do homem estas talvez nunca sejam completamente reunidas) e apenas a história- problema poderia conferir sentido à imagem formada, operação talvez já esboçada em Civilização material, economia e capitalismo por Braudel, ao tentar associar o cotidiano, dominado pelas realidades estruturais, cuja presença insistente e repetitiva ao longo das eras acaba por situá-las no terreno da longa duração, a uma explicação mais abrangente sobre o conjunto das realidades econômicas41 . Pedimos desculpas ao leitor, notadamente ao especialista, por esta longa síntese acerca dos debates historiográficos atuais, afinal não o inserimos diretamente na própria discussão referente à definição do tema, pois acreditamos que, com a própria legitimidade

39 Eric Hobsbawn. Op. cit., p. 206. 40 José Jobson de Andrade Arruda. Linhagens... op. cit., p. 184. 41 Idem. O Império da História. Revista Portuguesa de História. Tomo XXXIII, 1999, pp. 1 a 16. 13 da história econômica posta em dúvida pelas novas tendências historiográficas, deveríamos melhor circunstanciar o debate a fim de afirmar nosso compromisso com uma história com poder explicativo, que possa deslindar o sentido dos processos sociais, do passado e do presente. Obviamente optamos pelo diálogo com a teoria, pela consideração do social enquanto uma totalidade, por uma história-problema. Destarte, transportemo-nos à problemática. Geralmente na maior parte da bibliografia corrente sobre o período em que o produto café permanece na liderança da pauta de exportações do Brasil, entre aproximadamente 1830 e 193042 – fato que denota sua centralidade para o ordenamento da economia brasileira de então, já que esta mantinha sua estrutura produtiva primordialmente organizada para o atendimento da demanda externa por matérias-primas e artigos agrícolas – é descrito como um período, em suas tendências de prazo longo, de modernização e crescimento econômico continuado. Conseqüentemente realizaram-se, ao longo dos anos, vários estudos enfocando uma extensa gama de aspectos correlatos a este processo de modernização. Se nos restringirmos apenas aos fenômenos atinentes à vida econômica da época talvez concluamos que um dos temas mais visados pelos estudiosos tenha sido o da industrialização, processo cujo desencadeamento em geral é temporalmente localizado no final do século XIX43. É evidente o porquê desta verticalização: a industrialização se constituiu em um dos principais vetores de modernização econômica do Brasil; nascida a partir e atrelada à economia cafeeira, ensejou a concentração desses estudos no café e na indústria. Uma transformação tão ou mais crucial para esta modernização – e que certamente lhe preparou o terreno – ocorreu no âmbito das relações de trabalho, com a extinção do cativeiro e o advento do trabalho livre, também localizada temporalmente ao final do século XIX. A ação destes fatores demonstra o quão decisivo para a história econômica brasileira posterior foi a abolição da escravatura em 1888 e a mudança no padrão de acumulação situada por

42 Celso Furtado. Formação Econômica do Brasil. 27ª edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2000, entre 118 e 206. 43 João Manuel Cardoso de Mello. O Capitalismo Tardio: contribuição à revisão crítica da formação e do desenvolvimento da economia brasileira. 8ª edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982; Wilson Cano. Raízes da Concentração Industrial em São Paulo. 4ª edição. Campinas: Unicamp/Instituto de Economia, 1998; Sérgio Silva. Expansão Cafeeira e Origens da Indústria no Brasil. 7ª edição. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1986; Warren Dean. A Industrialização de São Paulo (1880-1945). 4ª edição. São Paulo: Difusão Européia do Livro,1971, para citar apenas os trabalhos considerados clássicos. 14

João Manuel no ano de 1933, quando esta passa a se orientar basicamente pela expansão industrial44. Ora, o período compreendido entre estas duas datas, do ponto de vista da economia, caracterizou-se, em sua dinâmica, pelo movimento do assim chamado complexo cafeeiro capitalista45; este, portanto, dado seu caráter crítico para o desenvolvimento subseqüente, recebeu maior atenção dos pesquisadores. Não obstante, e a par do alargamento da compreensão sobre a especificidade dos processos econômicos no Brasil que essas obras proporcionaram, um aspecto da cafeicultura, quiçá fundamental para sua expansão, ficou como que relegado a segundo plano nos estudos sobre a economia cafeeira. Refiro-me a atividade creditícia. Não que a maioria destes autores tenha ignorado o crédito; pelo contrário, todos eles insistem na importância deste, notadamente para o custeio da lavoura, já que o cafeeiro só se tornava efetivamente produtivo após seu quarto ou quinto ano de vida46, implicando assim em gastos iniciais que para serem satisfeitos exigiam a existência de uma fonte externa de financiamento. Mas, com a exceção do estudo de Saes sobre crédito e sistema bancário em São Paulo47, pouquíssimos trabalhos se voltaram especificamente para o papel do sistema bancário e menos ainda para o crédito. Neste estudo Flávio Azevedo Marques de Saes demonstra, após um longo percurso, que na verdade o crédito bancário em geral não se destinou às lavouras de café, mas principalmente para as atividades comerciais de grande porte, contribuindo sobretudo para dinamizar a economia urbana da cidade de São Paulo. Freqüentemente, se discutiu a atuação do comissário de café nesta economia, um intermediário entre o fazendeiro e os exportadores, enquanto um elemento central no fornecimento de crédito para a lavoura e enfatizou-se as bases pessoais desta relação48. Estes laços pessoais implicavam em um maior ônus na obtenção de dinheiro comparativamente aos bancos, o que tornou ainda mais frágil a situação dos cafeicultores,

44 João Manuel Cardoso de Mello. Op. cit., p. 110. 45 Wilson Cano. Op. cit., p. 25. 46 Cf. Caio Prado Júnior. História Econômica do Brasil. 40ª edição. São Paulo: Editora Brasiliense, op. cit., p. 161. 47 Cf. Flávio Saes. Crédito e Bancos no Desenvolvimento da Economia Paulista: 1850-1930. São Paulo: IPE/USP, 1986. 48 Cf. Maria Sylvia de Carvalho Franco. Homens Livres na Ordem Escravocrata. 2ª edição. São Paulo: Ática, 1974; Antônio Delfim Netto. O Problema do Café no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas; Ministério da Agricultura/SUPLAN, 1979; Wilson Cano. Op. cit.; Stanley J. Stein. Grandeza e Decadência do Café no Vale do Paraíba. São Paulo: Brasiliense, 1961; Thomas H. Holloway. Vida e Morte do Convênio de Taubaté: A primeira valorização do café. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978 e vários outros. 15 principalmente levando em conta os possíveis impactos sobre a disponibilidade de meios de pagamento conforme a direção seguida pela política monetária. Entretanto, por que a lavoura se expandiu mesmo na ausência de instrumentos mais adequados de crédito? Questão que se torna mais premente e explícita em determinados períodos, tais como o interregno de tempo que decorre da ascensão de Campos Sales a presidência da República em 1898 e o plano de valorização de 1906, que do ponto de vista estritamente monetário foi marcado por ações governamentais visando restringir o meio circulante, falências bancárias e protestos contra as políticas governamentais e a carência de numerário. Ora, mesmo nessa conjuntura, a produção de café passa de 11,2 milhões de sacas na safra de 1897/1898 para 16 milhões na de 1906/1907. Derivaria este incremento da expansão cafeeira para novas áreas? Ou se criaram formas de se furtar a esta escassez de numerário por meio de arranjos locais que pudessem estabelecer mecanismos de troca e de financiamento capazes de atender as demandas dos produtores? Teria realmente havido uma escassez monetária? Que papel teriam jogado as relações de produção neste sentido? Responder a estas questões, de caráter lógico, exige uma melhor delimitação do tema em termos cronológicos e geográficos. O período compreendido entre 1888 e 1933, como já assinalamos, comportou transformações de largo alcance para o Brasil, notadamente no terreno da economia, e, em um primeiro momento nos pareceu acertado situar nosso objeto em algum ponto entre estas duas datas. Contudo, como nosso intuito se dirige primordialmente a explicar como se dava o financiamento da lavoura cafeeira e os vários desdobramentos desta questão, decidimos nos limitar ao ano de 1914, tanto porque durante a década de 1920 assiste-se a uma profunda diversificação econômica, que se não elimina a centralidade do setor exportador cafeeiro para o conjunto da economia, ao menos reduz sua importância, quanto pela situação expecional advinda da deflagração da Primeira Guerra Mundial em 1914, em que o comércio exterior sofreu severas restrições. Assim, provisoriamente, estabelecemos um período compreendido entre 1889 e 1914. Quanto ao recorte espacial inevitavelmente nos voltamos para o Estado de São Paulo, posto que sua economia cafeeira, a mais dinâmica de então, alavancou o crescimento econômico brasileiro pelo menos até o final da década de 1930 (o Estado de São Paulo, porém, desde então consolidou sua posição e permaneceu como o grande motor da economia brasileira). Mas não poderíamos captar a dinâmica do crédito, especialmente sob 16 a ótica da lavoura, se não circunscrevêssemos melhor os limites espaciais de nosso objeto, até porque conforme o tipo de documentação pela qual optássemos pesquisar nos defrontaríamos com um volume de material impossível de se coletar (ao menos para um pesquisador individual). Chegamos à conclusão de que a melhor unidade de análise seria o município, mas isto envolveria uma questão de escolha. Qual deles estudar e em qual região? Ora, automaticamente descartamos a análise de qualquer município que se encontrasse na frente pioneira durante o período de estudo que elegemos, pois sua alta taxa de produtividade nos impediria de analisar o peso de outros fatores responsáveis pela solvência dos produtores (e as próprias condições desta), apesar de provavelmente os mesmos mecanismos de financiamento atuarem em todo o complexo. Seria interessante analisar uma região já velha, com solos por demais desgastados e produtividade já declinante, por representar um caso limite no universo do complexo cafeeiro, demandando condições muito específicas de crédito para sobreviver. Entretanto, o declínio da cafeicultura em uma zona velha poderia desviar os recursos desta para outras atividades. Evidentemente, o mais provável é que não exista um caso representativo de todo o conjunto da economia cafeeira. Talvez a melhor solução fosse selecionar um certo número de municípios de diferentes regiões a fim de compará-los. Mas este procedimento implicaria em um volume de documentação sobremaneira difícil de arrolar em uma dissertação de mestrado. Optamos por focar nossa atenção em uma zona intermediária do ponto de vista da produtividade dos cafezais, pois isto possivelmente nos permitiria também aclarar e nos aproximar da dinâmica tanto das zonas mais antigas quanto das mais novas. Vários municípios se enquadrariam nestas condições: Ribeirão Preto, São Simão, , Franca, , São Carlos (e outros), que receberam ligação férrea apenas na década de 1880, fundamental, nestas localidades, para viabilizar a produção de café em larga escala, o que significou que apenas a partir deste período se integraram ao complexo cafeeiro. Assim, seus cafezais, do ponto de vista da produtividade, certamente qualificariam estas regiões como zonas novas na década de 1880, talvez até 1890, mas certamente não nos períodos posteriores, que coincidem com as épocas mais críticas para o financiamento da lavoura. Obviamente, a produtividade não dependia apenas da idade dos cafeeiros, fator fundamental residia na qualidade dos solos, que poderia produzir disparidades não 17 desprezíveis entre as diversas regiões. Decidimo-nos pelo município de Franca, por dois motivos básicos: primeiro porque o solo predominante nesta região, o lato-solo amarelo fase arenosa, não reunia condições tão favoráveis ao cultivo do café quanto a famosa ‘’, implicando em uma produtividade não muito alta; por outro lado, como demonstraremos no corpo do trabalho, trata-se de uma região de povoamento antigo, possuindo antes mesmo do advento de sua cafeicultura uma população considerável para os padrões da Província de São Paulo, firmemente instalada e dedicada a atividades ligadas à produção de artigos de subsistência, por isso mesmo provavelmente com uma economia pouco monetarizada. Assim, podemos analisar o impacto da expansão da lavoura cafeeira e do desenvolvimento do crédito sobre o conjunto de relações vigentes na fase anterior e as acomodações que porventura tenham surgido. Apesar de nos centrarmos em questões relativas ao financiamento das fazendas de café, estas se revestiam de especial importância para o restante do conjunto econômico e por certo o ‘vazamento’ do capital cafeeiro para outras atividades e a forma em que se dava não se constituem em questões irrelevantes. Dessa forma não nos furtaremos a analisar o movimento do crédito em todas as suas aplicações (embora sempre o relacionando com a dinâmica da cafeicultura) o que nos remete também a uma visão daquele não apenas sob a ótica do fazendeiro tomador de empréstimos, mas do mesmo modo sob a ótica do emprestador. O principal ponto de contato com a teoria econômica se dá por meio da incorporação das análises – no que concerne ao processo de acumulação – presente nos trabalhos que se dedicaram, no estudo do processo de industrialização da América Latina, a entendê-lo enquanto a constituição específica de seu capitalismo, ou ‘capitalismo tardio’. Esta visão surgiu da crítica das teses da Cepal (Comissão Econômica para América Latina), que postulava que relações desiguais de comércio entre países do centro (principalmente a Europa Ocidental e os Estados Unidos) e da periferia criaram uma divisão internacional do trabalho onde estes últimos ficariam relegados à produção de artigos primários para exportação e os países centrais, possuidores de um setor industrial já maduro, lhes forneceria toda a gama de produtos manufaturados que aqueles não poderiam fabricar (em um caso temos a especialização das economias periféricas e noutro a diversificação das economias centrais) e por isso mesmo a periferia se caracterizou por economias reflexas e 18 dependentes, cujo ‘centro de decisão’ se encontrava no exterior, nos países ditos centrais. Ora, segundo esta interpretação, a América Latina somente se desenvolveria em conjunturas de interrupção dos fluxos normais do comércio exterior, via substituição de importações49. A ótica do capitalismo tardio refuta o caráter reflexo dessas economias, considerando que “...o desenvolvimento latino-americano (particularmente o brasileiro) é um desenvolvimento capitalista, determinado primeiramente por fatores internos e secundariamente por fatores externos50, o que a desviou da análise do comércio exterior para o processo de acumulação de capital, introduzindo uma periodização mais complexa que a da Cepal (para qual o crescimento econômico brasileiro orientou-se para fora até 1930 e a partir desta década voltou-se para dentro) onde a independência nacional, a transição do trabalho escravo para o livre, enquanto fatores dinamizadores da acumulação, recebem um tratamento mais criterioso como também o papel do setor exportador, locus por excelência (até a década de 1930) da acumulação. Este mantém uma relação contraditória com a indústria, pois embora lhe forneça os meios para seu crescimento (pela criação de capacidade de importar máquinas e bens de consumo para a massa assalariada, pela criação de mercado consumidor para os artigos desta indústria, pelo alto índice de acumulação que permite o inversão de capital na indústria) trava-lhe o crescimento autônomo posto que atraía a maior parte do investimento e obstruía a constituição de um departamento de bens de produção – essencial para o desenvolvimento auto-sustentado da indústria – na medida em que, o setor exportador, predominantemente mercantil, dependia da demanda exterior, o que lhe tornava, em conseqüência, dependente do capital externo, cujos interesses não se coadunavam aos da indústria51. Embora esta linha de interpretação tenha cometido equívocos fundamentais na interpretação do desenvolvimento econômico brasileiro – como a sugestão de que com a consolidação da ‘indústria pesada’ (único ramo da indústria que faltava para que se constituísse um sistema industrial integrado internamente) composta por um setor de bens de produção e pelo de bens de consumo duráveis, onde a oferta antecede e mesmo ‘cria’ a

49 Cf. Wilson Suzigan. Indústria Brasileira: origem e desenvolvimento. São Paulo: Hucitec/Editora da Unicamp, 2000, pp.26 e 35. 50 Idem, ibidem, p. 35. 51 Idem, ibidem, pp. 35 a 38. 19 demanda, a economia do Brasil alcançaria a autodeterminação da acumulação e, por conseguinte de seu capitalismo, desprezando a influência de fatores externos em sua condução52 – na verdade admitidas por alguns de seus antigos proponentes53, a ênfase de estudiosos da economia como João Manuel Cardoso de Mello, Wilson Cano e Sérgio Silva no processo de acumulação dotou-os de aguda perspectiva histórica e a maior parte de suas conclusões permanece de pé. Consoante estas análises orientamos nossa periodização, como o leitor atento já percebeu, para a dinâmica encetada pela acumulação de capital na economia cafeeira, conforme os contornos conferidos a esta por esses autores, ainda que a ponderássemos pelos condicionantes locais de nosso objeto. Estes nos impuseram um retrocesso na data que demarca o início de nosso estudo, pois como o município de Franca (como iremos observar no corpo do trabalho) se integra decisivamente ao complexo cafeeiro após o recebimento de uma ligação férrea no ano de 1887 e como sua construção se inicia em 1885, optamos por recuar até este ano para que melhor apreendêssemos os impactos da introdução em larga escala da cafeicultura e do desenvolvimento do crédito, fixando definitivamente nosso período entre 1885 e 1914, apesar de que isto não nos impedir de, em alguns momentos, regressar ainda mais no tempo a fim de melhor amparar nossa análise. Pode parecer estranho que a data inicial refira-se a fatores locais e que a demarcação do final do período a ser estudado a eventos e processos que afetaram a economia cafeeira como um todo. Entretanto, acreditamos que se trata de um procedimento justificável, na medida em que o município que analisaremos, do ponto de vista econômico, logo após o início do período selecionado, já havia passado a se pautar e a se configurar muito mais em função do complexo cafeeiro que em razão de traços de caráter local. Desta forma remetemos nosso objeto ao conjunto mais vasto da economia cafeeira, que por sua vez liga- se ao processo de industrialização que ocorreu nos países centrais durante o século XIX. Já há uma certa quantidade de trabalhos em história econômica, que possuindo um recorte regional, direcionaram-se para o estudo de vários aspectos da economia cafeeira se

52 Cf. João Manuel Cardoso de Mello. Op. cit., especialmente nas pp. 96 a 121. 53 Cf. a diferença de interpretação em Fernando Antonio Novais e João Manuel Cardoso de Mello. Capitalismo Tardio e Sociabilidade Moderna. In: Fernado Antonio Novais (coordenador geral) e Lilia Moritz Schwarcz (coordenadora de volume). História da Vida Privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea, vol. IV. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 560 a 655. 20 orientando pela ótica da acumulação54; com estes manteremos intenso diálogo. Assim, o que se persegue aqui é uma articulação entre o específico e o geral, o particular e o universal. Não buscamos estudar uma região pela região, ao estilo dos memorialistas, mas discutir uma questão central para o desenvolvimento do complexo cafeeiro paulista. Ora, certamente que a cidade de São Paulo se constituiu em seu centro nervoso, mas nem mesmo o corpo mais robusto pode se suster sobre pés de barro. Ao passo que as interpretações da economia brasileira sob a ótica da formação de um capitalismo tardio possuirão um grande peso em nosso estudo, outro tanto não se pode afirmar sobre as teorias monetárias, até porque nosso objetivo não recai em produzir uma explicação sobre a influência dos fluxos monetários sobre outros agregados econômicos, mas vislumbrar como o crédito afeta cada agente econômico em particular de uma economia específica numa determinada região. Evidentemente referir-se a crédito é, de certa forma, fazer menção ao sistema bancário e referir-se a este é também aludir às políticas monetárias. Na interpretação destas, à qual não podemos renunciar sem enorme prejuízo na análise dos processos creditícios, as obras que utilizaremos, evidentemente, trazem subjacente uma ou outra teoria da moeda; entretanto, conquanto não contradigam o conjunto dos relatos coevos (que certamente não serão homogêneos e que por isso mesmo devem ser comparados) ou dos indícios que coletamos, não lhes faremos maiores reparos, pois para atingir os objetivos que temos em mira não se faz necessário ultrapassar este ponto no entendimento das relações entre fluxos monetários e outros agregados econômicos. Em um trabalho de história, que por sua própria natureza não nutre o objetivo de produzir conceitos, mas sim de efetuar uma narrativa que, com o auxílio dos conceitos, também explique – como já afirmamos em outro ponto: para as ciências sociais o conceito é o ponto de chegada e a narrativa um possível caminho; para a história a narrativa é o ponto de chegada e o conceito um possível caminho; ou melhor, as ciências sociais reconstituem para explicar e a história explica para reconstituir – e mais ainda, em um

54 Cf. Rogério Naques Faleiros. Homens do Café: Franca 1880-1920. Campinas: IE-UNICAMP, 2002, dissertação de mestrado. Pedro Geraldo Tosi. Capitais no Interior: Franca e a História da Indústria Coureiro- Calçadista de Franca (1860-1945). Franca: UNESP-FHDSS, 2002. Regina de Campos Balieiro Devescovi. Urbanização e Acumulação: um estudo sobre a cidade de São Carlos. São Carlos: Arquivo de história comtemporânea/UFSCAR, 1987. Carlos Américo Pacheco. Café e Cidade em São Paulo: Um estudo de caso da urbanização na região de Araraquara e São Carlos. Campinas: IE-Unicamp, 1988, dissertação de mestrado. Zélia Maria Cardoso de Mello e Flávio Azevedo Marques de Saes. Características dos Núcleos Urbanos em São Paulo. Estudos Econômicos, vol. 15, nº 2 (maio/agosto de 1985), pp. 307 a 337 entre outros. 21 estudo de corte regionalizado como o nosso talvez a teoria ilumine menos os processos monetários que os testemunhos dos contemporâneos acerca da moeda. Quanto à documentação, seu eixo consiste nas escrituras de dívidas, colhidas principalmente junto aos registros deixados nos livros cartoriais do Tabelionato de notas de 2º ofício de Franca, para os anos de 1880 a 1914. Evidentemente não se trata de todas as escrituras de dívida para o período, pois para tanto faltaria incluir as escrituras do Tabelionato de 1º ofício, o que, acreditamos, de modo algum contrariaria a dinâmica esboçada apenas nas escrituras de 2º ofício, fato pelo qual nos concentramos nestas. Nesta documentação, encontram-se registradas várias transações, entre as quais operações de compra e venda, contratos de trabalho e contratos de dívida, que incluem hipotecas, subhipotecas, dações em pagamento, penhor agrícola, penhor mercantil, empréstimos com garantia de letras, empréstimos sem garantia e procurações para se contrair empréstimos. Durante o transcorrer do trabalho explicaremos cada uma destas modalidades do crédito. Esta documentação é muito rica pela quantidade e qualidade das informações que nos traz. Em geral temos o ano em que se efetuou o negócio, o nome do credor, o nome do devedor (em algumas há referência à ocupação de ambos), a cidade onde cada um reside, o valor emprestado, o prazo, a taxa de juros, o bem dado como garantia que por vezes encontra-se melhor detalhado, com suas dimensões, localização e benfeitorias; em algumas escrituras aparecem também o motivo do empréstimo e a forma como foi usada a quantia. Estas informações nos permitem não apenas avaliar os prazos e a taxa de juros conforme a conjuntura que se atravessava como também definir a que categoria pertenciam os maiores credores e os devedores, em que proporção se fornecia o crédito de fontes locais ou externas, para que atividades este fluía com maior intensidade e quais delas dispunham de melhores condições de prazo e juros na obtenção de empréstimos, ou melhor, traçar um quadro bastante complexo dos movimentos do crédito na região por meio da construção de séries que abarquem vários aspectos destes. Alguns personagens em específico, consoante sua representatividade em determinadas atividades, tais como os fornecedores de crédito, fazendeiros, comerciantes, receberão um tratamento mais verticalizado, com a análise principalmente de seus inventários. Também o faremos para comparar as condições de financiamento de negócios de grande e pequeno porte, como grandes e pequenos fazendeiros. Com esta análise qualitativa não apenas preencheremos as inevitáveis lacunas 22 que permanecem com uma documentação orientada primariamente para a construção de séries, onde as especificidades de um ou outro caso tendem a se dissolver no conjunto, como aprofundaremos nossa visão sobre as condições de financiamento, notadamente para os devedores. Os questionamentos acerca do crédito aos cafeicultores nos levou diretamente a analisar o crédito hipotecário, dada a sua importância para aqueles e em um exame preliminar da documentação percebemos que as hipotecas eram comuns tanto no tocante ao financiamento das atividades agrícolas quanto no meio urbano. Ora, tanto com relação à zona rural quanto com as atividades citadinas, isto coloca o problema fundamental de se saber a forma em que os bens imóveis (basicamente terras e terrenos urbanos) foram apropriados e de que maneira entraram no giro mercantil. Pode parecer um problema simples, não fosse a intervenção de fatores não-econômicos na questão: a apropriação da terra, durante o Segundo Reinado dependeu, em certa medida, dos serviços de demarcação de órgãos criados pelo governo central e durante a República de órgãos subordinados aos governos estaduais e de algumas autoridades municipais55; a propriedade de terrenos nas cidades, por outro lado, dependeu de concessões das Câmaras municipais ou de autoridades eclesiásticas56. Saber em que medida a apropriação destes imóveis se operou por meio de mecanismos de mercado não se constitui em problema irrelevante, mas sobremaneira difícil de se elucidar. Entretanto, na medida em que a propriedade destes bens se mostra fundamental para a obtenção de crédito, não podemos nos furtar de tentar respondê-la, mesmo que ao final cheguemos apenas a algumas indicações sobre a natureza deste processo. A dificuldade reside no fato de neste ponto adentrarmos no terreno das relações de poder, e, portanto deveríamos definir que personagens possuíam acesso a este, porque, se foram de alguma forma favorecidos ou não no tocante à aquisição de imóveis e as conseqüências disto. No caso dos imóveis urbanos podemos avaliar estas questões por meio das cartas de concessão de datas, documentos pelos quais a Câmara Municipal outorgava a um particular o direito a um terreno na cidade, exigindo para tanto apenas a edificação

55 Lígia Osório Silva. Terras Devolutas e Latifúndio. Campinas: Editora da Unicamp, 1996, p. 141 e seguintes. 56 Júlio César Bentivoglio. Igreja e Urbanização em Franca: século XIX. Franca: UNESP- Franca/Amazonas Produção de Calçados S/A, 1997, pp.86 a 120. 23 dentro de um determinado prazo e o pagamento de algumas taxas. Seu registro alcança o ano de 1898 e torna possível comparar, pelo menos para alguns anos, os nomes dos proprietários e a localização das propriedades, presentes nesta documentação, com os nomes dos devedores que hipotecaram imóveis urbanos, bem como a localização destes, presentes nas escrituras de dívidas. Esta documentação também os habilita a verificar, se os beneficiários destas concessões procediam a transações com esses imóveis como forma de capitalização, notadamente no caso dos fornecedores locais de crédito. No caso dos imóveis rurais a análise se complica não só pela gestão das autoridades estaduais sobre as demarcações quanto pelo volume de documentação existente. Existem várias ações de divisão de terras a nossa disposição, mas coletar a todas implicaria em um trabalho muito mais intenso de pesquisa. No caso dos imóveis rurais não poderemos efetuar um exaustivo cruzamento de nomes, mas ainda assim, examinando alguns desses documentos tentaremos esboçar a dinâmica geral. As ações de divisão de terras ocorriam quando um determinado proprietário, possuindo terras em comum com outros, entrava com processo judicial visando à demarcação e divisão das fazendas. Estes processos contêm, além dos nomes dos interessados, a forma como estes adquiriram os imóveis (neste ponto, como veremos no corpo do texto, a que se ter especial cuidado no tratamento das informações) as dimensões destes, a qualidade de seus solos, uma avaliação por hectare do valor de cada parcela das terras segundo sua qualidade e quanto coube a cada um dos proprietários, não só em extensão mas também em valor monetário consoante à avaliação. No caso de divisão não amigável, podemos ainda acompanhar cada fase do processo, as tentativas de contestação deste por parte de uns e os esforços de outros para a efetivação da divisão. A análise destes processos, ainda que examinemos uma pequena parcela deles, poderá nos esclarecer acerca do grau em que a aquisição destes bens obedecia ou não os mecanismos de mercado. Necessitaremos também do apoio da bibliografia que tratou da apropriação de terras durante o Segundo Reinado e a República, que se orientou basicamente a avaliar os efeitos da Lei de Terras de 1850, com vários estudos de caráter regional57. Entretanto, como nos

57 Cf. Lígia Osório Silva. Op. cit. José de Souza Martins. O Cativeiro da Terra. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979. Emília Viotti daCosta. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 7ª edição. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1999, capítulo 4: Política de terras no Brasil e nos Estados Unidos, apenas para citar alguns. Entre alguns trabalhos de corte regional: Angélica Alves de Castro. A 24 interessa apenas a forma como a terra poderia entrar no giro mercantil, nos concentraremos nas obras que dão um tratamento mais geral à questão, remetendo-nos a apenas alguns trabalhos mais específicos, notadamente aqueles que abordarem localidades da região que temos por foco. Ademais, para enfrentar todo este conjunto de questões, devemos também ancorar este trabalho em uma bibliografia que abarque as questões políticas durante a República, notadamente sobre um de seus fenômenos mais característicos em nível local, o chamado ‘coronelismo’. Esta bibliografia, apesar de partir de diferentes concepções de coronelismo (algumas o situando como um fenômeno específico da República Velha, outras o referindo a uma temporalidade bem mais dilatada), concentrou-se em algumas questões, tais como a vigência ou não e a forma que assumiu uma política de compromissos que, supostamente, foi a base do coronelismo. Esta política de compromissos conformaria as relações do coronel, figura identificada sempre com o poder local, com seus dependentes e os governos estaduais. Esta estrutura de poder por sua vez advinha de múltiplas dependências entre todos estes agentes58. Ora, para o entendimento das ações dos poderes locais durante este período é necessário nos remeter a esta bibliografia, para a qual também existem trabalhos de caráter mais abrangente e outros que se concentraram em determinadas regiões. Neste caso, mais uma vez, nos concentraremos nas obras de cunho mais geral. Obviamente, não buscamos atingir a generalidade e a precisão conceitual destas obras, oriundas, em sua maioria, de pesquisas em ciência política, mas apenas um respaldo para o entendimento das relações sociais que levaram a determinadas formas em que os bens imóveis foram apropriados e que porventura não dependeram de mecanismos de mercado. Desdobramos uma questão inicial, sobre as condições de financiamento da lavoura cafeeira, em várias outras que remetem, na verdade, ao papel do crédito nas localidades do interior paulista, o que, de fato, para nós não se constitui em nenhuma contradição, já que o movimento do crédito em uma dada direção certamente lançaria sua influência sobre outras aplicações. Além disso, não se pode analisar uma questão como esta se não se tem ao

Propriedade da Terra: conflitos e litígios pela legalização da posse no contexto da lei de terra de 1850 Franca – SP (1850-1889). Franca: UNESP/FHDSS, 2000, dissertação de mestrado. Lucila Reis Brioschi. (Et. Alli.). Entrantes no Sertão do Rio Pardo: o povoamento da Freguesia de Batatais século XVII/XIX. São Paulo: CERU, 1991. 58 Angela de Castro Gomes e Marieta de Moraes Ferreira. Primeira República: um balanço historiográfico. Estudos Históricos, vol. 2, nº 4, pp. 250 e 251. 25 menos um indício sobre quem empresta, como capta seus recursos e como estes são afetados pelo movimento geral da economia. Evidentemente, pela característica de nosso objeto, de corte regionalizado, não nos lançamos a uma abordagem mais verticalizada sobre o comissariado, o que demandaria um estudo que extravasasse as fronteiras de um único município, mas a documentação, como iremos observar, fornece subsídios indiretos sobre a atuação do comissariado no município. Talvez apenas um estudo como este, associado a outros sobre várias cidades, sua inserção na dinâmica da economia cafeeira e do crédito em particular, possam delinear um quadro geral deste na economia cafeeira paulista, algo que, nas circunstâncias atuais, se encontra além de nossas forças. Também associamos o movimento próprio da economia aos condicionantes da política, passo que embora temerário, se nos afigura necessário para se entender o conjunto de relações associadas à atividade do crédito. Consideramos este procedimento legítimo na medida em que se trata de um trabalho de história, não de economia e tampouco de ciência política e o historiador não deve secionar a realidade. Como já afirmamos, a documentação possui um eixo, centrado nas escrituras de dívida, que fornecerão uma sólida base quantitativa para o trabalho. Sob esta base quantitativa, nos lançaremos ao exame da documentação de cunho mais qualitativo, buscando sempre que possível estabelecer conexões entre os personagens que se mostrarem mais significativos no tocante a um setor de atividade. A dissertação será composta de três capítulos: O primeiro, que intitulamos Crédito e café: dinâmicas entrelaçadas, pode ser considerado como um capítulo introdutório acerca da problemática econômica. Nele delineamos as linhas gerais de interpretação da economia capitalista de São Paulo pelos teóricos do ‘Capitalismo Tardio’ efetuando uma comparação com a economia cafeeira que se desenvolveu no Vale do Paraíba, desdobrando esta comparação em outra sobre o crédito nas duas regiões, nunca perdendo de vista esta conexão entre crédito e o conjunto da economia. Além desse quadro mais geral, discutiremos a introdução da ferrovia no município de Franca e as transformações que se seguiram, com a implantação em larga escala da cafeicultura e a conformação que esta ganhou em Franca. Utilizaremos principalmente a bibliografia atinente a estes diversos pontos. No segundo capítulo, A cadeia do crédito em movimento: pela ótica dos credores, analisamos as atividades creditícias sob o prisma dos vários emprestadores: o financiador, o 26 fazendeiro (quando exerce esta função), os comerciantes; sempre que possível estabelecendo as várias formas de captação de recursos pelos credores e as possibilidades de acumulação em suas várias operações, confrontando as escrituras de dívida com inventários de alguns personagens que sobressaem em uma ou outra documentação ou ainda aqueles que receberam um tratamento específico pela bibliografia local. Evidentemente que para acompanhar a atuação de alguns personagens específicos faremos uso de uma documentação variada, incluindo almanaques, jornais, registros de firmas comerciais, etc., que nos auxiliarão também, neste mesmo capítulo, a discutir o peso das relações de cunho personalista em uma região que experimentava intensa monetarização e urbanização, tanto tentando abarcar estas relações de um prisma mais geral quanto tentando estabelecer as ligações familiares e comerciais (e relacionando ambas, se for o caso) de determinados personagens bem como a natureza de sua atuação. Finalmente, no último capítulo, A cadeia do crédito em movimento: pela ótica dos devedores, analisamos as atividades creditícias sob o prisma de várias categorias de devedores, mas principalmente dos grandes fazendeiros e pequenos fazendeiros – posto que por uma análise preliminar dos dados percebemos que devido a relações diferenciadas que os maiores proprietários e os menores estabeleceram com os credores, deviam ser tratados separadamente - sempre que possível estabelecendo as necessidades por numerário e condições de solvência dos devedores. Neste capítulo também nos debruçaremos sobre a forma em que se deu a apropriação territorial, comparando a forma como a bibliografia pertinente tratou a questão com a documentação que arrolarmos. Uma última palavra sobre a formatação: neste trabalho, deliberadamente, não seguimos as normas da ABNT, não porque acreditemos que não deva haver nenhuma regra para a escrita de um trabalho acadêmico, mas porque muitas vezes estas normas carecem de sentido. Assim, por exemplo, sabe-se que existem muito mais sobrenomes que nomes, o que justifica a citação do autor pelo sobrenome quando este estiver em uma lista, ou seja, na bibliografia, mas não no texto. Por isso todos os autores que utilizamos foram citados pelo primeiro nome, exceto na bibliografia. Acreditamos também que o único sentido de se destacar uma citação do texto é tecer comentários acerca desta; quando a citação objetiva apenas enfatizar o raciocínio optamos por mantê-la no corpo do texto. Quando reproduzimos os documentos optamos por manter a grafia original, a fim de não 27 descaracterizá-los. No resto, nos aproximamos das regras de citação da ABNT. Enfim acreditamos que delineamos, em linhas gerais, o objetivo e a forma de condução deste trabalho. 29

Capítulo I Crédito e café: dinâmicas entrelaçadas

Uma breve comparação entre o Oeste Paulista e o Vale do Paraíba

Referir-se a crédito entre a segunda metade do século XIX e o ano de 1930 no Brasil é aludir principalmente a crédito para o café, ou melhor, para as atividades ligadas direta ou indiretamente à produção e comercialização do produto. Para uma melhor compreensão desta relação devemos delinear primeiro o movimento engendrado pela própria produção cafeeira, cujos desdobramentos se transferem para a economia brasileira como um todo e com as regiões produtoras mais estreitamente; a seguir estabelecer os contornos da estrutura geral do sistema creditício e tentar apontar algum nexo entre ambos. Mas como analisamos um espaço específico (um município no interior de São Paulo) em um período delimitado (1885-1914) faz-se necessário também associar a estes processos de ordem mais geral as especificidades que esta dinâmica pode ter apresentado na economia cafeeira da Província e depois Estado de São Paulo, com a qual o município de Franca entrosou-se de forma definitiva a partir de 1887, como veremos adiante. Uma breve comparação com o Vale do Paraíba (localizado em sua maior parte no Estado do Rio de Janeiro e áreas limítrofes com o Estado de São Paulo e ), ainda que com grande dose de impressionismo, mostra-se salutar para a compreensão do movimento característico da economia que se desenvolveu em São Paulo a partir de 1870 sob a égide do café, ainda mais que tendo o Vale se constituído no centro nervoso da economia brasileira até o terceiro quartel do século XIX1 e São Paulo pelo final do mesmo século, coincidiram no tempo o domínio da primeira região com o domínio do braço escravo na lavoura e a ascensão do trabalho livre com a ascensão da segunda região na produção de café, processo que certamente trouxe consigo conseqüências profundas para a forma como se estruturou a economia e as formas de crédito que se desenvolveram num e

1 Cf. Caio Prado Júnior, op. cit., p. 162.

30 noutro caso. Assim, mais que uma comparação geográfica, trata-se de comparar duas épocas distintas e suas regiões mais representativas. Bastante conhecidas são as condições diversas que a longo prazo determinaram os aspectos diferenciados sob os quais se deu a expansão da lavoura cafeeira no Vale do Paraíba e no Oeste Paulista, neste abrindo caminho para o surgimento de um extremamente dinâmico complexo cafeeiro, entendido como um conjunto de atividades integradas entre si, tais como: comércio de exportação e importação, transporte ferroviário, produção de alimentos, ensacamento, beneficiamento, constituição de uma infra-estrutura urbana, enfim, todas as atividades necessárias à produção e comercialização do café, nucleadas pela produção cafeeira e que se incrementaram mutuamente, reforçando o ritmo da acumulação; e no Vale restringindo as possibilidades de crescimento econômico devido a exaustão das terras e a cada vez maior proximidade do fim da escravidão, conforme se avança na segunda metade do século XIX. Seguindo Wilson Cano, podemos apontar um sério obstáculo a expansão da lavoura cafeeira no Vale do Paraíba, que residia nos limites espaciais da área onde a rubiácea poderia ser cultivada com sucesso (devido às próprias condições de clima e relevo), esta compreendendo apenas as terras mais altas (neste caso entre 200 e 550 metros). O próprio autor refere-se de forma mais precisa a esta região: “O esgotamento da região ocidental (Resende, Vassouras, Barra Mansa e outras) após 1860 provocaria o deslocamento do café para a região oriental (Cantagalo, Paraíba do Sul, etc.), praticamente terminando aí sua possibilidade de expansão”2. O fim do tráfico de escravos em 1850 se revelaria outro duro golpe para a cafeicultura do Vale, que agora apenas poderia continuar produzindo sob condições de aumento crescente dos gastos com aquisição de mão-de-obra3. O encarecimento dos preços dos cativos e o desgaste natural dos solos (que levava conseqüentemente a uma queda progressiva da produtividade) resultou em um declínio constante das taxas de lucratividade. Ou mais explicitamente, os cafeicultores passavam a operar com custos crescentes e lucros decrescentes. Mas ainda assim, como explicar a persistência desses fazendeiros, pelo menos da maioria, na utilização do trabalho escravo e no emprego de técnicas rudimentares para o

2 Wilson Cano. Op., cit., p. 37. 3 Cf. Idem, ibidem, p. 38 e 39.

31 cultivo do solo? Pode-se afirmar que os mesmos fatores responsáveis por seu sucesso explicam também seu posterior fracasso. Na verdade o intenso uso de mão-de-obra cativa e as técnicas predatórias aplicadas aos solos foram consentâneos à forma predominante em que o Brasil se reinseriu nos mercados internacionais durante o século XIX por meio de seu principal produto, o café. Em outras palavras: o objetivo era produzir muito e barato4. Maria Sylvia de Carvalho Franco evidencia como “...os componentes básicos com que se organizou a velha civilização do café, a forma de que se revestiram, os nexos estabelecidos entre eles foram vivificados pelo princípio que conferiu sentido a todo o conjunto: a coerência com a produção capitalista.(...)Na desagregação de todo esse conjunto, qualquer de seus componentes só revela suas implicações deletérias quando exposta sua relação com o sistema capitalista. Quando se revela esse nexo, ressalta a contradição que minou o sistema: a exigência de criar mais significou sempre o imperativo de destruir mais”5. Portanto, o próprio avanço, conforme prosseguia, chegou a um ponto em que tornou improvável a mudança tanto para um sistema baseado no trabalho livre quanto para formas mais racionais de uso da terra. Entretanto, como a decadência nos ajuda a entender a dinâmica? O primeiro ponto a reter é que a cafeicultura do Vale dependia de forma estrutural do trabalho escravo e operava numa conjuntura progressiva de aumento de custos, o que, evidentemente, tornava o seu custeio e financiamento mais oneroso a longo prazo, apesar desta mesma mão-de-obra cativa não exigir a inversão constante de fluxos monetários para sua manutenção, como o trabalho livre . As características inerentes ao mercado cafeeiro compõe mais um elemento nesta dinâmica. Pode-se afirmar que as flutuações dos preços internacionais do produto apontam para a existência de dois períodos que se distinguem pelo comportamento da demanda: um onde o consumo de café ainda não se encontrava generalizado e outro posterior a esta generalização, depois de 1830. No primeiro houve uma acentuada queda de preços consoante a adoção de seu consumo por largas camadas da população dos países importadores, fundamentalmente Estados Unidos e Europa Ocidental, enquanto que no segundo período apenas se estabeleceria um limite superior de preços, condicionado pela concorrência internacional entre os produtores, pela possibilidade de substituição do café

4 Cf. Maria Sylvia de Carvalho Franco. Op. cit., p. 213. 5 Idem, ibidem, pp. 13,14 e 16.

32 por outras bebidas e pelas limitações ligadas ao próprio poder aquisitivo dos consumidores. Como resultado, inexistiu uma tendência secular para os preços do produto (dada a impossibilidade de que se elevassem indefinidamente, ou ainda, de que baixassem de forma contínua sem que se operasse ajustes entre a oferta e a procura)6. De fato, os preços do café apresentaram movimentos cíclicos, notadamente pelas condições de sua oferta, pois como o cafeeiro inicia sua produção apenas após o quarto ano, qualquer estímulo a uma expansão das plantações por um eventual aumento de preços somente elevaria a quantidade exportada depois de decorrido este prazo. Claro é que, com mais café no mercado, seu preço tendia a se deprimir, desestimulando investimentos em novos plantios, reduzindo a oferta futura, o que pressionaria os preços para cima, reiniciando o ciclo. Logicamente havia uma acomodação com o nível de procura mundial, pois a oferta é sempre considerada excessiva ou diminuta em relação àquela. A demanda internacional pela bebida, ao menos até a década de 1890 e excetuando-se alguns pequenos períodos, demonstrou uma tendência de aumento progressivo, baseado em dois fatores: incremento demográfico – entre 1850 e 1900, a população européia (exclusive Rússia e países que compunham a União Soviética) saltou de um patamar de 266 milhões de habitantes para 401, enquanto que os Estados Unidos subiram de 23 milhões para 76 na mesma época – e de nível de renda dos consumidores. Este crescimento constante da procura permitiu que as exportações passassem de 2,6 milhões de sacas em 1857 para 6,24 milhões entre 1884 e 18857. Claro que em se tratando de um produto de demanda inelástica como o café, chegaria um momento em que um aumento de renda não mais reverteria em um aumento do consumo, sua elevação dependendo apenas do incremento populacional. Há também uma outra conseqüência deste dinamismo da procura, que consiste na sua capacidade em restabelecer o equilíbrio do mercado cafeeiro, já que impedia a formação de uma grande disparidade entre oferta e demanda, assim como agia no sentido de manter as receitas das exportações em um determinado patamar quando da baixa dos preços, pois esta se compensava por meio de um incremento do volume exportado. A entrada de divisas (já que o café era pago em moeda estrangeira), portanto, não sofria grandes quedas. Como resultado, os preços em moeda nacional (pelos quais os fazendeiros

6 Cf. João Manuel Cardoso de Mello, op. cit., pp. 65 e 66. 7 Cf. Antônio Delfim Netto. Op. cit., pp. 7 a 19 e 29 a 30.

33 eram remunerados), e os preços externos não divergiam muito. Estes movimentos jogavam a favor de uma estabilidade cambial a longo prazo, o que certamente influenciava o comportamento do ciclo, considerando-se os estímulos à expansão das plantações que poderiam provir de uma desvalorização excessiva do mil-réis8. O comportamento do câmbio, porém, dependia em larga medida das políticas cambial e monetária aplicadas durante o período. Estas, durante toda a segunda metade do século XIX, em sua implementação buscavam se adequar às regras do padrão-ouro, segundo as quais cada país além de estabelecer a paridade de sua moeda com o ouro (moeda dominante nas transações internacionais), deveria reservar a este completa liberdade de movimento em âmbito internacional e manter políticas que permitissem a repercussão total dos fluxos de ouro sobre a moeda, a renda e os preços internos. Assim, se um país sofresse de déficits em sua balança comercial, compensaria a diferença com exportação de ouro, o que, mantendo-se a paridade deste com a moeda nacional, levaria a uma contração do papel-moeda em circulação9. Segundo Pelaez e Suzigan, durante as fases ascendentes do preço internacional do café (1857-1862 e 1869-1873) seguiu-se esses preceitos tal como enunciados, objetivando manter o mil-réis na paridade de 27 dinheiros esterlinos em ouro, fixada em 1846; nos períodos de queda do preço externo do café (1862- 1869 e 1877-1885), esquecia-se da livre movimentação do ouro e da equiparação dos preços internos ao metal; implementavam-se políticas de caráter um pouco mais expansionista, aumentando a quantidade de moeda em circulação e desvalorizando o

8 Cf. Idem, ibidem, pp. 28 a 30. 9 Na verdade, segundo Eichengreen este é o modelo proposto por David Hume para o padrão ouro, mas este deveria incluir ainda os fluxos internacionais de capital e a atuação dos vários bancos centrais no sentido de tornar atrativa a colocação de títulos estrangeiros em seus mercados por meio da arbitragem das taxas de redesconto (grosseiramente é a taxa que o banco central paga para se tornar credor de uma obrigação de um terceiro. Evidentemente, como o credor original não quer perder todo o rendimento que obteria mantendo o título em seu poder e recebendo na totalidade os juros previstos na operação, o banco central lhe paga, além do capital, uma parcela destes juros para adquirir o título, esta é a taxa de redesconto) e pela quantidade de papel-moeda não conversível que colocasse em circulação. No início do século XX apenas quatro países haviam adotado um padrão puramente baseado no ouro: Inglaterra, Alemanha, França e Estados Unidos e este havia flertado por muito tempo com um padrão bimetálico (ouro/prata). Entretanto, após a década de 1870, quando na maioria dos países se abandona o bimetalismo e de fato se consolida o padrão ouro, apesar de alguns países manterem reservas mistas – combinando o ouro com haveres monetários dos países cujas moedas eram conversíveis em ouro, em diferentes proporções – todos os seus sistemas monetários passam a depender fundamentalmente dos fluxos internacionais do metal. Reproduzimos o modelo de David Hume apenas para facilitar a exposição. Barry Eichengreen. A Globalização do Capital: uma história do sistema monetário internacional. São Paulo: Editora 34, 2000, pp. 36 a 57.

34 câmbio (notadamente durante o financiamento da Guerra do Paraguai, entre 1864 e 1970)10. Entretanto deve-se ressaltar, mais uma vez, que a receita em mil-réis do café foi mantida pelo aumento físico das exportações, não pelas desvalorizações11, tanto que os preços internos e externos coincidem, em larga medida, até o final da década de 1880. É evidente também que este tipo de política produzia também seus efeitos sobre o crédito, conforme se restringia ou expandia o montante de papel-moeda em circulação. Após esta rápida descrição do cenário em que se dava a expansão das lavouras podemos nos deter com maior vagar nas formas de financiamento da economia do Vale do Paraíba e considerar o peso de cada fator neste processo. Para tanto, devemos voltar nossa atenção para um personagem que até agora negligenciamos: o comissário. O comissário12 surge como um intermediário entre o fazendeiro e o exportador na venda do café. Na verdade, o comissário não agia apenas como um mero representante comercial, embora inicialmente suas atividades tenham se restringindo a tal função. Também fornecia a seus clientes vários artigos oriundos dos grandes centros urbanos de que estes necessitavam, mas sua centralidade na economia cafeeira advinha da posição que ocuparam no fornecimento de crédito para a lavoura, que se impôs ao comissário praticamente como uma exigência para a prosperidade de seus negócios, já que o fazendeiro dificilmente dispunha de condições para se autofinanciar. Esta operação implicava na imobilização de grandes somas de capital do comissário na fazenda, dadas as condições de produção que já descrevemos, ao passo que entre os demais intermediários, o que na verdade inclui o ensacador entre o comissariado e os exportadores, as transações realizavam-se sempre a prazo curto. Assim, fazia-se necessário, para este banqueiro dos fazendeiros, a concentração do produto de várias propriedades dispersas em suas mãos, a fim de que sua atividade se mostrasse lucrativa. Neste ponto do negócio, atuaram, como poderoso elemento para atrair grande número de clientes, as relações pessoais. Os vínculos entre comissário e fazendeiro não se restringiam às mútuas obrigações comerciais, estas desde o início achavam-se imbricadas em ligações de vizinhança, amizade ou mesmo parentesco, garantidas pela confiança recíproca, mas ao

10 Cf. Carlos Manuel Peláez e Wilson Suzigan. História Monetária do Brasil: Análise da Política, Comportamento e Instituições Monetárias. 2ª edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981, pp. 85 a 99. 11 Cf. Idem, ibidem, 127 a 134.

35 mesmo tempo funcionais do ponto de vista econômico para os envolvidos no negócio. Como corolário da própria natureza destas relações, a reputação – tanto no caso do comissário, que sob o risco de perder sua clientela jamais deveria ser apanhado fraudando os cálculos relativos às receitas e débitos dos fazendeiros, quanto no caso dos fazendeiros, que evitavam ficarem conhecidos como maus pagadores – constituiu-se em pilar fundamental dos negócios. Destarte, as obrigações deste intermediário mercantil para com seus fregueses não se restringia à esfera econômica: “A mesa grande, farta e aberta aos que viessem, a hospedagem por ocasião de visitas à capital, a acolhida e o cuidado dos filhos mandados a estudar, a compra e a remessa dos artigos inexistentes no interior, contavam-se entre os programas observados pelas casas comissárias”13. Em contrapartida, o comissário, em prol de seus próprios interesses, acabava por interferir na gestão da fazenda, tomando o cuidado apenas de não se envolver na administração direta do processo de trabalho, mas influenciando nas decisões acerca dos investimentos realizados. Não obstante, do ponto de vista da acumulação de capital, o essencial nesse processo reside na extração dos lucros do produtor pelo intermediário e na conseqüente descapitalização daquele14. Isto impõe uma outra questão: e o crédito bancário? Não se encontrava apto para financiar a produção dos cafezais? E quais as condições de empréstimo vigorantes entre os bancos e entre os comissários? Além disso, qual seria o tipo de crédito adequado para a lavoura? Pelas próprias condições da produção cafeeira, que já descrevemos, torna-se evidente que esta necessitou de crédito a longo prazo, ao menos em seus investimentos iniciais. O desenvolvimento bancário, de sua parte, experimentou grande incremento com o fim do tráfico de escravos em 1850, quando os capitais até este ano aplicados nesta atividade puderam desviar-se para inversões em atividades de cunho urbano, notadamente na cidade do Rio de Janeiro. Remontam a esta década, a fundação dos bancos Mauá, MacGregor & Cia., do Banco Comercial e Agrícola e do Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro. O Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro foi o único autorizado por lei a conceder empréstimos garantidos por hipotecas, pois aos demais, apesar de poderem realizar descontos de letras, depósitos a vista e a prazo, investimentos em títulos, etc.,

12 O que se segue sobre o comissário encontra-se em Maria Sylvia de Carvalho Franco, op. cit., pp. 160 a 171. 13 Idem, ibidem, p. 163. 14 Cf. Idem, ibidem, p. 164 e 169.

36 estava vedada este tipo de operação15. Destacamos este fato porque nosso objetivo recai na relação do sistema bancário com a cafeicultura, numa perspectiva de mais longo prazo, e as hipotecas, abrindo a possibilidade de o devedor fornecer como garantia as suas propriedades imobiliárias, melhor se adequavam a prazos mais extensos de empréstimos. Portanto a questão a colocar-se se refere à funcionalidade do crédito hipotecário praticado pelos bancos para os fazendeiros, e o porquê. Percebe-se que o Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro, embora criado para atender a demanda existente pelo crédito hipotecário, nunca priorizou esta atividade entre os seus ativos (do ponto de vista contábil é o conjunto de bens e haveres a receber), dedicando-se com maior ênfase a aplicações de mais curto prazo ou mais seguras16. Isto apesar da maior regulamentação introduzida com a nova lei de hipotecas de 1864. Não obstante, indiretamente, o banco parece ter desempenhado um papel importante no incremento do crédito direcionado à agricultura, já que grande parte de seus empréstimos destinou-se a elementos qualificados como comissários, alguns destes possuindo ações da própria instituição17. Stanley Stein também enfatizou esta função dos bancos enquanto emprestadores dos comissários: “Constituindo de longe, o mais ativo e poderoso setor do comércio do Rio de Janeiro, os comissários sacavam abundantemente sôbre as vinte e uma casas bancárias fundadas na década de 50 e 60. A despeito dos serviços prestados pelos estabelecimentos bancários aos comissários, os capitais de que dispunham eram relativamente restritos; individualmente, nenhum dêles possuía o capital do Banco do Brasil, instituição oficial, com seus 30.000 contos. Redescontavam no Banco do Brasil títulos de crédito assinados pelos comissários. O Banco do Brasil se transformou, assim, de fato, em ‘banqueiro dos bancos’”18. Portanto podemos concluir que devido às formas

15 Cf. Carlos Guilherme Guimarães. O Império e os Bancos Comerciais do Rio de Janeiro na Segunda Metade do Século XIX: os casos do Banco Mauá, MacGregor & Cia., do Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro e do Banco Comercial e Agrícola. Anais do III Congresso Brasileiro de História Econômica e 4ª Conferência Internacional de História de Empresas. Curitiba/UFPR, 1999, pp. 3 a 5. 16 Cf. Idem, ibidem; Idem, A Guerra do Paraguai e a Atividade Bancária no Rio de Janeiro no Período 1865-1870: o caso Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro. Anais do IV Congresso Brasileiro de História Econômica e 5ª Conferência Internacional de História de Empresas. São Paulo/FEA-USP, 2001; Idem, O Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro e o Pós-guerra do Paraguai, 1871-1875. Anais do V Congresso Brasileiro de História Econômica e 6ª Conferência Internacional de História de Empresas. Caxambu, 2003. 17 Cf. Idem, A Guerra do Paraguai..., op. cit., p. 7. 18 Stanley J. Stein. Op. cit., pp. 255 e 256.

37 em que se desenvolveu o sistema bancário, pelas conexões existentes com o comissariado, sua trajetória certamente traria implicações importantes para o financiamento da lavoura. Acompanhando mais de perto a atuação principalmente do Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro, percebe-se que os bancos eram muito sensíveis, do ponto de vista de sua rentabilidade e mesmo na composição de suas principais aplicações, às mudanças bruscas na condução da política monetária pelo governo central. Esta demonstrou grande influência sobre os destinos das instituições bancárias, tanto que após a Guerra do Paraguai estas instituições se ressentiram das políticas contracionistas (visando contrair a quantidade de moeda em circulação) aplicadas pelo governo, o que levou a uma crise no setor comercial da cidade do Rio de Janeiro e a várias falências no ano de 1875, entre elas a do Banco Mauá & Cia. Não obstante, o Banco Rural e Hipotecário sobreviveu graças ao auxílio governamental que recebeu por meio de um empréstimo de 3.480:000$000 (três mil e quatrocentos e oitenta contos) do Tesouro Nacional19. Durante a Guerra do Paraguai, consoante às necessidades financeiras que se impuseram face às despesas com o conflito, o Banco Rural e Hipotecário aproveitou a oportunidade para alterar drasticamente a composição de seus ativos, diminuindo o montante de empréstimos por meio de desconto de letras e aumentando a aquisição de títulos, notadamente do governo – como as letras do Tesouro Nacional, sobre as quais em 1865 o banco não havia investido, mas em junho de 1868 já perfaziam 1.825:000$000 de suas aplicações e em 1870 já alcançavam 10.016:000$000 enquanto que as letras descontadas, que em junho de 1865 compunham 12.670:957$583 e as letras de hipoteca 1.996:462$430 dos ativos do banco, em 1870 caem a 5.598:362$305 no caso daquelas e a 1.657:906$247 no caso das hipotecas – o que conferia maior segurança e talvez até maior lucratividade aos seus investimentos. Carlos Gabriel Guimarães, comparando os balanços do banco de 1865 e 1870, considera que houve melhoria na situação financeira do banco20. Para Tannuri, esta ligação entre o setor bancário e dívida pública, que situa a partir de 1864 e se estende ao longo do tempo, estava associada de um lado ao aumento da concorrência interbancária e de outro à lenta e agonizante queda da cafeicultura do Vale do Paraíba: “... resulta de feroz concorrência dos bancos ingleses nas transações cambiais

19 Cf. Carlos Gabriel Guimarães. O Banco Rural..., op.cit., pp. 1 a 9. 20 Cf. Idem. A Guerra do Paraguai..., op. cit., pp. 1 a 9 e 15.

38 referentes ao comércio exterior (câmbio) e, internamente, com a decadência da cafeicultura, da queda paulatina dos seus vínculos financeiros, se bem que indiretos, com a produção. Daí procurarem os bancos nacionais inversões alternativas. Dentre elas, a compra de apólices oficiais que, gradativamente, aumentariam sua participação nos ativos bancários, fato que redundaria no ‘esvaziamento’ desses bancos, como intermediários financeiros”21. Apesar de sua aparente solidez, bastou uma mudança na direção seguida pela política monetária para que o Banco Rural e Hipotecário (e todo o setor comercial e creditício da cidade do Rio) sofresse sérios abalos. Visando valorizar o câmbio, o governo diminuiu a quantidade de papel-moeda emitido, cujo total (incluindo o papel-moeda posto em circulação pelos bancos), de um patamar de 192.527:000$000 em 1870 passa a 181.868:000$000 em 1875. Para fazer frente a esta nova conjuntura, agravada pela insolvência de vários de seus devedores, o Banco Rural e Hipotecário empreendeu uma liquidação de seus títulos, que para além de dirimir seus prejuízos, segundo relatórios de sua diretoria, buscava fornecer crédito à combalida Praça de Comércio do Rio de Janeiro. Houve também um grande aumento dos empréstimos em conta corrente em contraposição ao desconto de letras, com grande participação naqueles, enquanto tomadores desses empréstimos, de acionistas do próprio banco, o que mostra que as relações pessoais não se faziam presentes apenas entre comissários e fazendeiros. O banco aumentou seu fundo de reserva durante o período e surge uma conta em seus passivos (do ponto de vista contábil são as obrigações a pagar) denominada Caução do Tesouro Nacional, provavelmente criada para atender às necessidades advindas do pagamento do empréstimo realizado junto ao Tesouro ao qual já aludimos. O fato de apenas O Banco Rural e Hipotecário ter recebido auxílio governamental talvez se explique por suas prováveis conexões com membros do governo, mas certamente pesou nesta decisão a natureza de seus acionistas, entre os quais contavam-se vários outros bancos e o próprio Banco do Brasil, o segundo maior detentor de suas ações no período22. Portanto, auxiliá-lo equivalia a auxiliar grande parte do setor financeiro carioca.

21 Luiz Antonio Tannuri. O Encilhamento. São Paulo: Hucitec; [Campina, SP]: Fundação de Desenvolvimento da Unicamp, 1981, pp 29 e 30. 22 Cf. Idem. O Banco Rural e Hipotecário..., op. cit., pp. 2 a 9.

39

Até aqui estabelecemos de forma bastante genérica e parcial, além de temporalmente limitada, as relações entre política econômica, sistema bancário e financiamento da agricultura no Vale do Paraíba. Mas o objetivo era apenas identificar as tendências gerais. Entretanto, ainda não observamos com maior vagar o crédito pela ótica dos produtores. Para esta direção devemos nos voltar agora. Renato Leite Marcondes efetuou um estudo sobre o crédito hipotecário no Vale do Paraíba paulista, enfocando principalmente as cidades de Lorena e Guaratinguetá, entre 1865 e 188723, onde discute várias questões concernentes à taxa de juros, à penetração do crédito bancário e as condições de financiamento da produção cafeeira, do qual nos serviremos largamente a fim de traçar um quadro geral das relações que se constituíram entre os fazendeiros e o sistema creditício vigente. Pode-se afirmar que todas as questões tratadas pelo autor de certa forma acham-se imbricadas, mas devemos partir de uma delas com o fito de estabelecer seus liames. Destarte, a predominância do crédito bancário ou pessoal mostra-se fundamental para a forma de que se revestiu o financiamento à produção agrícola, por isso este será nosso ponto de partida. Podemos destacar que em um primeiro momento o autor associa a prevalência do crédito com base em relações de cunho pessoal, onde sobressaem as figuras do comissário e do capitalista24, a uma fraca regulamentação do crédito e ao pouco desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro – limitado principalmente pela assimetria de informações, notadamente nas regiões distantes dos grandes centros comerciais, onde a obtenção de informação sobre os devedores mostrava-se de grande dificuldade – o que de certa forma fora parcialmente minorado com o Código Comercial de 1850 e as leis de 1864/1865 regulando as hipotecas, tanto que o próprio Banco do Brasil passou a atuar com empréstimos garantidos por hipotecas a partir de 1867. O principal constrangimento para o cafeicultor em recorrer a empréstimos por via do comissário ou do capitalista residia nas altas taxas de juros cobradas, derivadas da própria posição de intermediários financeiros desses agentes. Em Lorena a taxa de juros

23 Cf. Renato Leite Marcondes. O Financiamento Hipotecário da Cafeicultura no Vale do Paraíba Paulista (1865-87). Revista Brasileira de Economia, vol. 56, nº1, Jan/Mar. De 2002, pp. 147-170. O que se segue sobre financiamento da cafeicultura está baseado neste artigo. 24 Na verdade nesta época a palavra capitalista era utilizada para designar o usurário, o emprestador de dinheiro, remetendo a uma significação da palavra ‘capital’ enquanto montante de dinheiro, não enquanto

40 média entre 1850 e 1872 alcançava o patamar de 16% ao ano. Não obstante, o comportamento da taxa de juros, entre 1865 e 1887, parece apontar para uma progressiva redução, o que Marcondes atribui à penetração do capital bancário. O argumento torna-se mais consistente quando se percebe que durante a crise de 1874/1876 as taxas de juros apresentam-se discrepantes entre o município de Lorena, onde aumentam, e Guaratinguetá onde se mantêm estáveis, provavelmente pela chegada do capital bancário nesta localidade antes que em Lorena. Na segunda metade da década de 1860 a taxa de juros para o crédito hipotecário chega a casa dos 14% ao ano nos dois municípios, vindo a oscilar entre 11 e 10% entre 1879 e 1886, atingindo 9,5% em 1887. A média dos prazos para empréstimos também reage de maneira similar ao longo do tempo: até meados da década de 1870 o prazo médio não alcançava três anos, após 1880 ultrapassava os três anos, em alguns anos da década de 1880 chegava a mais de cinco anos. O que atesta que o crédito bancário também surtia o efeito de alongar estes prazos. Também variavam conforme o valor da dívida, aumentando em proporção direta a este: em Guaratinguetá, para os empréstimos com valor igual ou maior que 10:000$000, atingia em média 6,9 anos, enquanto que para os valores inferiores a 10:000$000 eram em média de apenas 2,1 anos. A mesma correlação existia para a taxa de juros cuja média em Guaratinguetá alçava-se a 10% para quantias iguais ou superiores a dez contos e a 11,7% para montantes menores (Lorena apresentava números semelhantes), o que demonstra que a entrada do capital bancário nestas localidades beneficiou, sobretudo, os cafeicultores de maior porte. Tal característica da atuação dos bancos permitiu que os financiadores locais mantivessem elevada participação no conjunto dos créditos hipotecários da região, que durante todo o período abarcado por Marcondes era de 58,6% em Lorena e 50,2% em Guaratinguetá. Estes financiadores locais concentraram-se nos pequenos empréstimos, área pouco explorada pelos bancos. O autor não nos mostra, para o caso específico de Lorena e Guaratinguetá, quais instituições bancárias concentraram o maior número de hipotecas realizadas na região, mas aponta, para o caso de Vassouras, a expressiva participação do Banco do Brasil, que representava 3/4 de todo o financiamento bancário do município em questão. Em 1878, o

uma relação social onde o valor é transformado em mais-valor. A partir deste ponto, sempre que nos referirmos a capitalistas e não especificarmos o seu significado é neste sentido que os entendemos.

41 mesmo Banco do Brasil recebeu 88% das amortizações devidas (pagamentos de parcelas do capital) de todos os créditos garantidos por hipotecas que concedeu (não apenas em Vassouras), mas em 1884 foram tão somente 54%. Tal estado de coisas levou o banco a abandonar o crédito com hipotecas rurais. Além da conjuntura econômica, de decadência de todo o Vale do Paraíba, pesou na decisão a dificuldade de execução das hipotecas, derivada de direitos de propriedade mal definidos com relação aos imóveis rurais25, pois como veremos adiante, houve grande dificuldade na aplicação da Lei de terras de 1850. A terra, os cafezais e algumas benfeitorias apareciam com maior freqüência enquanto os principais bens averbados como garantia. Curioso que os escravos, embora apresentassem uma tendência de alta em seus preços, não constituíssem em maior proporção a principal garantia dos empréstimos, talvez devido ao iminente fim do cativeiro. No entanto, nos empréstimos em que constavam como bens hipotecados tanto o escravo quanto a terra, havia uma proporção entre os dois, no que tange ao valor, de 0,59 em Lorena e 0,71 em Guaratinguetá26. De qualquer forma, enquanto fator de produção o escravo seguramente fazia-se necessário para a valorização das terras, posto que o fazendeiro apenas poderia expandir seu cafezal com um incremento do número de braços dedicados à faina na lavoura. Como a cafeicultura no Vale do Paraíba operava em um contexto de crescente queda na produtividade e aumento dos custos, além de um progressivo endividamento, torna-se fácil acompanhar o movimento de derrocada: para honrar os compromissos era necessária a expansão dos cafezais (já que o café brasileiro não se destacava por sua qualidade e sim pela quantidade), para tanto demandavam mais escravos, o que requeria mais empréstimos e assim sucessivamente. A maior parte da cafeicultura do Vale exacerba seus sinais de enfermidade durante a década de 1880 e morre com a escravidão em 1888. A região que substitui o Vale do Paraíba como grande produtor cafeeiro e núcleo da economia brasileira, o Oeste Paulista – oeste histórico, em relação ao próprio Vale, compreendendo a região de Campinas e estendendo-se ao norte até Rio Claro, e não às demais regiões da Província depois Estado de São Paulo, em sua maior parte ainda

25 Cf. Joseph Earl Sweigart. Financing and Marketing Brazilian Export Agriculture: the coffee factors of Rio de Janeiro, 1850-1888. University of Texas, 1980, pp. 147 a 190 apud Renato Leite Marcondes. Op. cit., pp. 153 e 154. 26 Cf. Renato Leite Marcondes. Op. cit., p. 161.

42 inexploradas – apresentou um diferencial fundamental em relação a sua congênere: fora melhor sucedida na transição do trabalho escravo para o trabalho livre. Quando da expansão cafeeira rumo ao Oeste Paulista, que se deu mais intensa e decisivamente a partir da década de 1870, a cafeicultura desta região já desfrutava de condições que propiciavam um grau muito maior de produtividade do que a cafeicultura do Vale do Paraíba, produtividade oriunda de seus solos mais férteis e da menor idade de seus cafezais. Também se mostrava ampla a oferta de terras e estas apresentavam melhores características topográficas, o que permitiu a introdução de inovações técnicas como o arado e a máquina carpideira27. Ainda no campo das inovações ocorreu a mecanização no processo de beneficiamento, com máquinas que passaram a ser utilizadas principalmente durante a década de 1870 e que elevaram sobremaneira a qualidade do fruto. Deve-se ressaltar, porém, no tocante à oferta de terras, que estas apenas tornar-se-iam aproveitáveis para a cafeicultura na medida em que sua distância dos portos não tornasse proibitivos os custos de transporte. Este empecilho à marcha do café apenas pôde ser superado, no caso de São Paulo, a partir de 1867, com o início da constituição do que viria a se tornar uma extensa malha ferroviária construída com o auxílio financeiro de capitais britânicos (que em algumas ocasiões traduziu-se em investimentos diretos) e garantias de juros ao capital total investido nestes empreendimentos, concedidas pelo Estado. Mas o ponto central é que tanto as ferrovias quanto a indústria do beneficiamento agiram no sentido de poupar trabalho escravo, incrementando a acumulação, repondo, portanto, o problema da carência de mão- de-obra, impondo a substituição do braço escravo28. Ou nas palavras de João Manuel Cardoso de Mello: “... não é necessário que o escravismo se desintegre, porque não ofereça nenhuma rentabilidade às empresas existentes; para ser colocado em xeque, basta que se obste a acumulação”29. Como a cafeicultura paulista tornou-se a mais produtiva, sentiu com maior força esta tensão, e ao mesmo tempo, dados os seus mais altos níveis de lucratividade, reuniu as melhores condições para efetuar a transição do trabalho escravo ao livre. De fato, em 1875 a Província de São Paulo contava com um estoque de cerca de 106 milhões de cafeeiros

27 Cf. Wilson Cano. Padrões Diferenciados das Principais Regiões Cafeeiras (1850-1930). Estudos Econômicos, vol. 15, nº 2, maio/agosto de 1985, pp. 291 a 306. 28 João Manuel Cardoso de Mello. Op. cit., pp 80 a 83. 29 Cf. Idem, ibidem, p.83.

43 produtivos, aos quais foram acrescidos cerca de 105 milhões, plantados entre 1876 e 1883, quando sua produção salta de 16% do total nacional para 25% e durante a década de 1880 alcançaria a cifra de 37,1%. Mas quais os mecanismos que São Paulo utilizou a fim de superar este entrave que se interpunha ao constante e progressivo movimento ditado pelo ritmo crescente da acumulação? A resposta encontra-se em uma palavra: imigração. Desde o final da década de 1840 tentava-se, em São Paulo, empregar o trabalho de imigrantes europeus na lavoura cafeeira, e houve, a partir de então, diversas tentativas a fim de encontrar uma forma rentável de emprego da mão-de-obra livre, o que, conseqüentemente, supunha encontrar meios eficientes de supervisão do processo produtivo, descartado o uso puro e simples da força, como no caso dos escravos. Destarte, pode-se afirmar que as várias fórmulas que se seguiram no emprego do trabalho livre surgiram do “... inter-relacionamento entre sistemas de exploração de trabalho e modos de resistência dos trabalhadores que explica as transformações sucessivas das formas de contrato de trabalho adotadas”30. Condicionada pela inexistência de um mercado de trabalho já estabelecido em São Paulo, a parceria surge enquanto uma forma de emprego da mão-de-obra em que, ao contrário do assalariamento, os elementos de incentivo ao trabalhador são inerentes à própria natureza do contrato. Quanto à remuneração, a parceria consistiu em uma divisão pela metade dos lucros líquidos entre cafeicultor e imigrantes, sobre o café cuidado, colhido e beneficiado (o contrato não determinava o número de cafeeiros por trabalhador) por estes e suas famílias, e sobre os ganhos com a produção excedente de gêneros alimentícios que os trabalhadores podiam cultivar em lotes de terra designados pelo fazendeiro para esse fim. Não obstante, o imigrante contraía uma dívida inicial com o empregador, derivada do financiamento efetuado por este dos gastos com a viagem da Europa ao porto de Santos e deste à fazenda em questão. Sobre este débito o parceiro começava a pagar juros após o segundo ano, e ainda incorria no pagamento de juros por outros adiantamentos (necessários para a compra de alimentos, vestuário, ferramentas, exceto moradia, que aparentemente recebia gratuitamente do fazendeiro) já no primeiro ano. O contrato não estipulava sua duração, mas o contratante não poderia deixar a fazenda antes de saldar suas dívidas, sob

30 Verena Stolcke, Michael M. Hall. A Introdução do Trabalho Livre nas Fazendas de Café de São Paulo. Revista Brasileira de História, vol. 3, n. 6, 1983, pp. 80 a 119. O que se segue sobre imigração é baseado neste artigo.

44 pena de recaírem-lhe pesadas multas. Em um mercado de trabalho com vasta oferta de mão-de-obra, não apenas a possibilidade de desemprego aparece enquanto elemento de ‘incentivo’ ao trabalhador, como os custos com o assalariamento caem tanto que este se torna sobremaneira rentável. Na parceria, ou pelo menos esse era o objetivo, a expectativa com os ganhos constituía-se em fator de estímulo semelhante, dispensando em larga medida a supervisão mais direta e violenta do processo de trabalho. Em 1855 havia 3.500 imigrantes trabalhando em 30 fazendas da Província de São Paulo, entretanto, as tarefas que exigiam maior supervisão permaneceram ao cargo dos escravos, notadamente o preparo do solo para a plantação e progressivamente o beneficiamento do fruto. Mas o quadro geral não foi de sucesso generalizado da parceria. A dificuldade em saldar as dívidas iniciais desestimulava os imigrantes, pois quando estas se tornavam insolvíveis, o trabalho era mais e mais desviado para a produção de gêneros alimentícios, de tal forma que o fazendeiro não lograva alcançar um nível de exploração capaz de amortizar seus gastos iniciais. Assim, a parceria foi gradualmente abandonada em São Paulo e o emprego da mão-de-obra livre na lavoura arrefeceu, embora não tenha desaparecido de todo (estima-se que em 1870 ainda havia cerca de 3.000 trabalhadores livres nas fazendas paulistas). Intentava-se encontrar uma forma alternativa de emprego da mão-de-obra livre à parceria, e a locação de serviços (empreitada) crescentemente ocupou o lugar daquela, estabelecendo pagamentos fixos por cada medida de café produzido (este sim não estipulado e, portanto variável), o que eliminou a incerteza em relação aos ganhos e às longas demoras nos pagamentos – já que pelo sistema anterior o café deveria ser vendido para que depois os trabalhadores recebessem sua remuneração – ademais os contratados não mais precisavam dividir a produção excedente de alimentos com o fazendeiro, todavia o tamanho das terras em que seu cultivo se realizava era mais freqüentemente especificado ou cobrava-se um aluguel por sua utilização, numa tentativa de evitar a concentração de esforços na produção de alimentos. O contrato de locação de serviços não resolveu, contudo, o cerne do problema: a dívida como fator de desestímulo a um maior empenho na produção. Além disso, as tarefas não diretamente concernentes à colheita, como a carpa, foram constantemente negligenciadas, acarretando um rebaixamento da qualidade do trabalho.

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Como vimos, a escravidão ganhou uma sobrevida com as inovações poupadoras de mão-de-obra tais como a máquina de beneficiar e a estrada de ferro, ambas introduzidas na década de 1870, o que apenas tornou mais premente a transição para o trabalho livre. Por volta de 1880 os cafeicultores encontraram uma forma de emprego da mão-de-obra livre adequada aos seus objetivos, que consistia em um sistema misto de remuneração por peças e por tarefas, era o colonato; neste os trabalhadores recebiam uma remuneração fixa pela carpa, na proporção da quantidade de cafeeiros cuidados, pagamentos variáveis pela quantidade de cafés colhidos e podiam ainda fazer uso de pequenos lotes de terra para a produção de alimentos. Sua principal vantagem reside na melhora de qualidade na execução de tarefas não diretamente relacionadas à colheita. Os subsídios integrais para cobrir a viagem dos imigrantes, aprovados em 1884 pela Assembléia Provincial Paulista e efetivamente fornecidos a partir de 1886, completariam o sistema ao livrar o imigrante das dívidas contraídas com seu translado e o fazendeiro de seus gastos iniciais. Essas medidas não tardaram em surtir efeito: até maio de 1887, entre 60.000 a 70.000 imigrantes, predominantemente italianos, achavam-se empregados em estabelecimentos rurais em São Paulo, enquanto que a estimativa para os escravos utilizados nessas fazendas montava aos 50.000. Portanto, São Paulo experimentou um longo aprendizado até realizar esta transição, o que o dotou de melhores condições para explorar o trabalho livre. De fato, o Oeste Paulista foi a única região onde se explorava o café sob o regime de colonato e apenas nela a imigração fora bem sucedida; nas lavouras que restaram no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em menor grau no Espírito Santo (enquanto o café era a cultura dominante neste) vigorou algum tipo de parceria31. Mas por que esta opção pelo colonato tornou-se tão fundamental para o desenvolvimento econômico de São Paulo? Ora, a imigração massiva e a produção no interior da propriedade rural de gêneros alimentícios em pequenos lotes pelos colonos permitiram uma compressão muito maior dos salários monetários (tanto do trabalhador rural quanto do urbano) do que seria possível em um regime de parceria ou na ausência de mão-de-obra abundante. Esta capacidade de comprimir os salários monetários mostrava-se fundamental ainda por outro motivo, pois ao contrário da afirmação de Furtado, para quem a economia

31 Cf. Wilson Cano. Padrões Diferenciados..., op. cit., pp. 296 a 299.

46 cafeeira se protegia de perdas iminentes por meio do que chamou ‘socialização dos prejuízos’32, a manutenção do nível de lucratividade dependia do comportamento dos salários monetários, posto que o complexo cafeeiro compunha-se tanto de setores exportadores quanto de setores importadores. Se por um lado, exportava-se café, por outro se devia importar materiais para as ferrovias, alimentos e artigos (não produzidos internamente) para os imigrantes (farinha de trigo, algum tipo de vestuário, etc.), materiais para os portos, de infra-estrutura para as cidades, etc. Assim, a desvalorização cambial, por si só, não explica a manutenção dos níveis de lucratividade e menos ainda a expansão do complexo cafeeiro como um todo. Nos períodos de desvalorização cambial, portanto, bastaria que os salários monetários não acompanhassem o ritmo da deterioração da moeda nacional para que se elevassem ou mantivessem (conforme a situação do café nos mercados externos) as taxas de lucro (claro que havia um limite para o rebaixamento dos salários, situado ao nível de subsistência) enquanto que se o mil-réis se encontrasse valorizado reduzir-se-iam os preços dos artigos necessários à reprodução da força de trabalho33. Apesar da centralidade do colonato para a expansão do complexo cafeeiro, a acumulação não se concentrava na zona rural, era predominantemente urbana, dada a primazia do comércio sobre as demais frações do capital. Isto não se constituiu em uma característica distintiva do complexo cafeeiro paulista, na verdade era inerente à própria economia cafeeira, sendo comum ao Vale do Paraíba e ainda a outras regiões produtoras. Sérgio Silva atribuiu esta dominância da acumulação comercial ao fraco desenvolvimento das relações capitalistas de produção no Brasil. Outra conseqüência deste desenvolvimento residiu na indistinção dos vários setores do capital cafeeiro, ao mesmo tempo agrário, industrial, bancário e comercial, na maior parte das vezes com tais funções reunidas no

32 Cf. Celso Furtado. Op. cit., pp. 161 a 169. Para este autor tudo começaria com uma queda no valor auferido pelas exportações, diminuindo a quantidade de divisas entradas no país; entretanto, esta redução nas divisas leva algum tempo para atingir a procura por importações, estas, portanto, mantêm-se ainda por algum tempo em patamar elevado, gerando um desequilíbrio externo agravado pela rigidez do serviço da dívida externa e pela redução na entrada de capitais externos. A isso seguia uma corrida contra a moeda brasileira, já que o simples vislumbre do desequilíbrio externo tornava as moedas utilizadas no comércio internacional mais atrativas para os agentes econômicos nacionais, o que implicava em uma desvalorização do mil-réis, conseqüentemente encarecendo os artigos de importação necessários ao consumo da população e favorecendo os exportadores, que recebiam uma maior quantidade de moeda brasileira para cada unidade de produto exportado. 33 Cf. João Manuel Cardoso de Mello. Op. cit., pp. 129 a 137.

47 mesmo agente34. Sobre São Paulo em particular afirma: “... o financiamento e a comercialização de uma produção que atinge milhões de sacas implica o desenvolvimento de um sistema comercial relativamente avançado, formado por casas de exportação e uma rede bancária”35. Mas o que caracterizava esta rede bancária? A formação do sistema bancário paulista, do ponto de vista cronológico seguiu de perto a expansão do complexo cafeeiro, tanto que na década de 1880, era já um setor consolidado, com grande número de estabelecimentos e um volume significativo de operações. Estes se concentram na capital da província, tais como o Banco Comercial de São Paulo, Banco da Lavoura, Banco da Província de São Paulo, Banco de Crédito Real de São Paulo, a caixa filial do Banco do Brasil, e mesmo aqueles que, inicialmente instalados em Santos, como o Banco Mercantil de Santos, English Bank e o London & Brazilian Bank, e mais estreitamente vinculados ao comércio exterior, acabam por abrirem agências na cidade de São Paulo. De fato, os recursos oriundos dessas instituições parecem ter se originado dos desdobramentos resultantes do próprio movimento do capital cafeeiro na Província de São Paulo e não do fluxo monetário que se inicia e conduz-se consoante o ambiente econômico engendrado pelo Encilhamento36. O Encilhamento, como ficou conhecido, refere-se ao período da história brasileira (aproximadamente entre 1888 e 1891, mas seus efeitos se prolongam pelo menos até 1898) em que houve um grande aumento das ações na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, concomitantemente a uma especulação em larga escala desses títulos e intensificação das operações bancárias, o que viria a suscitar uma severa crise do sistema bancário e mesmo para a grande parte das empresas fundadas nesse contexto, mas cujo ponto de ignição situa- se na mudança de direção das políticas econômicas até então vigentes, mudança esta executada a partir de 1888, com as medidas tomadas pelo Ministro da Fazenda Visconde de Ouro Preto. Tais medidas partiam do pressuposto da existência de uma premente carência de numerário, originada de uma parte da preferência dos bancos cariocas pelo investimento em títulos governamentais, de outro das austeras políticas monetárias que se aplicam nas últimas décadas do governo monárquico e são agravadas com o extinguir-se do cativeiro,

34 Cf. Sérgio Silva. Op. cit., pp. 54 e 55. 35 Idem, ibidem, p. 44. 36 Cf. Flávio Saes. Op. cit., 1986, pp. 79 a 86.

48 que introduziu o problema da remuneração dos salários aos trabalhadores livres e demonstrou, para os homens da época, a necessidade de se fazer frente a esta situação37. Para tanto “... baixou-se o decreto nº 3.403 de 24 de novembro de 1888, que assegurava o direito de emissão às companhias anônimas que se propusessem a fazer operações bancárias. Segundo esse decreto, poderiam emitir bilhetes ao portador e à vista, conversíveis em moeda corrente do Império, as companhias que, após autorização do Governo, depositassem na Caixa de Amortização o valor suficiente em apólices da dívida pública interna, as quais rendiam juros de 4 ½% ao ano. O decreto também permitia a emissão com lastro metálico, no triplo deste. Contudo, os financistas esperavam que o primeiro mecanismo fosse transitório, pois achavam que paulatinamente caminhar-se-ia para o regime metálico”, regulamentado pelo Decreto nº 10.144 de 05 de janeiro de 188938. A forma definitiva em que se dariam as emissões, já sob a República – resultado dos objetivos perseguidos pela política econômica, sob o comando, no advento do novo regime, de Rui Barbosa, então à testa do Ministério da Fazenda, mas em muito maior grau das pressões exercidas pela praça comercial do Rio – por meio do decreto nº 1.154 de 7 de dezembro de 1890, consistia na autorização, para os bancos emissores (nesta data eram 9, mas o primeiro projeto previa a criação de apenas 3), de emitir até o triplo do capital ainda não empenhado na emissão sobre apólices, o que redundaria em 150.000:000$000 em metal, portanto as emissões sobre moeda metálica poderiam atingir o montante de 450.000:000$000. Evidentemente que o papel-moeda em circulação sofreu um notável incremento, basta lembrar que ao final de 1889 calcula-se que este montasse a 301.010.000$000, mas as emissões, entre 7 de dezembro e 30 do mesmo mês, atingiram 115.152:580$000. Ora, a combinação deste estado de coisas com a reativação do mercado acionário – possível pelos decretos 164 e 165 de 17 de janeiro de 1890, que legalizava a negociabilidade de ações desde que 10% do capital subscrito estivesse depositado em um banco ou com pessoa abonada – deu vasão a uma crescente especulação baseada na constante fundação de novas empresas e na valorização fictícia de suas ações. Esta crescente alta das ações, contraditoriamente, resulta em uma crescente demanda por

37 Cf. Luís Antônio Tannuri. Op. cit., p. 30. Annibal Villanova Villela e Wilson Suzigan. Política do Governo e Crescimento da Economia Brasileira 1889-1945. 2ª edição. Rio de Janeiro: Ipea/Inpes, 1975, também se referem ao término da abolição como um fator de agravamento da falta de liquidez da qual se ressentiam os testemunhos coevos.

49 numerário e conseqüentemente em uma alta constante dos juros, mas ambas, dada a artificialidade de todo o processo, não poderiam se manter por muito tempo39. Segundo Tannuri, as medidas de política monetária do início da República atendiam basicamente ao grande capital mercantil e financeiro carioca40, mas certamente esta crescente expansão monetária exerceu sua influência sobre toda a economia brasileira. Não obstante, o sistema bancário paulista, ao contrário de seu congênere fluminense, não parece ter se sustentado da política emissionista. Como vimos, Saes ressalta que já na década de 1880, portanto antes do Encilhamento, o sistema bancário paulista já se consolidara. No caso da filial do Banco do Brasil, por exemplo, assinala que já em 1879, seus depósitos e letras a prêmio correspondem a 88% dos descontos e empréstimos, demonstrando uma certa independização, no que concerne à captação de recursos, de sua matriz no Rio de Janeiro41. Mais contundente ainda é o argumento do próprio Tannuri, segundo o qual a circulação de notas bancárias, em São Paulo, em setembro de 1890, alçava-se ao patamar de apenas 5,29% do total no Rio de Janeiro42. Portanto, o sistema bancário paulista surge a partir do próprio vigor existente em sua economia. Um indício do grau de concentração das instituições financeiras mais significativas na capital e da magnitude dos recursos carreados da economia cafeeira para estas instituições, refere-se à representatividade dos patrimônios dos bancos brasileiros com sede na cidade de São Paulo no total do sistema bancário paulista: em 1895, os bancos estrangeiros, por exemplo, emprestaram 11.113:162$000 (9,2% do total estadual), possuíam 17.240:669$000 em depósitos (16,3%) e 11.446:228$000 em caixa (29,3%), enquanto que os bancos nacionais sediados na capital emprestaram 86.719:443$000 (71,6%), detinham em depósitos um total de 71.783:983$000 (67,8%) e 22.974:433$000 em caixa (58,8%). Os números dos bancos nacionais sediados no interior são diminutos comparados aos outros dois segmentos43. Mas quais características estas instituições apresentavam no tocante às suas aplicações?

38 Luís Antônio Tannuri. Op. cit., pp. 43 e 44. 39 Cf. Idem, ibidem, pp. 61 a 69. 40 Cf. Idem, ibidem, p. 55. 41 Cf. Flávio Azevedo Marques de Saes. Op. cit., p.82. 42 Cf. Luís Antônio Tannuri. Op. cit., p. 115. 43 Cf. Flávio Azevedo Marques de Saes. Op. cit., p. 98, tabela 2.

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Os bancos estrangeiros, ao que parece, dedicaram-se sobretudo ao financiamento do comércio exterior, à especulação cambial, ao financiamento da dívida pública, ao investimento em ações de grandes empresas e à intermediação financeira para estas grandes empresas. Os bancos nacionais sediados na capital desenvolveram as atividades típicas de um banco comercial: receber dinheiro a prêmio em conta corrente sob caução de títulos ou descontar letras, sempre a curto prazo, se diferenciando, entre si, apenas pela clientela que atendiam, selecionada entre as empresas comerciais, industriais, de serviços públicos e mesmo os depositantes individuais, concorrendo com os bancos estrangeiros na captação das grandes contas institucionais e com os pequenos nas contas de menor porte44. Entre os bancos hipotecários contavam-se o Banco de Crédito Real de São Paulo, formado em 1882 e liquidado em 1906 e o Banco de Crédito Hipotecário e Agrícola do Estado de São Paulo, formado em 1909 e incorporado ao Estado em 1926, mas ambos recebiam acusações de privilegiar suas carteiras comerciais em prejuízo de suas carteiras hipotecárias, drenando recursos destas para aquelas. Destarte, a cafeicultura não pareceu encontrar no sistema bancário o suporte financeiro de que necessitava. Diante desse contexto, tornam-se abundantes os bancos de custeio rural no interior, criados com o objetivo de suprir os fazendeiros com os recursos que demandavam. Assim como outros pequenos bancos que atuavam localmente, possuíam pouco capital e geralmente não se mostravam capazes de prover crédito à lavoura no montante requerido por esta, o que se revelava de forma cabal na curta duração dessas instituições tomadas individualmente45. Esta disparidade entre a oferta de crédito existente e o numerário efetivamente posto à disposição dos empreendimentos agrícolas levou os representantes da ‘lavoura’ a assumir uma postura belicosa em relação aos representantes do grande capital cafeeiro46, no que tange às posições daquela quanto à política monetária do governo federal. Durante todo o transcorrer da República Velha, os fazendeiros pautaram sua intervenção política pela proposição de mecanismos de crédito que amenizassem sua situação, geralmente na forma

44 Cf. Idem. Ibidem, pp 112 a 123. 45 Cf. Idem. Ibidem, pp.126 a 129. 46 Esta noção de frações de classe no interior do capital cafeeiro, subdividindo-se primordialmente em grande capital cafeeiro, que engloba os agentes econômicos que caracterizavam-se por uma larga diversificação de seus investimentos (comércio de exportação e importação, atividade bancária, indústria, estradas de ferro, empresas de serviços públicos, etc.) e a lavoura, que engloba aqueles que se dedicavam unicamente à produção do café em suas fazendas, foi primeiramente proposta por Cf. Renato Monseff Perissinotto. Classes

51 de auxílio do governo por meio de algum banco. De um ponto de vista econômico mais amplo posicionavam-se sempre contra a conversibilidade da moeda, a favor de uma certa expansão do meio circulante. Debalde seus esforços não lograram resultados satisfatórios consoante aos seus objetivos e tanto as instituições financeiras quanto a política econômica de modo geral continuaram atreladas aos ditames do grande capital cafeeiro47. Na verdade “Mesmo a intervenção do Governo concedendo favores aos estabelecimentos responsáveis por tais meios de crédito agrícola não é suficiente para superar o problema central: a existência de setores organizados em bases capitalistas e com condições de suportar, com sua taxa de lucro, maiores taxas de juros e outras condições de empréstimos” (que a lavoura)48. Mas de que forma os fazendeiros paulistas obtinham crédito? Ao que parece os comissários conservaram seu papel enquanto intermediários comerciais e financeiros também na economia paulista. A diferença reside no fato de que, ao menos segundo parte da bibliografia, progressivamente foram eclipsados pela atuação das casas exportadoras junto aos produtores. Para Delfim Netto, com o advento do trabalho livre, a necessidade de numerário para a cafeicultura excedeu a capacidade dos comissários de lhe fazer frente, o que os tornou dependentes de financiamento (o que não se coaduna com o que descrevemos até aqui, posto que a documentação arrolada pela bibliografia demonstra que o comissariado sempre levantou fundos junto a alguma instituição financeira, de modo que para suprir as fazendas com numerário também se tornavam dependentes de financiamento; mas o objetivo do autor foi analisar a estrutura e funcionamento do mercado cafeeiro como um todo e de um ponto de vista mais teórico que empírico) e quebrou sua resistência diante dos exportadores. Este processo se consolidaria em 1903, com a regulamentação dos armazéns gerais, o que facilitou a negociação direta entre exportadores e produtores, eliminando a intermediação dos comissários e dos ensacadores49. Para Wilson Cano os comissários continuam importantes até a Primeira Guerra Mundial, mas: “À medida que expande o sistema bancário de São Paulo e que aumenta o grau de intervenção do Estado nos planos de valorização, esses dois

Dominantes e Hegemonia na República Velha. Campinas: Editora da Unicamp, 1994, para explicar as posturas políticas diversas das duas frações. 47 Cf. Flávio Azevedo Marques de Saes. Op. cit., pp. 163 a 191, apesar de o autor não usar a noção de grande capital cafeeiro os grupos que aponta como beneficiários do sistema creditício e das políticas monetárias implementadas pelo governo se encaixam na definição. 48 Ibidem, ibidem, pp. 190 e 191.

52 intermediários (comissários e ensacadores) tendem a desaparecer, restando somente os corretores e os exportadores”50. Nesta afirmação, implicitamente o autor supõe que o sistema bancário se constituiu na principal fonte de crédito para a lavoura, o que, como já observamos, não chegou a ocorrer em nenhum momento em toda a República Velha. Segundo Tannuri, a partir de 1897, com uma sensível queda sofrida pelos preços do café, os exportadores passam a atuar no interior do Estado de São Paulo, a fim de eliminar a intermediação do comissariado para alargar sua margem de lucro e impedir a manipulação de preços pelas casas comissárias, objetivando fechar negócios a uma cotação elevada. Todavia assinala que “... o novo esquema de comercialização que se instaura não deixa de ter, porém, suas ‘bombas de sucção’. Em linhas gerais, o sistema consistia no seguinte: o fazendeiro, ao enviar o café para qualquer corretor santista ou para o próprio exportador através da estrada de ferro, recebia uma notificação de embarque com a qual negociava com banqueiros, comerciantes ou agiotas locais com grandes taxas de descontos, mormente devido ao fato das cotações, nas quais realizariam a venda, só serem conhecidas a posteriori, sem conhecimento da situação do mercado de café”51. Pressupõe-se por esta passagem, que os exportadores ocuparam o lugar dos comissários na comercialização, mas não se inseriram nas operações de financiamento, que ficou a cargo de emprestadores locais. Para Thomas Holloway, se houvesse um sistema comercial e financeiro adequado para o café paulista – no caso destaca, do ponto de vista comercial, a inexistência de um sistema de armazenamento eficiente e no caso do financiamento assinala que a forma que assumiu, em pequena escala e personalizado, por meio dos comissários, não se mostrou capaz de fornecer crédito a longo prazo e na proporção em que o exigia a produção – os estímulos à expansão da capacidade produtiva que surgiram com o Encilhamento não gerariam uma crise de superprodução. Ainda segundo o autor, esta crise redundaria nos reclamos a favor de um plano de valorização dos preços do café, que efetivamente realizar- se-ia com o concurso do Estado de São Paulo e das grandes empresas importadoras dos países consumidores no ano de 1906. O plano, ao manter os preços externos do café elevados, contribui para que se mantivesse o sistema de comercialização e financiamento intactos, ou seja, as casas comissárias seguiriam como as principais fontes de numerário

49 Cf. Antonio Delfim Netto. Op. cit., pp. 18 e 37. 50 Wilson Cano. Raízes... Op. cit., p. 83. 51 Luís Antônio Tannuri. Op. cit., pp.110 e 111.

53 para os agricultores. Afirma, inclusive, que os comissários envolveram-se diretamente nas primeiras negociações acerca do plano de valorização, até mesmo endossando empréstimos52. Evidentemente, estas discussões sobre o papel do comissariado na economia paulista apresentam-se sempre de forma lateral na bibliografia, pois não se constituíram em objetivo central de nenhum dos autores, embora contenham sugestões interessantes sobre o assunto. Alguns parecem sugerir que o papel do comissário declina com uma atuação mais intensa das empresas de exportação na intermediação comercial, o que, de fato, não seria de todo contraditório com sua permanência no financiamento. Para além desta discussão, não conseguimos estabelecer, apenas com o auxílio da bibliografia, uma possível ligação entre o sistema bancário e o fornecimento de crédito para os empreendimentos agrícolas em São Paulo, tal como observamos para o Vale do Paraíba, na intermediação entre o banco e o fazendeiro realizada pelo comissário, mas é bem possível que também tenha ocorrido. Cabe-nos agora voltarmo-nos para a dinâmica da expansão cafeeira no período, que esclarece muito acerca de suas necessidades de financiamento e sobre a conjuntura econômica subjacente. Como já afirmamos, o Encilhamento não afetou a economia cafeeira paulista da mesma forma que o Rio de Janeiro, entretanto, ao ampliar sobremaneira o papel-moeda em circulação, deu origem a um processo inflacionário que pressionou consideravelmente o câmbio para baixo53, trazendo conseqüências importantes para o comportamento dos preços do café. De fato, o câmbio, de uma taxa de 26 7/16 dinheiros (em moeda britânica) por mil- réis ao final de 1889, passa a 22 9/16 e em 1890 cai a 14 29/32. A média das exportações entre 1886 e 1890 situou-se em 5,2 milhões de sacas, o que não representava muito naquele momento frente à procura internacional, resultando em um aumento dos preços externos em um ritmo mais acelerado que o dos preços internos54. Estes aumentos estimularam uma expansão nas plantações que apenas repercutiriam seus efeitos quatro anos depois. Uma combinação perversa de uma retração econômica na Europa (a partir de 1890) e nos Estados Unidos (a partir de 1893) com o aumento do total exportado (em 1890/1891 5,58

52 Cf. Thomas H. Holloway. Op. cit., exceto o capítulo I. 53 Cf. Annibal Villanova Villela e Wilson Suzigan. Op. cit., p.82.

54 milhões de sacas, em 1891/1892 7,60, em 1892/1893 6,34, com uma pequena diminuição em 1893/1894 para 4,84) determinou uma queda acentuada da procura e conseqüentemente dos preços externos que se intensifica a partir de 1894. Ocorre que o câmbio se deprimia a uma taxa mais alta que a da queda dos preços externos, tornando por algum tempo ainda atrativas as inversões em novos plantios55. O grande incremento da quantidade de café exportada – que na safra de 1896/1897 chegou a 9,3 milhões de sacas e na safra seguinte a 11,2 milhões56 – não poderia ser absorvido pelos mercados consumidores externos, até porque o estoque mundial visível em 1897 já era de 5,4 milhões de sacas. Ora, essa situação, não comprometeria, ao se manter, apenas os lucros de todos os envolvidos na produção e comércio do café, como também as contas do governo federal, já que o imposto de importação constituía sua principal fonte de receita. A arrecadação deste imposto não apenas se deprimia devido às dificuldades para importar advindas da desvalorização cambial, pois desde 1892 era cobrado por taxas fixas em moeda corrente, ou melhor, em mil-réis, e este sofria uma contínua depreciação de seu valor. Como resposta à queda de receitas e a constantes déficits do governo federal este procura tomar medidas para sanar suas contas, mas não alcança resultados satisfatórios. A fim de reduzir o papel-moeda em circulação, o governo cassou o privilégio de emissão dos bancos, o Tesouro encampou suas notas para tirá-las de circulação, além de tomar para si o monopólio de emissão, que se daria com conversibilidade total. Não obstante, já em fins de 1898 as despesas governamentais excederam em quase 100% suas receitas57. Em 1898 o pagamento da dívida externa estava além da capacidade do governo brasileiro. Destarte, em 15 de junho de 1898 celebrou-se um acordo para consolidação da dívida, conhecido como funding loan, pelo qual o governo federal receberia um empréstimo cujos títulos serviriam para pagar os empréstimos anteriores e as garantias de juros para as estradas de ferro. Ficariam suspensas as amortizações (pagamento apenas do capital) de

54 Se tomarmos como base 100 tanto para os preços externos quanto para os internos no ano de 1885, estes atingiriam o índice 149 em 1890 e aqueles 237 no mesmo ano. Cf. Antonio Delfim Netto, op. cit., pp. 17 e 18 e quadro 6, p. 18. 55 A taxa cambial, de 26 7/16 dinheiros por mil-réis em 1889 passa a 7 3/16 em 1898, e os preços internos e externos, se admitirmos um índice 100 para ambos em 1889, chegam a 163 em 1898 no caso dos primeiros e a 41 no caso dos segundos para o mesmo ano, sendo que o pico daqueles se situaria em 290, atingido em 1894, quando os preços externos apresentariam o índice de 92 e a taxa cambial a 10 3/32. Cf. Idem, ibidem, pp. 19 e 22 e quadro 8, p. 22. 56 Cf. Idem, ibidem, p. 22. 57 Cf. Annibal Villanova Villela. Op. cit., pp. 15 e 16.

55 todos os empréstimos para consolidação até 1º de julho de 1911. Contudo, o governo concordava em dar como garantia as receitas de todas as alfândegas do país e a retirar de circulação uma soma de papel-moeda equivalente (ao câmbio de 18 dinheiros esterlinos por mil-réis) aos títulos do funding. Ademais, restaurou-se a cobrança em ouro dos impostos de importação e o governo reduziu sobremaneira suas despesas de consumo, diminuindo, sobretudo, os gastos com investimento público58. Os efeitos não demoraram a se fazer sentir: os preços caíram 30% até 1902 (gerando deflação) e quase metade do sistema bancário entrou em falência em 190059. Apesar desta crise afetar também o Estado de São Paulo, subsistiu um núcleo sólido de empresas de setores distintos articuladas entre si, o que se observa nos dois estabelecimentos bancários nacionais sediados na capital que atravessaram não só esta crise em particular, mas todo o período republicano, o Banco do Comércio e Indústria de São Paulo e o Banco de São Paulo, fortemente vinculados, por meio de seus acionistas e diretores, às grandes empresas da época, ligadas ao grande capital cafeeiro60. Contudo, estas políticas de contenção do papel-moeda em circulação, ao que parece, afetaram duramente a lavoura, de tal forma que esta participou de um movimento visando depor o Presidente da República Campos Sales em 1902 que eclodiu em 22 de agosto nos municípios de Franca, Araraquara, Ribeirãozinho, , , São Carlos, , Casa Branca, Moji-Mirim e Espírito Santo do Pinhal. Esta cisão, na verdade operada no interior do Partido Republicano Paulista (PRP), apenas arrefeceria com o advento do primeiro esquema de valorização do café em 1906 e as grandes greves que ocorreram neste ano, obrigando a união dos fazendeiros e dos representantes do grande capital cafeeiro contra o inimigo comum61. Podemos observar, portanto, que a política cambial, monetária e fiscal do governo federal certamente afetavam o mercado de crédito, notadamente no que tange ao financiamento da produção do café, como sugerem os protestos dos fazendeiros. Ademais, no exato momento em que o governo alcançava o objetivo de valorizar o câmbio e combater seus constantes déficits, a cafeicultura padecia com um excesso de

58 Cf. Idem, ibidem, pp. 87 e 88, 118 a 120 e tabela III.1, p. 91. As despesas efetivamente realizadas caíram de 668,1 mil contos de réis em 1898 para 295,4 mil contos de réis já em 1899, resultado também da deflação que se seguiu. 59 Cf. Idem, ibidem, p. 88. 60 Cf. Flávio Azevedo Marques de Saes. Op. cit., pp. 120 e 136. 61 Cf. Renato Monseff Perissinotto. Op. cit., pp. 108 e 109.

56 oferta e conseqüente queda dos preços internacionais do café. Em 1901 as exportações de café, somente pelo porto de Santos, atingiram 10,2 milhões de sacas e a produção mundial alçou-se a 19,8 milhões de sacas, das quais 15,3 milhões foram consumidas. Esta diferença entre produção e consumo elevou o estoque mundial visível em 1902 para 11,3 milhões de sacas. Além disso, o mercado comprador caracterizava-se por uma alta concentração. Estima-se que em Santos, entre 1895 e 1906, 71 companhias alemãs, francesas e norte- americanas controlavam 99,2% das remessas de café pelo porto. Tudo isso concorria para rebaixar os preços do café. Em 1902 uma geada diminuiu a oferta do produto nos anos posteriores, reduziu o estoque mundial visível e amenizou até certo ponto a situação dos cafeicultores. A fim de desestimular a expansão das plantações, em 1903 o Presidente do Estado de São Paulo decretou o pagamento por um período de 5 anos, de uma taxa de 2:000$000 por cada novo alqueire de café plantado, o que na verdade somente surtiria seus efeitos 4 anos depois62. A situação, como observa Delfim Netto: “... caminhava, portanto, para a regularização quando as floradas da safra 1906/1907 mostraram claramente que o Brasil estava diante de uma produção de volume até então desconhecido. O estoque mundial, que na abertura daquela safra seria de pouco mais de 9 milhões de sacas, tinha perspectiva de ser duplicado e os preços deveriam cair abaixo do que havia vigorado em 1901. Este fato, ligado ao câmbio de 15 57/64, vigorante em 1905, reduziria os preços do café, em moeda nacional, a níveis até então desconhecidos”63. Tal estado de coisas levou os representantes do Estado de São Paulo a buscar algum tipo de intervenção a fim de regularizar o comércio do café. Planejaram uma intervenção conjunta dos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e do governo federal, consubstanciada no chamado Convênio de Taubaté, mas o caráter hesitante com relação ao plano tanto do governo federal quanto dos outros Estados obrigou São Paulo a empreender a valorização sem a participação destes64. A valorização deveria ser acompanhada de um mecanismo de estabilização do câmbio a fim de que este, com uma possível elevação dos preços do café e maior entrada de divisas (devido também à entrada de capitais para

62 Cf. Thomas H. Holloway. Op. cit., pp. 46 a 48. 63 Antonio Delfim Netto. Op. cit., p. 45.

57 financiar o plano) não se valorizasse demasiado, prejudicando os produtores65. Assim, ainda em 1906, sob a gestão do Presidente Afonso Pena, foi criada a Caixa de Conversão. Esta manteria uma taxa cambial ligeiramente superior à de mercado, comprando divisas estrangeiras equivalentes ao ouro por meio da emissão de notas de estabilização, cujo teto se situaria em 320.000:000$00066. A valorização, por outro lado, realizou-se com o apoio decisivo dos comerciantes internacionais. Organizou-se um consórcio internacional de banqueiros e negociantes que deveriam adiantar ao governo do Estado de São Paulo 80% do capital necessário para adquirir café no mercado de Santos ao preço médio de 7 centavos de dólar por libra (sua cota chegou a três milhões e duzentas mil libras) enquanto que este entraria com o capital restante. O Estado de São Paulo deveria pagar 6% de juros anuais sobre o montante e dar como garantia todo o café comprado durante a operação. Para fazer frente aos empréstimos realizados com a operação de valorização e outros subseqüentes, ainda em 1906, o Estado de São Paulo instituiu uma sobretaxa de 3 francos em ouro para cada saca de café exportado e em 1907 os Estados do Rio e de Minas Gerais também concordaram em cobrá- la. Estima-se que com o plano retirou-se do mercado algo em torno de 8,1 milhões de sacas de café de alta qualidade, ou um terço da produção mundial e mais da metade da produção

64 O sistema de parceria que empregava-se na cafeicultura destes Estados minimizava seus prejuízos além de seus orçamentos serem menores, o que restringia suas possibilidades de investir em uma operação de valorização. Cf. Thomas H. Holloway. Op. cit., p. 74. 65 Como já observamos, para o crescimento do complexo cafeeiro como um todo a valorização ou desvalorização do câmbio em si contava pouco, mas para os fazendeiros, que recebiam em moeda nacional, uma valorização excessiva certamente se tornaria prejudicial. 66 Cf. Annibal Villanova Villela e Wilson Suzigan. Op. cit., p.298, nota 8. Renato Monseff Perissinotto, ao contrário, defende que a medida na verdade não visava atender os produtores, pois estes queriam a taxa de câmbio fixada a 12 pences por mil-réis e esta de fato foi fixada pela Caixa de Conversão em 15 pences por mil-réis. A Caixa de Conversão, na interpretação deste autor, serviu muito mais a conciliação dos diversos interesses em pugna. Cf Renato Monseff Perissinotto. Op. cit., pp. 74 e 75. Leandro Salman Torelli, por outro lado, defende que a utilização da Caixa de Conversão visava principalmente a adoção definitiva do padrão ouro no Brasil, com o objetivo de garantir a credibilidade do Brasil frente aos capitais financeiros internacionais, de tal forma que o Brasil se preparava para aproveitar-se dos fluxos financeiros internacionais, abundantes naquele momento. Em dado momento de seu trabalho Torelli, amparado nos debates parlamentares acerca da criação da Caixa de Conversão, deixa entrever a natureza dos interesses que se reuniam em torno da sua atuação: “defendem o instrumento aqueles que diziam acreditar que o maior mal para a economia nacional era a oscilação cambial. Esta era nociva à produção e ao consumo, portanto, aos importadores e exportadores, visto que impedia o cálculo de longo prazo, as expectativas eram desvirtuadas e quem ganhava com isso eram os especuladores, os jogadores de câmbio, que nada produziam para o país.” Leandro Salman Torelli. A Defesa do Café e a Política Cambial: Os Interesses da Elite Paulista na Primeira República (1898-1920). Campinas: IE/Unicamp, 2004, dissertação de mestrado, pp. 30 e 31. Cf. também sobre a Caixa de Conversão Idem, ibidem, pp. 68 a 83. As diferentes interpretações desses autores derivam de

58 brasileira. Em 1908 o Estado de São Paulo realizou novos empréstimos no valor de 15 milhões de libras para consolidação da dívida da valorização, por isso aumentou a sobretaxa de cada saca de café exportado para 5 francos em ouro. Todo o lucro com as operações de venda deveria reverter para o pagamento dos empréstimos da consolidação e o café ficaria sob o controle de um comitê de sete membros, na maioria representantes do consórcio.67 Mas o importante aqui no que respeita aos cafeicultores é que os preços do café se elevaram e mesmo com o aumento na entrada de divisas a atuação da Caixa de Conversão impediu uma valorização excessiva do câmbio. Mesmo a sobretaxa de 5 francos em ouro revelou-se desprezível frente aos benefícios trazidos com a valorização, pois como demonstra Holloway, enquanto que no período de 1907 a 1913 o preço médio da saca no mercado de Havre alcançou o valor de 58,8 francos, que excetuada a sobretaxa, daria 53,8 francos, no período anterior o preço médio por saca em Havre fixou-se em 40,6 francos em média68. Após este exaustivo percurso, porém necessário, pois como observamos a dinâmica do crédito ligou-se de maneira inextricável à dinâmica cafeeira e as políticas monetárias seguidas em cada período, podemos tecer algumas considerações quanto ao financiamento da produção cafeeira, tanto no Vale do Paraíba quanto no Oeste paulista. Como percebemos, em nenhum dos dois casos os cafeicultores foram plenamente atendidos pelo sistema bancário, no caso do Vale porque após a Guerra do Paraguai os bancos concentraram seus investimentos em títulos do governo e em São Paulo porque o grande dinamismo de sua economia abria campos de investimentos em setores com maior lucratividade e capacidade para suportar taxas de juros mais altas. Segundo Flávio Saes a moeda bancária somente circulava de forma limitada nas localidades do interior, tendo servido, fundamentalmente, para acionar a economia urbana, em especial da cidade de São Paulo69. Ou em palavras coevas: “ Podemos afoitamente dizer: dinheiro em numerário abunda nos mercados. Atestam-no há anos os largos depósitos dos bancos. E contudo, é a verdade, o lavrador que possui 1.000:000$000 não retira 100 contos. Não se lhe abre uma conta corrente com garantia décupla do seu capital agrícola; mas prontamente se abrem perspectivas diferentes acerca das relações de poder no seio do Estado, mas para os nossos objetivos o importante é perceber apenas os efeitos da atuação da Caixa de Conversão. 67 Cf. Thomas H. Holloway. Op. cit., pp. 71 a 80. 68 Cf. Idem, ibidem, p. 96.

59 os cordéis da bolsa ao comerciante dez vezes menos rico. Dinheiro fora dos bancos há igualmente sem dificuldade. Mas pondo-se de parte a exageradíssima taxa de juros, os capitalistas trancam todos os negócios ao agricultor, recusando toda garantia que não seja de prédios urbanos”70. O grande diferencial para as duas regiões talvez tenha residido no fato de que no Vale assistia-se à decadência da cafeicultura e quiçá sem a atuação do Banco do Brasil, instituição oficial, na forma de empréstimos hipotecários ou fornecendo numerário aos comissários, esta mesma cafeicultura tivesse uma sobrevida tão longa. De fato, o Banco do Brasil certamente ocupou um papel de destaque na economia cafeeira do Vale do Paraíba, o que talvez se explique pela proximidade – não apenas geográfica, mas em termos de influência – dos fazendeiros do Vale em relação ao centro político de então. Esta atuação do Banco do Brasil obscurece o fato, para alguns autores, de a escassez de crédito bancário para a lavoura cafeeira não ter derivado de ‘assimetrias de informação’ entre bancos e financiadores locais, mas da própria estrutura da economia cafeeira, dominantemente comercial. Por outro lado, se as despesas com escravaria se resumiam à sua aquisição e manutenção, por outro o trabalho escravo exigia maiores dispêndios para a expansão das plantações, expediente necessário para manter-se a lucratividade durante as baixas do preço do café, como já assinalamos anteriormente. Também é possível que a maior robustez do sistema bancário paulista indiretamente tenha contribuído de forma mais eficiente para o fornecimento de crédito para a lavoura, questão difícil de se elucidar. Uma outra questão que surge quando notamos a permanência dos comissários enquanto intermediários financeiros é até que ponto o crédito funcionava por meio de relações pessoais e até que ponto a crescente monetarização da economia e em particular a intensificação das operações creditícias concorrem para dissolver as relações sociais preexistentes, porventura em grande medida baseadas em laços personalistas. Como traçamos um quadro geral da formação do complexo cafeeiro e do papel e circunstâncias em que operava o crédito no interior daquele, devemos agora nos voltar para a expansão desse complexo.

69 Cf. Flávio Azevedo Marques de Saes. Op. cit., p. 185. 70 Correio Paulistano 04/01/1896, p. 1, Associação dos Agricultores apud Flávio Azevedo Marques de Saes. Op. cit., p. 174.

60

Os braços do complexo cafeeiro: As ferrovias

A cafeicultura paulista não se desenvolveria da forma como se desenvolveu não fosse o papel desempenhado pelos caminhos de ferro que tornar-se-iam, em sua maioria, em caminhos do café. Os empreendimentos visando a implantação de estradas de ferro no Brasil tornaram-se viáveis a partir da Lei nº 641 de 26 de junho de 1852, que introduzia a garantia de juros de 5% sobre o capital empregado na construção ferrovia, bem como isenção de impostos para a importação de materiais necessários e privilégio de zona de 5 léguas perpendiculares aos trilhos. Em geral, as províncias suplementavam a garantia de juros de 5% concedida pelo governo monárquico com mais 2%71. Sintomático que apenas após a promulgação desta lei têm início as primeiras tentativas de criação de ferrovias em São Paulo. Em 1855 iniciou-se a construção da primeira estrada de ferro que adentraria o território paulista, a Estrada de Ferro Dom Pedro II, que deveria ligar a cidade do Rio de Janeiro ao município de Cachoeira em São Paulo. Na verdade, vinculava-se muito mais estreitamente ao Rio do que a São Paulo, tanto que aquela província garantiu a taxa adicional de juros; ademais, todo o seu trajeto realizava-se através do Vale do Paraíba. A primeira ferrovia que de fato demonstraria importância capital para o desenvolvimento do complexo cafeeiro paulista originaria-se de uma concessão ao Barão de Mauá, ao Marquês de Monte Alegre e a J.A. Pimenta Bueno, garantindo-lhes o privilégio, por noventa anos, para a construção, uso e gozo de uma estrada de ferro que partisse de Santos, e que se aproximando da cidade de São Paulo, atingisse Jundiaí. Concluída em 1867, com sua concessão já transferida para uma companhia inglesa, a São Paulo Railway, como ficou conhecida, enquanto única ligação ferroviária com o porto de Santos até 192772, impactou profundamente a economia paulista. Ora, a facilidade dos transportes entre São Paulo e Santos certamente possuiu papel importante na retenção do excedente produzido na província, pois “Em primeiro lugar a plantação nas terras férteis do ‘Oeste’ deslocou o eixo econômico do café, antes localizado no vale do Paraíba, e com isso fêz surgir novos centros de distribuição do produto. Santos substituiu inteiramente os portos do litoral norte paulista, e mesmo do Rio de Janeiro como

71 Cf. Odilon Nogueira de Matos. Café e Ferrovias: a evolução ferroviária de São Paulo e o desenvolvimento da cultura cafeeira. 2ª edição revista. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1974, pp. 51 e 52. 72 Cf. Idem, ibidem, pp. 57 e 58.

61 ponto estratégico para o escoamento do café. A nova rota econômica passou a favorecer diretamente o entrosamento da cidade de São Paulo na economia cafeeira, o que, obviamente, foi de fundamental importância para o crescimento urbano da capital paulista”73. A São Paulo Railway, portanto, deve ter sido fundamental na consolidação deste processo, e mais ainda, com seu monopólio de 60 anos na ligação com o porto de Santos, para a concentração de atividades comerciais e financeiras na capital. O transporte anterior ao advento das estradas de ferro realizava-se no lombo de mulas, o que, no caso específico do café, não só implicava em maior morosidade como também na possibilidade de se danificarem os frutos durante o trajeto. Na verdade, já em 1860 um viajante alemão, Tschudi, notava a impossibilidade de se plantar café para além de Rio Claro, dados os custos proibitivos do translado do produto até o porto de Santos74. Conforme o café avançou para o interior da Província de São Paulo, mais premente se tornava a expansão dos caminhos de ferro. Havia interesse, por parte do governo provincial, na construção de um prolongamento até a cidade de Campinas, mas a São Paulo Railway, detentora que era da única passagem entre o interior e o litoral, não se interessou por sua construção. Assim, a 30 de janeiro de 1868 aprovaram-se os estatutos da Companhia Paulista de Estrada de Ferro de Jundiaí a Campinas, formada com capitais levantados na própria província por meio de ações, visando realizar-se o prolongamento. Este fora terminado já em 1872, totalizando 45 quilômetros de extensão, com bitola de 1,60 m. Mas a Paulista não interrompeu neste ponto sua expansão: durante a década de 1870 ainda chegaria a Santa Bárbara no ano de 1875, atingiria e Rio Claro no ano de 1876, Araras e Leme em 1877, em 1878 e continuaria sua expansão no sentido noroeste nas décadas seguintes75. Mas o traçado da Paulista deixou de beneficiar vários cafeicultores e negociantes paulistas, cuja atividade não se concentrava nos municípios servidos pelos trilhos da Companhia. Estes passam a se organizar a fim de constituírem novas companhias de estradas de ferro e se mobilizam junto ao governo para a aprovação dos traçados

73 Fernando Henrique Cardoso. O Café e a Industrialização da Cidade de São Paulo. Revista de História, vol. XX, nº 42, abril-junho 1960, pp. 471 a 475. Grifos nossos. 74 Cf. Pierre Mombeig. Pionniers et Planteurs de São Paulo. Paris: Librairie Armand Colin, 1952, p. 86 apud Flávio Azevedo Marques de Saes. As Ferrovias de São Paulo, 1870-1940: expansão e declínio do transporte ferroviário em São Paulo. Hucitec; [Brasília]: INL, 1981, p. 39. 75 Cf. Odilon Nogueira de Matos. Op. cit., pp. 62 a 67.

62 pretendidos. Entre elas a Ituana, cujo primeiro trecho, entre Jundiaí e Itu, fora inaugurado em 17 de abril de 1873, e a Mogiana76, que nos interessa mais de perto. Mesmo antes de os trilhos da Paulista atingirem a cidade de Campinas, no ano de 1872, já surgia uma disputa acerca do melhor traçado a se seguir após o término do prolongamento de Jundiaí a Campinas, que envolveu os partidários pela expansão através de Rio Claro e os fazendeiros da região de Moji-Mirim. Estes, evidentemente, demandavam a passagem dos trilhos por aquela localidade. Seguem-se acalorados debates, notadamente no jornal A Gazeta de Campinas, em que representantes de um e de outro lado – inclusive personagens com grande trânsito entre as autoridades provinciais, como Campos Sales, que se posicionou a favor do prolongamento por Rio Claro – expõem seus argumentos e tentam depreciar os do adversário. Mas não havia um equilíbrio de forças entre os contendores: Moji-Mirim se encontrava numa posição inferior para fazer valer seus interesses, o que claramente se evidencia no progressivo recuo de seus defensores, posto que estes vão abandonando a proposta de um traçado mais próximo de Moji-Mirim e passam a propugnar um caminho intermediário, onde os trilhos serviriam simultaneamente a este município e a Rio Claro. Ora, o elemento decisivo para a definição, por parte das empresas ferroviárias, acerca do traçado a seguir (evidentemente que deveria ser aprovado pelo governo monárquico) certamente residiu na capacidade produtiva de uma região, notadamente a pujança de sua lavoura de café, garantia certa de lucros para a ferrovia que o transportasse77. Certamente a lavoura cafeeira propiciou uma lucratividade muito maior para as ferrovias paulistas que para suas congêneres em outras regiões. Isto se evidencia na extensão total que sua rede atinge em comparação com o total nacional, após a primeira metade da década de 1870 nunca inferior a 20% (claro que se excetuando os prolongamentos das estradas de ferro de São Paulo para outros Estados) e sua extensão, em quilômetros, de 139 em 1870 passaria a 1212 em 1880, a 2425 em 1890, a 3373 em 1900 a 5204 em 1910 e a impressionante cifra de 6616 no ano de 1920, a partir de então vindo a sofrer um certo arrefecimento. Ou como atestam alguns testemunhos coevos, onde não havia grande quantidade de café transportado as empresas ferroviárias sofreram constantes

76 Cf. Idem, ibidem, pp. 68 a 70. 77 Cf. Flávio Azevedo Marques de Saes. As Ferrovias... Op. cit., pp. 57 a 61.

63 déficits, até que, na maior parte dos casos, as estradas fossem encampadas pelo governo central. A rentabilidade das ferrovias paulistas pode ainda ser entrevista em sua progressiva desistência com relação ao sistema de garantia de juros, que obedeceu a considerações atinentes às possibilidades de lucro por parte dessas empresas, já que pelos contratos de garantia de juros qualquer lucro líquido auferido acima da faixa dos 9% sobre o capital autorizado deveria ser dividido pela metade com o governo central78. Este vigor econômico das ferrovias paulista permitiu-lhes desempenhar múltiplos papéis no complexo cafeeiro paulista: como ‘criadoras’ de ‘oferta de terras’ ao abrir novas regiões ao plantio e ainda enquanto destino para inversões de capitais excedentes da economia cafeeira e origem destes mesmos capitais, pois seus lucros podiam ser reinvestidos na própria atividade ou em outros empreendimentos79. Mas voltemos à formação da Companhia Mogiana. No ano de 1872, por iniciativa dos fazendeiros de Moji-Mirim e da região de Campinas e alguns capitalistas desta cidade80, dada a perda para Rio Claro dos trilhos da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, fundou-se em Campinas, a 1º de julho de 1872, a Mogiana, com capital de 3.000:000$000 e garantia de juros de 7% sobre este para o trecho entre Campinas e Moji-Mirim com um ramal para Amparo. As obras de construção da estrada iniciaram-se em 28 de agosto de 1873, alcançando Moji-Mirim e Amparo dois anos depois. Em janeiro de 1878 seus trilhos já chegavam ao município de Casa Branca, ao

78 Cf. Idem, ibidem, pp. 23 a 26 e 152. Embora do ponto de vista dos investidores privados a possibilidade de lucratividade se constituísse no principal fator na definição do traçado a seguir pelas Companhias de Estradas de ferro, certamente outros agentes influenciavam nessas decisões, notadamente o governo monárquico, que concedia a garantia de juros e determinava o traçado, poderia visar outros objetivos que não a lucratividade dos capitais envolvidos. Pedro Geraldo Tosi, comparando a expansão da Companhia Mogiana e da Oeste de Minas, percebe que o destino final de ambas era a cidade de Catalão, em Goiás, e chega a conclusão de que este plano coadunava-se com o objetivo do Governo Provisório (a referência a este se deva, talvez, à semelhança de sua organização centralizada com a do Segundo Reinado, entretanto, a presença do imperador D. Pedro II nas inaugurações das estações dos ramais da Mogiana de Caldas na cidade de Poços de Caldas e do Rio Grande na cidade de Batataes atualmente com a grafia Batatais, para o autor atesta sua importância para o governo monárquico) contido em seu Decreto nº 862, de estabelecer um sistema de transportes que interligasse as praças comerciais de São Paulo e do Rio de Janeiro (via Minas Gerais) e a região central do Brasil. Tosi conclui que para as autoridades governamentais, a ferrovia não só criava as condições mínimas de funcionamento dos instrumentos de tributação existentes nestas localidades como também desempenhavam nestas um papel civilizador, agilizando as comunicações e intensificando os fluxos mercantis. Pedro Geraldo Tosi. Op. cit., pp. 75 a 78. Ocorre que em São Paulo houve uma convergência entre o potencial de lucratividade das linhas e os objetivos de integração do território. 79 Cf. Wilson Cano. Raízes... Op. cit., pp. 42 a 47 e 64. 80 Como Telles, fazendeiro da região de Moji-Mirim e proprietário de importante empório comercial em Campinas. Cf. Maria Célia Zamboni. A Mogiana e o Café: Contribuições para a Estrada de Ferro Mogiana. Franca: Unesp, 1993, dissertação de mestrado, p. 14.

64 norte81. Após este ano, as pretensões da Companhia Mogiana de estender sua linha por São Simão e Ribeirão Preto, entraram em conflito com os objetivos da Companhia Paulista, que alegava que estes municípios localizavam-se fora da zona privilegiada da Mogiana e a Paulista poderia servi-los com um prolongamento de sua linha a partir de . A Paulista entrou com um pedido de concessão à Assembléia Provincial de São Paulo, sem garantias de juros, esta, porém, decidiu-se favoravelmente à Mogiana, que por lei aprovada em 25 de abril de 1880, ficava autorizada a estender sua linha até Ribeirão Preto, passando por São Simão, onde inaugurou-se uma estação em 16 de agosto de 1882 e em Ribeirão Preto a 23 de novembro de 188382. Entretanto, no período que medeia entre a inauguração da estação de Casa Branca e a posterior expansão da Mogiana, as indefinições acerca de seu traçado não decorreram apenas de sua concorrência com a Companhia Paulista, mas, como em outros casos, também pesou em suas decisões a disputa entre municípios, a fim de atraírem até eles os trilhos do caminho de ferro. Incluía-se nos planos da Companhia Mogiana a extensão da linha até o território mineiro, desiderato que se tornou possível graças à lei provincial (de Minas Gerais) 2.791 de 1º de outubro de 1880, pela qual se concedia à companhia a garantia de juros de 7% sobre o capital de 5.000$000 por 30 anos para construir um prolongamento desde a margem direita do Rio Grande até a margem esquerda do Paranahyba, com passagem obrigatória por Uberaba83. Da mesma forma, a Assembléia Provincial de São Paulo aprovou, em 24 de maio de 1882, garantia de juros de 6% pelo prazo de 20 anos, para que a Companhia Mogiana construísse um prolongamento até a margem direita do Rio Grande estabelecendo apenas que a estrada de ferro deveria tocar o ponto do Rio Grande mais próximo à cidade de Uberaba. Estas medidas receberam pronta aprovação por parte dos homens de Franca, que acreditavam que a Companhia se decidiria pelo que denominavam seu ‘caminho natural’, com um trajeto que partindo de Casa Branca ou São Simão atingiria o Porto da Ponte Alta, segundo um periódico da época o ponto mais próximo da cidade de Uberaba84. Já que não havia especificações sobre quais municípios a linha deveria atravessar (com exceção de Uberaba), muitos deles se viram na contingência

81 Cf. Idem, ibidem, pp. 20-21 e 55. 82 Cf. Idem, ibidem, pp. 32 e 33. 83 Cf. Jornal O Nono Distrito, julho de 1882 apud Rogério Naques Faleiros. Op. cit., p. 47. 84 Cf. Jornal O Nono Districto, nº 24 de 11 de junho de 1882, 1ª página, MHMF.

65 de ficar distante dos trilhos e, portanto, mal situados em relação aos fluxos mercantis originados ou intensificados pela ferrovia, como veremos. Nos debates sobre o melhor traçado a seguir destacou-se a intervenção de um importante personagem da época, Martinho Prado Júnior, membro da eminente família dos Prado, cujos investimentos diversificados certamente os qualificariam como membros do grande capital cafeeiro85. Ao final da década de 1870, quando Martinho já se estabelecia com algumas fazendas na região de Mogi-Mirim, realizou pesquisas sobre o potencial da cultura cafeeira em Ribeirão Preto e São Simão, obtendo resultados animadores86. Em 1882 publicou uma série de 6 artigos no jornal A Província de São Paulo, onde defendia a alteração do traçado da Mogiana. A grande mudança que propunha era uma ligação direta com Ribeirão Preto (posto que o prolongamento até Ribeirão Preto estava aprovado desde 1880, embora pelos planos anteriores recebesse esta ligação por meio de um sub-ramal) que se efetuada, obrigaria a Companhia Mogiana a atingir o Rio Grande com um prolongamento, que, sem grandes desvios e partindo de Ribeirão Preto, deixaria localidades como Franca e Batataes muito à direita da linha87 (ver mapa 1). Obviamente, o que se evidenciava era o interesse de Martinho Prado em investir em fazendas de café no município de Ribeirão Preto, necessitando, para tanto, de uma ligação férrea que lhe permitisse escoar a produção da forma mais eficiente possível. De fato, a Mogiana optou por estender seus trilhos até Ribeirão Preto por um prolongamento de sua linha tronco, o que tornou bastante factível a efetivação da proposta de Martinho Prado, até porque a garantia de juros no trecho mineiro apenas se efetivaria com a chegada dos trilhos à cidade de Uberaba, tornando mais vantajoso, para a companhia, escolher o caminho mais curto, tal qual na proposta de Martinho Prado. Dado este estado de coisas, nos municípios que possivelmente se veriam apartados da linha férrea, como Batataes e Franca, a apreensão se traduziu, notadamente nos jornais, em ataques a Martinho Prado, considerado como responsável único pela alteração dos planos da companhia88, como podemos observar em alguns trechos de um jornal local

85 Cf. Darrel Erville Levi. A Família Prado. São Paulo: Cultura, livraria e editora, 1977, pp. 160-168 e 181- 185. Cf. A família Prado, já por esta época possuía várias fazendas de café, grande parte das ações do Banco do Brasil e ações da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. 86 Cf. Idem, ibidem, pp. 165 e 166. 87 Cf. Rogério Naques Faleiros. Op. cit., p. 52. 88 Cf. Idem, ibidem, p. 53.

66 reproduzidos a seguir: “ O sr. Martinho Prado Junior foi sempre adverso ao prolongamento da linha Mogyana, passando por esta cidade. Admittindo o prolongamento da referida linha, optava pela partida do Ribeirão Preto. (...) E’ por isso que, quando S.S., ha pouco mais de um anno, percorria este districto em busca de votos para a sua eleição a deputado geral, dizia sem rebuço ao eleitorado francano, em conferencias publicas: Não vos prometto trazer aqui a linha férrea; não vol-o prometto para não faltar á minha promessa, para não enganar-vos. A linha Mogyana não virá a esta cidade, por quanto, se tiver de prolongar-se, partirá do Ribeirão Preto, deixando-vos muito á direita.Não quero illudir-vos como estão fazendo os candidatos monarchistas.Promettem-vos a Estrada de ferro, mas fazem-no por uma ridicula fanfarronada, porque elles não a conseguirão.(...) Logo, o sr. Martinho Prado Junior não dizia a verdade aos eleitores francanos e teria perdido parte das apostas que propunha em publicas conferencias. Ainda mais: estamos informado por pessoas competentes que a linha tocará na Franca, por influencia ainda do deputado autor do projecto; pelo que viria o sr. Martinho Prado a perder todas as apostas, ficando provado que pretendia illudir o eleitorado89. Ocorre que no sexto artigo da série, publicado no jornal A Província, de 22 de outubro de 1882, Martinho Prado defende uma posição totalmente distinta da que até então vinha mantendo, pois sustenta que o traçado do prolongamento da Mogiana até o Rio Grande, mesmo deixando Batataes à direita, deveria de qualquer formar passar por Franca, a fim de atrair a produção de Pitangueiras, , Sant’Ana do Cerrado, São José do e Espirito Santo, além de servir ao comércio de sal, toucinho, queijo e gado90. O autor dos artigos tentava assim minimizar os incômodos de se adentrar, segundo ele, uma região de terras impróprias para o café. Mas o que terá movido esta drástica mudança? Após o prolongamento até Ribeirão Preto se efetivar pelo caminho mais curto, torna-se difícil saber se para além deste desiderato Martinho Prado possuía algum interesse em um traçado direto entre esta cidade e o Rio Grande, mas ao que tudo indica estava apenas advogando o caminho mais provável a partir de Ribeirão Preto, que proporcionaria menores custos e ao menos em teoria se mostraria mais atrativo para a Mogiana. Com a

89 Jornal O Nono Districto, nº 45 de 12 de novembro de 1882, 1ª página, MHMF. 90 Cf. Artigo republicado em Idem, ibidem. Nº 50 de 17 de dezembro de 1882, 1ª página.

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chegada dos trilhos desta a Ribeirão Martinho Prado parece manifestar certa indiferença pelos caminhos a seguir. De fato, pelo novo traçado proposto por Martinho haveria um acréscimo de 11 léguas (algo em torno de 66 Km.) com relação a construção direta a partir de Ribeirão Preto91. Para Rogério Naques Faleiros, que examinou todos os documentos que até aqui arrolamos e propôs pela primeira vez esta discussão, os argumentos de Martinho Prado e os contra-argumentos do jornal O Nono Districto, que circulava na cidade de São Paulo, em Franca, Batataes, Sacramento e Uberaba, apontam para uma direção clara: o peso político da cidade de Franca no nono distrito eleitoral da Província de São Paulo e o interesse de Martinho Prado Júnior em eleger-se como deputado geral pelo mesmo nono distrito. Para enfatizar sua conclusão o autor nos mostra os resultados, no nono distrito, para o pleito realizado no ano de 1884 e observa que uma das maiores diferenças de Martinho Prado, então derrotado, para com os demais candidatos, ocorreu na Comarca de Franca:

Tabela 1 - Resultado da eleição para deputado geral pelo 9º Districto de São Paulo - Comarca de Franca.

Candidato/Freguesia do F. Sto. de Sta. Rita do Ant. da Paraíso TOTAL da cidade Freguesia Freguesia Sapucahy Freguesia Freguesia de Franca do Carmo

Delfino Cintra 52 17 13 15 00 97

Frederico Moura 51 08 07 31 07 104

Mendes Filho Filho 47 12 00 04 01 64

Martinho Prado Jr. 03 00 00 23 01 27

Fonte: Rogério Naques Faleiros. Op. cit., p. 55, que por sua vez extraiu os dados do jornal O Nono Districto. Nº 152, de 6 de dezembro de 1884, p. 3, MHMF.

91 Cf. Jornal O Nono Districto, nº 51, 24 de dezembro de 1882, 1ª página, MHMF.

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Tabela 2 – Resultado da eleição para deputado geral pelo 9º Districto de São Paulo – Várias Localidades

Candidato/Freguesia do Preto Belém Espirito do Peixe Batataes Ribeirão Bôa Vista Rio Pardo São Simão São José do São João da Casa Branca Santo do Rio

Delfino Cintra 52 05 58 53 75 13 15 32

Frederico Moura 16 20 30 15 43 10 16 37

Mendes Filho 30 00 01 01 34 01 15 03

Martinho Prado Jr. 00 26 25 29 32 07 56 23

Fonte: Rogério Naques Faleiros. Op. cit., p. 55, que por sua vez extraiu os dados do jornal O Nono Districto. Nº 152, de 6 de dezembro de 1884, p. 3, MHMF.

Estas tabelas não contêm o resultado de todas as localidades do nono distrito eleitoral da Província de São Paulo, entretanto podem nos dar uma visão geral do processo. No resultado final Delfino Cintra, candidato do Partido Conservador, obteve 560 votos contra 360 de Frederico Moura pelo Partido Liberal, 256 de Martinho Prado como representante do Partido Republicano e 192 de Mendes Filho, pela dissidência do Partido Conservador. Percebe-se que as maiores derrotas de Martinho Prado Júnior ocorreram na Comarca de Franca e em Batatais, exatamente as localidades que se sentiram mais prejudicadas por sua intervenção na questão do prolongamento da Companhia Mogiana em direção ao Rio Grande. Ganhou apenas em São João do Rio Pardo e em São João da Bôa Vista. O fato de haver perdido em Ribeirão Preto, município certamente beneficiado com o traçado mais curto proposto por Martinho Prado e efetivamente executado pela Companhia Mogiana, não afeta o argumento de Faleiros, já que as eleições, durante todo o Segundo Reinado, favoreciam sempre os apaniguados dos grupos apoiados naquele momento por D. Pedro II (e que portanto possuíam o controle do Conselho de Estado, já que este órgão detinha o poder de efetuar várias nomeações para diversos cargos), posto que as mesas

69 eleitorais compunham-se, além de elementos claramente ligados a interesses locais, de funcionários subordinados ao Ministro da Justiça e que estas, depois de compostas, invariavelmente entregavam-se a fraudes e coações a fim de manipular o resultado das eleições, com total anuência do governo central. Evidente que o governo sempre vencia e evidente também que o Partido Republicano, nascido para combater a Monarquia, não poderia, por este sistema, alcançar grande margem de votos, de tal forma que à Câmara dos Deputados apenas conseguiu levar cinco representantes nos dezoitos anos de sua atividade durante o período monárquico, alcançando resultados melhores em âmbito provincial (principalmente em São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul), em cujos pleitos as pressões dos elementos locais se faziam sentir com maior força, notadamente após a reforma eleitoral de 1881, quando as eleições, até então indiretas, tornam-se diretas92. Mas a partir destas considerações podemos concluir que a Companhia Mogiana, que de fato estendeu seus trilhos por Batataes e Franca, respectivamente em 1886 e 188793, o fez devido às pressões de elementos destas localidades que desfrutariam de algum prestígio frente a alguns mandatários políticos em nível provincial e quiçá nacional (afinal teriam influenciado uma eleição para uma cadeira na Assembléia Geral), assim sobrepujando suas avaliações de lucratividade ao desiderato das vontades políticas? Isto soa no mínimo duvidoso, principalmente após nossa concisa descrição acerca da forma como se realizava o processo eleitoral da época. Mesmo admitindo-se que os poderosos locais pudessem em grande medida fazer valer sua vontade nas urnas (na maioria das vezes estava associada à vontade monárquica), Batataes e Franca possuiriam um peso eleitoral diminuto. Mas o que teria motivado a Companhia Mogiana a executar este traçado, criando um grande desvio em direção leste? Para Pedro Geraldo Tosi, o fator de maior relevância para a passagem da Mogiana por estas localidades residia nas condições de transposição do Rio Grande, posto que o ponto mais estreito deste, a Jaguara, era o único onde poderia se construir uma ponte sem

92 Cf. Raymundo Faoro. Os Donos do Poder: Formação do patronato político brasileiro. 5ª edição. Porto Alegre: Editora Globo, 1979, vol. I pp. 369 a 377. O Poder Moderador conferia ao monarca a faculdade de dissolver a Câmara dos Deputados, demitir o Gabinete Ministerial e convocar um novo Gabinete, que por sua vez poderia nomear novos funcionários em todos os níveis e dentre estes alguns eram responsáveis por compor as mesas eleitorais que prontamente, em uma nova eleição, dariam a vitória ao mesmo grupo partidário do Gabinete. Idem, ibidem, pp. 354 a 364. Não é nossa intenção aqui por enquanto aprofundarmo- nos neste assunto, para maiores detalhes deve-se recorrer à bibliografia citada. 93 Cf. Maria Célia Zamboni. Op. cit., p. 56.

70 demandar para tanto grandes obras de engenharia e despender maiores despesas, já que exatamente neste local as margens do rio passam por um brutal afunilamento94. Ora, o caminho mais curto para a Jaguara seria passando por Batataes e Franca. Rogério Naques Faleiros também assinala que outro objetivo poderia residir na tentativa de capturar os fluxos mercantis que passavam pela cidade de Sacramento, por onde se comerciavam “...60.000 saccos de sal por anno, o mesmo que dizer duas terças partes do sal que consome o centro, sem contar outras mercadorias”95. Na verdade talvez os dois fatores tenham convergido para a definição final do traçado da Mogiana. Nada mais distante da imagem de cafeicultores, que por sua influência traziam a estrada de ferro até suas fazendas, algo que apenas se tornaria comum na década de 191096. Na verdade, ao contrário do início da expansão ferroviária tratava-se de regiões onde o café ainda não se estabelecera como principal produto e a economia ainda não se baseava em sua produção e comercialização. O caso de Ribeirão Preto, cujo potencial para a cultura cafeeira se mostrou inigualável, é exemplar: em 1886, quando se contavam três anos desde a inauguração da estação da Mogiana nesta cidade, sua população deveria perfazer algo em torno de 10.420 habitantes, sendo 1.379 escravos e 760 imigrantes. Já em 1900 possuiria uma população de 53.547 com 33.199 imigrantes97, uma mudança que apenas a generalização da produção do café em larga escala poderia explicar. Para o ano de 1886 os dados de José Francisco de Camargo são idênticos, mas para 1900 calcula a população de Ribeirão Preto em 59.195 habitantes98. De qualquer forma, é evidente o impacto da ferrovia sobre estas regiões e mais ainda sua importância para o desenvolvimento da lavoura cafeeira dessas localidades, tanto que Odilon Nogueira Matos observa que em São Paulo, suas diversas regiões ficaram conhecidas pelos nomes das ferrovias que as servem. Não se tratavam, porém, como afirma o autor, apenas de estradas ‘cata-café99’, mas de verdadeiros braços do complexo cafeeiro, subordinando, progressivamente, mais e mais regiões ao seu padrão de acumulação.

94 Cf. Pedro Geraldo Tosi. Op. cit., p. 83. 95 Jornal O Nono Districto de 31 de dezembro de 1882, nº 52 p. 2, MHMF. 96 Cf. Pedro Geraldo Tosi. Op. cit., p. 84. 97 Cf. Henrique Caldeira. Economia Cafeeira: Ribeirão Preto, a capital do café: Estudo sobre os imóveis e negociantes durante a expansão cafeeira no final do século XIX. Ribeirão Preto: Edição Independente, 2004, pp. 28 a 31. 98 Cf. José Francisco de Camargo. Crescimento da População e seus Aspectos Econômicos. São Paulo: IPE/FIPE, 1981, vol. II, pp. 9 e 69.

71

Julgamos necessários estes longos circunstanciamentos sobre a forma como a ferrovia chegou ao município de Franca e acerca do desenvolvimento do complexo cafeeiro em São Paulo, posto que somente assim podemos entender a dinâmica econômica que se instaurou no município de Franca após os trilhos haverem atingindo esta cidade em 1887. Para esta dinâmica devemos nos voltar agora.

99 Cf. Odilon Nogueira Matos. Op. cit., pp. 77 e 114.

72

Mapa 1: Idéias defendidas para o prolongamento da Mogiana a partir de São Simão Adaptado de Rogério Naques Faleiros. Op. cit., p. 60.

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O complexo cafeeiro e sua reprodução no município de Franca

A região compreendida entre os rios Pardo e Grande, na divisa nordeste de São Paulo com Minas Gerais, mostrou-se, desde o início de seu povoamento, ao final do século XVIII, e a intensificação dos fluxos mercantis no Centro-Sul do Brasil (que remontam aos tempos áureos da mineração mas permaneceram após o seu declínio) como uma ligação ‘natural’ entre Goiás (no caso deste pela conhecida Estrada de Goiás, que partia de São Paulo atravessando a região a que aludimos) e o Triângulo Mineiro com São Paulo, Rio de Janeiro, passando portanto por outras localidades da própria capitania e posteriormente província de Minas Gerais. Caso contrário os viandantes deveriam confrontar-se com a Serra da Canastra no território de Minas ou com o Rio Grande em suas áreas de corredeiras. Esta localização privilegiada certamente dotou esta região de condições que juntamente com a existência de pequenos cursos d’água por certo favoreceram enormemente a fixação de populações. Para Pedro Geraldo Tosi, a existência de dois espigões, um entre os rios Pardo e Sapucaí e outro entre o Sapucaí e o Grande, definiu a abrangência das duas freguesias que surgiram entre ambos: a de Franca ao norte e a de Batataes ao sul100. A Freguezia de Nossa Senhora da Conceição da Franca e Rio Pardo, fundada no ano de 1805, deve sua existência às facilidades de fixação na região. O nome Franca possivelmente originou-se do nome de Antonio José de Franca e Horta, que governou São Paulo entre 1802 e 1811. Em 1821 já era a Vila Franca Del Rey e em 1824 Vila Franca do Imperador e seria elevada a categoria de cidade em 1856. Com a extinção do regime de sesmarias, em 1822, iniciou-se um período em que não houve qualquer regulamentação acerca de um procedimento formal de apropriação do solo rural até a promulgação da Lei de Terras em 1850, predominando o apossamento puro e simples. Na Freguezia de Franca a rapidez com que ocorreu o povoamento impediu os proprietários de construírem fortes redes de solidariedade entre si e a falta de consenso acerca da condução do poder local levou a que se batessem em conflitos locais que ficaram conhecidos como a ‘Anselmada’, devido ao nome do líder de um dos lados, Anselmo Ferreira de Barcellos. O estopim para estes conflitos ocorreu com a derrota de Anselmo em um pleito eleitoral para a Câmara Municipal da Vila realizado em 1836 e exatamente contra

100 Cf. Pedro Geraldo Tosi. Op. cit., pp. 27 a 43.

74 os camaristas, liderados por Francisco Antônio Diniz Junqueira, que se insurgiram os revoltosos. Certamente o conflito transcorreu com um alto teor de violência inclusive contando com casos de agressões abertas contra autoridades constituídas. Contudo os pontos importantes aqui são dois: em primeiro lugar o governo provincial, na figura do presidente provincial Oyenhausen, talvez refletindo já as tendências de centralização administrativas introduzidas com o Ato Adicional de 1834 (centralização em nível provincial, pois as províncias, durante este período, contam com expressiva autonomia em relação ao governo geral, ao mesmo tempo que conseguem subordinar politicamente os municípios)101 intervém nos acontecimentos – talvez cioso de impedir a emergência de poderosos locais em grande medida desvinculados das estruturas estatais de poder – não só alijando Franca da sede da comarca, que passa a Vila de Batataes (criada em 1839) como também diminuindo significativamente a abrangência daquela, que perde os povoados de São Bento do (atual Cajuru), territórios dos futuros povoados de Santana dos Olhos D’água (atual Ipuã), São José do Morro Agudo (atual Morro Agudo), Espírito Santo de Batataes (atual ), Piedade do Matogrosso de Batataes (atual Altinópolis), Cruzeiro (atual Santo Antônio da Alegria) e as localidades que deram origem a Jardinópolis, Brodósqui, Orlândia, São Joaquim da Barra e Sales de Oliveira. Mesmo elevada à categoria de cidade em 1856, Franca ainda perderia, em 1873 Santa Rita do Paraíso (atual ), Santo Antônio da Rifaina (atual Rifaina) e em 1885 a Freguezia de Patrocínio de Sapucaí (atual Patrocínio Paulista) e Carmo da Franca (atual )102. Outro ponto importante recai no fato de a revolta haver interrompido o desenvolvimento do que parece ter sido uma importante produção artesanal, notadamente a fabricação de tecidos: “... o rumor contínuo dos teares trazia de dentro das casas a notícia alegre do trabalho, contava as abundâncias da vida doméstica... [e pela qual]... a passagem das cargas e das tropas carregadas de artefatos, alimárias ora arquejantes chegadas dalém, trazendo os artigos novos do litoral, ora levando os tecidos grossos dela, produtos dessa atividade operosa, cuja fama já procedia dos dias coloniais, quando Souza Chichorro escrevia para o Governador Palma o seu Memorial, afirmando que a indústria

101 Raymundo Faoro. Op. cit., pp. 303 a 311. 102 Cf. Idem, ibidem, pp. 44 a 47.

75 destes povos francanos daria talvez para ‘vestir a Tropa e a Escravatura da Capitania’... [após as Anselmadas]... casas fechadas e taciturnas, o movimento quase cessara, nos campos e nos lares, calara a Indústria, emudecera o Comércio...”103. De qualquer forma, os fluxos mercantis não sofreram nenhum abalo, e estes, em muito maior grau do que a produção interna, se tornaram centrais na incipiente acumulação de capitais que se processava. Ao tempo do governo Oyenhausen, havia sete estradas principais em São Paulo, entre elas a “... estrada de Franca, também denominada Caminho de Goiás, tinha a extensão de 462 Kms., com rumo NO e partindo da capital, passava por Jundiaí, Campinas, Mogi-Mirim, Casa Branca e Batataes”104. O comércio por esta estrada parecia atingir um fluxo bastante significativo, posto que: “ O trânsito de carros era muito comum na estrada de Campinas a Franca, ou caminho de Goiás. Carregando grandes quantidades de mercadorias, aumentando o lucro dos produtores, eram conhecidos como ‘carros mineiros’ ou ainda ‘francanos’, notáveis pelas grandes juntas de bois franqueiros, fortes e de grandes armações, visto por muitos como os grandes responsáveis pelos estragos nas estradas (...) [de]... quatrocentos a seiscentos desses carros por ano, em torno de 1860 chegavam a Campinas”105. Mas o que se transacionava e qual o papel de Franca em meio a este comércio? Bastante conhecido em sua época e por parte da historiografia local, o comércio de sal, realizado por meio de tropas de mulas e carros de bois, certamente tinha na cidade de Franca o seu centro. Assim conclui José Chiachiri, por meio de uma correspondência enviada por um certo José de Paula e Silva Leão, de Campinas, a Francisco Gomes Pinto, em Franca, onde aquele indaga a respeito de remessas de sal e ferro para este último. Para este autor o sal provinha de Santos por via de Campinas com direção ao sul de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, tanto que nestas regiões recebia a denominação de ‘sal francano’. Seguindo ainda as conclusões de sua narrativa, observamos que considera o ano de 1867 como o início da decadência deste comércio, na seqüência da abertura do Rio

103 Affonso José de Carvalho. A Franca: esboço de história e costumes. In: Vital Palma. Almanach de Franca: 1912. São Paulo: Salesianas, 1911, pp. 126 a 136 apud Pedro Geraldo Tosi. Op. cit., p. 46. 104 Hernani Maia Costa. As Barreiras de São Paulo: Estudo histórico das barreiras paulistas no século XIX. São Paulo: FFLCH/USP, 1984, dissertação de mestrado, p. 135. 105 Idem, ibidem, p. 142.

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Paraguai à navegação fluvial durante a Guerra de mesmo nome, o que propiciou uma via mais eficiente para a obtenção de sal para as regiões do Centro-Oeste do Brasil106. Há outras referências a este comércio também baseadas em testemunhos coevos: “...o commercio de sal, (segundo as investigações do illustre Doutor Bourroul publicadas no precioso Almanach Paulista – de José Maria Lisbôa em 1884) importado do Porto de Santos para supprir as necessidades do consumo, além das fronteiras, ...que Villa Franca assumiu triumphalmente, em relação a esse gênero de riqueza a posição opulenta de um Empório... O sal importado por Santos, e de que se supriam as duas províncias de Goiaz e Mato-Grosso e parte de Minas Gerais, era comprado em Franca, que tornou-se empório, ... onde o sal extraído diretamente da água (sal marinho), obteve por tôda a parte o nome de Sal de Franca, em diferença do sal extraído da superfície da terra”107. Há também alusões ao comércio de gado na região: “Os francanos cultivavam, fabricavam, em suas propriedades, tecidos de algodão e lã, e aplicavam-se especialmente à criação de gado vacum, de porcos e de carneiros. Suas ocupações não se modificaram desde a época de minha viagem; mas a criação de gado vacum, no distrito de Franca, tomou grande incremento, e em 1838, esse distrito era um dos que forneciam mais gado bovino”108. Pedro Geraldo Tosi faz dois reparos à forma como a maioria dos historiadores locais caracterizou este comércio. Antes de mais nada lembra que até a introdução da São Paulo Railway, em 1867 (como já apontamos) o porto de Santos não detinha grande importância, pois a região do Vale do Paraíba (também já o observamos) concentrava maior população, possuía maior densidade econômica e por conseguinte um fluxo mercantil mais vigoroso que o Oeste Paulista, cujo desenvolvimento, como já afirmamos, transcorreu de forma concomitante e intimamente ligado ao crescimento do porto de Santos. Os portos mais importantes localizavam-se na área de abrangência do Vale do Paraíba, com evidente predomínio, quanto ao volume de cargas embarcadas, da cidade do Rio de Janeiro, em São Paulo destacando-se o porto de e o de , este já fora do Vale mas localizado

106 Cf. José Chiachiri. Vila Franca do Imperador: subsídios para a história de uma cidade. Franca: Editôra O Aviso da Franca, 1967, pp. 104 a 106. 107 Eugenio Egas (org.). Franca. In: Os Municípios Paulistas: São Paulo: O Estado de São Paulo, 1925, vol. I, p.682 e Pedro E. Vallim. Álbum dos Municípios do Estado de São Paulo: (1940). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1940, p. 117 apud Pedro Geraldo Tosi. Op. cit., p. 49.

77 bem ao sul de Santos. O fato de Campinas se constituir em ponto obrigatório de passagem de mercadorias certamente relacionou-se em muito maior grau à sua centralidade para os transportes, dadas as condições do relevo. Segundo as suas conclusões, a Vila de Franca poderia obter o sal de várias fontes, porém muitas regiões se abasteciam unicamente com o sal de Franca. Ademais, aventa a possibilidade de que ambos os fluxos, do gado e do sal, pudessem encontrar-se entrelaçados109. Consideramos esta hipótese bastante crível, pois nas zonas fornecedoras de gado se importava sal, e nas regiões onde se obtinha o sal comprava-se os produtos derivados do gado vacum; este possivelmente provinha de Goiás e do Triângulo Mineiro com destino ao restante da Província de Minas Gerais, Rio de Janeiro ou São Paulo. O comércio do sal, por sua vez, realizava-se em um sentido inverso; buscado em Campinas ou no Sudoeste de Minas Gerais abastecia as regiões produtoras de gado. Ademais, ambos os produtos eram interdependentes no processo de armazenagem e transporte, pois ao gado se ministrava o sal para que retivesse maior quantidade de líquidos e da mesma forma o sal se transportava em sacos de couro. Já demonstramos que alguns dos fluxos mercantis que atravessavam Franca possuíam grande vitalidade, mas por que este comércio do gado e sal se concentrava em Franca a ponto deste ser conhecido como ‘sal francano’? Uma grande vantagem desta região, devida sobretudo às condições geográficas, residia em sua localização, eqüidistante tanto das áreas onde se produzia quanto das que consumiam estes produtos. Estações bem demarcadas de chuvas e secas também favoreciam a região de Franca, na medida em que devido à importância da renovação das pastagens para a recuperação do gado em trânsito, e mesmo no caso do sal, que após receber uma pequena quantidade de água poderia aumentar em volume, abria-se a possibilidade de comprar estes produtos na baixa de seus preços (durante a seca) e vendê-los na alta (durante as chuvas). Mas o fator fundamental residia em sua localização enquanto ponto de passagem obrigatório para a transposição do Rio Grande a que já nos referimos110. Ademais, parece-nos improvável que as transações com sal entraram em declínio a partir da abertura do Rio Paraguai à navegação, principalmente se recordamos que a alusão

108 Auguste de Saint-Hilaire. Viagem à Província de São Paulo. São Paulo: Livraria Martins Editora/Editora da Universidade de São Paulo, 1972, p.101. 109 Cf. Pedro Geraldo Tosi. Op. cit., pp. 49. 110 Cf. Idem, ibidem, pp. 50 a 52.

78 ao comércio do sal com a cidade de Sacramento constituiu-se em argumento para a defesa da passagem dos trilhos da Mogiana naquela direção (vide página 67, nota 95). Provavelmente, à medida que a estrada de ferro Mogiana se aproximava de Franca, tornando o transporte mais fácil e rápido, o comércio, tanto do gado quanto do sal se intensificaram e ainda por algum tempo permitiram que Franca se beneficiasse com os desnivelamentos – com o avanço da ferrovia devem ter se tornado maiores, dado o barateamento dos artigos produzidos nas localidades já servidas por aquela – entre produtores e consumidores. Estes, porém, ao receber uma ligação direta entre si por meio da via férrea, acabariam por prescindir da intermediação realizada pelo município de Franca, impondo o fim desta atividade. Este comércio, ao que parece desfrutava de uma grande vitalidade, pois alguns homens de Franca com ele envolvidos atuavam também diretamente nas localidades onde era mais intenso: “Existem no Sacramento diversos estabelecimentos commerciaes, sendo um dos mais importantes o de Simão Caleiro que vende para o centro, alêm de outros gêneros, de 18 a 20 mil saccos de sal”111. Entretanto, é evidente que estas transações não abarcavam toda a economia da região, já que para a fixação de povoamento fazia-se necessária uma produção de subsistência que atendesse às necessidades de consumo, até porque provavelmente apenas alguns de seus habitantes reuniriam condições de arcar com os custos necessários para que atuassem no rendoso comércio do gado e sal, principalmente se atentarmos para a lentidão dos transportes, que certamente constituiu-se em um sério limite à generalização da circulação monetária, obstruindo para a maioria a captação de recursos sob esta forma. Segundo informações colhidas em alguns inventários da década de 1840 a 1860 registrados na cidade de Batataes, haviam poucos produtos não fabricados localmente, até mesmo tecidos (de algodão), alguns artigos de madeira (os assoalhos das casas, os móveis, etc.) e de ferro (pregos, ferraduras, etc.) parecem ter sido comuns na região. Também se produziam queijos, aguardente, rapadura, cereais em geral, carne seca, etc. Apenas o sal, o ferro e alguns artigos mais elaborados precisavam ser ‘importados’112. Mas seria uma economia basicamente voltada para o autoconsumo ou uma “economia de excedentes”, tal como Hernani Maia caracteriza a produção do Vale Paraíba

111 Jornal O Nono Districto de 31 de dezembro de 1882, nº 52 p. 2, MHMF. 112 Cf. Lucila Reis Brioschi et. alli. Op. cit., 1991, pp. 53 a 58.

79 paulista pouco antes do surto cafeeiro, quando esta região se dedicava a atividades de abastecimento113? Esta é uma questão especialmente difícil de se responder principalmente pelas características do comércio da época que deixava poucos registros e devido à impossibilidade de conhecermos o total da produção que não entrava na órbita do mercado. Armênio de Souza Rangel, estudando o município de Taubaté entre 1765 e 1835, a partir de recenseamentos realizados durante este período, denominados Listas Nominativas dos Habitantes, deparou-se com este problema, já que se tratava de uma região onde predominava, com exceção de um curto período ao final do século XVIII em que a atividade açucareira se destacou, do ponto de vista econômico, pela produção de gêneros de subsistência (principalmente criação de porcos), pelo menos até a generalização da cultura cafeeira, que se inicia na década de 1820 e ganha força a ponto de no ano de 1835 representar 76,6% das vendas do município. Neste trabalho demonstra que o autoconsumo aumentou na medida em que o ímpeto da agricultura de exportação, notadamente o açúcar, arrefeceu em Taubaté. Nos períodos em que a agricultura de exportação floresceu, como no ano de 1798 em que as vendas de açúcar se situavam em patamares consideráveis e no ano de 1835, em que o café já se assenhoreava da economia local, a proporção de domicílios voltados para o autoconsumo tendeu a se situar em cerca de 30%114. Preocupado com a repartição de riqueza no município de Taubaté, Armênio de Souza Rangel nos fornece indícios importantes acerca do grau de mercantilização daquela região. Como afirma o próprio autor: “ Nas economias escravistas, a principal fonte de acumulação de capital e da riqueza provinha da massa de cativos que constituia propriedade pessoal dos livres”115. Ora, na medida em que os produtores estivessem mais integrados ao mercado e, portanto obtivessem, em maior grau, remuneração monetária pelo seu trabalho, é de se supor que se investisse parcela importante desta na aquisição de escravos. Em Taubaté, de 1765 a 1865 a proporção de domicílios sem escravos se manteve a uma média de 77,9%. Mais ainda: em períodos em que a agricultura destinada à

113 Acompanhemos o raciocínio do autor: “Os produtores valeparaibanos não vendiam apenas o que sobrava depois de garantir o consumo, uma vez que numa economia de excedentes, a produção organiza-se a partir da idéia de que, do que se planta, uma parte deve se destinar à subsistência da família do produtor e um excedente deve ser produzido para troca ou comércio”. Hernani Maia Costa. O Triângulo das Barreiras: (As Barreiras do Vale do Paraíba Paulista – 1835-1860). São Paulo: FFLCH/USP, 2001, tese de doutoramento em história, 2001, p.116. 114 Cf. Armênio de Souza Rangel. Escravismo e Riqueza: Formação da Economia Cafeeira no município de Taubaté 1765-1835. São Paulo: FEA/USP, 1990, tese de doutoramento em economia, pp. 155 a 160.

80 exportação recrudescia este número diminuía, ou melhor, mais domicílios adquiriam escravos, demonstrando uma certa relação entre culturas de exportação e mercantilização da economia. Em 1812, por exemplo, os domicílios com escravos atingiam 18,9% do total e em 1835, já sob o impacto da expansão da lavoura cafeeira, este número chegaria a 26,1% do total116. Se em 1835 havia cerca de 70% dos domicílios dedicados a atividades mercantis e, no entanto 73,9% sem escravos e se considerarmos que todos que possuíam escravos desenvolviam alguma atividade mercantil, chegaríamos à conclusão de que 43,9% dos domicílios voltados à produção para o mercado não possuíam escravos. Podemos supor, também, que já que não conseguiam recursos em moeda em quantidade suficiente para adquirir um escravo, o grau de comercialização de sua produção era muito baixo, de tal forma que comercializariam apenas o excedente não utilizado em sua subsistência. Ainda assim, cerca de 20% dos habitantes continuaram, permanentemente, produzindo para a troca e não apenas comercializando o excesso de sua produção para subsistência, de modo que isto não invalida o argumento de Hernani Maia Costa sobre a existência de uma “economia de excedentes” no Vale do Paraíba paulista no início do século XIX. Mas qual seria o grau de mercantilização da produção econômica de Franca? Se um município como Taubaté, próximo a um importante centro consumidor na primeira metade do século XIX como foi a cidade do Rio de Janeiro, antes da expansão de sua lavoura cafeeira não mantinha sua produção tão vinculada ao mercado, como poderíamos caracterizar Franca na segunda metade do mesmo século, dadas as distâncias bem mais dilatadas que separavam este município dos centros consumidores mais importantes e com condições de transporte que se equiparavam às de Taubaté na época enfocada por Armênio Rangel? Como já afirmamos, havia um comércio no qual os circuitos de compra e venda do gado e compra e venda do sal se entrelaçavam e que por sua importância e pelas distâncias a serem vencidas certamente demandavam um montante considerável de recursos, restringindo seu acesso a uns poucos agentes, embora não o seu volume. É provável, também, que o comércio de outros gêneros ou se destinaria a localidades próximas ou se

115 Idem, ibidem, p. 199. 116 Cf. Idem, ibidem, pp. 212 a 214.

81 realizaria na esteira do circuito gado-sal117, o que pressupõe uma baixa circulação monetária entre a população dedicada à produção de artigos para o abastecimento. Assim é bem possível que quando o café se estabeleceu definitivamente na região, deparou com uma economia altamente monetarizada apenas no topo da cadeia mercantil. Não possuímos números acerca da quantidade de homens livres que possuíam e não possuíam escravos como Rangel, de forma que não podemos verificar a hipótese que apontamos acima com dados empíricos, apenas possuímos algumas informações apontando para uma concentração dos plantéis de escravos na segunda metade do século XIX, concentração cujos mecanismos tentaremos explicar no segundo capítulo, mas ainda assim a hipótese que aventamos nos parece bastante crível. Após o período inicial de atuação da via férrea em Franca, o município experimentou uma grande queda no total transacionado de gado e sal, o que se reflete nos totais embarcados na Estação Franca da Companhia Mogiana. No caso específico do sal, a situação que se configurou demonstrou um franco declínio, posto que de quase quatro toneladas embarcadas na Estação Franca em 1893, passou-se para um montante quase sempre inferior a duas toneladas a partir do ano seguinte118. O transporte do gado ainda enfrentava outro inconveniente: os bovinos até então transacionados, conhecidos como ‘franqueiros’ (bos taurus frontosus), possuíam chifres muito grandes, o que se revelava uma vantagem no período em que seu transporte se realizava por seu próprio deslocamento, já que esta característica evitava que os animais adentrassem os matos, porém dificultava sua acomodação no interior dos vagões, razão pela qual acabaram preteridos por outras raças menos cornudas, além de a ferrovia baratear o arame farpado, o que possibilitou maior eficiência na criação intensiva. Em 1893 embarcaram-se nove mil cabeças de gado bovino na Estação Franca da Companhia Mogiana, provavelmente devido a uma liquidação para renovar o plantel (dado o inconveniente do gado franqueiro ao qual já nos referimos). Após este ano os embarques caem abaixo de cinco mil cabeças até 1895 e abaixo de três mil até 1901, provavelmente já

117 Hernani Maia faz uma constatação interessante sobre a Barreira da Figueira, localizada nas proximidades de Lorena: “era grande o número de porcos provenientes de Bragança Paulista, , Mogi-Mirim e de Franca, além do sul da província de São Paulo”, demonstrando que o circuito imaginado por Tosi, ligando Franca ao Rio de Janeiro pelo comércio de gado e sal, parece de fato haver existido. Hernani Maia Costa. O Triângulo... Op. cit., pp. 176 e 177. Grifos nossos. 118 Cf. Pedro Geraldo Tosi. Op. cit., p. 82, gráfico nº 7.

82 refletindo a crise na cafeicultura; experimenta alguns picos até 1907, situando-se sempre acima de quatro mil cabeças, mas a partir de 1909 sua derrocada não deixaria margens a dúvidas. Por algum tempo ainda a região de Franca pôde fornecer gado para as localidades próximas servidas pela Mogiana (Jaguara, e Cristais) e para a cidade mineira de , atravessada pela estrada de ferro Oeste de Minas, inclusive intermediando o fluxo oriundo de Barretos, situação que findaria com a chegada da Paulista a Barretos: “... Franca estaria definitivamente cercada por importantes centros bovinocultores: ao norte por Uberaba, Uberlândia e Araguari; a oeste por Barretos, Orlândia e Ipuã; a leste por Pratápolis e São Sebastião do Paraíso e ao sul, em escala bem mais reduzida, mas numa posição incomparável do ponto de vista dos transportes, por Ribeirão Preto”119. A sofisticação e diversificação econômica que tiveram lugar com a chegada da Mogiana a Franca certamente abriram um campo de oportunidades para investimentos muito mais largo que a estreiteza das formas de vida material que a busca pela subsistência diária havia permitido até então. Certamente que as mudanças em curso derivaram em grande medida dos efeitos projetados da lavoura cafeeira sobre o conjunto das atividades econômicas. Podemos observar, pela tabela abaixo, a importância que o café ganha a partir da chegada dos trilhos:

119 Idem, ibidem, pp. 54 a 56 e 80, gráfico nº 6.

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Tabela 3 – Quantidades de café embarcadas na Estação Franca da Companhia Mogiana entre 1888-1898 em toneladas Ano Quantidades embarcadas 1888 131,26 1889 428,94 1890 531,57 1891 780,26 1892 654,55 1893 842,35 1894 912,31 1895 2.238,96 1896 3.772,49 1897 4.998,92 1898 4.784,91 Fonte: adaptado de Pedro Geraldo Tosi, op. cit., anexo II, p. 303. Se compararmos a quantidade de café embarcado na Estação Franca da Companhia Mogiana no ano de 1898 ao total de café que chegou ao porto de Santos para o mesmo ano, que montou ao total de 334.000 toneladas120, perceberemos que a produção de Franca perfazia algo em torno de 1,43% da produção total do Estado de São Paulo. Se contudo tomarmos como base os levantamentos realizados pela Repartição de Estatística e Arquivo do Estado de São Paulo para o ano de 1897, com base em dados enviados pelos municípios e por isso mesmo bastante incompletos, teremos uma produção em Franca de 3.600 toneladas, número bem diverso do total embarcado pela Estação Franca da Companhia Mogiana para o mesmo ano, como podemos observar pela tabela acima. A produção total do Estado, segundo o relatório desta repartição, alcançou a expressiva quantidade de 220.016,07 toneladas no ano de 1897, de tal modo que a produção cafeeira em Franca para o mesmo ano segundo estes levantamentos corresponderia a cerca de 1,64 % da produção total paulista, mas lembremos que nem todos os municípios enviaram os dados solicitados pela Repartição de Estatística e Arquivo, de modo que este número poderia se situar em um

120 Thomas Holloway. Imigrantes para o Café: Café e Sociedade em São Paulo 1886-1934. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 261, apêndice.

84 patamar ainda menor, ainda que, curiosamente, mostre grande aproximação com o número anterior. Talvez a menor quantidade de café produzida presente no relatório da Repartição de Estatística e Arquivo se deva a alguma relação que pudesse haver destes levantamentos com fins fiscais, mas de qualquer forma fica patente a baixa expressão da cafeicultura francana em relação ao Estado de São Paulo. Outros municípios, como e Araraquara, produziram, segundo o relatório da Repartição, respectivamente 12.000 e 33.750 toneladas de café em 1897121, números bastante superiores aos 3.600 de Franca. Mesmo assim, a cafeicultura provocou tranformações de monta na economia local. Acompanhemos o processo. Pedro Geraldo Tosi observa, pela análise dos relatórios da Mogiana no que respeita à quantidade (avaliada segundo o peso das cargas) de bens embarcados e desembarcados, que até 1897 as ‘importações’ para o município de Franca sempre foram maiores que suas ‘exportações’. Também nota que há quantidades crescentes de alimentos ‘exportados’ a partir de 1895, demonstrando que a cafeicultura de exportação utilizando trabalho livre e com produção simultânea de alimentos se consolida em Franca entre 1885 e 1897122. A diversificação de negócios encetada pelo café certamente minorou quaisquer possibilidades de prejuízos que pudessem advir para os negociantes locais, dado o declínio dos fluxos mercantis dos principais produtos tradicionalmente transacionados na região. Talvez tenha ocorrido exatamente o contrário: aproveitaram-se das novas oportunidades para expandir seus investimentos e aumentar sua lucratividade, sob um ritmo de acumulação que não se comparava com o anterior. Pelos registros de licenças de negociantes da Câmara Municipal de Franca, observamos que dos três comerciantes de sal ainda em atividade em 1886, Álvaro de Lima Guimarães, Major Antônio Nicácio da Silva Sobrinho e Simão de Oliveira Caleiro, todos passaram a se dedicar ao comércio do café – talvez a atividade mais lucrativa na cidade após o advento da ferrovia – a partir de 1887, no caso do último já em 1886. Na verdade, em geral, por algum tempo ainda permaneceram comerciando o café juntamente com sal e carne (mais um indicativo do entrelaçamento dos fluxos mercantis de gado e sal) como o

121 Relatório da Repartição de Estatística e Arquivo do Estado de São Paulo para o ano de 1897, pp. 468 a 473, MHMF. 122 Cf. Pedro Geraldo Tosi. Op. cit., pp. 90 a 93, gráfico 11 e 13.

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Major Nicácio, autorizado, em 1887, a efetuar operações comerciais com fazendas, molhados, aguardente, gêneros da terra, sal, café e carne. Outros antigos negociantes de sal, como Joaquim Garcia Lopes da Silva, que negociou o produto até 1885, concentraram suas atividades nas fazendas de café; outros ainda, provavelmente se estabeleceram no meio urbano com atividades variadas mas de algum porte123. Mas qual era a natureza desta diversificação? O que significava se integrar ao complexo cafeeiro para os municípios do interior? Para responder a esta questão devemos observar esse complexo não apenas a partir da divisão de suas atividades, mas da divisão geográfica destas. A localização espacial das atividades mais lucrativas deste complexo caracterizou-se, em suas origens, por uma competição entre as cidades de São Paulo, Santos e Campinas a fim de atraí-las para si e concentrá-las. Não obstante, e decididamente após o surto ferroviário, a capital paulista – segundo a totalidade da bibliografia que trata de sua urbanização sempre ocupou uma posição estratégica na ligação do planalto com o litoral, o que pode tê-la dotado de vantagens cumulativas com o decorrer do tempo – passa a concentrar o sistema bancário, o comércio por atacado e de importação e Santos, por motivos óbvios, as atividades ligadas ao comércio de exportação. Campinas, apesar de se constituir em um nó de comunicações, perdeu sua antiga projeção. Nos núcleos urbanos do interior, se desenvolveram o comércio, a indústria e um incipiente sistema bancário, mas com expressão meramente local, dado o fator de inibição para estes da concentração dessas atividades na capital paulista124. Isto não significa, contudo, que as transformações ocorridas após a chegada da via férrea em Franca (e em outros municípios do interior paulista) foram diminutas; o novo circuito mercantil em que se inseria, cujo centro se localizava na cidade de São Paulo, exibia um vigor e uma dinâmica muito maiores que o anterior. Em primeiro lugar devemos pensar no incremento sobre a circulação monetária que as novas relações de trabalho exerceram sobre o conjunto da economia local, não só pela substituição do braço escravo como também pela mudança de ênfase da produção, agora em muito maior grau mercantilizada.

123 Cf. Livro de Registro de Negociantes da Câmara Municipal de Franca 1883 a 1896, caixa 14, volume 72, MHMF. 124 Cf. Zélia Maria Cardoso de Mello e Flávio Azevedo Marques de Saes. Op. cit.

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Rogério Naques Faleiros calcula em 793 o número de imigrantes que se dirigiram para o município entre 1880 e 1890, em 1.943 entre 1891 a 1900 e 1.503 entre 1901 e 1910. De 8,9% do total da população francana na década de 1880 os imigrantes elevariam sua participação a 22,83% na década seguinte e a 28,01% nos dez primeiros anos do século XX. Contudo os imigrantes não corresponderiam à totalidade da mão-de-obra rural, já que sua presença nos contratos de trabalho entre 1891 a 1900, período de maior incidência destes, equivalia a 60% do total ou 76 em um total de 128. Ainda segundo o autor, a maioria dos contratos de trabalho da época não possuía cláusulas referentes ao pagamento eventual por dia, tal qual ocorre na definição de colonato dada pela bibliografia, mas o acesso aos meios de produção em proporção à força de trabalho do colono, segundo Naques Faleiros a característica distintiva do colonato, poderiam qualificar estas relações como uma variação deste125. Mesmo se imaginarmos que a maior parte dos pagamentos habituais poderia se realizar não em dinheiro, mas por meio de promessas de pagamento em notas ou vales, ainda assim manter-se-iam os efeitos sobre o comércio local, já que a aceitação destas notas ou vales pelos trabalhadores rurais pressupunha sua aceitação geral, ainda que de forma indireta, com o colono utilizando-os no armazém da fazenda e o cafeicultor abastecendo este por meio de compras a prazo. Deve-se lembrar também que o padrão de acumulação imposto pela cafeicultura gerou em muito maior grau que antes um excedente monetário passível de ser reinvestido ou na própria produção de café ou em outras atividades mercantis, em outras palavras: o café permitia a expansão da economia em um ritmo bem mais acelerado. Assim como a produção de alimentos, o desenvolvimento comercial acompanhou o movimento da lavoura cafeeira. De fato, em 1883 encontramos apenas 75 negociantes registrados pela Câmara Municipal e em 1887 130 com poucos estabelecimentos além daqueles denominados de secos e molhados126. O registro de licença de negociantes não registrava apenas a abertura de novos negócios como também a renovação das licenças expedidas anteriormente. Entretanto, sua escrituração não parece muito confiável, pois encontramos grandes

125 Cf. Rogério Naques Faleiros. Op. cit., pp. 66 a 67, 80 a 84 e tabela I na p. 67. Neste sentido de atribuir os meios de produção ao trabalhador na proporção de sua força de trabalho, no caso a célula familiar, esta variação do colonato elevou sobremaneira a produtividade do trabalho, já que enquanto na década de 1890 a média de cafeeiros cuidados atinge 14.491, nas duas décadas anteriores o autor encontrou apenas duas escrituras onde o número de cafeeiros a serem cuidados era superior a 5.000. 126 Cf. Registro de licença de negociantes 1883 a 1896, caixa 14 volume 72, MHMF.

87 variações de um ano para outro para mais ou menos. Mas não há dúvida que a cidade experimentou um enorme incremento comercial na década de 1890, a ponto de em 1902 já existir um extenso e diversificado quadro de profissões e negócios na cidade, incluindo médicos, farmacêuticos, dentistas, advogados, engenheiros, os chamados capitalistas, tipografias onde se imprimiam vários jornais, hotéis, restaurantes, fábricas de cervejas, de massas, de sorvetes, olarias, fábrica de cigarros, marmorarias, relojoeiros, guarda livros, alfaiates, sapateiros, seleiros, marceneiros, ferreiros, várias invernadas, vários estabelecimentos de fazendas e armarinhos, muitos de secos e molhados, etc127. Ademais, Franca, ao que parece, ocupou por um longo período o papel de centro comercial regional, exercendo uma dominância mercantil sobre as regiões que compunham a sua antiga freguezia e as cidades mineiras próximas128. Este desenvolvimento das atividades de cunho mais urbano ocorreu concomitantemente (em todos os municípios que integraram o complexo cafeeiro paulista) à implantação de uma infra-estrutura nas cidades que incluía calçamento das ruas, fornecimento de água, serviços de esgoto, fornecimento de energia elétrica, introdução de transporte urbano, etc. A lavoura cafeeira por certo gerou várias transformações onde se implantou, mas até que ponto a forma como esta se estabeleceu no município paulista de Franca divergiu ou convergiu com o modelo geral e em que medida a economia local sofreu o impacto das flutuações inerentes ao mercado cafeeiro? Em primeiro lugar observamos que não havia grandes fazendeiros em Franca, já que o maior, em 1901, Doutor João de Faria, possuía apenas 185.000 pés129, quantidade incomparável aos milhões de pés de alguns cafeicultores de Ribeirão Preto, como o Coronel Francisco Schmidt, que em 1905 contava em suas fazendas com 6.075.500 cafeeiros, ou a Companhia Dumont, com 3.999.990 de pés no mesmo ano, ou ainda o já citado Martinho Prado Júnior que possuía 2.112.700 de cafeeiros também em 1905130. Esta característica da cafeicultura de Franca deriva em parte de sua estrutura fundiária e em parte do tipo de solo predominante na região, o lato-solo vermelho-

127 Cf. Missemo Melo Franco (org.). Almanach da Franca para 1902. São Paulo: Duprat, 1902, pp. 91 a 94, 110 a 117 e 144 a 147, MHMF. 128 Cf. Idem, ibidem, pp. 62 e 63. Segundo o autor Franca comerciava diretamente com Patrocinio do Sapucahy, Santa Barbara, Aterrado, Santa Rita Paraizo, Ituverava, Forquilha, Santa Rita de Cassia, São Sebastião do Paraizo, Desemboque, Araxá, etc. 129 Cf. Idem, ibidem, pp. 177 a 184. 130 Almanach Illustrado de Ribeirão Preto. Ribeirão Preto: Sá, Manaia & Cia, 1914, não paginado. AHMRP.

88 amarelo fase arenosa, que, diferentemente da terra roxa, não apresentava uma grande fertilidade para a cultura cafeeira. A estrutura fundiária de Franca, não tão concentrada como em outros municípios de maior produção cafeeira, por sua vez originou-se de duas circunstâncias: em primeiro lugar da antiguidade do povoamento da região, que a predispôs a uma maior fragmentação do solo; em segundo lugar ao fato de seus solos não se adequarem tão bem quanto os de terra roxa à cafeicultura, não atraindo grandes investidores interessados em se estabelecer em grandes fazendas, como ocorreu em Ribeirão Preto no caso, por exemplo, de Martinho Prado Júnior. Apesar da menor fertilidade do lato-solo vermelho-amarelo fase arenosa, este não retém muito líquido como ocorre com a terra roxa, o que combinado com as condições climáticas de Franca, onde as terras achavam-se a uma altura média de 900 metros, com concentração das chuvas no verão, mantendo um baixo índice de umidade, resultava em frutos de baixa acidez, de maior cotação no porto de Santos. Não obstante esta qualidade superior dos cafés francanos, a crise que se instaura em 1898 como resultado de queda nos preços internacionais do café combinada com política monetária restritiva, atingiu severamente a economia local, apesar de a produção se manter ascendente até 1902, como se observa pela tabela abaixo: Tabela 4 – Quantidades de café embarcadas na Estação Franca da Companhia Mogiana entre 1898-1906 em toneladas Ano Quantidades embarcadas 1899 5.653,25 1900 7.284,55 1901 8.565,03 1902 9.755,31 1903 8.389,06 1904 6.923,30 1905 5.490,61 1906 8.469,10 Fonte: adaptado de Pedro Geraldo Tosi, op. cit., anexo II, p. 303.

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A diminuição da quantidade de café embarcado a partir de 1902 deve-se a geada deste ano, mas a crise é melhor circunstanciada por uma apreciação qualitativa que quantitativa. Transformação de amplos reflexos sobre a produção cafeeira, a mudança que se processou nas relações de trabalho, observada por Rogério Naques Faleiros a partir de 1898, agia no sentido de transferir parte dos prejuízos aos trabalhadores, pois introduzia, nas fazendas da região, o regime de parceria, ou o da empreitada conforme a idade dos pés, em detrimento do outrora bem-sucedido sistema do colonato. Nos contratos de trabalho, onde antes se estabelecia uma remuneração em mil-réis por mil pés de café tratados, determinava-se a divisão dos frutos do cafezal entre fazendeiro e empregados. Mas o processo não se esgotava nas alterações sofridas pelas relações de trabalho, a nova condição do imigrante, de acesso ao mercado cafeeiro, o colocou em uma posição extremamente propícia para acumular algum pecúlio que poderia ser invertido na aquisição de terras, desvalorizadas pela superprodução cafeeira que deprimiu os preços do produto e impactou duramente os cafeicultores. Desta forma, um caminho viável para que estes saldassem seus débitos, em um contexto de escassez de numerário, residiu exatamente na fragmentação de suas terras, abrindo a possibilidade, para os trabalhadores, de tornarem-se proprietários, o que de fato ocorreu em Franca por essa época131. Ademais, esta crise parece basicamente ter sido uma crise de numerário, principalmente se levarmos em conta as rebeliões que ocorreram em agosto de 1902 visando derrubar Campos Sales exatamente devido à ferrenha oposição a sua política monetária. Pedro Geraldo Tosi também nota uma intensa fragmentação da terra para o período imediatamente subseqüente: “ Foi no período que vai de 1906 a 1915 que imigrantes, principalmente de origem espanhola e italiana, credores de dívidas para com os velhos cafeicultores, dotados de alguma economia e famílias numerosas, tiveram acesso à propriedade de terras de dimensões não muito elevadas132”; mas sua apreciação deste fato é um pouco divergente, na medida em que considera que estes imigrantes se tornaram proprietários devido à sua acumulação anterior realizada ainda sob o sistema de colonato, principalmente por meio da venda da produção excedente de alimentos. Para Rogério Naques Faleiros, que examinou detalhadamente os possíveis gastos dos imigrantes e sua

131 Cf. Rogério Naques Faleiros. Op. cit., pp. 125 a 136. 132 Pedro Geraldo Tosi. Op. cit., p. 131.

90 produtividade para uma família de cinco membros (o número médio para os imigrantes que se estabeleceram na região por esta época), o colonato não lhes abriu a possibilidade de acumulação. O argumento de Naques Faleiros, sustentado em uma sólida documentação, parece mais plausível, mas o fundamental é que evidencia a crise na cafeicultura, pois a fragmentação da terra, tomada isoladamente não permitiria uma conclusão cabal. Segundo Tosi, os imigrantes que conseguiram acesso a terra passaram a produzir em menor escala e a custos reduzidos, o que certamente contribuiu para a superação da crise, além de que os cafés de melhor qualidade sempre foram privilegiados nos planos de valorização133. Entretanto, como ocorria com toda região onde os solos já se encontravam desgastados por sua longa utilização pela cultura cafeeira, a produtividade declinou, como podemos observar pela tabela abaixo:

Tabela 5 – Produção e produtividade dos cafeeiros em Franca para alguns anos Produção Nº total de cafeeiros Produtividade Ano (toneladas) (em milhares) (@/mil pés) 1902 9.755,33 4.222,50 154,02 1909 11.918,40 7.380,98 107,60 1910 6.273,00 7.380,98 56,60 1911 9.355,35 7.380,98 84,40 1912 9.390,36 - - 1913 10.042,35 - - Fonte: adaptado de Pedro Geraldo Tosi, op. cit., tabela nº 4, p.132. Para ano de 1902 o autor utilizou os relatórios da Companhia Mogiana, para os demais de fontes diversas.

Não obstante, por sua qualidade os cafés francanos se beneficiaram com o plano de valorização de 1906, o que pode ter contribuído para a recuperação da crise. Podemos observar, pela tabela abaixo, as diferenças que começam a figurar entre o total produzido e o total embarcado, excedente que provavelmente estava sendo armazenado a fim de diminuir a oferta disponível e elevar os preços:

133 Cf. Idem, ibidem. Op. cit., pp. 133.

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Tabela 6 – Quantidade produzida e embarcada de café em Franca 1907-1914 Quantidades embarcadas Ano Produção (toneladas) Diferença (toneladas)

1907 - 11.007,52 - 1908 - 6.625,63 - 1909 11.918,40 9.663,60 2.254,80 1910 6.273,00 5.297,32 975,78 1911 9.355,35 5.692,22 3.663,13 1912 9.390,36 5.935,37 3.454,99 1913 10.042,35 7.188,41 2.853,94 1914 - 5.873,35 - Fonte: adaptado de Pedro Geraldo Tosi, op. cit., anexo II, p. 303 e tabela nº 4, p.132.

Entretanto, para avaliar melhor o impacto do plano de valorização sobre a cafeicultura de Franca seria necessário avaliar os custos e a renda das fazendas, ao menos das mais representativas, sob a nova conjuntura, assunto a que não adentraremos por ora. Os dados mostram, por outro lado, que a produção entre 1907 e 1914 se manteve em níveis superiores aos das safras que as precederam, o que combinado com preços mais altos (não conhecemos a cotação dos cafés francanos para esta época, mas esta se elevou até no caso de frutos de menor qualidade) atesta a superação da crise. De qualquer forma, já delineamos em seus traços gerais a inserção do município de Franca no complexo cafeeiro e observamos como apesar de algumas peculiaridades, sua economia seguiu de perto as flutuações do café no mercado internacional. Mas, enfim, que papel desempenhava o crédito para a economia dessa região e em especial para a cafeicultura? Bom ponto de partida é a análise que Pedro Geraldo Tosi elabora sobre as relações entre cafeicultura e crédito a partir de exame de documentação e de trabalho de um autor que pertenceu a uma família de importantes negociantes da época, os Caleiros: “...principalmente aos lavradores, eram fornecidas mercadorias com a célebre ressalva, ‘em prazo de colheita’. Para melhor esclarecer esta parte, o produto da venda do comerciante era para ser paga apenas na época das colheitas, fossem elas de café, cereais

92 ou outros gêneros de montante vultoso. Apenas nestas ocasiões, ficava o lavrador apto a regularizar seus débitos, ressalvadas as exceções das trocas por queijo, farinha, rapaduras e outras rendas de menor monta que a todo tempo eram válidas... o comerciante, mesmo cobrando algum juro pela espera na regularização dos débitos, deveria possuir um capital apreciável, pois ao lado do suprimento de suas prateleiras, deveria arcar com o financiamento dos seus freguêses. Surgiram, em razão disto, os embriões... de muitos organismos bancários do interior, pois nesta altura, já se confundiam as figuras do negociante com a do banqueiro. Foi o que se deu com o próprio Hygino de Oliveria Caleiro, com o grupo Moreira Salles de Poços de Caldas, com o grupo Artur Scatena de Batatais”134. Evidencia-se que havia uma relação de confiança, exigindo por parte do comerciante o financiamento dos gastos dos fazendeiros (provavelmente nestes incluíam-se os dispêndios para formação e trato do cafezal) até a colheita, e por parte do fazendeiro que honrasse suas dívidas mantendo o seu bom nome. Entretanto, o que Tosi aventa é a possibilidade de, pelo menos até a década de 1910, o conhecimento da alta qualidade dos cafés francanos não ser generalizado para todos os participantes no negócio e de que para pagar o crédito concedido, os fazendeiros entregassem os frutos de sua colheita, cuja comercialização ficaria a cargo dos negociantes, estes sim conhecedores do verdadeiro valor dos cafés. Assim, as relações pessoais encobririam a maior fonte de lucro do intermediário. O argumento torna-se mais convincente quando o autor alude à propaganda do Banco de Custeio Rural, fundado em 19 de agosto de 1911, onde se anunciava que realizava contratos de penhor agrícola deixando plena liberdade ao devedor na venda da produção. O advento desse banco, ainda segundo o autor, indicaria que os lavradores não mais aceitariam o rebaixamento do preço de seus produtos e que por outro lado os seus antigos financiadores não arriscariam mais sofrer prejuízos pelo crédito baseado na confiança. A partir de então, estes grandes negociantes se retirariam, em sua maior parte, da atividade de fornecimento de crédito à cafeicultura; passariam a conduzir seus investimentos de modo a se concentrarem no setor industrial, de forma que em 1911 compraram da Câmara Municipal a Companhia Francana de Eletricidade, no valor de

134 Hygino Jacintho Caleiro. Hygino de Oliveira Caleiro: um exemplo. Franca: FFCLF, 1967, monografia de conclusão de curso em história, p. 9 e 10 apud Pedro Geraldo Tosi. Op. cit., pp. 129 e 130.

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1.000:000$000, formaram também a Companhia Industrial Francana, com capital inicial de 120:000$000 para a produção de fósforos e faziam gestões para introduzir uma fábrica de tecidos na cidade135. O argumento parece bastante sólido e as escrituras de dívida da época o reforçam em alguns pontos. Na verdade poucos contratos de penhor agrícola registrados em cartório possuem informações adicionais sobre a forma de comercialização dos cafés, mas os poucos que as contém podem nos fornecer esclarecimentos acerca de sua gestão mercantil. Como o contrato registrado no 2º tabelionato de notas de Franca no ano de 1900 entre o Dr. Marcílio Mourão, capitalista e Joaquim Antonio de Andrade, lavrador, onde aquele efetua um empréstimo a este no valor de 2:100$000, a 1,5% de juros ao mês com capitalização semestral (os pagamentos deveriam realizar-se de seis em seis meses) e garantia de 300 arrobas de café. Mas o importante nesta escritura reside no fato de o escrivão observar que o credor receberia 15 quilos pelo preço de 10 que vigorasse em Santos136. No mesmo teor era o contrato entre Olívio Alves Ferreira, capitalista, e José Urias do Nascimento, lavrador, onde aquele emprestou a este a quantia de 6:000$000 com a garantia sobre 900 arrobas de café que deveria entregar na estação Mogiana, limpo e beneficiado; o devedor pagaria uma arroba por cada 10 quilos, ou melhor, pagaria a dívida com cada arroba de café valendo 10 quilos137. Provavelmente, a justificativa para tal procedimento, aos olhos dos devedores, residiria na necessidade, por parte dos credores, de extrair os juros sobre o capital adiantado ao cafeicultor, não obstante a margem de 50% sobre este (já que se entregava 15 quilos pelo valor de 10) possivelmente situar-se num patamar muito mais elevado que os juros que seriam pagos em moeda. Estas são as únicas escrituras, em mais de quinhentas, que estabelecem e explicitam este tipo de relação. Todavia isto não significa que este deliberado rebaixamento dos preços dos produtos do devedor não ocorresse com certa freqüência, até porque em se tratando de laços de confiança mútua nos quais se enredava o negócio, nem todos os procedimentos concernentes a este necessitariam de registro. O que estes documentos sugerem é que havia uma subordinação do fazendeiro em relação ao usurário, ou negociante, tal que aquele se

135 Cf.Pedro Geraldo Tosi. Op. cit., pp. 134 e 135. A propaganda a que aludimos encontra-se em Vital Palma (org.). Almanach de Franca: (1912) com variadíssima e desenvolvida parte histórica, biographica, literária, industrial, charadística, commercial e annunciante. São Paulo: Salesianas, 1911, p. 33. 136 Cf. Livro de escrituras do Tabelionato de 2ºofício de Franca, 1900, nº 36, folha 14. AHMF.

94 submetia às condições impostas por este, que por sua vez talvez sequer necessitasse dos desnivelamentos mercantis derivados do não conhecimento das cotações dos cafés de Franca, como sugere Tosi, para auferir altas taxas de lucro. O que não exclui de pronto a possibilidade de as duas formas de desnivelamento atuarem em conjunto. Porém estes registros de dívida não são representativos do conjunto da cafeicultura, não por seu número diminuto, mas pela baixa magnitude das quantias e quantidades de café envolvidos nas transações. Este tipo de financiamento envolvia, portanto, em muito maior grau a pequena propriedade que os maiores produtores. Há também um outro tipo de escritura que nos revela mais sobre a forma como se comercializava o café, como o contrato de penhor agrícola firmado em 1899 entre o Padre Alonso Ferreira de Carvalho, capitalista, e Antonio Rodrigues Moreira, lavrador, com o empréstimo para este da quantia de 2:500$000 e penhor de 500 arrobas de café, calculadas sobre o café em coco, cada arroba correspondendo a 28 quilos do fruto neste estágio do processo produtivo138 . Do mesmo teor é o contrato de penhor agrícola firmado no ano de 1900 entre Olívio Ferreira & Mello, negociantes, e Antonio Moreira dos Santos Sobrinho, sem profissão designada, pelo qual aqueles lhe emprestariam 2:000$000 a 1,5% de juros ao mês com a garantia de todos os frutos do cafezal da fazenda Boqueirão do Alto da Serra a serem entregues no valor de 30 quilos de café em coco por arroba ou 30 quilos de café em coco por 10 beneficiado139. Também aludindo ao beneficiamento, o contrato entre o Padre Alonso Ferreira de Carvalho, capitalista e o Major José Martins da Silva Freire, sem profissão designada, registrado no ano de 1902, pelo qual aquele emprestou 500$000 a este, estabelecia que o café deveria ser entregue na Estação Indahya, em Franca e o padre se encarregaria pelo beneficiamento do produto, com ‘a diferença compensada de ambos os lados’140. Em condições semelhantes se firmou o contrato de penhor agrícola entre Francisco Biassoli, lavrador e negociante de Santa Rita do Paraíso e João Antunes Cintra Sobrinho, lavrador também de Santa Rita do Paraíso, no ano de 1906, pelo qual o primeiro emprestou a quantia de 2:000$000 ao segundo, que entregaria os frutos pendentes de seu cafezal (sugere que havia uma dívida anterior) limpos, secos e em coco, na proporção de 30

137 Cf. Livro de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1900, nº 36, folha 16v. AMHF. 138 Cf. Livro de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1899, nº 34, folha 19v. AMHF. 139 Cf. Livro de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1900, nº 36, folha 50v. AHMF. 140 Cf. Livro de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1902, nº 40, folha 83. AHMF.

95 quilos por arroba141. Mais esclarecedor ainda é o contrato de penhor agrícola firmado em 1908 entre Joaquim Mariano do Amorim Carrão, neste documento designado como industrial e José Antonio de Andrade, lavrador que recebeu como empréstimo a quantia de 3:500$000 a ser paga em 2 anos com taxa de juros de 12% ao ano e garantia de 1.200 arrobas de café, que deveria ser entregue na máquina do credor, que o beneficiaria e o venderia142. Havia algumas escrituras que sugeriam que o beneficiamento ficaria a cargo do devedor, como o contrato firmado no ano de 1898 entre o Coronel Domiciano Fagundes, sem profissão designada, residente em São Paulo e o Capitão Francisco Gomes dos Reis, lavrador, residente em Franca, pelo qual este receberia a quantia de 21:557$000 com a garantia de todos os frutos do cafezal de sua fazenda (Boa Vista), que deveriam ser entregues já secos e beneficiados. Da mesma forma que o contrato de penhor agrícola firmado em 1903 entre Olívio Alves Ferreira, neste documento sem designação de profissão, e Alberto Lastorina, também sem profissão designada, em que este último receberia como empréstimo a quantia de 1:000$000 com garantia de 500 arrobas de café; deveria entregá-las já beneficiadas e a despesa com a venda correria por conta do próprio devedor 143. A maior parte destes documentos demonstra que o café era comprado ainda sem beneficiamento, o que abria a possibilidade, ao negociante, de lucrar ainda pelo diferencial de preços entre o café em coco e o já beneficiado, ainda que esta correlação entre os dois derivasse da perda de peso que os frutos sofriam no processo produtivo144. Observa-se que na totalidade dos contratos que previam a aquisição, pelo credor, do café ainda em coco, as quantias transacionadas são diminutas, nem sequer ultrapassando a faixa dos 5:000$000, o que sugere, mais uma vez, que esta dependência do fazendeiro em relação ao maquinário de beneficiamento se fazia sentir principalmente entre os pequenos produtores. Os outros dois

141 Cf. Livro de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1906, nº 53, folha 24v. AHMF. 142 Cf. Livro de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1908, nº 59, folha 12v. AHMF. 143 Cf. Livro de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1903, nº 43, folha 78. AHMF. 144Na página http://www.coffeebreak.com.br/ocafezal.asp?SE=5&ID=32 do sítio http:/www.coffeebreak.com.br encontramos a informação de que para se obter 1 quilo de café beneficiado seriam necessários 2 quilos de café em coco, seguindo a mesma proporção estabelecida nas escrituras. No entanto, alguns contratos, como o contrato firmado entre Olívio Ferreira & Melo e Antonio Moreira dos Santos Sobrinho, em 1900, onde este entregaria 30 quilos de café em coco por arroba ou 30 quilos de café em coco por 10 quilos beneficiados, sugerem que não se estava apenas descontando as perdas de peso mas estabelecendo-se uma margem de lucro para o negociante.

96 casos que registramos não contradizem o argumento, já que em um caso se trata de quantia já significativa, ultrapassando a casa dos 20:000$000 (significativa em termos locais) e que mesmo havendo exigência de que o devedor assumisse o beneficiamento do produto, talvez não recebesse pela arroba o valor equivalente, como vimos nos casos em que recebiam quantia proporcional a 10 quilos sobre a arroba já beneficiada145. Assim, em um primeiro momento, podemos constatar uma grande clivagem entre ‘grandes’ e pequenos cafeicultores no que tange às suas relações com os chamados capitalistas e negociantes locais. Assim, estes registros, apesar de escassos, mostram-nos que havia uma completa subordinação dos pequenos proprietários em relação aos seus credores, o que não necessariamente incluiria um desconhecimento da cotação dos cafés francanos em Santos (o que certamente não significa que estes desnivelamentos não fossem efetivamente realizados, dada a hierarquia existente entre pequenos fazendeiros e ‘capitalistas’), mas tampouco o excluiria, principalmente se pensarmos que aqueles certamente não participavam de todas as fases de comercialização do produto e provavelmente possuíam poucos contatos além da região onde se estabeleceram. Os maiores fazendeiros, ainda que não inseridos em todas as etapas do comércio do café, poderiam, contudo, possuir um conjunto de relações de raio mais amplo e melhor acesso a informações acerca das cotações dos cafés, principalmente se pensarmos no envolvimento de muitos deles na política local (o que pressupunha travar relações com as autoridades estaduais, encontrar-se incluído na estrutura formal de poder do Partido Republicano Paulista, etc.). Mas o que nos sugere a documentação em termos quantitativos? Em primeiro lugar devemos observar qual o comportamento do volume dos valores registrados nas escrituras

145 Esta necessidade de beneficiar o café fora da própria fazenda também impacta a economia de uma outra forma: estimula a complexificação das relações entre cidade e zona rural na economia cafeeira. Segundo Maria Coleta de Oliveira, o estudo destas relações esbarra na ênfase dada pela bibliografia acerca do caráter autárquico das fazendas, não obstante apenas as grandes propriedades terem recebido uma carga de estudos que permitem este tipo de conclusão. Maria Coleta F. A. de Oliveira. Mercantilização e Urbanização em São Paulo. Campinas: Núcleo de Estudos de População (NEPO)/UNICAMP, texto 14, 1988, pp. 6 e 7. Há um contrato de dívida que parece indicar que grande parte dessas atividades, tais como o beneficiamento, eram executadas na cidade pois o devedor, José Guerner de Almeida, hipotecou 3/4 da máquina de beneficiar café da Rua General Ozório (que se localizava no centro da cidade de Franca) pelo valor de 50:000$000 em 1903 a Romano & Irmãos, casa comissária de Santos.

97 de dívida conforme a conjuntura atravessada pela lavoura cafeeira. Podemos auferir o volume dos empréstimos pelo gráfico abaixo:

Gráfico 1 - Volume de empréstimos efetivamente tomados no município de Franca 1880-1914

400 350 300 250 200 150 100 Contos de réis 50 0 1880 1882 1884 1886 1888 1890 1892 1894 1896 1898 1900 1902 1904 1906 1908 1910 1912 1914 anos

Fonte: Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, livro 5 ao 79. AHMF.

Podemos constatar, pelo gráfico acima, que o volume de empréstimos segue muito de perto a conjuntura enfrentada pela lavoura cafeeira. Tanto que o período de maior volume destes ocorre concomitantemente a maior expansão do plantio, durante a década de 1890 até o Funding Loan, em 1898. Este ano, no tocante ao valor monetário total dos empréstimos, não seria igualado pelo menos até 1914. O gráfico também reforça nosso argumento de que a economia local, antes da chegada dos trilhos da Mogiana, encontrava- se escassamente monetarizada, excetuando-se uma fina camada de grandes negociantes envolvidos no comércio de gado e sal. Percebe-se também que 1901 é o ponto mais agudo da crise de numerário e que a ascensão dos preços do café por ocasião da geada de 1902 permitiram uma recuperação moderada das operações de crédito. Nota-se facilmente a plena retomada destas operações após o plano de valorização de 1906 e uma queda no volume de empréstimos a partir de 1911 não acompanhada pela produção e pelos preços do café. Se recordarmos que exatamente no ano de 1911 fundou-se o Banco de Custeio Rural em Franca, podemos supor que grande parte da demanda monetária desviou-se para este

98 banco, diminuindo o número de empréstimos registrados em escrituras. Assim estes números parecem corroborar o argumento de Pedro Tosi, de que a iniciativa de formação desta instituição derivou da necessidade, por parte dos lavradores, de conseguir crédito e ao mesmo tempo manterem o controle sobre a comercialização de seu principal produto. Não incluímos, no gráfico, dados referentes a empréstimos que não foram efetivamente tomados, onde em geral se firmavam procurações a fim de levantá-los em outras praças, geralmente no Banco de Crédito Real de São Paulo:

99

Tabela 7 – Solicitação de Empréstimos por procuração firmada no Município de Franca146 Ano Possível Credor Possível Devedor Valor Solicitado em contos 1895 Banco Real de Crédito de São Paulo Cap. Antonio da Costa Valle 160 1895 Banco Real de Crédito de São Paulo Fabiano 80 1895 Banco Real de Crédito de São Paulo Antonio Justino de Lome 130 1895 Banco Real de Crédito de São Paulo Fabiano Pereira Barreto 300 1895 Banco Real de Crédito de São Paulo Doutor Domenico de Luca 50 1895 Banco Real de Crédito de São Paulo Major José Martinho da Silva Freire 100 1898 Banco Real de Crédito de São Paulo Amalia Pereira Baptista Barreto 250 1898 Banco Real de Crédito de São Paulo Amalia Pereira Baptista Barreto 90 1898 Banco Real de Crédito de São Paulo Cap. Antonio da Costa Valle 90 1898 Banco Real de Crédito de São Paulo Antonio Bento Ferreira Lopes 40 1898 Banco Real de Crédito de São Paulo Cap. Francisco Gomes dos Reis 130 1898 Banco Real de Crédito de São Paulo Cap. Antonio Flavio Martins Ferreira 300 1898 Banco Real de Crédito de São Paulo Virginia de Sá Barreto e Candido 90 Pereira Barreto 1899 Banco Real de Crédito de São Paulo José Guerner de Almeida, Olimpio 150 José da Silva 1900 Banco Real de Crédito de São Paulo Fabiano Pereira Barreto 120 1900 Banco Real de Crédito de São Paulo Tito Gomes Jardim 200 1900 Banco Real de Crédito de São Paulo Dr. Gustavo Gomes 200 1900 Antonio Pimenta de Pádua João Netto 15 1900 Banco Real de Crédito de São Paulo Cap. Francisco Gomes dos Reis 130 1900 Banco Real de Crédito de São Paulo Claro Ribeiro Marcondes Machado 60 1909 Não Especificado Sócios da Fazenda União (espanhóis) não consta Fonte: Livros de Escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, nº 24, 26, 32, 33, 34, 36, 37, 62. AHMF.

Não há referências a taxa de juros ou ao prazo para estes empréstimos. Apesar da magnitude de seus valores, bem superiores à maioria dos demais registrados nas escrituras, nada nos garante que tenham se efetivado, apesar de sugerirem que os grandes proprietários, provavelmente os cafeicultores de maior porte (na totalidade dessas escrituras em que se designava profissão ou ocupação aparecia a denominação de ‘lavrador’)

146 Como já explicamos no corpo do texto aqui não se trata de empréstimos efetivamente tomados, na verdade não sabemos se foram tomados ou não; firmavam-se procurações para que certas pessoas, em nome de outras, tentassem levantar empréstimos em outras localidades que não Franca, geralmente na capital paulista. Como não era certo que estes empréstimos fossem de fato realizados, denominamos os devedores como possíveis devedores; por outro lado, na maioria das vezes (nem sempre) estes possíveis devedores manifestavam preferência em angariar recursos em uma ou outra instituição ou junto a uma ou outra pessoa, mas isto não significa que em caso de esta possibilidade não se concretizar que os procuradores não pudessem obter

100 desfrutavam de acesso mais facilitado ao crédito bancário. Embora a liquidação do Banco de Crédito Real de São Paulo tenha ocorrido em 1906, após o ano de 1900 não há mais registros de nenhuma solicitação de empréstimos, talvez refletindo os impactos, sobre a circulação de dinheiro, da severa crise de numerário que se abateu sobre a economia brasileira em seu conjunto e cujo ponto de ignição se situa em 1898. Dentre os nomes que aparecem como devedores nestas escrituras em particular, desconhecemos a procedência apenas de Antônio Bento Ferreira Lopes e do restante somente o Doutor Gustavo Gomes não possuía residência no município de Franca. Entre os demais, pudemos localizar, na lista de cafeicultores de Franca para o ano de 1901147: Antonio da Costa Valle, com 52 mil cafeeiros; Antonio Flavio Martins Ferreira, com 60 mil cafeeiros; Doutor Candido Pereira Barreto com 30 mil cafeeiros; Claro Ribeiro Marcondes Machado com 10 mil cafeeiros; Francisco Gomes dos Reis com 50 mil cafeeiros; Fabiano Pereira Barreto com 30 mil cafeeiros; José Guerner de Almeida com 30 mil cafeeiros e Tito Gomes Jardim com 30 mil cafeeiros148. Destes, encontramos apenas dois na lista de cafeicultores do município de Franca de 1910149: Antonio Flavio Martins Ferreira e José Guerner de Almeida. Nesta lista também aparece o Banco de Crédito Real de São Paulo (apesar de sua liquidação em 1906, o que não é de todo estranho se pensarmos que este processo poderia levar alguns anos), o que significa que pelo menos uma parcela destas solicitações de empréstimo devem ter se convertido em contratos de hipoteca e que na virtual insolvência dos devedores o banco executou suas propriedades. Assim, se considerarmos que além dos empréstimos conhecidos somar-se-iam alguns com o Banco de Crédito Real de São Paulo, poderíamos sobrelevar ainda mais o papel da expansão cafeeira da década de 1890 em seus efeitos sobre o volume de crédito. Entretanto, talvez estes dados estejam distorcidos pelo movimento dos preços. Como já afirmamos, entre o final da década de 1880 e o ano de 1898 houve um intenso processo inflacionário causado, em larga medida, pela maior quantidade de papel-moeda empréstimos de outras fontes. Por isso, denominamos estes credores preferenciais (geralmente é o Banco Real de Crédito de São Paulo) de possíveis credores. 147 Cf. Missemo Melo Franco (org.). Almanach da Franca, 1902, pp. 177 e 184, MHMF. 148 Dentre os maiores cafeicultores do município de Franca desta época, Antonio Flavio Martins Ferreira, com seus 60 mil cafeeiros se classificaria apenas na 11ª posição, portanto esta lista está longe de refletir os maiores cafeicultores do município. Provavelmente, e ao contrário do que consideramos anteriormente, a ocorrência de alguns destes empréstimos não se deva ao porte e solidez financeira dos fazendeiros envolvidos, mas às suas prováveis conexões com a diretoria do Banco de Crédito Real de São Paulo.

101 em circulação, o que pode ter afetado o volume de empréstimos. A partir do índice de preços elaborado por Villela e Suzigan150 para o período de 1889 a 1945, elaboramos um novo gráfico com os dados deflacionados, a fim de tentar representar da forma mais fiel possível a dinâmica do crédito no município de Franca:

Gráfico 2 - Volume de empréstimos efetivamente tomados no município de Franca 1889-1914 dados deflacionados

1.000 900 800 700 600 500 1919 400 300 200 100 Valor real em contos de réis 0 1889 1891 1893 1895 1897 1899 1901 1903 1905 1907 1909 1911 1913 Anos

Fonte: Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, nº 5 ao 79. AHMF. Villela e Suzigan utilizam o índice 100 para os preços de 1919 e definem os valores para os demais anos conforme sua proporção em relação aos preços deste ano, por isso utilizamos como unidade de medida o valor real da moeda comparada com o valor real do conto de réis em 1919.

A tendência geral mantém-se, com a única diferença de que deflacionando os valores dá-se maior relevo ao período em que os preços do café sofreram o efeito do primeiro plano de valorização, o que reforça o argumento de que as políticas emissionistas do final da década de 1880 e início da de 1890 não obtiveram grande impacto no Estado de São Paulo, ainda que o alto patamar em que se situavam os preços internos do café durante a década de 1890 e a própria expansão da produção fossem responsáveis por uma maior abundância monetária. No mais, observa-se que a dinâmica do crédito segue muito de

149 Cf. Vital Palma. Almanach de Franca: 1912. São Paulo: Salesianas, 1911, pp. 203 a 207. MHMF. 150 Cf. Annibal Villanova Villela e Wilson Suzigan. Op. cit., pp. 410 e 411, tabela VII. Os índices de preços que os autores elaboraram referem-se principalmente à cidade do Rio de Janeiro. O município de Franca, após entrosar-se definitivamente na economia cafeeira, provavelmente seguia a flutuação de preços da economia paulista e da cidade de São Paulo em particular. Apesar dos maiores impactos do Encilhamento sobre a economia carioca, consideramos que a tendência geral sobre os preços deve ter sido bastante semelhante.

102 perto, entrelaça-se mesmo, à dinâmica presente na lavoura cafeeira, conforme a conjuntura enfrentada por esta. Explicitemos as conclusões que até este momento mantivemos implícitas: o caráter dominantemente mercantil da acumulação gerou dois circuitos monetários distintos; um que regia o eixo São Paulo-Santos e caracterizava-se, devido à própria estrutura das atividades econômicas que se concentraram nesta área, notadamente o comércio externo, pela circulação de moeda forte, de origem externa, predominantemente a libra esterlina; este circuito também se caracterizava pelo financiamento bancário; já no segundo circuito, que regia as regiões onde se instalou o aparato produtivo que sustentava este comércio exterior, predominava a circulação do mil-réis, moeda que como vimos sofria com as adversidades provocadas pela flutuação dos resultados obtidos no intercâmbio externo e a gestão governamental sobre sua circulação, de tal modo que quando escasseava, certamente que demandava arranjos determinados nas unidades produtivas para que se mantivesse a produção de café; o que por sua vez talvez explique a expansão de sua lavoura mesmo em períodos de contração do meio circulante, até porque os bancos não se inseriam neste circuito, pois a alta lucratividade do comércio em relação à produção neste tipo de economia restringia as fontes de financiamento desta a agentes não institucionalizados. Entretanto, falta-nos ainda analisar em maior profundidade como cada agente reagiu e se acomodou a cada situação específica posta pelo próprio movimento do padrão de acumulação vigente. Como os ‘capitalistas’ em geral se inseriram na atividade do crédito, por que tal ou qual grupo dominava esta atividade, em que medida as relações de crédito favoreceram a acumulação, como o crédito atuou em termos de capacitar a expansão econômica ou travá-la para ‘grandes’ e pequenos cafeicultores, as condições em que este se ofereceu para ambos, a medida em que o excedente de capital ‘vazou’ da cafeicultura dirigindo-se para setores econômicos de teor mais urbano; constituem um elenco de questões a serem tratadas no próximo capítulo.

103

Capítulo II A cadeia do crédito em movimento: pela ótica dos credores

Os credores e o crédito

Quando pensamos nos credores, nos fornecedores de crédito, um conjunto de perguntas imediatamente vem à mente: quem eram? O que faziam? Como captavam seus recursos? Quais as operações mais lucrativas em que poderiam se envolver e qual o nível de lucratividade de cada uma delas, a curto, médio e longo prazo? Quais eram suas aplicações preferenciais e por quê? Como reagiam frente à insolvência de seus devedores? Embora muitas das respostas devam esperar o tratamento conjunto da posição dos devedores na atividade creditícia, um bom ponto de partida para elucidar estas questões é definir a extração ocupacional destes verdadeiros negociantes de dinheiro, pois a partir desta conheceremos também o grau de especialização que existia na atividade creditícia e poderemos situar melhor sua posição no conjunto da economia local. Observemos o que nos sugere o gráfico abaixo:

Gráfico 3 - Proporção por ocupação nos créditos concedidos no município de Franca em períodos selecionados

800 600 400 200

contos de réis de contos 0 1888-1898 1899-1906 1907-1914 período

Capitalista Comissários Negociantes e comerciantes Lavradores Proprietários Outros Indeterminado

Fonte: Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, nº 5 ao 79. AHMF.

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Preferimos elaborar este gráfico por períodos e não por meio de um fluxo temporal contínuo dado que assim poderíamos captar melhor como o movimento da cafeicultura afetou o sistema de crédito em cada conjuntura em particular. Este procedimento se justifica na medida em que já demonstramos a forma como crédito e cafeicultura se entrelaçaram, no capítulo anterior. Excluímos deliberadamente o período que medeia entre 1880 e 1887 do gráfico, não apenas por representar uma quantidade irrisória de empréstimos, mas também por praticamente não haver distinção entre as ocupações dos diversos credores entre estas duas datas. Da mesma forma, também excluímos os empréstimos conjuntos, às vezes concedidos por credores com ocupações diferenciadas uma da outra por tornar difícil a definição do montante cabível a cada um deles. A ausência destes não prejudica a demonstração, na medida em que perfazem uma soma igualmente desprezível. Elaboramos este gráfico, como os demais neste capítulo, não pelo número de ocorrências, mas pelo montante de quantias emprestada, pois desta forma podemos delinear de uma forma muito mais acurada, do ponto de vista da acumulação, a representatividade de cada estrato ocupacional na atividade creditícia. Quanto a classificação dos diversos grupos de credores, devemos fazer algumas ressalvas. Nas escrituras de dívida dos livros cartoriais do Tabelionato de 2º ofício por vezes um mesmo personagem é registrado em ocupações diversas em cada escritura, assim, na medida em que aparecesse designado como ‘capitalista’ nós assim o classificamos, mesmo quando em outras escrituras fosse denominado como ‘negociante’ ou ‘comerciante’ ou de qualquer outra forma, dado que a designação por ‘capitalista’ não pressupunha a realização de empréstimos eventuais, mas uma certa constância na atividade creditícia e neste caso acreditamos que suas operações no fornecimento de crédito, que demandavam a existência de quantias disponíveis para tal fim, deveriam desviar parcela importante de seus recursos e que, portanto, se não predominava a atuação desses enquanto ‘capitalistas’, ao menos esta se constituía em função de grande importância no conjunto de suas atividades. Incluímos ‘comerciantes’ e ‘negociantes’ na mesma categoria, por ambos referirem-se a quem comprava e vendia mercadorias. Da mesma forma que no caso dos ‘capitalistas’, chamamos ‘comerciantes’ ou ‘negociantes’ elementos que também, vez por outra, recebiam outras denominações (menos a de capitalista), mesmo que de ‘fazendeiros’, ou ‘lavradores’, posto que sua diversificação

105 nos negócios não permitiu classificá-los como ‘fazendeiros’ou ‘lavradores’em seu sentido estrito. Decidimo-nos por enquadrá-los na definição de ‘negociantes’ ou ‘comerciantes’ porque na verdade era comum que se investisse em fazendas, mas a dedicação predominante a estas exigia uma carga de investimentos que geralmente não se coadunava com a atuação em outros setores1. Entretanto, isto não ocorria com freqüência, a regra é que os comerciantes fossem sempre designados desta forma ou como ‘negociantes’. Preferimos denominar os fazendeiros por ‘lavradores’ pois além desta denominação predominar nas escrituras, mostra-se mais adequada para abarcar tanto os grandes proprietários, mantenedores de uma extensa massa de mão-de-obra, quanto os homens que lavravam sua terra por conta própria. Evidentemente que lavrador aqui não possui o significado de trabalhador rural, mas aludia simplesmente ao sujeito que vivia deste tipo de trabalho. Reservamos a classificação de ‘comissários’ àquelas empresas ou elementos assim definidos ou qualificados como ‘comerciantes’ ou ‘negociantes’ desde que atuassem a partir da cidade de Santos ou do Rio de Janeiro. Evidente que o comércio do café pode qualificá-los dessa forma, mas dadas as especificidades deste comércio, a que já nos referimos no capítulo anterior, acreditamos que podemos designá-los como ‘comissários’, desde que esteja evidente sua atuação neste negócio e não apenas na compra e venda de outras mercadorias. Na verdade, um mesmo estabelecimento aparece, nas escrituras, por vezes com a designação de ‘casa comissária’ e por vezes com a designação de ‘negociante’. A classificação de ‘proprietários’ aparece em algumas escrituras com o sentido de proprietário urbano, ou como algum tipo de rentista, mas uma definição mais precisa torna- se difícil. Incluímos em ‘outros’ profissionais liberais e mais algumas denominações que escapam às classificações anteriores. De qualquer forma, a insignificância dos montantes transacionados por estas últimas duas categorias nos permitem desconsiderá-las na análise. Mas passemos a esta. O que nos indica o movimento do montante de crédito concedido por cada grupo ocupacional? Em primeiro lugar podemos perceber que com a exceção dos comerciantes e

1 Aqui dá-se a impressão de que utilizamos o mesmo critério anterior, para distinguir entre capitalistas e comerciantes, ou seja, o montante de capital invertido em dada atividade, de forma invertida, pois as fazendas exigiriam mais investimento que o comércio. Entretanto ocorre que na maioria esmagadora dos casos em que

106 dos comissários, sua tendência permanece bastante constante para os demais grupos. Se começarmos pelos movimentos de menor uniformidade, observaremos que o mais espetacular deles se refere às operações de empréstimo realizadas pelos comissários: de um patamar não desprezível de aproximadamente 250 contos no período inicial, cai abaixo de 100 contos entre 1898 e 1906 para se tornar o grupo que mais fornecia crédito entre 1907 e 1914. Inicialmente estes números sugerem que o comissariado apenas expandia suas inversões em condições de maior segurança. Este fenômeno ocorreria em outros municípios? Ou nos que apresentassem maior produtividade manter-se-ia o fluxo de crédito? A qualidade dos cafés francanos não nos permitiria afirmar isto, na medida em que aquela compensaria a menor produtividade das fazendas da região. Entretanto, talvez esta mesma qualidade superior dos cafés da região nos impeça de fazer generalizações acerca da situação do comissariado como um todo durante este período, na medida em que os cafés de maior qualidade beneficiaram-se, em muito maior medida, com o plano de valorização. Mas por outro lado, a conjuntura de expansão monetária, que espraiou seus efeitos igualmente a todas as regiões cafeeiras, criou um fenômeno específico, posto que permitiu a uma multiplicidade de agentes participarem do negócio do crédito como observamos pelo gráfico, onde há uma grande quantidade de lavradores efetuando empréstimos entre 1888 e 1898, o que, como melhor circunstanciaremos na análise, certamente afetaria também o comportamento dos comissários, jogando a favor de uma certa generalização a partir dos dados de que dispomos. Não conseguiremos responder a esta questão de forma definitiva, mas, dado o caráter abrangente da atuação das casas comissárias (afinal, suas transações não se resumiam a apenas uma região) para melhor entender o seu papel faz-se necessário pensá-lo de uma forma generalizante. Mas acreditamos que este pecado é menor na medida em que associamos as suas atividades não apenas aos dados contidos no gráfico, mas também a conjuntura monetária (e da economia como um todo) específica de cada período, cujos efeitos não se restringiram à região de Franca. Haveria menor disponibilidade de recursos para as casas comissárias durante a década de 1890 até o plano de valorização de 1906 em comparação ao período posterior?

isso ocorria (e que já eram poucos) tratava-se de pequenas propriedades rurais, denotando uma atividade complementar.

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Também parece duvidoso, não só pela expansão monetária ocorrida durante o encilhamento como pelas condições de comercialização (pelo menos como as caracterizam alguns autores) após o ano de 1903, quando os exportadores, por meio dos armazéns gerais, passariam a controlar a comercialização de café, ainda que os comissários continuassem importantes no financiamento. De qualquer forma, e mesmo que se pudesse argumentar que as taxas de juros aumentam na medida em que a aproximação dos exportadores em relação aos cafeicultores leva estes a levantarem empréstimos garantidos por notificações de embarque, desconhecendo de antemão as cotações do produto e por isso pagando maiores taxas de descontos2, não há dúvidas de que a conjuntura da década de 1890 fora extremamente benéfica no que concerne à expansão do crédito, como demonstram os gráficos que elaboramos até agora. Podemos concluir que de fato o comissariado expande suas operações na medida em que obtêm condições mais seguras para efetuar suas aplicações. Ora, apesar do ambiente bastante convidativo para a concessão de crédito que se instaura com a expansão monetária durante a década de 1890, não se afigurava como uma conjuntura exatamente segura para este tipo de aplicação, primeiro porque os preços do café se tornaram extremamente instáveis, com uma queda acelerada no mercado internacional que somente até certo ponto podia ser detida com uma elevação de seus preços internos; e segundo porque a progressiva inflação que se instaurava talvez não permitisse um alto retorno para os comissários. Talvez devêssemos aventar a possibilidade da criação de mecanismos, por parte daqueles, que compensassem as perdas com a inflação, entretanto não havia nem sequer um órgão dedicado a pesquisas sistemáticas sobre a flutuação dos preços. Provavelmente a maior defesa contra a inflação, por parte dos negociantes de dinheiro, consistisse em destinar a maior parte de suas operações ao curto prazo. Bem, o ponto é que após o plano de valorização, com os preços do café fixados em um alto patamar, sem perspectiva de queda dada a manipulação dos estoques do consórcio que se formou em torno do plano, além da estabilidade atingida pela moeda nacional via atuação da Caixa de conversão, os comissários puderam usufruir as vantagens de um novo ambiente onde as condições de financiamento lhes proporcionariam maior segurança no que tange ao retorno do investimento.

2 Cf. o argumento de Tannuri na p. 51 deste trabalho.

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Mas cabe uma pergunta: por que esta discrepância de comportamento entre os comissários e os demais tipos de credores? Por que somente o comissariado demandava estas condições no fornecimento de crédito? Não devemos considerar este grupo de um ponto de vista estático. O núcleo São Paulo-Santos se constituía no grande locus da acumulação no complexo cafeeiro paulista, lá se concentrava a maior parte dos recursos produzidos por este complexo e certamente, na medida em que se instauravam condições mais seguras para a concessão de empréstimos aos produtores, ocorreria um desvio de capital até então aplicados em outras atividades neste núcleo, favorecendo a entrada de novos investidores no comércio de café. Assim não necessariamente tratava-se de uma expansão de atividades das casas comissárias já existentes, mas é possível que a nova conjuntura econômica tenha favorecido a entrada de novas companhias no negócio. Neste caso, poderíamos considerar que estes novos investidores, hipoteticamente oriundos do eixo São Paulo-Santos, sentiriam-se mais seguros não apenas devido a uma estabilização dos preços do café e das mercadorias em geral, o que resultava em um maior retorno para estes credores em moeda nacional no que tange ao poder de compra desta, mas também devido à estabilização cambial, pois como já observamos anteriormente, o núcleo do complexo cafeeiro paulista acumulava em moeda forte, de tal modo que em um contexto de equiparação entre o mil-réis e a moeda externa alguns recursos deste núcleo poderiam ser desviados para o financiamento da produção e consequentemente para a intermediação entre estes dois circuitos. Claro que, nos períodos anteriores à forte participação dos comissários no financiamento à cafeicultura, que se deu após o plano de valorização3, estes apesar de não concentrarem-se tão incisivamente nas operações de crédito aos produtores provavelmente desempenhavam um papel importante no comércio, de modo que podemos imaginar que os capitalistas ou mesmo os fazendeiros fornecedores de numerário enviavam os cafés de seus clientes aos comissários, que por sua vez vendiam-no imediatamente, não arcando com os custos de desvalorização do produto nem tampouco sofrendo os efeitos da desvalorização cambial. Observemos alguns dados a respeito desta questão:

3 Note-se que neste ponto tentamos fazer generalizações a partir do caso de Franca, mas como já afirmamos anteriormente, este pecado é menor na medida em que abordamos a atuação do comissariado levando em conta também a conjuntura monetária que de fato parece haver apresentado efeitos semelhantes sobre todo o

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Tabela 8 - Valor do mil-réis frente à libra esterlina (pence por mil-réis) de 1901 a 1914 Ano Menor Cotação Mês de Referência Maior Cotação Mês de Referência 1901 9,95 Janeiro 12,36 Abril 1902 11,58 Fevereiro 12,27 Maio 1903 11,68 Fevereiro 12,36 Maio 1904 12,06 Março 13,03 Dezembro 1905 13,77 Fevereiro 17,53 Agosto 1906 15,20 Abril 17,22 Janeiro 1907 15,16 Abril 15,42 Janeiro 1908 15,16 Ano inteiro 15,16 Ano inteiro 1909 15,06 Março 15,26 Novembro 1910 15,06 Março 17,81 Setembro 1911 16,01 Fev./Março 16,20 Out./Nov./Dez. 1912 16,11 Jan./Fev./Maio 16,28 Novembro 1913 16,05 Junho 16,26 Janeiro 1914 11,95 Setembro 16,89 Março Fonte: IBGE. Dados coletados na página do instituto na internet, www.ibge.gov.br, nas estatísticas econômicas das estatísticas do século XX do conteúdo histórico, no dia 19/10/2005.

Nota-se que após a entrada em operação da Caixa de Conversão em dezembro de 1906, com exceção dos anos de 1910 e 1914 (neste ano devido aos efeitos que a deflagração da Segunda Guerra Mundial gerou sobre o câmbio no Brasil) as variações cambiais foram mínimas. Evidentemente que, levando-se em conta as razões para a criação da Caixa de Conversão que apontamos brevemente no primeiro capítulo, devemos considerar este desvio de recursos do núcleo duro do complexo para o crédito ao produtor como um efeito inintencional da política monetária da época. Também podemos pensar com Braudel, que em seu monumental Civilização Material, Economia e capitalismo imagina este último como o cume de um edifício de três níveis – onde no nível inferior se assenta a vida material, que consiste no conjunto de todas as soluções que as civilizações elaboraram para garantir sua subsistência (as técnicas, os tipos de artigos de consumo, o equilíbrio entre população e produção econômica, etc.), todas as formas que assume essa vivência comezinha; no segundo nível, que pressupõe a existência de um excedente produzido pelo primeiro, já adentramos no mundo das trocas, mas trocas de raio curto, do comércio ordinário, especializado, realizado sob duras condições de concorrência que não permitem a nenhum de seus participantes alçar-se a um

conjunto da cafeicultura. Entretanto asseveramos que estas conclusões são provisórias e que estão à espera de novos estudos que possam confirmá-las ou rejeitá-las.

110 plano superior da acumulação – situando-o em um patamar superior das trocas, posto que extremamente diversificado, abarcando simultaneamente várias atividades, podendo escolher sempre as mais lucrativas, persegue sempre uma situação de monopólio; que este capitalismo, tal qual o caracteriza Braudel, foge da concorrência, ao menos da concorrência ordinária, com vários participantes se degladiando e restringindo as margens de lucro4. Assim, no complexo cafeeiro paulista, certamente que o comércio do café, setor em que poucos podiam se aventurar, se encontra no cume da cadeia mercantil. Mas o crédito aos produtores, em uma conjuntura de elevada disponibilidade monetária, se abria a muitos participantes e afastava o capitalista braudeliano. Evidentemente que no período pós- governo Campos Sales, se não havia esta concorrência tampouco os devedores se encontravam em condições razoáveis de solvência. Em uma explicação temos a entrada de novos investidores ou uma certa ‘democratização’ da atividade, em outra uma maior restrição. Mas em um certo sentido ambas não se excluem, podem até se reforçar. Entenda- se: afirmamos que as novas circunstâncias podem ter atraído novos investidores, mas ainda assim, na conjuntura econômica engendrada pelo plano de valorização, inclusive levando- se em conta o aumento da produção, muitos credores locais provavelmente se retiraram do negócio do crédito a cafeicultura, como podemos perceber no gráfico pelo declínio de sua participação no total das operações de empréstimo5. O peso dos credores locais sobe de 49% entre 1888 e 1898 (excluindo-se os credores de ocupação indeterminada) para 73% no período imediatamente posterior e cai para 48% de 1907 até a Primeira Guerra6. A maior mudança realmente se observa na participação dos comissários, que cai de 16% entre 1888 e 1898 para 4% entre 1899 e 1906 para se elevar a 47% entre 1907 e 1914. Tal qual no caso de Guaratinguetá e Lorena entre 1865 e 1887, em Franca os emprestadores locais mantiveram sob seu controle grande parcela das operações de crédito. Em Lorena durante o período a que nos referimos, a

4 Fernand Braudel. Op. cit., Civilização... podemos perceber esta caracterização nos três volumes, mas encontra-se resumida no volume I, pp. 11 a 14. 5 Apesar da igualdade na participação dos credores locais nos empréstimos entre os dois últimos períodos (1888-1898/1907-1914), esta se desfaz rapidamente se pensarmos na grande porcentagem de credores com ocupação indefinida entre 1888 a 1898, que certamente não se constituíam em instituições de crédito fora do município, que geralmente aparecem com a ocupação muita bem definida nas escrituras. 6 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, nº 5 ao 79, AHMF.

111 participação daqueles chega a 58,6% e em Guaratinguetá a 50,2%7. Warren Dean, estabelece, para as origens do crédito destinado às fazendas de Rio Claro, entre 1850 e 1859, números bastante díspares: 6% provinha de fazendeiros e comerciantes de Rio Claro, 14% de fazendeiros e comerciantes do restante da Província de São Paulo e nada menos que 80% de exportadores e comerciantes de Santos e do Rio de Janeiro8. Marcondes alude a esta diferença, mas tece poucas considerações sobre o assunto: “Esta zona de fronteira mostrou uma carência de capitais elevada, favorecendo a expressiva participação dos recursos oriundos de outras regiões”9. Mas talvez o principal fator para esta característica de Rio Claro nesta época não se relacione à sua localização em uma zona de fronteira (ressaltemos, nesta época), mas ao fato de a economia cafeeira de São Paulo decolar apenas após a década de 1870, até então apresentando um muito fraco desenvolvimento comercial. O que os dados coletados nestas regiões nos sugerem é que uma alta predominância de crédito de origem local se constituiu em uma característica estrutural do complexo cafeeiro, seja ele escravista (como nas duas cidades do Vale do Paraíba) ou capitalista10 (como em Franca). Marcondes atribui esta predominância a menores oportunidades de obtenção de crédito que se interpunham aos pequenos proprietários, àqueles que demandavam empréstimos de menos de dez contos. Estes não tinham acesso ao sistema bancário, e ao que parece tampouco a quaisquer fontes externas de financiamento. Entretanto talvez a pergunta correta a se fazer não seja por que pequenos proprietários apenas conseguiam empréstimos em fontes locais, mas se realmente haveria uma ‘divisão social do trabalho’ entre credores externos e internos.

7 Renato Leite Marcondes. Op. cit., p. 165. Em seu livro, A arte de acumular na economia cafeeira, Marcondes demonstra que entre 1866 e 1879, em Lorena, antes da penetração bancária, o montante de crédito que serviu ao financiamento bancário possuía ainda uma correlação maior em favor dos credores locais, que respondiam por 62,9% de todas as operações, mas mesmo após a penetração bancária, a partir de1880, até 1887, as operações com credores locais ainda perfaziam 55,2% do total. Cf. Idem. A Arte de Acumular na Economia Cafeeira: Vale do Paraíba Século XIX. Lorena: Editora Stiliano, 1998, p. 232. 8 Warren Dean. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura 1820-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 48, tabela 2.4. 9 Renato Leite Marcondes. Op. cit., p. 153, nota 10. 10 Evidente que para melhor ponderar esta questão far-se-ia necessário analisar um maior número de cidades. Quanto à definição de complexo cafeeiro escravista e capitalista aqui não se trata do capitalismo como o define Braudel, mas segundo a definição dos autores que interpretaram o desenvolvimento econômico brasileiro a partir da ótica do capitalismo tardio. Há capitalismo quando se instauram relações de produção especificamente capitalistas, quando a própria força de trabalho se torna mercadoria, ou melhor, quando se introduz o salariato.

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Em um anúncio de 1902 de um importante capitalista (usurário) da cidade de Franca, Chrysogono de Castro, onde este propagandeava os serviços prestados por sua casa bancária, na venda de café afirmava ser agente de Conceição & Cia., “conhecida e importante casa commissaria em Santos”11. Aqui não fica claro se Chrysogono de Castro atuava como uma espécie de empregado da empresa em questão ou se trabalhava como intermediário junto a esta. O mais provável, considerando-se a magnitude das quantias movimentadas pelos capitalistas é que estes desempenhassem o papel de intermediários. Na verdade, talvez estes grandes usurários não se envolvessem na comercialização do café, apenas financiassem seus clientes e, preocupados com sua solvência, se esforçariam para colocar seu produto no mercado da melhor forma possível. Neste caso o comissário lucraria com a comissão obtida na venda do café e o capitalista com os juros oriundos do empréstimo. Por outro lado, poderíamos pensar os capitalistas como uma correia de transmissão dos financiamentos do comissariado, situação que se mostraria lucrativa para estes usurários locais somente no caso de se apropriarem de uma parcela dos juros, o que nos habilitaria a imaginar a cadeia do crédito segundo este esquema: bancos⇒comissário⇒capitalista⇒fazendeiro, o que ‘apertaria ainda mais o cinto’ dos cafeicultores. Entretanto, este esquema se mostra bastante crível, na medida em que os exportadores dominassem a comercialização, nos moldes em que argumenta Tannuri, o financiamento ainda assim permaneceria sob controle dos comissários e capitalistas12. Todavia não nos lançamos a generalizações exageradas fundadas em um único caso? Não deveríamos tentar definir melhor a relação entre comissários e capitalistas? Observemos o que nos mostram as escrituras de dívidas a este respeito: em um registro de 1898, o Major Juvêncio Faleiros, capitalista de Franca, concedeu um empréstimo no valor de 61:621$260 a Major Claudiano, fazendeiro residente em Franca com garantia de sua fazenda ‘Serra da Vanglória’, mas o fundamental aqui reside no fato de esta já estar hipotecada a Souza Aranha & Cia., Joaquim de Paula Marques e José Carlos de Figueiredo13. Joaquim de Paula Marques atuava como usurário no município de Franca há algum tempo, figurando como um dos capitalistas da cidade no Almanach de 190214,

11 Missemo Melo Franco. Op. cit., p. 64. 12 Cf. o argumento deTannuri na p. 50 deste trabalho. 13 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1898, nº 33, folha 95, AHMF. 14 Missemo Melo Franco. Op. cit., pp. 91 a 94.

113 quanto a José Carlos de Figueiredo não possuímos maiores informações. Entretanto isto significa apenas que Joaquim Marques e a Souza Aranha emprestaram para a mesma pessoa com a mesma garantia, não implicando necessariamente em qualquer relação entre ambos. Contudo, outras escrituras nos fornecem dados mais precisos, como um empréstimo efetuado no ano de 1902 por José Vicente Valadão, advogado de São Sebastião do Paraíso (posteriormente Igarapava) a Alfredo de Resende, lavrador em Franca, no valor de 3:000$000, o devedor se obrigava a entregar o café em Santos à “casa commissaria indicada pelo credor”15 ou como um empréstimo efetuado no ano de 1903 por Olívio Alves Ferreira, capitalista de Franca, a Alberto Lastorina, do distrito (de Igarapava) de Santo Antonio da Rifaina no valor de 1:000$000: Lastorina deveria entregar o café já beneficiado, ao preço fixado pelo Estado ou remetê-lo a Conceição & Cia. em Santos16. Em 1904 Olívio Alves Ferreira concederia um empréstimo a Antonio Monteiro de Araujo, lavrador em Franca, no valor de 1:000$000, neste caso, com penhor sobre os frutos do cafezal do devedor, que igualmente já havia hipotecado sua fazenda a Francisco da Silveira Gusmão e a Caetano Petralha, mas significativo nesta escritura em particular é que o devedor deveria remeter o café a Conceição & Cia., comissários em Santos17 (os mesmos representados por Chrysogono de Castro em Franca) o que demonstra o envolvimento deste capitalista em particular (Olívio Alves Ferreira) com esta casa comissária. Infelizmente estes são quase que os únicos indícios que possuímos sobre as relações entre comissários e capitalistas. Mas se acaso o nosso esquema de financiamento bancos⇒comissário⇒capitalista⇒fazendeiro estiver correto, mais uma vez torna-se bem possível que funcionasse principalmente para as pequenas propriedades, dado os valores diminutos envolvidos nas escrituras cujos trechos acima reproduzimos (com exceção da primeira). Os maiores proprietários provavelmente dirigiam-se diretamente à fonte, ou seja, aos comissários. Entretanto, talvez um olhar mais verticalizado sobre estes comissários elucide a questão. Afinal de contas, quem eram estes comissários? Ora, um elenco produzido a partir das companhias que mais emprestaram em cada período pode nos ajudar a responder esta pergunta. Em 1893 a & Cia., casa comissária do Rio de Janeiro, concedeu

15 Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1902, nº 39, folha 86v, AHMF. 16 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1903, nº 43, folha 78, AHMF. 17 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1904, nº 44, folha 74, AHMF.

114 empréstimo no valor de 13:000$000 a Silvestre de Paiva Lemos, de Santo Antonio da Rifaina18; em 1896 a casa comissária Soares & Cia., de Santos, efetuou um empréstimo a Major Claudiano, fazendeiro em Franca, no valor de 16:000$00019; em 1897 Vianna de Barros & Cia, também de Santos, concedeu a Miguel Pedroso Barretto, de Franca, um empréstimo na quantia de 13:500$00020; em 1898 a Maia, Costa & Cia., do Rio de Janeiro, emprestou a Serafim Ferreira Borges a quantia de 51:025$00021; em 1898 a Souza Aranha & Cia., sediada em Santos, efetuou um empréstimo ao já citado Miguel Pedroso Barretto, de 123:062$80022; em 1903 a Romano & Irmãos, também com sede em Santos, emprestou ao Coronel José Guerner de Almeida a quantia de 50:000$00023. Antes do plano de valorização de 1906 estes foram os únicos empréstimos registrados no tabelionato de 2º ofício de Franca entre comissários de Santos e cafeicultores da região. No caso das duas casas comissárias cariocas que aparecem nas escrituras de dívida de Franca, no primeiro deles a dívida se originou da compra de mercadorias por Silvestre de Paiva Lemos e no segundo, o devedor, Serafim Ferreira Borges24, se dedicava principalmente à atividade industrial, possuindo um curtume na cidade de Franca, o que significa que na verdade estas dívidas não se efetuaram em razão do comércio cafeeiro. Para nenhuma destas companhias encontramos algum indício de que travassem relações

18 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1893, nº 21, folha 87, AHMF. 19 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1896, nº 27, folha 57v, AHMF. 20 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1897, nº 31, folha 28, AHMF. 21 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1898, nº 32, folha 50v, AHMF. 22 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1898, nº 31, folha 73.AHMF. 23 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1903, nº 43, folha 3, AHMF. 24 Missemo Melo Franco. Op. cit., pp. 110 a 117. Na verdade a designação por ‘casas comissárias’ talvez não seja adequada para estes estabelecimentos cariocas na medida em que não fica explícita, principalmente no segundo caso, onde a garantia da dívida se efetuou por meio de hipoteca de imóvel urbano, a ligação destes estabelecimentos com o comércio cafeeiro, mas tampouco seria evidente sua atuação apenas como comerciantes, posto que os comissários também negociavam mercadorias variadas. Também acreditamos não se constituir uma solução a contento incluí-las no grupo dos credores com ocupação indeterminada, pois sua ocupação é discriminada nas escrituras. Entretanto, o montante total emprestado por ambas, de cerca de 64:000$000 entre 1893 e 1898, não alteraria significativamente o movimento dos empréstimos realizados pelas casas comissárias de aproximadamente 244 contos neste período. Também não alterariam o movimento dos empréstimos realizados pelos comerciantes locais, que ao contrário dos comerciantes ‘externos’, encontram-se sob o foco de nossa análise. No caso dos estabelecimentos santistas, apenas Vianna de Barros & Cia., Souza Aranha & Cia. e Romano & Irmãos aparecem exclusivamente como negociantes. Entretanto, as duas primeiras aparecem fazendo contratos de penhor agrícola, o que indica sua participação no comércio cafeeiro. Quanto à última, firma contrato hipotecário com José Guerner de Almeida sobre ¾ partes sobre uma máquina de beneficiar café em 1903 no valor de 50 contos. Ainda assim, acreditamos que em razão do mesmo Guerner de Almeida ter atuado como fazendeiro e pelo fato deste financiamento não referir-se a compras de mercadorias e a própria localização da referida firma na cidade de Santos, a classificação por ‘casa comissária’ é a mais adequada para este estabelecimento.

115 com os capitalistas locais, ao mesmo tempo em que uma delas, a Souza Aranha & Cia., levava o nome de uma tradicional família do complexo cafeeiro paulista. A excepcionalidade destes empréstimos (apenas seis registrados no tabelionato de 2º ofício em um período de 19 anos desde 1888 até 1906) parece corroborar o argumento de Renato Leite Marcondes de que as fontes externas de crédito se encontravam ao alcance apenas dos maiores cafeicultores. Entretanto, quando observamos os registros de empréstimos concedidos por casas comissárias após o plano de valorização de 1906, a situação se altera. Não só há uma grande quantidade de empréstimos, como o domínio de novas companhias no negócio. Apenas quatro casas comissárias predominaram na concessão de empréstimos entre 1907 e 1914 registrados no município de Franca e nenhuma delas coincide com as anteriores, o que por sua vez corrobora nosso argumento de que novos investidores entraram no negócio e que ainda assim este permaneceu restrito a uns poucos privilegiados. Um total de 22% dos empréstimos provinham da Raphael Sampaio & Cia., 12% de Corrêa, Irmãos & Cia., 1% de Torquato Caleiro & Cia. e nada menos que 65% de Silva Ferreira & Cia. Destas, não possuímos informações mais precisas sobre a Raphael Sampaio & Cia. e Corrêa, Irmãos & Cia., sabemos, contudo, que Torquato Caleiro, filho de Simão Caleiro, patriarca deste poderoso clã familiar, era um dos donos da companhia que levava seu nome e que um dos sócios da Silva Ferreira & Cia., Olívio Alves Ferreira25, atuou por muito tempo como capitalista em Franca e que representando a companhia em Santos, deixava a cargo do Coronel André Martins de Andrade26, filho de eminente personagem na política local, Coronel Francisco Martins Ferreira da Costa, ligado aos Caleiros nos negócios, representá-la no município de Franca: “...lá pelo ano de 1883, Francisco Martins Ferreira da Costa, organizou uma casa comercial de parceria com o seu genro, Hygino de Oliveira Caleiro, filho do velho e tarimbado Simão de Oliveira Caleiro. A casa que girou com o nome de Casa Ferreira Costa & Caleiro, teve sua séde na esquina da Praça Barão da Franca, no lugar onde se levanta hoje o prédio Francisco Barbosa. Por volta de 1893, organiza-se outra grande firma. Com a saída de Francisco

25 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1912, nº 71, folhas 58 a 62, AHMF. 26 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1914, nº 77, folhas 54 a 57, AHMF.

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Martins e a entrada de seu filho André Martins de Andrade, a cassa comercial passa a girar sob o nome de Caleiro & Andrade”27. Um outro sócio da Silva Ferreira & Cia., Azarias Martins Ferreira28, era irmão de André Martins de Andrade e também filho do Coronel Francisco Martins Ferreira Costa29. Mas o ponto central reside no fato de podermos relacionar diretamente as duas casas comissárias cujos empréstimos registrados no município de Franca entre 1907 e 1914 representaram 66% do total, a capitalistas locais, não apenas no sentido de representá-las, mas na composição do capital dessas companhias30. A presença de Olívio Alves Ferreira como sócio da companhia, capitalista local que conforme descrito anteriormente na documentação representou a Conceição & Cia., sugere, mais uma vez, que esta função de representação não compreendia apenas um cargo delegado pelas casas comissárias, mas que estes representantes provavelmente disponibilizavam ao menos parte de seus recursos na efetivação desses negócios, abrindo a possibilidade, para si próprios, de potencializarem sua acumulação de capital por meio desta intermediação entre comissário e cafeicultor. Em nosso caso esta relação parece haver ocorrido para 66% do total dos empréstimos efetuados por casas comissárias e registrados no Tabelionato de 2º ofício do município de Franca entre 1907 e 1914, o que nos permite afirmar, com base nestes números e nos relatos anteriores que associam os comissários a usurários locais, que até certo ponto, aqueles não lograriam estender sua influência sobre as localidades do interior sem o auxílio dos capitalistas. Não podemos afirmar com certeza se a totalidade dos comissários dependia desta intermediação, mas este tipo de associação parece ter se intensificado durante a conjuntura econômica pós-plano de valorização.

27 Hygino Jacintho Caleiro. Op. cit., pp. 14 e 15. 28 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1914, nº 63, folhas 90v. a 92v, AHMF. 29 Inventário do Coronel Francisco Martins Ferreira Costa. Caixa 91 do Tabelionato de 1º ofício de Franca, 1916, volume 63, AHMF. 30 Isto não significa, necessariamente, que o comércio do café tivesse sido dominado por elementos que acumulavam capital em mil-réis, considerando-se principalmente a estabilidade cambial do período. Ademais, o fato de não havermos encontrado em Franca o inventário de vários desses agentes, como o de Olívio Alves Ferreira e Torquato Caleiro, pode indicar que em períodos posteriores estes elementos tenham estabelecido negócios de algum porte em São Paulo ou Santos. Ou seja, estamos aventando a hipótese de que tenham se alçado a uma camada superior da acumulação de capital no complexo cafeeiro de São Paulo. Por outro lado, mesmo se aventássemos a hipótese de que estes elementos permaneceram ligados ao circuito monetário do mil-rés, em sua atuação nas casas comissárias, quando revendiam o café para as firmas de exportção, receberiam em moeda externa, o que demandava, para bom andamento dos negócios, uma taxa cambial estável. Talvez isto explique as menores taxas de juros aplicadas pelos comissários nos empréstimos, em contraste com os capitalistas, como veremos posteriormente.

117

Talvez uma análise mais detida sobre as características dos empréstimos concedidos pelos comissários ilumine a questão. Poder-se-ia imaginar, com base nas relações de crédito que Olívio Alves Ferreira travava em nome da Conceição & Cia., e principalmente no que concerne às casas comissárias que sabidamente possuíam uma ligação mais estreita com os capitalistas, que esta expansão de abrangência da atuação do comissariado ligou-se sobretudo a um concomitante avanço da pequena propriedade no interior da estrutura fundiária que se configurou em Franca. Mas se observarmos os valores dos empréstimos de uma empresa como a Silva Ferreira & Cia, perceberemos que não se tratava de um negócio voltado para uma multiplicidade de pequenos proprietários, mas aos poucos dentre estes que se destacavam:

Gráfico 4 - Proporção no montante dos empréstimos da Silva Ferreira & Cia. por faixa de valor no município de Franca entre 1907 e 1914

6% 22% 15%

9% 15%

33% Até 10 contos De + de 10 a 20 contos De + de 20 a 30 contos De + de 30 a 40 contos De + de 40 a 50 contos Mais de 50 contos

Fonte: Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1907 a 1914, nº 53 ao 79, AHMF.

Pelo gráfico podemos notar que mais de 60% de todas as aplicações da Silva Ferreira & Cia. se destinavam a empréstimos de mais de 30 contos, algo muito distante da realidade dos lavradores que deviam quantias de não mais que 5 contos a Olívio Alves Ferreira e que se obrigavam a enviar o café à Conceição e Cia. Destarte, poderíamos estabelecer uma certa dicotomia na atuação de Olívio Alves Ferreira a frente da casa

118 comissária e como capitalista a serviço da Conceição & Cia? Obviamente que esta última não se mantinha apenas com empréstimos a pequenos proprietários, dado o volume de capital empregado que sua atividade exigia; entretanto, o que nos perguntamos, na verdade, é se o esquema bancos⇒comissário⇒capitalista⇒fazendeiro possui validade apenas para os fazendeiros de menor porte. Ora, se o admitíssemos, aparentemente entraríamos em contradição com a idéia de que o capitalista acumulava ao desempenhar o papel de representante dos comissários e não entenderíamos o porquê da ascensão de alguns destes a sócios de casas comissárias e mesmo organizando suas próprias companhias. Mas por que então apenas no caso da concessão de crédito de pequenas quantias se produzia um registro da operação ligando o capitalista ao comissário? Ora, para estes registros, que evidenciavam uma relação direta entre capitalista e devedor, faziam-se necessárias estas referências à forma como dever-se-ia entregar o café e a que companhia. Já abordamos no primeiro capítulo o grau de dependência em que se enredava o pequeno proprietário para obter crédito, entregando os frutos de seus cafezais por dois terços de seu preço, assim, não parecerá de todo absurdo que entre estes e os grandes comerciantes de café de Santos houvesse uma onerosa intermediação (para o devedor) dos capitalistas. Na maior parte das transações do comissariado (e neste caso predominariam relações com os maiores proprietários), porém, os capitalistas não desempenhavam este papel de intermediário financeiro (dispensando instruções mais detalhadas acerca da forma em que se comercializaria o café nos registros), mas, provavelmente, seus capitais atuavam em conjunto com os dos comissários e uma das escrituras evidencia isto: em 1903 Chrysogono de Castro e Conceição & Cia. emprestaram ao Coronel Ricarte José Narcizo a quantia de 11:500$000 com a garantia de 6.500 arrobas de café, das quais 2.500 caberiam a Chrysogono de Castro e 1.000 à Companhia da safra de1903; 2.500 para o capitalista e 500 para a casa comissária em 1904, além de que a fazenda Boa Vista da Casa Seca, de onde proviriam os cafés, já se encontrava hipotecada ao usurário31. Evidentemente que na maioria dos casos não se produziria um registro conjunto da transação, provavelmente o empréstimo figuraria em nome do comissário e posteriormente a quantia seria dividida com

31 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1903, nº 41, folha 29 v, AHMF.

119 o capitalista. A conclusão a que se chega é de que o comissariado deveria atuar de forma coordenada com os capitalistas locais32, resta saber o porquê. É difícil saber se esta característica do sistema creditício voltado para o café advinha de uma carência de capitais por parte dos comissários sem uma comprovação empírica. Ainda que consideremos o período entre 1907 e 1914 como favorável à expansão destas atividades, dada a menor disponibilidade monetária que eliminou a maior parcela da concorrência no fornecimento de crédito e instaurou uma certa estabilidade cambial e dos preços do café, fixados em um patamar bastante alto, deveríamos considerar sua atratividade em relação a outras aplicações que pudessem demandar os capitais presentes na cidade de São Paulo e principalmente na cidade de Santos, como o sistema bancário, as ferrovias, o comércio de importação, a indústria, etc. Infelizmente não reunimos as condições para atacar este aspecto do problema, mas parece duvidoso que em um ritmo de acumulação potencializado pelos efeitos advindos da valorização, estes agentes econômicos se defrontassem com uma carência de capitais. Entretanto, retenhamos o papel da estabilidade cambial enquanto um fator de estímulo à atuação dos capitais presentes no eixo São Paulo-Santos também no interior. Se examinarmos quais localidades predominavam como destino para estes empréstimos, constataremos que apenas uma proporção de 33% deles carreava-se para Franca. Cerca de 38% foram aplicados em localidades que em períodos um pouco mais recuados compunham o município de Franca (Ituverava, Igarapava e Patrocínio do Sapuchay), 6% para Sacramento em Minas Gerais, 5% para Ribeirão Preto, 3% para Batataes e sobre 15% deles não havia qualquer referência sobre a região onde os devedores encontravam-se radicados. Torna-se fácil perceber que a maior parte dos empréstimos destinava-se a cidades sobre as quais provavelmente Franca exercesse uma certa preponderância mercantil33. A presença de Ribeirão Preto na lista, que seguramente dispunha de um setor comercial muito mais poderoso que seu congênere francano, e de Batataes, que se encontrava em condições de concorrer com Franca em igualdade ou até mesmo com alguma vantagem, não contradiz o argumento, na medida em que o montante em dinheiro concedido a devedores destas cidades não atinge sequer 1/10 do total. Na

32 Neste ponto, as generalizações se tornam perigosas. Assumiremos que esta característica predomina na região de Franca. 33 Aventamos esta possibilidade no 1º capítulo. Cf. p. 82, nota 120.

120 verdade o devedor de Ribeirão Preto era um industrial e a garantia do empréstimo recaía em imóveis urbanos34. Na quase totalidade dos demais empréstimos efetuados pelos comissários, se explicita a ocupação de ‘lavradores’ para a maioria dos devedores e as garantias se referem ou a terras ou a penhor agrícola (sobre safras de café). Destarte, notamos uma certa correspondência entre os fluxos mercantis e financeiros. Neste caso, as relações comerciais entre capitalistas e fazendeiros, no sentido inverso ao do café, ou melhor, na oferta de mercadorias oriundas do eixo São Paulo-Santos, explicariam a solidificação de toda uma teia de relações entre usurário e cafeicultor da qual este não se desembaraçaria sem dificuldade, implicando em uma intermediação, seja do ponto de vista financeiro ou mesmo no sentido mais restrito de se estabelecer contatos, entre capitalista e comissário? Não nos parece provável por dois motivos principais: em primeiro lugar porque o próprio comissariado poderia desempenhar esta função, tal como já o havia feito no Vale do Paraíba, sob condições de transporte por algum tempo bem mais deficientes; em segundo lugar porque apesar de tratar-se de cidades pequenas para os padrões da época, em todas elas multiplicavam-se estabelecimentos comerciais dedicados aos mais variados setores da mercancia. Na verdade nosso argumento inclinar-se-ia para uma dependência financeira continuada, até porque vários homens de Franca investiam em fazendas nestas regiões e permaneciam atados aos laços financeiros criados em sua cidade. Mas isto ainda não explica o fato do comissariado necessitar, em certa medida, dos usurários locais para firmarem estas relações financeiras, posto que, se estas regiões se tornaram dependentes em um longo processo de endividamento, por que os capitalistas francanos e não os comissários de Santos deram início a este processo? Provavelmente, a fim de penetrar certas regiões, o comissariado travasse sérias disputas entre si e aqueles que atuassem em conjunção com os capitais oriundos dos usurários locais se colocassem em uma posição mais favorável do ponto de vista da concorrência. Esta explicação repõe o problema da escassez de capitais, mas neste caso trata-se de uma escassez relativa, dada a multiplicidade de municípios que pulverizavam a demanda por crédito. Parece bem possível que à medida que os comissários acumulassem capital suficiente para se lançar a empreendimentos de maior vulto abandonassem esta atividade, limitando sempre a quantidade de recursos disponíveis nesta. Entretanto, como já

34 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, nº 60, folha 8 v, AHMF.

121 assinalamos, não reunimos condições para enfrentar este aspecto do problema. Se a questão residisse apenas na maior facilidade dos capitalistas locais em fazer contatos, estes certamente se converteriam em simples empregados dos comissários, excluindo assim a possibilidade de acumularem capital no desempenho da função de representantes destes. Por outro lado, com a análise dos empréstimos efetuados pelas casas comissárias entre 1907 e 1914 afastamos definitivamente a possibilidade de os comissários se restringirem ao comércio enquanto que os capitalistas se dedicassem ao financiamento, dadas as altas somas emprestadas por estas companhias, ainda que certo grau de controle do comissariado sobre o comércio cafeeiro permanecesse, pois do contrário não se justificaria o estabelecimento de alguns capitalistas com suas próprias companhias em Santos. Também não acreditamos se tratar de uma simples ocupação, pelos capitalistas, do espaço de um comissariado acossado pelos exportadores e operando em condições de progressiva queda de lucratividade. Se a conjuntura se mostrava favorável aos usurários, a ponto destes se inserirem no comércio do café em Santos, para as casas comissárias idem. De fato, surge a questão sobre os limites impostos às casas exportadoras na comercialização direta com os produtores, questão que apenas um trabalho específico sobre o tema pode responder. Ora, um outro passo possível é adentrarmos no mundo das relações de cunho personalista. As relações pessoais, na verdade, como já sugerimos implicitamente no primeiro capítulo, possivelmente se imiscuíam em todo o edifício construído em torno do crédito. Torna-se fácil e mesmo automático um raciocínio que identifique crédito bancário com uma forma mais impessoal deste e empréstimos lastreados em relações de cunho personalista com uma modalidade mais arcaica e mesmo provinciana de crédito. Entretanto, há alguns indícios que apontam em um outro sentido. Por exemplo, o fato de uma tradicional família ligada ao grande capital cafeeiro, os Prado, haver construído uma memória peculiar a respeito da forma como dirigiam os negócios à frente do Banco do Brasil: “Ele (o Barão de Iguape) e outros Prado possuíam 226 ações das 1.000 inicialmente subscritas pelo banco (do Brasil); famílias relacionadas possuíam mais 256 ações, e assim, em 1858, quase metade das ações do banco estavam em poder da parentela Prado. O banco inicialmente servia a uma limitada clientela de ‘barões do café’, como mostra uma tradição da família Prado: ‘Quando a diretoria reunia-se um perguntava para o outro, Você, Barão de tal, precisa de dinheiro? E o Barão de tal sempre respondia não. A diretoria encerrava a

122 reunião e não decidia mais nada, porque eles não emprestavam dinheiro para estranhos”35. E o autor arremata: “Ao mesmo tempo que esta anedota representa uma atitude mais complacente do que poderia esperar-se dos capitalistas paulistas com as mentes voltadas para o lucro, resta porém pouca dúvida de que o Barão de Iguape, uma pessoa íntima do grupo, estivesse bem colocado para fornecer o capital necessitado pelos Prado, fator crucial em sua ascensão ao poder econômico”36. Pelo grau de entrosamento dos vários setores constituintes do complexo cafeeiro paulista – enfatizemos: onde as mesmas pessoas se encontravam a frente de negócios diversos – e pelo sucesso que os Prados alcançaram em seus empreendimentos, podemos considerar bastante crível a afirmação de Levi. Quanto à anedota, mesmo que tenha sido criada pela geração posterior37 com objetivo pejorativo, esta certamente deve ter se ancorado em alguma base real. Um trabalho sobre a disputa de poder em Jaú pelas elites locais durante o século XIX também parece estabelecer conexões entre relações personalistas e o crédito. A autora, em certo momento, tenta explicar a decadência do clã familiar liderado por Manoel Joaquim Lopes, até provavelmente a entrada da década de 1870 um tradicional proprietário da região, que resultou na perda de poder e riqueza para a família: “Este enfraquecimento econômico deve ter pesado também para inexpressiva atuação política da família, pois embora tivesse condições de estabelecer uma solidariedade interna para sustentar a representação política apoiada na grande proximidade dos laços de parentesco, isso não ocorreu. Além da participação do chefe pioneiro, o Tenente Manoel Joaquim Lopes na fundação do povoado, somente o seu genro, Joaquim de Oliveira Matozinho, teve uma certa atuação na vida política local, como vereador da primeira Câmara Municipal e componente do 1º corpo de jurados, cargos que ocupou até 1868, quando o Partido Conservador tomou o poder pela primeira vez em Jaú. Depois disso desapareceu do cenário político, passando a participar de maneira indireta. Ao que tudo indica esse fato teve a ver com a sua dependência econômica ao Conde do Pinhal. Atuando como especulador de terras fez vultosos empréstimos no Banco de

35 Darrel Erville Levi. Op. cit., pp. 160 e 161. 36 Idem, ibidem. Op. cit., p. 161. 37 Foi relatada a Darrel Levi por descendentes dos antigos Prado.

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São Paulo, onde o Conde, seu amigo pessoal, era banqueiro. Não conseguindo pagar boa parte desses empréstimos, o endividamento conduziu-o à referida dependência ao Conde, que passou a utilizá-lo como testa-de-ferro de sua política na região de Jaú”38. Percebe-se que há uma grande ênfase por parte da autora no sentido de que a amizade entre o Conde do Pinhal e Manoel Joaquim Lopes cumpriu o papel de facilitar a concessão dos empréstimos a este último, até porque se tratava de ‘vultosas quantias’. Também percebemos que aparentemente não era apenas o interesse pecuniário que pautava as ações do Conde do Pinhal, posto que na ausência da contrapartida dos lucros com a operação satisfez-se com a utilização política do devedor. Outro ponto a se destacar é que o laço entre ambos não se dissolveu com o arrefecimento do laço monetário, mas transformou-se em uma relação de dependência. Isto implicaria na existência de valores de ordem tradicional que subordinassem as considerações sobre o lucro? Maria Sylvia de Carvalho Franco nota que quando da introdução do café no Vale do Paraíba, durante o século XIX, tanto paulistas quanto fluminenses se encontravam em um estado de grande pobreza, favorecendo uma certa indiferenciação social. Conseqüência disto, segundo a autora: “Essa dupla constatação – participação indiscriminada nos padrões culturais e ligação direta entre riqueza e status – nos remete ao processo de estratificação social. Ela nos sugere que a sociedade indiferenciada do passado integrou- se de modo positivo no fluxo de mudança originado com a grande lavoura, como condição propícia para que ele se desencadeasse sem muitas peias. Os degraus da ascensão social foram em boa parte franqueados, sendo definidos por critérios predominantemente econômicos e podendo ser galgados mediante a oportunidade e a aptidão para os negócios”39. Esta passagem nos sugere que a estrutura da estratificação, para se solidificar, deveria ancorar-se em algum tipo de clivagem econômica, o que de fato não indica a existência de uma ética tradicional se opondo ao cálculo econômico. Mais sugestiva, porém, é a passagem seguinte: “E quando ela se anunciou (a crise da cafeicultura do Vale do Paraíba), ameaçando interesses vultosos, todo o entrelaçar de lealdade, e

38 Flávia Arlanch Martins de Oliveira. Famílias Proprietárias e Estratégias de Poder Local no Século Passado. Revista Brasileira de História, vol.9, nº 17, setembro de 1988/fevereiro de 1989, pp. 76 a 77. Grifos nossos. 39 Maria Sylvia de Carvalho Franco. Op. cit., p.208. Grifos no original.

124 contraprestações ficou correlatamente comprometido: a fim de se defenderem de seus comissários, os fazendeiros passaram a remeter o seu café a mais de um agente e não hesitaram também em aceitar contactos diretamente com os exportadores; o comissário, de sua parte, cortou muito as antigas liberalidades. Não deixa de ser significativo, também, que nessa conjuntura tenha ele voltado as suas atenções mais para o consumidor, passando a investir em técnicas de conquista de mercados”40. Neste caso ocorreu uma ruptura dos laços pessoais, amplamente baseados no favor, assim que se desataram as ligações econômicas. Entretanto, o trabalho de Flávia de Oliveira buscou delinear uma dinâmica da ascensão e queda de grupos da elite local, para tanto não necessitava estabelecer maiores associações entre dependência pessoal e riqueza. Não sabemos em que consistiu a atuação política de Manoel Joaquim Lopes a favor do Conde do Pinhal, que efetivamente pode haver gerado frutos para este também do ponto de vista econômico, ao passo em que de alguma forma o Conde ainda poderia fornecer amparo material a seu dependente. De fato, desde a colônia, já na América portuguesa, a hierarquia social se baseou em critérios de riqueza e renda, “pois nunca tivemos uma autêntica aristocracia, e sim um senhoriato que vivia da produção mercantil”41 e assim parece haver permanecido a estrutura da estratificação social no Brasil após a independência. Portanto, quando discutimos as relações de cunho personalista, devemos entender que estas se enredavam nas relações econômicas, compondo uma unidade indivisível. Voltemos à questão. Enfim, aventamos a possibilidade de o próprio sistema bancário atuar com base em relações pessoais, de forma que para a concessão de um empréstimo contaria e muito as ligações do cliente com a diretoria do banco ou seus acionistas. Os exemplos que expusemos, no entanto, referem-se à época do Segundo Reinado, quando ainda predominava a mão-de-obra escrava e a economia da Província de São Paulo ainda não se encontrava tão mercantilizada quanto no período em que situamos nosso objeto. A intensificação dos fluxos comerciais, a dinamização da economia, a diversificação dos negócios, não imporiam uma maior preocupação com a lucratividade e esta por sua vez não resultaria na adoção de procedimentos mais racionais e impessoais na condução das empresas – inclusive os bancos – que excluiria considerações de ordem

40 Idem, ibidem, p. 169. 41 Fernando Antonio Novais e João Cardoso de Mello. Op. cit.

125 pessoal ou familiar na condução dos negócios? Infelizmente não podemos responder a esta pergunta de forma categórica. Não possuímos nenhum indício mais significativo sobre a atuação dos bancos. Contudo, uma característica específica do complexo cafeeiro que viemos apontando durante o trabalho e que certamente poderia sustentar uma conduta nos negócios orientada sob uma certa ética do favor, de forma a valorizar as ligações pessoais e familiares, reside na interligação de vários setores da economia, de forma que à frente destes se encontravam os mesmos grupos. Enquanto a acumulação dependesse diretamente da mercadoria café, todos os negócios ligados a este poderiam desfrutar dessa unidade, que para Flávio Saes se rompe apenas na década de 1920, com a diversificação econômica que desloca o café de sua centralidade (ao menos em termos relativos) na economia paulista e brasileira. Apenas a partir desse momento o industrial passa a manifestar interesses específicos de industrial, o banqueiro comporta-se apenas como banqueiro e não mais enquanto membros do complexo cafeeiro, com investimentos simultâneos em estradas de ferro, bancos, comércio de importação, empresas de melhoramentos urbanos42, onde abundam sempre as mesmas famílias: os Silva Prado, os Sousa Queirós, os Vergueiro, os Sousa Aranha, os Pais de Barros, os Melo de Oliveira, os Pacheco Jordão, os Queirós Teles43, etc. Neste caso a união de capitais e a união de famílias se reforçam mutuamente, num casamento perfeito. Não devemos analisar a possibilidade do predomínio de relações personalistas no sistema bancário à maneira que o faria um economista de matiz liberal, lamentando a inexistência de livre concorrência e a ‘irracionalidade’ dessas formas de crédito, pois como este funcionava no interior de um conjunto maior, do grande capital cafeeiro, restringir suas aplicações às companhias pertencentes às próprias famílias que já se encontravam à frente do sistema bancário certamente dinamizaria todo o conjunto de seus investimentos. Nesse sentido, ‘não emprestar para estranhos’ é um procedimento em nada irracional. Assim, talvez a menor taxa de juros e prazos que Marcondes assinalou para Lorena e Guaratinguetá como decorrência da introdução do sistema bancário nestas localidades, não se deva a uma atuação mais impessoal das instituições bancárias, mas às mais numerosas oportunidades de captação de recursos que possuíam os grandes proprietários,

42 Cf. Flávio Azevedo Marques de Saes. A Grande Empresa de Serviços Públicos na Economia Cafeeira. São Paulo: Editora Hucitec, 1986, pp. 275 a 277. 43 Cf. Idem, ibidem, p. 98.

126 podendo escolher entre várias fontes de crédito (neste ponto não afirmamos que o autor tenha posto a questão desta maneira). Ainda assim, devemos encarar com reservas a obtenção de empréstimos pelos grandes proprietários diretamente no sistema bancário nessas regiões, dada a atuação do Banco do Brasil, instituição oficial e da proximidade dos cafeicultores valeparaibanos em relação à Corte, como de fato já assinalamos. Maior dificuldade haveria em tentar estabelecer em que base se daria a relação entre comissariado e sistema bancário, mas de qualquer forma, o que queremos demonstrar aqui é que se podemos aventar a possibilidade do predomínio de relações pessoais na orientação dos negócios no estrato superior do crédito, por que não fazê-lo para seus estratos inferiores? Desta forma cabe perguntar: por que o comissário dependia do usurário local para expandir suas atividades? E por que o fazendeiro manifestava a preferência pelos capitalistas locais? Embora tenhamos iniciado esta discussão, aqui também entramos na órbita das motivações dos devedores e a análise da posição ocupada por estes na cadeia do crédito foi por nós circunscrita ao terceiro capítulo. De qualquer forma, devemos reter que a lógica das relações pessoais não necessariamente contradiz a lógica do cálculo econômico e que aquela se converteu em um fator importante de motivação dos agentes econômicos. Até aqui afirmamos que a atividade dos comissários, ao contrário do que postula grande parte da bibliografia, se expande com o plano de valorização, o que ocorre, basicamente, pela retirada da concorrência de uma enorme massa pulverizada de credores locais com a restrição monetária que se dá a partir de 1898 e pelas condições mais lucrativas e seguras para a atividade creditícia que se instauram com uma maior estabilidade monetária e dos preços do café; assinalamos também que uma importante fonte de recursos para o comissariado provinha dos capitais dos usurários locais, que atuavam em conjunção com aquele. Mas ainda falta avaliar um aspecto da questão: se o sistema bancário também estimulou este avanço do comissariado. Segundo Flávio Saes, até 1914 o setor bancário se encolhe na medida em que há retração monetária e em que as exportações de café passem por uma conjuntura de depressão. Ainda segundo Saes, após 1914 há uma proporção crescente dos depósitos nos bancos em relação ao valor total do café exportado e do papel-moeda emitido, em parte devido ao próprio desenvolvimento do sistema bancário e em parte causado pela expansão das atividades voltadas ao mercado interno que incrementam o mecanismo multiplicador de

127 depósitos e empréstimos (os bancos financiam estas atividades, e em caso de lucros destas, estes se revertem em depósitos que servirão a novos empréstimos e assim sucessivamente). O autor conclui que até 1914 grande parte do papel-moeda emitido se concentra em poder do público e não nos bancos, de onde se origina a dependência do setor bancário em relação a estes fugazes fluxos monetários sobre os quais, até então, possuía pouco controle44. De fato é o que se verifica após o Funding Loan, com várias falências durante a primeira década do século XX e a permanência de umas poucas instituições remanescentes, entre elas, na capital paulista, o Banco de São Paulo e o Banco do Comércio e Indústria. Para Saes, a característica mais marcante do sistema bancário após 1906 reside na crescente penetração do capital estrangeiro, dado o evidente estímulo para tanto que se deu com o domínio deste no plano de valorização e no financiamento do governo do Estado de São Paulo. Entretanto, suas operações não se restringiram ao financiamento do comércio exterior, da especulação cambial, do financiamento da dívida pública e dos investimentos em grandes empresas: “...voltam-se progressivamente para o crédito interno, realizado em boa medida em moeda nacional com recursos aqui obtidos e destinados a atividades também internas”45. Com maior disponibilidade monetária, elevação dos preços do café e o a entrada dos bancos estrangeiros nas operações de financiamento interno, podemos imaginar uma grande disponibilidade de crédito para os comissários. Mas e os capitalistas? Postulamos a centralidade destes na expansão das atividades do comissariado, mas como captavam recursos para as suas próprias? Neste caso devemos pensar na captação de recursos em âmbito local e neste ponto as especificidades locais têm maior peso, embora possamos imaginar que de uma forma geral, para o Oeste paulista como um todo, que os usurários se originassem de fazendeiros bem sucedidos ou no seio do comércio. De qualquer maneira que condicionantes afetaram a acumulação de capital em Franca anteriormente à lavoura cafeeira? Já aludimos ao fato de alguns dos negociantes de sal haverem se transformado em comerciantes de café e sabemos que as transações com esta mercadoria geralmente implicavam também no financiamento do produtor. Podemos supor, portanto, que grande parte dos usurários locais acumulou capital no comércio do sal. Mas o que se fazia

44 Cf. Idem. Crédito e Bancos...Op. cit., pp. 144 a 147. Este argumento explica também porque as operações de crédito se concentram durante as conjunturas favoráveis à expansão da cafeicultura. 45 Idem, ibidem, p. 117.

128 necessário para se introduzir e posteriormente se dedicar a esta atividade? A resposta parece bem simples e se remete a posse de um bem bastante escasso na região no período anterior à chegada dos trilhos da Mogiana: a moeda. Afinal, poderíamos até imaginar uma permuta simples, direta, produto por produto, na qual os mercadores francanos trocariam parte de seus rebanhos bovinos por sal. Mas o papel que Franca desempenhou, de intermediação, implicava não só na compra e venda de quantidades significativas de sal oriundo do litoral, mas do mesmo modo de grandes plantéis de bovinos vindos do Centro- Oeste do Brasil e do Triângulo mineiro, o que pressupunha, até exigia a presença da moeda. Portanto a explicação deve se voltar para as condições de aquisição da moeda em uma economia desmonetarizada. Como já afirmamos, a economia da região de Franca voltou-se, durante a maior parte do século XIX, predominantemente, para a produção de artigos de subsistência. Claro que algum excedente eventualmente era produzido e que entrava no giro mercantil, até porque como já assinalamos, para a obtenção de alguns artigos fazia-se necessário recorrer às ‘importações’. Entrementes se torna difícil considerar a hipótese de que deste pequeno comércio pudessem fluir as somas necessárias ao comércio do gado e do sal, que integrava várias regiões e envolvia quantidades consideráveis de mercadorias. Todavia o estranhamento se desfaz se nos ativermos às mudanças na estrutura da propriedade da região e ao tipo de relações que se estabeleceram entre os vários proprietários. Em um estudo sobre a ocupação do espaço geográfico compreendido entre os rios Pardo e Grande46, empreendido por um conjunto de pesquisadores da região e de São Paulo coordenados pelo CERU (Centro de estudos rurais e urbanos), foram consultados vários conjuntos documentais referentes à apropriação territorial na região, como o Assentamento dos Gados da Vila de Franca (1828-1836), onde se registravam as marcas de gado dos criadores de Franca, contendo o nome do criador, da fazenda, o desenho da marca e o número de cabeças de gado pertencentes a cada proprietário em particular, o Registro Paroquial de Terras (1855 e 1857), criado em função da Lei de Terras de 1850 e no qual se confirmavam as sesmarias e posses cultivadas ou com princípio de cultura e morada habitual, onde constavam declarações do proprietário acerca da forma de aquisição, a

46 Cf. Lucila Reis Brioschi et. alli. Op. cit.

129 localização, a existência de antigos proprietários, descrição de divisas, etc., inventários e processos de divisão e demarcação de terras e chegou a conclusões interessantes. O estudo demonstra que a ocupação das fazendas, na verdade, se efetuava em comum, com cada proprietário cultivando sua parcela na mesma fazenda. Segundo os autores: “Algumas fazendas eram antigas sesmarias47, posteriormente ocupadas e subdivididas entre vários co-proprietários (fazenda São Pedro, sesmaria concedida a Germano Alves Moreira, doador do patrimônio de Batatais). Outras, assemelhavam-se mais a bairros rurais (fazenda da Ressaca, arraial da Desidéria e posteriormente Nuporanga), congregando várias famílias em moradias relativamente próximas. Apresentavam, como característica, a sua subdivisão em partes, que eram cultivadas, transmitidas por herança, vendidas, trocadas, mas que permaneciam como partes da mesma fazenda48. Os autores também concluíram que a aquisição destas terras, em sua maior parte, ocorreu sob o apossamento. A ocupação em comum, que evidentemente deveria reger-se por algum tipo de ligação entre os proprietários, sugere que os vínculos familiares e de compadrio desempenharam papel fundamental na articulação entre esses posseiros. Esta modalidade de ocupação parece haver predominado durante largo período na região, posto que os Processos de divisão e demarcação de terras, visando proceder a uma divisão e delimitação das terras apossadas em comum, estabelecendo a parcela cabível a cada proprietário ou família proprietária, surgem apenas a partir da segunda metade do século XIX, na esteira da Lei de terras, e se intensificam somente após a década de 187049. Os autores também distinguem entre duas vertentes de povoamento: uma do rio Pardo, onde se formaram grandes latifúndios, pertencentes a famílias que até o final do século XIX permaneceram ensimesmadas, fechadas no tocante às ligações matrimoniais – ou seja, estas ocorriam, preferencialmente no interior do próprio ramo familiar – e adquiriram terras em várias fazendas, sem que suas posses originais fossem em algum momento alvo da

47 Até 1822, a apropriação territorial na colônia e depois da transferência da Corte no Reino Unido se regeu, em termos jurídicos, pelas sesmarias, uma concessão do poder régio a um particular que implicava, na letra da lei, em certas obrigações e em certos direitos. Contudo, o apossamento puro e simples sempre ocorreu. Mas após o ano de 1822, com a suspensão da concessão de sesmarias, o apossamento tornou-se a única forma de aquisição e domínio das terras no Brasil até o advento da Lei de Terras em 1850, que estabeleceu condições para a regularização das antigas posses e regulou as novas formas de aquisição territorial. Cf. Lígia Osório Silva. Op. cit., pp. 80 a 81 e 141 a 166. 48 Lucila Reis Brioschi et. alli. Op. cit p. 71. Grifos no original.

130 aquisição de outros proprietários; a outra vertente, denominada pelos autores como do rio Sapucaí, de ocupação mais antiga e de maior fragmentação, deu origem a alguns grupos que casavam entre si e ocupavam áreas contíguas50. Neste ponto, o estudo sugere a existência de um processo de reconcentração de terras ao final do século XIX que os autores atribuem a atuação dos maiores proprietários e de maior cabedal no sentido de comprarem vários pequenos lotes de terra, formando estes grandes latifúndios. A proliferação de relações de compra e venda parece contradizer, em grande medida, nossa constatação da predominância de uma escassez monetária na região até praticamente a introdução da ferrovia e da consolidação da produção cafeeira em larga escala no município. Nesse aspecto Pedro Geraldo Tosi parece circunstanciar melhor a questão: “Todavia, a permanência de descendentes nos locais de primeira ocupação (afinal, os maiores proprietários em nenhum momento se viram ameaçados de perder seus apossamentos originais) denota, sim, o estreitamento das possibilidades das grandes faixas de terra estarem entrando no giro mercantil e não, como quer o autor (Eduardo Diniz Junqueira, um dos três pesquisadores, juntamente com Heloisa Mesquita Sampaio e Lucila Reis Brioschi, responsáveis pela reconstituição das cadeias dominiais e da distribuição fundiária no estudo empreendido sobre o povoamento da região entre os rios Pardo e Grande), uma possível especulação de terras. Para que isso ocorresse, seria necessário um ativo mercado de terras e uma relativa escassez das mesmas, o que evidentemente não era o caso”51. Destarte, percebe-se que os procedimentos de ocupação e expansão das propriedades não passaram, ao menos diretamente, pelos mecanismos impessoais de mercado, mas por relações de força, onde vários procedimentos de intimidação poderiam ser empregados nas disputas entre os grupos familiares beligerantes. Mas afinal, qual a relação desses processos com a circulação da moeda? Novamente, é Pedro Tosi quem sugere uma conexão entre a forma em que se deu a ocupação da região com posterior concentração de terras, e a entrada de artigos produzidos nestes domínios territoriais no giro mercantil. Valendo-se de trabalho de Lélio Luiz de

49 Idem, ibidem, pp. 59 e 60. 50 Idem, ibidem, p. 72. 51 Pedro Geraldo Tosi. Op. cit., p. 62.

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Oliveira52, que pesquisou os inventários registrados no município entre 1822 a 1830 e entre 1875 e 1885, compara os dados colhidos entre os dois períodos. Oliveira divide os bens arrolados nos inventários em cinco grupos: escravos, bens de raiz (imóveis), bens móveis, semoventes (animais) e dívidas ativas. A estes se acrescem as dívidas passivas. Um dos primeiros movimentos para o qual Tosi chama a atenção, consiste em uma diminuição das dívidas passivas no segundo período – que de 40% no total de bens e obrigações entre 1822 e 1830 passa a 24% entre 1875 e 1885 – indicando uma diminuição no total de dívidas a serem saldadas por ocasião da repartição de heranças aliada a uma redução da porcentagem de proprietários que contraíam estas dívidas, destacada por Lélio Luiz de Oliveira em seu estudo. Este menor índice de dívidas passivas no segundo período (ainda que possamos censurar Oliveira por escolher dois períodos estanques para a análise ao invés de acompanhar o movimento da riqueza) sugere, aparentemente, um maior nível de circulação monetária resultando na não contração de dívidas que perdurariam até a repartição de heranças no período anterior. Ao mesmo tempo, a participação dos imóveis na composição da riqueza sobe de 33% no primeiro período para 53,4% no segundo, enquanto que a proporção dos escravos em valor no total dos ativos decresce de 37,1% para 26,1% com visível concentração destes por uns poucos proprietários, já que a média de escravos possuídos pela maioria dos proprietários cai a 5,3 e dois deles aumentam seu plantel para 17 e 23 cativos. Tosi chega a duas ordens de conclusões: primeiro que durante os anos que precederam a chegada da ferrovia, ocorreu uma valorização generalizada dos imóveis e segundo que se processou uma concentração destes e da escravaria. Ora, todos estes movimentos, associados a ausência de referência nesses inventários a quantias monetárias, demonstram que houve uma concentração de bens não baseada em trocas mercantis, o que de fato se coaduna com nossa constatação de baixa circulação monetária na região no período pré-ferrovia53. Como explicar a concentração de bens na ausência da circulação de moeda? Ora, devemos lembrar que o povoamento da região se deu por meio de vários grupos familiares integrados entre si e que entre estes provavelmente se desenvolveram relações mediadas por relações de cunho personalista onde uma certa hierarquia pode ter se configurado. Ora,

52 Lélio Luiz de Oliveira. As Transformações da Riqueza em Franca no Século XIX. Franca: FHDSS- UNESP, 1995, dissertação de mestrado. 53 Cf. Pedro Geraldo Tosi. Op. cit., pp. 66 a 70.

132 a partir desta é bem possível que alguns elementos se arrogassem o direito de desempenhar um papel de intermediário entre a produção dos posseiros e os mercados. Pedro Geraldo Tosi supõe que nesta intermediação, os maiores proprietários centralizavam uma produção mais ou menos pulverizada onde exerciam seu domínio pessoal, rebaixando o valor de ‘compra’ dos artigos e os valorizando quando da sua colocação no giro mercantil, o que, na ausência da moeda, implicava no pagamento das dívidas com escravos ou terras54. Desta forma os maiores proprietários adquiriam a moeda necessária às suas maiores transações. Tosi arremata o argumento: “Um dos fatos que atesta o princípio dessas operações de troca com ausências de dinheiro e pela interveniência de uma operação contábil foi o implacável combate que se fez, através das instituições municipais, à circulação da moeda de cobre, que tendeu a se generalizar no final do século. Como se sabe, o ‘chem-chem’, como era vulgarmente chamado, foi uma espécie de dinheiro fiduciário dos últimos tempos do Império que, se estava sendo combatido em alguma localidade, isso ocorria porque, certamente, poderia estar corroendo os princípios básicos dessas modalidades de transação comercial, onde o dinheiro apenas circulava entre alguns poucos mais bens situados no conjunto da sociedade”55. É significativo o fato de a equipe de pesquisadores de ‘Entrantes no sertão do rio Pardo’, notar a maior ocorrência de processos de divisão de terras após a década de 1870. Embora o estudo trate da apropriação territorial em um espaço que daria origem a um grande número de municípios (Nuporanga, Sales de Oliveira, Morro Agudo, etc.) especificamente para a região de Franca, a concentração desses processos na década de 1870 pode ser diretamente associada a transformações na atividade de intermediação desenvolvida na região. Ora, os avanços do sistema ferroviário em São Paulo possivelmente, como já afirmamos, até a chegada dos trilhos da Mogiana a Franca, dinamizaram os fluxos comerciais controlados pelos intermediários francanos. A primeira ligação férrea entre Santos e Jundiaí foi posta em funcionamento no ano de 1867. Em 1872 a Paulista já atingia Campinas e iniciava sua expansão. Em 1875 a Mogiana chegava a Mogi-Mirim e se enveredava pelo mesmo caminho. Abria-se a possibilidade de comprar sal em maior quantidade e mais barato na Província de São Paulo e vendê-lo sob preços

54 Cf. Idem, ibidem, p. 69. 55 Idem, ibidem, p. 70.

133 monopolísticos nas regiões produtoras de gado. Quanto ao comércio de gado, em virtude da maior demora do avanço da ferrovia Oeste de Minas em direção ao Triângulo Mineiro – seu primeiro trecho fora construído entre a Central do Brasil e a cidade de São João Del Rey em 1880 e ainda em 1889 havia chegado à cidade de Oliveira (a Mogiana atinge Franca dois anos antes) com uma distância comparável de Uberaba a existente entre Jundiaí a Franca – não experimentou a mesma intensificação. Ora, o início das operações da São Paulo Railway e de outras ferrovias paulistas coincidiu temporalmente com a maior ocorrência de processos de divisão de terra na região pesquisada por Brioschi e os demais autores do estudo. O que se evidencia é o acirramento dos conflitos pelo controle de bens mercantilizáveis na região de Franca, o que não significa que todos buscavam adentrar no rentável comércio do gado e sal, mas certamente se aproveitar das vantagens oferecidas pelos circuitos mercantis que se intensificavam. Como já afirmamos, sabemos de pelo menos três comerciantes de sal que se converteram em negociantes de café: Major Antonio Nicácio da Silva Sobrinho, mais conhecido como Major Nicácio, Simão de Oliveira Caleiro e Álvaro de Lima Guimarães. Entretanto, nenhum dos três aparece em nenhuma das 572 escrituras registradas entre 1880 e 1914 no Tabelionato de 2º ofício da cidade de Franca. É possível que suas respectivas companhias produzissem documentos à parte comprovando as dívidas e dado as relações de mútua confiança que vigoravam entre os participantes do negócio, estas transações acabavam por não serem registradas em cartório. De qualquer forma, uma análise deste tipo exige que nos voltemos a outra documentação que não as escrituras de dívida. Devemos voltar nossa atenção em direção aos inventários destes três negociantes, onde talvez encontremos informações capazes de dirimir nossas dúvidas. Começaremos por Álvaro de Lima Guimarães. Embora não possuamos informações biográficas mais acuradas sobre este personagem, sabemos que sua presença em Franca data de pelo menos 1851, quando encontramos o primeiro registro em que constava seu nome. Tratava-se do registro de abertura de um negócio autorizado a comerciar ‘efeitos da terra’56, termo usado para designar o tipo de mercadoria que posteriormente ficou conhecido como ‘gêneros do país’. Não sabemos ao certo quando Álvaro de Lima

56 Cf. Livro de Registro de Negociantes da Câmara Municipal de Franca 1849-1855, caixa 14, vol. 70, MHMF.

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Guimarães se iniciou no negócio do gado e do sal, mas por certo fora bem sucedido neste, pois, como já observamos, em 1886 era um dos únicos três comerciantes deste artigo que ainda restavam. Mas que informações podemos colher de seu inventário? Álvaro de Lima Guimarães faleceu no dia 15 de novembro de 1900. Os herdeiros compunham-se de sua esposa, Ponciana de Lima, mais os seis filhos deixados pelo casal Álvaro de Lima Guimarães Júnior e Prudenciana Augusta de Lima. Eram eles, dos mais velhos à época do inventário para os mais novos: Maria Philomena casada com Luis Pinto ; Anna ‘de tal’, casada com o Doutor José Luis dos Santos Pereira; Affonso de Lima Guimarães, casado; João de Lima Guimarães, casado; Thomas Martins de Lima, casado; Maria Pia, casada com o Doutor Francisco da Silveira Gusmão; Etelvina Barbosa, casada com Francisco Barbosa Ferreira; mais as filhas de Álvaro de Lima Guimarães: Maria Philomena, solteira, residente no Colégio de Itu e Maria Eufrásia de Lima, casada com o Doutor José Maximo Pinheiro Lima57. Constavam entre os bens deixados: 240 apólices da dívida pública do governo federal no valor nominal de 1:000$000 cada uma – ou seja, totalizando 240:000$000 – a juros de 5% ao ano, apólices estas emitidas entre 1832 e 1869 e que renderam no primeiro semestre do ano de 1900 6:000$000; 473 ações da Companhia Mogiana de estradas de ferro, no valor nominal de 200$000 cada uma, totalizando 94:600$000 que renderam em lucros correspondentes, para o primeiro semestre, a quantia de 6:622$000; dívida ativa de 2:000$000 para com Dona Luisa Josephina a juros de 8% ao ano; dívida ativa para com Dona Maria da Apresentação, Superior do Collegio de Lourdes de Franca de 5:000$000 a juros de 9% ao ano capitalizados a partir de janeiro de 1900 mais algumas dívidas consideradas perdidas no valor total de 3:168$000; 1:160$000 em bens móveis; 560$000 em ouro; casa de morada com quintal cercado em parte com tijolos com pequeno jardim e cômodo para negócio com armação, defronte à nova igreja Matriz no valor de 10:000$000; casa de morada com quintal fechado em parte com tijolos e três cômodos para negócios, sendo dois com armação e um sem ela, com casa no centro que lhe serve de depósito e um pequeno jardim dividindo com Coronel Antonio Jacintho da Silva e com os herdeiros do finado Capitão Antonio de Azevedo, por um lado com a Praça Barão da Franca e por outro

57 Inventário de Álvaro de Lima Guimarães. Caixa 2 do Tabelionato de 1º ofício de Franca, 1900, volume 25, AHMF. Como todos os dados que reproduziremos a partir daqui provêm deste documento, não mais o citaremos.

135 com a Praça da Conceição, no valor de 25:000$000, além de dívidas ativas para com os herdeiros, perfazendo um monte-mor (total dos bens) de 542:301$545. Em primeiro lugar, é preciso uma melhor compreensão sobre magnitude destes valores. Dentre o monte-mor de todos os inventariados entre 1901 e 1920, nos tabelionatos de 1º e 2º ofícios de Franca, apenas três são comparáveis ao de Álvaro de Lima Guimarães e no caso dos três, o processo ocorreu durante a década de 1910: Joaquim Garcia Lopes da Silva Júnior (seu pai também atuou como negociante de sal) em 1911 com um monte-mor de 531:502$870, Chrysogono de Castro, capitalista local em 1918 com um monte-mor de 525:990$950 e finalmente, José Joaquim da Silva, o único a exceder em valor os bens de Álvaro de Lima Guimarães, com um monte-mor, em 1913, de 1.001:763$000. Sabemos que Chrysogono de Castro desempenhava a função de usurário e que José Garcia Lopes da Silva Júnior prosperou como fazendeiro de café. Quanto a José Joaquim da Silva, informação pertinente reside no fato de compor sociedade com Hygino de Oliveira Caleiro e André Martins de Andrade na firma Caleiro & Andrade já em 1893, quando a companhia passa a se denominar Hygino Caleiro, Andrade & Silva, com um capital integralizado de 150:000$000. A sociedade firmou-se depois que José Joaquim da Silva se casou “...com uma filha do velho Tomé Joaquim Vilela, cunhado de Francisco Martins Ferreira Costa, formando assim, um bloco de família”58, o que sugere, pelo menos para os altos estratos da sociedade, que as ligações nos negócios pressupunham alguma ligação familiar prévia. Voltemos ao inventário de Álvaro de Lima Guimarães. Percebemos que se tratava de um homem muito rico, talvez o mais rico de Franca em sua época. Entretanto, não encontramos nenhuma referência no processo de qualquer ligação que porventura mantivesse com o comércio do café. Depreende-se, inclusive, que Álvaro Guimarães tornou-se um rentista, levando-se em conta seus investimentos na dívida pública federal e em ações da Companhia Mogiana. Um poderoso rentista na verdade. Pode-se até deduzir que se as taxas de lucro da Mogiana alcançaram, nos anos anteriores, o mesmo patamar de 1900, de cerca de 6:000$000 por semestre, que Álvaro Guimarães receberia por estas e pelas apólices da dívida algo em torno de 24:000$000 anualmente. Entretanto, podemos supor uma certa ligação com o comércio cafeeiro quando analisamos as dívidas ativas que possuía para com os herdeiros.

58 Hygino Jacintho Caleiro. Op. cit., pp. 14 e 15.

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João de Lima Guimarães devia a seu avô 21:000$000 a 10% de juros anuais desde outubro de 1899 e 578$200 sem juros. Maria Philomena, a filha, lhe devia 3:571$000, sendo que no processo não constam taxa de juros; Thomas Martins de Lima lhe devia 9:442$320 a uma taxa de juros de 7% ao ano, mais 1:796$300 sobre os quais não há menção sobre juros; O Dr. José Luiz dos Santos Pereira devia ao avô de sua esposa a quantia de 1:108$066 e não há qualquer referência a taxa de juros; O débito de Affonso de Lima Guimarães alcançava o montante de 43:640$147, sendo 43:489$147 desde outubro de 1899 a uma taxa de juros de 10% ao ano e 151$000 sem juros; Francisco Barbosa Ferreira devia a Álvaro de Lima Guimarães 5:500$000 a 1% ao mês desde março de 1898, mais 3:000$000 desde março de 1899 com a mesma taxa de juros, mas possuía 690$500 em haver; Luis Pinto Bastos possuíam em débito 11:000$000 a 7% ao ano desde junho de 1900, mais 5:000$000 a 1% ao mês desde julho de 1900 e mais 800$000 sem juros; finalmente Francisco da Silveira Gusmão devia a Álvaro de Lima Guimarães as quantias de 13:000$000 a 9% de juros anuais desde janeiro de 1900, capitalizado anualmente (os juros eram computados apenas de ano em ano), 15:549$755 à mesma taxa desde junho de 1900, mais 6:000$000 sob a mesma taxa desde maio de 1900, mais 5:000$000 também a 9% de juros anuais desde julho de 1900, mais 2:000$000 com as mesmas taxas de juro desde outubro de 1900 e mais 125$066 sem juros. Os maiores devedores eram Affonso de Lima Guimarães, que no total devia 43:640$147 e Francisco da Silveira Gusmão cujas obrigações com o falecido somavam a 41:700$755. O montante a pagar dos outros devedores, com exceção de João de Lima Guimarães, não ultrapassava a casa dos vinte contos. No caso de Affonso de Lima Guimarães torna-se fácil perceber qual a aplicação que recebeu o dinheiro, pois seu nome consta em uma lista de fazendeiros do município no ano de 1901, possuindo um total de 80.000 pés de café59. Os outros devedores podem ter aplicado o dinheiro de formas variadas, mas no caso de Francisco da Silveira Gusmão chama a atenção não apenas o valor dos empréstimos, mas também a quantidade deles, efetuados em um curto espaço de tempo. Se agregarmos a estas informações o fato de que Francisco da Silveira Gusmão desempenhava o ofício de capitalista na cidade, pode-se perfeitamente pensar que estas quantias se destinariam a reempréstimos realizados pelo usurário. Mas estes reempréstimos

59 Missemo Melo Franco. Op. cit., pp. 177 a 184.

137 mostrar-se-iam rentáveis na medida em que sobre eles já pesavam juros de 9% ao ano? Um exame das taxas de juros praticadas pelo capitalista talvez ilumine a questão. Entre 1880 e 1914, de todos os empréstimos concedidos por Francisco da Silveira Gusmão registrados no tabelião de 2º ofício, em uma parte deles, que somados atingem uma quantia de 15:400$000, as taxas de juros se situaram em 24% ao ano; em outros empréstimos, que somam 101:805$000, a taxa de juros foi de 18% ao ano; em outros, cujo montante atinge 73:000$000 os juros cobrados alçaram-se à taxa de 15% ao ano; sobre outros, que somados equivalem a 100:000$000, vigorou uma taxa de 12% e para apenas um empréstimo no valor de 2:240$000 não há alusão à cobrança de juros. Ora, torna-se claro que (e isto apesar das flutuações que a taxa média de juros cobrada pode ter sofrido consoante a conjuntura econômica de cada período) estes reempréstimos poderiam atingir uma alta rentabilidade. Contudo, para que possamos dimensionar a representatividade desta fonte de recursos nos créditos concedidos por Francisco da Silveira Gusmão, devemos comparar as quantias que obteve junto ao avô de sua esposa com os empréstimos que o usurário costumava realizar em um ano. Como possuímos dados do 1º ofício para o ano de 1902 podemos combiná-los com os de 2º ofício para o mesmo ano, a fim de se estabelecer o total emprestado por Silveira Gusmão durante 1902 e compará-lo com as somas que obteve de Álvaro de Lima Guimarães em 1900. Nestes dois anos a lavoura cafeeira atravessava a mesma conjuntura econômica, de retração monetária e aperturas financeiras, o que permite a comparação. No primeiro ofício encontramos registros de empréstimos de Francisco da Silveira Gusmão que montam a um valor de 32:798$657 para o ano de 190260 e no segundo ofício a soma dos empréstimos de Silveira Gusmão em 1902 chega a 43:732$00061. Ambas as quantias combinadas resultam no montante de 76:530$657. Observa-se que o total emprestado por Álvaro de Lima Guimarães a Francisco da Silveira Gusmão (que na verdade compreendem um espaço de tempo de dez meses e não um ano) em 1900 corresponde a cerca de 54,5% do total de créditos concedidos pelo capitalista no ano de 1902. Ainda assim não se deve considerar este percentual de forma mecânica, na medida

60 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 1º ofício de Franca, 1902, nº 85 a 88, 1º TNPLTF. Não incluímos neste cálculo os registros envolvendo ‘dações em pagamento’, quando de fato se executava a hipoteca e o bem oferecido como garantia revertia ao credor e tampouco as renovações de dívida, pois nenhum dos dois casos exigia a obtenção de novos recursos por parte do capitalista.

138 em que parte dos recursos de Gusmão se originariam do recebimento de juros e capitais emprestados anteriormente. Claro que depois de posta a roda para girar esta ganha autonomia de movimento, mas a ligação de Gusmão com Guimarães certamente potencializou a expansão dos negócios daquele. De fato, ambos parecem haver estabelecido uma ‘divisão de tarefas’: enquanto o patriarca dos Lima Guimarães – função da qual pode ter se investido mesmo anteriormente à morte de seu filho ou depois, mas de qualquer forma fica clara a sua ascendência sobre os descendentes, notadamente quanto à questão financeira – se tornava um rentista e passava a financiar as atividades da família, deixava a cargo de Gusmão o comércio do café e o financiamento de sua produção. Portanto, pode-se concluir que parte significativa dos recursos deste usurário adveio dos lucros com a intermediação mercantil do sal e do gado, ainda que indiretamente. Um outro grande negociante de gado e sal convertido em grande comerciante de café, o Major Antonio Nicacio da Silva Sobrinho, permaneceu atuando neste ramo até sua morte, que ocorreu prematuramente, em 1898. Nasceu em 11 de setembro de 1855, no distrito de Carmo do Cerrado, atual cidade de Ituverava62. Não dispomos de muitas informações sobre as atividades econômicas de sua família, mas certamente que, ao menos inicialmente, se dedicaram a algum tipo de produção agrícola. Ao contrário de Álvaro de Lima Guimarães, por ocasião de sua morte o Major Nicácio ainda não havia estabelecido sólidos laços com outros grupos de famílias que despontavam, por meio de seu enriquecimento, no município, dado que seus filhos ainda não haviam atingido a maioridade. Na propaganda de sua casa comercial, ‘Antonio Nicácio & Filhos’, encontrada em algumas notas utilizadas para registro de dívidas dos clientes, figurava o seguinte anúncio, entre outros: “Comissões e consignações – compram café”63. No balanço desta casa comercial, figuravam no ativo as seguintes contas: mercadorias 28:958$470; móveis e utensílios 1:090$000; semoventes 1:310$000; móveis da casa 615$000; contas correntes 77:132$750; obrigações a receber 52:826$460 num total de 161:932$680. No passivo figuravam: contas correntes 15:139$910; obrigações a pagar 38:450$000 que somadas a

61 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1902, nº 39 a 40, 1º AHMF. 62 Irineu Mário Nicácio. Franca Antiga: alguns aspectos de sua história, p. 25, MHMF. Não há referência. 63 Inventário de Emiliana Ângela da Silva e Antonio Nicácio da Silva Sobrinho. Caixa 40, do Tabelionato de 2º ofício, volume 641, AHMF.

139 um saldo de 108:342$770 resultavam na mesma quantia de 161:932$680 dos ativos64, conforme o método de escrituração das partidas dobradas. Obrigações a receber e a pagar referem-se a dívidas de terceiros para com a companhia e da companhia para com terceiros, respectivamente. Entretanto, a existência de uma conta denominada corrente, tanto no ativo quanto no passivo, indicam que o Major procedia da mesma maneira que os comissários, conforme caracterizados pela bibliografia. Abriam uma conta corrente para seus clientes fazendeiros, onde geralmente se escriturava o haver e dever destes, consoante suas compras de mercadorias (no caso de dever) ou sua parcela de remuneração no caso da venda do café (no caso de haver). Acabava-se por registrar também, nestas contas correntes, as dívidas dos fazendeiros em razão de empréstimos tomados junto ao comissário e os juros acrescidos. Parece-nos bem possível que neste balanço da casa comercial do Major Nicáico as contas correntes ativas e passivas se referissem exatamente aos haveres e deveres de clientes que lhes confiaram a venda de seu café. O fato de haver contas específicas para as ‘obrigações’, sugere que nestas o vínculo com a clientela não se apresentava tão duradouro, podendo corresponder na verdade, à abertura de crédito para outros fins (vendas de mercadorias por consignação ao pequeno comércio, por exemplo) no caso dos ativos e a compra de artigos para abastecer o estoque no caso das obrigações a pagar. O saldo entre as duas contas correntes chegava a 61:992$840 e o saldo total da casa comercial a 108 contos, apenas em sua atuação no ano de 1898, indicando uma alta lucratividade. Se somarmos as obrigações a receber com as contas correntes ativas, obteremos um resultado próximo de 139 contos e mesmo no caso de esta soma referir-se também a empréstimos efetuados em anos anteriores, ainda assim o Major Nicácio figuraria entre os maiores capitalistas do município de Franca, que, em sua maioria, registraram suas operações em cartório. O maior deles, Francisco da Silveira Gusmão, ao qual já nos referimos, emprestou, segundo as escrituras de dívidas existentes no Tabelionato de 2º ofício, entre 1880 e 1914, cerca de 293 contos, mas durante um período de 30 anos, ou se nos restringirmos a época em que a cafeicultura se consolida em Franca, por volta de 1894, durante 20 anos. O Major Nicácio, realizava investimentos típicos dos homens do grande capital cafeeiro, posto que seus negócios também se assentavam em uma grande

64 Idem, ibidem.

140 diversificação. Além de haver montado uma filial de sua casa comercial em Uberaba após a chegada dos trilhos da Mogiana65 – talvez um sinal de que apesar de o avanço final da ferrovia excluir Franca de sua atividade de intermediação mercantil do sal e gado, o Major pretendia permanecer ao menos no comércio deste último artigo – fundou uma empresa de captação e abastecimento de água para servir o núcleo urbano de Franca, pela qual receberia da Câmara municipal de Franca a quantia anual de 5:000$000 por dez chafarizes construídos, segundo contrato firmado em 1896, entretanto, no orçamento da Câmara municipal de Franca para o ano de 1898 encontramos um item de despesa denominado ‘subvenção a vinte chafarizes’ no valor de 10:000$00066. O Major também teria se notabilizado por sua atuação em loteamentos na cidade, como do bairro Cidade Nova, além de aparentemente comerciar materiais de construção em larga escala na cidade, como em um contrato firmado em 5 de março de 1896 quando a Câmara Municipal contrata a edificação de um ‘mercadinho’ na praça do Mercado com Augusto Victor Engholn (empregado da empresa de abastecimento de água de Nicácio) no valor total de 8:275$000 com pagamento de 1:663$000 pela mão-de-obra e o Major Nicácio forneceria os materiais de construção67. Na verdade, pretendemos evidenciar que se os recursos iniciais para o comércio do café provieram da intermediação mercantil do gado e sal, estes também se voltaram para múltiplas aplicações, que por sua vez geraram lucros passíveis de reinvestimento no financiamento da produção e na comercialização dos frutos dos cafezais. Por outro lado, conforme avançamos nesta discussão, os usurários locais mais se assemelham aos representantes do grande capital cafeeiro, com investimentos em vários ramos da economia. Também se encaixam na caracterização de Braudel do capitalista típico, dedicado a várias atividades, o que lhe confere um poder de escolha e uma versatilidade que lhe permite se aproveitar das melhores oportunidades. Assim, o termo capitalista, cabe aos usurários tanto no sentido de possuidores de uma determinada soma, de uma determinada quantidade de bens em sua forma mais líquida possível (não implicando em uma determinada relação social de produção), dinheiro, conforme empregavam a palavra na época, como no sentido braudeliano de se situarem em

65 Irineu Mário Nicácio. Op. cit., p. 25. 66 Projeto nº 20, lei orçamentária de 1898, caixa 59, vol. 398, MHMF. 67 Registros de contratos efetuados entre a Câmara municipal de Franca e particulares para obras públicas, 1892-1900, caixa 10, vol. 51, MHMF.

141 um nível superior das trocas, de onde podem perturbar o andamento destas, podem forçá- las a seguir um curso que lhes favoreça, possam jogar a favor de seus monopólios e acumular, enfim. E quanto a Simão de Oliveira Caleiro ou ao Coronel Simão de Oliveira Caleiro, como denominado em alguns documentos? As atividades deste personagem se mostram mais difíceis de se rastrear. A algumas dela já aludimos, como no caso de sua atuação em firma comercial ao lado do Coronel Francisco Martins Ferreira Costa, firma que posteriormente ficou a cargo de seus filhos e de José Joaquim da Silva. O inventário do próprio Simão de Oliveira Caleiro, português que chegou ao Brasil em 1856 aos catorze anos e por casamento estabelecendo laços em Franca com tradicional família chefiada pelo Capitão Inácio Barbosa Lima68, não é muito revelador. Os únicos bens que constam de seu inventário, lavrado em 1909, referem-se a parte de terras na Freguezia de Catalão, em Goiás, outras às margens do rio Parnahyba, todas de baixo valor e alguns móveis. Como a cidade de Catalão era o último ponto a ser atingido pela Companhia Mogiana, depreende-se que estas propriedades servissem a uma futura especulação imobiliária, mas além de a Companhia Mogiana nunca haver chegado a Catalão, no inventário afirmava-se que “algumas dessas partes de terras são tidas por litigiosas, uma vez que, conforme documento junto, carta nº 1, taes terras ao serem divididas não foram dadas em virtude dessas escripturas a Simão Caleiro, sendo que esta mesma carta alude a uma escriptura de desistencia que teria vindo validal-as não se encontrando, porém, essa escriptura entre os documentos do fallecido”69. Conclui-se também que a maioria dos negócios de Simão de Oliveira Caleiro já se encontrava sob a gestão dos filhos, notadamente Hygino de Oliveira Caleiro. Hygino, ao que parece, atuou em conjunção com seu irmão mais novo Torquato Caleiro, como sugere uma escritura, registrada no ano de 1911 no Tabelionato de 1º ofício, onde Hygino Caleiro, Sandoval & Cia (é a mesma Hygino Caleiro, Andrade & Silva a que já aludimos, apenas com a incorporação do sócio Benevides Barbosa Sandoval, casado com a filha primogênita de Hygino, Emília) da cidade de Franca, concederam um empréstimo a José Maximiano Teixeira de Andrade e sua mulher, ambos de Batataes, no valor de

68 Hygino Jacintho Caleiro. Op. cit., pp. 10 a 12. 69 Inventário de Simão de Oliveira Caleiro, caixa 150 do Tabelionato de 1º ofício de Franca, 1909, vol. 20, AHMF.

142

131:650$000 com garantia de 18.000 arrobas de café, a ser embarcado na estação ferroviária de Sales de Oliveira, os devedores se obrigando a remeter os cafés para a casa comissária Torquato Caleiro & Cia. em Santos e caso os devedores conseguissem pagar, eles próprios poderiam vender o café (situação impensável no caso de formação dos cafeeiros)70. Em um único ano, portanto, o de 1911, os Caleiros efetuaram um empréstimo de 131:650$000 e a venda dos cafés dados como garantia caberia à casa comissária Torquato Caleiro & Cia., demonstrando que a participação desta no negócio do crédito não era tão acanhada como se supõe observando-se apenas os registros do Tabelionato de 2º ofício. Ademais, a casa comissária Silva Ferreira & Cia., que possuía como sócio Azarias Martins Ferreira e como representante André Martins de Andrade, este sócio da casa comercial de Hygino Caleiro, contava também em seu quadro de sócios com José Joaquim da Silva – o mesmo que se associara à casa comercial de Hygino Caleiro – conforme se depreende de seu inventário pelas declarações de sua esposa, D. Rita de Andrade Silva. Esta afirmou que José Joaquim da Silva possuía 100:000$000 do capital social da firma Silva Ferreira & Companhia e mais 411:163$000 de saldo em conta corrente da referida companhia71. Ora, percebe-se uma ligação da firma comercial de Hygino de Oliveira Caleiro com a Silva Ferreira & Cia, por meio da participação nesta de Azarias Martins Ferreira, André Martins de Andrade e Joaquim José da Silva. Se os Caleiros também possuíam sociedade na Silva Ferreira & Cia é uma questão mais intrincada, dado que a existência da Torquato Caleiro & Cia. leva a crer que não e porque o inventário de Hygino foi lavrado na década de 1940, momento em que não só os comissários provavelmente já haviam deixado de existir como a economia brasileira e paulista em particular voltava-se primordialmente para a indústria. Por outro lado não localizamos o inventário do Major Torquato Caleiro em Franca. O empréstimo efetuado por Hygino Caleiro, Sandoval & Cia. de cerca de 130 contos em 1911, atesta, porém, a importância da Torquato Caleiro & Cia. dada a participação da casa comissária nesta transação. Evidenciamos, até este ponto, a importância dos recursos acumulados na intermediação mercantil do gado e sal para a dinamização do comércio cafeeiro, pois apesar de não se constituir em fonte exclusiva de capitais para este negócio, como podemos

70 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 1º ofício de Franca, 1911, nº 115, folha 12, 1º TNPLTF. 71 Inventário de José Joaquim da Silva. Caixa 156 do Tabelionato de 1º ofício de Franca, 1913, vol. 115, AHMF.

143 observar pela atuação de Olívio Alves Ferreira (para o qual não encontramos inventário), Chrysógono de Castro – cujo exame do inventário não sugere qualquer sociedade em casa comissária72 – e José Joaquim da Silva. Entretanto, a maioria destes elementos necessitou estabelecer conexões com os grupos familiares dominantes na região, dominantes principalmente por sua preeminência mercantil que advinha, notadamente, do antigo comércio do gado e sal. Quanto à família que sempre se achou associada aos Caleiros, liderada pelo Coronel Francisco Martins Ferreira Costa, possuímos poucas informações. O inventário do Coronel Francisco Martins mostra-se pouco sugestivo no tocante às suas atividades econômicas, pois dele não constam dívidas passivas ou ativas, apenas 50:000$000 em dinheiro referente à venda da fazenda Christaes na Comarca de Franca, além de alguns imóveis urbanos com um valor total aproximado de 30:000$00073. Em 1896 o mesmo Francisco Martins efetuou uma transação de grande vulto, onde vendeu uma fazenda a Lourenço de Almeida Sampaio, lavrador de Campinas, por 51:000$000, abrindo um crédito no mesmo valor74. Apesar da parca informação, os dois documentos combinados fazem-nos supor que o Coronel auferia grandes somas por meio da venda de imóveis rurais, com fazendas já formadas. Como já sugerimos, a venda de imóveis pode haver se convertido em uma importante fonte de obtenção de recursos monetários porventura aplicados no financiamento da produção e na comercialização do café, principalmente se atentarmos para o fato de nem sempre a aquisição inicial desses bens ocorrer por via das relações de mercado. O sistema bancário também se converteu em uma fonte de recursos para os capitalistas locais, tal como no caso do Dr. José Rodolpho Marcondes do Amaral, usurário radicado Franca, em cujo inventário, lavrado no ano de 1901, figurava dívida passiva com o Banco de Crédito Real de São Paulo por duzentas letras hipotecárias no valor nominal de 100$000 cada, que pelo valor de sua cotação durante este ano em particular atingiam 43$000 cada, totalizando 8:400$000, que somado a juros de 8% ao ano redundaria em uma

72 Inventário de Chrysógono de Castro. Caixa 227 do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1918, vol. 1141. 73 Inventário do Coronel Francisco Martins Ferreira Costa. Caixa 91 do Tabelionato de 1º ofício de Franca, 1916, vol. 63, AHMF. 74 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1896, nº 28, folha 77, AHMF.

144 quantia de 9:200$00075. Como no caso trata-se de letras hipotecárias, pressupõe-se a garantia de algum bem imóvel, talvez uma fazenda ou terras. Mas pouco importava que José Rodolpho se mostrasse insolvente e que o banco executasse a hipoteca (claro que dependendo da proporção da quantia recebida em relação ao valor estimado do imóvel, além de seu valor de mercado quando da execução), desde que o devedor não investisse na produção, mas emprestasse o dinheiro a juros, multiplicando seu capital inicial. Na verdade, para melhor entender a questão necessitaríamos de saber se os bancos dispunham de algum tipo de controle sobre a verdadeira aplicação desses empréstimos e em caso de um fraco controle, poderíamos assumir que por esta via alguns fazendeiros se transformaram em usurários. Todavia devemos enfatizar que no município de Franca a fonte principal de recursos para a atividade creditícia local adveio da antiga intermediação mercantil realizada em Franca, com predominância do Major Antonio Nicácio, do clã Lima Guimarães ao qual se juntou Francisco da Silveira Gusmão e os Caleiros, sempre associados ao clã liderado pelo Coronel Francisco Martins Ferreira Costa. Entretanto, ainda não discutimos os dados quantitativos de que dispomos acerca dos empréstimos concedidos pelos capitalistas conforme aparecem no gráfico 3. Ao observar o movimento que descreve o montante de créditos concedidos por estes, percebemos uma grande estabilidade, não abalada sequer pela intensa crise de numerário que atinge todo o Estado de São Paulo após o Funding Loan. De cerca de 300 contos no primeiro período a soma dos empréstimos efetuados pelos usurários atinge uma cifra próxima aos 400 contos e mantêm-se neste patamar após o plano de valorização. Para o período posterior a 1906 pode-se deduzir que a concorrência das casas comissárias – ainda que ambos os grupos atuassem de maneira coordenada, o registro que se realizava atribuía os empréstimos aos comissários; também se deve pensar em concorrência entre capitalistas, entre aqueles que atuavam em conjunção com os comissários e os outros – limitou o potencial de expansão das atividades dos capitalistas, mas porque estas não sofrem uma depressão entre 1898 e 1906? Talvez um primeiro passo resida em tentar compreender melhor a composição destes capitalistas e o grau de concentração do negócio. Observemos o gráfico abaixo:

75 Inventário do Doutor José Rodolpho Marcondes do Amaral. Caixa 154 do Tabelionato de 1º ofício de Franca, 1901, vol. 91, AHMF.

145

Gráfico 5 - Maiores capitalistas de Franca entre 1880 e 1914 12% 2% 3% 30% 3% 4%

4% 5% 6% 16% 7% 8% Dr. Francisco da Silveira Gusmão Chrisogono de Castro Padre Alonso Major Juvencio Falleiros Dr. José Rodolpho Marcondes do Amaral Abrahan Lincoln de Mello Fernando Peixe Olivio Alves Ferreira Coronel Thomaz José da Motta Coronel Francisco Pereira Leite Ribeiro Coronel João Caetano Alves Outros

Fonte: Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, nº 5 ao 79, AHMF.

O gráfico demonstra uma grande concentração da atividade. Os três maiores usurários de Franca sozinhos são responsáveis, em termos de valor, por 54% de todos os empréstimos efetuados no município entre 1880 e 1914. Talvez uma visão mais verticalizada sobre estes três durante o período da depressão monetária nos ajude a compreender a razão desta relativa estabilidade. Se levarmos em conta apenas os empréstimos registrados no 2º ofício, observaremos que Francisco da Silveira Gusmão emprestou 94:850$000 entre 1888 e 1898, 67:695$000 entre 1899 e 1906 e 130:500$000 entre 1899 e 1906. Percebe-se uma relativa queda entre o primeiro e o segundo período, mas esta não apresentou a mesma magnitude da queda da atividade creditícia total durante o período. O Padre Alonso, por sua vez, emprestou 29:500$000 entre 1888 e 1898, 32:165$000 entre 1899 e 1906 e apenas 9:510$000 entre 1907 e 1914, o que denota que na verdade suas atividades se aquecem durante a crise de numerário pós-Funding. Os empréstimos concedidos por Chrysogono de Castro se concentram entre 1899 e 1906, em um total de 152:965$860, não havendo nenhum empréstimo registrado entre 1888 e 1898 e apenas um valor de 11:500$000 para o último período. Ora, o fato de o referido capitalista continuar operando ainda entre 1907 e 1914, sinal de que não sofreu uma bancarrota, acrescido da concentração de suas atividades entre 1899 e 1906, nos aconselha a encarar com cuidado estes números. Provavelmente, a

146 maior parte dos créditos abertos por Chrysogono de Castro não figurasse nas escrituras de dívida do Tabelionato de 2º ofício, mas em outros registros. Como já afirmamos, este capitalista possuía uma casa bancária na cidade, onde, certamente, os empréstimos se firmavam com base em outra documentação, o que desfalca, nas escrituras de dívida, em termos de valor, os empréstimos concedidos por este usurário até 1898 e após 1906. Por que apenas entre 1899 e 1906 Chrysogono de Castro buscou efetuar um registro em cartório de suas operações é uma questão difícil de se responder. E se porventura realmente concentrou suas atividades neste período? De qualquer forma, o total emprestado por capitalistas entre 1888 e 1898 atinge um valor de cerca de 300 contos e no período posterior a aproximadamente 400 contos. Se admitirmos que Chrisogono de Castro, até 1898 haja emprestado algo em torno de 150 contos, como entre 1899 e 1906, ainda assim no total de crédito concedido por capitalistas no primeiro período figuraria uma quantia de 450 contos, contra 400 do período subseqüente. Ora, estas quantias indicariam uma queda de 50 contos e mesmo se admitirmos que a diferença pudesse atingir a casa dos 100 contos, tratar-se-ia de queda por demais suave se comparada à do total da atividade creditícia, como apontado nos gráficos 1 e 2 do primeiro capítulo, pois estes mostram que nos melhores anos do segundo período, entre 1902 e 1904, as operações de crédito haviam caído a pelo menos a metade do período anterior. Entretanto, esta comparação não é adequada na medida em que a atividade creditícia em Franca se consolida durante a década de 1890 e que, portanto, durante esta houve vários anos em que ocorreram pouquíssimas operações de crédito. De fato, se compararmos o total emprestado entre 1899 e 1907 e entre 1888 e 1898, teremos a quantia de 1.226:515$060 ou uma média de 111:501$369 por ano para o primeiro período e 1.217:965$895 ou 131:530$596 por ano para o segundo período. Portanto, em média anual, o segundo período ultrapassa o primeiro, desfazendo a imagem de estabilidade na atividade dos capitalistas que o gráfico 3 nos passou e sugerindo que possivelmente esta seguia a tendência geral da atividade cafeeira. Talvez a melhor maneira de vislumbrarmos o movimento que descrevem as operações de crédito efetuadas pelos capitalistas resida em uma comparação entre estas e o movimento total da atividade creditícia no tempo, como no gráfico abaixo:

147

Gráfico 6 - Movimento do montante de empréstimos efetuado pelos capitalistas e total da atividade creditícia - Franca 1889-1914

400

300

200 Contos 100

0 1889 1.890 1.891 1.892 1.893 1.894 1.895 1.896 1.897 1.898 1.899 1.900 1.901 1.902 1.903 1.904 1.905 1.906 1.907 1.908 1.909 1.910 1.911 1.912 1.913 1.914 Anos

Capitalistas Total de empréstimos

Fonte: Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, nº 5 ao 79, AHMF.

Note-se que na verdade os capitalistas seguem bem de perto, com pequenas variações, o movimento geral do crédito, que por sua vez, como já demonstramos, movimenta-se de acordo com a conjuntura atravessada pela lavoura cafeeira. Assim, a impressão que possuíamos de uma certa estabilidade na atividade dos capitalistas se dissipa em favor desta sincronia com a dinâmica cafeeira, ao contrário das casas comissárias, que concentraram suas operações no período pós-valorização. Isto parece contradizer nossa afirmação de que capitalistas e casas comissárias atuavam conjuntamente. Entretanto, do ano de 1907 ao ano de 1914, uma casa comissária, que possuía como um de seus sócios um dos capitalistas da região, Olívio Alves Ferreira, dominou as operações de crédito e atuou em Franca com forte presença de André Martins de Andrade, senão um capitalista, um grande comerciante da região e ligado aos Caleiros, estes sim, dedicados ao financiamento e comércio do café. De qualquer forma, ambas as atividades funcionavam sob um intenso grau de concentração, como pudemos observar pelos dados que até aqui expusemos, o que pressupõe condições mais adversas de obtenção de crédito por parte dos devedores e um ambiente propício a uma maior lucratividade por parte dos fornecedores de dinheiro, estes podendo estabelecer férreas leis para abrir mão de seus capitais. Entretanto, a análise desta questão requer um exame das taxas de juros praticadas pelos comissários e pelos capitalistas em contraposição às taxas de juros correntes. Observemos o gráfico abaixo:

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Gráfico 7-Taxas de juros aplicadas nos empréstimos registrados no município de Franca por períodos selecionados

1.500

1.000

Contos 500

0 1880 a 1887 1888 a 1898 1899 a 1906 1907 a 1914 Períodos

Sem juros Até 12% ao ano De 13 a 24% ao ano Mais de 24%

Fonte: Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, nº 5 ao 79, AHMF.

Nota-se que a maior parte dos empréstimos, até 1906, realizava-se sob taxas de juros de até 12% ao ano ou de 13 a 24% ao ano. No período compreendido entre 1907 e 1914 há uma tendência de equalização de todas as taxas de juros na faixa de até 12% ao ano. Esta baixa ocorreu devido a maior participação dos comissários nestes empréstimos, pois a média ponderada de juros cobrados por estes se situou em 9,65% ao ano entre 1888 e 1898, 10% anuais entre 1899 e 1906 (houve apenas um empréstimo) e em 11% no período posterior, enquanto que a média ponderada de juros aplicados pelos capitalistas se situava em 17,14% ao ano para o primeiro período, 16,8% para o segundo e 14,38% para o último, demonstrando que a concorrência empreendida pelos comissários (atuando em conjunto ou não com outros capitalistas) levou as taxas de juros para baixo. Isto implicaria em um aumento do poder de barganha dos devedores em relação aos credores, de tal forma que os primeiros praticamente impusessem um achatamento das taxas de juros aos segundos nas novas condições, em que poderosas casas comissárias adentravam no negócio do crédito, contrariando um raciocínio que associe uma grande concentração da atividade a um aumento de força por parte dos credores? Antes de proceder a esta discussão deveríamos definir melhor a forma como se cobravam estes juros. Entretanto as escrituras nos fornecem poucas pistas nesta direção, não explicitando se os referidos juros eram simples, compostos, etc. Em algumas das

149 escrituras aparecem algumas alusões à forma de cobrança dos juros, tais como ‘recapitalizados semestralmente’ ou ‘recapitalizados anualmente’, ou ‘capitalizados anualmente’ que na verdade parecem se referir à periodicidade de seu cálculo. Mas não sabemos praticamente nada sobre a forma de cálculo utilizado. Possivelmente se calculava a mesma taxa sucessivas vezes sobre o capital, dada a inexistência de maiores referências. Quanto ao poder dos credores em impor determinadas taxas de juros, devemos considerar que os altos níveis de inflação durante a década de 1890 podem ter compensado e muito o alto patamar em que se encontravam aquelas. De fato, provavelmente foi após as políticas restritivas de Campos Sales que o empréstimo de dinheiro se tornou mais caro, dada a estabilidade monetária e a escassez de numerário. Após o plano de valorização implementado em 1906, abriram-se possibilidades de expansão no negócio de crédito, prontamente aproveitadas pelas casas comissárias, que puderam impor uma taxa de juros mais baixa a todos os fornecedores de crédito, fato visível na sua queda nos empréstimos efetuados pelos capitalistas entre 1907 e 1914. Mas a fim de melhor comparar os períodos entre si, suponhamos que um capitalista tenha realizado um empréstimo de 10:000$000 no ano de 1895, pagável em dois anos em uma única parcela e (capital e juros) a uma taxa de juros de 17% ao ano. Os juros renderiam 1:700$000 no primeiro ano e a mesma quantia no segundo, totalizando 3:400$000 que somado ao capital resulta em um valor de 13:400$000. Se aplicarmos a estas quantias os índices de preços de Villela e Suzigan, que para 1895 era de 30,2 e para 1897, ano em que se saldaria esta dívida, de 45,8 teremos para a quantia no momento do empréstimo, ou seja, para os 10:000$000, um valor de referência de 33:112$582 e para 1897, ou melhor, para os 13:400$000 um valor de referência de 29:257$64176, ou em outras palavras: o poder de compra da quantia emprestada pelo capitalista encontrava-se em um nível superior em relação ao poder de compra da quantia recebida. Na verdade trata-se de um caso limite, nos anos que na década de 1890 sofreram as maiores flutuações de preços. Entretanto tentamos demonstrar o baixo custo do dinheiro durante a década de 1890, que compensaria, para o devedor, em grande medida as altas taxas de juros, posto que para alguns anos poderia acarretar até mesmo prejuízo para os credores. Contudo, não devemos confundir esta situação com o processo inflacionário da

76 Dividimos os valores pelo índice de preços e multiplicamos por 100, posto que Villela e Suzigan utilizam o índice 100 para o ano de 1919, então de certa forma, convertemos as quantias ao seu valor real em 1919, ou que possuiriam em 1919.

150 década de 1980, em que havia um aumento diário dos preços. O ritmo de elevação dos preços, neste caso, ocorreu de uma forma mais lenta e gradual, mas por isso mesmo não se cristalizou numa certa expectativa com relação ao ritmo do processo inflacionário a ponto de levar os credores a se precaverem contra os seus efeitos deletérios. Se efetuarmos o mesmo raciocínio para a primeira metade da década de 1900, incluindo o ano de 1906, mais uma vez trabalhando com um caso limite, notaremos um encarecimento significativo do crédito. Suponhamos, mais uma vez, um empréstimo de 10:000$000 por dois anos à mesma taxa de 17% (dado que a média ponderada para os capitalistas praticamente não difere de um período para o outro) e nas mesmas condições. Ao final, o credor, da mesma forma obteria um capital de 13:400$000. Suponhamos também que a concessão do crédito ocorreu no ano de 1900 com pagamento programado para 1902. Como o índice de preços de Villela e Suzigan em 1900 é de 41,1 e para 1902 de 31,2, teríamos para a quantia emprestada em 1900 o valor de referência de 24:330$900 e para 1902 42:948$717. Um acréscimo de aproximadamente 76%. Evidentemente trata-se de um outro caso limite, pois na maior parte da primeira metade da década de 1900, os preços permaneceram estáveis e no ano de 1900 experimentou-se uma das maiores retrações da atividade creditícia em Franca. Na verdade queremos ressaltar a centralidade da escassez ou abundância de numerário na definição do ‘preço’ do dinheiro. Consideremos também dois casos limites para o período pós-valorização, um de alta da inflação e o outro de baixa, mas com uma taxa de juros de 14,5 %, dada a diminuição desta nos créditos abertos pelos capitalistas. Imaginemos primeiro um empréstimo efetuado no ano de 1908 a ser pago em 1910. O índice de preços para 1908 é de 35,7 e para o segundo de 31,5. Após o pagamento da dívida, o capitalista embolsaria 12:900$000 dos seus 10:000$000 iniciais. Mas aplicando os índices de preços a ambos, teríamos um valor de referência de 28:011$204 para o primeiro caso e de 40:952$380 para o segundo, num acréscimo de cerca de 46,2% sobre a quantia inicial, relativamente próximo dos 29% totais sobre o capital, 14,5% em cada ano. No outro caso, imaginemos a mesma quantia, o mesmo prazo e a mesma taxa de juros, mas com a concessão do empréstimo no ano de 1910 e seu pagamento no ano de 1912. O índice de preços para o ano de 1912 se situa em 37,9, de forma que obtivemos os seguintes valores de referência: 31:746$031 para 1910 e 34:036$939 para 1912, indicando que em qualquer subperíodo

151 entre 1907 e 1914 o capitalista poderia auferir lucros e apesar de não sabermos se o cálculo dos juros se fazia sobre as parcelas ou sucessivas vezes sobre o capital, pelas variações de valores que apresentamos, em algumas ocasiões estreitando muito a margem de lucratividade (mas em outras alargando-a sobremaneira) torna-se mais provável que a última alternativa se aproxime mais do que de fato ocorria ou que se cobrassem juros sobre juros. De qualquer forma, o que se buscou demonstrar foram os bruscos efeitos sobre o ‘custo’ do dinheiro, consoante as flutuações do montante de papel-moeda em circulação. Além disso, deve-se atentar para a possibilidade de os comissários atuarem com uma multiplicidade de devedores que provavelmente ultrapassava em número a clientela dos capitalistas, capacitando-os a suportar taxas de juros menores. Mas suportar não significa preferir e na verdade quanto maior o patamar em que se fixavam os juros melhor para os credores. Na verdade, se atentarmos para as conclusões de Marcondes em seu estudo sobre Lorena e Guaratinguetá, onde assinala que os juros se situavam em menores taxas para as maiores quantias, podemos pensar que as taxas cobradas pelos comissários se afiguravam menores exatamente por sua atuação se concentrar nos maiores proprietários. Com a expansão cafeeira pós-plano de valorização estes certamente demandaram mais numerário e também juros mais baixos. A redução das taxas de juros para os grandes proprietários, por outro lado, pode ter resultado em um diminuição daquelas para todo o conjunto dos devedores. Este raciocínio, contudo, não invalida a argumentação de que o ‘custo’ do dinheiro dependeu dos movimentos induzidos pelas políticas monetárias em cada período; para a rentabilidade (do ponto de vista dos credores) das operações de crédito estes contaram tanto ou até mais que o patamar da taxa de juros. Isto, entretanto, significa que quem emprestou durante a década de 1890 forçosamente sofreu prejuízos? No caso de Francisco da Silveira Gusmão, defrontamo-nos com uma série de dações em pagamento – quando se abria mão do bem hipotecado em razão do não pagamento da dívida – para o ano de 1902, entre estas uma escritura onde o Coronel José Carlos de Vilhena entregou a Francisco da Silveira Gusmão uma fazenda no valor de 20:000$000, para pagar uma dívida de 33:000$00077, ou uma outra em que para amortizar uma dívida de 127:000$00078, Lusiano Vieira Santiago entregou a Francisco da

77 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 1º ofício de Franca, nº 88, folha 31, 1º TNPLTF. 78 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 1º ofício de Franca, nº 86, folha 82, 1º TNPLTF.

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Silveira Gusmão um sobrado no largo da Matriz no valor de 28:000$000. Em primeiro lugar devemos pensar nos efeitos da deflação, que valorizou sobremaneira a moeda, além de que estas dívidas, enquanto não pagas integralmente, continuariam rolando. Claro que havia a possibilidade de total insolvência dos devedores, acarretando o não pagamento das dívidas, no todo ou em parte. Mas também se deve imaginar que, pelo menos no caso das escrituras com hipotecas sobre os imóveis, os credores poderiam especular com os preços destes, adquirindo-os na baixa (já que com a queda na atividade econômica após as políticas restritivas de Campos Sales a procura por estes bens certamente diminuiu) e esperando para negociá-los quando a conjuntura se lhes afigurasse favorável. Por fim, ainda restava a alternativa de fornecer mais numerário para os devedores em apuros, possibilitando seu reerguimento e o pagamento das dívidas no futuro, acrescidas com uma parcela bem mais generosa de juros. Algumas escrituras nos sugerem isto, como o registro de uma delas realizado no ano de 1899, entre o Padre Alonso e Antonio Rodrigues Moreira, em que aquele lhe concedia novo prazo: “Em 21/11/1896, no mesmo cartório, foi feita uma escritura de hipoteca no valor de 20:000$000 de reis a favor do padre sobre uma casa na rua do Carmo e sobre o imóvel agrícola fazenda do Retiro. Os devedores obrigavam-se a pagar os juros de 1 e 1/2% ao mês, recapitalizados de 6 em 6 meses, com vencimento em 21/11/1899. Na presente data a quantia se achava elevada em 29:152$000 com juros. Rodrigues Moreira havia conseguido do padre novo prazo, 23 meses, pagando 1% ao mês. Os juros deveriam ser pagos de 8 em 8 meses. Como garantia foi ratificada a escritura anterior. A fazenda neste momento continha: terras de cultura e campos, capoeiras, 30000 pés de café entre formados e por formar e casas de morada”79. Outras escrituras, já reproduzidas neste trabalho, onde o devedor hipotecou a mesma propriedade novamente, mas a outros credores, também parece confirmar este argumento, apesar de neste caso o lucro com a operação não reverter apenas ao credor original. Note-se também, pela escritura firmada entre Padre Alonso e Antonio Rodrigues Moreira, o alto patamar dos juros, posto que recapitalizados semestralmente, à taxa de 1,5% ao mês, implicariam no cálculo de 9% sobre o capital de 20:000$000 a cada seis meses, ou 1:800$000 por cada seis meses. Como decorreram 3 anos de 21 de novembro de 1896 a 21 de novembro de 1899, os juros reverteriam, multiplicados por seis, em valor, a

79 Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, nº 34, folha 18, AHMF.

153 quantia de 10:800$000, bem próxima dos 9:152$000 realmente acrescidos à quantia original, indicando que a forma de cálculo que empreendemos em nossas suposições, diretamente sobre o capital total, parecem corretas. Uma outra escritura deixa mais explícita a forma de cálculo: em 1899 Nicolao Rissio, comerciante, emprestou ao Coronel Ricarte José Narcizo a quantia de 40:150$000 com 48 meses para pagar, ou quatro anos. No primeiro pagamento seria cobrado 10% sobre o capital e mais os juros vencidos em um ano a razão de 12% sobre o capital durante o ano. No segundo pagamento 20% sobre o capital a cada um dos credores, mais 12% sobre o que estiverem a dever. No terceiro pagamento 30% sobre o capital a cada um dos credores e mais os juros de 12% ao ano sobre o restante. No quarto e último pagamento 12% sobre o restante do capital80. Portanto o cálculo parece se referir, em geral, a juros sobre o capital, descontando-se deste as sucessivas amortizações. No caso dos prazos aplicados nos empréstimos, o esgotamento da expansão monetária e a dominância dos comissários na atividade creditícia após o plano de valorização parece tê-los afetado no mesmo sentido que a taxa de juros, conforme podemos observar no gráfico abaixo:

Gráfico 8 - Prazos aplicados nos empréstimos registrados no município de Franca por períodos selecionados

600 500 400 300 Contos 200 100 0 1888-1898 1899-1906 1907-1914

Até 12 meses De 13 a 24 meses De 25 a 36 meses Mais de 3 anos Indeterminado

Fonte: Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, nº 5 ao 79.

80 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, nº 35, folha 65v, AHMF.

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Se por um lado caem abruptamente os empréstimos com prazo entre 25 e 36 meses entre 1899 e 1906 e aqueles compreendidos na faixa entre 13 e 24 meses se elevam, por outro sobem também aqueles com prazo de mais de 3 anos. Certamente, sem alterar sua participação absoluta de forma significativa, os empréstimos com até 12 meses de prazo aumentam a sua participação relativa no conjunto da atividade creditícia, mas este aumento se compensa, até certo ponto, pela elevação do percentual de empréstimos de mais de 3 anos, apesar de o aumento da participação dos empréstimos com prazo entre 13 a 24 meses jogarem a favor de uma diminuição geral nos prazos para os empréstimos. De fato, no conjunto da atividade creditícia, parece ter havido uma queda nos prazos, ainda que suave. No período posterior a 1906, no entanto, a elevação generalizada dos prazos para a concessão de crédito torna-se patente, tanto que passa a se emprestar com prazo acima de 3 anos numa quantidade superior ao dos empréstimos com prazo de até um ano, talvez mais um efeito da atuação mais intensa do comissariado neste período. Notamos, também, a parca existência de empréstimos com prazos que favorecessem a lavoura cafeeira, ao menos para a instalação desta, dado o período de espera em torno de quatro ou cinco anos que medeia entre a formação do cafezal e a primeira florada e, principalmente se considerarmos que durante a década de 1890 haveriam mais fazendas sendo instaladas que já em operação. A expansão da cafeicultura se nos apresenta bastante obstaculizada pelas condições de financiamento e provavelmente não fosse a intervenção de circunstâncias bastante especiais (encilhamento, valorização do café) esta expansão não se efetivaria ou não persistiria na prática. Percebe-se que os empréstimos de mais de três anos, ideais para quem desejasse formar novas lavouras, em nenhum momento representaram a maior parte da atividade creditícia. Mas deveremos tratar estas questões, com maior profundidade, no capítulo seguinte. De qualquer forma, para que os credores sobrevivessem às restrições econômicas impostas pela política monetária implementada a partir de 1898, seja renovando suas dívidas, seja adquirindo imóveis para negociá-los futuramente, fazia-se necessário um certo montante de capital em seu poder para que, assim como seus devedores, suportassem e atravessassem sem maiores danos este período de escassez monetária. Ou em outras palavras: sobreviveu quem tinha tamanho, quem possuía porte para assimilar o golpe. Isto explica a queda da participação dos ‘lavradores’, ou melhor, fazendeiros, nos empréstimos.

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Mas não se deve pensar que a nova política econômica tenha se mostrado prejudicial aos grandes negociantes de dinheiro, posto que a situação anterior, além de insustentável, não lhes permitia auferir grandes margens de lucros. Os prejuízos que porventura amargaram (credores) resultaram da intensa inflação de preços que aumentou sobremaneira a remuneração em moeda nacional dos fazendeiros, causando uma expansão das plantações até então sem precedentes e a conseqüente insolvência de muitos destes cafeicultores quando finalmente sobreveio a crise. Entretanto, devemos considerar com cuidado estes empréstimos realizados por lavradores, posto que grande parte deles se efetuou na compra, a prazo, pelos devedores, de fazendas ou terras desses credores. Na verdade, durante todo o período, um valor de 201:508$000 fora destinado a compras a prazo de fazendas, enquanto que 295:723$360 carrearam-se para outras modalidades de crédito. Entre 1888 e 1898, 67% de todo o crédito concedido pelos lavradores e registrado no Tabelionato de 2º ofício, ou um valor de 198:508$000, destinou-se a compras de imóveis, contra 97:363$000 de empréstimos que serviram a outros fins, provavelmente ao custeio das lavouras. Entre 1899 e 1906 apenas 2% dos empréstimos concedidos por lavradores se destinaram a compras de imóveis enquanto que 98% do total, ou 128:825$000 se destinaram a outras operações, montante maior do que o do período anterior. De 1906 a 1914 não há, nas escrituras do 2º ofício, mais nenhuma venda a prazo de imóveis por lavradores e os empréstimos desta totalizam apenas 69:535$360. A compra a prazo de fazendas, dada a inflação da década de 1890, dependendo do prazo para pagamento e da taxa de juros, não se qualificaria como um mal negócio. A questão fundamental, porém, reside no fato de os empréstimos do segundo período, excetuando-se àqueles destinados a compras de imóveis, excederem os do primeiro período, deixando a impressão de que na verdade a política restritiva de Campos Sales não reduziu a concorrência no fornecimento de crédito. De fato, se observarmos o número de elementos que realizaram alguma operação de crédito entre 1888 e 1898, seu número chega a 62, mas no período posterior atinge o número de 129. Por outro lado se considerarmos apenas os empréstimos realizados pelos lavradores de valores acima de 10:000$000 – já que as casas comissárias (supostamente as principais beneficiadas com uma possível diminuição da concorrência no fornecimento de crédito) operavam sobretudo

156 com grandes quantias – obteremos um resultado de aproximadamente 77 contos no primeiro período e 84 no segundo, atestando, na verdade, tal qual no caso dos capitalistas, uma relativa estabilidade em sua atuação. Devemos lembrar, porém, que provavelmente grande parte dos credores cuja ocupação não aparece nas escrituras de dívida e que encaixamos na categoria de ‘indeterminado’ no gráfico 3, na verdade fossem lavradores, pois como estes realizavam poucos empréstimos e o movimento do montante destes acompanha o dos empréstimos efetuados pelos lavradores, com maior concentração entre 1888 e 1898 e queda acentuada após o plano de valorização. Mas assim como no caso dos capitalistas, uma comparação entre o movimento do crédito concedido pelos lavradores e do conjunto da atividade creditícia possa esclarecer melhor a questão. No gráfico abaixo excluímos todo o crédito referente a compras a prazo:

Gráfico 9 - Total de empréstimos realizados por lavradores e total de empréstimos - Franca 1889-1914

400

300

200 Contos 100

0 1889 1890 1891 1892 1893 1894 1895 1896 1897 1898 1899 1900 1901 1903 1904 1905 1906 1907 1908 1909 1910 1911 1912 1913 1914 1.902 Ano

lavradores Total de empréstimos lavradores mais credores com ocupação indeterminada

Fonte: Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, nº 5 ao 79, AHMF.

Se observarmos a linha amarela, que reúne tanto os empréstimos realizados tanto pelos lavradores quanto de credores com ocupação indeterminada, perceberemos que estes créditos se concentraram na década de 1890, notadamente entre 1896 e 1899 – coincidindo com a época em que se consolida a cafeicultura em Franca – com uma redução acentuada entre 1901 e 1903 e uma pequena recuperação em 1904 e em 1906, mas que não chega a

157 atingir metade do montante do período anterior e uma queda definitiva após o plano de valorização de 1906. Se realmente admitirmos que boa parte desses credores com ocupação indeterminada se dedicavam à produção de gêneros agrícolas, concluiremos que da mesma forma que capitalistas e comissários, os fazendeiros sofrem uma grande retração nos créditos que concederam a fim de financiar a produção da lavoura cafeeira. Mas a queda de suas operações creditícias após o plano de valorização indica que a atuação deste estrato ocupacional dependia, em grande medida, de um certo estado de abundância monetária, demonstrando que uma já fraca, mas persistente atuação dos ‘lavradores’ no fornecimento de crédito após 1899 e até 1906 ligou-se, provavelmente, aos rendimentos auferidos por uns poucos cafeicultores no decênio anterior, não exatamente no fornecimento de crédito, ainda pouco lucrativo na década de 1890, mas na própria cafeicultura ou com a venda de terras, o que lhes facultou realizar estes empréstimos de maior valor em 1904 e 1906. Por outro lado, o gráfico indica que a concorrência na atividade creditícia realmente diminuiu após o Funing Loan, mas para as maiores quantias, exatamente o que importava para o comissariado. Assim, podemos reformular nossa afirmação anterior: entre os grandes emprestadores, sobreviveu quem tinha tamanho, ou melhor, quem possuía liquidez suficiente para absorver o golpe, o que de maneira nenhuma era o caso dos cafeicultores. Se agregássemos ainda os créditos concedidos referentes a compras a prazo, para lavradores e credores com ocupação não determinada no gráfico, salientaríamos ainda mais a importância da abundância de numerário para que os lavradores efetuassem empréstimos, tanto que muitos deles aproveitaram a oportunidade para vender terras. Nosso objetivo na verdade foi mostrar a queda da concorrência entre os credores no que concerne à produção e comercialização de café, ainda que pudéssemos considerar a aquisição de terras como um passo importante para essas atividades. A existência dessa plêiade de fornecedores de crédito durante a década de 1890, notadamente para as grandes quantias, deixou os devedores em situação extremamente favorável, tanto que o ‘custo do dinheiro’ se fixou em patamares relativamente baixos. O abandono da atividade creditícia por muitos destes fazendeiros, ao menos para as grandes quantias, mostrou-se fundamental para que os comissários dominassem o negócio. Entretanto, o movimento mais curioso daqueles apresentados no gráfico 3 refere-se ao montante dos empréstimos efetuados por comerciantes, pois decresce ou se eleva em

158 sentido contrário ao da lavoura cafeeira, podendo-se afirmar, que ao menos aparentemente manifesta uma tendência anticíclica. Mas como nas outras vezes, devemos tomar precaução com os números, na medida em que estes, reunidos em períodos, tal como os organizamos no gráfico 3, apesar de fixar melhor a conjuntura de cada período, oculta o fato de a cafeicultura consolidar-se em Franca apenas em meados da década de 1890. Novamente nos valeremos da comparação anual entre o montante das quantias totais emprestadas e a soma destas apenas para os empréstimos concedidos por comerciantes tal como no gráfico abaixo:

Gráfico 10 - Montante de empréstimos de comerciantes e total emprestado em Franca - 1889-1914

400 300 200

Contos 100 0 1889 1890 1891 1892 1893 1894 1895 1896 1897 1898 1899 1900 1901 1902 1903 1904 1905 1906 1907 1908 1909 1910 1911 1912 1913 1914 Anos

Comerciantes e negociantes Total emprestado

Fonte: Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, nº 5 ao 79, AHMF.

O volume de empréstimos se mantém bastante constante ao longo do tempo, mas se situa, durante o final da década de 1890, em patamares bastante elevados, sugerindo, ao contrário de nossa apreciação inicial e tal como no caso dos fazendeiros, uma dependência em relação à existência de uma certa abundância monetária. Entretanto, se atentarmos para o fato de que para o ano de 1897, em que os comerciantes emprestaram cerca de 81 contos de réis, 75 destes originaram-se de operações realizadas pela Companhia mecânica importadora de São Paulo, por meio de compras de máquinas pelo Major Claudiano e pelo Capitão Antonio da Costa Valle, ambos lavradores no município de Franca81, constataremos que o montante de crédito concedido por negociantes locais neste ano se

81 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, nº 29, folha 35v e nº 29 folha 37, AHMF.

159 situa em níveis medíocres, abaixo dos níveis médios da primeira década do século XX. Assim, o alto volume de crédito concedido por comerciantes na década de 1890 liga-se em muito maior medida a uma alta disponibilidade de numerário por parte dos cafeicultores da região que a uma determinada característica do comércio local. Se considerarmos apenas este, portanto com a exclusão da Companhia mecânica importadora de São Paulo, observaremos que na verdade o volume de crédito concedido por aquele descreve um movimento inverso ao dos lavradores, ou seja, emprestam mais quando há menos papel- moeda em circulação. O ano de 1899 é sintomático neste sentido: marcando o início da política restritiva de Campos Sales que já espraiava seus efeitos sobre o conjunto da economia, mas ainda contando com a capacidade produtiva instalada do período anterior e provavelmente com certa quantidade de numerário proveniente ainda da expansão monetária que teve curso na década de 1890, apresentou o maior pico de atividade creditícia por parte do comércio. Conclui-se que na circunstância de existir uma grande disponibilidade de numerário os cafeicultores podem saldar suas obrigações à vista, dispensando a abertura de crédito por parte dos comerciantes locais. Ainda que muitos daqueles estivessem apenas instalando fazendas de café, não auferindo, naquele momento, lucros com sua produção, deve-se pensar na venda de terras como forma de obtenção de numerário e mesmo na prévia existência de certo volume de capital destinado a ser investido na formação dos cafeeiros. Outra questão relevante e que pode elucidar a anterior definitivamente, refere-se à aceitação de vales pelos negociantes, assunto de que trataremos com maior atenção no terceiro capítulo. Devemos observar, por fim, que a existência de quantias bastante expressivas entre os créditos concedidos por comerciantes locais, como o efetuado entre Nicolao Rissio ao Coronel Ricarte José Narcizo, fazendeiro em Franca, no ano de 1899, no valor de 40:150$000, demonstra os limites tênues entre a mercancia e a agiotagem, tal qual a realizada pelos assim chamados capitalistas, até porque, tanto no caso dos comissários, quanto no dos usurários, fazia-se necessário o fornecimento de mercadorias para seus devedores, numa indistinção de funções destes verdadeiros mercadores de dinheiro. Mas aqui adentramos no alto comércio, e, enfatizemos, grande parte destes empréstimos fora concedida pelos pequenos negociantes, o que, de resto, justifica a análise à parte que lhes

160 dedicamos e mesmo explica o comportamento diferenciado no que concerne ao crédito desta camada de profissionais. Traçamos, em linhas gerais, a posição dos vários estratos de credores em suas relações com os devedores, resta agora delinear a atividade creditícia pelo prisma destes no capítulo seguinte.

Ligações familiares e laços monetários: ajustes em torno do processo de acumulação

Até aqui arrolamos uma quantidade considerável de informações que nos permite aventar a possibilidade de a unidade de acumulação residir não no indivíduo, mas na família. Eram as famílias que enriqueciam e não os indivíduos; os negócios se submetiam à gestão familiar e se o enriquecimento de um determinado elemento poderia lhe trazer ascendência no interior do grupo familiar, concomitantemente o investiria de uma série de responsabilidades para com este. Neste ponto devemos fazer um parêntese. Viemos apontando a possível influência de relações de cunho personalista em várias atividades econômicas, na possibilidade de ligações familiares facultarem o acesso a determinados recursos, mas não empreendemos nenhuma análise destas. Ora, um dos primeiros autores a assinalar a centralidade da família na formação social brasileira e certamente um dos que melhor penetraram nesta senda em sua época, foi Gilberto Freyre82. Na verdade, juntamente com Oliveira Vianna, Alcântara Machado e Luis Aguiar Costa Pinto, fixou os traços de um modelo familiar que ainda na atualidade polariza a discussão entre os estudiosos da família, estes divergindo sobre a persistência ou não da mentalidade patriarcal, mesmo com o aparecimento da família conjugal moderna no Brasil83.

82 Gilberto Freyre. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. 8ª edição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 2 vol. Idem. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 4ª edição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio editora, 1968, 2 vol. Idem. Ordem e Progresso: processo de desintegração das sociedades patriarcal e semipatriarcal no Brasil sob o regime de trabalho livre; aspectos de um quase meio século de transição do trabalho escravo para o trabalho livre; e da monarquia para a república. 2ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio editora, 1962, 2 vol. 83 Eni de Mesquita Sâmara. Relendo os ‘Clássicos’ e Interpretando o Brasil: Freyre e os estudos de família. In: Ethel Volfzon Kosminsky, Claude Lépine, Fernanda Áreas Peixoto (orgs.). Gilberto Freyre em Quatro Tempos. Bauru: Edusc, 2003, pp. 304 e 308. A autora destaca os seguintes trabalhos dos autores que cita: Oliveira Vianna. Populações Meridionais do Brasil. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., 1920; Luis de Aguiar Costa Pinto. Lutas de Famílias no Brasil; era colonial. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília: INL, 1980.

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Estudo central de Gilberto Freyre reside em sua ‘Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil’ composta das obras Casa Grande & Senzala, onde tratou da sociedade colonial; Sobrados e Mucambos, onde desviou o olhar para a ainda América portuguesa da segunda metade do século XVIII e para o Brasil já monárquico da primeira metade do XIX; e finalmente Ordem e Progresso, onde discute a desintegração do patriarcalismo sob a substituição do braço escravo pelo livre. Ainda elaboraria um quarto estudo, a se chamar Jazigos e Covas Rasas, mas este nunca chegou a ser escrito. A análise em profundidade do que Freyre chamou ‘família patriarcal’ e a herança deixada por esta confere unidade a estas obras. Na verdade trata-se de um único estudo sobre a evolução desta família patriarcal sob diversas conjunturas, que apesar de imporem-lhe determinadas transformações, não alteram o tipo de sociabilidade básica gestada em seu interior. Pode-se afirmar que para Freyre a família patriarcal se constituiu na principal influência de longa duração sobre a formação social brasileira. E apesar de seu intransigente conservadorismo, que o relegou ao ostracismo em alguns círculos acadêmicos, muitas de suas obras tornaram-se referência para uma parcela significativa das ciências sociais brasileiras, a ponto de qualificarem-no, juntamente com Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, como um dos grandes intérpretes do Brasil. Mas o ostracismo de Freyre não se deveu somente à sua postura ideológica. Sua perspectiva orienta-se para uma gama de expressões da vida social que se aproximam dos objetos preferencialmente eleitos pela nova história, notadamente o imaginário e a cultura material, no lugar da ideologia e das relações de produção. Estes objetos, tais como as crenças, as lendas, os hábitos alimentares, os estilos arquitetônicos, as vestimentas, o vocabulário, por sua própria natureza escapam a uma rígida sistematização, surgem como fragmentos difíceis de se unir em uma explicação unívoca e coerente e Gilberto Freyre, por isso mesmo, trabalha com uma certa dose de impressionismo, o que conferiu aos seus trabalhos um baixo grau de cientificidade segundo a visão de alguns. De fato, parece muito fácil se perder nas páginas das obras que compõe a Introdução à história patriarcal do Brasil, dada a variedade de assuntos a que Freyre remete sua narrativa e dada sua aparência desconexa. Entretanto, em cada um desses fragmentos

(Brasiliana, 263); Alcântara Machado. Vida e Morte do Bandeirante. 3ª edição. São Paulo: EDUSP; Belo Horizonte: Itatiaia, 1980, além do Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre, já citado. Não utilizamos os dois últimos trabalhos por tratarem apenas do período colonial, quanto a Oliveira Vianna, não o usamos por se concentrar em aspectos políticos resultantes dos laços familiares.

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Freyre colhe indícios no sentido de demonstrar em todos eles, a recorrente e continuada presença da família patriarcal. Mas em que esta consiste? O próprio Freyre nos fornece as pistas: “A família, não o individuo, nem tampouco o Estado nem nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator colonizador no Brasil, a unidade produtiva, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a força social que se desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da América. Sobre ela o rei de Portugal quase que reina sem governar. Os senados de câmara, expressões desse familismo político, cedo limitam o poder dos reis e mais tarde o proprio imperialismo ou, antes, parasitismo econômico, que procura estender do reino às colônias os seus tentáculos absorventes”84. Depreende-se deste trecho, que a família se confundia com a unidade econômica básica, na era colonial principalmente o engenho. Explicitamente o autor atribui ao comando desta unidade econômica, efetuado pela família, a fonte de todo o poder – inclusive nas esferas institucionais – na colônia. De fato, todas as esferas da vida se dobram ao arbítrio familiar. Mesmo uma poderosa organização como a Companhia de Jesus, não conseguiu impor na colônia o seu catolicismo, derrotada que foi pelo catolicismo das capelas das casas-grandes, aquelas subordinadas a esta última85. Percebe-se, portanto, que a família, em seus domínios, acumula todas as funções (econômicas, de exercício do poder, religiosas, da construção de um imaginário, etc.) que em outras sociedades estariam reservadas a grupos maiores. Praticamente inexiste um espaço público e ao mesmo tempo observa-se o inchaço de um espaço privado (que na verdade não poderia ser assim denominado, já que espaço público e espaço privado se definem um em relação ao outro) que a tudo domina. Mas sob qual estrutura descansa a organização familiar? Pode-se resumir o caráter da organização familiar, seguindo Gilberto Freyre, em poucas palavras: toda a autoridade emanava do senhor de engenho ou do proprietário, a ele todos se subordinavam: a esposa, os filhos, os escravos etc., sobre os quais exercia o arbítrio de sua vontade. Há realmente uma hierarquia na casa-grande, que acaba por englobar a senzala, em que o status de cada elemento se delineia a partir de sua proximidade ao senhor. Assim Freyre distingue claramente o papel dos escravos

84 Idem. Casa Grande..., 1954, vol. I, pp. 117 e 118. 85 Cf. idem, ibidem, pp. 123 e 124, mas em vários outros pontos toca no assunto.

163 domésticos e dos demais: “A casa-grande fazia subir da senzala para o serviço mais íntimo e delicado dos senhores uma serie de indivíduos - amas de criar, mucamas, irmãos de criação dos meninos brancos. Indivíduos cujo lugar na família ficava sendo não o de escravos mas o de pessoas de casa. Especie de parentes pobres nas familias européias. À mesa patriarcal das casas-grandes sentavam-se como se fossem da familia numerosos mulatinhos. Crias. Malungos. Muleques de estimação. Alguns saíam de carro com os senhores, acompanhando-os aos passeios como se fossem filhos”86. Chama esta família de patriarcal pelo seu caráter extensivo, onde muitos podiam ser incluídos, mas incluídos sob a autoridade do senhor e obedecendo a uma hierarquia que se por um lado era, nas palavras de Freyre ‘amolecida’ pelas trocas culturais entre senhor e escravo, por outro, não abandonava sua rigidez, nas relações da esposa do senhor com as escravas, do filho do patriarca que possuía a sua disposição um escravinho para levar pancadas nas brincadeiras, etc., todas relações envolvendo extrema violência que o autor, apesar de explicitar, tende a minimizar dada a sua fascinação pela sociedade colonial. Gilberto Freyre, por sua formação antropológica, tende a privilegiar os contatos entre o que considera como as três culturas formadoras do Brasil: a do português, a do indígena e a do negro africano, muitas vezes exagerando o papel das características destas na explicação de determinados processos sociais, como por exemplo quando chega quase a sugerir que o português triunfou sobre as demais monarquias européias na colonização do Nordeste açucareiro por sua maior adaptação aos trópicos, desprezando fatores da geopolítica87, ou quando explica a predominância do escravo africano em contraposição ao índio no decorrer da colonização portuguesa nas Américas pela maior disposição daquele ao trabalho gregário88, desprezando a influência de fatores político-econômicos nesta escolha. No entanto, afirmar que Gilberto Freyre despreza totalmente os condicionantes econômicos em sua argumentação é um equívoco. Pelo contrário, apesar de não se aprofundar no estudo dos aspectos econômicos de seu objeto, confere um papel central a economia na conformação da família patriarcal: “Sempre que consideramos a influencia do negro sobre a vida íntima do brasileiro, é a ação do escravo, e não a do negro per si, que apreciamos. (...) Ao lado da monocultura, (a escravidão) foi a força que mais afetou a

86 Idem, ibidem, p. 591. 87 Cf. idem, ibidem, pp. 105 a 107. 88 Cf. idem, ibidem, p. 437.

164 nossa plástica social. Parece às vezes influencia de raça o que é influencia pura e simples do escravo: do sistema social da escravidão”89. Depreende-se, desta passagem, que a monocultura e a escravidão moderna, juntas, estabeleceram, em todos os planos da vida, os fundamentos sobre os quais se assenta a sociedade brasileira. Ora, este tipo de interpretação permite que Freyre confira generalidade ao seu estudo, posto que em todas as regiões do Brasil vigorou o escravismo e a monocultura, apesar de em Casa-grande & senzala se concentrar principalmente no Nordeste. O autor chega a tecer paralelos entre a colonização lusitana na América do Sul e a inglesa na América do Norte nas regiões onde predominaram a monocultura e o escravismo: “A todo estudioso da formação patriarcal e da economia escravocrata do Brasil impõe-se o conhecimento do chamado ‘deep South’ (sul profundo). As mesmas influências de técnica de produção e de trabalho – a monocultura e a escravidão – uniram- se naquela parte inglesa da América como nas Antilhas e em Jamaica, para produzir resultados sociais semelhantes aos que se verificam entre nós. Às vezes tão semelhantes que só varia o acessorio: as diferenças de língua, de raça e de forma de religião”90. Contudo, o autor também confere à formação do Brasil uma especificidade que nenhuma outra região compartilha: “A escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternização entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos. (...) A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distancia social que doutro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala”91. Ora, estas ‘zonas de confraternização’ como chama, propiciaram a comunicação da cultura dos dominados (muitas vezes superior) aos dominadores (no vocabulário, nas formas de se experimentar a crença religiosa, na culinária, etc.), criando como que uma ‘linguagem comum’ a partir da qual os primeiros poderiam transigir com os últimos, valer- se dela para melhorar sua posição no interior da estrutura social, o que significava, na colônia, tornar-se mais próximo do senhor patriarcal. Ora, toda a estrutura narrativa de Casa-grande & senzala se assenta nesta possibilidade de transigência e todas as expressões da vida social que Freyre descreve são referidas a ela. De fato, a sociedade patriarcal mostra-se bastante aberta a estas influências de negros e índios, com a única ressalva do

89 Idem, ibidem, p. 536. 90 Idem, ibidem, p. xvii, prefácio à 1ª edição. Grifos no original. 91 Idem, ibidem, p. xx, prefácio à 1ª edição. Grifos nossos.

165 exclusivismo religioso. O catolicismo, segundo o autor, foi imposto aos dominados, entrementes, não se tratava de um catolicismo rigidamente normatizado, com forte predominância dos aspectos doutrinários da religião, mas um catolicismo cheio de influência moura e animística, no qual prevaleceu muito mais a preocupação com os aspectos exteriores da religião que sua interiorização pelos fiéis92. Na verdade: “A religião tornou-se o ponto de encontro e de confraternização entre as duas culturas, a do senhor e a do negro; e nunca uma intransponível ou dura barreira. Os próprios padres proclamavam a vantagem de concederem-se aos negros seus folguedos africanos”93. Por fim fiquemos com a conclusão do próprio Gilberto Freyre: “Considerada de modo geral, a formação brasileira tem sido, na verdade, como já salientamos às primeiras páginas deste ensaio, um processo de equilibrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura européia e a indígena. A européia e a africana. A economia agraria e a pastoril. A agraria e a mineira. O católico e o herege. O jesuita e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietario e o paria. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo”94. Portanto o privatismo familiar, funcionando sob um equilíbrio de antagonismos, ou, poder- se-ia dizer, a capacidade de transação, caracterizam a sociedade brasileira para Gilberto Freyre. Os dois outros trabalhos que compõe a Introdução a história da sociedade patriarcal no Brasil apenas desdobram a idéia central de Casa-grande & Senzala. Em Sobrados e Mucambos, Freyre aponta os impactos da crescente mercantilização da vida, coadunada com o maior contato do Brasil independente com os produtos oriundos dos países europeus recém-saídos da Revolução Industrial, que começaram a invadir o país, a partir daquele momento de forma massiva, e da urbanização de suas principais cidades sobre a família patriarcal. De um lado crescente mercantilização e do outro a constituição de um espaço público, ainda que de forma incipiente, ao qual os grandes senhores patriarcais deveriam se integrar.

92 Cf. idem, ibidem, pp. 407 a 410, mas também em muitas outras passagens. 93 Idem, ibidem, p. 598. 94 Idem, ibidem, p. 170 e 171. Grifos nossos.

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O principal efeito apontado por Freyre, resultante da eclosão destes processos, reside no esgarçamento das antigas ‘zonas de confraternização’, em um distanciamento, a um só tempo geográfico e social, do sobrado da cidade com relação aos mucambos, contrastando vivamente com a poderosa acomodação entre casa grande e senzala95. Este distanciamento não se verificou apenas entre ricos e pobres, mas inseriu-se também no que o autor denomina uma reuropeização do Brasil, com a tentativa por parte dos senhores, de imitar modelos ingleses, franceses, europeus em geral de cultura e a rejeição da herança africana e ameríndia. Mas se os antagonismos se acirravam, a ascensão social se franqueava a alguns elementos dos estratos inferiores, dado o leque de oportunidades que se abriu com a urbanização, com um quadro de profissões mais dilatado, com a crescente importância que adquire o comércio, etc. De especial interesse para a nossa discussão, torna-se a análise de Freyre sobre a ascensão social de alguns comerciantes no Rio de Janeiro, dada a incorporação da lógica patriarcal dos domínios rurais: “A verdade, porém, é que muito caixeiro, no próprio sobrado do armazém ou da loja do comerciante, achou namorada e espôsa; e esta, a filha ou a sobrinha ou a afilhada – sociològicamente filha – do patrão rico. O sistema comercial brasileiro tornou-se uma como expressão urbana do sistema agrário, isto é, foi também, a seu modo, patriarcal e até endogâmico, com os nomes das firmas fazendo as vêzes dos antigos nomes de fazenda ou de engenho – Suaçuna ou Cedro, por exemplo – que absorviam os nomes de famílias, mesmo ilustres, como Cavalcanti, Holanda, Marques, Carneiro Leão. Silvas passaram a ser Ferreiras, por honra de firmas comerciais mais importantes que o nome de família de cada um”96. O autor demonstra que na verdade, assim que os comerciantes galgavam os degraus mais altos na escalada social, buscavam incorporar os valores dos estratos rurais até então dominantes, perseguindo formas de enobrecimento que atestassem sua nova posição, seja com títulos da guarda nacional, de coronéis, majores, ou com títulos de condes, barões, concedidos pelo monarca, seja pela adoção de hábitos e comportamentos próprios ao patriarcalismo: “Mais do que isso: ao comprador ofereciam-se doces e vinhos como nas casas patriarcais aos viajantes e até aos caixeiros-viajantes, aos quais também os senhores de engenho mais patriarcalmente generosos mandavam à noite negrinhas ou mulatas que

95 Cf. Idem. Sobrados..., 1968, pp. xx a xxii, prefácio à primeira edição, mas também em muitas outras passagens. 96 Idem, ibidem, p. 277, cf. também idem, ibidem, pp. 265 a 281.

167 lhes fizessem companhia e lhes aquietassem a fome sexual de comerciantes solteiros – ou mesmo casados – em viagem pelos campos”97. Mas a maior similitude em relação ao que Freyre denomina de ‘antiga nobreza rural’ reside na adoção de uma estrutura familiar propriamente patriarcal, em que genros, afilhados, os filhos propriamente, empregados, se incorporavam e se submetiam ao arbítrio do chefe. Ora, mas não apenas os comerciantes valiam-se deste expediente para alcançar a aceitação dos estratos superiores. Principalmente durante o século XIX, o Brasil assiste a ascensão social dos bacharéis, dos doutores, algumas vezes não provindos de famílias tradicionais ou mesmo de famílias ricas. Gilberto Freyre assim define a situação desses arrivistas: “A ascensão social do bacharel pobre que, abandonado aos próprios recursos, não podia ostentar senão croisés ruços e fatos sovados, ou, então, sujeitar-se a indiscrições de alfaites pelos apedidos dos jornais; que não dispunha de protetores políticos para chegar à Câmara nem subir à diplomacia; que estudara ou se formara, às vezes, pelo casamento com môça rica ou de família poderosa(...)Em mais de um caso de bacharel casado em família rica ou poderosa – sobretudo família poderosa, de engenho ou de fazenda - êle é que se tornou o nervo político da família”98. Portanto, a elevação desses bacharéis – muitos dos quais mulatos – aos estratos mais altos da sociedade pressupunha sua integração na família patriarcal, ou, como o autor em geral as classifica quando já penetradas pelos processos sociais em curso, quando já encasteladas em seus sobrados urbanos, nas famílias semipatriarcais. Ora, mas a sociedade brasileira do século XIX, para o autor, não se resume em um distanciamento social de seus extremos, pois se a ação deste não fosse contrabalançada de alguma forma não se abririam estas possibilidades de ascensão social. Embora corroídas as antigas zonas de confraternização que Freyre apontou em seu Casa Grande & Senzala, surgem momentos de confraternização: a procissão, a festa de igreja, o entrudo, o carnaval99. Mas mais fundamental, o aparecimento de agentes plásticos o bastante – forma como o autor gosta de defini-los – para proceder a uma integração das culturas em pugna, dentre os quais se destacou o mulato, portador tanto da herança africana quanto dos valores senhoriais; elemento que por sua própria posição social predispôs-se à

97 Idem, ibidem, p. 277. 98 Idem, ibidem, tomo II, pp. 583 e 584. 99 Idem, ibidem, tomo I, p. xxii, prefácio à 1ª edição.

168 arte da transigência, segundo Freyre100. O autor esboça uma conclusão neste trecho: “Integração, amadurecimento e desintegração (do patriarcalismo) que não se verificaram nunca, independentemente de outro processo igualmente caraterístico da formação brasileira: o amalgamento de raças e culturas, principal dissolvente de quanto houve de rígido nos limites impostos pelo sistema mais ou menos feudal de relações entre os homens às situações não tanto de raça como de classe, de grupos e indivíduos”101. Freyre considera estes aspectos da sociedade brasileira como ‘democráticos’ em certo sentido, de uma ‘democracia social’ e não política, e talvez superior a esta última. Em Ordem e Progresso destaca a intensificação do processo de urbanização e de adoção de valores que o autor denomina urbano-industriais em prejuízo dos agrário-rurais. Tais processos resultaram no declínio definitivo, enquanto instituição dominante da sociedade brasileira, do patriarcado102. Entretanto este declínio do patriarcalismo, ou da família patriarcal, não se operou no sentido de uma negação por inteiro do passado: “Pois a preponderância das constantes de formas sobre o transitório das substâncias nacionais parece afirmar-se de maneira nítida, em conseqüência de sondagens em que o aspecto social do passado seja surpreendido através do pessoal; e recìprocamente, o pessoal, através do social”103. De fato, Gilberto Freyre contrapõe sempre a forma da sociedade brasileira, que o autor chama de patriarcal, praticamente imutável, inscrita na longa duração, ao conteúdo ou substância dessa mesma sociedade, esta sim variando no tempo e no espaço, na verdade, correspondendo à substância meramente (para Freyre) aos aspectos históricos ou cronológicos dessa forma104, tais como o tipo de governo (monarquia, república), os modos de vida (urbano, rural), as crenças, a moda (genuinamente nacional ou estrangeirada), enfim, todo o conjunto do que em um sentido amplo chamar-se-ia cultura. Mas a que forma Freyre se refere? Curioso que da análise em profundidade que Freyre desenvolve sobre a família em Casa Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos se desloque, em Ordem e Progresso, para um estudo (mas não apenas) sobre os impactos da atuação das instituições criadas pelo novo regime de governo instaurado com o 15 de novembro de 1889 sobre a sociedade

100 Cf. Idem, ibidem, tomo II, pp. 644 a 647. 101 Idem, ibidem, tomo II, p. 354. 102 Cf. Idem. Ordem..., 1962, tomo I, p. cxciii, tentativa de síntese. 103 Idem, ibidem, p.xliv, tomo I, nota metodológica.

169 brasileira. O autor assinala vários pontos em que a República estabeleceu uma continuidade e não uma ruptura com a Monarquia, mostrando uma estreita conexão do brasileiro, mais do que outros povos segundo Freyre, com seu próprio passado. Nas palavras do autor: “Os Positivistas brasileiros, adeptos dêsses movimentos por êles quase mística ou religiosamente considerados progressivos, souberam, aliás, reconhecer em José Bonifácio a figura máxima de político-sociólogo produzida pela América Portuguêsa; e a mais capaz de inspirar aos brasileiros do século XX desejos de progresso – inclusive de progresso democrático – que se conciliassem com as tradições luso-americanas de autoridade política e de segurança social. Estas, manifestadas desde a era colonial num sistema de proteção dos pobres pelos ricos que os Católicos brasileiros da época da República souberam, nas cidades, conservar do Império, dando-lhe apenas novos aspectos – o sistema das Misericórdias, das Ordens Terceiras, das Irmandades. Aquelas (tradições luso- americanas), fixadas principalmente na tradição de ‘poder pessoal’ ou de ‘poder moderador’ do monarca constitucional que a República soube igualmente conservar em teoria, sob a forma presidencialista copiada do modelo anglo-americano: e desenvolver na prática, às vêzes exagerando-a em caciquismo. (...) No que se deve reconhecer a continuação, na República, de estilos monárquico-patriarcais nas relações entre dirigentes e dirigidos. Foram estilos depurados de suas sobrevivências mais grosseiras da época mais cruamente patriarcal do País – que foi a dos grandes senhores de terra – pela existência, no Brasil-Império, de uma aristocracia que faltou às Repúblicas da América Espanhola: tanto às bolivarianas como às do Sul do continente”105. Percebe-se que Freyre distingue muito claramente entre o real teor da República brasileira e as hispano-americanas, não tão apegadas a um ideal de ordem tal como se forjou no Brasil. A aristocracia à qual se refere compreende exatamente os senhores patriarcais responsáveis pela manutenção das tradições que denomina de ‘luso-americanas’ de autoridade política e segurança social, que se casam muito bem com o lema republicano ‘ordem e progresso’. O que o autor parece sugerir é a transferência, com o declínio da família patriarcal, para a órbita do Estado, da função de equilibrar os antagonismos sociais. Em outra passagem esta transferência, que na verdade já vinha se operando durante a

104 Idem, ibidem, p.xxiv, tomo I, nota metodológica. 105 Idem, ibidem, p. 625, tomo II. Grifos nossos.

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Monarquia, torna-se mais clara: “Pois o ballet político que então se dançou no Brasil foi sobretudo um ballet em que se destacaram por seus passos, seus avanços, seus recuos, suas contemporizações, suas transigências, o paternalismo da Coroa e o paternalismo das casas-grandes. Este, com a Abolição, perdeu o seu nervo principal; aquêle, desaparecido o Império, tornou-se apenas um fantasma político. Sociològicamente, porém – isto é, como formas – tanto um como o outro paternalismo sobreviveram na República de 89: no Presidente da República, que teve de conformar-se em continuar sob vários aspectos a ser o que o Imperador fôra durante a Monarquia; no Exército Nacional, que passou a desempenhar funções supra-partidárias e superiormente nacionais de conciliador e pacificador dos brasileiros divididos por ódios de partido ou antagonismos de interêsses subnacionais; nos chamados ‘coronéis’ cujas mãos de chefes mais que políticos do interior reuniram parte considerável da herança dos antigos barões do Império: alguns quase feudais em seu modo de ser patriarcas. Mas patriarcas por vêzes aristocrática e republicanamente desdenhosos do poder imperial”106. As formas patriarcais de sociabilidade, baseadas ao mesmo tempo na autoridade e no paternalismo, na dependência pessoal dos mais fracos para com os mais fortes que muitas vezes se desdobra em relações de favor, sobreviveram no regime republicano. A construção de uma cultura ou uma linguagem comum entre senhor e escravo durante o período colonial, que impediu que estes dois extremos sofressem uma clivagem definitiva, antes permitindo ao escravo transigir e mesmo ‘melhorar’ sua posição social no complexo casa-grande/senzala ao se situar mais próximo do senhor, transmitiu suas tradições fundamentais de autoridade e segurança social ao Brasil republicano, na forma que assumiram as relações entre dirigentes e dirigidos. A isso Freyre chamou de ‘democracia social’. Este tipo de sociedade, devido à sua conformação, segundo o autor, franqueou como nenhuma outra a ascensão social aos seus estratos inferiores. E esta forma que assumiu a sociedade brasileira, atingiu todas as suas regiões indistintamente, já que em todas elas sentiu-se a presença do escravo e da monocultura. Mesmo São Paulo, que durante o período colonial não experimentou a influência de nenhum destes dois elementos da maneira como ocorria nas províncias do norte, com a expansão da lavoura cafeeira no século XIX passa a importar não apenas escravos daquelas

106 Idem, ibidem, pp. 299-300, tomo I. Grifos no original.

171 regiões, mas também membros das famílias chamadas por Freyre de aristocráticas, que se integraram nas famílias paulistas, fazendo reproduzir os estilos de vida que no antigo norte açucareiro já haviam se arraigado107. O autor destaca mesmo a mobilidade social, que tal como no exemplo acima, podia ser de ordem geográfica; ou ainda de mulatos que se integravam à sociedade ‘branca’; de elementos das áreas rurais para as cidades; de comerciantes que adotavam estilos de vida patriarcais. Mas o autor também demonstra que sempre que se dá a ascensão social o inferior busca incorporar os valores do superior tal como os mulatos que buscavam com títulos de doutor ou outros se ‘branquear’; ou os comerciantes que buscavam viver como grandes proprietários rurais; o doutor que adotava hábitos europeizados para parecer mais ‘civilizado’, etc. Podiam adotar estas ‘substâncias’ ou ‘conteúdos’ sociais porque a mesma forma de sociabilidade predominava em todas as regiões do Brasil e da mesma maneira que o senhor e o escravo em suas relações construíram uma mesma cultura, uma cultura comum, estas regiões e estes estratos sociais possuíam esta mesma forma de sociabilidade que permitiu sua intercomunicação. Mas destaquemos que esta implicava em relações de dependência pessoal – geralmente desdobradas em paternalismo – e em reconhecimento da autoridade de um determinado senhor. Em traços gerais e numa síntese bastante incompleta, é este o argumento central da ‘Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil’, no qual desprezamos alguns aspectos da discussão de Freyre que atualmente já se encontram ultrapassados (como o debate sobre o papel da raça, naquela época considerada categoria explicativa, e da cultura na conformação das sociedades). Evidentemente, existem interpretações divergentes acerca da obra freyriana, mas em geral, tende-se a ressaltar o papel das relações personalistas na formação do Brasil segundo Freyre as delineia. Especialmente desafiadora se mostra a leitura de Jessé Souza108, cujo objetivo residiu em resgatar uma interpretação latente nas obras de Freyre (utiliza principalmente os dois primeiros livros da Introdução a história da sociedade patriarcal do Brasil) talvez desconhecida do próprio Freyre, como o autor aponta. Centra seus esforços analíticos principalmente no estudo dos mecanismos de ascensão social descritos pelo autor de Casa

107 Idem, ibidem, pp. 390 e 391, tomo II. 108 Jessé Souza. A Atualidade de Gilberto Freyre. In: Ethel Volfzon Kominsky, Claude Lépine, Fernanda Arêas Peixoto. Op. cit.

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Grande & Senzala e chega à conclusão de que o personalismo, após a desintegração da família patriarcal, não desempenhou qualquer papel de destaque para os sujeitos que almejavam sua própria ascensão social. A constituição de um Estado nacional e a generalização de relações mediadas pelo mercado implicou na crescente importância de elementos com um saber técnico que lhes conferia vantagens em relação aos demais, resultando na ascensão do mulato e do bacharel. Entretanto, nem por isso este processo deixou de ser restrito, na medida em que “Aqui a ascensão social não se deu, como na Europa, coletivamente”109, mas tal qual nas relações de senhor e escravo, em que este ‘melhoraria’ sua posição se adotasse os valores do senhor, os estratos inferiores também ascenderiam socialmente na medida em que incorporassem os valores da camada dominante, gerando um processo de cidadania regulada em que consistiria na seletividade dos elementos que ascendem conforme sua posição no esforço de modernização tendo como suporte o Estado ou “no fato de que algumas funções ou profissões são tidas como mais importantes do que outras para o esforço societário de modernização, invertendo a tendência equalizante que foi predominante nos países centrais do Ocidente, pondo a nu, dessa forma, uma sobrevivência histórica de longa duração”110. Ressalta ainda, em uma nota de rodapé, que mesmo em um país modelar da modernização ocidental, como os Estados Unidos, houve certa seletividade, a especificidade brasileira residindo apenas no grau desta111. Conseqüência fundamental de sua argumentação consiste na constatação de que a modernização brasileira não se realizou apenas na epiderme, – como se afirma quando se admite a forte presença do personalismo no Brasil – mas de uma modernização efetiva, pela importação dos valores, instituições e mercadorias da Europa, ainda que, considerados no Brasil como valores absolutos, isentos à crítica, não permitiram aos brasileiros construírem sua própria versão de modernidade e relegaram, àqueles que não incorporaram estes valores (adotados e introduzidos irrestritamente pelas camadas dominantes), aos degraus mais baixos da sociedade. O autor, na verdade, busca uma harmonização entre valores e seu ambiente institucional (dentre as principais instituições introduzidas no Brasil durante o período monárquico aponta o mercado e o Estado), posto que (conforme assevera) sem a institucionalização de valores

109 Idem, ibidem, p. 77. 110 Idem, ibidem, p. 78. 111 Idem, ibidem, p. 80, nota 20.

173 eles se tornam incapazes de se reproduzir, considerando a idéia de um personalismo que dominaria as relações interpessoais brasileiras, portanto, de um extremo idealismo dos valores em relação a seu ambiente institucional. Conclui que o resgate dos estratos mais baixos da população, vítimas, no Brasil, de uma persistente e profunda desigualdade social, dependeria não apenas de uma equalização econômica, mas também, entendida num sentido amplo, cultural112. Mas como tratar estas questões na forma como Freyre as delineou? Primeiro devemos entender que Freyre busca legitimar o que tem diante dos olhos, e que portanto suas considerações sobre a sociedade brasileira inclinam-se a destacar o surgimento do que denomina uma ‘democracia social’, para ele superior à democracia política, posto que aquela consegue incorporar os estratos inferiores paternalisticamente, favorecendo antes a união que a divisão da sociedade e por isso mesmo ele carrega nas cores de uma mobilidade social que por certo não se operou com a facilidade e abrangência que lhe atribuiu. Entretanto não poderíamos considerar este paternalismo, estas relações de dependência de inferiores para com superiores, como uma forma de dominação que estiola o surgimento de uma certa consciência política naqueles primeiros, que passam a preferir a incorporação pela via do favorecimento oferecido pelos estratos superiores que o enfrentamento direto com estes? Dessa forma, não vislumbraríamos o personalismo enquanto uma forma de relações que atua apenas no processo de ascensão social (como Jessé o faz), mas também no processo de dominação, posto que se recusarmos completamente a atuação daquele, torna-se muito difícil explicar várias diferenças entre a sociedade brasileira e os países centrais para o capitalismo onde ocorreu originalmente o processo de modernização (assunto no qual não nos aprofundaremos), como por exemplo, a posição diversa ocupada pelo negro na sociedade norte-americana e brasileira. Ademais, o próprio Jessé admite que este processo de modernização se operou de forma lenta, com marchas e contramarchas e ocorreu primeiro nas grandes cidades. Maria Sylvia de Carvalho Franco parece endossar o argumento de que o paternalismo das elites constituiu um instrumento de dominação na medida em que qualifica as relações entre senhor e escravo como uma complexa síntese de benignidade e extrema violência, notando, tal como Gilberto Freyre, a melhor posição dos escravos

112 Cf. idem, ibidem, pp. 73 a 81.

174 domésticos, mais próximos do senhor, em relação aos demais. Entretanto, assevera que “...implícitos no curso dessas relações se encontram a compulsão e a violência em síntese com seus contrários, isto é, a quebra do rigor e a mercê. Basta lembrar que a mucama estava tão sujeita ao suplício, legitimado por seu caráter de coisa, quanto o último dos trabalhadores do eito poderia escapar a ele, desde que conseguisse apadrinhamento, instituição totalmente tecida em considerações pessoais”113. Mas este conjunto de relações não se restringia aos contatos entre senhor e escravo, avançava – como convinha a uma sociedade patriarcal, que tende a integrar, incorporar sob sua tutela – ao próprio universo dos homens livres. A autora descreve, para a região que estudou (Vale do Paraíba paulista) a dependência de várias categorias de homens livres ao fazendeiro. Particularmente esclarecedora é a posição do sitiante, que apesar da propriedade da terra não era um homem rico, o que o colocava em situação de dependência econômica com os maiores proprietários, conforme relato de um fazendeiro de Rezende nascido em 1870 que a autora colheu: “Se os sitiantes da redondeza estavam em dificuldades ou queriam comprar um pedaço de terra, emprestavam dinheiro de meu pai; em compensação, esta gente sempre o acompanhava, eram seus eleitores os seus cabos, pois ele era o chefe conservador da zona”114. Não raro estes laços de proteção e favor desembocavam na instituição do compadrio, que pressupunha o patrocínio do superior (padrinho) e a submissão do inferior (afilhado) e para além da discussão empreendida por Maria Sylvia de Carvalho Franco, não poderíamos qualificá-lo como uma forma de extensão da parentela pelo senhor patriarcal? Ocorre também que esta dependência pessoal enviesou a percepção que estes homens dependentes possuíam da política, na medida em que confundiram o Estado com as pessoas à frente deste; já que seu cotidiano se assentava em laços pessoais, tendiam a perceber todas as relações enquanto relações desta mesma natureza. Por isso quando a autora demonstra que a independência política do Brasil consumada em 1822 não apresentou maior significado para os homens comuns, atribui este fato ao predomínio, nestes, de uma compreensão do mundo pela via das relações pessoais, de tal modo que entendiam a independência não como uma mudança de instituições, mas como uma substituição de

113 Maria Sylvia de Carvalho Franco. Op. cit., p. 197. 114 Idem, ibidem, p. 86.

175 pessoas115. Mas qual o papel da família nestes laços de dependência? Em parte Gilberto Freyre elaborou uma resposta na medida em que defende que na família patriarcal se forjou a forma de sociabilidade primordial do brasileiro. O período que tratamos coincide exatamente com aquele em que Freyre situa o declínio da família patriarcal, ou seja, durante a República Velha, ainda que as formas patriarcais, segundo Freyre, persistam em um misto de autoridade e paternalismo em várias relações, que podemos surpreender em algumas localidades do interior paulista (inclusive Franca) e mesmo em cidades mais desenvolvidas. Trabalho escrito com o intuito de glorificar os antepassados, mas que nos fornece diversas pistas acerca da atuação da elite local durante o período que tratamos, e mais ainda sobre a memória construída por esta mesma elite sobre seu próprio passado, a monografia de Hygino Jacintho Caleiro parece corroborar a argumentação que viemos construindo até aqui: “...o velho Hygino acolheu sempre, com um carinho todo especial, vários negros ou mulatos em tôrno do seu lar, dos seus familiares. Foi o caso de Antônio Martins – ‘o prêto do Hygino’, como era melhor conhecido – que após os serviços na organização do velho Hygino, ia fazer, religiosamente, suas refeições na então casa-grande da praça D. Pedro II (...) outro serviçal, o José Rocha, era um mulato de reais méritos, possuía uma força descomunal e era da maior confiança. Quando mais velho, passou a beber de modo exagerado. Mesmo assim, jamais foi alijado do seu pôsto, sendo até assistido com amplos cuidados médicos e hospitalares (...) A tatá (Antonieta Penha) a governante de confiança do ‘velho solar de Hygino’ da Praça, cujo sangue mesclado era visível, cerrou seus olhos há um ano atrás, na casa que lhe foi dada pela sua patroa, a bondosa D. Sinhá (Ana Eusébia) (...) Na atividade comercial do sr. Hygino, outras não eram suas diretrizes, pois até altos funcionários, traziam em suas veias sangue cruzado”116. Percebemos, neste trecho, que apesar de estes negros e mulatos na verdade prestarem serviços à família Caleiro, tal situação era interpretada quase que como

115 Cf. idem, ibidem, pp. 85 a 89. 116 Hygino Jachinto Caleiro. Op. cit., pp. 24 e 25.

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‘caridade’ por parte dos senhores da ‘casa-grande da praça D. Pedro II’. E de fato, é bem provável que após a extinção do cativeiro estes negros livres e pobres, tendo que concorrer com a mão-de-obra imigrante que chegava ao Brasil em grupos familiares, portanto com muitos braços para fornecer à lavoura, se encontrassem em uma situação de marginalização social que propiciou a cristalização desta situação de dependência. Note-se que a alcunha ‘prêto do Hygino’ – para a qual não devemos suspeitar de uma exageração porventura criada pela memória construída pelos Caleiros em torno de senhores bondosos e dependentes passivos, já que sua menção pressupunha seu uso de forma generalizada – indica um ainda persistente sentimento de posse em relação aos negros livres não só por parte de Hygino de Oliveira Caleiro como de toda a sociedade da época, que a abolição não conseguiu apagar. Mas o fundamental aqui é a acomodação, por parte dos inferiores, a este tipo de paternalismo, ao invés da reivindicação, pelo conjunto dos ex-escravos, de melhores oportunidades naquela sociedade, dado que tanto por dominadores quanto por dominados em geral, aquela não era percebida a partir do conflito, mas a partir de sua harmonização e mais ainda a partir das relações pessoais que travavam o surgimento de qualquer sentido de coletividade que porventura pudesse ancorar alguma atuação política. A integração destes estratos inferiores por certo também não gerou prejuízos de ordem pecuniária para os Caleiros, mesmo no caso da governanta presenteada com uma casa, na medida em que o caráter de favor que revestia as relações entre empregados e empregadores certamente colaborou para o achatamento das remunerações daqueles e neste ponto percebemos mais um efeito deletério da dominação pessoal117. Outro exemplo, talvez menos pacífico e não tão perfeito de equilíbrio de antagonismos, nos é dado pela atuação do negro Quintino de Lacerda em Santos, a segunda cidade mais importante do complexo cafeeiro paulista. Quintino de Lacerda liderava um quilombo (chamado de Jabaquara) que se formou no morro de Mont Serrat e se uniu à elite

117 Não pretendemos afirmar, neste trecho, que a atuação dos ex-escravos e de outros dependentes de forma coletiva e em moldes “democráticos” fosse uma possibilidade inscrita nas relações daquela sociedade, porque não era. Isto foi apenas um artifício que utilizamos para melhor argumentarmos. Por outro lado também não queremos sugerir que os Caleiros, maquiavelicamente, tratassem bem seus empregados para achatarem seus salários, que de resto, são definidos pelo próprio mercado. Os membros da família Caleiro provavelmente se consideravam sim caridosos e possivelmente eram melhores patrões que a média da época. O que queremos demonstrar aqui é o papel do favor, da mercê, do personalismo que envolvia aquelas relações, na

177 local na luta pela abolição, vindo inclusive a ocupar um cargo na vereança santista em 1895. Quintino teceu uma espécie de aliança com a elite da cidade onde desempenhou um papel de mediador entre estas e os trabalhadores negros, de forma a não raro utilizá-los para cumprir o desiderato desta mesma elite, como no caso de uma greve de trabalhadores (em sua maioria espanhóis e portugueses) do porto de Santos reprimida pelos comandados de Quintino. Entretanto, este papel de mediador, que denota em Quintino o que Freyre denominaria ‘plasticidade’, que assegurava o equilíbrio de antagonismos, não reverteu em melhorias das condições de vida dos ex-libertos que se estabeleceram no morro, tanto que em nenhum momento, durante sua ocupação por aqueles (e por outros elementos populares) recebeu qualquer melhoria de infra-estrutura urbana, demonstrando que a verdadeira função que as elites delegaram a Quintino consistia em manter esta população na posição subordinada em que sempre esteve. Entretanto, bastou que as regiões ocupadas pelo antigo quilombo, até então utilizadas por sitiantes, com a crescente urbanização da cidade, ganhassem algum valor mercantil para que uma série de interessados na propriedade daquelas terras entrassem em conflito arrastando consigo os moradores do morro (incluindo Quintino) que perdendo sua utilidade para a elite santista passaram a ser vistos como um obstáculo aos seus negócios118. Este exemplo demonstra que uma certa tendência à transigência, à contemporização, à dominação pessoal, de fato persistia, mas passava a depender também das condições de valorização do capital. Mas estas relações de dependência não se restringiram aos libertos, atingiam também os homens brancos e mulatos (alguns ‘branqueados’) pobres que já nasceram livres. Em uma notícia do jornal ‘O Francano’ publicada no mês de agosto de 1888, intitulada ‘Pobres fazendeiros’, por ocasião de uma epidemia de varíola que acometeu a cidade de Franca, com um núcleo urbano, assim como a lavoura de café, ainda não consolidado por esta época, percebemos a extensão destes laços de dependência: “Causa-nos pena o estado em que se acham as fazendas na circumvisinhança d’esta cidade. O terror à varíola (daquella moda) fez com que parte do povo procurasse os fazendeiros: uns compadres; outros,

conformação da estratificação social, tal como Maria Sylvia de Carvalho Franco aponta o papel da mercê na relação senhor-escravo. 118 Ana Lúcia Duarte. Uma Cidade na Transição: Santos; 1870-1913. São Paulo-Santos: Editora Hucitec- Prefeitura Municipal de Santos, pp. 193 a 215.

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primos; outros correligionarios, e assim vae-se acabando a farinha, o arroz (8$ à quarta), as pobres galinhas, o café, etc. (...) E’ uma medida economica que os ‘fugões’ arranjaram. Lá isso é! Pobres fazendeiros!”119. Note-se que apesar de os ‘hóspedes’ dos ‘pobres fazendeiros’, residirem no meio urbano, ainda mantinham fortes ligações com os proprietários do meio rural, a ponto de estes sentirem-se obrigados a abrigar, em suas fazendas, aqueles elementos que deixaram a cidade em razão da epidemia de varíola. Entretanto, pelo teor da notícia, percebemos uma certa disputa entre as considerações de lucro e aquelas atinentes aos deveres lastreados nas relações de dependência, indicando que a progressiva mercantilização de todos os setores da vida começava a impor alguns condicionantes à plena efetivação daquelas. Mas isto significaria que as duas lógicas necessariamente se opunham? É difícil responder a esta questão apenas com testemunhos esparsos, mas há também indícios no sentido contrário, como uma apreciação, de Hygino Jachinto Caleiro, acerca da morte de seu avô, conforme transcrevemos a seguir: “...aos quatro cantos se ouvia: ‘Minha fazenda com todos os seus alqueires, foi inteiramente preservada graças ao apôio do Hygino...’ ‘Meus filhos estão formados hoje, em razão da ajuda do sr. Hygino’ ‘Foi o financiamento de um ano que passou para o outro, porque a geada destruiu tudo. E foi o sr. Hygino que me sustentou durante este período’ ‘Foi aquele conselho do Hygino que salvou o que sobrava...’120. Observemos que, se verazes estes testemunhos, a renovação de um empréstimo – e aqui retornamos à discussão direta de nosso tema – era considerada praticamente como um favor, ainda que este tipo de percepção da situação encobrisse um aumento desmedido dos lucros auferidos pelo emprestador por meio de uma elevação na taxa de juros. Entretanto, estes testemunhos datariam do ano de 1937, período bastante avançado em relação ao que tratamos. Ademais, trata-se de uns poucos relatos que por si mesmos não indicam a generalidade deste tipo de relação. Mas o fato de entre os três maiores capitalistas do município segundo os registros, figurarem um padre (Padre Alonso) e um médico (Francisco da Silveira Gusmão) não atestaria, dada a importância destas profissões para a manutenção da família, que os credores, antes de qualquer coisa, deveriam possuir um elo de confiança prévio com os devedores, como uma garantia de que

119 Jornal O Francano, nº 10 de 26 de agosto de 1888, p. 2, MHMF. 120 Hygino Jachinto Caleiro. Op. cit., p. 16.

179 em caso de insolvência momentânea, as propriedades destes não seriam executadas, que o credor poderia abrir a possibilidade de renovação da dívida, permitindo sua reestruturação e seu efetivo pagamento? De fato já tratamos de alguns casos de renovação de dívidas em que o credor se beneficiou da sobrecarga de juros a que submeteu os destinatários dos empréstimos. Ademais, em uma situação em que apenas uma certa parcela dos empréstimos possuíam prazos adequados para a lavoura cafeeira, os fazendeiros deveriam recorrer a recursos que os facultassem contornar esta situação, tais como a renovação do crédito concedido, a tomada de empréstimos para cobrir dívidas anteriores de tal modo que estas, durante a maturação dos cafeeiros, atingiriam níveis bem superiores a seu volume inicial, etc. Afinal, como poderíamos entender que o produtor entregasse os frutos de seu cafezal na proporção de uma arroba por dez quilos? Somente pela concentração da atividade creditícia? Ou esta subordinação também refletiria uma situação de dependência pessoal? Na verdade, poderemos completar nossa argumentação a respeito da influência das relações de cunho personalista na atividade creditícia, apenas quando observarmos de maneira mais incisiva o crédito pela ótica de seus tomadores, no terceiro capítulo. Entretanto, estas hipóteses que levantamos de modo nenhum significam que os grandes mercadores de dinheiro não procedessem a execuções hipotecárias, conforme alguns exemplos que já elencamos. Mas estes casos se mostram raros, no segundo ofício há o registro de apenas três desses: em 1896 o Major Claudiano efetua uma dação em pagamento a Casa Comissária Soares & Cia. no valor de 16:000$000, mas o bem destinado a esta operação não é mencionado121. Em 1906 o Padre Alonso recebeu, como dação em pagamento, de Francisco Alves Veríssimo, propriedade rural denominada ‘Bebedorzinho’ com 13 alqueires de terras de campos e culturas, 4.000 pés de cafés formados, uma casa de morada em bom estado e outra velha, pastos cercados de arame, paiol e engenho de cana no valor de 3:000$000122. Entretanto, a dívida derivava de crédito tomado no ano anterior junto a outros credores, que transferiram a dívida para o Padre Alonso. Em outro registro de dívida, observamos o mesmo Padre Alonso aceitando como dação em pagamento, no ano de 1907, duas casas na cidade de Batataes, de Manoel Dias de Souza no valor de

121 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1896, nº 27, folha 57v, AHMF. 122 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1906, nº 50, folha 26, AHMF.

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1:000$000 para cobrir um empréstimo no valor de 4:500$000123. Segundo a escritura as casas se encontravam em ruínas. Mas o fundamental neste registro em particular é a constatação de que o crédito fora contraído originalmente em Batataes no ano de 1890, indicando que o credor rolara a dívida até o limite das possibilidades do devedor. Várias escrituras, por outro lado, demonstram a renovação de hipotecas, por vezes denominadas de reforma de hipoteca. Se nossas especulações correspondem, em alguma medida, à realidade da época, esta característica do crédito local se encaixa a um só tempo na lógica do favor e em uma necessidade de se adaptar a oferta de numerário às flutuações próprias da economia cafeeira, o que, por sua vez, explicaria também a concentração da atividade creditícia em umas poucas mãos, dado o montante de numerário que exigia. Mas se manifestamos algumas dúvidas na adaptação da lógica do favor a uma economia mais monetarizada, parece claro que esta não encontraria grandes obstáculos em assumir formas urbanas. Em um trabalho sobre o coronelismo na cidade de Rio Claro, Maria , em dado momento, relata o caso de uma família de lavradores europeus na qual apenas o pai sabia falar um pouco de português e que tendo este juntamente com a família saído de uma fazenda em Jaboticabal apenas conseguira emprego em Rio Claro, em uma metalúrgica, pela intervenção do Coronel Marcelo Schmidt124. Há muitos outros exemplos, mas acabamos por nos desviar do assunto central. Até aqui especulamos sobre as relações que porventura se desenvolveram entre os estratos superiores da sociedade e os inferiores, entre os dominados e os dominadores. Ora, na verdade buscávamos entender o porquê das associações nos negócios dependerem, em larga medida, de ligações familiares, muitas vezes consolidadas por laços matrimoniais, laços, portanto, tecidos no interior da elite local. Ora, observamos, pelo trabalho de Flávia Arlanch sobre Jaú, que a riqueza, progressivamente mais relacionada com riqueza monetária, se tornava um elemento importante para garantir a dominação (inclusive em nível político) de determinadas linhagens familiares. Também constatamos, a partir de uns poucos testemunhos, que a lógica do favor, da dominação pessoal, em um contexto de crescente monetarização da economia, deveria, para sobreviver, se adaptar às relações de

123 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1907, nº 57, folha 7v, AHMF.

181 mercado postas pelo avanço (inclusive geográfico) desta economia monetária. Este avanço por certo pressupõe um determinado grau de concorrência – mesmo em um nível superior das trocas – entre os vários agentes econômicos. Nada mais eficaz para se sobrepor a esta concorrência que a associação entre grandes somas de capital, mas para que o laço ganhasse durabilidade fez-se necessária uma instituição mais antiga que aquelas surgidas a partir da introdução de relações monetárias, como a família patriarcal ou semipatriarcal, do modo que Freyre gostava de chamá-la. A perenidade desta instituição, na medida em que se imiscuía nas relações políticas e nas relações mercantis, garantiu a reprodução dos valores patriarcais ou semipatriarcais. Se o contexto em que se davam estas alianças familiares era de progressiva desintegração do patriarcalismo (como aponta Freyre) é difícil afirmar, mas estas relações, no período que tratamos e na região que abordamos parecem bem vivas. Observemos no quadro abaixo as relações de parentesco entre vários elementos que desempenhavam a função de usurários locais, ou possuíam casas comissárias ou simplesmente se dedicavam ao comércio:

124 Cf. Maria Beatriz Bianchini Bilac. As Elites Políticas de Rio Claro: um estudo sobre a formação dos setores dirigentes em um município paulista. Campinas: IFCH-UNICAMP, 1995, tese de doutoramento, pp. 263 e 264.

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Quadro 1 – Ligações familiares entre capitalistas, comissários e comerciantes francanos

Coronel André Villela de Andrade Tomé Joaquim Villela⇒José Joaquim da Silva ⇑ (marido) (cunhado) (genro) Chrysógono de Castro Dona Rita Augusta de Andrade ⇑ André Martins de Andrade ⇑ (Marido) ⇑ (filha) ⇑ ⇑ (filho) Candida Ferreira da Costa ⇐Coronel Francisco Martins Ferreira Costa⇒Azarias Martins Ferreira (irmã?) (pai) (Pai) ⇑ (Filho) ⇑ Anna Eusebia Caleiro Julieta de Andrade Caleiro (esposa) Benevides Barbosa Sandoval ⇑ (esposa) ⇑ ⇑ (Marido) Major Torquato Caleiro Hygino de Oliveira Caleiro ⇒ Emília Caleiro (filho) ⇑ ⇑ (filho) (Filha) Josina de Oliveira Guerner⇒Coronel Simão de Oliveira Caleiro⇒Almerinda Caleiro Guimarães ⇑ (esposa) (Pai) ⇓ (filha) ⇓ Coronel José Guerner de Almeida ⇐Ernestina Guerner Sandoval ⇓ (pai) ⇓ (neta) João de lima Guimarães (ilegível) Sandoval (marido) (marido) ⇓ Maria Pia ⇐ Álvaro de Lima Guimarães (neta) (avô) ⇓ Francisco da Silveira Gusmão (Marido)

Fonte: Diversos inventários e Hygino Jachinto Caleiro, op. cit., pp. 14 e 15. * O grau de parentesco, indicado entre parênteses, refere-se sempre ao elemento apontado pela flecha em relação ao elemento de onde ela parte. Destacamos em azul aqueles que atuaram como sócios de casas comissárias, como usurários ou comerciantes locais. Em vermelho estão os fundadores de cada bloco familiar, os grandes patriarcas.

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De todos no quadro, não possuímos informações mais precisas acerca de Chrysógono de Castro e mesmo que se verificasse algum grau de parentesco com o Coronel Francisco Martins Ferreira Costa parece não haver se associado nos negócios com este último. No caso de Álvaro de Lima Guimarães, cabe assinalar que seu neto, João de Lima Guimarães, não parece haver se destacado como comerciante e fazendeiro e não estabeleceu maiores ligações com o clã dos Caleiros, o que nos sugere que a hierarquia familiar e mesmo a consolidação dos laços entre os vários blocos de família dependiam, em larga medida, das gestões de cada um de seus integrantes, notadamente dos genros, e em um período de acelerada mercantilização, a capacidade de enriquecimento demonstrada por cada um deles certamente contaria e muito para a definição da posição ocupada no interior da parentela. Por isso, os Lima Guimarães acabaram por formar um grupo à parte, chefiado por Álvaro de Lima Guimarães, que se por um lado se encarregava pelo financiamento das atividades de seus vários descendentes, por outro valorizava a capacidade de enriquecimento como critério de obtenção de status no interior do grupo familiar, tanto que, como já observamos, no ano de 1900 Francisco da Silveira Gusmão recebeu a segunda maior quantia em empréstimos concedidos por Álvaro de Lima Guimarães. De fato, sua condição de médico e sua capacidade nos negócios possivelmente favoreceram o estabelecimento de laços matrimoniais com Maria Pia ou mesmo em uma certa ascensão de seu status no interior do grupo familiar. Quanto aos Villela, sabemos de um certo parentesco entre Tomé Joaquim Villela (sobre o qual não encontramos maiores informações) com o Coronel André Villela de Andrade, dado que a esposa do Coronel Francisco Martins Ferreira Costa, irmã de Tomé Villela, se chamava Emerenciana Villela de Andrade125. Não conhecemos praticamente nada sobre as atividades econômicas de Tomé Villela, mas sabemos que o Coronel André Villela de Andrade foi um importante fazendeiro no município, já que em 1929, ano de seu inventário, no qual não constavam dívidas ativas, apenas seus bens imóveis, compostos quase que em sua totalidade por propriedades rurais, totalizavam 966:400$000126 (claro que se torna muito difícil comparar este patrimônio com os demais que já apresentamos neste trabalho, levando-

125 Inventário de Emerenciana Villela de Andrade. Caixa 106 do Tabelionato de 1º ofício de Franca, 1940, volume 2038-B, AHMF.

184 se em conta principalmente a desvalorização da moeda). Um empréstimo efetuado por André Martins & Andrade Villela em 1910 no valor de 16:000$000 em um registro onde foram qualificandos como lavradores127 e outro em 1911 no valor de 4:000$000 onde também os reputavam como lavradores128, indica que as associações de teor econômico entre os Villela e os Martins Ferreira, ou simplesmente Martins, com a provável exceção de José Joaquim da Silva, referiam-se a empreendimentos agrícolas. Quanto às associações familiares dos Caleiros, pode-se afirmar que ao menos aparentemente a firmada com Benevides Barbosa Sandoval a exemplo do já citado João de Lima Guimarães, não rendeu tantos frutos do ponto de vista econômico. Sabemos pouco acerca de Benevides Barbosa Sandoval. Em um registro de empréstimo que efetuara em 1903, no valor de 200$000, era qualificado como comerciante129. No almanaque de Franca para o ano de 1902 encontramos, entre os comerciantes que negociavam fazendas e armarinhos, uma companhia denominada Benevides Barbosa & Cia130. De qualquer forma, ao menos após haver abandonado a sociedade com Hygino Caleiro (à qual já aludimos) não parece haver ganhado grande destaque na atividade comercial. Já sobre o Coronel José Guerner de Almeida, encontramos uma escritura de dívida para o ano de 1908, no valor de 650$000, referente a um crédito aberto por ele devido à compra de mercadorias em sua casa comercial. Neste documento é atribuída a Guerner a ocupação de negociante131. Mas como devedor Guerner surge em três escrituras de dívida: uma do ano de 1902 em que se lhe atribui a ocupação de negociante e industrial, na qual obtém como empréstimo de Francisco da Silveira Gusmão a quantia de 23:000$000 com garantia de uma casa de máquinas de beneficiar café e arroz; outra no ano de 1903 em crédito concedido por Romano & Irmãos, comissários em Santos, no valor de 50:000$000 com garantia de três quartas partes de máquina de beneficiar café localizada na rua General Ozório em Franca, não constando ocupação do devedor; por fim, uma dívida firmada com Fernando Peixe no valor de

126 Cf. Inventário de André Villela de Andrade. Caixa 5 do Tabelionato de 1º ofício de Franca, 1929, volume 64, AHMF. 127 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1910, nº 64, folha 70 a 72v, AHMF. 128 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1910, nº 65, folha 86 a 87, AHMF. 129 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1903, nº 42, folha 17v, AHMF. 130 Cf. Missemo Melo Franco. Op. cit., apud Pedro Geraldo Tosi. Op. cit., p. 282. 131 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1908, nº 57, folha 101v, AHMF.

185

16:000$000 com garantia de uma fazenda132. Lembremos também que José Guerner, juntamente com Olímpio José da Silva, solicitaram no ano de 1899 um empréstimo ao Banco de Crédito Real de São Paulo, que José Guerner possuía, em 1901, cerca de 30.000 cafeeiros e continuou produzindo café na década de 1910, conforme mostramos no primeiro capítulo. Apesar de este personagem não ter se envolvido no empréstimo de dinheiro a juros, dedicava-se a atividades variadas (comércio, fazendas de café, beneficiamento) e de certa monta (como nos indicam os empréstimos), de tal forma que, embora não explícito nos documentos, sua atuação possivelmente favoreceu a acumulação de capital pelo clã dos Caleiros, embora a busca de empréstimos em outras fontes sugira que a obtenção de crédito junto a este grupo familiar não se operasse com tanta facilidade. Entretanto, as ligações familiares mais importantes, no que tange ao montante de capitais envolvidos, se forjaram entre o grupo do Coronel Simão de Oliveira Caleiro e do Coronel Francisco Martins Ferreira Costa. A atuação conjunta nos negócios certamente resultou em benefícios para ambos, tanto que após o plano de valorização Torquato Caleiro instala casa comissária em Santos e André Martins de Andrade e Azarias Martins Ferreira, em sociedade com Olívio Alves Ferreira e José Joaquim da Silva, integrado aos Villela, seguem o exemplo. José Joaquim da Silva possivelmente empreendeu estes negócios com recursos próprios, mas para que se efetivasse a sociedade necessitou se integrar a um grupo familiar tradicional e poderoso. Difícil afirmar se a criação da Silva Ferreira & Cia. representou um afastamento dos filhos do Coronel Francisco Martins Ferreira Costa em relação aos Caleiro e uma aproximação com os Villela, mas de qualquer forma pretendemos demonstrar que se em uma economia progressivamente monetarizada as associações de cunho econômico dependiam em larga medida das ligações familiares, o que trazia também alterações no seio destas, possivelmente ocorria também uma crescente valorização da capacidade de cada elemento de enriquecer sob as novas condições econômicas como critério de definição de seu status no interior do grupo familiar. O elenco desses vários personagens também nos sugere que grupos familiares reproduziam a mesma diversificação de investimentos (casas comissárias, comércio, produção de café, etc.), em uma cidade do interior, característica do grande capital

132 Cf. Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, respectivamente 1902, 1903 e 1906, nº 39, folha 68v., nº 43 folha 3 e nº 50 folha 55, AHMF.

186 cafeeiro, que atuava principalmente em São Paulo e Santos. Obviamente existiam outros grupos familiares, também constituídos a fim de alavancar os negócios, como no caso de Abrahão Lincoln de Mello, importante capitalista local, genro de José Rodolpho Marcondes do Amaral, também um importante capitalista local. Em inventário de José Rodolpho consta que emprestou para o casal Claro Marcondes Machado e Dona Luiza Marcondes do Amaral Machado, cujos nomes sugerem algum grau de parentesco com o credor, uma quantia no valor de 54:573$000, para a qual não há menção de prazo ou juros133. O que a interpretação deste documento sugere, diante do exposto até este ponto, é uma gestão familiar e não individual dos negócios, que poderiam incluir a prática da usura, o comércio, a produção de café, etc. Mas procuramos destacar, neste trabalho, apenas as famílias centrais para as atividades financeiras. Obviamente as ligações por via de matrimônio do quadro I representam apenas uma pequena parte delas, mas buscávamos estabelecer apenas os laços de parentesco que pudessem se revestir de alguma importância para as atividades financeiras em Franca. Também não sugerimos que as considerações de ordem econômica se constituíssem nas únicas a presidir esses laços, mas certamente e de forma crescente, se tornaram um fator mais central. Pretendíamos apenas lançar uma hipótese sobre esta questão, procedimento necessário na medida em que a documentação e a bibliografia nos levaram a fazer tais indagações, todavia estas estão a reclamar um estudo específico e mais aprofundado sobre este tema.

133 Inventário do Doutor José Rodolpho Marcondes do Amaral. Caixa 154 do Tabelionato de 1º ofício de Franca, 1901, vol. 91, AHMF.

187

Capítulo III A cadeia do crédito em movimento: pela ótica dos devedores Consideramos que uma análise da proporção de cada bem oferecido como garantia nas escrituras de dívida se constitui um bom começo para entendermos a significação do crédito para a outra ponta da cadeia, a dos devedores. Assim, iniciemos com um olhar quantitativo sobre a questão:

Gráfico 11-Proporção por tipo de bem hipotecado nas escrituras de dívida em Franca, períodos selecionados

1000 800 600 400

Contos de réis 200 0 1880-1887 1888-1898 1899-1906 1907-1914 Período Imóveis Rurais Imóveis Urbanos Misto Rural/Urbano Café e gêneros agrícolas Outros Indeterminado

Fonte: Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, nº 5 ao 79, AHMF.

Nos chama bastante a atenção o predomínio de imóveis rurais hipotecados nas escrituras de dívida, de fato parecem quase sempre ultrapassar a soma de todos os demais itens do gráfico. Muito provavelmente os empréstimos que não figuram nos livros cartoriais também seguissem esta tendência. Surpreende o fato de os empréstimos de penhor agrícola representarem parcela tão diminuta do total de bens dados como garantia nas escrituras de dívida, já que o café talvez representasse a mercadoria de maior liquidez dentre todas arroladas como garantia de dívidas. Esta preponderância de imóveis rurais como garantia hipotecária talvez se explique pela flutuação dos preços do café, pois se por um lado as

188 propriedades rurais poderiam também sofrer os efeitos desta flutuação, por outro se abria a possibilidade de sua futura valorização, o que não ocorria com o café, já que sua armazenagem não ocorria por conta dos comissários e capitalistas. Claro que no valor destas propriedades rurais se incluíam as benfeitorias realizadas tais como casas para colonos, terreiros para secagem do café, por vezes máquinas para beneficiamento e principalmente os cafeeiros, que permitiam que os credores que porventura executassem uma hipoteca lucrassem com a venda de várias safras de café, o que não ocorria no caso de um contrato de penhor agrícola, que em geral estipulava no máximo o direito do credor comerciar o café produzido em três safras, em caso de ausência do pagamento em moeda. Ademais, estas benfeitorias provavelmente elevavam sobremaneira o valor das terras em relação ao dos frutos. Mas certamente os credores não concediam crédito pensando na execução das hipotecas, almejavam um retorno do que emprestavam com um saldo equivalente aos juros cobrados. E certamente que um empréstimo onde se possuía o direito de comercializar os cafés dos devedores oferecia a chance de um lucro bem maior do que aqueles em que se hipotecavam imóveis. Todavia, se recordarmos que no ano de 1911 o volume de empréstimos registrados em Franca decai significativamente e que esta queda coincide temporalmente com o início das atividades do Banco de Custeio Rural, cujo principal diferencial em relação aos demais fornecedores de dinheiro residia no fato de que deixava a cargo dos devedores a comercialização dos cafés, chegamos à conclusão de que não apenas nos contratos de penhor agrícola os credores se encarregavam de seu comércio. O fato de que várias casas comissárias realizassem grande parcela de seus empréstimos com garantias hipotecárias em imóveis rurais, também reforça este argumento. Mas então como se justifica a existência de contratos de penhor agrícola? Ora, em um contrato hipotecário o emprestador poderia até comercializar as safras do devedor, mas ao menos em tese este café não lhe pertencia e, portanto, não deveria auferir lucro em sua venda além daquele referente à sua comissão. Embora ainda existisse a possibilidade de venderem estes frutos acima do preço que informariam aos cafeicultores, seus clientes, aquele não poderia se situar muito acima dos valores praticados no mercado, sob pena da perda de confiança do fazendeiro. No contrato de penhor agrícola havia a oportunidade de se firmar a dívida em um ano de baixa dos preços do café e vendê-lo na alta. Mas sem dúvida nenhuma poderia ocorrer o contrário.

189

Destarte, a operação de crédito mais lucrativa se mostrava também a mais arriscada para o credor, o que explica, conjuntamente com os fatores que já apontamos nos capítulos anteriores (concentração da atividade creditícia e domínio pessoal), a subordinação do produtor ao usurário (no contrato de penhor agrícola), como no caso em que aquele entregava os frutos de seus cafezais a 2/3 do seu valor para este. Assim, o predomínio de contratos de hipoteca sobre contratos de penhor agrícola demonstra uma busca por maior segurança nas aplicações. Apesar de os empréstimos de penhor agrícola (com garantia de café ou outros gêneros) e com hipoteca de imóveis urbanos se ressentirem das conjunturas adversas ao café e de se expandirem durante as favoráveis, isto ocorre de forma bastante suave, principalmente se comparados aos empréstimos com hipoteca de imóveis rurais, que sofreram quedas bruscas e elevações violentas conforme o cenário se mostrasse propício ou não para a mercadoria café. Mas se excluirmos do cálculo os empréstimos destinados a financiar a compra de imóveis tanto rurais quanto urbanos – dado que esta modalidade do crédito não visava o financiamento direto da produção de café ou das atividades comerciais – o quadro se torna ligeiramente diferente:

Gráfico 12-Proporção por tipo de bem hipotecado nas escrituras de dívida de Franca excluindo compras a prazo, períodos selecionados

1000 800 600 400 Contos 200 0 1880-1887 1888-1898 1899-1906 1907-1914 Período

Imóveis Rurais Imóveis Urbanos Misto Rural/Urbano Café e gêneros agrícolas Outros Indeterminado

Fonte: Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, nº 5 ao 79, AHMF.

190

Percebemos que na verdade a oscilação dos empréstimos com hipoteca sobre imóveis rurais apresenta a mesma intensidade verificada nos créditos com hipoteca de imóveis urbanos e os contratos de penhor agrícola, ainda que demonstre uma liderança incontestável sobre as demais modalidades de crédito. Estes dados parecem confirmar nossa hipótese de que a especulação com terras se constituiu em uma importante fonte de recursos para os capitalistas locais. Lígia Osório Silva assinala que na região de Ararquara o preço das terras subiu sete vezes e meia entre 1885-1889 e 1890-18941, valorização concomitante à chegada da ferrovia à região, como no caso de São Carlos que em 1884 recebe uma ligação férrea e Araraquara, onde a ferrovia é introduzida em 1885, o que permite que a cafeicultura se torne a principal atividade econômica desses municípios2. O intervalo de cerca de cinco anos entre a chegada da ferrovia a estas regiões até uma maior valorização das terras provavelmente se deveu à necessidade de um pequeno período para que a plantação de café em larga escala se consolidasse. A concentração das vendas das propriedades fundiárias na década de 1890 se deve não apenas à notável expansão das plantações, que ocorreu em todo o Estado de São Paulo, mas também à introdução da ferrovia na região e a consolidação da cafeicultura em Franca. Se atentarmos para o fato de que entre 1888 e 1898 apenas nos últimos quatro anos se consolida a cafeicultura francana, perceberemos que considerado anualmente, o volume destes empréstimos hipotecários sobre imóveis rurais caiu pela metade entre 1899 e 1906. Contudo, experimentam uma violenta elevação após o plano de valorização de 1906. Nenhum dos outros itens do gráfico segue seu movimento com intensidade sequer semelhante. Mesmo se pensarmos no volume anual destes empréstimos eles ainda se situariam em um patamar extremamente elevado, já que a partir de 1911 cai o número dos contratos de escrituras de dívida devido à atuação do Banco de Custeio Rural. Uma explicação possível remete para a valorização das propriedades rurais, inclusive em relação ao período compreendido entre 1888 e 1898, oriunda da melhor situação do café nos mercados internacionais, da maior segurança quanto à manutenção de seu valor e de uma

1 Cf. Ligia Osorio Silva. A Apropriação Territorial na Primeira República. In: Sérgio S. Silva e Tamás Szmrecsányi (orgs.). História Econômica da Primeira República. 2ª edição revista. São Paulo: Hucitec/Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica/Edusp/Imprensa Oficial, 2002, p. 166.

191 possível expansão das plantações no período – posto que não devemos pensar que as proibições e entraves que o governo (tanto em nível estadual quanto federal) interpunha a este avanço da lavoura se efetivasse na prática, dada a concentração de seu aparato tributário nas alfândegas – portanto baseando-se na conjuntura enfrentada pela cafeicultura nesta época. De todos os fatores responsáveis pela valorização dos imóveis rurais entre 1907 e 1914 que apontamos, o único que não se encontra presente também na década de 1890 (já que a elevação dos preços internos do café compensava sobremaneira para o produtor a queda de seus preços externos) é a segurança em relação à manutenção dos preços do café. Há também uma outra possibilidade, que surge se pensarmos no aumento do número de emprestadores durante o período compreendido entre 1899 e 1906, mas a diminuição de ocorrências relacionadas à concessão de empréstimos envolvendo grandes quantias. Assim, possivelmente, a elevação do crédito com garantia de propriedades rurais se explica pelo aumento nos empréstimos de grandes somas, de modo que quem oferecia como garantia fazendas tomava emprestadas altas quantias. Mas até que ponto esta hipótese se confirma pelos dados de que dispomos? Observemos o gráfico a seguir, mais uma vez excluindo as compras de imóveis a prazo:

2Cf. Regina de Campos Balieiro Devescovi. Op. cit., p. 24 e Carlos Américo Pacheco. Op. cit., p. 46. Carlos Américo Pacheco estima que após a introdução da ferrovia nos dois municípios 12 milhões de cafeeiros foram adicionados à produção de Araraquara e 15 milhões à de São Carlos.

192

Gráfico 13-Proporção dos créditos registrados em Franca por faixa de valor, períodos selecionados

500 400 300 200 Contos 100 0 1880-1887 1888-1898 1899-1906 1907-1914 Período

Até 10 contos De 10 a 20 contos De 20 a 30 contos De 30 a 40 contos De 40 a 50 contos Mais de 50 contos

Fonte: Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, nº 5 ao 79, AHMF.

Constatamos que o volume de empréstimos envolvendo grandes quantias permanece praticamente inalterado para aquelas acima de 50 contos no período que medeia entre os anos de 1888 e 1898 comparado ao período situado após o plano de valorização e anterior à Primeira Guerra Mundial, a única diferença residindo na melhor distribuição do crédito entre as várias faixas de valor no segundo. Mas esta diferença pode significar que a terra de tamanho intermediário (ressaltemos, para os padrões de Franca) valoriza-se no período posterior a 1906 enquanto o mesmo não ocorre na década de 1890, resultando em um maior volume de créditos firmados com base nas hipotecas rurais. Talvez a maior segurança em relação à manutenção dos preços do café tenha jogado algum papel, mas torna-se difícil saber o peso de cada fator. Ou talvez a expansão do crédito que ocorreu entre 1907 e 1914 apenas não pudesse ser absorvida por empréstimos garantidos por hipotecas de imóveis urbanos, dado que provavelmente o crescimento citadino não acompanhou a expansão da cafeicultura de forma simultânea. Entretanto, parece curioso que os contratos de penhor agrícola não seguissem o movimento dos empréstimos com garantia de terras ou fazendas exatamente no momento em que a execução do plano de valorização mantinha seus preços em um patamar elevado. Mas a baixa flutuação dos

193 preços do café neste período provavelmente retirou o atrativo deste tipo de operação para os credores. Contudo, a questão central posta por estes números reside na essencialidade da terra para a obtenção de crédito. Isto nos remete a uma outra questão: como se dava a sua apropriação? Em primeiro lugar devemos entender que a apropriação territorial ocorria sob os parâmetros de uma legislação que se desenvolveu durante o Segundo Reinado visando estabelecer normas para a aquisição de terras em um contexto onde se analisava esta em associação com o problema da escassez de mão-de-obra. Antes do advento desta legislação a apropriação territorial, do ponto de vista normativo, passou por dois períodos. No primeiro a terra era concedida pelo monarca de Portugal a particulares no intento de levar a cabo a colonização, mas nem todos se encontravam aptos a receber estas concessões. Estas se denominavam sesmarias e os seus pretendentes passavam por uma avaliação do rei que considerava seu status social, suas qualidades pessoais e serviços prestados à Coroa. As doações passaram a conferir aos concessionários direito de herança quando Portugal empenhou-se de forma mais sistemática no esforço de colonização da América e a partir do Regimento de Tomé de Souza de 1548 as concessões para os engenhos de açúcar destinaram-se a qualquer elemento que demonstrasse condições econômicas de explorar as terras e construir fortificações. Apesar dos intentos da Coroa, por meio deste regulamento, no sentido de se evitar uma larga concentração territorial em poucas mãos, acabou por não atingir este objetivo devido a vários expedientes utilizados pelos particulares para alargarem a área ocupada por suas terras. Assim, durante toda a era colonial, surgiram duas formas de apropriação territorial: uma baseada no sistema de sesmarias, com alta concentração da propriedade e restrita às áreas que apresentaram algum interesse econômico, notadamente o litoral; outra, avessa a qualquer normatização elaborada por Portugal posto que se valia da ocupação pura e simples, geralmente em pequenas porções de terra, mas apenas em áreas sem maiores atrativos do ponto de vista econômico, principalmente no interior. Após a Independência política de 1822 o sistema de sesmarias fora anulado e a posse se converteu, até 1850, na única forma de aquisição de terras no Brasil3. Parece haver um consenso entre os pesquisadores no tocante à natureza do legado

3 Emília Viotti da Costa. Op. cit., pp. 172 a 176.

194 colonial, posto que este estimulou a concentração da propriedade, o que por certo deixou suas marcas na Lei de Terras de 1850. Os debates acerca da normatização do acesso à propriedade fundiária ocorreram sob a virtual ameaça do término do tráfico de escravos e conseqüentemente do fim da escravidão. A questão que se levantava, ao menos para as áreas de agricultura mais dinâmicas, era como atrair imigrantes estrangeiros para substituir o braço escravo nas lavouras? Para tanto se fazia necessário, segundo muitos autores, obstar o acesso fácil daqueles à terra, para impedir a generalização da pequena propriedade e como corolário o encarecimento da mão-de-obra. Lígia Osório nuança um pouco esta questão, demonstrando que a lei também previa a venda de terras devolutas4 aos imigrantes com algum pecúlio, a fim de aumentar a atratividade do Brasil para os trabalhadores europeus. Assim, a regulamentação da apropriação territorial servia aos interesses das áreas economicamente mais dinâmicas – notadamente as regiões cafeeiras – e encontrava maior resistência entre os representantes dos setores mais atrasados da economia5. A Lei de Terras, fruto de intensos debates nas décadas anteriores acerca do estatuto da terra, estabeleceu regras para validação das antigas posses e sesmarias. Seriam legitimadas as posses mansas e pacíficas (que não sofressem contestação judicial) cultivadas ou com princípio de culturas e morada habitual do respectivo posseiro ou representante. A posse compreenderia, além do terreno aproveitado, a área contígua de terras devolutas desde que o seu tamanho total não ultrapassasse o das últimas sesmarias concedidas na mesma comarca e nas mais próximas. O governo deveria estabelecer prazos para as medições de posses e sesmarias, para tanto designando e instruindo pessoal, além de criar uma Repartição Geral das Terras Públicas. Se os possuidores deixassem de proceder à medição nos prazos marcados, caíram em comisso, conservando apenas o direito à posse do terreno que ocupassem com efetiva cultura e morada habitual. O governo poderia vender as terras devolutas em hasta pública ou fora dela, em lotes de 500 braças de lado (121ha.) por

4 Cf. Lígia Osório Silva. Terras Devolutas...Op. cit., p. 136. O termo terras devolutas, já presente na legislação que regulamentava a concessão de sesmarias, significava ‘terras devolvidas ao senhor original’, ou seja, a Coroa portuguesa. Com o tempo ganhou o sentido de terra não aproveitada, vaga. Com a Lei de Terras de 1850 as terras devolutas passaram a ser aquelas que não pertencessem ao domínio particular por qualquer título legítimo, posses ou sesmarias passíveis de legitimação pela lei e que não estivessem em uso público nacional, provincial ou municipal, portanto uma definição por exclusão que consagrava o sentido de vaga ou inculta. Cf. Idem, ibidem, pp. 39 e 40 e 156 e 157. 5 Cf. Emília Viotti da Costa. Op. cit., pp. 177 a 180.

195 meio conto e dois réis por braça quadrada, conforme a qualidade e situação de cada lote. Os fundos obtidos desta forma serviriam ao financiamento de ulterior medição de terras e da imigração. Após a aprovação da lei, proibiu-se o apossamento e a compra tornar-se-ia, ao menos na letra da lei, a única forma de aquisição de terras no Brasil6. Em 1854 completar-se-ia a lei com seu regulamento, introduzido por meio do decreto de nº 1318 de 30 de janeiro. Regulava a atuação da Repartição Geral de Terras Públicas, à qual caberia dirigir e organizar a medição, descrever e dividir as terras devolutas, propor ao governo quais destas se reservariam para a colonização indígena e estrangeira, as destinadas à fundação de povoações, à venda e a marinha. Deveria também promover a colonização nacional e estrangeira e organizar o registro das terras de domínio particular em todo o território nacional. A repartição se subordinava ao ministro e secretário de Estado dos Negócios do Império e cada província deveria contar com uma repartição especial das terras públicas subordinada aos presidentes de província e dirigida por um delegado do diretor-geral das terras públicas. O delegado e os oficiais dessa repartição seriam nomeados por decreto imperial. A medição das terras devolutas das províncias ficaria a cargo de distritos de medição criados para este fim, cada um deles podendo compreender uma comarca ou mais, ou ainda a província inteira, dependendo da quantidade de terras devolutas e da urgência das medições. Em cada distrito haveria um inspetor-geral das medições, nomeado pelo governo sob proposta do diretor-geral, contando com vários funcionários às suas ordens. As principais tarefas deste inspetor consistiam basicamente na medição das terras devolutas e execução de mapas de cada território medido7. Já o processo de medição das terras particulares ficou a cargo dos presidentes provinciais que deveriam exigir que os juizes de direito, juizes municipais, delegados, subdelegados e juizes de paz informassem detalhadamente sobre a existência ou não de posses sujeitas à legitimação e de sesmarias sujeitas à revalidação nas suas comarcas, termos ou distritos. Após este processo, os presidentes provinciais nomeariam para cada um destes municípios onde existissem propriedades particulares sujeitas à legitimação ou revalidação, um juiz comissário de medição. Entretanto, este apenas seria acionado em caso de requerimento dos particulares. O regulamento também previa prazos para a medição e

6 Cf. Lígia Osório Silva. Terras Devolutas...Op. cit., pp. 141 a 143. 7 Cf. idem, ibidem, pp. 167 e 168.

196 demarcação das propriedades passíveis de regularização, marcados pelos presidentes de província e podendo sofrer prorrogação de acordo com a decisão destes. A decisão final a respeito dos contenciosos acerca das medições e demarcações caberia aos presidentes provinciais. A medição das terras devolutas todavia ocorreria somente depois de efetuada a medição das terras particulares, que por sua vez dependia de requisição dos próprios particulares8. Em 1876 editou-se novo regulamento, que introduzia umas poucas mudanças no anterior, alguns dos mais importantes extinguindo as repartições especiais e instituindo inspetorias encarregadas da fiscalização das colônias e das comissões de medição. Estas inspetorias se subordinavam diretamente ao Ministério da Agricultura, eliminando a mediação dos presidentes provinciais, mas que conservaram as funções de vigilância e fiscalização destes serviços, podendo suspender, mandar responsabilizar, propor demissão, licenciar, representar contra empregados, etc.9. Se existe um relativo consenso acerca das motivações por trás da elaboração da lei, não ocorre o mesmo quanto às interpretações concernentes aos efeitos da mesma. José de Souza Martins afirma que a lei se insere numa tentativa mais ampla de transformar a terra em mercadoria que pudesse efetivamente substituir o escravo na obtenção de empréstimos hipotecários. Mas, como assinala o próprio autor, este processo apenas poderia se consolidar lentamente, sobretudo devido à persistência da utilização da mão-de-obra cativa: “...praticamente todo capital de custeio provinha de hipotecas lançadas sobre a escravaria das fazendas”10. Entretanto, os esforços no sentido de propiciar aos produtores mercadorias alternativas para a obtenção de crédito também surtiram seus efeitos: “Formalmente, a legislação territorial acentuara as garantias de negociabilidade das terras. Mas, não revogava a desimportância do mercado imobiliário em face do mercado de escravos. Em 1873, o governo estendera o crédito hipotecário a todos os municípios do Estado de São Paulo, Paraná e Santa Catarina, tendo como suporte a fazenda, representada sobretudo pelas plantações e pelas instalações. Esse procedimento é seguramente uma das causas da intensificação da expansão do café em direção ao oeste de São Paulo, para a região de Campinas e mais além”11.

8 Cf. idem, ibidem, pp. 168 a 170. 9 Cf. idem, ibidem, p. 181. 10 José de Souza Martins. Op. cit., p. 26. 11 Idem, ibidem, p. 30.

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Ainda segundo o autor, um dos entraves para que a terra se tornasse uma mercadoria plenamente aceita nas hipotecas era o mecanismo da adjudicação forçada, pela qual, segundo legislação que versava sobre o assunto, o imóvel penhorado e executado pelo credor reverteria a este em caso de ausência de licitantes na última praça de liquidação. Entretanto, os comissários, os bancos e comerciantes não se interessavam em tornar-se fazendeiros (como chegamos a sugerir acima), além do que o produto que possuía livre curso no comércio era o café. Em 1885 houve realmente alterações nas leis que permitiram a penhora dos frutos pendentes e dos frutos colhidos. José de Souza Martins ainda assinala que no debate político surgiram duas tendências na tentativa de tornar a terra mercantilizável e apta a servir como garantia hipotecária: uma que advogava a fragmentação da propriedade por meio de uma agricultura de pequenos proprietários, exercendo uma pressão sobre a oferta de terras, aumentando a demanda e conseqüentemente seu valor; outra, que de fato saiu vitoriosa, segundo a qual o imigrante deveria conquistar o acesso a terra por meio do trabalho prévio nas fazendas de café12. O autor arremata: “A renda capitalizada no escravo transformava-se em renda territorial capitalizada: num regime de terras livres, o trabalho tinha que ser cativo: num regime de trabalho livre, a terra tinha que ser cativa”13. Percebe-se que o autor associa a valorização da terra com a chegada dos imigrantes e a introdução do trabalho livre e que realmente considera que a Lei de Terras fora eficaz, vedando o acesso livre do imigrante à terra, cujo único meio de aquisição tornou-se a compra. Entretanto, Lígia Osório assinala que o governo fracassou tanto na demarcação das terras públicas quanto na introdução de núcleos de imigração. O principal fator deste fracasso residiu, segundo a autora, no que seria o ponto fraco de todo o sistema: “...o fato de que a iniciativa primeira, que desencadearia todo o processo de demarcação de terras, estava nas mãos dos particulares. Tudo dependia da informação pretendida pelo governo sobre a existência ou não de terras devolutas em tal ou qual termo, comarca ou município”14. A definição dos prazos para as medições e demarcações das terras particulares, responsabilidade dos presidentes provinciais, sofreram prorrogações sobre prorrogações durante todo o período monárquico e depois dele enquanto perdurou a lei de

12 Cf. idem, ibidem, pp. 30 a 32. 13 Idem, ibidem, p. 32. 14 Idem, ibidem, p. 178.

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1850. Ao final da década de 1870 e durante a década seguinte o governo alterou sua estratégia, concentrando-se na demarcação das terras devolutas onde sua existência fosse incontestável. Ainda assim, no ano de 1887 o governo realizou apenas 35 vendas de terras devolutas e em 1888 somente 6615. Com o advento da constituição republicana de 1891 os Estados ganharam autonomia para legislar sobre terras, apesar da manutenção dos preceitos gerais da Lei de Terras de 1850, como a obrigatoriedade de revalidação de sesmarias e legitimação de posses. Entretanto, na maioria dos Estados os prazos para o registro de terras continuaram a ser sucessivamente prorrogados e a ocupação privada de terras públicas persistiu16. No Estado de São Paulo, no ano de 1895, elaborou-se a lei de número 323, regulando todos os processos atinentes à demarcação, medição e aquisição de terras devolutas. Um dos dispositivos da lei que desagradou sobremaneira os interessados no apossamento de terras não previa a legitimação de posses posteriores a 1854. As pressões sobre o governo paulista surtiram seus efeitos, tanto que três anos após a promulgação da lei de 1895 elaborou-se nova legislação, que legitimava automaticamente as posses com um título de domínio anterior a 1878 (uma simples escritura de compra e venda, que, ademais, poderia ser forjada) e das posses nas terras que possuíssem cultura efetiva e que servissem a morada habitual desde 1868, além de legitimação das posses de primeira ocupação (dependendo de processo administrativo) até a data da lei de 22/6/189517. O balanço da autora é de que: “Esta lei facilitou enormemente a vida dos posseiros, pois suprimia a instância de legitimação para as posses anteriores a 1878 que tivessem qualquer título de domínio (aqueles títulos eram na verdade certificados de compra e venda) e para as posses sem título algum que fossem anteriores a 1868. A área passível de ser legitimada era toda aquela especificada nos títulos, quando existissem. Não havendo especificação nos títulos, ou na falta deles, seria legitimada a área efetivamente ocupada pelo posseiro e mais o duplo, até o máximo de 2.000 ha., em cerrados ou campos. (...) Essa legislação liberal em relação ao apossamento não democratizou o acesso à terra. Muito pelo contrário,

15 Idem, ibidem, p. 170 e 194. 16 Cf. Denise Mattos Monteiro. Política de Terras no Brasil: elite agrária e reações à legislação fundiária na passagem do Império para a República. In: História Econômica & História de Empresas, vol. II. São Paulo: Hucitec-ABHE, 2002, pp. 53 a 54. 17 Ligia Osorio Silva. A Apropriação... Op. cit., pp. 166 e 167.

199 contribuiu decisivamente para a recriação do latifúndio, e, nesse particular, o caso de São Paulo é mais uma vez exemplar”18. Tal qual no período anterior, o Estado se responsabilizava pela demarcação e medição das terras devolutas, o que não ocorreu a contento, pelo simples fato de as autoridades estaduais nem sequer saberem ao certo quais terras eram devolutas. Entretanto, a pujança da lavoura cafeeira paulista levou os proprietários, em muito maior grau que noutros Estados, a registrarem suas terras, dado o temor da ação dos grileiros, que ocupavam a terra, produziam títulos fraudulentos para em seguida negociarem e especularem com a posterior valorização das propriedades. Mas esta maior preocupação com o registro de terras não significou uma democratização do acesso à posse, pois todo o processo dependia, direta ou indiretamente, das lideranças políticas locais19: “Na luta entre grileiros e posseiros, ou entre posseiros, era pouco sensato tentar agir judicialmente. Os chefes políticos exerciam grande domínio sobre os demais atores do drama da terra: agrimensores, juízes comissários, delegados de polícia, donos de cartórios e juízes de paz. Os agrimensores eram nomeados pelas autoridades municipais, assim como os delegados de polícia. Os juízes de paz, por sua vez, eram eleitos. Os únicos que poderiam escapar das rédeas do chefe político municipal eram os juízes de direito, porque eram integrantes da magistratura e não dependiam diretamente deste. Mas na verdade, o juiz de direito não teve até a década de 1920 um papel importante nas questões de terras porque estas eram julgadas pelos juízes comissários, que como sabemos eram nomeados pelos governadores. O juiz de direito, até 1921, só intervinha em causas em que se recorria à justiça comum, e isto não era matéria simples em questões de terras, tendo em vista a facilidade com que se arrolavam testemunhas dóceis aos desígnios dos poderosos locais”20. Diante deste quadro devemos nos perguntar: como ocorreu a aquisição de terras na região de Franca? Existem alguns estudos sobre a aquisição de terras na região. Carlos de Almeida Prado Barcelar empreendeu um estudo acerca da ocupação do que denominou ‘o sertão de Goiás’, que compreendia as regiões entre o rio Grande e Pardo, durante o século XIX. Assinala que inicialmente não existia a necessidade de demarcação das terras, geralmente divididas por cumiadas, linhas de vertentes dos espigões e por leitos de córregos.

18 Idem, ibidem, p. 167 e 169. 19 Idem. Terras Devolutas...Op. cit., pp. 284 a 286. 20 Idem, ibidem, pp. 286 e 287.

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Característica marcante da rede fundiária local residia em seu fracionamento, já intenso quando do advento da Lei de Terras em 1850. Em dado momento, ao enumerar as informações contidas nos registros de terra, o autor afirma que segundo o regulamento de 1854, a declaração da origem dominial da propriedade se tornava facultativa. Isto era fundamental em todo o processo de registro de terras, na medida em que permitia que se ocultassem atos de violência pelos quais se originariam muitos dos apossamentos que naquele momento buscavam regularização. De fato, a omissão da origem dominial da terra nos processos ocorreu de forma freqüente21. O autor, contudo, atribui este fato ao tamanho das posses na região: “...glebas imensas, inexploradas, contendo roças em parte ínfima de sua área, jamais teriam sua situação regulamentada (...) A lei de 1850 previa que, no ato de regularizar a posse, seria concedida, além do terreno efetivamente aproveitado, outro tanto de terreno devoluto com igual área daí talvez, o tom evasivo das declarações: buscava-se mascarar uma realidade de propriedades mal aproveitadas, de recente incorporação pela frente de povoamento, e caracterizadas pela lei de terras como devolutas”22. Entretanto não fica claro como este argumento se relaciona com a omissão da origem dominial das posses, já que a apropriação de terras ainda mal aproveitadas justificaria a ausência de registro e não o ocultamento da origem das posses, no caso de as autoridades constituídas responsáveis pelas demarcações realmente atuarem com correção, como implicitamente sugere o autor. Na verdade pensamos que este ocultamento se relacionava, além do silêncio pretendido sobre disputas que muitas vezes se tornaram violentas, à tentativa de encobrir o recente apossamento de terras devolutas. Realmente, a sanha por se apoderar de mais e mais terras de domínio público se explicita pelo fato de em grande parte dos registros de terras não constarem qualquer referência à área das propriedades, em um total de 57,9% das propriedades declaradas para Cajuru, 60,5% para São Simão e 77,7% para Batataes23. Em um artigo publicado dois anos depois, o autor passa a associar a imprecisão ou mesmo silêncio com relação às áreas das propriedades nas declarações presentes nos registros de terra com a pretensa necessidade de se “mascarar uma realidade de terras mal

21 Cf. Carlos de Almeida Prado Bacellar. Uma Rede Fundiária..., pp. 95 a 97. 22 Idem, ibidem, pp. 97 e 98. 23 Cf. idem, ibidem, p. 98.

201 aproveitadas”24, que anteriormente havia ligado à não declaração da origem dominial dos imóveis. Realmente esta nova postura parece-nos mais coerente, já que a exigência de concessão de uma área apenas igual à efetivamente explorada não se cumpriria sem um conhecimento preciso das divisas das propriedades. Entretanto, mais uma vez, o autor pressupõe que as autoridades incumbidas da demarcação atuassem com correção, o que, como sugere Lígia Osório, pode muito bem não ter ocorrido, até porque, neste caso, qual o motivo para que estas autoridades permitissem estas declarações tão imprecisas? Barcelar, deparando-se com várias aquisições por meio de compra, conclui que mesmo anteriormente à chegada do café havia a possibilidade de se acumular, em moeda ou em bens, demonstrando que apossar terras não se constituía na única forma de se ampliar o patrimônio. Ressalta também que a maior negociabilidade das terras ligava-se à fragmentação das propriedades, derivada do próprio suceder natural das gerações combinado a partilhas igualitárias das propriedades25. As escrituras de compra, presentes nestes registros de terra a fim de confirmar a propriedade dos posseiros, na verdade poderiam ser forjadas para tal fim, adequando-se às exigências presentes na lei de terras, conforme já discutimos. Mas o autor sequer toca neste ponto, o que demonstra uma postura acrítica diante do documento. O argumento de que as vendas ocorriam devido à fragmentação da propriedade também parece fraco, na medida em que os estudos empreendidos por Lucila Reis Brioschi, Heloisa Mesquita Sampaio e Eduardo Diniz Junqueira na obra ‘Entrantes no Sertão do Rio Pardo’, já citada em nosso trabalho, demonstram que a ocupação das fazendas se dava por meio de vários grupos familiares, que a gestão sobre a terra era familiar e não individual, não pressupondo, devido à repartição de heranças, a inviabilidade do cultivo das pequenas parcelas de terra, já que estas se encontravam integradas aos grandes domínios. Possivelmente a constituição de um mercado de terras tenha curso na região apenas a partir da chegada da ferrovia, como parecem atestar alguns números coletados pelo próprio Barcelar. Calculando o preço médio do hectare em Ribeirão Preto, chega aos seguintes resultados: 3$845 em 1876; 14$592 entre 1879 e 1883; 23$603 em 1884; 32$624

24 Cf. idem. Do Gado ao Café: as transformações da estrutura fundiária de Ribeirão Preto ao longo do século XIX. Estudos de História, vol. 8, nº 10, 2001, p. 179. 25 Cf. idem. Uma Rede Fundiária..., p. 100.

202 entre 1886 e 1888; 31$068 em 189126. Se nos recordarmos que Ribeirão Preto recebe uma ligação férrea no ano de 1883, percebemos que a valorização da terra é concomitante à introdução da ferrovia. De fato, o preço médio do hectare sofre expressiva valorização já entre 1879 e 1883 e se considerarmos que a lavoura cafeeira neste município, tal como em Franca, necessitou de certo tempo para que se consolidasse, concluiremos que a valorização das terras ocorre conjuntamente com o desenvolvimento da produção de café. Entretanto a disputa por terras parece ter ocorrido um pouco antes, se intensificando já na década de 187027, exatamente quando começava a se desenvolver o complexo cafeeiro paulista. Como a região se dedicava principalmente à produção para abastecimento, constata-se que estas disputas visavam o estabelecimento de alguns agentes como fornecedores de artigos para consumo da região cafeeira. Entretanto não se deve concluir que as conseqüências deste comércio resultassem principalmente em uma maior monetarização da região e que o dinheiro passasse a intervir como instrumento central na aquisição de terras. A produção provavelmente permaneceu predominantemente voltada ao autoconsumo, com alguns poucos elementos travando relações por meio da mediação da moeda. Ora, quem dispusesse de algum capital acumulado para investir certamente o faria na região cafeeira e não em uma zona de abastecimento com um potencial de parcos retornos para o capital investido onde ainda deveria enfrentar vários litigantes pela posse da terra. O próprio Barcelar nos fornece pistas neste sentido, por exemplo quando trata o caso de ‘forasteiros’ que chegavam a fim de se fixar na região: “A maior ou menor presença de forasteiros condôminos parece estar relacionada ao maior ou menor domínio que os antigos proprietários tinham sobre suas terras. Isto se torna claro pela constatação de que determinadas fazendas foram mais sujeitas à incorporação, pacífica ou conflituosa, de novos condôminos, como se os moradores ali presentes não se importassem ou não tivessem forças para rechaçar novos entrantes”28. Em alguns processos de divisão de terra, em sua maioria da década de 1890, demonstra que a falsificação de documentos era expediente comum nas disputas judiciais29, sugerindo que ainda nos anos de 1890, já sob a égide da lavoura cafeeira, conforme sugere a bibliografia, as relações de força

26 Cf. idem, ibidem, p. 111. Embora devamos ter certa cautela com estes dados, já que foram recolhidos de processos de demarcação e divisão de terras, que poderiam conter muitas informações fraudulentas. 27 Cf. Idem, ibidem, p. 112. 28 Idem, ibidem, p. 103.

203 predominariam no tocante à apropriação territorial (principalmente se lembrarmos que grande parte da população rural era analfabeta). Em outro estudo sobre apropriação territorial na região, Angélica Alves de Castro debruça-se sobre os processos de embargo e força nova em Franca, processos que tinham por objetivo a defesa de quem “...tinha sofrido turbação ou esbulho na posse desses bens, por ato de apreensão judicial, arrecadação, arrolamento, inventário ou partilha”30. Um dos processos que a autora analisa chamam particularmente a atenção. Refere-se a processo de embargo que moveu Maria Antonia D’Assunção contra Maria Izabel do Carmo que, segundo Maria Antonia, com um certo número de trabalhadores cercou parte das terras desta última. A questão se originou, segundo a embargante, do fato de seu finado pai, Antônio Gomes D’ Andrade, haver consentido que residisse em parte de suas terras o agregado Manoel Gomes D’Andrade que – ainda segundo a embargante – vendera apenas as benfeitorias do local (uma casa) a Maria Izabel do Carmo. Ocorreu uma audiência na qual a embargada não compareceu, onde este requerimento fora deferido e o juiz mandou a oficiais proceder ao embargo intimando Maria Izabel e todos os trabalhadores a suspenderem o serviço, sob pena de pagar cada trabalhador a quantia de 100$000. Maria Izabel deveria arcar com os prejuízos por perdas e danos, mas lhe foi reservado o direito de se manifestar diante da sentença. Maria Izabel recorreu à sentença alegando que Manoel Gomes de Andrade nunca fora agregado e sim senhor da chácara em questão e que não houve questionamento da venda por 25 anos; que a referida chácara fora comprada por Eugênio Rodrigues de Barcelos, já falecido, então marido de Maria Izabel em face da Igreja; que a compra não se referia apenas às benfeitorias, mas a toda chácara; que o marido comprou de Manoel Gomes de Andrade uma chácara no bairro Santa Cruz por 500$000, com escritura anexada aos autos. O juiz proferiu nova sentença onde constatava que o referido documento não aludia às terras em questão senão a uma propriedade nos subúrbios da cidade além de que Maria Izabel não apresentou nenhuma prova de sua união matrimonial31. Embora as autoridades judiciais aparentemente tenham agido com correção neste caso, deve-se notar a generalidade e extensão de determinadas relações na zona rural, como aquelas que

29 Cf. idem, ibidem, p. 105. 30 Angélica Alves de Castro. Op. cit., p. 79. 31 Idem, ibidem, pp. 82 a 84.

204 pautavam a existência dos ‘agregados’ e seu choque com a natureza das novas relações que se instauram, de matiz notadamente mercantil. Ou em outras palavras: assim que a terra ganha valor mercantil este se infiltra no cotidiano da vida rural e destrói os antigos arranjos construídos em torno dos laços de favor, muitas vezes conformados por ligações familiares e de compadrio. Uma ação de força nova (semelhante aos embargos) aponta para uma prática que se tornaria bastante comum na década de 1890, consoante à valorização da terra e a disputa mais acirrada por esta: Euphrasia Ferreira Barbosa, residente em Franca, no ano de 1901 entrava com processo contra Antonio Bras Nicolau por este haver obstruído caminho de carros de bois comum a ambos. A suplicante afirmava possuir uma chácara no bairro Santa Cruz limitando com terras do patrimônio da Igreja Matriz de Franca e chácara do mesmo Antonio Bras Nicolau. Afirmava ainda que se encontrava na posse ‘mansa e pacífica’ durante vários anos e exigia que o réu, além de desobstruir a estrada, pagasse os prejuízos sofridos pela requerente32. Analisando requerimentos encaminhados à Câmara Municipal de Franca33, notamos que até a década de 1890 estes se compunham basicamente de reclamações de funcionários por atraso no recebimento de seus ordenados e determinadas solicitações por alguns serviços corriqueiros a serem realizados pela edilidade34, mas durante os anos de 1890 começam a surgir reclamações variadas, algumas ligadas a questões relacionadas ao desenvolvimento urbano da cidade, outras ao alistamento eleitoral, outras ainda a assuntos diversos. Mas o tipo de requerimento que nos interessa aqui se refere à abertura de estradas das fazendas para as cidades, em geral fechadas ao trânsito por vizinhos. Ora, numa época em que o meio rural passava do seu antigo estado de auto-suficiência para a especialização na produção de café e mais uns poucos gêneros agrícolas, dependendo, portanto, das mercadorias vindas da cidade, interromper este acesso tornou-se uma forma de sufocar economicamente estes proprietários, num recurso que provavelmente visava posteriores arremetidas sobre suas terras, seja pela compra, seja pelo simples apossamento. De fato há grande número dos requerimentos solicitando a abertura de estradas à Câmara Municipal

32 Ação de força nova. 1º ofício, 1901, caixa 421, volume 29, AHMF. 33 Diversos requerimentos, 1892-1897, caixa 69, volume 466, MHMF. 34 Cacilda Comássio Lima. A Construção da Cidade: Franca – século XIX. Franca: UNESP- FHDSS/Companhia açucareira Vale do Rosário, 1997.

205 durante a década de 1890. Um deles, datado de 21 de maio de 1892, é bastante ilustrativo da situação: “Nós abaixo assignados habitantes do Ribeirão Corrente, Caitetú, Boa Vista, Christaes e outros lugares circunvisinhos, privados de uma estrada de grande commercio, que existia há mais de oitenta annos; sendo á estrada principal, de espigão, que dá entrada e shaida para todos esses lugares acima referidos, conduzindo d’ahi para esta cidade, Canôas, Indayá, Rio Grande, Santa Rita, Carmo e muitos outros lugares, pelo que é uma via de communicação de primeira necessidade; entretanto o predominio de alguns herdeiros pretende privar essa grande parte d’este Municipio, de tal estrada da qual não podem-se privar. Por isto vem os abaixo assignados recorrer á (ilegível) pedindo providencias para que seja restituida aos Supplicantes essa estrada de urgentissima necessidade; atendendo VSª que os abaixo assignados dão este primeiro passo pedindovos providencias, antes que uzasem de outros meios mais profícuos, tractando-se dos direitos do povo, por entenderem ser este meio mais prudente. Assim pois em nome da justiça, da ordem e do direito do Povo, pedem os abaixo assignados a Vossas Senhorias dignem-se ordenar aos Senhores Major José Nunes Ferreira e Antonio Theodoro de Oliveira, que conservando os seus tapumes, deem passagem para a referida estrada, evitando assim alguma justa reprezalia da parte do povo”35. Percebe-se que não apenas com o apossamento puro e simples para posterior regularização da propriedade se buscava dilatar os domínios rurais; a intimidação e até mesmo a violência tornaram-se expedientes que conviviam lado a lado com práticas mercantis sobre a propriedade territorial. Reconhecia-se nas autoridades municipais, como já sugerido na bibliografia, uma instância de mediação para estes conflitos. Nas ações de divisão de terras notamos também a presença destas relações de força, como no processo iniciado em 1896 por Hygino Silva, a fim de efetuar-se a divisão de parte da fazenda ‘Pitangueiras’, conhecida por ‘’, localizada em São José da Bela Vista. Ainda segundo o requerente estas terras foram medidas e demarcadas em nome de Antonio José da Silveira e sua mulher, cujo falecimento implicou na necessidade desta divisão. Havia catorze elementos envolvidos na divisão, entre herdeiros e cessionários. Em dado momento do processo um deles, Antonio Gomes de Lima, que possuía direito a um quinhão das terras por herança de seu cunhado Joaquim Carlos da Silveira (não conseguimos

35 Diversos parecer e projetos 1892-1895. Caixa 54, volume 372, MHMF.

206 identificar o grau de parentesco deste com Antonio José da Silveira ou qualquer tipo de ligação com este) e que citado a promover à habilitação dos agrimensores e arbitradores escolhidos, afirmou que se lembrava de que Joaquim Carlos da Silveira em vida vendera sua parte na fazenda a José Antonio da Silveira (mais um dos envolvidos na divisão, não devemos confundi-lo com o então falecido Antonio José da Silveira) e outro dos litigantes, Antonio José do Couto, corroborou a afirmação. No documento ainda constava que Antonio Gomes de Lima36 “satisfasendo um dever de consciencia o supplicante, embora pobre a necessitar a tudo da caridade publica, recusa o seu assentimento requerendo a Vossa Excelência que mande juntar esta aos respectivos autos para os effeitos do direito”37. Ao que parece estas declarações, que visavam impedir o prosseguimento do processo, foram ignoradas no decorrer do mesmo. Entretanto cabe perguntar: por que Antonio Gomes de Lima e Antonio José do Couto emitiram declarações que beneficiariam apenas a José Antonio da Silveira? Por puro amor à justiça? Talvez. Mas poderiam, em sua manifestação de desacordo com o processo, estar tentando preservar um estilo de vida ainda não tocado pela lógica mercantil, onde provavelmente vivessem (ou houvessem recebido a promessa de viver) como agregados de José Antonio da Silveira, o beneficiário de suas declarações. Provavelmente muitos desses domínios não sobreviveriam após a divisão, por vários motivos, como por exemplo, a perda de acesso a uma fonte d’água. Conclui-se que mesmo com o processo de registro de terras dependendo de uma autoridade – o juiz comissário – nomeada pelo governo estadual, a efetiva propriedade da terra dependia, em larga medida, das conexões do proprietário em questão com os chefes políticos municipais, até porque estes possuíam estreitas ligações com o governo do Estado, forjadas, estas, por meio do pacto coronelista. Uma parcela da bibliografia acerca do coronelismo identifica este com mandonismo38, com suas origens remontando ao privatismo reinante no período colonial. Sua especificidade, durante a República Velha, adviria da integração em um sistema eleitoral de bases mais amplas (dado o caráter indireto do voto durante a monarquia, abolido já ao final desta com a introdução do voto direto e a extensão deste a todos os homens maiores de 21 anos e alfabetizados, porém mantendo um critério censitário, já que os votantes não poderiam possuir renda inferior a 200$000,

36 Ação de divisão de terras. 2º ofício, 1896, caixa 158, volume 393, AHMF. 37 Idem. 38 Cf. Angela de Castro Gomes e Marieta de Moraes Ferreira. Op. cit., 1989, p. 250.

207 exigência que não se manteve durante a República Velha) e da subordinação do coronel aos governos estaduais. Por uma série de fatores que se tornaria escusado aqui enumerar e explicar, os grandes Estados, ou melhor, aqueles com maior poder econômico (como São Paulo e Minas Gerais), após um processo que culminaria na política dos governadores, por meio de combinações e arranjos entre si, passaram a determinar os candidatos que ocupariam o legislativo e executivo federais39. Entretanto todo este poder dependia da subordinação dos municípios aos Estados, dado que todo o processo eleitoral dependia das câmaras municipais. As mesas eleitorais, órgãos responsáveis pelo alistamento dos eleitores, pela tomada e apuração dos votos, em sua composição contava com a presença do presidente da câmara municipal e de alguns vereadores, de tal forma que as autoridades municipais de cargos eletivos se encontravam no centro de todo o processo eleitoral. Com algumas modificações nas leis eleitorais introduzidas em 1916, há uma maior participação nas mesas de autoridades judiciárias locais, mas a presença dos presidentes das câmaras e de vereadores manteve-se. A legislação, entre 1896 a 1916, garantia o voto secreto, com permissão de votar-se a descoberto, expediente que na verdade tornou-se a norma durante os pleitos, principalmente devido às relações de dependência que envolviam os chefes políticos e os eleitores. Imediatamente após o término da votação, as mesas eleitorais de cada seção dos respectivos municípios começavam a apuração. Depois de 30 dias iniciava-se a apuração geral, nas sedes dos distritos eleitorais (dividiam-se os Estados em distritos), no caso de eleições para presidente e vice-presidente do Estado de São Paulo esta segunda fase caberia à câmara municipal da capital. A apuração final dos resultados das eleições para vereadores (deve-se ter claro que durante a República Velha a participação na eleição para o executivo municipal era privilégio dos vereadores) realizou-se pelas próprias câmaras municipais até 1906, quando é atribuída às sedes de comarca40. Percebemos a existência de várias oportunidades para a fraude, tanto no alistamento quanto nas apurações. Na verdade esta farsa eleitoral41 ocorria apenas devido à existência das oposições, já que cada candidato

39 Cf. Raymundo Faoro. Op. cit., pp. 551 a 568. 40 Cf. Rodolpho Telarolli. Eleições e Fraudes Eleitorais na República Velha. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982, pp. 35 a 57. 41 Envolvia o alistamento de correligionários e o não alistamento dos eleitores da oposição, apurações fraudulentas, alistamento de eleitores com nomes de defuntos ou pessoas de fora do município de forma que

208 tinha direito a um fiscal nas seções eleitorais. Na ausência de oposição, muitas vezes as eleições se convertiam em um simples exercício de escrituração, que dispensava inclusive a presença de eleitores42. A legislação permitiu o controle, por parte dos coronéis (cuja designação provinha de título da guarda nacional que acabou por se referir às suas funções políticas) de uma extensa massa eleitoral (que, entretanto, nunca passou de 5% do total da população, mesmo quando o número de alfabetizados se torna bastante superior a este percentual) que na verdade o segue devido às possibilidades de favorecimento que este enfeixa em suas mãos: concede empregos, serve de intermediário entre o homem comum e a justiça, entre o homem comum e o fisco, realiza melhoramentos locais, etc43. Segundo Faoro: “O eleitor vota no candidato do coronel não porque tema a pressão, mas por dever sagrado, que a tradição amolda. De outro lado, não se compra o voto, ainda não transformado em objeto comercial, só possível a barganha entre partes livres, racionalmente equivalentes”44. Há certa divergência na bibliografia acerca do estrato social do qual provinham os coronéis, alguns autores identificando-o apenas com o fazendeiro, mas existe consenso sobre a posição enquanto figura economicamente polarizadora que ocupava. Segundo Maria Isaura Pereira de Queiroz, além de o coronel deter o poder econômico e político, exercia a chefia de uma vasta parentela, formada a partir de laços carnais, de aliança (matrimoniais) e espirituais (compadrio)45. Atribuiu-se, em geral, a subordinação do município aos governos estaduais ao sufocamento financeiro daquele, garantido pela constituição de 1891 que entregou a organização dos municípios diretamente aos Estados, que por sua vez reservaram a estes os impostos menos rentáveis, de tal modo que nas obras empreendidas pela edilidade esta demonstrava uma dependência visceral dos cofres estaduais. Victor Nunes Leal insiste

um mesmo correligionário votasse várias vezes, etc., processo possível pelo conhecimento, por parte dos chefes políticos, do voto do eleitor e da dependência deste em relação ao coronel. 42 Cf. Rodolpho Telarolli. Op. cit., pp. 39, 40 e 51. 43 Cf. Raymundo Faoro. Op. cit., pp. 620 a 633. 44 Idem, ibidem, p. 634. Não nos interessa aqui mostrar como Faoro enquadra o coronelismo em sua argumentação central, sobre o domínio do Estado por uma camada estamental-burocrática, mas apenas a análise que empreende acerca dos mecanismos que favoreceram a cristalização do fenômeno coronelista durante a República Velha. 45 Maria Isaura Pereira de Queiroz. O Coronelismo numa Interpretação Sociológica. In: Boris Fausto (direção). História Geral da Civilização Brasileira, tomo III, vol. 1º. 2ª edição. São Paulo: Difel, 1977, pp. 164 e 166.

209 neste ponto: “A lista dos favores não se esgota com os de ordem pessoal. É sabido que os serviços públicos do interior são deficientíssimos, porque as municipalidades não dispõem de recursos para muitas de suas necessidades. Sem o auxílio financeiro do Estado, dificilmente poderiam empreender as obras mais necessárias, como estradas, pontes escolas, hospitais, água, esgotos, energia elétrica. Nenhum administrador municipal poderia manter por muito tempo a liderança sem realizar qualquer benefício para sua comuna. Os próprios fazendeiros, que carecem de estradas para escoamento de seus produtos e de assistência médica, ao menos rudimentar, para seus empregados, acabariam por lhe recusar apoio eleitoral e o Estado – que, por sua vez, dispõe de parcos recursos, insuficientes para os serviços que lhe incumbem – tem de dosar cuidadosamente esses favores de utilidade pública”46. Faoro aponta ainda o papel repressivo das milícias estaduais e a possibilidade, que na verdade mais deixa implícita que assinala em seu texto, da utilização das concessões de terras devolutas (levanta esta questão para tratar das possibilidades de enriquecimento dos coronéis) como outros fatores da subordinação do chefe político local aos chefes políticos em nível estadual47. Em um trabalho sobre a atuação dos coronéis em Franca, Egle Roberto Menezes de Melo, em dado momento, tenta estabelecer as ligações de parentesco entre os principais chefes políticos de Franca (que o autor identifica a partir de artigos de jornais, informações de almanaques e vários outros documentos) e os laços que expõe se assemelham sobremaneira àqueles que apontamos entre as famílias francanas que investiram em casas comissárias. Ressalta a relação de Tomé Inácio Villela de Andrade com os irmãos André Martins Ferreira Costa e Francisco Martins Ferreira Costa, ambos cunhados daquele; Francisco Martins, por sua vez, possui como genros Hygino e Torquato Caleiro, que lograram uma participação destacada na política local conjuntamente com o filho de Francisco Martins, André Martins de Andrade; Outra figura de destaque no cenário político local, o Doutor João de Faria, era genro de Tomé Inácio Villela, que tinha como sobrinho por efeito de casamento Francisco Andrade Junqueira48. Com exceção de Azarias Martins Ferreira, filho de Francisco Martins, e José Joaquim da Silva, genro de Tomé Inácio Villela,

46 Victor Nunes Leal. Coronelismo, Enxada e Voto: O município e o regime representativo no Brasil. 4ª edição. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1978, p. 45. 47 Cf. Raymundo Faoro. Op. cit., pp. 630 e 637.

210 na lista de Egle estão presentes todos os sócios de Franca de casas comissárias para os quais conseguimos identificar as respectivas ligações familiares. Como possivelmente estes elementos não atuavam individualmente, mas como membros de um grupo familiar, a conclusão que se insinua parece associar de forma visceral poder financeiro e poder político. A presença de negociantes ou parentes de negociantes dedicados ao comércio do café em algumas legislaturas da Câmara Municipal de Franca – Simão Caleiro e Francisco Martins Ferreira Costa entre 1890 e 1892; Simão Caleiro, Francisco Martins Ferreira Costa, Álvaro de Lima Guimarães e Major Antonio Nicácio da Silva Sobrinho entre 1893 e 1896, Francisco Martins Ferreira Costa entre 1896 e 1898, Chrisógono de Castro e José Rodolpho Marcondes do Amaral entre 1898 e 1901 e vários de seus descendentes e parentes nas legislaturas posteriores49 – também corrobora este argumento. Desse modo, podemos afirmar que a terra tornou-se imprescindível para se obter financiamento e ao mesmo tempo a legitimação das posses dependia da atuação das autoridades municipais, entre as quais destacava-se uma camada de financistas (capitalistas locais, donos de casas comissárias) de tal modo que estes certamente favoreceriam, no tocante aos trabalhos de legitimação da propriedade da terra, aqueles elementos que já se comprometiam em enredar-se em uma relação de dependência financeira com eles próprios. De uma forma mais simplificada pode-se argumentar que somente teria suas posses legitimadas quem se dispusesse a buscar financiamento junto aos grupos de capitalistas ou comissários que detinham certa preeminência na política local (pelo menos enquanto houvesse terras devolutas)50, ainda que estas relações de favor não se resumissem apenas nisto. Evidentemente que estes grupos não ocupavam a totalidade dos cargos eletivos e que

48 Cf. Egle Roberto Menezes de Melo. O Coronelismo Francano: a consolidação da hegemonia (1880- 1914). Franca: Unesp-FHDSS, dissertação de mestrado, p. 38. 49 Cf. Idem, ibidem, pp. 28 a 32. O autor ainda mostra que se considerarmos apenas os homens que ocuparam o poder executivo municipal entre 1890 e 1912 teremos seis lavradores contra nove que desempenhavam funções urbanas demonstrando que o domínio político não estava nas mãos dos senhores territoriais, pelo menos não de forma tão evidente e absoluta quanto se tem acreditado. Quanto ao Coronel Francisco Martins Ferreira Costa, considerado principal líder político da região, sempre fiel ao Partido Republicano Paulista, foi ainda deputado estadual entre 1906 e 1910, ano em que novamente elege-se vereador vindo a falecer em 1913. Cf. Idem, ibidem, pp. 33 a 36. 50 Este argumento apenas aparentemente se choca com o fato que evidenciamos no 2º capítulo de que durante a década de 1890, justamente o período em que provavelmente existiria maior quantidade de terras não demarcadas em relação aos posteriores, haver maior número de credores de grandes quantias, entre eles vários fazendeiros, na medida em que a maior parte das operações de crédito realizadas por estes referiam-se a compras à prazo, portanto incidiam sobre terras já demarcadas, além de a prórpia conjuntura econômica do

211 também se torna muito difícil definir o grau de controle de que dispunham sobre as instituições que garantiam o exercício do poder político em âmbito local (provavelmente o dividiam com alguns grandes cafeicultores), dado que muitos desses cargos poderiam estar sendo ocupados (ou não) por dependentes desses mesmos grupos, portanto sem voz autônoma. Entretanto, a presença de personagens reputados centrais para a política local, como o Coronel Francisco Martins Ferreira Costa e os irmãos Caleiro, que ao mesmo tempo possuíam negócios à frente de casas comissárias, sustenta esta linha de argumentação. É bem possível que esta estrutura de poder se repetisse em outros municípios paulistas, mas que a condição do coronel de investidor diversificado se diluísse na de fazendeiro, notadamente nas regiões onde as propriedades rurais contassem com grande quantidade de cafeeiros51. Os pequenos comerciantes, do mesmo modo, também se encontravam em situação de dependência frente aos chefes políticos da região, bastando, para esta constatação, a forma em que se deu a apropriação do solo urbano. Em Franca, a constituição da área reservada à cidade se deu por meio da doação de parte das terras da fazenda Santa Bárbara ao patrimônio religioso em 3 de dezembro de 1805, enquanto um fator condicionante para a autorização da criação da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Franca e Rio Pardo. Já em 1824, com a elevação da freguesia à Vila, esta recebe do governo provincial uma légua de terra para servir de rossio (terra reservada para uso comum) que se sobrepôs à área do patrimônio religioso. A partir de 1836 a câmara passa a controlar efetivamente o acesso a terra, posto que por determinação de lei provincial passou a indicar o fabriqueiro da Igreja Matriz (espécie de administrador do patrimônio religioso). A aquisição de lotes de terra urbana se faria por meio de concessões da câmara municipal, não se exigindo muito além do pagamento de uma determinada taxa que variou conforme a época e a edificação dentro de um determinado período, o que, muitas vezes, na prática, não era fiscalizado.

período favorecer este tipo de relação. Na verdade buscamos indicar apenas uma tendência e não estabelecer uma correspondência rígida entre os fatores que elencamos. 51 Pode ser o caso do cafeicultor Francisco Schmidt de Ribeirão Preto, que teve expressiva participação na política municipal e que segundo Ernesta Zamboni, acumulou capital efeuando empréstimos a juros, apesar de não podermos precisar a importância dessa atividade no conjunto de seus investimentos, pois este não era o objetivo da autora. Ernesta Zamboni. Processo de Formação e Organização da Rede Fundiária da Área de Ribeirão Preto, 1874-1900. Estudos de História, vol. 8, nº 2, 2001, p. 201.

212

A Câmara deteve o controle sobre o acesso a terra urbana até 1891, quando, com o fim do padroado, a Igreja, por meio da atuação do Padre Alonso Ferreira de Carvalho, que registrou a escritura de doação de 1805 nos 1º e 2º tabeliães de nota em 1891, recuperou parte de seu patrimônio, podendo realizar livremente seus aforamentos (concessões de datas). O autor do estudo que utilizamos para analisar esta questão, Júlio César Bentivoglio, objetivava estabelecer em que medida o caráter da apropriação do solo, bem como as relações entre Igreja e Estado, influenciaram na configuração urbana de Franca. Entretanto, deixa de analisar em profundidade outros nexos relativos ao solo urbano, como a sua mercantilização, que para o autor dependia unicamente do grau de atividade econômica (não busca qualificar esta), identificando assim os períodos de maior número de doações de datas de terra diretamente a existência de um mercado de terras plenamente desenvolvido, articulando-o inclusive para a década de 1820, época em que estas propriedades convertiam-se em chácaras urbanas52. A questão reside em saber como a crescente monetarização da economia e a penetração de relações mercantis afetaram os antigos arranjos construídos em torno da apropriação do solo urbano. Bentivoglio, em um momento em que circunstancia melhor a natureza das concessões, parece estabelecer uma distinção clara entre o momento pré e pós ferrovia: “ A concessão de datas servia de instrumento político, para o poder local, que fazia a distribuição generosa de vários lotes aos seus representantes, amigos e agregados. Para a câmara, quanto mais concessões, maior o pagamento de foros, mais moradores na cidade e maior a arrecadação da décima urbana nos anos seguintes (...)Com a chegada da ferrovia em 1887 e, mais notadamente, a partir de 1890, a terra urbana tornou-se uma mercadoria apreciada, aumentando as relações de compra e venda, e acentuando o número de pedidos de concessões, devido ao temor pelo fim dessa prática”53. Entretanto, o caráter personalista das concessões parece haver permanecido mesmo com a maior negociabilidade dos imóveis urbanos, como nos demonstra uma concessão efetuada em 17 de junho de 1891 pela Câmara Municipal de Franca de uma data na Rua da Misericórdia no centro da cidade em favor de Norma Coleta de Lima e Rita de Cássia de Lima, filhas de

52 Júlio César Bentivoglio. Op. cit., pp. 47 a 116. 53 Idem, ibidem, p. 91.

213

Tristão Tavares de Lima, em recompensa aos serviços prestados por este a então Intendência Municipal54. Este valor recém adquirido pelo solo urbano gerou disputas entre Igreja e câmara municipal, que em um episódio mais específico, recorreram à justiça para resolver suas pendências. Tratava-se da utilização do largo da Matriz, disputado por ambas as instituições. A câmara havia firmado contrato com Modesto Brandão, em 6 de junho de 1892, para embelezamento e reformas no largo, que incluíam a construção de dois jardins principais, cercá-los, construir pistas laterais aos jardins, dez quiosques destinados a comércio de artigos de luxo, construir um pavilhão com uma sala destinada ao que seria a biblioteca municipal, destinar áreas para lazer, colocar portões para o livre trânsito público e abrir à visitação pública das seis horas da manhã às dez da noite. O fabriqueiro da Matriz, Padre Alonso Ferreira de Carvalho, imediatamente entrou com pedido de embargo junto às autoridades judiciárias. Alegava que não houve uma prévia desapropriação do terreno por parte da câmara e que a Igreja não autorizara a construção de quiosques. De sua parte a câmara, por meio de seu advogado, alegava que por lei cabia às câmaras deliberarem sobre logradouros públicos e construções em benefício comum e que a Igreja já havia aberto mão do terreno que formava o largo há 30 anos, em favor do trânsito e uso público, portanto a gestão sobre estes espaços cabia ao poder público municipal de Franca. Em 3 de outubro de 1893 o juiz de direito João Antunes Pinheiro proferiu sentença a favor da Igreja55. Pedro Geraldo Tosi considera este evento como o marco da perda de controle da câmara municipal sobre o solo urbano. Enfatiza também os efeitos diretos da introdução da linha férrea, que por lei poderia desapropriar os terrenos necessários em uma área de cinco léguas perpendiculares aos trilhos, formalizando pagamentos pelo solo urbano. Ressalta, a fim de demonstrar a transformação efetiva do solo urbano em mercadoria, a cessão legal de domínio e posse que efetuou a fábrica da Igreja Matriz de várias datas à margem oeste da linha férrea à Companhia Mogiana em contraprestação aos serviços que, segundo o fabriqueiro a companhia desempenhou em favor das obras da construção da nova Igreja Matriz de Franca56. Na interpretação de Tosi a ferrovia desempenha um papel ativo na

54 Cf. Termos de demarcação de terrenos, 1856-1897, caixa 17, volume 94, MHMF. 55 Júlio César Bentivoglio. Igreja, Câmara e a Disputa pelos Espaços da Cidade: a questão do largo (Franca – 1893). Estudos de História, vol. 1, nº 1, 1995, pp. 231 a 244. 56 Pedro Geraldo Tosi. Op. cit., pp. 104 a 109.

214 transformação do solo urbano em mercadoria, não apenas indiretamente, por estimular a atividade comercial, mas também diretamente, por meio das desapropriações, o que nos parece bastante crível. Apesar de reconhecer que a propriedade dos terrenos na cidade passou por disputas que se sucederam no tempo, afirma que neste processo de mercantilização as concessões realizadas pela câmara municipal perdem espaço para a aquisição via mercado destas propriedades, beneficiando sobremaneira a fábrica da Igreja, que encontraria neste tipo de operação, uma nova fonte de lucros. Ademais, sugere que a Igreja logrou conquistar efetivo domínio sobre a área que mais se valorizava na cidade, do bairro Estação, que se formou nas proximidades da linha férrea. Alguns indícios acerca desta disputa mostram que a câmara municipal ainda detinha considerável controle sobre as datas, como um requerimento enviado em 1894 pelo fabriqueiro da Matriz, Padre Alonso Ferreira de Carvalho, junto à mesma câmara, reclamando de imposto instituído sobre fabriqueiro da Igreja que afore terrenos do patrimônio, no valor de 30$000, que figurava no código de posturas do município, onde o Padre Alonso, reclamando que para cada data que a fábrica concedia para particulares recebia apenas o valor de 4$840 anuais, sem auferir nada sobre as edificações, segundo o requerente devido à própria decisão da fábrica da Igreja que assim agia para “não vexar a Municipalidade e o povo com tributos exorbitantes". Ademais, em razão deste fato, o fabriqueiro solicitou uma verba permanente da câmara municipal para a fábrica da Igreja, que segundo o próprio Padre Alonso “serviria de subsidio exclusivamente conducente a melhoramento local”57. Ora, percebe-se uma clara tentativa, por parte do Padre Alonso, em harmonizar os interesses em pugna. De fato, como Bentivoglio aponta, as concessões da câmara perduraram até o ano de 1898, mas a propriedade dos terrenos localizados à estação realmente parecem haver passado para a Igreja como um outro requerimento, encaminhado por Joaquim Mariano Amorim Carrão à câmara municipal, datado de 26 de dezembro de 1895, onde o requerente pretendia comprar da câmara um terreno junto a linha férrea a fim de construir uma vila operária, aparentemente nos revela: “...lembramo-nos de adquirir da Camara parte do terreno que ella possue em um dos pontos mais saudaveis da Franca, afim de executarmos nosso projeto. Referimo-nos a uma parte do terreno pertencente ao hospital de isolamento,

57 Diversos requerimentos, 1892-1897, caixa 69, volume 466, MHMF.

215 ultimamente comprado. O terreno que achamos mais apropriado é aquelle que se estende da porteira do isolamento com seus limites existentes de um lado, e de outro lado margea a estrada de ferro Mogyana, como indica a planta”58. A compra demonstra a crescente mercantilização do solo urbano e apesar de no documento não constar de quem a câmara comprou o terreno os argumentos que arrolamos até aqui apontam para a fábrica da Igreja. Este terreno, segundo o próprio requerente, compreendia cerca de dois alqueires de terra e a proposta de compra estabelecia um preço bastante baixo para esta, de 800$000 pelos dois alqueires59. Embora haja certamente uma busca por favorecimento pelo poder público para fins privados neste requerimento, na tentativa de rebaixamento do valor de compra dos terrenos, o preço destes de fato não alcançava grandes somas como podemos perceber pelas escrituras de dívida, onde o valor emprestado, quando a garantia se dava apenas por terrenos, o que ocorreu em quatro registros no tabelionato de 2º ofício, não ultrapassa nunca a 2:000$000 e em três deles este não chega a 800$00060. De fato, em um registro de compra e venda, de 16 de maio de 1902, em que Alfredo Rodrigues vendeu a parte de um terreno no Alto da Estação, área extremamente valorizada, os compradores despenderam com a operação a desprezível quantia de 200$00061. Como a diferença entre o valor dos terrenos e outros imóveis urbanos era muito grande – já que estes, desde que bem localizados, possuíam valores que de cinco, dez chegavam até vinte contos – e como devemos imaginar, dado o crescimento da cidade, a introdução do café, a crescente monetarização da economia, etc., um mercado comprador e não vendedor, um mercado onde a procura supera a oferta, concluímos, dados os baixos preços dos terrenos, por um baixo nível de comercialização destes. Há dados empíricos que corroboram este argumento. Tercio Pereira Di Gianni, estudando as estratégias dos imigrantes italianos no que concerne à acumulação de patrimônio em Franca, demonstrou que apenas 4,3% das transações com imóveis urbanos realizadas por este grupo étnico entre 1887 e 1916, se referiam a terrenos62. A questão, na verdade, não reside no valor dos

58 Idem. Grifos nossos. 59 Cf. Idem. 60 Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, nº 33 ao 64, AHMF. 61 Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1902, nº 19, folha 40, AHMF. 62 Tercio Pereira Di Gianni. Italianos e Propriedade Urbana na Cafeicultura Paulista (Franca-SP, 1887 a 1916). História, vol. 13, outubro de 1994, p. 76.

216 terrenos, ainda baixo devido inclusive à prática das concessões. Mas para que um comerciante se estabelecesse na cidade fazia-se necessário o acesso a um determinado terreno que ele obteria por meio de concessão (dada a baixa comercialização destes), seja da câmara, seja do fabriqueiro. Ora, com a prática das concessões, podemos inferir que se instaura mais uma forma de dependência, em que o concessionário, em caso de necessitar de financiamento (o que ocorria com certa freqüência) recorria, preferencialmente, ao responsável pela concessão, no caso ou o fabriqueiro ou alguns dos homens que enfeixavam o poder das instâncias decisórias em nível local, de tal forma que estes passam a se valer das relações de favor para atingir seus fins mercantis. O Padre Alonso, provavelmente o principal beneficiário desta prática, concentrou, entre 1880 e 1914, 51% das quantias que emprestou em operações que não ultrapassam a casa dos dez contos de réis, enquanto que os outros 49% em empréstimos referiam-se, em sua totalidade, a quantias de até vinte contos, indicando que se concentrava em financiar as atividades de pequenos comerciantes e lavradores, muitos, provavelmente, concessionários. De fato, se analisarmos os bens dados como garantia nos empréstimos realizados pelo Padre Alonso entre 1880 e 1914, constatamos, pelo montante de valor, que 38% deles se referiam a hipotecas de terras, 28% a hipotecas de imóveis urbanos, 4% a penhor de café e 30% a hipotecas mistas, de imóveis rurais e urbanos, nas quais não necessariamente as propriedades rurais constituíssem o maior ativo, já que todos os três empréstimos sobre hipotecas mistas, que ocorreram em 1888, 1890 e 1896, referem-se a uma única propriedade rural, a Fazenda do Retiro, que em nenhuma dessas ocasiões possuía mais do que 5.000 pés de café63. Portanto, o Padre Alonso efetuou 58% dos seus empréstimos, entre 1880 e 1914, com a garantia de algum imóvel urbano. Talvez fosse comum o empréstimo sobre a casa ou outro tipo de imóvel a ser construído após a concessão. Estes dados parecem corroborar nosso argumento, apesar de não havermos conseguido relacionar as propriedades concedidas a aquelas oferecidas em garantia de empréstimos, pelo menos nas informações que possuímos, que correspondem às concessões apenas da câmara até outubro de 1891, fato duplamente justificável já que neste período ocorrem poucos empréstimos e que não analisamos com maior acuidade as concessões feitas pela Igreja.

63 Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca, 1880 a 1914, nº 12 ao 79, AHMF.

217

Este controle sobre as concessões de datas urbanas também funcionava em um outro sentido, pois na medida em que as autoridades eclesiásticas ou municipais possuíssem um certo ‘monopólio’ na apropriação dos terrenos urbanos, poderiam utilizá-lo para garantir um certo monopólio na venda de imóveis, constituindo-se em mais uma fonte de recursos para os grandes negociantes de dinheiro locais, como o próprio Padre Alonso. Não possuímos dados empíricos para comprovar definitivamente o argumento, mas torna-se interessante observar que entre as concessões efetuadas pela câmara entre 1885 e 1890, apenas para a Estação e as ruas que lhe davam acesso, das 53 datas concedidas, 18 foram para Antonio Nicácio da Silva Sobrinho e para membros da família Caleiro, elementos que enfeixavam ou possuíam estreitas relações com o poder político local64. Depreende-se, após a análise que empreendemos acerca da apropriação territorial (rural e urbana) no município de Franca, que a habilidade política permanecia importante para a valorização de determinados elementos no interior da parentela, apesar de a capacidade de enriquecimento pesar cada vez mais neste sentido. Na parentela liderada por Álvaro de Lima Guimarães, por exemplo, o Doutor José Luís dos Santos Pereira, casado com uma de suas netas, desempenhava um papel político destacado, no cargo de intendente municipal, que exerceu entre 1896 e 1898 e vereador, entre 1899 e 1901, após o que um outro membro da parentela, o Doutor Francisco da Silveira Gusmão, tem certa participação política, atuando como vereador entre 1905 e 1906 e ocupado o cargo de intendente municipal por um curto período de tempo durante o ano de 1906. O Doutor José Rodolpho Marcondes do Amaral, que exercera entre 1899 e 1900 o cargo de intendente municipal, teve em seu genro Abrahão Lincoln de Melo, vereador entre 1905 e 1907, seu sucessor político65. Estas considerações se encaixam muito bem na interpretação de Oliveira Vianna acerca do papel da família após a introdução nos pleitos eleitorais do que ele chama de ‘povo-massa’, logo após a independência política conquistada em 1822. O autor, preocupado com a adequação à realidade brasileira das instituições de governo que se criaram, distingue entre direito escrito, referente à lei emanada do Estado e de suas instituições e presente em seus vários códigos jurídicos e o direito costumeiro, criado pela

64 Termos de demarcação de terrenos, 1856-1897, caixa 17, volume 94, MHMF. 65 Cf. Egle Roberto Menezes de Melo. Op. cit., pp. 29 a 33.

218 própria tradição popular, resultado da normatização cotidiana que se torna necessária às relações sociais. Em suas análises, compara sempre as instituições brasileiras com as européias e norte-americanas, especialmente com as que se instauraram e consolidaram no mundo anglo-saxão. Seu balanço se inclina a demonstrar que na Europa e nos Estados Unidos a lei escrita geralmente corresponde ao direito costumeiro até mesmo por derivar diretamente deste último, enquanto que no Brasil as normas jurídicas aparecem sempre como criação exógena, elaboradas por homens de Estado que desconheciam a realidade de seu próprio país, que importavam os preceitos jurídicos europeus e norte-americanos para aplicá-los no Brasil, em meio completamente estranho a estas normas. Como conseqüência disto não havia correspondência entre norma e prática social, ocorrendo que as instituições políticas acabam por se conformar às normas próprias do direito costumeiro66. Dentre as instituições de onde provém este direito costumeiro Oliveira Vianna aponta três como fundamentais: os clãs feudais, os clãs parentais e os clãs eleitorais. O clã feudal se refere a todo o conjunto de relações que se instaurara nos grandes domínios rurais desde o início da colonização, apresentando, como sua maior característica, uma rígida hierarquia que parte do proprietário e de sua família e desce até os estratos mais baixos da população que vivia nestes domínios (lavradores ‘com cana obrigada’, escravos, acoitados, sitiantes improdutivos, índios flecheiros, pequenos proprietários, pequenos comerciantes situados nas proximidades dos domínios, etc.). Percebe-se que se trata de uma organização que estabelecia laços entre o ‘povo-massa’ e os latifundiários67. Nesta caracterização assemelha-se a Gilberto Freyre, apenas não acentuando, como o autor pernambucano, a dimensão de trocas culturais e de relações baseadas na contemporização. Mas também aponta o caráter extensivo da família patriarcal, como neste trecho: “ Neste nosso grupo doméstico, tanto ao sul como ao norte, eram incluídos também os que, na velha família portuguesa, eram chamados ‘criados do senhor’, no sentido do antigo direito feudal. Estes ‘criados’, realmente, também apareciam na nossa família senhorial e isto era mesmo freqüente, senão a regra geral; mas, incorporavam-se a ela não como criados – o que lhes seria diminuição; mas, sob o nome de ‘crias’ ou ‘protegidos’. Nesta classe é que estavam

66 Cf. Francisco José de Oliveira Vianna. Instituições Políticas Brasileiras. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp; Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 1987, pp. 29 e 30 e 75 a 136. 67 Cf. Idem, ibidem, pp. 161 a 182.

219 os ‘afilhados’ do senhor ou da senhora, educados pelo padrinho ou pela madrinha ‘como filhos’ – e com eles residindo”68. Já os clãs parentais designam uma associação intra-elite. Correspondem ao conjunto de relações existentes entre as famílias aparentadas de grandes proprietários, seja por consangüinidade, seja por afinidade. Os clãs parentais, portanto, não se restringem a um único domínio rural, mas podem congregar vários deles, geralmente contíguos. Entretanto, como assinala Oliveira Vianna, estes clãs parentais não geraram uma organização legal ou religiosa com traços rígidos; até porque estes laços de solidariedade apenas se manifestavam em ocasiões graves, de defesa conjunta contra o índio ou contra outros clãs parentais, ou quando muito, nas grandes festas tradicionais da família e do domínio. De fato, o autor aponta como origem destes clãs a própria necessidade de defesa que adveio do processo de colonização, ressaltando a originalidade desta criação que não devia sua existência a qualquer instituição de Portugal, onde há algum tempo a família perdera as características que ganhara na América portuguesa. Ademais, na obtenção de sesmarias, segundo Oliveira Vianna, os monarcas pareciam preferir os elementos casados, de forma que possuir parentela (com vários filhos casados e parentes casados) possibilitava concessões de terras mais generosas. Elementos que conspiravam a favor da manutenção destes laços, a endogamia e o parentesco religioso (por meio da constituição de ‘padrinhos’ nos ritos do batismo da crisma e do casamento) serviram a consolidação destas extensas redes de parentela, que o autor considera como organizações exclusivas da elite. Como se percebe, praticamente inexistia, durante o período colonial, laços de solidariedade além daqueles oriundos das relações familiares e de dominação direta nas propriedades rurais, de tal forma que não havia qualquer articulação em nível nacional ou mesmo provincial ligando estes atores à época da Independência69. Os clãs eleitorais, por sua vez, se constituíram exclusivamente com objetivos eleitorais. Para fazer frente à nova realidade surgida com a constituição do Estado nacional, os senhores territoriais precisaram alargar o escopo de suas antigas solidariedades, antes restritas aos clãs feudais e parentais: “ Este código (Código do Processo de 1832), com a sua democracia municipalista, obrigava, forçava mesmo, estes senhores rurais a

68 Idem, ibidem, p. 185. Grifos no original. 69 Cf. idem, ibidem, pp. 183 a 216.

220 entendimentos e combinações entre si para elegerem as autoridades locais – como os juízes de paz (que tinham funções policiais); os juízes municipais (que eram juízes do crime e tinham também certas funções policiais); os vereadores e os oficiais da Guarda Nacional. Estes cargos ou postos eram eletivos naquela época e cabiam-lhes também funções efetivas de policiamento e manutenção da ordem”70. Inicialmente organizados em âmbito municipal, estes clãs estendem sua solidariedade a nível provincial e nacional, garantida por sua integração nos grandes partidos nacionais. Entretanto, estes clãs eleitorais se conformaram ao funcionamento próprio dos clãs feudais e parentais, pois de um lado tinha-se o ‘povo-massa’, organizado nos clãs feudais, que buscava apenas seguir a determinados chefes, não manifestando ou advogando qualquer ideologia em particular, tão somente obedecendo ao grande proprietário rural, o que muitas vezes consistia em conflitos violentos contra os grupos rivais. De outro lado têm-se a organização das agremiações eleitorais por meio e com base nas solidariedades parentais, também perseguindo apenas objetivos privados, em prejuízo de qualquer ideologia que porventura pudesse vir a pautar suas ações. Estes grupos locais buscavam sempre o apoio do governador provincial, de forma que toda a estrutura de poder oriunda dos clãs eleitorais se tornava interligada: “ É que o Governador da província dependia a designação das autoridades municipais: - e compreende-se o porquê destes grupamentos de clãs que se iam formando em torno dele. No fundo, eram grandes senhores dominicais, chefes de vastos clãs parentais, que disputavam, através dele, o mando local; quer dizer: o direito de oprimir os clãs rivais, de aconchegar parentes e amigos nos pequenos ofícios locais – o que era um meio, praticamente, de assegurar-se contra a possibilidade de perseguições partidárias dos funcionários e autoridades locais: - ‘Eram inúmeros – observa Felisbelo Freire, a propósito da história de Sergipe nesta época, numa observação que se poderia generalizar para todo o país – eram inúmeros os abusos que se praticavam na província, ficando os seus promotores sem punição, não só pelas ligações políticas que os protegiam, como pela força do elemento família, que chegava a vencer a ação da lei’”71. Como no Segundo Reinado o Conselho de Estado acabou por ganhar a faculdade de nomear várias autoridades locais e como estas se revelassem decisivas no processo

70 Idem, ibidem, pp. 220 e 221. Grifos no original. 71 Idem, ibidem, p. 222.

221 eleitoral, como já demonstramos em outra passagem, os governadores provinciais se tornaram delegados do Centro, de tal forma que toda a estrutura política moldada a partir dos clãs eleitorais se integrou em nível nacional. Entretanto, os laços de parentesco contavam tanto, que nem toda a elite se decidia pelo grupo no poder, quando seu clã parental era desalojado do governo (em todos os níveis) preferiam se manter na oposição72. Assim, em um balanço geral, o autor demonstra que os laços de parentesco e de dependência pessoal se insinuam nesta estrutura eleitoral que se sobrepõe de forma artificial a estas relações sociais, que de maneira alguma se compatibilizavam com aquela. O ‘povo-massa’, evidentemente, não se achava preparado para participar de uma estrutura democrática de governo, tal qual as populações européias que, segundo Oliveira Vianna, possuíam séculos de experiência democrática adquirida nas pequenas aldeias, pequenos povoados governados coletivamente. O autor nos fornece, portanto, um amplo quadro explicativo acerca das raízes do processo político brasileiro, destacando a ação da família também nesta esfera. Percebemos, após esta longa exposição, que se a constituição de uma economia monetarizada implica na destruição da lógica do favor enquanto mediadora de algumas relações sociais – como no caso dos agregados, sumariamente enxotados de suas propriedades tão logo a terra ganhou valor mercantil – abre espaço para que esta mesma lógica se insinue em outras relações e em outros espaços, como no caso da legitimação das propriedades em troca de uma certa fidelidade comercial e financeira, mediada pela atuação dos coronéis, de forma a reelaborar a dependência pessoal. Mais uma vez, não devemos encarar este processo sob um prisma liberal: a elite brasileira não era, neste período, ‘menos capitalista’ que suas congêneres européias e norte- americanas; ocorre, como bem demonstram Fernando Novais e João Manuel Cardoso de Mello – que apesar de se referirem a uma época posterior à que tratamos aqui apontam para características estruturais da sociedade brasileira – de o conjunto dos valores modernos73 não se consolidar no Brasil, de tal maneira que os valores modernos especificamente

72 Cf. idem, ibidem, pp. 221 a 227. 73 Os autores consideram como valores modernos aqueles oriundos da reforma protestante e da Igreja Católica de um lado e do racionalismo ilustrado de outro, que propugnavam os cuidados de si (o trabalho, o desenvolvimento espiritual, a higiene, etc.) e a ordenação da ‘boa sociedade’ (igualdade, educação democrática, participação política, autonomia dos cidadãos, etc.). Fernando Antonio Novais e João Manuel Cardoso de Mello. Op. cit., pp. 606 a 609.

222 capitalistas (dentre os quais se destaca a valorização social da concorrência) não encontram uma barreira nos valores modernos não capitalistas. A emergência de valores especificamente capitalistas ocorre no Brasil isenta de tensões, sem o obstáculo, portanto, de uma sociedade civil organizada com base no conjunto de valores legados pela modernidade. Assim, os grandes senhores do café atuam conforme seus interesses pecuniários, conformando as leis e a política à sua vontade, sem sofrer oposição sistemática do restante da sociedade. Doravante a mercantilização progressiva da sociedade conduza a determinadas transformações, estas, porém, permitiram a conservação de determinados aspectos fundamentais do conjunto do edifício social. Mas voltemos à questão do crédito. O conjunto das informações e dos argumentos construídos até este ponto nos levam a acreditar que os pequenos proprietários rurais sofreriam de uma maior dependência financeira em relação aos capitalistas locais que os cafeicultores de maior porte, entretanto devemos corroborar este indício quantitativamente e a análise das taxas de juros e dos prazos favorecem sobremaneira este tipo de análise. Nos empréstimos registrados entre 1880 e 1914 em Franca, na faixa de valor de até 10 contos, em 6% (segundo montante de valor) não há a cobrança de juros, em 43% a taxa se situa em até 12% ao ano, em outros 43% são cobrados os juros de 13 a 24% ao ano e para 8% não consta taxa74. Enquanto que dentre os empréstimos registrados no município de Franca no mesmo período, no valor de mais de 10 contos até 50 contos 69% possuem uma taxa de até 12% ao ano, 21% entre 13 e 24% de juros ao ano, em 4% não há cobrança de taxas de juro e em 6% não consta o patamar destas. Quanto aos prazos dos empréstimos, verifica-se que na faixa de valor de até 10 contos em 49% destes as quantias deveriam ser efetivamente pagas até o decorrer de 1 ano, 22% entre 1 e 2 anos, 12% entre 2 e 3 anos, 5% entre 3 e 4 anos, 3% com mais de 4 anos enquanto que 6% possuíam prazo variável (dependendo da capacidade de pagamento do devedor) e em 3% não constava prazo. Já dentre as quantias situadas na faixa de valor de mais de 10 contos e até 50 contos, 28% possuía prazo de até 1 ano, 11% de 1 a 2 anos, 20% de 2 a 3 anos, 24% de 3 a 4 anos, 11% mais de 4 anos, 2% com prazo variável e em 4% não consta prazo. Evidencia-se claramente que quanto maior a quantia mais se dilatam os prazos e mais se reduzem as taxas de juros, embora o risco do

74 Cf. Livro de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, nº 5 ao 79, AHMF. Os próximos cálculos que efetuarmos possuirão estes documentos como referência.

223 credor aumente. Tal situação, conforme já sugerimos em alguns trechos deste trabalho, talvez se deva a uma disponibilidade de maior número de fontes de crédito por parte dos grandes proprietários. Entretanto, cabe perguntar se estes empréstimos de pequena monta destinavam-se apenas a proprietários rurais. De fato, do total de empréstimos no valor de até 10 contos efetuados entre1880 e 1914 registrados no tabelionato de 2º ofício de Franca, apenas 313:845$534 ou 29% das dívidas firmadas correspondiam aos lavradores enquanto devedores, de um total de 1.074:031$902. Os comerciantes firmaram dívidas, considerando apenas estas quantias de até 10 contos, em um montante de 140:100$480, ou 13% do total. O restante dos empréstimos referia-se a devedores com ocupação indeterminada, a um expressivo número de profissionais liberais e a elementos designados genericamente como ‘proprietários’. Entretanto, é bem possível que ambos os pequenos proprietários, rurais ou urbanos, sofressem do mesmo grau de dependência no que tange ao financiamento de suas atividades. Se analisarmos as taxas de juros cobradas aos comerciantes, verificamos que nestes 140:100$480 de empréstimos destinados a esta camada profissional, 49% do total do valor corresponde a operações onde as taxas de juros situam-se entre 13 a 24% ao ano e 39% dos créditos obtidos a juros de até 12% ao ano, atingindo, portanto, taxas levemente mais altas que aquelas que estabelecemos para o total de devedores de quantias de até 10 contos. Os demais devedores, porém, também obtinham crédito a partir de taxas bastante altas de juros. Na verdade a maioria deles provavelmente se dedicava ao comércio ou a agricultura de pequenas proporções, notadamente aqueles designados como ‘proprietários’ nas escrituras, ou que apareciam sem determinação de ocupação nos registros. Observemos também a composição dos bens dados como garantias de empréstimos no gráfico abaixo:

224

Gráfico 14-Proporção por tipo de bem dado como garantia nos empréstimos de até 10 contos registrados no município de Franca entre 2% 1880 e 1914, por valor 2% 10% 4% 4% 36%

8%

34%

Imóveis Rurais Imóveis Urbanos Café e gêneros agrícolas Letras e transações diversas Mercadorias Outros Mistos Rurais/Urbanos Indeterminado

Fonte: Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, nº 5 ao 79, AHMF. Percebe-se que a quantidade de imóveis urbanos oferecida como hipoteca nos empréstimos no valor de até 10 contos, ao contrário do que acontece para o conjunto da atividade creditícia, emparelha-se aos rurais. Se acrescermos a esta constatação o fato de que nos empréstimos de pequenas quantias onde a ocupação dos devedores definiu-os como lavradores, apenas 34:085$800 ou 11% se firmaram com garantia hipotecária de imóveis urbanos, concluiremos por uma alta participação do pequeno comércio como devedor de pequenas quantias. Contudo, apesar das altas taxas de juros a que se submetiam o pequeno comércio e a pequena lavoura de café, deve-se reconhecer, a partir da análise do gráfico 13 e em contraposição à grande lavoura, a capacidade de sobrevivência dessas unidades econômicas diminutas. No caso do pequeno comerciante urbano a explicação não é difícil: nos momentos de arrefecimento da cafeicultura de maiores proporções o consumo de artigos oriundos da cidade pôde manter-se devido ao desenvolvimento de uma cafeicultura de dimensões diminutas (que não passa de cerca de 10.000 pés) e de setores do próprio meio urbano (como a ferrovia, que demanda uma série de empregados para funcionar e a produção de determinados artigos, ainda realizada em base artesanal, ou mesmo de uma

225 insipiente indústria) que desfrutavam de uma relativa autonomia em relação ao comportamento da lavoura cafeeira. Outro tanto não se pode afirmar da pequena lavoura cafeeira, e, ademais, sua capacidade de sobrevivência se mostra fundamental para entendermos a própria dinâmica da cafeicultura, posto que ela explica em parte a sobrevivência do próprio setor comercial e da atividade creditícia, que de outro modo, na ausência, por exemplo, de uma cafeicultura de pequenas proporções, em uma conjuntura de depressão econômica da grande lavoura, não conseguiria manter um nível mínimo de acumulação capaz de gerar rendimentos suficientes para aplicar em uma possível futura expansão desta última. Provavelmente, em tais circunstâncias, os grandes emprestadores de dinheiro, os grandes detentores de capital, na impossibilidade de continuarem auferindo lucros, transfeririam suas atividades e recursos para outra localidade mais dinâmica, reservando à sua antiga região a sorte de, do ponto de vista econômico, experimentar uma dolorosa regressão. Pelo gráfico 13 podemos notar que os empréstimos no valor de até 10 contos se elevam após o advento do Funding Loan de 1898, ou melhor, crescem na esteira da crise monetária do mesmo ano. Temporalmente este fenômeno ocorre concomitantemente à intensificação da participação de pequenos proprietários rurais na apropriação territorial em Franca, percebida tanto por Pedro Tosi quanto por Rogério Naques, tornando-se evidente a direção tomada por estes fluxos monetários. Contudo, a pequena cafeicultura, ao menos aparentemente, não sofre grandes abalos com o revigoramento da grande lavoura após o plano de valorização de 1906, pois estes empréstimos de pequenas quantias permanecem no mesmo patamar. Seria a pequena propriedade mais lucrativa que a grande lavoura? Pouco provável. Admitindo-se tal assertiva deveríamos constatar um enriquecimento generalizado, o que de fato parece não haver ocorrido. Na verdade, a pequena propriedade, embora menos lucrativa, demonstra uma maior capacidade para resistir às flutuações econômicas, mas por quê? Talvez aclarássemos a questão se analisássemos o inventário de um pequeno proprietário. Encontramos o inventário de Joaquim Antonio de Andrade75, o mesmo que

75 Inventário de Joaquim Antonio de Andrade. Caixa 138 do Tabelionato de 1º ofício, 1902, volume 58, AHMF.

226 acompanhamos no primeiro capítulo obtendo um empréstimo junto ao Dr. Marcílio Mourão no valor de 2:100$000 a 1,5% de juros ao mês com capitalização semestral (os pagamentos deveriam realizar-se de seis em seis meses) e garantia de 300 arrobas de café. Assinalamos que no referido empréstimo, firmado em 1900, o devedor se comprometia a entregar seus cafés na proporção de 15 quilos ao valor de 10 segundo a cotação em Santos. Ora, não há melhor exemplo para demonstrar ao mesmo tempo as condições adversas de financiamento que enfrentava o pequeno produtor e ainda assim (como observaremos nesse caso em particular) a capacidade de sobrevivência deste. Um primeiro fato chama a atenção no inventário de Joaquim Antonio de Andrade e já o distingue do grande cafeicultor: a não utilização de empregados em suas terras, o que denota a exploração do solo por meio do trabalho familiar, uma primeira forma de se rebaixar os custos de produção de que o pequeno produtor se valia. A vida de sua família não aparentava muita sofisticação, dado que a avaliação do valor total dos móveis chegava a 456$000, com um carro compondo a maior parte do montante, com 400$000. A existência do carro, todavia, indica que o próprio inventariado buscava os artigos de que necessitava na cidade, dispensando portanto os serviços de um intermediário ao mesmo tempo em que poderia também colocar os artigos produzidos em sua fazenda no mercado urbano. Joaquim Antonio possuía como semoventes oito bois ‘de carro arriados’ no valor de 85$000 cada um, uma égua russa com um poltro por 100$000, um cavalo castanho por 100$000, quatro porcos a 30$000 cada um e duas ‘marãn’ (?) pequenas no valor de 10$000 cada uma. Ora, ao menos no quesito ‘subsistência’ o inventariado em questão parecia bem suprido. Garantia-se a alimentação, mesmo em períodos de aperturas financeiras e baixa nos preços do café, com carnes e mesmo com alimentos vegetais. Embora no inventário não haja referências a cereais ou leguminosas que porventura Joaquim Antonio e sua família cultivassem em sua propriedade, talvez o valor mercantil destas se encontrassem em um nível muito baixo para sua inclusão na avaliação, ainda que facilitassem a subsistência da família. Quando se procede à avaliação dos bens imóveis, em um trecho fica implícita a cultura de outros gêneros que não o café, quando se atribui o valor de um conto para dois mil pés de café ‘nas bananeiras’, indicando a existência de um pomar. Listavam-se mais mil pés de café no quintal, no valor de 500$000, num total de três mil pés de café na

227 propriedade, além de uma casa coberta de telhas ‘em péssimo estado’, pasto cercado de arame, no valor de 700$000 mais uma casa com paiol (geralmente utilizado para armazenagem de milho seco) cobertos de telhas, monjolo e quintal com café e cercado de arame, no valor de 1:400$000. As partes de terras que possuía, de cultura e campos, na fazenda ‘Rangel Bôa União’ ou ‘arrependidos’ fora avaliada por 5:000$000, num patrimônio total de 10:076$000. O fato de a família praticamente não possuir mobília, embora indique um nível muito baixo de vida, não significa que não travasse relações com a economia citadina, pois ao menos algumas roupas e alguns tipos de alimentos deveriam buscar no meio urbano (ainda que em quantidades mínimas), além de ferraduras para os animais, instrumentos de trabalho agrícola, arreios, etc, não contradizendo nossa afirmação de que a sobrevivência do pequeno comércio dependia, em parte, da sobrevivência da pequena lavoura, até porque, se a pequena propriedade se encontrasse em uma situação de completa autonomia, não far- se-ia necessário a entrada de seus produtos no giro mercantil, notadamente o café. Portanto, podemos concluir que ainda que menos lucrativa que a grande propriedade, a pequena lavoura, dadas as suas condições de vida material, se encontrava em muito melhores condições para sobreviver às flutuações econômicas, permitindo que os grandes capitais permanecessem se valorizando, mantendo um nível mínimo de acumulação. Esta afirmação se confirma na medida em que para pagar as antigas dívidas de Joaquim Antonio de Andrade, a família não se desfez de nenhum bem legado pelo finado, ao menos segundo as informações constantes do inventário. A dívida para com Marcílio Mourão, firmada em 24 de fevereiro de 1900, com a inclusão de juros até 24 de agosto do mesmo ano, de 2:100$000 passou a 2:289$000; com o pagamento, em café, de 1:655$000, reduziu-se a um total de 634$000, que somado aos juros computados até 29 de dezembro de 1902, elevou-se a quantia de 944$000, que com mais um pagamento de 355$380, mais uma vez em café, chegou a 608$620. Isto corrobora a argumentação que seguimos até aqui, de que se rolavam as dívidas até o limite da capacidade de solvência do devedor, evitando-se as execuções hipotecárias e ao mesmo tempo conferindo uma alta lucratividade ao investimento do credor. Mas demonstra também uma capacidade de manutenção das dívidas pela família de Joaquim Antonio, pois aquela em nenhum momento sofre uma alta muito elevada, mesmo com os devedores

228 pagando o montante com cada arroba de café cotada ao preço de dez quilos do produto. O fato de a família de Joaquim Antonio não conseguir pagar efetivamente o empréstimo também não significa que esta ficasse na contingência de não poder adquirir produtos na cidade, na medida em que outros artigos produzidos na fazenda (arroz, milho, porcos, etc.) poderiam entrar no giro mercantil. Quando observamos o movimento da cafeicultura em Franca, percebemos que, segundo os dados da tabela 4 do capítulo I, a produção sofre uma ligeira queda de 4.998,92 toneladas em 1897 para 4.784,91 no ano seguinte, subindo a partir deste ano até 1902, quando chega a 9.755,31 toneladas. Até o ano de 1902 devemos considerar esta elevação como resultado das plantações que ocorreram até 1898, já que o fruto do cafeeiro demora no mínimo quatro anos para surgir após o plantio. Em 1903 a quantidade produzida já cai a 8.389,06 toneladas, como efeito da queda de preços, mas também da geada do ano anterior, que atinge todo o Estado e eleva sobremaneira os preços, com seus efeitos repercutindo inclusive sobre o montante dos empréstimos efetuados entre 1902 e 1904. A produção permanece em queda até 1905 quando chega a 5.490,61 toneladas, mas em 1906 chega a 8.469,10 e curiosamente neste ano há um nível muito baixo de empréstimos, chegando a cerca de 100 contos o total registrado no Tabelião de 2º ofício de Franca. Neste ponto avançamos para a questão central de nosso trabalho e cabe perguntar: esta expansão ocorrida em 1906 deveu-se apenas à pequena lavoura ou também à grande cafeicultura? Se também a esta, quais os mecanismos de que se valia para operar na ausência de fontes mais abundantes de financiamento? Sem dúvida alguma, as escrituras de dívida não podem nos ajudar neste ponto. Se retrocedermos quatro anos a partir de 1906, percebemos que os cafeeiros que atingem a maturidade neste ano provavelmente foram plantados entre os anos de 1901 e 1902 – pois não podemos considerar o aumento do total de café produzido em 1906 como resultado ainda dos plantios da década de 1890, já que a produção dos anos anteriores a 1906 se situou em patamares bem mais baixos – exatamente quando se sentiu com maior força a carência de fontes efetivas de crédito. Note-se que estas plantações não responderam sequer a um estímulo dos preços oriundo de sua elevação a partir da geada de 1902, já que estes novos plantios não se realizaram no ano seguinte, mas entre 1901 e 1902. Torna-se impossível pensar nesta expansão sem considerarmos o papel da pequena

229 lavoura76, posto que os grandes cafeicultores, tomados isoladamente, não responderiam sozinhos por esta expansão, talvez nem sequer pela maior parte dela77. Entretanto, as grandes propriedades sobrevivem, a ponto de poderem renascer com toda a força após o plano de valorização de 1906 e devemos entender como isso se tornou possível. Rogério Naques Faleiros parece haver resolvido parte do problema quando demonstra que com a crise financeira de 1898 os fazendeiros passam a adotar a parceria ou a empreitada nas relações de trabalho, dirimindo prejuízos em que porventura incorressem devido a uma queda nos preços do café78. Ademais, quando atenta para o fato de os maiores proprietários se desfazerem de suas terras para sanar dívidas, acaba por apontar outro mecanismo do qual os maiores proprietários se valeram fartamente para garantir sua sobrevivência. Poderíamos indagar se na verdade isto não representava um golpe definitivo na cafeicultura de maiores proporções, já que, com a desvalorização das terras os fazendeiros se desfaziam de um ativo que adquiriram por um valor bastante superior ao que naquele momento recebiam por abrir mão da propriedade destes bens, sofrendo um prejuízo e uma perda patrimonial que os desabilitaria, desde então, a realizar vultosos investimentos na cafeicultura. Entretanto, não devemos esquecer que para muitos proprietários fundiários a apropriação territorial se deu sem maiores custos que aqueles necessários à intimidação e a cooperação de determinadas autoridades na legitimação de suas posses, de tal modo que mesmo não conseguindo vender os frutos de seus cafezais poderiam ‘empatar’ as suas contas ou até mesmo auferir uma pequena margem de lucro. Compradores, por incrível que pareça, não faltariam, na medida em que imigrantes ou pequenos lavradores trabalhando no

76 Apesar de o pequeno cafeicultor também depender de financiamento para a expansão de seus cafezais, como já demonstramos, suas necessidades por numerário certamente se situavam em um nível muito mais baixo que as do grande proprietário, que incorria em pesados gastos monetários com a mão-de-obra. Podemos inferir que a pequena lavoura encontrava condições muito mais favoráveis para sua expansão durante as baixas do preço do café que as maiores. 77 Na verdade, segundo números apresentados por Rogério Naques Faleiros, o número de contratos para trato de café lavrados entre 1900 e 1906 não chega sequer à metade do mesmo número para o período compreendido entre 1888 e 1898, o que demonstra que os cafeicultores de maior porte, mesmo num contexto em que o colonato cedia lugar à parceria, não reuniam, naquele momento, condições para efetuar uma expansão em suas lavouras da magnitude que nos sugere as quantidades de café embarcadas na Estação Franca da Mogiana no ano de 1906. Cf. Rogério Naques Faleiros, op. cit., p. 24, gráfico 1. 78 Mesmo com a introdução da parceria os fazendeiros continuariam incorrendo em alguns gastos, principalmente para abastecer seus armazéns, necessários ao fornecimento de produtos indispensáveis à sobrevivência do colono e de sua família. Ademais, muitos cafeicultores herdaram pesadas dívidas do período anterior.

230 sistema de parceria ou empreitada permaneciam almejando, mesmo em uma situação de crise da cafeicultura, tornarem-se proprietários. Evidentemente este tipo de procedimento não se facultava a todos. Antonio de Moraes Ribeiro, falecido em 190279 é um exemplo de cafeicultor de médio porte (para os padrões de Franca, onde os maiores cafeicultores possuíam algumas poucas centenas de milhares de pés) que não reuniu condições de sobrevivência frente à crise. Em seu inventário constavam móveis no valor total de 3:910$000, benfeitorias em sua fazenda, denominada ‘Japão’, no montante de 8:100$000 entre as quais nove casas para colonos cobertas de zinco, mais 36.000 pés de café formados no valor de 32:400$000, 100 alqueires de campos no valor de 6:000$000, 37 alqueires de capoeirão grosso montando a 9:250$000, 20 alqueires de culturas em pasto avaliados por 3:000$000, 50 alqueires de culturas em invernada de capim jaraguá e gordura por 7:500$000, 5 mil covas com café plantado em 1902 avaliados por 250$000 mais 15 alqueires de terras de culturas fechadas e ocupadas pelo café, avaliadas por 2:250$000 além dos frutos pendentes do café, calculado em 800 arrobas e avaliados em 800$000. Nota-se, pelas cinco mil covas abertas para o plantio de café, que mesmo nas maiores propriedades expandia-se o plantio, talvez numa tentativa de compensar preços baixos com aumento nas quantidades transacionadas, uma estratégia que coletivamente não poderia funcionar como no Vale do Paraíba. Entretanto, estimava-se um número medíocre de frutos a produzir-se, apenas 800 arrobas, uma quantidade muito aquém das potencialidades de 36.000 pés de café. Na verdade, segundo a produtividade estimada por Pedro Tosi em Franca para o ano de 1902, de 154,2 arrobas por mil pés, a fazenda Japão poderia produzir 5.551,2 arrobas neste ano de 1902. Neste caso, por que a estimativa de colher apenas 800 arrobas? Ora, no inventário também se encontram referências a casas para colonos, mas nenhum indício de dívidas para com estes ou com parceiros. Se haviam trabalhadores na fazenda, em 1902 ou nos anos anteriores, diante da crise provavelmente foram dispensados e não haveria quem colhesse todos os frutos produzidos de tal forma que estes apodreceriam nos pés.

79 Inventário de Antonio de Moraes Ribeiro. Caixa 35 do Tabelionato de 1º ofício, 1902, volume 85, AHMF.

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Apesar desse quadro adverso, Maria Lemes Ribeiro, viúva de Antonio de Morais Ribeiro, poderia dar prosseguimento à produção de café em sua fazenda – já que os filhos eram menores de idade – financiando suas atividades vendendo parte de suas terras, não fosse a existência de dívidas mais antigas que seu marido não saldara. Três credores declararam possuir dinheiro a receber do finado, o que foi prontamente confirmado pela viúva. O Coronel Joaquim Ferreira Ribeiro deveria receber 10:800$000 mais 11:159$000 de juros acumulados à uma taxa de 8% ao ano, José Antonio Ribeiro, pai do finado, 9:000$000, sem qualquer taxa de juros e Dona Helena Nogueira da Silva Moraes 2:500$000 mais 3:900$000 de juros acumulados à uma taxa de 10% ano, de forma que a dívida total para com esses três credores e herdada por Maria Lemes Ribeiro montava a 37:359$000. Mais uma vez percebemos que os laços de família permitiam melhores condições de crédito, como neste caso, onde as taxas de juros se encontravam em níveis bastante baixos (os sobrenomes do Coronel Joaquim e de Dona Helena também sugerem parentesco com o finado). Aparentemente não havia nenhum documento comprobatório da dívida, já que o Curador de órfãos exigiu o depoimento de algumas testemunhas que reconhecessem a existência das dívidas (o que demonstra também o peso dos laços de confiança nas relações creditícias), que, de fato, foram arroladas e confirmaram inclusive o valor total desta. As obrigações financeiras da viúva para com os credores, no entanto, foram recalculadas pelo contador Francisco Baldoíno de Moraes, que a situou, incluindo algumas despesas de Maria Lemes Ribeiro com negociantes e médicos, em 32:525$250. Na partilha o juiz destinou alguns bens para o pagamento dos compromissos herdados por Maria Lemes Ribeiro, compostos pelos 36.000 pés de café formados e que segundo as declarações constantes do inventário encontravam-se em bom estado e mais a terra onde estes se encontravam, compostas de 15 alqueires. Entretanto, Maria Lemes Ribeiro solicitou ao juízo a adjudicação da dívida, que pelo teor do documento provavelmente referia-se à sua renovação. Os credores concordaram e no dia cinco de maio de 1904 Maria Lemes Ribeiro e o Coronel Joaquim Ferreira Ribeiro, residente em São João Baptista do Arrozal do Pirahy, Estado do Rio de Janeiro, lavraram escritura de dívida em favor deste último no valor de 32:525$250, a ser paga no prazo de seis anos com uma taxa de juros de 6% ao ano, condições favorabilíssimas, como podemos perceber. Entretanto,

232 nem sequer assim Maria Lemes Ribeiro conseguiu reerguer os negócios de seu finado marido, tanto que por ocasião do vencimento do empréstimo, no ano de 1910, requereu ao juiz de direito a expedição de edital para venda em hasta pública de todas as suas terras e de seus filhos, segundo sua alegação para arcar com o pagamento da dívida. O grande problema enfrentado pareceu residir no financiamento, pois além de não lucrar com a venda de café da safra de 1902, à viúva estava vedada a obtenção de recursos por meio da venda das terras que lhe couberam por partilha, já que todas elas foram hipotecadas, o que não lhe permitiu fazer frente aos compromissos assumidos com o Coronel Joaquim Ferreira Ribeiro e que provavelmente também lhe obstou o recurso a novas fontes de crédito, não conseguindo, assim, obter meios materiais para prosseguir com a produção de café, mesmo após o plano de valorização de 1906. Torna-se evidente que a estrutura da fazenda não se perde, apenas troca de mãos. Portanto, contanto que os grandes financistas mantivessem uma certa margem de lucratividade, a cafeicultura de maiores dimensões poderia renascer, com ou sem estes grandes negociantes de dinheiro à frente da administração das fazendas. Também percebemos que mesmo em situação de dificuldades de colocação de seu produto no mercado, ou mesmo em razão destas, o cafeicultor de maior porte ainda tenta, até o limite de suas capacidades, expandir sua produção. Obviamente, coletivamente estas tentativas estavam fadadas ao fracasso, já que neste momento a cafeicultura de São Paulo não poderia operar como sua congênere do Vale do Paraíba, compensando queda nos preços com aumento da produção. Entretanto, enquanto estratégia individual pôde funcionar para alguns, desde que esses elementos dispusessem de formas alternativas de financiamento (como a venda de terras) ou se saíssem bem sucedidos num esforço de contornar suas necessidades monetárias, por uma minimização de seu uso. Expliquemos com um exemplo. Em uma dissertação de mestrado sobre a atuação de Costa Machado, um eminente cafeicultor e negociante de São José do Rio Pardo, Fábio Augusto Missura nos mostra alguns casos em que o fazendeiro conseguia levar adiante suas atividades econômicas sem o uso ostensivo da moeda. Analisando 140 cadernetas de contas de colonos de uma das fazendas de Costa Machado, a Vila Costina, entre 1891 e 1892, demonstra uma situação de endividamento de todos estes para com o fazendeiro, endividamento oriundo

233 principalmente dos gastos dos trabalhadores no armazém da fazenda80. Mas o colono não poderia escapar a esta armadilha simplesmente buscando adquirir os artigos de que precisava de outras fontes, como os comerciantes da cidade? Vejamos o que afirma Missura: “Os colonos tinham liberdade para fazerem suas compras onde preferissem. O fazendeiro, por sua vez, procurava controlar o monopólio de seu negócio, evitando que nenhum concorrente se estabelecesse na vizinhança. Na fazenda Vila Costina desenvolveu- se um artifício bastante curioso como forma de manter o colono preso ao armazém e à farmácia (havia uma farmácia dentro da fazenda): criou-se uma espécie de moeda interna, que o colono recebia como vale; como esse vale dificilmente era aceito na cidade o trabalhador não tinha outra alternativa a não ser gastá-lo no armazém da própria fazenda”81. Neste ponto observamos duas formas de achatar os custos monetários das operações de uma fazenda de café: primeiro superexplorando os colonos, posto que na medida em que se atinge um monopólio mercantil em relação a estes, abre-se ao cafeicultor a possibilidade de elevar sobremaneira o preço dos produtos vendidos a seus empregados impingindo uma situação de endividamento que dificilmente se contornaria; segundo dispensando a utilização de moeda nas relações entre o fazendeiro e seus colonos. Entretanto, se pensarmos no conjunto das relações travadas pelo cafeicultor, devemos nos indagar sobre a forma como este obtinha os produtos que vendia em seu armazém. Há apenas uma possibilidade: estes produtos saíam diretamente dos estabelecimentos comerciais das cidades para a fazenda, o que exige mais uma pergunta: como o fazendeiro pagava por estes artigos? Certamente que se tratavam de compras a prazo, mas até que ponto o comerciante poderia esperar pelos pagamentos em moeda? Na verdade nestas transações havia mais uma forma de se minimizar o uso da moeda, que consistia em trocar alguns gêneros produzidos pelos colonos, como arroz, feijão e milho, por mercadorias que estes mesmos colonos necessitavam. Mas como o fazendeiro obtinha estes gêneros? Na verdade Rogério Naques Faleiros demonstra que vários contratos de trabalho em que se concedia ao colono a plantação de gêneros que não o café, a venda destes, evidentemente do excedente, deveria se realizar em regime de exclusividade em

80 Cf. Fábio Augusto Missura. Costa Machado: ação política e empresarial na sociedade do café em Rio Pardo (1877-1917). Franca: Unesp-FHDSS, 2003, dissertação de mestrado, pp. 46 e 47. 81 Idem, ibidem, p. 47.

234 benefício do cafeicultor, ou quando muito dividiam meio a meio esta produção82. No inventário de Joaquim Garcia Lopes da Silva Júnior83, datado de 1911, notamos que em suas três fazendas: Santa Amélia, Jaguarão e dos Buritys, o inventariado possuía uma certa quantidade de cereais estocados; na Santa Amélia 500 sacos de arroz avaliados a 5:500$000, 25 carros de milho avaliados por 425$000 e 80 sacos de feijão que montavam a 160$000; no Jaguarão 8 carros de milho na roça a 200$000, 7 carros de milho no paiol a 245$000 e 20 sacos de feijão ainda por colher a 40$000; nos Buritys 30 carros de milho no paiol a 1:050$000. Claro que não se tratavam de valores muito expressivos, mas o fundamental é que poderiam ser trocados por gêneros comercializados na cidade, dispensando o uso de moeda. Mesmo que não houvesse uma perfeita equivalência entre as mercadorias que o fazendeiro entregava ao comerciante e as que este fornecia para aquele, ainda assim estas operações diminuíam substancialmente as dívidas do primeiro para com o último, possibilitando um maior alargamento dos prazos e mesmo um menor dispêndio em moeda. Há também outro fator que pode haver permitido uma maior liberalidade do pequeno comércio para com as dívidas dos cafeicultores de maior porte: a maior obtenção de empréstimos pelos pequenos negociantes após o Funding Loan, conforme já sugerimos neste capítulo. Este redirecionamento dos fluxos de crédito, ao beneficiar o comércio citadino de pequenas proporções por certo o facultou a também lançar mão de operações de vendas a prazo, como se observa no gráfico abaixo:

82 Cf. Rogério Naques Faleiros. Op. cit., p. 91. 83 Cf. Inventário de Joaquim Garcia Lopes da Silva Júnior. Caixa 139 do Tabelionato de 1º ofício, 1911, volume 66, AHMF.

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Gráfico 15-Comparação entre créditos e débitos dos comerciantes locais de Franca segundo as escrituras - 1889-1914

150

100

Contos 50

0 1889 1890 1891 1892 1893 1894 1895 1896 1897 1898 1899 1900 1901 1902 1903 1904 1905 1906 1907 1908 1909 1910 1911 1912 1913 1914 Ano

Comerciantes e negociantes locais como emprestadores Comerciantes e negociantes locais como devedores

Fonte: Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, nº 5 ao 79, AHMF.

Com exceção do grande endividamento efetuado pelos comerciantes locais no ano de 1896, os débitos seguem o mesmo movimento dos créditos, ou melhor, o comerciante demandava crédito quando ele mesmo oferecia crédito. O montante de dívidas de 1896 talvez se explique pela própria dinâmica da cafeicultura francana, que se consolida na metade da década de 1890, de modo que provavelmente mais comerciantes investiam na região e os já estabelecidos buscassem aumentar seus estoques. Não fosse a enorme tomada de empréstimos em 1896 e provavelmente os débitos superariam ou igualariam os créditos em 1899, assim como ocorreu em 1903, demonstrando que isso acontecia em épocas em que a necessidade dos cafeicultores de maior porte por numerário era mais intensa, já que em 1899 ainda tentavam manter a expansão anterior sob as novas condições de financiamento e em 1903 procediam a uma nova expansão da lavoura estimulados pelos novos preços alcançados pelo café após a geada de 1902. No restante do período os empréstimos concedidos e as dívidas firmadas pelos comerciantes se estabilizam em um certo nível superior ao da década de 1890 no caso dos créditos, já que durante aquela os comerciantes praticamente não emprestaram; no caso dos débitos em um nível constante, porém inferior ao dos montantes a receber. Assim, podemos concluir que desde que os usurários locais ou outras categorias de fornecedores de crédito mantivessem uma certa margem de lucratividade, ainda que

236 pequena, a cafeicultura de maiores proporções encontraria condições adequadas para renascer nas conjunturas favoráveis, o que explica seu ressurgimento no período posterior ao plano de valorização. Isto só se mostrou possível devido aos rearranjos ocorridos na produção cafeeira e que, em grande medida, dispensavam o uso mais largo da moeda. Têm- se, portanto, a pequena propriedade que quase bastava a si própria e as maiores propriedades onde os cafeicultores dispunham de vários recursos para empreender um estreitamento das relações monetárias com seus colonos, o que, por sua vez, apenas poderia ocorrer em uma sociedade altamente hierarquizada. A pequena propriedade produtora de café mostrou-se fundamental para a manutenção de uma margem de lucratividade mínima para os senhores do crédito, que durante o período compreendido entre 1899 e 1906 voltaram-se para os pequenos cafeicultores e para os pequenos comerciantes, que também dependeram da demanda da pequena propriedade rural para sobreviver. Destarte, além de fundamental para a manutenção dos níveis de acumulação, dada sua imensa capacidade de sobrevivência, a pequena cafeicultura ainda mostrou um grande potencial (certamente bem menor que o da grande cafeicultura em uma conjuntura financeira favorável) para expandir-se na ausência de abundância de numerário, sendo responsável, juntamente com algumas das grandes propriedades que conseguiram contornar suas aperturas financeiras, pela expansão da lavoura cafeeira no ano de 1906, ao menos para Franca. Resta saber, conforme avancem os estudos sobre outras regiões, qual a abrangência deste argumento.

237

Considerações Finais

O leitor atento certamente identificou nossas principais conclusões. Resta-nos uma palavra final, com viés mais de ênfase que de explicação, sobre as duas principais problemáticas que este estudo levanta, uma de teor mais econômico e outra mais abrangente, ainda que ambas se integrem no que concerne ao papel tão crucial desempenhado pelo crédito no complexo cafeeiro paulista. Ambas representaram um imenso desafio dado o caráter quase que inexplorado das questões que abordamos e esperamos, que, findo o empreendimento, tenhamos correspondido ao menos em parte às pretensões que manifestamos com relação à presente pesquisa. Mas isto cabe ao leitor julgar. Questão central para nosso estudo, que nucleou todas as outras, a indagação sobre a forma como a lavoura cafeeira conseguia financiar suas atividades em condições extremamente desfavoráveis, muitas vezes agravadas por conjunturas adversas do ponto de vista financeiro, mostra-se fundamental para o entendimento do movimento da acumulação de capital no interior do complexo cafeeiro paulista. Infelizmente necessitamos circunscrever o estudo a apenas um município, razão pela qual os argumentos que esboçamos ainda não podem servir a maiores generalizações. Entretanto, consideramos que se deve avaliar um estudo pelas portas que abre mais do que pelas que fecha, a fim de que possa oferecer um conjunto de reflexões capazes de inspirar e influenciar pesquisas posteriores. Esperamos que isto também ocorra com relação às questões que levantamos acerca do papel do comissariado e dos emprestadores locais no financiamento da economia cafeeira. Quanto à pequena porta que fechamos, não deixou de nos surpreender que nossa argumentação se inclinasse a conferir um papel destacado para a cafeicultura de pequenas dimensões no que tange à sobrevivência da lavoura cafeeira. De fato, no transcorrer do trabalho, percebíamos a necessidade de se distinguir entre as lavouras de maiores proporções e as diminutas, ainda que um limite claro entre ambas se mostrasse difícil de se divisar. Elas não se diferenciam somente devido a condições diversas de financiamento, mas principalmente na forma de operação. Na grande lavoura todas as atividades se

238 conformam de acordo com as necessidades de lucratividade do fazendeiro, seu fim último a orienta decisivamente para o mercado. Outro tanto não se pode afirmar acerca da pequena lavoura cafeeira, parte mercantil de uma realidade econômica (a pequena propriedade) caracterizada, fundamentalmente, por perseguir, primariamente, a subsistência e apenas secundariamente a colocação de seus produtos no mercado. Desta forma, o café é, na pequena propriedade, apenas a forma mercantil de se completar esta subsistência; serve tão somente à obtenção de alguns artigos (de alimentação, vestuário, ferramentas, etc.) que o pequeno proprietário não poderia obter autonomamente. Conseqüentemente, a principal distinção que efetuamos entre pequena e grande lavoura consiste no fato de a primeira não empregar mão-de-obra além daquela relativa à força de trabalho do restrito círculo familiar do próprio proprietário. Esta distinção nos pareceu mais adequada que qualquer outra que se detivesse no número de cafeeiros ou extensão das propriedades, já que refletiria não apenas o tamanho dos empreendimentos como também sua própria lógica. Evidentemente que a grande lavoura também buscou formas de se acomodar às flutuações próprias de uma economia cafeeira, de modo a amortecer seus impactos, que, em geral, foram acompanhados de políticas financeiras igualmente impactantes. Estas acomodações se verificam principalmente nas relações entre cafeicultor e colonos ou cafeicultor e parceiros. Na medida em que o fazendeiro estreitava ao máximo a necessidade de pagamentos em moeda, impingindo um processo de endividamento à mão-de-obra das fazendas, via compras no armazém, às quais os colonos ou parceiros acabavam obrigados, dada a utilização de mecanismos tais como vales, de circulação apenas interna, o cafeicultor lograva minimizar sua dependência financeira com relação aos prestamistas, fossem ‘capitalistas’ ou comissários. Mas os fazendeiros não extorquiam a mão-de-obra apenas pelo lado do gasto efetuado por esta; também tolhiam suas rendas na medida em que obrigavam que os colonos ou parceiros comercializassem os excedentes de suas lavouras de subsistência exclusivamente ou preferencialmente com eles, fazendeiros. A fim de construirmos um quadro mais complexo do crédito, voltamo-nos também para o papel dos comerciantes, notadamente no que concerne à venda de mercadorias a prazo para os cafeicultores. Se estes negociantes não suportassem um longo tempo de espera pelo pagamento de seus devedores todos os mecanismos engendrados pelos fazendeiros com o fito de se indepentizarem ao maior grau possível da moeda

239 simplesmente não funcionariam a contento. Ocorre que parte dos gêneros obtidos junto aos colonos ou parceiros pelos cafeicultores (já que parte dessa produção poderia ser ‘exportada’ para fora do município) destinar-se-iam ao pagamento de suas dívidas com os comerciantes da cidade, já que esta necessitava desses gêneros para sobreviver. Ademais, quando a lavoura de maiores proporções entra em crise, os usurários locais prontamente voltam-se ao financiamento da pequena lavoura e do pequeno comércio, razão pela qual manteve um nível mínimo de lucratividade. Claro que, como demonstramos, estes desnivelamentos, que em situações de acesso fácil ao crédito propiciaram uma margem de lucros considerável para os cafeicultores, durante os períodos de escassez monetária, beneficiaram também algumas de suas unidades produtivas, mas parte delas sucumbiu. Após delinearmos este quadro, percebemos que da própria estrutura da economia cafeeira emergiram arranjos que tornaram-na mais resistente aos abalos financeiros, às aperturas monetárias, criadas, em última instância por seu próprio movimento combinado a determinadas direções seguidas pela política monetária. Estes arranjos, esta nova configuração que a lavoura de café acabou por adotar no município de Franca (quiçá em outros mais), baseou-se, amplamente, na presença da pequena propriedade produtora de café (mas não apenas), que, embora tremendamente ineficiente quando o objetivo é lucrar, mostrou enorme capacidade de sobrevivência, ao contrário da cafeicultura de maiores proporções, que dependia de condições favoráveis de financiamento e colocação de seu produto no mercado para prosperar. Esta nova configuração da cafeicultura demonstrou ser tão poderosa que permitiu não apenas a sobrevivência da lavoura cafeeira como sua expansão, exatamente no período de maior carência monetária, entre 1900 e 1902. Este simples fato pôde manter o nível de acumulação, demonstrando o quão essencial é esta questão. O sucesso destes arranjos residiu no fato de se encontrarem no limiar entre as estruturas do cotidiano, que englobam amplamente todas as soluções civilizacionais dadas às questões de sobrevivência, tais como a forma como os homens comem, bebem, se vestem, moram, obtém energia, transportam – cujo significado último embora seja a garantia da subsistência não se esgota neste ponto – e a economia, como as entende Braudel. O modo em que se conformaram estas estruturas do cotidiano muitas vezes possibilitou a alguns dos homens que viviam neste mundo do café, em maior ou menor

240 grau, prescindirem das relações de mercado. Mas o resultado curioso deste processo consistiu em oferecer condições para que estas relações mercantis e mesmo a acumulação pudessem se repor. Estas estruturas do cotidiano realmente se mostraram necessárias para a sobrevivência a longo prazo da cafeicultura, pois, afinal de contas, os jogos do mercado, das trocas, não eram e nunca são, para qualquer um. Podemos perceber isso, nos termos em que Braudel propõe, a partir de sua apreciação da moeda: “E estes jogos não se limitam à Europa. É em escala mundial que se projeta e se explica o sistema, vasta rede lançada sobre as riquezas dos outros continentes. Não é de desprezar o fato de, com o século XVI, para benefício da Europa, os tesouros da América se exportarem até para o Extremo Oriente, aí se convertendo em moedas locais ou em lingotes. A Europa começa a devorar, a digerir o mundo. Por isso, protestemos contra certos economistas do passado, até de hoje, que parecem lamentá-la retrospectivamente, duvidar da sua saúde: sofreria, dizem, uma hemorragia monetária permanente em direção ao Extremo Oriente. Primeiro, não morreu disso. Depois, é o mesmo que dizer de alguém que bombardeia uma cidade prestes a ser tomada que vai gastar balas, pólvora e esforços”1. Por que Braudel argumenta que este fluxo monetário em direção ao Oriente se constituiu em peça chave para a dominação do mundo pela Europa? Ora, para o eminente historiador francês, a grande acumulação de capital não se processa sem desnivelamentos entre o detentor da mercadoria e aquele que a consome, tal que se estabeleça uma situação de monopólio responsável por uma extraordinária ampliação da margem de lucro. Na verdade, para Braudel o capitalismo se situaria acima do processo elementar de trocas – este dominado pela concorrência e pela especialização – como um setor da vida econômica caracterizado pela diversificação, pela versatilidade, o que permite ao capitalista participar de uma extensa gama de investimentos, se colocando acima da concorrência e ao mesmo tempo desviando constantemente suas inversões de um ramo para outro, conforme a conjuntura o exige. Ora, até o advento da Revolução Industrial, esta acumulação, acima dos

1 Fernand Braudel. Op. cit., Civilização Material..., vol. I As estruturas do cotidiano, p. 419, grifos nossos.

241 padrões ordinários, ocorria no seio do comércio de longa distância, atividade em que poucos reuniriam condições para operar. Assim, o fluxo monetário que adentrava o Oriente via Europa, garantia a esta a entrada das mercadorias orientais neste comércio. Como corolário pode-se afirmar que desta forma o Extremo Oriente colaborou e estimulou a acumulação de capital na Europa aceitando suas moedas. A moeda, portanto, serve, não raro, a fomentar ou reforçar hierarquias na vida econômica. No complexo cafeeiro paulista, a moeda fiduciária bancária, como observamos, circulava apenas em seus centros nervosos, nas cidades e principalmente na capital paulista. O crédito ao cafeicultor, por outro lado, funcionava como uma bomba de sucção deste para os comissários e usurários citadinos, que concentraram de fato os recursos oriundos da acumulação de capital. Entrar nos jogos do crédito era entrar subordinado a estes personagens. Para minorar os efeitos deletérios desta subordinação, o fazendeiro, por sua vez, criava instrumentos que também funcionavam como bombas de sucção com relação à mão-de-obra empregada nas fazendas, cujo instrumento principal residiu na criação de suas próprias moedas, materializadas nos vales adiantados aos colonos ou parceiros. A segunda problemática a que aludimos refere-se à influência do personalismo, muitas vezes lastreado em relações familiares e de compadrio, nas operações de crédito. Não nos munimos, para enfrentar esta questão, de um sólido conhecimento sociológico ou antropológico, até porque quando iniciamos o estudo ela não se encontrava em nosso horizonte. Contudo, à medida que prosseguíamos, percebíamos a importância dos laços familiares para a consolidação de determinadas associações entre grandes somas de capitais, que por sua vez certamente condicionaram a forma como se deu o processo de acumulação, concentrando recursos nas mãos de certos grupos em detrimento de outros, possibilitando o surgimento de determinados monopólios com relação à oferta de crédito; também notávamos que a utilização de procedimentos não mercantis na aquisição de imóveis rurais e urbanos afetava a atuação de credores e devedores, aqueles posto que por meio da especulação com terras e outros imóveis adquiriram renda (que também provinha de outras fontes) suficiente para investirem em operações de crédito, os últimos porque poderiam vender terras durante os períodos de escassez de numerário a fim de manterem a produção de café em funcionamento, além de certa forma acabarem por ficar em uma

242 posição de dívida de favor para com os responsáveis pela regularização de suas posses, em geral alojados nos órgãos políticos do município. Este fato não apresentaria maiores conseqüências para as relações creditícias não fosse a constatação de que os principais detentores do poder político local se dedicavam ao financiamento da lavoura cafeeira e de outras atividades econômicas. Sugerimos que tais laços poderiam se desdobrar em um processo de ‘fidelização’ de determinados devedores para com determinados credores. Isto nos remeteu diretamente para a bibliografia que trata sobre poder local durante a República Velha, que se norteia, basicamente, pelo estudo do conjunto de relações que se encaixam no fenômeno que ficou conhecido como ‘coronelismo’. Não nos preocupamos em responder o porquê de usurários e comissários se encontrarem à testa do poder público municipal em Franca, geralmente enfeixado, segundo a bibliografia, por proprietários rurais. Mas esta constatação, assim como muitas outras que tecemos ao longo do estudo, apontam para uma necessidade de se circunstanciar melhor, na bibliografia, o impacto da generalização de relações monetárias sobre fenômenos como o sistema coronelista, eivados de personalismo. Os estudos sobre o coronelismo, de fato, se pautaram por um grau de generalização que talvez não baste para explicar este mesmo fenômeno em regiões intensamente mercantilizadas como São Paulo ou Minas Gerais durante a República Velha. Esta bibliografia, no entanto, parece acertar em suas generalizações quanto à dependência do eleitor, a mesma em todas as regiões, quanto à qualificação das eleições enquanto um processo de fachada que refletiria apenas a vontade daqueles que possuíssem mais poder para fraudar, manipular, coagir, etc., quanto à desimportância que o eleitor conferia ao seu voto, etc. Nosso objetivo, aqui, mais uma vez, se concentra mais em abrir o leque de questões que tentar oferecer respostas definitivas. Destarte, se nos evadíssemos destas indagações, estaríamos descumprindo o programa de estudos que defendemos na introdução, já que o historiador deve analisar todos os aspectos (sejam econômicos, políticos ou culturais) de um mesmo problema que se propõe. Por isso inclusive não nos concentramos na precisão dos conceitos ou em maiores cuidados com a terminologia. Nas poucas observações que efetuamos sobre estas questões, percebemos que os laços de favor quase nunca contradizem as considerações monetárias e com vistas ao lucro, mesmo quando aparentam o contrário, antes se adaptam a elas, o que vale afirmar que de

243 certa forma também as envolvem e as conduzem para dada direção. Neste ponto nos sentimos seguros para justificar o título da obra ‘O crédito no mundo dos senhores do café’, dado que quando se generaliza o uso da moeda em Franca, quando se instaura verdadeiramente um setor creditício com algum vigor no município, estes processos não destroem totalmente o que existia antes, já havia todo um mundo baseado nas relações de favorecimento conformadas em laços familiares ou de compadrio que acaba por revestir, por amoldar as relações de cunho mais mercantil. Assim, mesmo o crédito, operação que deveria jogar sua influência no sentido da instauração de relações mais impessoais, ganha uma coloração personalista, vincada numa hierarquia que já existia de antemão e que persiste, de tal modo que na aplicação da lei, na política e até mesmo nas associações de negócio, fruto das perturbadoras e inovadoras relações mercantis que rapidamente se generalizam, os homens não são todos iguais, tudo depende de considerações pessoais e do apadrinhamento. A bibliografia que trata desses temas é vasta, englobando inclusive obras fundamentais na compreensão da especificidade do processo de modernização do Brasil, mas acreditamos que o pouco que adentramos nestes domínios nos serviram para balizar nossos objetivos, infinitamente mais restritos. Esta perspectiva implica no reconhecimento de que o capitalismo não é toda a sociedade, que de maneira alguma a conforma completamente. Mas nisto não estamos sozinhos, pois o próprio Fernand Braudel, mestre da história econômica, ao tentar explicar a dominância que o capitalismo logra alcançar na Europa e não em outros lugares ressalta o papel da sociedade, ‘o conjunto dos conjuntos’ no favorecimento ou na obstaculização desta dominância2: “Na verdade, cumpre ainda que a sociedade seja cúmplice, que dê sinal verde e com muito tempo de antecedência, aliás sem saber, nem por momentos, em que processo está entrando ou a quais processos deixa assim a via livre, a séculos de distância. Segundo os exemplos que conhecemos, uma sociedade acolhe os antecedentes do capitalismo quando, hierarquizada de uma maneira ou de outra, favorece a longevidade das linhagens e essa acumulação contínua sem a qual nada seria possível”3. Aderir a este tipo de interpretação, onde se considera o capitalismo como um conjunto presente em um conjunto maior, de toda a sociedade, significa também a aceitação de um grau muito maior

2 Cf. Fernand Braudel. Op. cit., Civilização Material..., vol. II, Os jogos das trocas, capítulo 5, A sociedade ou o conjunto dos conjuntos. 3 Idem, ibidem, p. 535.

244 de complexidade e mesmo diversidade desta, o que por sua vez implica em tornar muito mais árdua a tarefa de sistematizar todo o conjunto, mas não foi isso que propusemos nesse trabalho. Contudo, esperamos que este estudo possa render seus frutos e estimular o surgimento de outros, talvez inspirados pelos problemas que aqui apenas esboçamos.

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REFERÊNCIAS

DOCUMENTAÇÃO

Arquivo Histórico Municipal de Ribeirão Preto

• Almanach Illustrado de Ribeirão Preto. Ribeirão Preto: Sá, Manaia & Cia, 1914, na paginado.

Arquivo Histórico Municipal de Franca

• Ação de divisão de terras. 2º ofício, 1896, caixa 158, volume 393. • Ação de força nova. 1º ofício, 1901, caixa 421, volume 29. • Inventários do Tabelionato de 1º ofício de Franca: caixa 2 volume 25 lavrado no ano de 1900; caixa 154 volume 91 lavrado no ano de 1901; caixa 138 volume 58 lavrado no ano de 1902; caixa 35 volume 85 lavrado no ano de 1902; caixa 150 volume 20 lavrado no ano de 1909; caixa 156 volume 115 lavrado no ano de 1913; caixa 91 volume 63 lavrado no ano de 1916; caixa 5 volume 64 lavrado no ano de 1929; caixa 106 volume 2038-B lavrado no ano de 1940, além de dados quantitativos que possuímos para todos os demais no período entre 1901 e 1920. • Inventários do Tabelionato de 2º ofício de Franca: caixa 227 volume 1141 lavrado no ano de 1918, além de dados quantitativos que possuímos para todos os demais no período entre 1901 e 1920. • Livros de escrituras do Tabelionato de 2º ofício de Franca de 1880 a 1914, livro 5 ao 79.

Museu Histórico Municipal de Franca

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