PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Juliana Abramides dos Santos

Arte urbana no capitalismo em chamas: pixo e em ​ ​ explosão

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

SÃO PAULO

2019

Juliana Abramides dos Santos

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Serviço Social sob a orientação do Prof. Dr. Antônio Carlos Mazzeo.

2019

Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese de doutorado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos. Assinatura: Data: E-mail:

Ficha Catalográfica

dos SANTOS, JULIANA Abramides Arte urbana no capitalismo em chamas: pixo e graffiti em explosão / JULIANA Abramides dos SANTOS. -- São Paulo: [s.n.], 2019. 283p. il. ; cm. Orientador: Antônio Carlos Mazzeo. Co-Orientador: Kevin B. Anderson. Tese (Doutorado em Serviço Social)-- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social, 2019. 1. Arte Urbana. 2. Capitalismo Contemporâneo. 3. Pixo. 4. Graffiti. I. Mazzeo, Antônio Carlos. II. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social. III. Título.I. Mazzeo, Antônio Carlos. II. Anderson, Kevin B., co-orient. IV. Título.

Banca Examinadora

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Aos escritores/as e desenhistas do fluxo de imagens urbanas.

O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de ​ Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Número do Processo- ​ 145851/2015-0.

This study was financed in part by the Conselho Nacional de Desenvolvimento ​ Científico e Tecnológico (CNPq) - Finance Code 001-145851/2015-0. ​

Esta tese de doutorado jamais poderia ser escrita sem o contato e apoio de inúmeras parcerias. A todos os pixadores/as e grafiteiros/as e especialmente a/os entrevistados/as. Aos meus pais, uns anjos. Veja bem: Maria e José. Vocês são demais. Meus correspondentes internacionais, enviaram imagens para compor o trabalho, direto da Itália e Portugal. À minha amiga de outras vidas, mesmo. Fernanda Castanho, uma empatia e generosidade de outro mundo. Fernanda me auxiliou com o tratamento, dicas e catálogo de imagens. Querida amiga Samara Xavier, amora, chegamos ao fim do ciclo, grata pela força, sem você não venceria os impasses burocráticos. Lia, grata pelos passeios e momentos de descontração paras equilibrar o batidão intelectual. André Juarez obrigada pela força sempre e pelas fotos do México. Ao Julio Santos Rocha, meu companheiro, melhor amigo que tenta aguentar esse furacão dois mil e faz o que pode para estar presente e me apoiar; esteve comigo em parte da pesquisa de imagens pelas regiões de SP e nos momentos finais da impressão e entrega, enquanto eu assinava os papéis ele coordenava a facção de exemplares. Às inspiradoras professoras Dras. Carla Cristina Garcia, Maria Lúcia Silva Barroco, Cristina Maria Brites, Maria Lúcia Martinelli, Maria Beatriz C. Abramides e Jeanne Marie Gagnebin. Aos meus orientadores Antônio Carlos Mazzeo e Kevin B. Anderson.

Arte urbana no capitalismo em chamas: pixo e graffiti em explosão ​ ​

Juliana Abramides dos Santos

No século XXI, a arte mais difundida não está sendo produzida pelos grupos elitistas, burgueses e aristocráticos, mas tem sido criada por jovens e adultos que proclamam identidades territoriais enquanto fazem inscrições grafitadas e pixadas. A principal vertente plástica no mundo, hoje, é a estética da periferia e se manifesta de forma diferenciada como expressão de resistências urbana, artística e cultural ao capitalismo em ​ chamas.

Palavras-Chave: arte urbana, estética contemporânea, capitalismo em chamas, pixo ​ ​ e graffiti.

Capitalism on fire: pixo and graffiti in explosion

Juliana Abramides dos Santos

In the 21st century, the most widespread art is not being produced by the great art centers and elitist, bourgeois and aristocratic groups but has been created by young people and adults who proclaim territorial identities while marking visible surfaces. The main plastic aspect in the world today is the aesthetics of the periphery and manifests itself differently as an expression of urban, artistic and cultural resistances to the burning capitalism.

Key-words: urban art, contemporary aesthetics, capitalism on fire, pixo and ​ ​ graffiti.

Apresentação……………...... ………….………………….……………….………13 Introdução - Estética e Contemporaneidade: breves notas para uma discussão ……...... ………….…...... …...... 21

Capítulo I - As paredes e os muros falam...... …...... ……39 Caverna.....……...... ………….….…...... ………….…40 Tumba.....……...... ………….….…...... …………….43 Inscriptiones: Graffiti e Pix.....……...... ………….……..46 ​ ​ ​ Graffiti Medieval.....……...... ………….……………………….49 ​ Capela Sistina.....……...... …………………………………...….….51 Muralismo Mexicano.....……...... ………….……………..53 Brigadas Muralistas no Chile.....……...... ….……..57 Muro de Berlim.....……...... ………….……..59 Pichos e Cartazes em Paris, 1968.....……...... ……….61 Movimento Hip-Hop.....……...... …...... ……….65 Graffiti - Philadelphia e New York.....……...... ……..71 ​ ​ ​ ​ ​ Origens da Arte Urbana - São Paulo ...... ….…..80 Praça Tahrir, Cairo/Egito, 2011....……...... …………..91

Capítulo II - Marcas Urbanas: São Paulo, Los Angeles e São Francisco..97 Pixo.....……...... ………….….…...... ………….………….99 Arte Urbana, Hoje...... ………….….…...... …………123 Ocupação da Mulher na Cidade…...... …………129 Graffiti e na Califórnia………………………..…………...135 Graffiti em Los Angeles………………………………………...……...136 Tags à beira do Rio Los Angeles………………………………...137 ​ Great Wall.....……...... ………….….…...... ………..141 Art District.....……...... …………………………………………..….143 Venice Beach.....……...... ………….…………………………...144 Movimento Chicano - São Francisco…...... 145

Capítulo III - O mundo em chamas: o capitalismo contemporâneo…...148 Burgos: Cidades Muradas.……...... ………….….150 Regulação do Estado Neoliberal.……...... ……..151 Moderno e Pós-moderno.……...... ………….….160 O mundo está em ruínas? .……...... ………….….169

`Capítulo IV - Arte no contexto da desigualdade Urbana.….…...... 174 Desigualdade na ocupação Urbana...... ………….…178 Ressignificação Territorial em SP...... ………….…183 Precariado...... ………….…...... ………….…...... ………….…191 Realidade ou ilusão - Los Angeles...... ………...... ………….…195

Capítulo V: As origens históricas e os destinos políticos na arte urbana…..204 Capital Quebrado?…...... ………….…209 O não lugar…...... ………….…213 ​ Brazil - Colônia?…...... …………………………………...……….…216 ​ Imperialismo e Racismo…...... ………………...….…….…220 Desigualdade Global: a fome.....………….………...……225 Hibernação e a depressão.....…………...…...….…….…230 Armamento Visual Antiarte………………………….….….235

Observações e Conclusões Aproximativas...... 239

Glossário Urbano………...... 243

Referências Bibliográficas...... 248

O aparecimento do tema aqui abraçado inicia-se numa tentativa de despedida da cidade onde nasci e vivi por toda minha vida. O desenrolar de uma tese é processo complexo, cheio de camadas e altos e baixos. Atividade solitária, escrever envolve a imersão na solitude, ou na solidão; por vezes, plenitude; em outros momentos, o mais completo vazio e desgaste, cansaços físico e emocional; o esvaziar de um corpo que somente se energiza depois que tudo finda. Imagino que sombras me habitam, e que o concreto paira nos céus e as delineia. Os elos de mim, ao se encontrarem, me tornam inteira. Como posso entender os elos rizomáticos que me levam a mediar a escrita? O presente trabalho acompanha a riqueza das manifestações culturais urbanas, em busca de capturar em meio às fachadas texturizadas, componentes políticos da urbe, expressos em , pixos e estêncil. Percorre ilustrativamente as expressões escritas e imagéticas expostas em muros, edifícios, terrenos baldios, casas abandonadas e em outros veículos e bens públicos, como formas de ressignificação do espaço urbano. São Paulo, Nova York, Los Angeles, São Francisco, Berlim e Lisboa são importantes centros culturais modernos, de composição urbana complexa, lugares por onde artistas urbanos desenham e escrevem o fluxo citadino. Pela profusão enorme de imagens e pessoas que percorrem o chão e as alturas, por onde nada se desvenda facilmente e nada é totalmente impenetrável, se desvela a temática desta tese. Estas formas evidenciam um conjunto de manifestações da questão social constitutivas do reflexo da desigualdade social contemporânea. Cabe-nos expor as formas simbólicas e as expressões contestatórias objetivadas nas ruas que caracterizam a tez de decomposição social da sociedade capitalista e que apontam para as necessárias transformações sociais, econômicas, políticas e culturais a serem conquistadas. As configurações do espaço público em grandes cidades vislumbram a inscrição e circulação simbólica profícua de manifestações públicas, artísticas e

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políticas. As cidades vivem marcadas de produções inusitadas de atividades, entre as quais o skate, as rinhas de rap1, as inscrições de poemas, as pixações e pichações, os atos políticos, as ações de black blocs2, as danças de rua, as colagens e os graffitis, e todas as movimentações de luta por apropriação e ressignificação cultural, "há algo de político no ar das cidades lutando para se expressar” (HARVEY, 2014, pp. 211). É necessário explicitar que a cultura de rua, enquanto expressão de resistência e afirmação cultural, apresenta tanto uma necessidade quanto uma função social para a sua existência e permanência. Procuramos levantar os traços da realidade da vivência social que apontam a importância contida nessa escrita dinâmica de códigos. A arte e as demais inscrições urbanas3 revelam “o lugar de fala” e também transmitem valores sociais e éticos, ao mesmo tempo em que mantém um primado da marca do indivíduo. Qual diálogo nos propõem os signos que tomam de assalto o espaço urbano? Cabe-nos ressaltar o histórico de produção artística e/ou criativa plástica na época da civilização burguesa do capitalismo em chamas realizada por sujeitos periféricos partícipes da classe trabalhadora, donde o paradoxo da produção humana criativa relativa às condições materiais está na base das vivências diretas de produção e reprodução cultural; embora a verdade da arte nem sempre coincida com a verdade da vida. Tais manifestações, inseridas na cultura mundializada, tendem a reproduzir, no processo contraditório do movimento da realidade, certos aspectos do mundo capitalista, até porque somos todos bombardeados diariamente pelo que Adorno chamou de indústria cultural; ou a negá-los, em seus aspectos reificantes, ao assumirem uma atitude política de contestação genérica ao “sistema”.

1 Nas grandes cidades, especialmente as rinhas, ou batalhas de rap, acontecem semanalmente. Em geral, duas pessoas desafiam-se a improvisar rimando as palavras em um ritmo que, por vezes, o grupo ao redor ou uma pessoa faz com a boca e versam sobre um tema escolhido na hora. 2Pessoas andando de preto, em bloco, em tradução literal, caracteriza uma tática de ação direta de influência ou vertente anarquista; uma forma de ação que ataca com depredação locais símbolos do capitalismo, como bancos, grandes corporações e franquias, como McDonald’s. A expressão original é alemã: schwarzer block, e foi cunhada pelos policiais para designar os militantes ou ativistas de esquerda vestidos de preto e com máscaras, nas manifestações contra a guerra nuclear, na década de 1980. 3E aqui não damos ênfase às formas mais decorativas, provavelmente as preferências superficiais burguesas 14

Conhecer a linguagem dos pixos e graffitis é desvelar o significado da arte urbana; os significados históricos e os sentidos atribuídos pelos sujeitos sociais vivos e ativos. O graffiti e o pixo são expressões da classe trabalhadora, de jovens pauperizados das periferias e guetos das grandes metrópoles. Escritores/as e desenhistas do fluxo urbano ocupam a cidade expressando a indignação, a negação das injustiças, o combate à discriminação e opressão social de classe, gênero, raça e etnia e as formas de exploração capitalista de dominação de classe. Mesmo que os sujeitos, em seus locais de origem, não estejam autoconscientes, ainda assim podem apresentar expressões de desafio dirigida para o exterior, em direção aos aparatos culturais e políticos centrais dominantes da cidade, como um cri de coeur, ou um grito que vem do coração. Embora as inscrições grafitadas sejam uma constante histórica desde tempos remotos quando do nascimento da linguagem ela adquire significados sociais, culturais e políticos distintos a cada tempo do desenvolvimento da humanidade. A ou arte urbana se intensifica a partir da década de 70 do século XX, em um período de crises econômicas em que há um incremento da desigualdade social e urbana, momento da crise estrutural do capital. A cidade de São Paulo apresenta a maior gama e diversidade de produção de arte urbana no mundo, são dez mil pixadores ativos que inscrevem suas marcas na cidade nos topos, prédios com estratégias particulares de ação. Por trás da visualidade de inúmeros pixos expostos por toda a cidade há um anonimato de sujeitos que querem ser lembrados, suas inscrições são gritos de existência, plenos de significados. O graffiti ressurge na contemporaneidade potencialmente nos Estados Unidos, assim, fez-se necessário a busca da raiz desta expressão cultural. A Califórnia apresenta uma cultura mexicano-estadunidense e já na década de 40 alguns escritores das ruas de ascendência latina emergem com caligrafias próprias. Ao mesmo tempo o muralismo mexicano tem uma continuidade histórica e artística no chamado movimento chicano de fundamental expressão naquele estado. Neste sentido, centralizamos a pesquisa na Grande São Paulo, cidade natal da autora e da PUC-SP e na Grande Los Angeles e na Área da Baía - São Francisco, ambas cidades na Califórnia, por ocasião da bolsa de doutorado, por seis meses na Universidade de Santa Bárbara naquele estado.

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Durante todo o transcorrer da pesquisa, fizemos estudos bibliográfico e videográfico de publicações em inglês, espanhol, e em português, sobre arte de rua, arte urbana, comunicações visuais ativistas e de militância, pixo, graffiti e as concepções e discussões materialistas da estética e da política. Realizamos entrevistas, observações, registros fotográficos, pesquisa virtual de imagem. Acompanhamos os rolês e aprendemos a usar o spray em atividades de rua. As entrevistas semi estruturadas seguiram um roteiro previamente elaborado, ou foram feitas a partir de livres conversas; o gravador ou o recurso de áudio por meio dos aplicativos de rede social foram utilizados em todas as ocasiões, no intuito de coletar os depoimentos e opiniões que, após a transcrição na íntegra, se tornaram importantes documentos históricos, ilustrativos e analíticos. Os nomes dos entrevistados foram mantidos, tendo em vista a autorização obtida, alguns pixadores utilizam nomes codificados e assim os preservamos. Optamos por utilizar, no corpo do texto, ao longo dos capítulos, as partes das entrevistas que dão mais voz aos interlocutores. As entrevistas realizadas com artistas de rua, pesquisadoras/es, documentarista e pixadoras/es, são parte essencial do material histórico coletado. A observação buscou a compreensão da complexidade e totalidade dos grupos e indivíduos pesquisados, assim, recolhemos desde inocentes anedotas e “causos”, a históricos de conflitos entre grupos, motivações pessoais, tudo como parte de um tipo de cultura de rua em desvelamento. Em tais significados compartilhados nas trocas entre os sujeitos pesquisados, encontramos algumas chaves para a compreensão dessa cultura particular como campo de realização humana na urbe. Em São Paulo, as entrevistas foram realizadas em rolês4, pistas de skate, atividades de hip-hop, encontros marcados para entrevistas e também nos points de Osasco, galeria Olido - centro de São Paulo, e no Largo da Batata. Entrevistamos a grafiteira e muralista Clara Leff; o artista de estêncil Celso Gitahy; a muralista Mag Magrela; a ex-pixadora carioca Gisele Sagi; o artista plástico e pixador Cripta Djan Ivson; o artista plástico e pixador Loucuras; o grafiteiro de vanguarda Rui Amaral, o pixador ATA; o grafiteiro Paulo Ito; a poeta, documentarista e diretora Cristina Fonseca.

4 Saídas para grafitar ou pixar. 16

Em São Paulo, percorremos bairros para descobrir inscrições, a saber: Na região centro-sul: Jabaquara, Saúde, Santo Amaro, Vila Mariana e Santa Cruz; na região sul: Campo Limpo, M’Boi Mirim, Jardim Monte Azul; na região leste, Itaquera, Penha, São Mateus; na região norte: Freguesia do Ó, Casa Verde, Tucuruvi; na Região oeste: Lapa, Pinheiros, Barra Funda, Perdizes; no Centro: Campos Elíseos, Santa Cecília, Brás, Luz, Pedro II, Bela Vista, Cambuci, Liberdade, Sé e República. Em Los Angeles/Califórnia, continuamos com o processo de registro fotográfico e das entrevistas. Fomos ao Art District e em Venice Beach - locais de concentração de arte urbana na grande L. A.; rodamos Downtown, Chinatown, Little tokyo, Glendale, Culver City, Santa Mônica, Koreatown, Beverly Hills, Macarthur Park. Visitamos o Social and Resource Center onde pesquisamos a muralista Judith Baca que realizou o primeiro mural gigante da história5; fizemos o Graffiti Tour6 e entrevistamos o pioneiro grafiteiro e Membro da comunidade do distrito de artes de L.A. - A.k.a. Shandu One. Em São Francisco, visitamos o instituto Precita Eyes Muralist e toda a região de muralismo chicano. Os registros fotográficos, as imagens e arquivos de galerias, casas de escritores e grafiteiros, são parte do material de análise. As imagens de diferentes expressões culturais e artísticas foram selecionadas, tendo em vista o enfoque da pesquisa e coletadas nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, no Brasil; nos EUA, em Santa Bárbara, Venice - Los Angeles, São Francisco, e Nova York7; além de registros pesquisados em outras cidades como Berlim, Praga, Bratislava,Nashville, em busca de traçar elos significativos de um tipo de cultura urbana que tem fortes raízes americanas em sua configuração contemporânea. As pesquisas foram elaboradas tendo como norte as orientações do Código de Ética da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e as normativas específicas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

5Disponível em: http://sparcinla.org/. Acesso em: novembro de 2018. 6 Disponível em: https://laarttours.com/graffititour/. Acesso em: setembro de 2018. 7 O processo de pesquisa, nos EUA, foi iniciado no ano de 2016, a partir da ida da doutoranda, para Nova York, com recursos próprios, além da leitura da bibliografia específica, majoritariamente em língua inglesa, o que exigiu o aperfeiçoamento da língua para a realização da pesquisa.

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Assim, cabe-nos compreender os processos criativos e as expressões contestatórias objetivadas nas ruas, posto que nos auxiliam a caracterizar a face contemporânea da questão social no desenvolvimento da sociedade capitalista; talvez, esta, a catarse atual. Consideramos a necessidade de explicitar a função social dessa cultura de rua e as razões de sua permanência e perpetuação; levantar as motivações e os sentidos contidos nas ações coletivas dessa dinâmica e nos códigos marcados pela cidade. Fundamentalmente, captar o campo das possibilidades de produção da objetividade e subjetividade de grafiteiros, muralistas e pixadores resultantes das suas realidades específicas, bem como as respostas históricas às suas condições de vida. A tese se propõe a contribuir com o desvelamento de uma pulsante arte de rua, ainda pouco estudada, pouco compreendida, extremamente estigmatizada e reprimida, e muitas vezes contraditoriamente apoiada, quando se configura em elemento catalisador para a ordem estabelecida. Jovens pauperizados, precarizados, periféricos que buscam expressões de criação e contestação ao sistema opressor em um mundo que os segmenta enquanto classe, etnia, raça e gênero. Esta tese se dirige a todos/as aqueles/as que resistem à barbárie imposta pelo capital, que se voltam para as múltiplas determinações da vida social, em que a objetividade e subjetividade se articulam permanentemente; e que a criação da arte de rua possa ser mais um elemento aglutinador das inquietações e conquistas entre aqueles e aquelas que que atuam com as expressões da questão social e suas formas de enfrentamento na direção de um projeto de sociedade, igualitário e libertário na direção da emancipação humana.

Estrutura da Tese

A Introdução - Estética e Contemporaneidade: breves notas para uma discussão, propõe breves notas sobre as relações entre estética e política no intuito de apresentar os parâmetros teóricos de análise da estética contemporânea ora pesquisada: reflexos artísticos, mimese, processos criativos. Ainda, recupera os valores históricos de um tipo de humanidade.

O capítulo I: As paredes e os muros falam, expõe a pesquisa histórica sobre as inscrições grafitadas em muros, paredes, tumbas, tetos, igrejas e cavernas,

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enquanto uma forma de comunicação artística no desenvolvimento da humanidade. Resgatamos os processos artísticos, ao longo do século XX, a partir do muralismo mexicano e da ocupação plástica do muro de Berlim. Recuperamos a arte de rua enquanto transgressão, ativismo, militância, engajamento e contestação. Abarca a eclosão da arte urbana nos EUA e no Brasil. Retomamos historicamente outros momentos ápices, ilustrando-se períodos políticos importantes dos últimos 50 anos: o maio de 68; as brigadas muralistas no Chile; e a rebelião no Egito, enquanto movimentos revolucionários, reivindicatórios e humanistas, que abrangem, no interior das suas táticas, a arte visual. Estão ali os traçados da origem do graffiti uma das artes mais prolíficas do século XXI.

No capítulo II: marcas urbanas: São Paulo, Los Angeles e São Francisco, para desnudar os entendimentos dos fluxos imagéticos apontamos a função social da existência do pixo, graffiti e muralismo nas grandes metrópoles nas particularidades da Grande São Paulo e capital, e nos EUA- Califórnia na área metropolitana de Los Angeles e na Baía de São Francisco. As escritas e desenhos presentes em muros, edifícios, terrenos baldios e em outros veículos e bens públicos são trabalhados como formas de resistência e afirmação política e cultural. São apresentadas as falas das/dos entrevistadas/os enquanto história e sentidos atribuídos pelos escritores e desenhistas do fluxo urbano. Artistas urbanos são dos que mais conhecem a cidade, os cantos, pontes, bueiros, topos de prédios. A linguagem própria desse conhecimento da cidade se conforma nas inscrições codificadas.

No Capítulo III: O mundo em chamas: capitalismo contemporâneo, demarca-se o território de resistência ao modo de produção capitalista em chamas e traça-se um panorama ideo-cultural contemporâneo a partir das discussões sobre a modernidade e a pós- modernidade. Enfatizam-se os cenários de exploração, opressão e desigualdade agudizados pela acumulação flexível e a regulação do Estado Neoliberal, nas particularidades brasileira e estadunidense.

No Capítulo IV - O pixo e o graffiti no contexto da desigualdade urbana recuperam-se as dimensões da desigualdade na ocupação urbana; da situação do jovem precariado, do racismo e a segregação territorial manifestadas na Grande

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São Paulo e capital; assim como nos EUA, na área metropolitana de Los Angeles/Califórnia. Busca ainda analisar o pixo e o graffiti enquanto ressignificações territoriais nas grandes cidades.

No Capítulo V - As origens históricas e os destinos políticos na arte urbana, ensaios a partir de imagens de murais, pixos e graffitis, ao longo do mundo, ilustram algumas faces da decadência e desumanização da vida no capitalismo em chamas. Abarcam as origens históricas e os destinos políticos das imagens escolhidas.

Nas observações e conclusões aproximativas, retomo o núcleo central das nossas indagações acerca da arte urbana enquanto a principal vertente plástica no mundo, hoje, uma estética periférica que se manifesta de forma diferenciada como expressão de resistências urbana, artística, política e cultural. Reafirmamos a atualidade do objeto pesquisado e a pertinência de dar ouvidos à voz, aos gritos que vem das ruas; dar à luz a imagens e comunicações enquanto formas de afirmação da existência e contestação ao mundo normativo, autoritário, da desigualdade, racismo, preconceito, discriminação, opressão; destruidor da natureza e da humanidade.

I -

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Para Baudelaire, a ideia da arte como bela, agradável, é muito pequena. No final do poema Ao Leitor, ele escreve:

É o Tédio! – O olhar esquivo à mínima emoção,

Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado.

Tu conheces, leitor, o monstro delicado,

- Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!8

Ele se dirige ao leitor de poemas da tradição lírica e o chama de hipócrita. Não se deve ler por deleite ou meramente por uma atividade da academia francesa, numa postura acomodada. Baudelaire vê beleza e fascínio no mundo urbano e da moda, ao mesmo tempo em que tem uma crítica reflexão à inserção capitalista nas relações sociais, culturais e artísticas. O que ele busca trazer à tona são as sensações e experiências intensas que o leitor não vai conseguir dar o nome, quer fazer valer o máximo da potencialidade da arte, na assunção de sua condição de poeta. O modernismo e as vanguardas estavam intimamente conectados à modernização e industrialização. Era aquele o momento da criação das galerias, as ruas internas cheias de lojas, locais de passagem. Toda a sua obra está debruçada sobre os fenômenos da modernidade, a quem Walter Benjamin chamou de lírico, no apogeu do capitalismo9; o poeta e o crítico; a mesma figura do fascínio e da crítica. Aqui estamos, vivendo e tentando compreender a nossa época, com a análise profunda de nosso tempo. E pescando a finitude e a plenitude de poder- ser, do transeunte, flâneur10 e flanêuse, trabalhadores e as linhas sobrepostas de imagens de força sedutora. O poeta, nasce e vive em Paris, cidade em construção e constante mudança. A vida do poeta não explica, mas é parte da sua obra e, assim, a poesia é central e

8 As Flores do Mal. Tradução, introdução e notas por Ivan Junqueira.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 9 Modo de organização social e econômica da vida, mais vasto e dinâmico que qualquer outro na história e que apresenta as principais características: propriedade privada dos meios de produção, lucro como incentivo, livre competição do mercado para venda de bens de consumo, aquisição de matéria-prima mais barata, uso de labour barato, exploração da mais-valia e expansão e investimento para acumular capital. 10 Deparei-me a primeira vez com esta palavra ao ler As Flores do Mal, de Baudelaire. Do verbo francês flâner, ou flâneur, aquele que vaga no mundo, é existente na primeira metade do século XXI nas passagens de boulevards, em Paris. A figura masculina do privilégio e do lazer, com tempo e dinheiro e nenhuma responsabilidade imediata para direcionar a sua atenção. O flâneur entende a cidade como poucos habitantes porque a memoriza em seus pés. No entanto, o flâneur, de Baudelaire, é um artista que busca refúgio na multidão. Lauren Elkin cria o termo flanêuse, para a forma feminina de flâneur. Uma observadora da cidade. 21

não um acessório. Na introdução aos pequenos poemas em prosa, ele aponta as apreensões momentâneas, a captação livre. Escreve para o leitor não se martirizar pela escravidão do tempo. E o que é “embriagai-vos”? É se envolver na observação do mundo, olhar para a cidade como se olha para uma paisagem, conversar com as ruas e expressões da cidade enquanto forma de espetáculo. Considere a beleza de estar na cidade; a pintura sobre o cinza representa não apenas a subjetividade interna de quem produz a arte, mas também uma interioridade particularizada que se reflete na vitalidade da paisagem e manifesta- se no que há de interesse ao humano que vive a mesma exterioridade plástica agora interiorizada por outrem. Agora, as flanêuses e flâneurs invertem a hierarquia dos elementos visuais e vivem a cidade de maneira ativa, inscrevem, escrevem, apropriam-se das superfícies reivindicando os suportes públicos para a arte e a comunicação. Tornada a cidade a grande galeria a céu aberto, será que a arte vinga no antigo propósito vanguardista de ser usufruída no cotidiano, o produto urbano que não pode ter preço de venda e que não tem cifra e, portanto, não pode ser mercadoria, a participação ativa da estética na política? Baudelaire entendeu que até a poesia se torna mercadoria, os que escrevem o fluxo urbano com signos, poemas e cores podem vender a sua força de trabalho para pintar uma fachada mas a forma de apresentação nos suportes murados, isto não pode ser comercializado.

II-

A assinatura é a primeira marca do artista do graffiti, originariamente tudo começa na tag. É no Renascimento que as/ artistas começam a assinar as suas obras. É claro que as expressões artísticas urbanas de hoje não terão relação com o renascimento, pois o movimento tinha um processo revolucionário de fundo, uma nova cosmologia. Aqui, a cosmologia é a da desagregação, um mundo em profunda decadência que ameaça no mais a existência humana e que se relaciona com a sede de lucro desenfreada da sociedade capitalista sem freios éticos. Ao mesmo tempo as artes urbanas explicitam e se contrapõem a este referido mundo.

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A noção de indivíduo não fora trans-histórica, até os séculos XIV e XV, quando o mundo ocidental veio a produzir um inovador movimento social, econômico, e cultural na história da humanidade, o Renascimento, inaugurado com o advento da sociedade capitalista. As condições históricas são favoráveis ao afloramento da arte e ciência, mas seria verdade a afirmação de Lukács de que se se podem verificar constelações históricas nas quais, em sentido inverso, a ciência ou a arte podem obscurecer ou deformar a vida cotidiana?11 A capacidade de individuação, no sentido de absorver as capacidades genéricas desenvolvidas na humanidade, que resulta na elaboração das subjetividades e da criação da personalidade, encontra-se em todos os entes humanos, mas de que maneira é possível avançar no desenvolvimento existencial dessa capacidade? É evidente que a capacidade individual parte dos indivíduos que se sobressaem e jamais do termo médio de uma dada época. Como videar12 a capacidade máxima dos indivíduos representativos, aqueles que realizam até o fim a possibilidade apresentada? Ou como acentuou Engels: Desconfio cada dia mais da minha habilidade e da minha capacidade criadora como poeta desde que li Aos jovens poetas, de Goethe, onde me encontro descrito com tanta exatidão quanto é possível fazê-lo; com esta leitura, compreendi claramente que meus versos não têm nada de arte; contudo, continuarei praticando a rima, pois é um ‘agradável complemento’, como diz Goehte (ENGELS, 2010: 310)

Hegel, em sua Estética (1962, p. 20), discorre que na pintura se afirma pela primeira vez o princípio da subjetividade “[...] ao mesmo tempo finita e infinita, o princípio da nossa própria vida, e contemplamos nas obras dela tudo o que vive, atua e se agita dentro de nós”. Ele está dizendo que, na pintura, o divino surge vividamente associado à comunidade e estabelece entre os que a contemplam uma identidade e mediação espirituais. Para ele, ao mesmo tempo em que existe uma pintura cristã, existe a grega, a romana e a oriental, mas coloca que nos limites do “romântico”, a arte da pintura atingiu o seu maior desenvolvimento, no sentido de empregar e exaurir os recursos. Mas porque Heller defende o renascimento e Hegel o romantismo, como períodos de excelência artísticas? Parece que Heller está defendendo um

11Para saber mais, ler : Ontologia do Ser Social. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979. 12 Visualizar, palavra criada no romance Laranja Mecânica de Anthony Burgess, 1962. 23

modo de vida em transformação e revolução; a eclosão maior da sociedade capitalista estimulou uma explosão de potencialidades nas pintura, escultura e poética, enquanto Hegel está defendendo o que representa o período romântico, o nacionalismo e a potencialidade máxima da expressão do espírito através do Estado, sendo também a máxima representação desse espírito na arte. Os nossos pensamentos e sentimentos estão orientados para os diálogos presentes no espírito da história, força motriz da vida. A arte dirige a nossa atenção para outro lugar; retira-nos do cotidiano e nos leva a outro estado de concentração, em recolhimento ou exteriorização. A arte tem essa capacidade de chamar a nossa atenção para objetos e conteúdos que nos escapam na realidade corrente. A percepção (aesthesis), esta disciplina que envolve o belo, o feio e as práticas artísticas está num todo da criação, assim como o trabalho não alienado (criador), uma viagem, práticas esportivas e mesmo a ciência podem se caracterizar em formas privilegiadas de suspender o cotidiano. Ainda, a consciência elevada, como a memória, a awareness13 e a sincronicidade14, são oportunidades potencializadoras de se retornar à realidade de outra maneira. Temos falado dos efeitos subjetivos da arte e que assim a definem como arte. As possibilidades do despertar do torpor da vida cotidiana são inúmeras e aqui temos defendido que, tendo a arte um potencial humanizador, pode também estimular os processos de conhecimento, da história e, mais, ter uma função social, ou política, no bojo da sociedade. E esta é uma possibilidade e não um dever. Além do mais, uma expressão ou obra pode adquirir uma função estética, ou política, não necessariamente desejada pelo sujeito que a realizou. A força expressiva de ideias e sentimentos, no caminho hegeliano da dialeticidade, é a de que a subjetividade penetra no exterior, como uma objetividade que lhe pertence, na união do particular e do universal, realizada na forma exterior. É evidente que o caminho de Hegel se refere ao lado espiritual do conteúdo que apresenta independência da realidade empírica, ao mesmo tempo

13A awareness é um estado de sentir e estar consciente significativamente e conectado a um entendimento universal. Na psicologia, a linha de Gestalt- Terapia utiliza a awareness, como método prático terapêutico. 14A sincronicidade foi inicialmente descrita por Carl Gustav Jung e trata-se de experiência de um ou mais eventos altamente significativos que têm relação entre si mas não causal; quando ele acontece, é um evento suspenso no cotidiano. 24

em que considera que somente com a realidade concreta é que essa subjetividade se tornará concreta e viva.

III-

A arte ressoa na alma; ajuda-nos a apurar os sentidos; estimula; dá força; deprime; aponta para a realidade com outro olhar. Pode aguçar não somente os sentidos e as sensações, mas também pode acessar os estados de sono, inconsciência, cognição; nos causa torpor e fala diretamente a outros eus. Se, ao ver os campos floridos de Van Gogh, sinto a sua dor nos últimos dias de sua vida e me vejo ali deitada, sinto o sol a aquecer um pouco de minh’alma. A arte condensa núcleos de sentidos e nos faz aprender algo sobre a realidade sem que saibamos a correlação com a mesma. O reflexo da realidade15 opera-se nas lembranças da existência (cognitivas, sensoriais, factuais, narrativas), que adquirem características próprias nos variados meios de expressão, na combinação de emoção, técnica, recursos, intuição e forma. O reflexo estético16 é a forma social da apropriação do real pela consciência, que reproduz, não de maneira mecânica, a realidade objetiva. A arte é uma das representações de conhecimento do real; tanto o pensamento cotidiano, quanto a arte, ou a ciência, refletem uma mesma realidade objetiva, mas cada área de objetivação da vida se expressa com diferentes características. Mas a arte não conhece a vida material; a arte fala da essência humana. Adolfo Sánchez Vázquez (1978), retomando a estética marxista e as teorias de Lukács, fala que os objetos representados na arte são portadores de um significado social do

15Usamos aqui o contexto da teoria do reflexo abarcado na Estética de Georg Lukács, em que a realidade cotidiana é captada pelos reflexos artísticos, de maneira não mecânica, ou fotográfica, mas por uma elaboração antropomórfica, que seleciona e reordena as categorias da realidade objetiva. A categoria ordenadora central desse movimento, para ele, é a particularidade que a torna sensível às determinações universais da vida humana. Lukács está pautado, nessa formulação, fundamentalmente, na estética de Hegel; por exemplo, toda a formulação do interesse pelo “reflexo exterior da interioridade” (HEGEL). 16O reflexo estético cria, por um lado, reproduções da realidade nas quais o ser em si da objetividade é transformado em um ser para nós do mundo representado na individualidade da obra de arte; por outro lado, na eficácia exercida por tais obras, desperta e se eleva a autoconsciência humana: quando o sujeito receptivo experimenta – da maneira acima referida – uma tal realidade em si, nasce nele um para-si do sujeito, uma autoconsciência, a qual não está separada de uma maneira hostil do mundo exterior, mas antes significa uma relação mais rica e mais profunda de um mundo externo concebido com riqueza e profundidade, do homem enquanto membro da sociedade, da classe, da nação, enquanto microcosmos autoconsciente no macrocosmos do desenvolvimento da humanidade. (LUKÁCS, 1970, p. 296).

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mundo humano em que a arte vê as relações humanas em suas manifestações individuais e não na mera generalidade. A jornada do conhecimento de que a arte nos dá sobre a humanidade não é o da mera imitação mas o da mediação e da mimese do concreto real ao concreto artístico. Para Benjamim (1994), a faculdade mimética é a natureza que a cultura usa para criar uma segunda natureza, ou seja, é a habilidade de criar uma relação simbólica com a realidade. Nessa concepção, a imagem, a magia e a imaginação tornam-se um outro objeto. A magia da mimese está no ato de desenhar e copiar a qualidade e o poder do original, a tal ponto que a representação pode, até mesmo, assumir aquela qualidade e poder. Então a arte terá um correlato com a realidade que nem sempre sabemos apontar qual, já que a vivência de toda a realidade artística contém necessariamente um momento de alusão à realidade. (Lukács, 1982) Em sua Estética, o filósofo húngaro Lukács (1970) argumenta que a obra de arte terá por tarefa específica representar o humano, o seu destino, suas manifestações. A trama de Édipo, por exemplo, provoca emoções nos espectadores ou leitores, independentemente de eles conhecerem os pressupostos históricos dessa obra. Para Lukács, está presente na arte a relação humano-humanidade, ou seja, a representação simbólica na arte é sempre o reflexo condensado do mundo humano. Ao internalizar o livre e o belo, e ao transformá-los, por meio da qualidade da natureza e da beleza sublime nos valores culturais da burguesia, um reino de aparente unidade e liberdade é criado no campo da cultura, no qual eles devem ser dominados, apaziguando as relações antagônicas da existência, e essa cultura afirma e esconde as condições sociais da vida. Após satisfeitas suas necessidades é que o ser humano encontra a medida para as coisas e, ao mesmo tempo, é esse ser, em especial, que satisfaz as próprias necessidades, mas também as de toda e qualquer espécie. Ora, o ser humano reproduz a natureza toda e é capaz de aplicar a medida de todo o necessário e, ainda, pode estabelecer a medida do belo. A arte é uma atividade sensível, assim como a filosofia e a religião; por ser sensível, é parte integrante do processo de formação humana. Se a consciência da natureza é, primeiro, consciência animal, a consciência da necessidade de relações com outros seres humanos é a consciência da vida social. A linguagem, tão antiga como a consciência, nasce da necessidade de

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intercâmbio com outros humanos, ou seja, a consciência plena é subjetiva e objetiva. A cultura se desenvolve na luta pela existência e por melhores condições de vida17 e se conforma em “Tudo aquilo que foi criado, construído e conquistado pela humanidade, ao longo da história, em contraposição ao que lhe foi dado pela natureza, e que serve para aumentar o conhecimento e a capacidade para enfrentar e subjugar a natureza”. (Trotsky, 1981, p. 52). A base da cultura é a consciência e o desenvolvimento do processo de consciência, de si e a do outro. Aqui buscamos atentar para a necessidade e a visualidade de transformações culturais na busca de emancipação humana. As grandes obras de arte tornam-se trans-históricas; atravessam os tempos. A arte somente existe em relação a outrem. Uma obra de arte não existe se não há público e uma expressão torna-se verdadeiramente artística se quem observa é atingido por ela não apenas por dizer: “Isso é bonito ou feio”, mas se ali, naquele momento de encontro, há uma entrega e identificação; quando eu vivo algo jamais vivido, ou rememoro sentimentos, ou aprendo ao sentir algo novo. A arte deve tocar no âmago; causar catarse; afetar; fazer rir ou chorar; sentir raiva e paz ao mesmo tempo ou qualquer outro sentimento não nomeável.

IV-

Quando, numa barca, estamos sozinhos em meio à enormidade do rio Amazonas, com o vento a bater na face, um calorzinho de outono aquece a relação de igualdade entre nós e a natureza18; produz a sensação de aumento das possibilidades de apreender a liberdade. Ou, como dizia Clarice Lispector (1992): “Um pouco de aventura liberta a alma cativa do algoz cotidiano”. No processo de desenvolvimento humano, no plano da prévia ideação e da teleologia, o ser

17Aqui entendemos o trabalho como fundante da existência humana, e a linguagem, a política, a arte são produtos do trabalho. Ao contrário daqueles que buscaram argumentar que a linguagem antecede o trabalho, vemos que esses atributos são resultado da precisão que o homem teve de se comunicar, devido às mudanças ocorridas e às intensificações da produção, pelas quais as relações sociais foram se complexificando cada vez mais. A linguagem consolida-se a partir da intensificação e do desenvolvimento das relações entre os homens, tem que ver com o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho. Na medida em que o homem foi se apropriando da natureza e desenvolvendo sua produção, os laços comunitários foram aumentando e nisso se fez necessário ampliar e sofisticar a linguagem, assim sendo, este deve ser tomado como resultado das forças produtivas do trabalho. Portanto, o trabalho é o cerne do mundo e autoprodução humana. Veja-se no terceiro manuscrito em Karl Marx nos Manuscritos Econômicos-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2006. 18 Na relação entre ser humano e natureza, à medida que se apropria e domina a natureza pelo trabalho, o ser humano se afasta dela ao estabelecer os recuos das barreiras naturais. A criação do mundo humano difere totalmente da natureza; criam-se sociabilidades e objetivações políticas, culturais e ideológicas. 27

humano formula questões e vê necessidades a serem supridas e, em todo esse processo, ele cria. A percepção consciente, plena de intencionalidade, vincula-se ao ato de criar movida por necessidades concretas sempre novas; criar é estar em movimento com possibilidades de aufhebung (transcender) da vida cotidiana. O ser humano criativo surge a partir da possibilidade de escolhas. A criatividade não se resume ao fazer artístico e, mesmo, a um produto, mas como experiência de vida, que possibilita ampliar a percepção e a consciência em relação a si mesmo e ao outro. As expressões criativas são mais amplas e podem ocorrer na vida cotidiana19, na ciência ou na arte. A concepção de arte aqui como forma de consciência social e do si-mesmo encontram-se plasmadas no movimento da realidade e num tanto de magia da qualidade da pintura em reunir tantos elementos e objetos em uma singular representação sendo que cada um de nós é movido por paixões, desejos, expectativas e necessidades; ou da arte que nasce pela necessidade de sobrevivência. Os grafismos que compõem a complexidade visual das grandes cidades é parte do cotidiano de seres sociais dotados de razão, história e consciência; capazes de reflexões e críticas acerca de ações e pensamentos. No cotidiano, no qual o indivíduo se socializa e responde às necessidades imediatas; assimila costumes e normas; vincula-se à sociedade, incorpora mediações na dinâmica voltada à singularidade.20 No processo de desenvolvimento humano, no plano da prévia ideação e da teleologia, o ser humano formula questões e necessidades a serem supridas e, em todo esse processo, ele cria. O devir criativo não está apenas na curiosidade, técnica, forma ou representação de algo, visto que a capacidade criativa exige que o ser universalize a si mesmo. O ser humano criativo surge a partir da possibilidade de escolhas.

19Segundo Lukács, a vida cotidiana possui uma universalidade tal que a sociedade somente pode ser entendida em sua totalidade quando se entende a vida cotidiana em sua heterogeneidade universal, a vida cotidiana é aquele conjunto de atividades que caracterizam as possibilidades de reprodução social. O filósofo Húngaro propõe que a estética tem sua base ontológica no terreno da espontaneidade da vida cotidiana mas para se auto-realizar enquanto fisionomia a cada tempo histórico-social deve ser submetida a um caminho consciente ou não a transformações qualitativas de conteúdo e ou forma, espontaneidade que é inerente a natureza particularista das atividades humanas. 20Os humanos não são apenas seres genéricos nem meramente seres singulares, mas há uma totalidade que envolve a singularidade – a tendência cotidiana da individualidade, dos desejos, e das necessidades – e a universalidade – sociabilidade, objetividade. Para melhor entender, leia o livro de Maria Lúcia Silva Barroco: “Ética e Serviço Social - fundamentos ontológicos. São Paulo: Cortez Editora, 1996. 28

A criatividade não se resume ao fazer artístico ou, mesmo, a um produto, mas é experiência de vida que possibilita ampliar a percepção e a consciência em relação a si mesmo e ao outro. A proposição universal de criar relaciona-se com a vida, ela mesma, a qualidade de vida; o mínimo de inteligência é suficiente para que o indivíduo seja capaz de tornar-se ativo em sua vida, na comunidade ou na sociedade. A não ser que esteja doente, estressado, sufocado, limitado. O american dream, enquanto ideologia dos apologetas do poder, nos Estados Unidos da América, prevalece como existência moral e de conduta introjetada de que tudo é possível e que o estilo “correto” de ser e de vida é o “americano”. São os menestréis possuidores da liberdade de escolha de mercado, de compra, de ir e vir como potência na valoração máxima do indivíduo, a expressão da ideologia pungente e avassaladora do capital, portanto inerente à classe dominante, burguesa, detentora dos meios de produção. A liberdade, na Idade Média, era uma questão de transcendência somente alcançada de forma espiritual. Na sociedade burguesa, a liberdade é objetivada pelo indivíduo. Diante das alternativas, desenvolvemos a capacidade da escolha. Aí está a gênese da liberdade. Subjetivamente, também vivenciamos a sensação da liberdade. Nina Simone, em entrevista reprisada no documentário homônimo de 2016, afirma que a Liberdade é apenas um sentimento, diz ela: “Como você explicará a alguém que nunca se apaixonou o que é a paixão?”. Algumas vezes, no palco, ela se sentiu livre. “I will tell what freedom means to me. No fear! If i could had that half of my life… No fear! A new way of seeing something”21. Nina Simone vai descobrindo, ao longo da vida, que não compactuará com a opressão racial e se agrega a movimentos sociais e pares de luta. Suas composições perpassam a função social, não por obrigatoriedade, mas por sentido de expressão daquilo que a compositora vivenciava em sua vida. E ainda transita por outros temas que balançam o seu coração. Uma artista completa referenda a vida e se lança ao mundo em potência e plenitude. Intuitivamente ela diz que a liberdade não é um sentimento mas uma condição objetiva. A liberdade pressupõe a existência de alternativas e possibilidades concretas de escolha entre elas. Como diz Marx, “Os homens fazem a sua própria

21 Eu vou te dizer o que liberdade significa para mim. Nenhum medo! Um novo jeito de ver algo.Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nPD8f2m8WGI

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história, mas não fazem segundo a sua livre vontade, em circunstâncias escolhidas por eles próprios, e sim nas circunstâncias imediatamente encontradas, dadas e transmitidas pelo passado” (2010, p.124). Essa capacidade é desenvolvida historicamente e não dada por natureza. A liberdade frente às escolhas é parte da capacidade consciente dirigida a uma finalidade. Capacidade prática para realizar objetivamente as escolhas e para que novas escolhas sejam criadas. A liberdade é um processo de auto realização enquanto origem de novas possibilidades, nas quais, por meio de sua ação, o indivíduo social cria-se e recria-se constantemente, como um ser autotranscendente. Determinados valores podem ser vivenciados mais intensamente em certas relações do que em outras com certas objetivações que as demais. Ao indivíduo, é posta a necessidade da escolha e reação ou intenção e, então, da escolha perante alternativas cotidianas das mais simples às mais complexas. Os valores culturais presentes em cada época estimulam ou retardam a criatividade humana. Quanto mais rica a diversificação de relações, mais complexas as elaborações. Por exemplo: cada língua codificada é uma forma de prisma da realidade, nomear o real, designar, é também sentir e pensar sobre ele por meio das línguas. Assim, os de língua anglo-saxã não conhecem a palavra saudades e também não vivem da mesma maneira a saudade. Ao se falar mais de uma língua, amplia-se o repertório de existência, sensações, maneiras de pensar e as designações. A liberdade, no plano subjetivo, isto é, da problemática das possibilidades, do ponto de vista da organização social, se coloca diante da possibilidade concreta de ser livre. Quais serão os teores de verdade que as imagens contêm e induzem a quais efeitos, quais são suas origens éticas e quais os destinos políticos da estética contemporânea mais difundida no mundo? No que as imagens públicas urbanas concernem ao jeito de ser de indivíduos e das coletividades? Ao resgatar toda a referência cultural e artística do legado da humanidade, há que se pensar no desenvolvimento da própria cultura e de que maneira se articula com a universalidade22.

22 É fundamental que o ser humano genérico se aproprie de todos os bens culturais produzidos pela humanidade. “[...] Uma nova classe não recomeça a criar toda a cultura desde o início, mas se apossa do passado, escolhe-o, retoca-o, o recompõe e continua a construir daí. Sem o uso do guarda-roupa de ‘segunda mão’ do passado não haveria progresso no processo histórico [...] Os dias que vivemos ainda não representam a época de uma nova cultura, mas no máximo seu limiar. Devemos em primeiro lugar nos apossar oficialmente dos elementos mais 30

A incessante busca por valorar a vida, uma perspectiva de ver a vida, compreende que a medida da liberdade individual está socialmente impossibilitada pela condição material existente. Vejamos um pouco a complexidade da liberdade nas dimensões ético-política e na micropolítica da subjetividade expressa em sensações e sentimentos. No campo da subjetividade - autonomia23, autoconhecimento, desejos e o que faz, por exemplo, com que uma pessoa se aprisione em um par de sapatos, ou seja, para sermos espiritualmente livres, não podemos permanecer na escravatura das necessidades corporais ou de desejos, quanto mais escravos de necessidades criadas, tal qual ter vários pares de sapato, e a incessante vontade de consumo. Os “processos criativos” vinculam-se a sentimentos de amplitude e de liberdade, ao preencher vazios, atenuar medos e acalmar anseios, e esta possibilidade de dar vazão a sentimentos, sensações e fantasias, são vivências interiores. A criatividade revela o que está encoberto, possibilitando ao sujeito formas estéticas de transfiguração, aberturas e revelações, tornando-se a expressão do verdadeiro self que, em contato com a realidade externa, tem sua existência fortalecida e não aniquilada. “Definir é matar, sugerir é criar” (Mallarmé, 2013). Parte-se do pressuposto de que o ser humano é ser criativo em potencial e tem como necessidade realizar esse potencial se as circunstâncias da vida social e individual o permitirem. Como experiência vital, criar intensifica o viver. Os processos de criação ocorrem no cotidiano, no trabalho, na ciência, na arte e, em geral, quando sua atividade lhe é significativa, sua sensibilidade pode ser estimulada. Essa realidade criativa se dá na mediação do singular com o universal, do indivíduo com a cultura. Criar não é algo privilegiado do campo artístico, mas uma necessidade vital de concretizar um dos potenciais humanos. A criação representa uma descarga de energias emocionais e intuitivas que renova a potência; neste processo o indivíduo amplia o espectro de ser e atuar no mundo ao enriquecer a sua própria produtividade. importantes da velha cultura, a fim de podermos ao menos abrir caminho à construção de uma cultura nova.” (TROTSKY, 2007, p. 143 e 154, grifo do original).

23No cotidiano dinâmico e heterogêneo, tende-se a emitir respostas automáticas, valores, crenças e preconceitos. A escolha é um exercício de liberdade, no cotidiano reificado; os valores morais tendem a ser interiorizados acriticamente e constituem a alienação moral. Há uma distinção entre a autonomia, a consciência da possibilidade de escolha. A autonomia demarca-se quando o eixo de uma escolha está marcado pela personalidade individual. É evidente, nesse processo, saber que sem alternativas existentes não há possibilidade da autonomia entrar em cena. 31

V -

A forma é a materialização da ideia, mas nem sempre ambas mantêm uma relação direta e simbiótica entre si. Uma forma nova com o conteúdo velho, ou um conteúdo novo com uma forma velha, entram em contradição, uma arte histórica; uma arte que se torna trans-histórica apresenta uma unidade transformadora tanto na forma como no conteúdo. A partir dessa premissa passamos a observar a arte urbana. Em termos da arte de mural, comparativamente à do graffiti, temos que, na arte mural, que mais se aproxima à da pintura, há possível figuração de duas ou três dimensões do real enquanto que o graffiti e o pixo apresentam realidades mais intrínsecas. O pixo expressa uma preocupação maior com o local de exposição, o risco de exposição, do que com seu conteúdo concreto. A realidade espacial adquire uma nova dimensão, que, no caso do pixo, apresenta a renúncia à cor, o que havia ocorrido na escultura e na poesia concreta, com a renúncia da rima. Algo a se considerar é que os graffitis e murais transcendem as possibilidades de superfície, que também interferem naquilo que poderá ser figurado. Atingem magnitudes impressionantes, até então abrangidas apenas pela arquitetura; são formas de carimbar e transformar arquiteturas, não somente como adornos. Ao mesmo tempo, a iluminação externa, em locais a céu aberto, apresenta riquezas particulares nas variadas épocas do ano e a cada dia uma modificação natural incide sobre murais e graffitis: a luz da manhã, do meio-dia, o crepúsculo, a aurora, o tempo das chuvas, o céu de outono, a luz por entre as nuvens, a luz artificial que brota na noite, enfim, toda a gama de iluminação dá origem a efeitos variados ideados ou ao acaso. Parece-me interessante que a renúncia burguesa aos elementos externos de composição das arquiteturas de edifícios pode ter aberto espaço para essa necessidade, que, em nosso entendimento, não adentram potencialmente os campos da subjetividade e apresentam posições menores, no campo das artes, o que é muito distinto das artes abstratas, que expressam uma realidade sensível e plástica, que atingem outros níveis de consciência e reciprocidade. Para o icônico artista Rui Amaral, o conceito decorativo de arte é um sequestro.

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Se, no tempo das arquiteturas monumentais Góticas, a pintura é totalmente externa e há necessidade de adornos nas catedrais, janelas recobertas de motivos, no tempo de agora, a necessidade pode ser a de colocar a pintura para fora, sendo que os prédios, igrejas, são simplificados em seus contornos exteriores. Há pouco tempo, em fins do século XX e início do século XXI, talvez a escultura estivesse mais próxima da arquitetura do que a pintura, na arte muralista. Com o emprego dos mais variados materiais, a representação espacial, que, no caso da pintura, depende sempre de uma superfície, ganha essa outra dupla dimensão: a superfície de prédios e a visualidade em diferentes locais na cidade, próximo ou distante da pintura, ou na virtualidade, com a difusão das fotos. Mais pessoas observam um mural urbano do que vão a um museu, é apenas por estar circulando na cidade e se deparar com algo menor, ou monumental, que salta aos traços cinzentos típicos de metrópoles do tipo LA, ou SP, com prédios gigantescos, produções industriais, concentração de Capital e poucas áreas verdes, com tráfico e ritmos intensos, de fluxos populacionais. Na antiguidade greco-romana, a pintura revestia as paredes e os murais em branco para decorar templos e moradias. Vemos essa independência da pintura iniciada no muralismo mexicano, em que são retratados grandes acontecimentos históricos e substanciais valores de lutas contemporâneas, donde se ressalta a grandeza humana com virtuosismo técnico. Agora, a delimitação da forma adquire outros contornos, pelo incremento da relação espacial. Hoje, o graffiti dirige-se diretamente ao espectador, de maneira instigante e vívida. Está nas esquinas, vielas, nos viadutos, embaixo e nas alturas das pontes. A pintura tem, no seu meio de representação, as figuras, mas também as cores. É nessa delicadeza sensível que podemos sentir que apenas a cor pode expressar uma subjetividade que estabelece interlocução com os sujeitos que a miram e com ela interagem. É necessário considerar a concreta expressão da forma sensível, através da perfeição das formas exteriores, para considerar a arte bela? Ou o lado sensível pode ser absorvido por outras singularidades interiores? Em que seria comparável exprimir uma exaltação superior de uma arte perante a outra? Tomar-se-ia a produção contemporânea de uma outra época, ou a concreção de um mesmo tipo de forma artística como medida? O elogio à perfeição dar-se-ia não pela

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fidelidade de representações mas na referência dos conteúdos compartilhados ou sentimentos e sensações de impressão na alma? Na arte visual, rica e multiforme, damos ênfase aqui ao graffiti, mas encontramos no nosso período corrente a arte conceitual contemporânea, mais ligada ao “pós-moderno”24. Também existem formas pertencentes à modernidade tal qual a referência nos murais do realismo social - algo muito “moderno”. O modernismo entendido por esse movimento acadêmico, sensível e revolucionário, tanto em se unir a sentidos políticos com as proximidades de eclosões e revoluções sociais, quanto a estabelecer questionamentos no interior da própria arte. Pressupomos que é impossível pensar que modernidade tardia é esta, sem levarmos em conta os movimentos por alteridade, os movimentos LGBTQIA+, feministas, a efervescência que vem das ruas, os movimentos raciais e os movimentos ambientalistas.

VI -

Arte e política têm características próprias e não se situam no mesmo plano, conquanto, a arte apresenta direcionamentos ideológicos por não estar dissociada da sociedade. A arte pode assumir direcionamentos ideo-políticos e a política pode se valer da arte para promover propaganda e processos de consciência e até dominação. Os dogmatismos impostos de um plano para outro não fazem mais do que estimular o sectarismo e as limitações que podem tão somente inibir os processos criativos. Do contrário, seria mais benéfico promover mais criatividade e liberdade na política. Política e arte não andam sempre juntas, no processo de desenvolvimento histórico, tanto que, em momentos de ditadura, com táticas de repressão no campo político e artístico, no Brasil, registra-se alto desenvolvimento artístico. A politicidade não pode ser entendida acima das classes sociais25, a estrutura de

24 O pós-modernismo apresenta um sistema de ideias e também práticas culturais em que se defende que a fundação de todo o pensamento clássico social colapsou e que não existem mais grandes narrativas ou meta narrativas - num todo, as concepções de história e sociedade. E aí atinge o cume da afirmação da inexistência de História. O mundo pós-moderno está generalizado a este ponto, dominado pelas novas mídias digitais que retiram a importância do curso da história, que anulam o passado. O mundo está em constante fluxo de ideias, imagens, informações. Jean Baudrillard acredita que a mídia eletrônica destruiu as nossas relações com o passado e criou um mundo caótico e vazio. 25“Não é preciso demonstrar que a separação da arte dos outros aspectos da vida social resulta da estrutura de classes da sociedade. Sua auto-suficiência, como se ela se bastasse a si mesma, constitui o reverso da medalha: a transformação da arte em propriedade das classes privilegiadas. A evolução da arte, no fundo, segue o caminho de 34

classes vem determinando a forma e o conteúdo da história humana, isto é, a cultura também assume esse caráter, assim como as relações materiais e seus reflexos ideológicos. A estética é política mas tem uma complexidade e universalidade tal que transcende a política. O princípio fundamental da arte é a necessidade e o da política é a vontade. A arte surge muito mais como um fenômeno universal mas a política se liga mais ao particular, nos modos em que ainda vivemos. E mesmo que o modo de produção esteja globalizado, cada nação tem certas singularidades. A estética pode suprassumir a esfera do Capital mas a política não consegue. Pensar que quem faz arte tem o dever-ser político correto nesta ou naquela direção, é um debate muito em voga. Segundo o artista Paulo Ito (entrevista em 2017): “A arte não necessariamente está vinculada à qualidade, e por vezes algo de ruptura como as vanguardas e a quebra do establishment pode ser considerado algo político” Mas sejamos sensatos/as: a arte verdadeira transcende o seu momento histórico e é lembrada e reverenciada independentemente do tempo e espaço a que se vincula e pode ser reapropriada em outros momentos históricos. O “socialismo real” ruiu e continuamos a ler Maiakovski, e as belas esculturas de Camille Claudel, muito à frente do seu tempo, começam a ter maior valorização hoje, mais de 70 anos depois de sua morte ou as belas cerâmicas dos tempos da Dinastia Shang na China, mais de mil anos a.C. que nos enchem os olhos de beleza. Temos discutido na relação entre arte e política que a forma artística, apesar de manter constante relações com as exigências econômicas e produtivas, possui leis próprias. A arte desenvolve-se na vida e pela vida; não está atada à imediaticidade da vida, em sua espontaneidade. A vida cotidiana apresenta um efeito contraditório, de massante repetição e potencial evocatório. O desenvolvimento da capacidade humana se relaciona a cada situação, momento, configuração da história social e pessoal de cada um. O que dizer de uma artista em profícua criação que, em determinados momentos, não consegue pintar nada? Devemos ainda nos concentrar em priorizar esteticamente a arte que

uma crescente fusão com a vida, isto é, com a produção, as festividades populares e a vida coletiva”. (Trotsky, 2007, p. 114)

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traz harmonia social? O obscurantismo do real deverá refletir um mundo ideal na arte ou a arte de um mundo decadente em chamas? A verdade de um julgamento estético e a beleza de uma obra de arte devem, por sua própria essência, afetar ao público sem distinção de sexo e nascimento, mas, para isso, independentemente de sua posição no processo de produção, todos os indivíduos deveriam estar expostos a valores culturais, para da luz à existência humana.

VII -

Contraditoriamente, os traços híbridos da reprodução26 contemporânea estão presentes também na cultura dos povos originários; quilombolas; na classe trabalhadora; em grupos de grafiteiros/as e pixadores/as; ou em qualquer agrupamento social majoritariamente subordinado à exploração, dominação e à ideologia do capital. Esse é o processo de concreção das relações alienadas e estranhadas. A existência parece colocada na trincheira entre a incapacidade de se realizar, em virtude da subsunção à ordem vigente, restando apenas aos indivíduos estabelecer sociabilização entre concorrentes, e mediatizados pela coisa, na qual sua realização só pode se objetivar perante o dinheiro, e a super capacidade de realizar tudo e qualquer coisa que quiserem. Por quanto tempo temos sido expostos a informações de consumo incessantes que invadem nossa vida: preços, letreiros, mostradores de mercados, nomes de loja e outdoors? A presença de manifestações visuais ilustrativas ou cifradas também existe do ponto de vista de quem observa e ou contempla na necessária interlocução, daquilo grafado ou observado, com quem observa. O capitalismo vem subvertendo e absorvendo todas as formas de expressão criadas, capturadas e transformadas em publicidade em valor capital, em fluxo imagético. Os grafismos selvagens – escritas, garranchos e rebarbas ou elaboradas grafias e murais a partir do uso do spray, canetas e tintas transformam as escritas urbanas. Ao mesmo tempo essas novas imagens e tipologias criadas são incorporadas e se tornam jargões, novas tipologias de letras para o word, novas propagandas.

26Não há vida sem reprodução e não há sociedade sem vida cotidiana; todas as capacidades e os afetos fundamentais são apreendidos no cotidiano. O ser humano, ao nascer, encontra-se vinculado a uma estrutura social - estrato, classe -, é ele o ser genérico ou o ser social. 36

Ao mesmo tempo, desta vez, quem reverte a lógica e absorve o que foi desenvolvido pela sociedade capitalista é a arte imagética de rua que em diversas vertentes compete com a poluição e que pode incitar valores e ao mesmo tempo ser cifra de difícil compreensão para leigos. A arma de identificação, reivindicação, expressão e existência em alguma história fugaz. O público não é consumidor, o público busca entender, admira, sente, compreende, sente ojeriza, repulsa. Ataque ao suporte, a guerrilha urbana de imagens está instalada. Aqui nem sempre importa o que está escrito, o significado das palavras sem aparente importância da semântica, a linguagem suja, sem conceitos, a imaginação furiosa, demarca os mais bem posicionados edifícios de maneira monumental. Graffiti, pixo e estêncil27 rompem com os espaços de exposição tradicional, os museus e as galerias, para criar diálogos com lugares e recolocar o campo da criação artística entre os elementos da vida cotidiana. Aliás, é fundamental a supressão dos museus ainda mais se pensarmos que a onipresença da publicidade recorre por sobre o valor estético em que a fortuna de uma artista depende somente, por muitas vezes, de um bom empresário. Claro que também sob o jugo social capital a arte é mercadoria, agora até a água o é. E quem vive por mais de três dias sem água? O dinheiro, a publicidade, a propaganda, a ideologia dominante define o futuro da maioria. Como disse Mariátegui: a elite aristocrata se compunha de finos amantes das artes e das letras; já a elite burguesa se compõe de banqueiros, industriais, técnicos. "A atividade prática exclui da vida desta gente toda a atividade estética" (1980, p. 137). A civilidade Capital é da potência, não é estética; a sociedade em construção é estética e cooperativa. Encontramos, na discussão do materialismo histórico-dialético, a premissa de que, no momento em que uma produção social humana entra em decadência, a cultura28 também a segue. A decadência cultural corresponde à necessidade de uma nova formação social. Qual é a transformação cultural que vivemos? As formas, na arte, têm mais a ver com o desenvolvimento da linguagem, que possui

27Estêncil é uma técnica de pintura utilizada para aplicar um desenho sobre qualquer superfície, com o uso de tinta, sendo aerossol ou não, o estêncil é feito com papel, plástico, metal ou acetato, onde tem uma boa durabilidade e seja fácil de cortar, para fazer a forma do desenho. 28 Karl Marx e Friedrich Engels nunca fizeram uma teoria da cultura. A nossa elaboração se pauta-se na elaboração abordagem crítica sobre das artes e da cultura nos estudos teóricos do legado a partir de G. Lukács, Walter Benjamin, Adorno, Trótski, Marcuse, Frantz Fanon Fredric Jameson, David Harvey, Perry Anderson, Erson de Oliveira, e Celso Frederico. 37

leis próprias, mais do que com o desenvolvimento da sociedade, apesar de manter constante relações com as exigências econômicas e produtivas. O conhecimento da realidade na arte não é mediada pela ideologia na ciência é forma sistematizada de conhecer. A grande contradição da arte como instância Criativa e o capitalismo enquanto sistema que nega o indivíduo criador, o ser producente está tanto na divisão do trabalho quanto na rasteira educação artística. Ainda bem que, como temos visto no Brasil, que as classes populares se reinventam e que o campo da reprodução cultural pós moderna não domina todas as mentes e almas. É aí que vemos o florescer de um tipo monumental e exuberante de arte. É claro que se notarmos até mesmo entre as/os artistas escolhidos, há alguns de influência nas artes na família e no processo de formação; mas a origem, o espraiamento e a força da cultura de ruas e da arte de rua são proletárias, na forma mais genérica e específica. E se lembrarmos dos tempos históricos da arquitetura, escultura, quadros, música, parece que a elite burguesa não fracassou mas não apresenta traços lúdicos e imaginativos o suficiente para enfrentar o campo da estética, afinal o avanço tecnológico; a eficiência; o consumo são mais importantes. O signo existe do ponto de vista da necessidade de interlocução e comunicação daquilo grafado, inscrito, colado com aquele que observa; ao ocupar o espaço público, apresenta outra leitura de percepção da cidade e estimula a vivência na metrópole. O artista urbano, habitante da cidade, afirma o território e transforma a sua ação pincelada, colada ou escrita em cenário da cidade em meio à já tradicional impessoalidade anônima urbana. Está nas ruas em atualização ou modificação constante. Muros- suportes que se tornam amplos museus a céu aberto. A arte nos ajuda a conhecer um ao outro como seres humanos. A arte urbana faz parte de uma visão de mundo cultural e sendo assim não é algo individual mas social. Das famosas Tags29, ou assinaturas de nomes pessoais e grupos, até os ostensivos murais artísticos, os trabalhos poéticos ou identitários refletem o espírito único da época. De modo genérico, a arte plástica de rua é aquela que sai do confinamento do museu, espaço institucional de legitimação, e usa a rua como suporte. Desvela características peculiares do cotidiano metropolitano e disputa

29Inscrição de nome ou assinatura, surgida em NY nos anos 80. É a criação de uma assinatura estilizada individual. A complexidade da grafia varia. 38

espaço público com interesses imobiliários, comerciais, históricos, estéticos e comunicacionais, documentando e questionando o modo de vida dos habitantes de uma cidade. Irreverentes e com regras próprias, as artes plásticas de rua transbordam o espaço urbano, transformando-o em suporte artístico, a partir de pixos30, esculturas, colagens, murais e os tradicionais graffitis.

Todas as sociedades usam a fala como veículo de linguagem e há outras formas notáveis de se comunicar, especialmente nas variedades de escritas. A invenção da escrita marca uma transição na história da humanidade, pois se inicia com rabiscos, desenhos, riscos, listas; marcas feitas em madeiras, argilas ou pedras, para registrar objetos, animais, pessoas, eventos significantes. Por

30Pixo, verbo pixar. Escrever em paredes de muros, prédios, calçadas, janelas e com caligrafia invejável. graffiti e pixo andam juntos, mas o pixo é criminalizado e enquadrado como crime ambiental, o mesmo crime de quem destrói complexos ecossistemas, tal qual a Samarco, a Vale, entre outras. O mais importante debate acerca da pixação está entre o crime e a arte; em São Paulo, é inegável a pixação enquanto fenômeno cultural, esse debate será aprofundado nesta tese. 39

exemplo, uma marca ou uma pintura pode ter sido desenhada para representar cada trato de posse da terra por uma família particular.31 É indiscutível o poder e o significado da escrita como marcas na história. A escrita apresenta um significado de guardar informação e administrar necessidades no início de civilizações. Uma sociedade que possui escritos localiza- se no tempo e espaço. Os documentos acumulam-se e gravam o passado, as informações posteriormente podem ser novamente coletadas. Ideias e experiências podem ser passadas por gerações sem a escrita mas apenas se forem repetidas regularmente e oralizadas a cada nova geração. A escrita pode durar milhares de anos e, por meio delas e da pesquisa documental, historiadores podem reconstruir as vidas de antepassados. A seguir expomos uma breve visão histórica das inscrições grafitadas ao longo do desenvolvimento da humanidade à atualidade.

A grafia em paredes é feita desde a pré-história. Nessa expressão remota, historicizam-se registros em muros, cavernas e rochas, com vestígios até hoje encontrados que datam de 40 mil anos. Os achados de figuras de mãos humanas, por sua vez, estão estampados numa gruta na ilha de Sulawesi, na Indonésia; também com essa mesma datação, consta uma roda vermelha, na parede de uma gruta espanhola, em El Casillo. A capacidade de abstração e representação figurativa provavelmente já se encontrava na África antes da diáspora, o tempo para descobrir vestígios dessa manifestação artística ancestral.

31 GELB, I. A study of writing. Chicago: University of Chicago Press, 1952.

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Representações artísticas rupestres realizadas em paredes e outras superfícies de rochas e cavernas expressam um tipo de faculdade humana universal e encontrada em todo o mundo. No Brasil - em Rio Grande do Norte, Piauí e Paraíba - localiza-se a maior concentração de arte rupestre do mundo. O clima seco, a vegetação impenetrável e a dificuldade de ocupação, em algumas áreas, contribuíram para conservação. No Piauí, são mais de 500 pinturas encontradas no sítio arqueológico; datadas de 6 a 10 mil anos, feitas com uma pedra ferrosa de cor avermelhada (Fig. 1).

Figura 1 - Parque Nacional de Sete Cidades – Piauí/BR.

Fonte: Imagem de Luiz Augusto Vieira (2018).

Lascas de pedra, galhos de árvore eram instrumentos para a arte criativa do grafismo. Os registros rupestres são fonte para entendermos o processo do contar histórias, do desenvolvimento da linguagem e das “faculdades estéticas humanas” (Fig. 2).

Figura 2 - Figuras rupestres de animais e pessoas.

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Fonte: Museu Nacional de Antropologia do México. A linguagem da cotidianidade constitui-se em um complicado sistema de mediação, a respeito do qual o sujeito se comporta, que se faz claro por sinais, símbolos, palavras e enunciados. A reunião abstrata de um largo processo de generalização e distanciamento da realidade e percepção sensível apresentam-se. Na formação da arte rupestre, um processo na criação da linguagem, ou seja, de desenhos, letras, signos, expressa-se enquanto reflexo das representações do mundo que cercam humanos na pré-história. Primeiramente, os registros mais antigos de arte rupestre são de mãos humanas; depois, de animais, plantas e pessoas; e em outro momento do desenvolvimento das capacidades humanas, começam a ser desenhados instrumentos de trabalho - para caçar. Vão surgindo os símbolos e desenhos gráficos que parecem representar lutas, movimentos, danças, rituais e momentos de condensação da vida cotidiana daquele tempo humano. A arte rupestre pode ser encontrada em todos os cantos geográficos do planeta terra. A arte figurativa dos tempos pré-históricos: paleolítico, mesolítico e neolítico, considerada arte primitiva no sentido próprio da evolução das artes, apresenta, como se verifica na Figura 3, uma relação entre forma e conteúdo; em um aperfeiçoamento técnico, percebe-se o uso de cores, a sobreposição de imagens, a profundidade, em um estágio evoluído e de perfeição. Nas pinturas em cavernas e muros, é possível definir características da vida dos antepassados e nos aproximarmos daqueles seres que realizaram a arte rupestre. Ainda que saibamos muito pouco das origens das atividades humanas, e aqui não se trata de discutir a gênese das capacidades estéticas, reconhecemos desde as artes

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primitivas uma manifestação inicial de “reflexos miméticos” (LUKÁCS, 1966). Algumas reminiscências e estudos etnográficos indicam caminhos com os dados arqueológicos de que dispomos, acerca dos povos mais originários. Historicamente, tratamos de momentos que podem ser ressaltados e que se vinculam a um tipo de linguagem visual com razões históricas e constituições estruturais diferenciadas a cada período.

Figura 3 - Arte figurativa de animais.

Fonte: Imagem de André Juarez. Museu Nacional de Antropologia do México.

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Os antigos egípcios eram tão apaixonados pela vida que intencionavam manter um espelho da vida na terra, mesmo após a morte (HAMDY; STONE, 2014). As antigas pinturas em paredes, no Egito, são de uma época florescida à beira do Rio Nilo, há 4 mil anos. As pinturas egípcias antigas eram feitas nos túmulos dos faraós, portanto, não eram apenas para ser vistas, mas para embelezar, acompanhar e cuidar do morto. As tumbas subterrâneas ficavam cobertas de representações coloridas, com comidas, bebidas, rituais e paisagens. Os faraós são mostrados, por vezes, com seus escravos ao seu redor, para que pudessem servir e cuidar deles na vida após a morte. A pintura era realizada de algumas formas: diretamente na superfície; uma imagem levantada acima do fundo, em relevo; e a pintura cuidadosa, com os detalhes da imagem; relevo que foi esculpido e é chamado de "relevo afundado"; e as imagens pintadas com um fundo em relevo ao redor delas32 (Figs. 4 e 5).

Figura 4 - Gansos, pintura de 2600 a.C. encontrada em uma tumba no complexo funerário Meibum.

Fonte: Museu do Cairo (imagem 31.6.8).

Figura 5 - Divindade gato adorna a câmara subterrânea da tumba de um famoso artesão - Sennedjem (1300 a.C.).

32Para saber mais, leia WILKINSON, Charle K. Egyptian Wall Paintings. The metropolitan museum of art’s collection of facsimiles. Catalogue compiled by Marsha Hill. New York: The Metropolitan Museum of Art, 1983. 44

Fonte: Museu do Cairo (imagem 30.4.2).

A pintura que os egípcios usavam era colorida ou tingida com minerais naturalmente encontrados em sua área e algumas cores eram importadas, como, por exemplo, o vermelho terra, ocre e amarelo vindo do mineral auripigmento. As cores favoritas usadas na pintura foram o vermelho, azul, verde, dourado e preto; mas também utilizaram branco, rosa e cinza. As cores e todos os objetos encontrados nos túmulos foram preservados devido ao ambiente seco e fresco e é por isso que podemos vê-los hoje em tons tão claros (Figs. 6 e 7). As cores eram preparadas com minerais, em um pó fino, e misturadas com uma espécie de "cola" feita de resíduos animais ou plantas.

Figura 6 - Rekhmire era um antigo egípcio nobre e oficial da 18a dinastia (1475 a.C.) que serviu de Governador da Cidade.

Fonte: Museu do Cairo (imagem 30.4.80).

Figura 7 - Adoração ao Deus-Falcão Ra-harakhty e à Deusa do Oeste. Área necrópole de Sheikh Abd el-Qurn (1320 a.C.).

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Fonte: Museu do Cairo (imagem 30.4.31).

Era importante fazer a mistura certa, porque a pintura tinha que não só ficar nas paredes, como também durar para sempre. Havia diferenças na cor do tom de pele entre homens e mulheres. Os homens eram representados em um tom marrom avermelhado mais escuro, para refletir sua vida ao ar livre e as mulheres tinham em uma cor mais clara, quase amarelo amarronzado para mostrar que viviam, principalmente, em ambientes fechados ou em local abrigado. Os artistas egípcios misturavam as cores para mostrar detalhes nas pinturas mais próximos da vida real. Os deuses também eram pintados e tinham cores definidas. Por exemplo, o deus Anúbis tinha sua cabeça de chacal pintada de preto, porque era o deus dos mortos.

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Um momento ápice de expressão pública do graffiti (graffiti) se estabelece na Roma Antiga (VIII a.C. a V d.C.), criticado pela elite romana e visto como a principal comunicação da plebe. Os graffitis e as pichações eram uma marca das grandes cidades do Império Romano (I a.C. a V d.C.). Na Roma Imperial, no Coliseu, se presenciava a violência física entre os gladiadores, escravos, e muitos outros, a matarem-se uns aos outros, enquanto a multidão observava e aplaudia, mas também se observavam, na porta do anfiteatro oval, frases de incitação à violência; pichações de apoio ou repúdio ao Império; frases de amor ou de conotação sexual (Fig.8).

Figura 8 - Inscrição em Pompeia dentro da Casa das Lobas (Prostíbulos). Tema erótico. Sul da Itália onde as cidades foram fundadas pelos gregos.

Fonte: Imagem por Beatriz Abramides (mãe da autora), 2019.

Recentemente, uma descoberta de um modesto graffiti, inscrito em carvão numa parede, muda a história de Pompeia, e define a data exata em que o Vesúvio, em erupção, destruiu a cidade romana, assim como Herculano, Stabiles e Oplontis, no ano 79 da nossa era. O graffiti, recentemente descoberto na Casa do Jardim, um dos edifícios atualmente escavados em Pompeia data a inscrição: "XVI K NOV", que significa "o décimo sexto dia antes das calendas de novembro", ou seja, no dia 17 de outubro. Se a cidade tivesse sido enterrada sob as cinzas do

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Vesúvio desde 24 de agosto, seu autor não poderia ter escrito esse minúsculo texto quase dois meses depois33 (Fig. 9).

Figura 9 - Inscrição: "XVI K NOV", que significa "o décimo sexto dia antes das calendas de novembro".

Fonte: Parque Arqueológico em Pompeia.

Originárias do latim, as palavras “graffiti” “inscrições” e “pichação/pixação” derivam, respectivamente, de graffito, inscriptiones e do pix (piche). Na itália, em Roma e em Pompeia principia algum tipo de cultura da cidade, e as inscrições possuíam uma expressão de rebeldia, transgressão e contestação à ordem estabelecida, ainda que não majoritariamente e, portanto, outras perspectivas eram também escritas ou desenhadas como formas particulares de comunicação. A inscrição tanto significa a escrita como a pintura e é por isso que utilizaremos inscrição, ao longo do texto, com essa definição. A escrita na superfície (pincel, rolo e, hoje, spray) ou escavada (pedra, prego, estilete, faca); a

33 “Para o especialista em pinturas romanas Alix Barbet, diretor de pesquisa honorário do CNRS, essa descoberta põe fim a um debate que não deveria mais ter motivo para existir, se não houvesse a teimosia de alguns ‘pompeianistas’ em se agarrar à data de 24 de agosto: ‘Pesquisas recentes já diziam que não era a data certa. [...]’. Alix Barbet apresenta um outro importante elemento agrícola: ‘Temos provas de que a vindima acabou. Havia borras de vinho, assim como sementes de uva, e os grandes potes de terracota estavam cheios e selados em duas casas’. Mas os textos dos agrônomos antigos, Columella bem como Plínio, o Velho, especificam que as colheitas de uva começava no equinócio de outono - 21 de setembro - e terminavam ao pôr das Plêiades em 11 de novembro. [...] Outros elementos indicam uma data outonal para o desastre: a presença, nas casas pompeianas, de muitos braseiros, pouco úteis em agosto, ou as grandes roupas que transportavam alguns habitantes. Portanto, Pompeia foi enterrada sob as cinzas em 24 de outubro de 79 e não em 24 de agosto”. (Fonte: CNN, grifos do original). 48

gravura ou a pintura. No entanto, na mesma Itália, Francesco Maria Avelino escreve disegni graffiti, para falar do desenho, ou propriamente, do que ocorre desde o século XVI como disegno esterno. Inscrições eram também deixadas pela cidade indicando a orientação de algum local. Os navios que atracavam em Pompeia, traziam marinheiros de diversas nacionalidades, assim, graffitis eram inscritos nas paredes e chãos para simbolizar locais. Como é o exemplo da figura abaixo (Fig 10), em que o desenho de um membro masculino, em uma pedra no chão, aponta a direção da Casa das Lobas. Fig 10 - Inscrição no chão.

Fonte: Imagem fotografada por Beatriz Abramides (mãe da autora), 2019.

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Se o graffiti escrito e o pixo, hoje, são vistos como destrutivos e feitos por “vândalos”, isto pode decorrer de uma compreensão de mundo a partir da modernidade. Anteriormente, pessoas de quase todos os níveis da sociedade esculpiam graffitis em prédios antigos e isto não era visto como algo a ser condenado. Durante a Idade Média, principalmente entre os séculos XII e XV, muitas igrejas e catedrais medievais em toda a Europa ocidental foram cobertas com inscrições escavadas34. Um terço das marcas encontradas, que hoje são conhecidas como marcas de bruxas, eram consideradas de proteção ritual contra as influências do mal (Fig 11).

Fig 11 - A e B símbolos inscritos em igrejas medievais conhecidas como marcas de bruxas.

Fonte: Champion (2015). A maior parte de inscrições é de desenhos sendo apenas 5% escritos35, a raridade é, em parte, resultado das baixas taxas de alfabetização. Muitas imagens eram grafadas sobre fé, espiritualidade; mas também as vivências do cotidiano da sociedade agrícola, camponesa e marítima representadas com os moinhos de vento, mãos, pessoas, cavalos, cavaleiros, gansos e barcos, feras e dragões. Os demônios também aparecem (Fig 12), enquanto a igreja medieval era formalmente adornada com anjos e demônios, quando se trata do graffiti nas paredes, há apenas demônios - muitas dúzias deles, do grotesco ao cômico, dançando através da pedra livre de anjos.

Fig 12 - O lobinho: belzebu, mefistófeles, tinhoso.

34Os maçons medievais, as pessoas que construíram esses monumentos, deixaram as marcas mais antigas encontradas em qualquer igreja ou catedral medieval. A história tradicional é que cada pedreiro individual teria sua própria marca pessoal, que ele inscreveria onde quer que trabalhasse. Essas marcas angulares, conhecidas hoje como "marcas de pedreiro", atuaram como uma forma de controle de qualidade. Eles também permitiram que o "mestre pedreiro", que trabalhava como arquiteto e pagador, calculasse quanto cada um de seus operários deveria ser pago. Os maçons continuam hoje com essa velha prática de marcar seu trabalho, mas suas marcas são mais discretas, escondidas entre pedras e cantos escuros.. 35 Para saber mais leia: CHAMPION, Matthew. Medieval Graffiti: The Lost Voices of England's Churches. England:Ebury Press, 2015. 50

Fonte: Champion (2015).

Anjos eram os seres celestiais, adornavam vidros e bancos esculpidos. Eles enchiam as páginas da Bíblia, mas não se esperava que fizessem parte da vida das pessoas no mundo. Demônios, por outro lado, eram muito reais mesmo; são eles que trazem as doenças, as pragas, desequilibram a psique. Demônios eram muito reais e temidos. Esse medo levou as pessoas a esculpir suas contra-maldições nas paredes da igreja paroquial A maioria dos documentos históricos da época medieval não fala da maior parte da população: a plebe e mesmo os documentos em que aparecem os plebeus como livros contábeis, foram escritos e compilados por sacerdotes, escribas e advogados da elite, ou sejam sem lugar de fala das classes subalternizadas. Aliás, como têm sido na história da luta de classes. A voz do plebeu medieval, a vasta maioria do povo medieval - estava em grande parte perdida. As evidências nas paredes sugerem que elas foram feitas por todos: desde o senhor da mansão e do pároco, até o mais humilde dos plebeus mas o estudo das inscrições antigas começam a contar a vida desses plebeus e não apenas o mundos dos cavaleiros, príncipes e reis.

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A pintura nas paredes é uma forma de comunicação coletiva; as paredes serviram para ilustrar as lições religiosas da igreja e incorporar o novo humanismo do período do Renascimento, por meio das inovações de perspectivas e da anatomia naturalista. A Criação de Adão é um detalhe que está localizado no teto da Capela Sistina, no Vaticano, sede da Igreja Católica Apostólica Romana. Compõe as cenas das pinturas da criação e mostra o exato momento em que Adão recebe a energia da vida como dádiva de Deus. Parece ser um momento fundamental na temática religiosa católica (Fig. 13).

Figura 13 36 - A Criação de Adão, de Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni. Pintura no teto da Capela Sistina (1508-1512).

O tempo do renascimento, de Lutero, Shakespeare, Leonardo da Vinci e Michelangelo Buonarroti, expressa renovação acadêmica, intelectual e artística37. Ali na pintura, vemos a criação do mundo por Deus; a narrativa da origem da

36A Criação de Adão compõe um conjunto de pinturas de cenas bíblicas pintadas por Michelangelo no teto da Capela Sistina, entre os anos de 1508 e 1510, a pedido do papa Júlio II. A narrativa do momento em que Deus cria o primeiro homem, Adão.

37Curioso lembrar que, no Renascimento, o grande ícone da arte era Rafael, enquanto hoje é Michelangelo. 52

gênese, que aponta para o futuro da humanidade. O mundo em que o homem é o centro de tudo; o poder criador divino cria o mundo da racionalidade. Ou seria a criação de Adão, o homem que cria Deus, o conceito de que o humano é tão sagrado que ele tem Deus? Deus não pode ter uma forma senão ser abstração do pensamento, mas a pintura necessita de representação da forma e sem poder evitar o antropomorfismo38, a transforma em forma humana, mas, então, esse Deus pai figurado tal qual indivíduo humano, somente poderia ser Jesus Cristo - o salvador. Não tal qual A Sagrada Família ou a Paixão de Cristo, que são histórias míticas, ou místicas, transformadas em pintura. Michelangelo era anatomista e dissecava corpos para compreender seu funcionamento. Corpos admiráveis foram criados, a ponto de parecerem vivos. Se lermos da esquerda para a direita, o Adão, criado por ele, estende seu braço aos céus e extrai, do alto , a ideia de Deus. Deus que recria a ideia na imagem e semelhança do homem. A luta pela liberação da arte contra a sua submissão à religião é um fato fundamental de sua origem e desligamento. Na relação de sua transcendência e da transcendência humana, a arte se abre pouco a pouco para sua independência. A elevação ao humano-genérico se realiza na mediação da consciência, no movimento da singularidade em direção à universalidade; significa a sociabilidade humanizada no processo de vir-a-ser para si e para o outro.

Já no século passado, após a revolução mexicana, de 1910 a 1917, os murais serviram de veículo artístico para a educação sobre os ideias da nova sociedade e as virtudes e demônios do passado. Uma forma de criar uma nova consciência

38Uma forma de pensamento que atribui características ou aspectos humanos a animais, deuses, elementos da natureza e constituintes da realidade em geral. 53

nacional. O valores da classe trabalhadora, aí incluídos o operariado, setores médios, assalariados/as, trabalhadoras/es liberais, contra os valores das regras do capitalismo, e clérigos. Desde essa época, o muralismo contemporâneo têm sido identificado com os pobres, a revolução, e o comunismo. Diego Rivera foi o expoente do muralismo mexicano; maior pintor de paredes do mundo, ao menos até o século passado. Era comunista, membro de um grupo político de pessoas que se contrapunha à propriedade privada dos meios de produção e lutava pela dissolução do Estado e do Capital. Em sua autobiografia, disse: “years before [while studying art in Paris], i had envisioned the mural as the art form of the industrial society of the future”39. Ele migra por um período para os EUA, na Califórnia, "o passo intermediário ideal entre o México e os Estados Unidos", mas era Manhattan, a fortaleza do capitalismo, que o atraía com mais força. Nesse ponto, o artista já havia sido expulso do partido comunista mexicano, pois o consideravam renegado, após exposição no MOMA NY. Here and there40 vemos algumas posturas autoritárias de partidos comunistas. E isso, imagine, Rivera pintara murais com propaganda para o partido. O que acontece, a seguir, ao mural de Detroit é deveras ambíguo. Diego é convidado a pintar um grande mural no Rockefeller Center41 e o tema seria: Man at the Crossroads Looking with hope and High Vision to the Choosing of a New Better Future (Homem na encruzilhada olhando com esperanças e amplitude para a escolha de um futuro novo e melhor) (Fig. 14). Não foram os Rockefellers que decidiram sobre a pintura, mas o arquiteto que trabalhava na parte construtiva da empresa; no entanto, estavam cientes da posição política do artista. O mural foi acertado para estar pronto em 1o de maio, dia do trabalhador, e Diego aprontou uma das boas: o mural, com o tema do homem olhando para o futuro com a esperança de um mundo melhor, foi feito - Um mural com um trabalhador no centro de controle de uma máquina. No lado esquerdo, o lado capitalista, um clube, um campo de batalha e um grupo de policiais controlando uma mobilização de desempregados; do lado direito, a cena socialista, com atletas

39“Anos antes (enquanto estudava arte em Paris), eu imaginara o mural como a forma de arte da sociedade industrial do futuro.” Veja-se em FOARD, Scheila Wood; PIETRAS, Jamie. The great Hispanic Heritage: Diego Rivera. 2nd Edition. New York: Infobase Publishing, 2010. 40Aqui e lá. 41 Rivera já havia caricaturado o Rockfeller de maneira crítica em um conhecido mural da Cidade do México. 54

mulheres no estádio, celebração do dia do trabalho e aliados do futuro dando as mãos: americanos, africanos, russos e o líder comunista, Lênin. Os Rockefellers pediram para que ele substituísse a cara de Lênin por alguém desconhecido. Mas Diego preferiu ver o mural destruído; ele até sugeriu que trocaria a imagem americana por uma cena de Abraham Lincoln, que aboliu a escravidão, mas não retiraria Lênin. Bem, o mural foi enviado para o Museu de Arte Moderna e, no ano seguinte, totalmente destruído.

Figura 14 - Homem na encruzilhada olhando com esperanças e amplitude para a escolha de um futuro novo e melhor.

Fonte: Livro - The great Hispanic Heritage.

Rivera voltou ao México meses depois, quando o dinheiro acabou. Estava desolado, mas decidido a continuar pintando. “For i am not merely an ‘artist’ but a man performing his biological function of producing paintings, just as a tree produces flowers and fruits”42. (RIVERA, In: MARNHAM, 2010, p. 1). Diego tinha paixão por indústria, e durante a Grande Depressão, em 1933, nos EUA, foi convidado pela Ford Motor Company para criar um mural gigante com a figuração do local de trabalho naquela indústria. O muralismo combina os estudos acadêmicos europeus com os ensinamentos indígenas, um contexto totalmente latino-americano. Em um tempo de crescente debate sobre a arte revolucionária, nasce o movimento mexicano, também chamado de Mexican Mural Renaissance.

42“Não sou meramente um ‘artista’ mas um homem performando sua função biológica de produzir pinturas, assim como a árvore produz flores e frutas” (L.T.). 55

David Alfaro Siqueiros43 lançou o manifesto já sob influência de Rivera, e argumenta que uma forma de fortalecer a arte é trazer valores da pintura possivelmente perdidos e endossar com novos valores. Por exemplo, entender os incríveis recursos humanos da arte indígena, de outros povos originários ou das artes primitivas primordiais de tempos longínquos. Os muralistas recuperam o trabalho de pinturas e esculturas de habitantes anciões Mayas, Incas, Zapoteca, Azteca. Siqueiros defendia que a proximidade climática desses povos ajudaria a assimilar a vitalidade de seus trabalhos e clama por uma produção de arte universal. O muralismo dirigia-se à história insurgente, ao presente da luta de classes e ao futuro possível de sonhos e conquistas dos trabalhadores. Para os muralistas, a arte era uma arma, a forma mural, de grandes dimensões e cores vivas, a arte acessível a todas as pessoas. Era um tempo de ascensão do realismo socialista, parte artística do processo revolucionário socialista, que, posteriormente, foi tomado pelo poder burocrata e autoritário de Stalin. O realismo socialista, que fortemente influencia o muralismo, pressupõe que a arte deve se espraiar por toda a classe trabalhadora - a arte “pertence ao povo” e reflete um projeto “vanguardista” de recondução da arte à práxis da vida. O renascimento do muralismo pós revolução mexicana cria as bases estilísticas e de inovação para a moderna cultura do mural. Nos EUA, principalmente pelos murais sociais realistas, durante o New Deal, mais de 2.500 murais foram pintados com financiamento governamental. Quando se aproxima o período da II Guerra Mundial, no entanto, o financiamento de arte social realista é identificado com o totalitarismo soviético, enquanto o abstracionismo expressionista, principalmente o de NY, como símbolo de liberdade individual nos círculos de vanguarda. No início dos anos 1960, apenas a arte abstrata, geométrica endossada pela crítica curatorial, era considerada arte. Epopeia do Povo Mexicano, ou História do México através dos Séculos, é um afresco do pintor mexicano Diego Rivera realizado na escadaria principal do Palácio Nacional, entre 1929 e 1935 (Fig. 15).

43Em 1940, Rivera e Siqueiros estavam na ativa nos EUA. Durante 13 anos, a intermitente jornada de trabalho tinha um sentido econômico pessoal, pela total falta de mercado no México para vender as obras. A primeira galeria privada de arte mexicana abriu em 1935 e tinha os norte-americanos entre seus principais clientes.

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Figura 15 - Epopeia do Povo Mexicano, ou História do México através dos Séculos, afresco de Diego Rivera.

Fonte: Livro - The great Hispanic Heritage.

Durante os anos 1960, uma nova forma de propaganda política surgiu no Chile, que anos mais tarde serviria para trazer, de certa forma, arte àqueles que não tiveram acesso a ela. A história muralista no Chile caminha da propaganda política à arte política. Embora as primeiras paredes tenham sido pintadas em

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1963, foi em 1968 que nasceu a primeira brigada muralista, a Brigada Ramona Parra (BRP) (Fig. 16), cujo nome homenageia um jovem militante comunista morto em manifestação realizada em Santiago em 1946. A BRP e o Catalão Elmo, foram os pioneiros nas brigadas.44 A missão principal dos jovens que tomaram as ruas era a de agitação e propaganda comunista.

Figura 16 – Manifestação da Brigada Ramona Parra (1972).

Fonte: Video - Brigada Ramona Parra - Rayando en la Clandestinidad45. A BRP era formada por jovens militantes e a maioria dos estudantes pintavam apenas à noite e com o aperfeiçoamento da velocidade, organização e técnica, podiam em dois minutos e meio pintar uma parede de 30 metros. Cada pequena brigada era composta de não mais do que 25 brigadistas, divididos em traçadores, âncoras, enchedoras e máquinas de filetagem. Alguns pesquisadores reconhecidos apontam dois marcos que podem ser considerados como fundamentais para esse agrupamento:o Sexto Congresso da Juventude Comunista do Chile, em 1968, da qual emanou-se a necessidade de articular grupos dedicados à elaboração de propaganda; e a Marcha pelo Vietnã, realizada em 1969, que contou com a participação de cerca de duas mil pessoas que viajaram de Valparaíso a Santiago para exigir a libertação do país asiático. Nessa demonstração, convocada por um dos fundadores das brigadas, Danilo Bahamondes, os manifestantes foram em frente para realizar várias intervenções gráficas na estrada que liga o porto à capital. No início, o trabalho dos grupos concentra-se no desenvolvimento da quarta candidatura presidencial de Salvador Allende e propõe a coligação com slogans pela Unidade Popular. Após

44 Os apontamentos históricos sobre as brigadas chilenas estão pautados em: DALMÁS, Carine. 2006. Brigadas muralistas e cartazes de propaganda da experiência chilena (1970-1973). Tese (Doutorado em História Social) - Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2006. 45 https://www.youtube.com/watch?v=sTMnEUcFWnM 58

a eleição de Allende, em 1970, as brigadas fazem desenhos coloridos e imagens representativas da realidade dos trabalhadores, da família, da geografia do país, dentre outros temas pictóricos, como forma de comunicar e celebrar a gestão realizada pelo governo da época. Como resultado dessas motivações, grandes murais foram feitos, os quais, além de intervirem no espaço público, evocaram a experiência latino-americana do muralismo. Sem dúvida, essas manifestações gráficas tornaram-se parte importante do imaginário cultural da época. Imediatamente após o golpe de Estado de 1973, as intervenções dessas brigadas foram apagadas e vários de seus membros vítimas de perseguição política. Por causa das dificuldades, que significaram o estabelecimento de uma ditadura militar, o trabalho das brigadas foi limitado quase exclusivamente a produções gráficas de pequeno formato, como folhetos, panfletos, cartazes, entre outros, que circulavam dentro de um subterrâneo espaço limitado. No final dos anos 1980, na véspera da realização do plebiscito de 1988, que marcou o retorno à democracia, as brigadas retomam o espaço urbano. Daquela época em diante, a BRP desenvolve um trabalho sustentado em diferentes localidades do país. No seio da Juventude Comunista, essa brigada tem até hoje a missão de fazer publicidade política a partir da criação de um discurso oposto ao discurso dominante.

Figura 17 - Extramural Activity, 2013.

Fonte: Extramural Activity.

O Muro de Berlim (1961- 1989), um dos maiores símbolos da Guerra Fria, simbolizava fisicamente a divisão ideológica da Alemanha Ocidental (capitalista)

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e a Oriental (socialista), integrante do bloco da extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Em 1984, Thierry Noir torna-se o primeiro artista a pintar ilegalmente o Muro de Berlim. Esse ato rebelde inspirou outros artistas e, nos cinco anos seguintes, o Muro foi coberto com camadas de obras de arte e imagens, criando uma arte de protesto única, uma das maiores obras de arte pública e de rua do século XX. Mais do que qualquer outro indivíduo, Thierry Noir deixou um testemunho duradouro do poder do protesto artístico em nome da liberdade, ele tinha o intuito de colocar a arte nas ruas e não somente fechada dentro dos museus (Fig. 18).

Figura 18 - Muro de Berlim, 1985.

Fonte © Thierry Noir

A inevitável crise do Leste Europeu, emblematicamente simbolizada na queda do Muro de Berlim, em 1989, envolve o chamado “campo socialista” no todo. Evidencia um mote sustentado pelos apologistas conservadores de direita, de propagação e disseminação ideológica do “fim da história” e do triunfo do capitalismo como única alternativa para a humanidade. E você acha mesmo possível apenas uma saída? O fortalecimento da ideologia do “pensamento único”, sob a lógica do grande capital, volta-se para a sociedade da liberdade fundada na lógica do mercado em detrimento da lógica dos direitos sociais. Figura 19 - Meu Deus, ajude-me sobreviver a este amor mortal (trad.).

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Artista Dmitri Vrubel (1990).46

Fonte: Imagem por Juliana Abramides, 2013.

Em outubro de 1979 comemorava-se o trigésimo aniversário da Alemanha Oriental, o líder alemão Erich Honecker (imagem à direita) recebia os “camaradas" socialistas. Quando o estadista Leonid Brezhnev chegou, ao se cumprimentarem, os dois se abraçam, trocam tapinhas nas costas e um beijo fraternal na boca, um tradicional cumprimento entre líderes socialistas, em casos de profunda admiração, respeito e camaradagem mútua entre os líderes. Dimitri Vrubel reproduziu a cena no graffiti (Fig. 19) do lado oriental de um pedaço remanescente do Muro de Berlim.

46 Em um dos mais conhecidos graffitis do muro de Berlim, figura Leonid Brezhnev e Erich Honecker num fraterno enlace, reproduzida a partir de uma fotografia capturada no 30o aniversário de celebração da fundação da República Democrática Germânica. 61

Veremos, nas raízes da retomada de uso dos grafismos em locais públicos, a expressão de tendências políticas e ideológicas que se manifestam pela inconformidade com o poderio, a burocracia, o centralismo estatal, que se materializam na militância pela reforma educacional, e culmina com a expressiva greve dos trabalhadores em 1968, em Paris/França. Na revolta estudantil de 1968, em Paris, o spray foi usado como forma de protesto contra as instituições universitárias e manifestações pela liberdade de expressão (Fig. 20).

Figura 20 - “Sejam realistas, exijam o impossível”.

Fonte: razãoinadequada.com

Naquele maio, a pichação escrita em Paris torna-se arma de reivindicação para comunicação, agitação e afirmação da revolta estudantil. Essa foi a primeira manifestação histórica de escritos urbanos de importância no século XX. Em Paris, os protestos de estudantes universitários e secundaristas reivindicavam a reformulação dos currículos e a reforma do ensino, bem como se contrapunham ao governo reacionário de Charles de Gaulle e à política 62

hegemônica do capitalismo no plano internacional. Balões pintados invadiram as estações de metrô, ruas e universidades de Paris, com palavras de ordem antiautoritárias; barricadas com até três metros de altura foram erguidas no tradicional bairro do Quartier Latin. Maio de 1968 perpetuou as palavras de ordem: é proibido proibir, escritas em muros de toda a cidade de Paris, reverberada no Brasil na voz de Caetano Veloso, no início da Tropicália47. Ali, os jovens apropriam-se da superfície da cidade enquanto suporte para os protestos e a disseminação de ideais revolucionários. O destino ético da comunicação estudantil volta-se à destruição da sociedade espetacular mercantil. A poesia francesa estava nos muros da Sorbonne, que se transformaram em painéis fundamentais de comunicação e disseminação dos ideais revolucionários. Cada período tem a cultura que se vincula a ele, e maio-junho de 1968 apresenta características de contradições sociopolíticas que irrompe nas mobilizações acadêmicas com questões filosóficas, intelectuais e estruturais. Em maio de 1968, a guerrilha urbana marca os muros da universidade com palavras- conceito; a visão ideológica está definida. Algumas frases, em Paris, eram citações de autores e, outras, criações anônimas que demonstravam o espírito de luta do movimento. As frases conhecidas pichadas eram:

❖ “Abaixo ao burguês”; ❖ “Sejamos realistas, exijamos o impossível”; ❖ “Você está sendo intoxicado: rádio, televisão, jornal, mentira”; ❖ “A liberdade do outro amplia a minha ao infinito (Bakunin)”; ❖ “Abrir as portas dos asilos, das prisões e outros liceus”; ❖ “Insurreição pelo signo”; ❖ “É proibido proibir: lei de 10 de maio de 1968”.

Tal qual os cartazes de informação e propaganda e murais das brigadas chilenas, as centenas de cartazes produzidos em Paris faziam parte de um contexto de levante popular. Lá, a unificação popular tinha um direcionamento partidário e de lutas por direitos sociais; aqui, a luta travada defende um novo

47Movimento de contracultura na música popular brasileira com influências musicais da bossa nova, do baião, do rock inglês dos Beatles; influências plásticas de Andy Warhol e Hélio Oiticica e do cinema novo, principalmente da vertente criada por Glauber Rocha. Para aprofundar-se no mundo tropicalista, leia Verdade Tropical, de Caetano Veloso (2012), e Tropicália - uma Revolução na Cultura Brasileira, de Carlos Basualdo (2007) 63

mundo e luta pela unificação dos trabalhadores e estudantes. Os ateliês produziram muito e com temáticas constantes como: a repressão policial; a alienação promovida pelos meios de comunicação; a amizade entre os rebeldes e a unificação. Os cartazes eram majoritariamente feitos com técnicas de silk-screen ou serigrafia, método muito utilizado pelos construtivistas russos48 (Fig 21 a 25).

Figura 21 - La beauté - A Beleza Está nas Ruas.

Fig. 22 - Poder Popular. Fig. 23 - A polícia está nas belas artes. As belas artes estão nas ruas.

48 Para saber mais sobre 1968, leia: Como Incendiar um País, Editora Veneta. 64

Fig. 24 - Universidade Popular, Sim. Fig. 25 - Não à burocracia.

Fonte: Imagens reproduzidas de: Como Incendiar um País, Editora Veneta.

O movimento hip-hop ganha força, primeiro nos EUA, a partir da década de 1970, enquanto uma mistura heterogênea de culturas africanas que vieram da

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diáspora, espalhando-se em seguida para outras partes do mundo, inclusive o Brasil desde meados dos anos 80. Marcado sobretudo pelo posicionamento contestatório às desigualdades sociais e raciais, utiliza-se de gestos, escritas, imagens, etc., apoiando-se em quatro figuras artísticas: o/a mestre/a de cerimônia (MC), o/a disc-jóquei (DJ), o/a dançarino/a (b. boy/b. girl) e o/a grafiteiro/a. Sua face mais expressiva, contudo, encontra-se no rap, poesia cantada que nasce da junção do MC e do DJ. Além disso, o hip-hop revela-se como um espaço de uso social da linguagem, envolvendo, desse modo, práticas de letramento. O hip-hop é permeado por um potencial social que difunde a ideia de emancipação a partir da manifestação artística do rap, do break e do graffiti. Desde sua origem, o movimento sociocultural vem permeado de crítica social, luta contestatória e pela emancipação negra. Advindo de guetos americanos e praticado em comunidades periféricas, o hip-hop adquire um poder simbólico global, que aglutina jovens em diferentes países, guardadas as particularidades socioculturais, que apresentam o mesmo determinante estrutural, a sociedade de classes, produtora da desigualdade, exploração, opressão e dominação social, étnica, racial, de gênero, etária e de orientação sexual. O hip-hop, enquanto estratégia contemporânea de enfrentamento à desigualdade e exclusão social de jovens espalhados pelo mundo, e que se presentifica desde a mundialização financeira e cultural do capital, é permeado por um potencial social a partir da manifestação artística do rap, do break49 e do graffiti. Desde sua origem, o movimento vem permeado de crítica social, luta contestatória e pela emancipação negra. Advindo e praticado majoritária e originariamente em comunidades periféricas, por jovens pauperizados, o hip-hop adquire um poder simbólico global ao aglutinar jovens em diferentes países, a partir de suas particularidades sócio-históricas e culturais, mas que apresentam o mesmo determinante estrutural, a sociedade de classes, produtora da desigualdade, da exploração, da opressão e dominação nas instâncias social, étnica, racial, de gênero, etária e de orientação sexual. O movimento é inerentemente constituído de linguagem política; usa a comunicação como uma arma que provoca as pessoas e as faz pensar. Em um

49Ao contrário do que a maioria das pessoas pode pensar, no Brasil, o hip-hop desponta por meio da dança, do break, Um dos responsáveis por sua difusão foi o b.boy (dançarino do break) Nelson Triunfo. Para saber mais sobre o assunto, leia : a Periferia Grita. 66

passado recente, o hip-hop parecia ser passageiro; manifestação chata ou barulhenta; uma algazarra da juventude festiva; mas, nos últimos 35 anos, a cultura hip-hop emergiu da subcultura marginal para tornar-se fenômeno que satura o mainstream (ditado pelo status quo) e tem impacto global na formação de opinião e pensamento. O hip-hop faz uma longa viagem do Bronx, bairro periférico de NY, constituído majoritariamente por negros e latinos pobres, para o mundo. Segundo Todd Boyd (2002), a larga cultura que rodeia o hip-hop é ativa e militante e emerge do contexto único afro-americano, que tal qual os antecessores blues, o jazz e o soul, é uma cultura que dá a voz aos mais empobrecidos na escalada social americana. Segue o autor:

Though the roots of the culture are Embora as raízes da cultura sejam informadas informed by the African American oral pela tradição oral afro-americana, bem como tradition, as well as the lived conditions pelas condições vividas pelos jovens negros e of poor Black and Latino youth in latinos pobres na Nova York pós-industrial, o postindustrial New York, hip hop has hip-hop conseguiu se expandir a partir dessa been able to expand from this initial base inicial, e se tornou, na minha mente, uma base, and has become, in my mind, a voz geracional dominante em todo o mundo, dominant generational voice seja gangbangers (membro de um grupo de throughout the world, be they jovens violentos N.E.) no centro-sul de Los gangbangers in South Central Los Angeles; imigrantes argelinos, em Paris; ou Angeles, Algerian immigrants in Paris, jovens japoneses negros saltando para a pista, or blackface Japanese youth bouncing to no distrito de Roppongi, em Tóquio, para não the phattest track in Tokyo's Roppongi mencionar os proverbiais adolescentes district, not to mention the proverbial brancos ou rurais rednecks (pescoços vermelhos suburban White teenagers or rural caipiras N.E.) que também constituem um "rednecks" who also constitute a large grande segmento da base de consumidores do segment of hip hop's consumer base. hip-hop.” (BOYD, T., 2002, p. 15). (BOYD, T., 2002, p. 15).

A segregação dos guetos no bairro do Harlem e do sul do Bronx produziu as condições para que o hip-hop surgisse ali com potencialidade. Nos EUA, na década de 1960, prolifera-se a discussão sobre igualdade racial e cresce o moderno movimento por direitos civis dos afro-americanos (1955 a 1968): Martin Luther King50, Malcolm X, Panteras Negras, com propostas distintas, mas com o objetivo

50 Curiosidade: Martin Luther King leu e foi influenciado por Henry David Thoreau. 67

da luta para acabar com a segregação racial e ampliar os direitos da população afro-americana51.

Em um de seus inúmeros discursos, Malcolm X diz:

It’s always very easy for us to be ready to É sempre fácil estarmos prontos para agir e move and ready to talk and ready to act, but conversar mas a menos que adentramos o unless we get down into the heart of the coração do gueto e comecemos a lidar com ghetto and begin to deal with the problem of o problema de empregos, escolas e outras jobs, schools, and the other basic questions, questões básicas, nós seremos incapazes de we are going to be unable to deal with any lidar com qualquer perspectiva revolutionary perspective, or with any revolucionária, ou com qualquer revolution for that matter. (MALCOLM X. revolução. (MALCOLM X. A Revolução The Worldwide Revolution. December 13, Mundial. 13 de dezembro, 1964). 1964).52

Afrika Bambaataa, compositor, produtor e um dos criadores do movimento e que já fora de gangues buscou a pacificação das disputas e juntou as lideranças das gangues do Bronx e formou a Zulu Nation. O Dj e produtor criou as bases do miami bass e do freestyle, além de ser o responsável pelo nome dado ao movimento. Na década de 1980 e início dos anos 1990, rappers escreveram letras politizadas em reação às medidas políticas e econômicas, são canções como Fight the Power, de Public Enemy; Who Protect us from You”, de Boogie Down; Sound of da Police, de Krs-one; Raise the Flag, de X-clan; Panther Power, de Paris. Músicas do gueto, protesto ou guerrilha (o nome do álbum de Paris, de 1994, é Guerrilha Funk). O que demonstra uma emergência e insurgência de um hip-hop inspirado por movimentos políticos. A busca das raízes africanas, a denúncia do racismo, a rebelião contra as perseguições e brutalidades policiais. Por todo esse período, o rap se aproxima da juventude desprovida de direitos muito mais do que a igreja ou as organizações por direitos civis. O sucesso comercial do rap consciente ajuda a incentivar o surgimento do “raptivista” (rapper ativista). O que se passa é que a mídia captura e divulga essa nova onda de jovens que detém a palavra e se posicionam como liderança, após a geração que luta por direitos civis como artistas rappers e não enquanto líderes políticos.

51Todd Boyd, no livro The New H.N.I.C.: The Death of Civil Rights and the Reign of Hip-Hop, sugere que black power fez o que, posteriormente, o hip-hop continuou, ou seja, afastar-se do sentimento passivo do sofrimento. 52 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=M2E5IkJbEA4. Acesso em: 14 mar. 2019. 68

Sister Souljah escreve o rap The Hate that Hate Produced, em que diz: “Se você tem algo a dizer fale e com autoridade, se não saia fora e fique quieto, temos o poder de dizer a verdade e o que for necessário, de fazer o que deve ser feito. [...] Eu sou africana primeiro”. Ela ganha a atenção nacional desde o início de 1990 e Bill Clinton, à época, retira a fala de Souljah de contexto e diz que ela está advogando por violência contra a população branca. É claro que a luxúria em torno da fama que assola a sociedade americana imbrica no paradoxo entre ser liderança e ser disco de ouro e superstar, ao mesmo tempo, o que vem se discutindo é que, em si, o hip-hop, sendo primordial e originariamente uma expressão cultural formada com atitudes, valores, objetivos e práticas da comunidade afro-americana, não tem, sozinho, a função de impulsionar um movimento político ao mesmo tempo em que pode atuar na esfera da conscientização. No conjunto de ações culturais, políticas e econômicas, em estratégia pelos direitos de negros e latinos, o hip-hop se enquadra no movimento pós direitos civis e, como diz Harold Cruse (1984), o movimento deve ser combinado para ser bem-sucedido. Sem romantizar o passado, é evidente que os jovens americanos negros e hispânicos se organizaram em diversas instâncias na luta por direitos civis e sociais e muitos morreram em tais batalhas. Os Panteras Negras, em 1969, tinham uma plataforma com dez pontos estratégicos a serem conquistados. A geração hip- hop, hoje, não tem uma organização nacional que promova o empoderamento53 negro com linhas estratégicas ou organizações engajadas ativa e legalmente para superar as políticas públicas que afetam a vida dos negros americanos (BYNOE, 2004). Mas, de que maneira, os ativistas, no hip-hop, demonstram que estão firmes em práticas de incentivo às reparações históricas em que cada geração descobre a sua missão (FANON, 1963) ? Então, o que leva essa geração à frente? É inegável o potencial da disseminação e do diálogo sobre a constituição de cultura, mas há impacto nas políticas e nos debates públicos? Não cabe, aqui, estudar, mas reafirmar o papel da cultura no processo de conscientização e mediação de

53Aqui compreendemos a importância de empoderar-se com o intuito de a valoração vir acompanhada do enfrentamento e também de questionamento do status quo e de um modo de sociabilidade. Parece ser ilusória a ideologia da social-democracia de que é possível empoderar-se mediante a ofensiva neonazista - em que os mais prejudicados são os negros e a comunidade LGBTQIA+, e da ofensiva do capital, que amplia a exploração, prejudicando negros, imigrantes e mulheres. 69

conteúdos políticos, quando o rap e toda a cultura hip-hop, em todas as suas vertentes, falam de desespero e niilismo, mas também de esperança e empoderamento para que os jovens negros busquem um modo de vida, uma profissão, ou mesmo uma forma política de justiça, reparação e igualdade étnico- racial. Paradoxalmente, esse entendimento de estética urbana de conscientização também pode levar a imaginar como mudar o mundo, ou mesmo incentivar formas retrógradas e de manutenção do status quo, quando boa parte de suas manifestações, fundamentalmente quando falamos do rap, se referem e afirmam a misoginia, a ofensa gratuita, ou trazem mensagens de ostentação ou puramente materiais. No Brasil, o hip-hop54 constitui-se enquanto movimento social “organizado pelos jovens afro-brasileiros como resposta ao abandono social, à pobreza e ao racismo” (AMARAL; CARRIL, 2015, p. 82). A juventude identifica-se com as necessidades sócio-políticas estadunidense, principalmente pelo fator de divulgação massificada da cultura pop e, hoje, fundamentalmente, o rap encontra- se contraditoriamente nessa cultura. Interessa-nos ressaltar que, tendo em vista a marginalidade racial e de classe brasileira, aqui, o hip-hop apresenta uma preponderância principal de continuidade ao ativismo contra-hegemônico. Desde meados da década de 80, principiado como um movimento no centro velho de São Paulo e depois espalhado por toda a metrópole, desde sempre por juventudes urbanas, na maioria, de negras/os e periféricas/os, o hip-hop no Brasil combina e recombina as bases da cultura composta dos b-girls e b-boys na dança, DK’s nas pick-ups, MC’s na poesia e grafitagem visual. A luta cotidiana de desnaturalizar os preconceitos e enraizar políticas necessárias para a melhoria de vida é conteúdo constante desta cultura urbana enquanto espaço de afirmação e questionamento, quebra de padrões e criação de novas narrativas. Estudiosa da cultura, a cientista social e professora Ana Lúcia Souza55, considera que o Hip-hop é uma escola, ela diz:

Hip-hop é escola que consegue fazer o que a escola oficial ainda não sabe porque ignora as demandas da juventude, ignora as origens do Brasil, ignora a forΩça política e cultural das gentes que

54Apesar de fundamental, o assunto não é específico, na tese, assim sugerimos a leitura do livro organizado por Mônica do Amaral e Lourdes Carril: O Hip-hop e as Diásporas Africanas na Modernidade: Uma Discussão Contemporânea sobre Cultura e Educação. 55Doutora em linguística com a tese defendida na Unicamp: Letramentos de Reexistência: Culturas e Identidades no Movimento Hip-Hop, 2009. 70

todos os dias enfrentam a beleza e a brutalidade do cotidiano. Na escola, nos corpos que lá estão, pode-se perceber a cultura Hip-Hop em movimento - indícios que mostram crianças e jovens dizendo de arte, história, sustentando a estética que positiva ser negro e negra e chamando-a para suas identidades. MAURO, 2016, p. 91). A casa hip-hop56 é um exemplo de local comunitário e educativo de reprodução da cultura hip-hop, localizada na periferia de Diadema, em São Paulo, fundada pelo afro-brasileiro King Nino Brown, apresenta influência no movimento negro americano. Desde 2002, o mesmo fundador forma a Nação Zulu Brasil (após contato com Afrika Bambaataa em 1994), no intuito de ensinar, no centro comunitário, os elementos da cultura e estimular a resistência negra nas américas. O rap nacional mantém um impulso de afirmação da consciência racial e desigualdade social, contudo, alguns grupos ainda enfrentam a reprodução da opressão de gênero, facilmente verificada em letras racistas. O Racionais MC’s é um exemplo de grupo, nesses termos, que hoje em dia vem repensando a atitude de objetificação da mulher, ao mesmo tempo, um dos grupos mais populares e que, mesmo considerado famoso, ainda fala a voz da periferia, e mantém identidade com seus territórios de origem. Não nos cabe trabalhar a particularidade do rap, mas lembramos de uma figura ainda viva que estabelece bem as conexões entre as marginalidades e os jovens afro-brasileiros por meio da diáspora, o Emicida. O rapper afro-brasileiro, veio de um bairro pobre da zona norte, desde criança esteve cotidianamente exposto à violência policial e ao preconceito, além de presenciar corpos assassinados. O hip-hop têm sido fundamental nesta luta contra a opressão e o racismo nos estímulo à identidade racial e ao reconhecimento de si e dos antepassados enquanto belos, artísticos, fortes, inteligentes, a valoração da vida de negras e negros por todo país. Em um de seus raps, diz o Emicida: Minha pele, Luanda Antessala, Aruanda Tipo T'Challa, Wakanda Veneno Black Mamba Bandoleiro em bando Qué o comanda dessas banda? 'Sa noite ceis vão ver mais sangue Do que Hotel Ruanda

A era vem selvagem Pantera sem amarra Mostra garra negra

56 São inúmeras casas de cultura atuantes nas periferias, guetos e favelas, em toda a Grande São Paulo. 71

Eu trouxe a noite como camuflagem Sou vingador, vingando a dor Dos esmagados pela engrenagem Ceis veio golpe, eu vim Sabotage (Pantera Negra)

O ressurgimento do graffiti como expressão transgressora de mobilização cultural e política desponta na Filadélfia/Pensilvânia - a gênese - (Fig. 26), depois Boston/Massachusetts, NY/Nova York57 e em LA/Califórnia, influenciado pela cultura hip-hop.

Fig 26 - Pier privado abandonado em Filadélfia.

57Hoje, em NY, o graffiti não é tão forte, se comparado a SP. No início desta pesquisa, estivemos por lá e encontramos algumas tags em paredes externas que cercam algumas linhas de metrô e trem, principalmente na direção do Brooklyn e para o Queen. E não é tão marcante, como é hoje na cidade de São Paulo, considerada a capital do graffiti no mundo.

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Fonte: Imagem por Marissa C.

Tell me who’s gonna dream the Diga-me quem vai sonhar o sonho impossible dream impossível Of the beautiful cities and the island’s Das belas cidades e dos genes da genes ilha When your works of art brought into Quando suas obras de arte being trouxeram à luz All that the ghetto stopped you from Tudo o que o gueto te impediu de seeing ver Bums on the sidewalk, garbage in the Vagabundos na calçada, lixo na street rua Abandoned buildings, bricks of Prédios abandonados, tijolos de concrete concreto (Grandmaster Flash and Melle Mel)58 (Grandmaster Flash e Melle Mel)

58 Ouça em https://www.youtube.com/watch?v=LoQHL09L724. 73

Já em 1966, encontramos o artigo denominado: What the walls say today: a study of contemporary graffiti59/O que as Paredes Têm a Dizer Hoje: Um Estudo do graffiti Contemporâneo, com análise social do graffiti na região metropolitana da cidade de LA. Cada cidade oferece o contexto para a expressão cultural produzida.Nas décadas de 60 e 70 as graffiti gangs começam a se mover ao longo do sistema prisional na Filadélfia. A juventude do centro da cidade de começa a espalhar as inscrições pela metrópole; nos ônibus, nas escolas, casas geminadas, estações policiais. Surge o estilo philly wicket na década de 80, considerado vandalismo e crime, feito nos becos, vielas, locais abandonados e bueiros da Filadélfia (Fig 27).

Figura 27 A e B - Estilo Wicket.

Fonte: Tone. Fonte: Naw.

O que faz dos writers e suas inscrições importantes, além da gênese, é o que hoje vemos nos pixadores (também writers). Como os fora da lei orquestram e calculam os métodos e as loucuras; começam a planejar o marketing da mídia de si mesmo. O uso do spray nas escritas urbanas, traz agilidade e rapidez para os grafismos. Aqui, têm-se o avanço em direção daquilo que se torna a street art, ou arte de rua60. Os graffitis - desenhos e escritos, nas laterais e dentro de trens e metrô - , eram feitos desde o final da década de 1960 por grupos de latinos negros pauperizados que pixavam, com radicalidade, signos, riscos trabalhados, símbolos (Fig. 28).

59 Esse é o primeiro registro acadêmico mais antigo por nós encontrado sobre o graffiti contemporâneo LOMAS H. and WELTMAN G. What the walls say today: a study of contemporary graffiti. Paper presented at the american psychiatric association, Atlantic City, New Jersey, 1966. 60Helene de Nicolay, na revista francesa L’Art Vivant, de 1973, escreve: “Se você for a NY, evite os museus. Eles não têm nada a mostrar. Ao contrário a arte está descendo nas ruas, e mesmo mais abaixo nos metrôs”. (FONSECA, 1982, p. 30). 74

Fig 28 (A e B) - trens em Nova York.

Fonte: Imagem de Bruce Davidson.

O embrionário movimento de escrever pela cidade têm nos traçados de Tracy 168 (Fig. 29) forte referência. Aos 11 anos, ele começa a riscar os trens e se torna um ícone no estilo (Fig 30). A sua tag continha o número 168 por ele gostar da sonoridade, apesar de morar na 165th.

Fig 29 - Tracy 168 .

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Figura 30 (A, B, C) - Evolução do traçado wild style iniciado por Tracy 168.

Fonte: @TRACY "168" WiLD STYLE.

O “vandalismo” em forma de graffiti atingiu o sistema de trânsito de NY, cobrindo todos os metrôs com tags e grandes murais coloridos. Nem todos gostaram da conquista do graffiti, nos metrôs. Desde a sua criação, a epidemia de marcação de NY gerou um círculo de propagandistas da cultura que adotaram o graffiti não apenas, mas por causa de sua natureza criminosa. “You hit your name and maybe something in the whole scheme of the system gives a death rattle"/Você marca seu nome e talvez algo em todo o esquema do sistema dá um chocalho mortal, escreveu, esperançosamente, Norman Mailer, o publicitário mais chamativo do graffiti, em 1973. A segunda geração de traçados e da arte urbana são os graffitis inscritos nas laterais dos vagões do metrô de NY, que se tornariam os mensageiros por toda a trama viária urbana. Naquela linda cidade planejada, a cidade da maçã, plena de cerejeiras e cheia de guetos, o graffiti torna-se um dos pilares do movimento hip-

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hop, com a dança (break) e a música (rap). Um livro brilhante de fotografias de metrô, de Henry Chalfant e Martha Cooper, publicado em 1984, tornou-se conhecido como a “bíblia” do movimento dos graffitis, por ter inspirado jovens e adultos em todo o mundo a desfigurar propriedades (Fig. 31). Figura 31 - Vandalismo em forma de graffiti no transporte público de NY.

Fonte: Imagem de Martha Cooper (1984).

Esse foi o cenário até o surgimento de trabalhos, como os de Basquiat61. O artista, quando colocava nomes na parede, formava poesias concretas; lembrava de Prometeu e nomes de filósofos; com formas de memória, colocava palavras no trabalho, como vindas na cabeça, coisas que havia lido e visto na televisão. Usava a coroa como uma tag de graffiti, como consta no topo do lado direito da Figura 32. A coroa era símbolo do copyright - direito autoral,, nos graffitis e nas outras formas artísticas, Basquiat apresenta uma predileção por temas infantis e tem muitas influências televisivas e da visualidade pop, apresentava uma fusão gráfica de palavras, cartoons, misturas de conexões e anatomia humana e que mostravam um humor típico.

Figura 32 - Jean-Michel Basquiat: Quality meat, pure meat (1982).

61Um artista de influência já aos 23 anos; morreu aos 28. 77

Fonte: Reprodução da exposição CCBB-SP (2018).62 A qualidade das inscrições novaiorquinas era tão surpreendente que o seu valor estético passou a ser notado por apreciadores de arte e a inspirar artigos elogiosos em diversas revistas de arte. Ali começam a trabalhar a impressão ótica, por exemplo, fazendo uma porta em uma lateral de um prédio, embaralhando a impressão de qual seria a entrada para o edifício. O expoente do cenário da demarcação de territórios com nomes (tags) foi um garoto de Manhattan, um office-boy de 17 anos, que morava na rua 183, no Bronx e circulava de metrô pela cidade. Seu nome era Demetrius, mas ele passou a assinar suas tags como Taki 183 (apelido para Demetrius em Grego) e essa visibilidade chamou a atenção do jornal New York Times (21 de julho de 1971), que o entrevistou. Ele não fora o primeiro mas a visibilidade midiática o impulsionou a tornar-se ídolo e conquistou centenas de seguidores que igualmente queriam sair do anonimato. Taki 183 foi elevado à condição de “pai” do graffiti nos EUA, pois alastrou a sua marca por toda NY. Mesmo com o status obtido por Takis 183,

62 Exposição sobre o artista com obras da coleção Mugrabi. Centro Cultural Banco do Brasil (abr./jul. 2018). 78

tudo deveria ser feito com rapidez, ousadia e precisão, na produção do graffiti na ilegalidade, o senso de perigo, a rapidez, um flash. Foi em NY, no ano de 1975, a primeira exibição de Graffiti Art no Artists Space. Os metrôs são pintados desde 1972. “Eu existo, vivo aqui, habito em tal rua.” Essa foi a revolta da identidade, combater o anonimato. Os graffitis vão mais longe no anonimato e não põem nomes, mas apresentam pseudônimos, numa clara reversão de códigos. A guerrilha contra o racismo, feita por meio da linguagem da dança, música e das artes plásticas, teve radicalidade máxima nas inscrições feitas em metrôs. As pixações no metrô apresentavam cores neons ambulantes pela cidade, um novo tipo de intervenção diferenciado da cultura dominante naquele momento histórico: artes de galeria e disco music63. Nos graffitis e inscrições marcados pela cidade, não importava o que estava escrito; o significado das palavras não apresentava importância semântica, diferentemente dos escritos franceses do movimento político estudantil, no ano de 1968. A linguagem fervorosa, com jatos de tinta marcados em vagões ou em toda a extensão do trem não apresenta elitismo, nem é hippie e não há preço de exibição para ser instalada nas melhores paredes de uma cidade. São ocupados gigantescos murais de publicidade ou os luminosos em pontos de ônibus, em que deveria haver indicação de horários e itinerários, incitando todos a se sentirem inadequados, a não ser que comprem coisas. Especialmente no Bronx, o uso de tintas spray inicia-se na mesma época que a música rap, manipulado para “marcar” o nome em locais públicos seguidos dos números das casas que moravam - as chamadas tags -, inicialmente nas ruas de moradia e, depois, como marcas de visibilidade nos trens e metrôs circundantes. As tags mostram quem é o autor, como escreve e como se expõe na vida. O spray expressa-se em uma “contracultura” em sua ligação íntima com a “poesia marginal”64. Em 1971 - 1972 TOPCAT 126, leva a escrita gangster Philly para

63 Gênero de música dançante popular na década de 1970. O estilo era tocado nas discotecas e teve raízes em clubes de dança voltados para negros, latino-americanos, gays e apreciadores de música psicodélica, além de outras comunidades na cidade de NY e Filadélfia, durante os anos 1970. 64“Principalmente POESIA MARGINAL mais avançada, porque grande parte dela é bastante conservadora, careta, essa é a verdade.” “Eu comecei então a prestar um pouco mais de atenção e a perceber o spray como manifestação válida da CONTRACULTURA na sua ligação íntima com a POESIA MARGINAL, principalmente POESIA MARGINAL mais avançada, porque grande parte dela é bastante conservadora, careta, essa é a verdade.” (Décio Pignatari, entrevista em setembro de 1981, apud CRISTINA, 1982, p. 72). 79

O Harlem. O seu estilo conhecido por "Broadway Elegant" ou Manhattan Style, marca a primeira onda tipográfica da história dos graffitis de Nova York, particularmente influente nas linhas de metrô da Upper West Side. Em NY, especialmente no Bronx, as tags com nomes, feitas com spray, eram para demarcação do local, símbolo de identidade e pertencimento territorial, realizadas inicialmente nas ruas das próprias pessoas que pixavam: TAKI 183, STITCH 1, Freddie 173, CAT 187, T-REX 131, SNAKE 1 e RAY-B 954. A sobreposição de marcas sempre foi evitada. Nomes escritos justapostos, representando as primeiras escritas feitas com spray, se tornam o primórdio do graffiti (Fig. 33). Figura 33 - Primeiras Tags em NY

Fonte: Documentário: Wall Writers: Graffiti in its Innocence.

Verifica-se a obviedade do porquê desde a reprodução excessiva de uma mesma marca pela cidade, como a de Taki 183 (Fig. 33B) que, à época, podia ser vista em cada esquina de NY, como mostra o documentário Wall Writers: Graffiti in its Innocence. O filme mostra as raízes do pioneirismo na arte de rua: os cadernos dos escritores, as primeiras telas, as propagandas em outdoors na época e edifícios completamente cobertos por pinturas feita com spray. Em 1977, Jenny Holzer começou a criar frases curtas e irônicas que não eram poesia nem cabiam em livros. Por exemplo: “A propriedade privada criou o crime”; “Quem pensa que é importante é louco”; “Divirta-se, já que você não consegue mudar nada”. Sem saber bem o que fazer com sua produção, começou a pregá-las nos muros. Mais tarde, chegou a fazer parceria com a legendária Lady Pink, uma das raras mulheres a ascender no mundo do graffiti. Nos graffitis produzidos em NY, as letras tomaram a forma de ilustrações elaboradas com a inserção de cores e traços ousados, transcendendo assim a grafia de uma expressão ou nome. Em NY, a guerrilha ocorre por meio da linguagem,

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em tapumes, guetos, ônibus, elevadores, galerias, monumentos, caminhões e a radicalidade máxima nos metrôs. O desenvolvimento dessa linguagem radical caminhou para o que hoje conhecemos por street art, ou arte urbana, quando as laterais de prédios começam a ser pintadas em maior escala e iniciam-se os trabalhos de 3D, que são a evolução do animal style - as letras em 2D, tipicamente americanas (Fig. 32). É a evolução da impressão ótica, visto que, por exemplo, desenha-se um prédio na lateral de outro, e confunde-se a entrada real do edifício. Figura 34 - Letra e desenho 3D (2018).

Fonte: Imagem de Odeith.

A intensificação da arte urbana na América Latina teve referência na pintura de murais em espaços públicos, tradição nas zonas suburbanas e bairros industriais iniciada com a prática da pintura mural mexicana a partir de 1910, que trazia consigo forte apelo político e social e impulsionou o aparecimento de

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diversas formas de arte em espaços públicos. O renascimento do muralismo pós revolução mexicana cria as bases estilísticas e de inovação para a moderna cultura do mural; nos Estados Unidos, principalmente pelos murais chicanos. Se hoje temos a arte de mural como a grande arte das ruas também nas vertentes do graffiti, pixo e estêncil muito se estende a influência potente do muralismo mexicano. Também no Brasil esta tradição influencia a intencionalidade de realizar a arte para o povo como se nota nas pinturas de Di Cavalcanti e de Cândido Portinari (Figs. 32 e 33), ambos se dedicavam aos temas da cultura e história brasileira, na chamada à participação para a construção de um mundo melhor. O muralismo brasileiro apresenta um sensível reflexo condensado do momento contemporâneo de desenvolvimento das cidades, além de estar referendado no movimento histórico mexicano, vincula-se às tradições de comunicação comunitárias que acontecem nas festas e folguedos populares, folclóricos e religiosos. O muralismo brasileiro utilizou espaços públicos e esteve atrelado à expansão urbana, tal qual, hoje os murais ocupam a cena da grande capital do país e suas linguagens se espraiam mundo afora. O surgimento de propostas gigantescas, tal qual o mural de azulejos de Cândido Portinari, destinado ao prédio do Ministério da Educação com colaboração de Le Corbusier, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, afirma também uma proposta de modernismo na arquitetura.

Figura 35 - Mural projetado por Di Cavalcanti na fachada do prédio localizado no vértice das ruas Martins Fontes e Major Quedinho, na região central no centro de SP (1954).

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Fonte: Imagem: @obviousmag.

Figura 36 - Descoberta do Ouro (1941) Pintura mural a têmpera. Washington, D.C. Obra executada para decorar a Fundação Hispânica da Biblioteca do Congresso, Washington.

Fonte:@artemuralbrasil.

Os desenhos e grafias de letras e tipologias singulares em espaços públicos teve também uma importante passagem no contexto político em São Paulo desde

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o período da autocracia burguesa (a ditadura civil militar) a partir de 1964, como afirma Abramides (2018, p. 10):

A convicção política e ideológica tomava conta de corações e mentes dos jovens estudantes que se reuniam e saiam às ruas de forma organizada, com panfletos, faixas, pichações e bolinhas de gude para jogar nos pés dos cavalos das tropas policiais, bem como lencinhos com éter para se protegerem das bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral nas passeatas, barricadas e outras mobilizações de rua. As manifestações ocorriam no centro de São Paulo e em bairros com aglomerações populares como em Pinheiros, no Largo da Batata, e em Santo Amaro, no Largo 13, em que juntamente com operários(as) e outros(as) trabalhadores lutavam contra o arrocho salarial e com solicitação às pessoas para que aderissem à luta com palavras de ordem que se sucediam ininterruptamente: “você aí parado também é explorado”, “abaixo a repressão mais arroz e mais feijão”, “vai acabar, vai acabar, a ditadura militar”….

Na luta de resistência à ditadura no Brasil e em toda América Latina, os movimentos sociais utilizaram os suportes da rua com pichações em estátuas e muros para divulgação de frases contestatórias e de incitação à luta para derrotar os golpes militares no continente (Fig 37). Figura 37 - Pichação feita por estudantes.

Fonte: Acervo Estadão.

O ano de 1968 representou época de muita efervescência e combate, em que os estudantes de Paris, com barricadas nas ruas, expressaram radicalidade na luta contra a Guerra do Vietnã impetrada pelo imperialismo norte-americano, seguidas de grandes mobilizações contra o estado capitalista de exploração e lutas 84

específicas em defesa da educação pública, estatal, livre, gratuita e universal. Esses acontecimentos tiveram influência marcante para a ação estudantil em nosso país, manifestadas coletivamente, na particularidade da luta contra a ditadura militar- empresarial e a superexploração dos trabalhadores, no processo de desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo entre os países centrais e periféricos em que a América Latina encontra-se inserida. Cristina Fonseca65, pioneira na abordagem sobre escritos nas ruas, na década de 70, aborda as marcas66 de letras na cidade enquanto poesia concreta. Primeiramente, o que chama a atenção da documentarista e escritora é que, diferentemente das pichações de protesto comuns na época, como: “Democracia Já!”, a linguagem era singular, rebelde e muito criativa, que brincava com as letras integradas ao espaço público67, “se por exemplo os grafiteiros enxergassem na sombra da árvore, dois olhos, eles completavam com a boca e nariz”.

Figura 38 – Pichação de protesto.

Fonte: Acervo Estadão.

65Cristina Fonseca, escritora e documentarista, fez faculdade de Letras, na USP, e de Jornalismo, na Cásper Líbero. Mestra e doutora pelo programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, orientada pelo professor Arlindo Machado. 66As inscrições aqui trabalhadas estão em ambientes externos, acessados por qualquer transeunte, mesmo reconhecendo que essas expressões ocorrem em banheiros, espaços internos de escolas e universidades e transportes públicos. 67Entrevista realizada pela pesquisadora com Cristina Fonseca, no dia 11 de abril de 2019. 85

Como era rápida, a linguagem era muito concisa, mas tinha conteúdo; a linguagem era icônica como a poesia concreta, e para a autora é como se essa nova forma de inscrições nas ruas tivesse a influência da poesia concreta, como, por exemplo, o escrito nos muros em 1981: “So, So” (somente sou, só sou, estou na minha). Na década de 1980, a poesia formada pelo acaso, nos muros de São Paulo, parecia, aos olhos de Fonseca, um “jogo lúdico de linguagem”; a valorização do “signo”; a exploração da sonoridade e objetividade das palavras; a busca por uma semântica extrema; um gosto mudado, a “linguagem da cidade”. A autora chama de poesia do acaso68 as obras abertas casuais, feitas por estudantes, inscrições que estavam “à margem”69 nas proximidades da Universidade de São Paulo (USP) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC) e talvez por isso possivelmente uma influência da poesia concreta (Fig. 39).

Figura 39 - Exemplo atual de poesia nos muros (2019)

Crédito de Imagem: Simone Sapienza.

68 Título do livro-objeto: Intersemiótico com Interação de Mensagens Verbais e Não Verbais (1982), de Cristina Fonseca. 69 Diferente do que é a poesia marginal, de influência beatnik. 86

No início dos anos 70, as poesias e frases invadiram os muros perto das universidades, ruas da Vila Madalena, com inscrições anônimas surgidas na madrugada70:

❖ Ventos estomacais moverão moinhos nos planaltos centrais; ❖ Não basta cuspir, temos que vomitar; ❖ A boca que tanto beijei agora me nega um sorriso; ❖ Mais vale ser um bêbado conhecido do que um alcoólatra anônimo; ❖ Os mortos fora do cemitério, a terra para quem a trabalha.71

Também na mesma época tem outras inscrições com recados e trocadilhos descontraídos, como: ❖ Fumaça na Cabeça, ❖ Gonha mó breu.

O graffiti e o pixo despontam, em São Paulo, marcadamente, a partir de 1979, e determinados grupos e sujeitos passam a expressar publicamente inquietações e insatisfações diretamente vinculadas às desigualdades social e racial. Os graffitis têm sido desde então happenings, teatro urbano escritural (Décio Pignatari), performances: tem a escolha do local para o ato, o material, o risco, a fuga da polícia, a adrenalina-emoção. No desenvolvimento da linguagem gráfica, de desenhos e letras nas ruas, encontramos alguns desenhos que reproduzem quadrinhos norte-americanos e desenhos kitsch que trabalham com uma influência de segunda linha das artes plásticas; existe também o mural meramente decorativo72; e, ainda, alguns grafiteiros da era pós-graffiti tornam-se institucionalizados ou conhecidos e referendados, a ponto de terem espaços públicos liberados para as suas composições, como é o caso do Kobra, mais ligado à arte de mural, e dos Gêmeos, ligados à linguagem do graffiti. Já as letras, ou são de negação, ou afirmação política, e poemas e frases de efeito, enquanto as pixações são as grafia que vem das tags americanas e que, no Brasil, atingem uma peculiaridade própria, ao se

70 Em 1972, o arquiteto Maurício Fridman pinta o muro de sua casa e parte da calçada com cores berrantes e é processado. Foi a primeira experiência documentada em São Paulo de utilização de muros externos para pintura. 71 Frase retiradas do livro: Alex Vallauri da Gravura ao graffiti (2013), de Beatriz Rota-Rossi. 72 Aqui vamos desconsiderar os rabiscos sem prévia ideação, ou seja, rabiscar o nome ou qualquer outro símbolo sem preocupação com a linha, o espaço, etc. 87

tornarem escritas singulares de código e guerrilha do signo, como veremos mais à frente. A escola de graffiti, em São Paulo, inicia-se com Alex Vallauri73 – o mais famoso artista de rua na década de 80; John Howard e Maurício Villaça que estavam afinados com a tradição contestatória do maio de 68. Alex Vallauri inicia seus trabalhos nas ruas com o uso de desenhos em máscaras a forma da bota, ele já tinha prática com estêncil e xilogravura e utiliza a forma de máscara positiva para reproduzir desenhos nas ruas. As figuras (Fig. 41) eram também estampadas em serigrafia em camisetas, na ideia de completude do graffiti ambulante, dizia Vallauri: “Quero deixar a cidade mais bonita, soltar a imaginação das pessoas, diverti-las” (apud ROTA-ROSSI, 2013, p. 159).

Figura 40 – A arte do graffiti é divulgada Figura 41 – A bota (Alex Vallauri, 1979). em jornais.

1o.4.1982 27.3.1988

Fonte: Acervo Estadão. Fonte: ROSSI, 2013.

73Nascido no norte da África, ainda adolescente, Alex Vallauri começa a desenhar pelas ruas de Buenos Aires/Argentina, à margem sul do Rio da Prata. “Eram anos de radicalismos, de efervescência cultural e de defesa de ideias. Os costumes eram colocados de pernas pro ar. Caíam mitos, valores e normas do passado. Discutia-se sobretudo nas escolas, nos bares, nos sindicatos.” (ROSSI, 2013). Alex convive e expressa seus trabalhos artísticos na Europa, Argentina, Brasil e EUA; seus graffitis de rua são expostos em Buenos Aires, São Paulo e NY. 88

Na sequência Tupinambá e Rui Amaral que por ser pioneiro do graffiti no Brasil, um ícone da arte urbana, seu painel, no início do túnel entre a rua da Consolação e a avenida Paulista, é preservado desde o ano em que foi feito, enquanto outros graffitis no mesmo trecho são frequentemente alternados (Fig. 42).

Figura 42 - Graffiti feito por Rui Amaral, em 1992, no Buraco da Paulista. Preservado e conservado ano a ano por ter se tornado patrimônio histórico para os grafiteiros.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides ( 2017).

Segundo Celso Gitahy, artista urbano desde a década de 1980, o graffiti legal é o mural; o que marca o graffiti é a ilegalidade e não a estética. “[...] o graffiti verdadeiro, underground nunca vai morrer. O que está acontecendo hoje é uma outra coisa, o street art” (Entrevista em 2017). Isso está explodindo no mundo. Celso Gitahy74 é artista paulistano, com formação acadêmica; além de participar de mostras em galerias e museus, utiliza o espaço público como suporte

74Celso Gitahy: graduado pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo; mestrado em Arte Contemporânea e Docência no Ensino Superior pela Universidade Camilo Castelo Branco. Inicia sua produção artística na década de oitenta, participando de salões de arte contemporânea com desenho, pintura, instalação e atuando na cidade de São Paulo com graffitis. No início dos anos 90 cria, com o apoio da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, o projeto: O Graffiti é Legal, com o objetivo de transmitir conhecimentos e experiências artísticas a jovens estudantes da rede pública de ensino, chegando a obter atenção das principais mídias escritas e eletrônicas do país. Seu universo de imagens é composto por ícones de consumo misturados com o Homem e a natureza, criando 89

para o desenvolvimento de sua obra desde a década de oitenta. Seu universo de imagens é composto por ícones de consumo misturados com o Homem e a natureza, criando metáforas visuais com nuances críticas, irônicas e bem humoradas principalmente a partir do estêncil. Em seu repertório imagético, se destacam o Tvnauta (astronauta voador com cabeça de televisão) e as Pílulas coloridas (Fig. 43) denominadas pelo artista como: “Estimulantes visuais".

Figura 43 - , Vila Madalena.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides, 2019.

O estêncil é uma técnica de pintura utilizada para aplicar um desenho sobre qualquer superfície, com o uso de tinta, aerossol ou não. Feito com papel, plástico, metal, ou acetato, tem boa durabilidade e é cortado com facilidade, para fazer a forma do desenho. Sua aplicação teve início nos países orientais, na China e no Japão, nos anos 500 a.C., utilizado com elementos naturais, como folhas e rochas, para fazer máscaras das partes que não podiam ser cobertas por tinta. Durante a Segunda Guerra Mundial, teve seu uso ampliado, para fazer intervenções urbanas. A técnica foi muito utilizada para fazer propaganda da guerra. O estêncil serve de matriz para impressão por mimeógrafo e é a base da pintura serigráfica. Nos dias atuais, o Art tornou-se um novo movimento artístico, urbano, feito na rua e para a rua, com desenhos cada vez mais

metáforas visuais com nuances críticas, irônicas e bem-humoradas. Entre outros artigos e textos importantes sobre o tema: Autor do livro: O que É Graffiti, da Coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense. Participou de várias exposições dentro e fora do Brasil, em países como França, Hungria, Austrália, Alemanha, Estados Unidos, entre outros. Atualmente, além de trabalhar com galerias de arte, continua utilizando o espaço público como suporte para suas obras. Vive e trabalha em São Paulo, capital. 90

elaborados, com cortes eletrônicos, que possibilitam muito mais criatividade ao artista. Hoje, as pinturas com estêncil têm várias camadas e cores, tornando as pinturas realistas de alta qualidade. Por vezes, é difícil saber se a pintura foi feita com estêncil ou a mão livre. As máscaras têm seu valor, mas se distinguem da técnica e habilidade necessárias à realização do graffiti. Ainda no final da década de 70, alguns poetas se tornam grafiteiros, como Walter da Silveira, um artista intermídia que busca as relações semânticas e sonoras, unindo palavras distintas da cultura pop. Seu primeiro poema visual, em 1978, se tornou um icônico graffiti em SP (Fig. 44) e chegou a fazer parte da capa da revista Veja.

Figura 44 - Foto reprodução de graffiti de Walter da Silveira .

Fonte: Caixa Cultural Brasília, exposição em 2014.

O Beco do Batman (Fig. 45) ganha vida a partir do final dos anos 80, com pixadores e grafiteiros, época em que ambas as expressões eram transgressoras por aqui. Um dos primeiros desenhos ali encontrado foi de um homem-morcego (batman) dos quadrinhos, na sequência influências cubistas e psicodélicas foram surgindo. Rui Amaral e John Howard começam a grafitar por toda a vila madalena, ocupam o beco no sentido de deixar mais bonito um local que estava

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sem visualidade. Naquela época foram diversas vezes presos e o John Howard fez até um graffiti na delegacia. Hoje, o Beco é um local com todas as paredes grafitadas, se tornou ponto turístico com bancas de venda de bijuterias, artesanatos e peças de arte; por ali encontra-se também restaurantes, cervejarias, locais para shows gratuitos e uma vitrine dos principais grafiteiros do Brasil. A Vila Madalena é um dos principais bairros boêmios e de circulação cultural em SP e o Beco é uma galeria a céu aberto, tal qual o District Art, em LA, com mais habitabilidade e circulação.

Figura 46 - Beco do Batman.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides, 2019.

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75 O jovem de 20 anos, Khaled Said, foi torturado e morto pela polícia truculenta do regime ditatorial de Hosni Mubarak (1981 a 2011), na Alexandria, em 6 de junho de 2010. Cinco dias depois, surge a página do Facebook denominada Somos Todos Khaled Said, que ganha popularidade instantânea e desempenha um papel decisivo na organização dos protestos de 25 de janeiro, no Egito (Fig. 47).

Figura 47 - Celebração da cidade de mártires (trad. nossa)

Reprodução do livro de Hamdy e Stone (2014).

75 Tunísia, Líbia, Argélia e Síria também estiveram em processo de rebelião por libertação, no mesmo período. Ressaltamos que essa onda de mobilizações árabes inspirou uma série de outras mobilizações: - Maio de 2011, uma multidão tomou a Plaza de Madrid de Puerta del Sol; - 1o de outubro de 2011, Occupy Wall Street; - 14 de fevereiro de 2011, Ocupação do Capitólio de Madison, Wisconsin/EUA; - 15 de maio de 2011, ocupação por 44 dias da Praça da Catalunha em Barcelona; - 15 de junho, mobilização da Praça Syntagma em Atenas. 93

O criador da página é preso e depois solto, fato que também incita as mobilizações. Após o período de eleições fraudulentas para o parlamento, em dezembro do mesmo ano, a página do Facebook faz uma chamada para uma celebração especial no dia da polícia - 25 de janeiro de 2011 -, que, na sequência, é chamado de dia da revolução. O dia, propositalmente escolhido, marca o início da revolução de 18 dias contra o governo de Mubarak. A praça Tahrir se torna o centro de encontro em que ao menos 50 mil protestantes tomaram as ruas do Cairo, além de milhares em outras cidades. Os ativistas divulgam as formas específicas para se proteger contra a polícia truculenta. Milhares de muros, mobiliários públicos e caminhões são ocupados pela arte de rua, por todo o Egito; a poesia e a música também acompanham as ações da juventude insurgente. Foi uma explosão nas ruas, com gigantes murais faraônicos, islâmicos e também com influência da arte moderna. Todo o processo revolucionário deu-se no âmbito das ruas da cidade do Cairo e da Alexandria, independentemente da classe política tradicional, da teoria e da academia. A arte estava sendo suporte para uma crítica e transformação de um tipo de sociedade marcada por um longo período ditatorial. Durante 18 dias e noites, quando a angústia, o medo e a revolta insistiam em acampar no meio de Tahrir, milhares de egípcios buscavam inspiração no poeta Ahmed Fouad Negm (1929-2013) e recitavam um de seus mais famosos versos: “Os homens corajosos são corajosos. Os covardes são covardes. Venham com os corajosos, juntos, até a praça”, clamavam. Antes do período de rebelião, havia rabiscos e tags pela cidade do Cairo e o uso majoritário de stickers (adesivos) e estêncil - marcas registradas de campanhas publicitárias e políticas já familiares para a sociedade. Além de graffitis para celebridades, ídolos, ou esportistas (Fig. 48).

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Figura 48 – Reprodução de stickers, marcas e graffitis expostos na cidade do Cairo.

Fonte: Reprodução do livro de Hamdy e Stone (2014).

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No processo de rebelião, existiam demandas claras que também foram tomando conta das comunicações visuais:

❖ A queda do regime de Mubarak; ❖ O fim da lei de emergência; ❖ Liberdade; ❖ Justiça; ❖ A formação de um novo governo não militarizado; ❖ O gerenciamento produtivo de todos os recursos egípcios.

Os protestos continuaram diários e, no oitavo dia contínuo de lutas, mais de um milhão de pessoas estavam nas ruas. A batalha pacífica enfrentava a truculência do poderio militar com tanques de guerra nas ruas (Fig. 49).

Figura 49 - “Abaixo o tirânico; abaixo o regime” (trad. nossa), slogan escrito em um veículo policial queimado.

Fonte: Reprodução do livro de Hamdy e Stone (2014).

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Em 11 de fevereiro de 2011, os bravos jovens reunidos na praça central do Cairo forçaram a renúncia do ditador Hosni Mubarak, após quase três décadas de governo. A Primavera Árabe parecia florescer a democracia em um país sedento por liberdades civis. Entre 2011 e 2012, a nação foi controlada pelo comandante supremo das Forças Armadas, em prosseguimento ao controle militar imposto em 1952 Em 30 de junho de 2012, o primeiro presidente eleito do Egito, o islamita Mohamed Morsy, assumiu o poder em 30 de junho de 2012; foi um produto de acordo do complexo militar com os muçulmanos. Um ano depois, foi derrubado por uma junta militar articulada por Abdel Fattah Al-Sisi, líder dos golpistas, que assumiu o comando do país e, em junho de 2014, depois de 10 meses, Al-Sisi “ganha” a eleição, com 97,6%, dando início a uma ditadura ainda mais repressiva do que todas as outras na história do Egito moderno. O sopro de liberdade e as aspirações, perseguidos pelos jovens de Tahrir, foram iniciados por brutais assassinatos e deram sequência aos mártires que, infelizmente, com toda a luta pacífica por parte dos civis, deram lugar a um regime autocrático, com prisão arbitrária, sumiço de jornalistas e opositores, e pena de morte. Hoje, mais de 61 mil egípcios estão nas prisões, apenas por suas convicções políticas.

Figura 50 – Arte de rua na revolução egípcia, Grafitti as a Weapon - Flyer feito por Ganzeer.

Fonte: Reprodução do livro de Hamdy e Stone (2014).

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Figura 50 - Khaled Said (por Brian T. Edwards, Tahrir outubro de 2011) e a frase: “Fim de circulação” (trad. nossa).

Fonte: Reprodução do livro de Hamdy e Stone (2014).

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A diversidade de comunicações visuais que usam a rua como suporte - stencil, sticker, lambe-lambe, letreiro, graffiti, grapixo76 (Fig 51) e pixo -, dificulta o entendimento gráfico urbano; numa mesma parede, pode-se encontrar uma miscelânea de formas aleatórias; linhas e colagens sobrepostas, que se relacionam com o ambiente urbano e por ele são nutridas.

Figura 51 - Grapixo. São Bernardo do Campo- Grande SP, 2018.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2018).

Aquilo que desconhecemos, é um todo caótico. Como compreender uma frase, nas paredes do Líbano, sem conhecer sequer uma letra do alfabeto árabe, o segundo mais usado no mundo depois do latino? Ao nos aproximarmos das expressões gráficas, conhecemos as técnicas, os estilos, traços e, pouco a pouco,

76 O grapixo é uma mescla de graffiti com pichação. Utiliza-se mais de uma cor, no estilo de escrita, ou tag reto, com contorno e preenchimento. 99

cada tipo de comunicação se diferencia, porém, a sua compreensão pressupõe o estudo de cada linguagem. O graffiti, no Brasil, divide-se em duas vertentes: o pixo e o graffiti; o primeiro é um estilo de graffiti original de São Paulo.77 A principal diferença entre os dois estilos de arte é que o graffiti está baseado em figuras e multicores, enquanto a pixação é feita a partir de letras codificadas e em frequentemente em monocromatismo. No Atlas Mundial de Arte de Rua e graffiti (2014) a pixação é chamada de brazilian graffiti. Ambas as expressões têm influência do graffiti estadunidense mas progridem para outros caminhos. No graffiti mundial, particularmente nos EUA, a forma escrita (write), expressa nas tags, são também as formas menos respeitadas na categoria graffiti. As tags/os pixos, são o início do graffiti, a entrada na arte de rua para a grande maioria mas muitos continuam na vertente da escrita e de maneira disciplinada desenvolvem uma caligrafia autoral para escrever palavras muitas vezes criadas. Aqui nos remetemos que a retomada das inscrições grafitadas, que de certa forma nunca pararam, sempre alguém esteve por escrever os nomes pelas ruas, árvores ou pedras. Mas enquanto expressão coletiva e marcadamente a partir da década de 70 do século XX e em todo início do século XXI, essa forma de comunicação jovem nasce juntamente ao período de crise econômica do capitalismo. O graffiti e o pixo são uma expressão da classe trabalhadora empobrecida dos grandes centros urbanos.

77Aqui usamos pixo como expressão de graffiti, a partir de escritas codificadas e que tiveram origem no tag estadunidense, no desenvolvimento do tag reto paulistano e depois espalhou-se pelo Brasil adquirindo particularidades na forma e chamamos picho (grafado com ch) às escritas em paredes com tipologia comum de letra e fácil decifre. Seguimos a comunicação iniciada por Gustavo Lassala, no livro Pichação não É Pixação: Introdução à Análise de Expressões Gráficas Urbanas (2010). O autor, no intuito de estudar a pichação no campo das diferenciações da visualidade na cidade de São Paulo, faz uma diferenciação entre pichação e pixação, sendo a primeira grafia relativa a quaisquer escritos urbanos e a segunda à típica intervenção gráfica paulistana.

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São Paulo78 tem a maior extensão e concentração de artes plásticas urbanas no mundo. Na década de 70, encontravam-se inscritas, em algumas partes da cidade, grafias ordinárias, que aprendemos na escola depois de repeti-las tantas vezes na aula de caligrafia. Na década de 80, o movimento da pixação delimita espaço com atuação de indivíduos e grupos grafando tags, símbolos, pseudônimos e logotipos. É quando começa a surgir a tag reta79, escrita peculiar e característica da cidade, com letras alongadas e pontiagudas, pintadas com rolo ou spray e que buscam ocupar o maior espaço possível do suporte. Diferencia-se das letras desenhadas e o tipo de letra paulistana é único no mundo.

Figura 52 - Escrita peculiar da cidade de SP/SP, Rua Teodoro Sampaio, esquina com a Rua Cunha Gago.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2017).

78 São Paulo! Comoção de minha vida... Os meus amores são flores feitas de original... Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro... Luz e bruma... Forno e inverno morno... Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes... Perfumes de Paris... Arys! Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!... São Paulo! Comoção de minha vida... Galicismo a berrar nos desertos da América! (Poema Inspiração, de Mário de Andrade, em Paulicéia Desvairada, 1922). 79O pixo reto, em São Paulo, começa com influência das letras de banda de metal, dos anos 80, e hoje apresenta um conjunto de códigos e regras singulares. 101

A pixação é uma expressão cultural de comunicação que nasce nas periferias de São Paulo, nos anos 1980, e se espraia para outras metrópoles brasileiras. A pixação tem sua trajetória paralela ao movimento punk, e por muitos anos esteve vinculada à disputa pelo espaço entre gangues80. Grafada com x, tal qual pixe, antes mencionado, apresenta regras próprias, na visualidade que se define entre a tipografia, a letragem e a criação de signos. O movimento tipicamente periférico utiliza a cidade enquanto suporte midiático. Hoje são 10 mil pixadores ativos na cidade de São Paulo. O risco, a criação, a marcação de território, a forma de se localizar no espaço-tempo (Fig. 53)

Figura 53 - Avenida Senador Queiroz nas proximidades da Avenida Cásper Líbero - São Paulo.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2017).

A despeito de as tags, graffitis e pichos serem feitos nas grandes cidades em todo o mundo, este tipo de graffiti (a tag reta ou pixo) é tipicamente paulistano, uma vez que o traçado, a tipologia, os riscos assumidos para fazer as inscrições na ilegalidade, como em topo, laterais e por vezes por todo fachada de prédios altos, nasceram na cultura da metrópole paulistana.

80Devemos salientar que aqui não trataremos das Street Gang ou gangues de rua, por não ser objeto da tese. 102

Figura 54 - O pixo subverte a ordem da propaganda, é a mídia de si mesmo. Centro de SP.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2016). É um movimento que é criminalizado, que é crime perante a lei. Então é um enfrentamento diário do Estado, isso já é ser, já é uma atitude política, é um ato político, você está afrontando o Estado e a sociedade de uma forma geral. [...] o muro é o maior símbolo da nossa segregação espacial né, cria fronteiras onde reforça diferenças. Então acho que a maior resposta pra segregação espacial que a gente vive na cidade de São Paulo é a pixação. (Djan, pixador e artista plástico, entrevista em 2017)81.

81 Entrevista realizada pela pesquisadora com o pixador e artista plástico Djan, em abril de 2017. 103

Cripta Djan82, brasileiro, jovem, negro, criado na periferia de Osasco, na grande São Paulo, arquivista de documentos e grande conhecedor da pixação, compreende que o pixo e o graffiti tratam da mesma coisa, porque a origem do graffiti é o write (escrever), a primeira forma das tags nos EUA. E até hoje, nos guetos, eles usam o termo “escrita”. No início, era só a letra, como o pixo aqui também é, apenas com a diferença de que o graffiti foi absorvendo e transformando a forma durante os anos 70 e o pixo foi aperfeiçoando a tipologia e os signos. Um dos modos de reconhecimento, na pixação, acontece por aquele que grafar seu nome no maior número de lugares e em locais de destaque, como nos topos de prédios, pois são os que ganham visibilidade e notoriedade, a isso eles denominam ibope. É um movimento que tem seus próprios códigos de conduta, pois criou um mecanismo de reconhecimento, memória, circuito e valorização próprios. A legitimação acontece dentro do circuito por eles criado. A quantidade de marcas e a diversidade de locais onde se pixa são fatores de valorização, o que demonstra uma forma de deslocamento social pela cidade. Nessa cultura particular de rua, existe um conhecimento geográfico da metrópole para realizar novos pixos e reconhecer os pixos realizados. Outro valor da cultura é a não sobreposição de um pixo por outro, algo que acontece também na cultura do graffiti; os chamados atropelos se caracterizam por ofensa e, no passado, já foi motivo de brigas que acabaram em mortes. A busca de visibilidade, a necessidade de atingir fama, reconhecimento e respeito do grupo social, estão entre as principais motivações dos pixadores e a ação política pouco aparece enquanto atitude consciente entre os adeptos do rolê. As modalidades são as formas de atuar na cidade com o pixo. Cada qual escolhe uma. Existe um agrupamento de modalidades que nós consideramos aventura: subir nos lugares, escalar, entrar em prédios driblando a segurança,

82Cripta Djan, como é conhecido na pixação (Cripta é o nome da gangue de que faz parte desde os 12 anos), destaca-se nos cenários nacional e internacional a partir da notabilidade de ter sido bem-sucedido em todas as modalidades do pixo, por abrangência e dificuldade dos locais acessados por sua escrita e por ter um conteúdo político. Djan Ivson, além disso é artista plástico, vídeo-documentarista e um dos idealizadores das ações realizadas na 28ª e na 29ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo, que obtiveram grande repercussão e trouxeram a pixação ao debate da arte e ao centro das atenções; ele pixou a obra do artista Nuno Ramos. Djan é figura fundamental para esta pesquisa, e realizei, ao longo dos anos de 2016 e 2017, as entrevistas em que me apresentou dezenas de pixadores/as e artistas; me forneceu material documental; e longas entrevistas, que se tornam base para a produção textual de nossa pesquisa. Para saber mais sobre Djan Ivson Silva, busque novamente por Gustavo Lassala: Em Nome do Pixo - A Experiência Social e Estética do Pixador e Artista Djan Ivson (2014). 104

subir ou descer de escadas, rapel, cordinha, etc e na maioria das vezes sem equipamentos de segurança (Fig. 55). Figura 55 - Pixadores caminham sem equipamento de segurança.

Fonte: Imagem por Ata.

O pixador vive a cidade, acompanha qualquer transformação cotidiana - um muro ou poste novo -, isso porque a observação espacial e da arquitetura é constante, na busca para encontrar espaço. Explora a cidade de outra forma; se um prédio não foi construído para ser escalado, o pixador ressignifica os espaços: Cripta Djan reflete sobre a fugacidade da inscrição urbana pixada: “a propriedade privada é uma intervenção permanente no espaço público, diferentemente do pixo que é uma intervenção efêmera”. Considerados locais de valoração positivo de quem marca o alto do edifício, um pontilhão na rodovia; locais de alta visibilidade e de difícil acesso; locais também que podem depois ser publicados na mídia quando aparecem em foto de jornal ou na televisão. Quanto mais disseminada pela cidade e em locais de visibilidade e dificuldade estiverem a sua marca, melhor. Uma prática de grupo, é calcular um espaço que possa ser ocupado e dividir pelo número de presentes, assim se faz uma agenda. Uma agenda também pode ser composta não no mesmo dia, em que cada pixador/a coloca a sua assinatura em um espaço, sem justaposição com uma exposição de pixos em um mesmo quadrante (Fig. 56). Figura 56 - Agenda na parede com vários pixos justapostos.

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Fonte: Imagem da Ata. (2019).

Também a ação de vandalizar e vivenciar situações de risco são componentes dessa prática. Por vezes, parece uma competição esportiva, com os desafios de escalada, acesso a alturas, quantidade de locais pixados, raciocínios para entrar nos prédios sem ser pego.

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O pixo talvez se coloque no âmbito do desprezo que a sociedade tem pela subalternidade. E somente quem entende sabe o que nos muros está escrito. É a voz dos sem voz; é o grito mudo dos invisíveis; é a criação de uma escrita cifrada por quem não teve alfabetização corrente; uma escrita que despreza a sociedade de uma forma geral, que somente pode entender se estudar a linguagem do pixo; assim como, ao pegar um texto em libanês, que nunca estudou, você vai ter que aprender a linguagem, a língua, para começar a compreender. A composição social dos pixadores, organizados em gangues, outrora, ou em grupos que realizam as práticas majoritariamente de forma ilegal e não contratada, se constitui de sujeitos sociais pertencentes à classe trabalhadora, inseridos ou não no mundo do trabalho, inscritos nos setores mais pauperizados da população. Em fins da década de 1980, por volta de 198883, já existia a grife “Os Melhores”. Os primeiros pixadores surgiam: Bilão e Juneca; logo depois, Marcelo Xuin, com a tag Ossos, e Tchentcho (Fig. 57), pioneiros e ícones em escrever na modalidade de ponta-cabeça nos topos de prédios. Nos anos 90, Xuin foi o primeiro pixador a deixar sua marca no Terraço Itália – um dos edifícios mais altos do Brasil na época.

Figura 57 - Cartaz do grupo (grife) Os Melhores. Figura 58 - Tag do Tchentcho.

Fonte: Imagem: Arquivo Cripta Djan

83 Entrevista com Tchentcho (disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0a4dVBWzKbQ. Publicado em maio de 2015). 107

A tag Causa Maremoto estava por toda a cidade, nos anos 80. Assim como o Cão Fila, mas aí é outro caso, porque era o dono de um canil que fazia propaganda do estabelecimento. Mas ele acaba por incentivar mais pessoas a escreverem nomes pelos muros, porque acreditavam que ele era alguém que estava promovendo o próprio nome, e que era famoso. O próprio Juneca, conhecido por todos na pixação foi influenciado pelo Cão Fila. Já na década de 50, os termos pixação e pixadores eram utilizados para referenciar as propagandas de candidatos a vereador nas ruas. A apropriação libertária do pixo incomoda porque vivemos numa sociedade capitalista, totalmente materialista. Então, hoje, o bem material está acima da vida. Um muro que não tem vida, uma coisa abstrata, é superficialmente danificado, pois não é inutilizado. Uma porta pixada vai continuar abrindo e fechando; é ainda uma porta, o que muda é a visualidade. “Há quem diga que pixador, antes de tudo, é guerrilheiro.” (Cripta Djan). O pixo é uma degradação simbólica de propriedades privadas, porque, de fato, não destrói, mas incomoda. A sociedade materialista é a que mata por causa de uma batida no carro, como segue Djan:

Então hoje a vida não vale nada, o que vale é o bem material então o ódio do pixo vem justamente disso desse apego ao meu, ah, meu muro, meu carro, né, meu prédio, e eles não entendem que todo esse meu deles tá ocupando o espaço que deveria ser público, entendeu? (entrevista em 2017).

Principal nome da década de 1990 na pixação, o #DI# começou a pixar em 1988, foi o primeiro a se arriscar para lançar nos topos de imponentes prédios corporativos e instituições artísticas, como o Conjunto Nacional. No dia em que pixou o prédio, ligou para a imprensa como se fosse um morador enfurecido denunciando uma pixação; seu pixo foi parar nas manchetes de jornal. “O #DI# se via como um esteta de vanguarda. Para ele, a pixação era a fronteira final do borrão entre arte e vandalismo” (Djan, pixador e artista, entrevista em 2017). #DI hoje já é falecido, mas seu pixo continua ali perto do terminal Bandeira, que leva a população da zona sul para o centro. Um prédio visível da Sé (Fig. 59).

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Figura 59 - Pixo de #DI em prédio perto do terminal Bandeira, visível da Sé

Fonte: Imagem de arquivo de Cripta Djan.

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Já é de conhecimento generalizado a existência de estereótipos explícitos relativos aos grupos de pixadores. A atitude hostil contra a ação de escritas em locais públicos ou particulares, mas de visibilidade urbana, se investe de argumentos conservadores, burgueses e de preconceito de cor e classe. Para os que fazem o rolê, a ação é por protesto ou auto-expressão identitária, uma maneira criativa de se aventurar na cidade, mesmo que para algumas pessoas seja vandalismo (Fig. 64). Tanto o desejo de embelezar um viaduto quanto o desejo de enfeiar a cidade, e incomodar, são intervenções dirigidas mais ao presente do que à memória ou ao futuro. Apresenta-se no belo e no feio a estética da contestação ao real. Djan nos diz: “A pixação é a distopia, a sensação de que tudo vai ficar pior, que é feio mesmo, afirmação do vandalismo, da ação agressiva. Falta de esperança no mundo. Supera todos os limites de apropriação” (2017). A falta de esperança aponta para a ausência de perspectivas reais em se lançar ao futuro. É preciso ser realista. Não adianta sonhar com o que é feito de fantasia; querer o impossível; mas naturalizar o horror, pois um prédio pega fogo, e pessoas nascem na rua. O pesadelo pode ser imaginável, mas não o sonho.

Figura 60 - Pixo protesto Figura 61- Possíveis letras A

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Fonte: Imagem: Ata.

De que maneira o poder instituído vai colocando as culturas em caixotes e separando-as entre o que é bom e ruim? Por exemplo, o pixo que nasce colado ao graffiti é ainda criminalizado e passa por um tratamento repressivo, com negação da cultura. Ao mesmo tempo, mesmo considerado seu pioneirismo, têm-se uma distinção moral no sentido da negação do pixo enquanto expressão cultural genuína. No Brasil, em São Paulo, a pixação e o graffiti ganham ênfase na década de 90, com inscrições de letras e desenhos em prédios e casas particulares

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abandonadas. De maneira a transgredir a lei84 de proteção à propriedade privada, jovens da classe trabalhadora criam marcas e reivindicam a existência e o direito ao usufruto de qualquer espaço, público ou não.

A pixação e o rap sempre mantiveram uma atitude de claro antagonismo em relação às classes dominantes, uma proximidade ao ilícito e muita ambiguidade em relação ao consumo e à sociedade de massas. Embora a pixação compartilhe elementos essenciais da sociedade de consumo de massas - a produção de signos, a criação de marcas, a reprodução repetitiva de imagens -, ela nunca abandonou uma atitude de transgressão. (CALDEIRA, 2014, p.16, grifos da autora).

O ato de pixar é um crime e a pixação se coloca no local da reivindicação do uso público da cidade. O pixo só existe porque tem muro e espaços segregados. São Paulo é a cidade fortaleza. "O pixo é a expressão mais presente da cidade, é o sujeito periférico gritando em cores. O público consumidor de Romero Britto nunca vai gostar nem entender a gente." (Cripta Djan). De fato, é comum que quem faça grafitagem tenha iniciado os caminhos na cultura das ruas na pixação, assim como, quem faz graffiti fora do Brasil também iniciou com as tags. E ali é um início, e por vezes existem muitas caligrafias ingênuas, no entanto, há quem migre para o desenho e quem permanece a evoluir numa caligrafia própria, e isso exige muita dedicação e disciplina. Essa dicotomia entre pixo e graffiti, feio e belo é frequente no senso comum e diversas tentativas de poder público ou atividades comunitárias buscaram o caminho da “salvação do pixo”. Acontece que as culturas por mais que tenham raízes semelhantes adquirem contornos distintos como as modalidades, as formas de organização, o risco, a aventura e a forma. (Fig. 62). O pixador e artista Cripta Djan reflete sobre esta dicotomia quando diz que:

O graffiti ele serve até como um parâmetro de demonização do pixo né, ele é apontado como uma cura né, parece que a pixação é uma fase primária do graffiti onde o cara realmente vai ta maduro um dia se ele virar grafiteiro, é até o próprio discurso do prefeito Dória85. [...] É a cura né, o graffiti é a cura da pixação. É apontado como a cura a sociedade é

84A prática do graffiti, realizada com o objetivo de valorizar os patrimônios público e privado, mediante manifestação artística, com autorização do proprietário, foi legalizada em 1998.

85 João Dória, prefeito da cidade São Paulo nos anos de 2017 e 2018, depois abandona o cargo para concorrer ao Governo do Estado de SP. Dória instaurou o programa "Cidade Linda" logo após sua posse, com o objetivo de revitalizar áreas degradadas da cidade, teve como uma das ações a retirada de graffitis dos muros e de locais públicos, inclusive graffitis que haviam sido financiados pela gestão anterior. O então prefeito também sugeriu punições mais pesadas para quem realiza a arte urbana ilegal, declarando guerra principalmente aos pixadores, declarando-os como bandidos. 112

muito comum você parar qualquer pessoa na rua perguntar se a pixação é bonita, você não precisa nem falar do graffiti, ela vai falar: não, a pixação é feia. [...] Então, já virou uma cultura (Djan, entrevista em 2017).

Figura 62 - “Não é graffiti. É um mundo propriamente nosso! (trad.).

Fonte: Frame do filme Pixo.86

O pixador que teve grande evolução na caligrafia e tem reconhecimento entre os pixadores vem se apresentado em galerias com seu trabalho autoral inspirado no universo da pixação mas sem misturar as doses, já que o pixo é só na rua (Fig. 63).

Figura 63 - Peça artística de Cripta Djan, que já fez exposições individuais e cria a sua elaboração a partir do traçado da pixação

86 PIXO. Direção: João Wainer e Roberto T. Oliveira. 2010. Disponível em: https://vimeo.com/29691112. Acesso em: 11 Jan. 2019. 113

Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2017).

Djan participou da Bienal de SP em 2010 que resolve convidar 3 pixadores após a invasão à Bienal em 2008, em que Cripta junto a outros/as 39 pixadores/as intervém em andar vazio daquela Bienal destinado à participação de artista e que não contava com a intervenção-pixo (nesta bienal a pixadora Carol foi a única presa e ficou 53 dias em cárcere por danos ao patrimônio); participou da Bienal de Berlim em 2012 e foi para a Bienal de Veneza em 2018. As marcas urbanas afirmam território e sobrepõem os limites do espaço privado em relação ao espaço público, estabelecendo, doravante, uma postura entre a vida cotidiana e a política. Uma outra forma de pensar e agir se estabelece com uma lógica e valores próprios. A produção particular de signos e caligrafias antes inexistentes impõe uma forma do ser urbano. O graffiti primitivo é, por definição de quem faz, na gênese, uma arte ilegal. A necessidade do sujeito que quer tomar conta da cidade, interferir no espaço em branco e sair dos muros para a cidade, sempre sendo apagados não pararam de aumentar. E é parte da experiência, na cidade, especialmente em pontes, túneis, vias expressas, becos, vielas e atalhos. As marcas inscritas na ilegalidade se tornam referência, status e geografia quando grafiteiros e pixadores indicam uma localidade geográfica a partir de um graffiti ou pixo; no caso do pixo, o potencial localizador está na ocupação dos topos de prédios. Existem duas escolas tradicionais da pixação nacional, o Pixo Reto Paulista e o Xarpi Carioca (pixar ao contrário) (Fig. 64). Os dois têm o mesmo tempo

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histórico de tradição, apesar de em São Paulo os adeptos desenvolverem um modo mais complexo nos estilos, letras e modalidades, pois os pixadores se guiam por outras inscrições, como forma de localização.

Figura 64 - Xarpi carioca. Letras e símbolos mais arredondados diferenciando-se do pixo reto paulistano.

Fonte: Imagem de Sagi (2017).

Um sistema particular de signos, regras e relações sociais, que se torna uma linguagem singular de jovens majoritariamente do sexo masculino, de classe média baixa, e pobres, que vivem nas periferias. Uma produção cultural de alta potência e visualidade que marca presença na cena paulistana. O pixo apresenta uma influência da cultura punk do ponto de vista transgressor, na composição dos letreiros também apresenta influência das tipografias das bandas de metal copiadas primeiramente de capas e logos de bandas como Iron Maiden e Metallica, se aprimorando depois (Figs. 65 A e B).

Figura 65 A e B – Reprodução dos logos das bandas de metal do início da década de 80.

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Fonte: @metalremains

Figura 66– Reprodução de capas de álbuns de bandas punks do final da década de 70.

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1o Álbum do The Clash, 1977. 1o Álbum dos Ramones, 1976.

8a Edição da Punk Magazine, 1977.

Logo da banda The Exploited, 1979.

Fonte: wiplash.net

Tanto a pixação de São Paulo como o denominado Xarpi, no Rio de Janeiro em geral, registram o nome de quem pixa, que pode ser uma abreviação ou uma

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criação com as letras e também muitas vezes se registra o nome do grupo, chamado de grife ou união, ao qual o pixador está vinculado (Quadro 1). O Xarpi é originário do RJ, são assinaturas individuais, existem poucos grupos no RJ e se assemelha mais às Tags pois tem um formato mais arredondado enquanto o pixo é uma tag reta, originárias do Rio de Janeiro, essas pichações também são conhecidas como “carioquinhas”. Há esta particularidade ao movimento de pixação no Rio que se verifica no nome xarpi: os pixadores começam a pronunciar as palavras de maneira cifrada ao inverter a ordem das letras de trás para frente; uma maneira de modificação linguística em nome de proteção ao circuito cultural.

Figura 67 - Caminho para a Avenida 23 de Maio vindo da zona oeste -SP.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides, 2016.

Por que grife? A grife é uma etiqueta, na moda ela é caracterizada em um produto de luxo com peças exclusivas que levam a assinatura do estilista. Grife vem da palavra francesa graphie, ou seja grafia, a representação da escrita87. A grife no pixo é representada também por uma logo (logomarca, logotipo). E significa

87Grifes famosas no mundo da moda: Chanel, Louis Vuitton, Dior, Prada, Valentino e Hermès. 118

uma aliança de pixadores e cada indivíduo que participa da união (outro nome para grife), espalha pela cidade o seu símbolo (logo) ao lado do pixo. É comum que os grupos de pixadores façam o ritual de inscrição da pixação (não sendo uma regra), da seguinte maneira: assinar primeiro a logo da grife, depois o pixo individual, a assinatura (o nome), o ano que foi feito e a zona dentro da capital ou da grande São Paulo (exemplo zona oeste).

Quadro 1 - Algumas grifes paulistanas.

Os Melhores Círculo Os + antigos Quartel Os porra Vicioso General nenhuma

RGS- Turma da Os+temidos União osasco Os Infernais registrados no mão código penal

Os podrão CBR OS + IM (os Os + fortes UDR (Camburão) mais União Desce o imundos) Rolo

Zona oeste FOM - Foda- Os muito Os sem noção DKD pra cima se O Mundo loucos (DKDência)

Os piores Zona oeste Donos do ILS (Ilusões) Notáveis Pixo Ibope

Os+antigos Os + errados Os fora da lei Dead Turma da Kenedys DK janela

Os mal Os nada Os quase nada Turma do Os diferentes criados consta Trote sociedade Fala que é Os 13 Os simples É o terror alternativa nóis

Os iguais Classe A NCL Os + que todos Gang da Necrópole escalada

Os da hora Adolescência Os 2° MIL Cada 1 por si Os invasores Rebelde GRAUS

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Para entrar na grife é importante que o pixador já tenha notoriedade e que os organizadores da união aprovem a entrada. É esta uma forma de elevar o prestígio na cultura da pixação, ao se associar a uma grife. Além de marcar o símbolo da grife pela cidade, é dever daquele que ingressa numa família, reverenciar os pixadores daquela grife que já faleceram (e as mortes são bem frequentes no ato de pixar, seja pelo risco nas alturas sem proteção ou por assassinato por policiais e civis; e antigamente por brigas entre gangues) (Fig 70). Por muitos anos, as grifes se organizaram como gangues e havia muita rivalidade e violência entre grifes, esta realidade já não se faz majoritária no pixo em SP.

Figura 68 - Cemitério de pixos

Fonte: Arquivo MN

Além da grife, existem as alianças em que duas ou mais grifes se unem, ampliando a rede de relações de pixadores, por exemplo: A grife Círculo Vicioso se uniu à grife Os + Fortes e se tornaram a aliança: Círculo Forte (família). Pode também acontecer de um pixo vir acompanhado dos símbolos da aliança, grife, o pixo autoral, etc. A pessoa, por vezes, não teve alfabetização, mas inventa códigos de linguagem e escreve a cidade, sabe ler a cidade. Ela quer se atrelar a algo, as matrículas simbólicas criadas nos nomes das grifes e tag de pseudos nomes

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correm inversamente à publicidade, primeiro questionam propagandas nas linhas dos olhos e nomes de loja no topo da cabeça, depois subvertem esses códigos com outra cifra. Grosso modo, são indivíduos empobrecidos que se mobilizam para tornar público descontentamentos sociais através de ações individuais e coletivas de alto risco mas com caráter simbólico de uma estética agressiva.

Figura 69 (A, B, C e D) – Exemplos de grife e pixo

Grife: Quartel General. Pixo: MN. Pixo: Os Bambas.

Pixo: Fantasmas.

Fonte: Imagens por Juliana Abramides (2018).

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Figura 70 - Logo de União (grife) Os + Imundos e convite de festa dos RGS (zona leste).

Fonte: Reprodução da revista Vaidapé de junho e março de 2017, respectivamente88.

Nas conversas informais em momentos de participação nos eventos, points e rolês, pudemos constatar que os/as pixadores/as são jovens da periferia de todas as regiões de SP e grande SP, que trabalham com baixos salários como: motoboy, construção civil, panfletagem de propaganda, frentista de posto, office boy. E por que, além de marcar a cidade toda, é importante ocupar o centro? O centro é mídia, é o reflexo condensado e síntese do que acontece nas periferias e por toda a cidade, pelo centro se cruzam: trabalhadores do comércio, de empresas públicas e privadas, em serviço público; bancários; profissionais liberais, do sexo (homens, mulheres e travestis), camelôs, catadores de papel e papelão, catadores de latinhas, caixeiros viajantes, artesãos, feirantes, panfleteiros, “homens placa”; trabalhadores infantis; moradores de edifícios clássicos e simples; moradores em cortiços, pensões, hotéis e rua; turistas nacionais e

88A revista realizou uma série de entrevistas com pixadores. A Vaidapé é um coletivo de mídia fundado em 2012 por jovens comunicadores da cidade de São Paulo, que apresentam direcionamento midiático na defesa dos direitos humanos, denúncia da violência institucional e valorização das movimentações culturais e artísticas periféricas. Site: http://vaidape.com.br/

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estrangeiros; transeuntes em circulação, em divertimento e a passeio; empresários, banqueiros, comerciantes; representantes dos poderes executivo, legislativo e judiciário; estudantes; religiosos em pregação; manifestantes em protestos e reivindicações; músicos, malabaristas, estátuas humanas, cuspidores de fogo; boêmios e botequeiros. Na década de 1940, começa a ocupação de muros, topo e laterais de prédios com as publicidades. O pixo subverte essa ordem da propaganda, nasce a mídia de si mesmo (Fig. 71).

Figura 71 - Ocupação de muros, topo e laterais de prédios com publicidade, na década de 1940.

Fonte: Imagem de Alice Brill (1954). Arquivo IMS.

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Os points reúnem pixadores de toda a grande São Paulo e a prática recorrente é a troca de folhinhas (Fig. 72), uma forma de contato em que em uma folha de papel, caderno, ou agenda, cada pixador assina o seu pixo, aquilo que lança. A folhinha é guardada e colecionada em pastas. Também no point se divulgam as festas, contam-se as novidades, fala-se dos que se foram, divulgam- se os pixos feitos e articulam-se novos rolês, de maneira que alguém da região oeste se articula com o de outra região e assim, numa rede de proteção, podem pixar em grupos.

Figura 72 - Folhinha.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides

Sua inscrição está na cidade mas ninguém sabe quem você é a não ser os que fazem parte do núcleo pixação e você tem que ter algum destaque nas ruas para ser conhecida/o. Ao mesmo tempo, a maior parte dos que pixam está preocupada em ter sua marca na cidade inteira para promover sua existência. Instintivamente, pixadores expressam, no âmbito da subjetividade, a negação da opressão e a negação da propriedade privada. Uma forma peculiar de transitar e se comunicar. A pixação torna-se uma referência entre os praticantes; a leitura da cidade tem uma identidade regional de identificação das zonas urbanas por meio das marcas. Identidades coletivas, individuais e regionais, nessa ordem de importância. 124

O mapa The Encryption Of Power (Fig. 73) representa o histórico de atuação do Pixo no centro da cidade de São Paulo. Esse trabalho é o resultado de uma parceria feita entre a curadoria do pavilhão brasileiro da Bienal de Veneza de 2018, a Escola da Cidade e o Djan. Contribuição importante para ampliar a discussão sobre o pixo em outros campos além das ruas89. Figura 73 - Mapa - The Encryption Of Power - histórico do Pixo no centro da cidade de SP.

Fonte: Imagem de Cripta Djan (2018).

89“Usando dados coletados de 12.853 postagens no Instagram – também destacando a importância das mídias sociais na cultura urbana contemporânea – é possível visualizar a distribuição geográfica das menções de "pixo" e "pixação" através de suas localizações na cidade. Além disso, as multas aplicadas aos ofensores e as notícias dos últimos trinta anos que mencionam o Pixo são georreferenciadas e exibidas com a data, veículo de mídia e título. Combinadas, essas informações fornecem uma descrição das formas pelas quais a sociedade vê essa prática e as lógicas de punição que ela implica. Por fim, o mapa cruza esses dados com mais de 40.000 pontos de preços de metro do quadrado dos edifícios desse recorte – dados fornecidos pelo DataZap – bem como com informação sobre as instituições culturais emblemáticas que os pixadores atacaram no passado”. (Cripta Djan, em postagem de sua página no Facebook: Cripta Djan Ivson. Acesso em dezembro de 2018.)

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Artistas, escritores ao longo dos tempos muitas vezes ampliaram as fronteiras das convenções ao longo da história: os costumes moralmente vinculantes fixos de um determinado grupo foram rompidos frente a injustiça ou ao julgamento social. Como traduz o poeta concreto, Décio Pignatari: “O graffiti também é uma arte do precário, uma espécie de manchete lírica que tal como o jornal pode desaparecer com o tempo [...] Uma forma curiosa de publicação, só existe enquanto aquela realidade.” (entrevista em setembro de 1981, apud CRISTINA, 1982, p. 41). O artista urbano contemporâneo caminha entre a legalidade e a ilegalidade. Consegue pintar um muro com autorização e o faz com dinheiro do bolso ou por meio de incentivos, festivais, patrocínios. Seja como for o engajamento político e social é uma constante: preconceitos diversos; o racismo; o feminismo; as temáticas ecológicas como poluição e desmatamento também despontam. Alguns caminham mais para o lúdico e transversalmente para o político. O espaço público é diverso: pontes, edifícios, fábricas abandonadas. Não há uma concentração de expressões visuais urbanas na cidade mas está por todos os lados. As regiões periféricas, áreas desguarnecidas de monumentos foram por muito tempo regiões desconectadas com o circuito cultural de shows, concertos, bibliotecas, aliás do ponto de vista das ações do Estado interventor ainda são, mas cada vez mais a periferia se organiza com saraus, casa de hip-hop e centros culturais. As interferências plásticas das artes urbanas são periféricas e ocupam as periferias com cores e identidades simbólicas para jovens e trabalhadores/as. Esta é uma dimensão pública consciente da ocupação do espaço com arte. São muitos artistas a serem destacados na história mais recente da arte urbana em São Paulo, e seria impossível nomear a todos/as. Lembramos de um importante ícone do graffiti no Brasil e no exterior. Niggaz (Fig.74), nascido no Grajaú - periferia da Zona Sul de São Paulo, morreu jovem aos 21 anos, e seus murais continuam colorindo a cidade, o artista entusiasta e influente artista, apresentava graffitis irreverentes com forte identidade racial e que lembram histórias em quadrinhos. Para o artista o pincel ou o spray eram uma arma de 126

transformação do mundo. Ele que sofrera por toda a adolescência racismo e preconceito, encontrou na arte uma forma de reconhecimento por toda cidade de São Paulo e no mundo90.

Figura 74 - graffiti de Niggaz na Praça que leva seu nome na Vila Madalena.

Fonte: Reprodução do livro Niggaz - Graffiti, Memória e Juventude.

O Grajaú é um exemplo de região periférica da zona sul, situada há quase 30 km do centro da capital paulista, uma área que sofre com a violência e a segregação ao mesmo tempo um bairro de forte mobilização político-cultural e de origem de importantes artistas urbanos. O Grajaú abrigar importantes murais ao longo da região, um dos locais de maior produção de graffitis no mundo. São realizações individuais e também de projetos sociais organizados por coletivos de artistas com financiamento empresarial como por exemplo o projeto “Transformações: Arte Urbana e Cidadania” realizado em 2015 no Jardim das Gaivotas. ...Eu sou…

90 Veja-se em: Niggaz - Graffiti, Memória e Juventude. Com financiamento da Funarte organizado por Mauro Neri em 2016. 127

aquele que pega o busão lotado O grafiteiro que toma um enquadro O MC de talento mas que não tem nem o da condução Eu sou, aquele poeta, partideiro nato, Que das equações do tabuleiro de xadrez é um rato E o mágico, com as tintas de doação… Grajaú, se eu errei, merci bocu (CRIOLO)

Em meados da década de 90, também em São Paulo, emergem alguns dos mundialmente conhecidos grafiteiros: Nunca, Os Gêmeos, Onesto, Kobra, Vitché, Binho e Zezão. O grafiteiro Nunca (Fig.75) apresenta um viés artístico politizado, traz à tona assuntos étnicos, históricos e sobre o racismo. O artista tem a intencionalidade de ressignificar a representação histórica do Brasil e ao mesmo tempo incentivar a reconexão com as nossas bases hereditárias indígenas. Francisco Rodrigues- o Nunca, vindo do bairro de Itaquera, inicia seus trabalhos na rua com a pixação e posteriormente desenvolve um trabalho colorido a partir da influência de artistas e intelectuais de vanguarda como Lygia Clark e Oswald de Andrade.

Figura 75- Do lado esquerdo o grafiteiro Nunca. Do lado direito, os irmãos - Os Gêmeos, graffiti na Avenida 23 de Maio-SP.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides

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Graffiti verdadeiro é o graffiti ilegal, o pixo também o é. E na transversal da cidade eles se encontram. A arte urbana com tinta ou spray e que é autorizada é a arte mural que alguns chamam de pós graffiti. O realismo mágico adentra cenas do cotidiano criando dualidades: Gustavo e Octávio - Os Gêmeos (Fig.75 e 76), estão entre os mais importantes contribuintes para o desenvolvimento da arte urbana no mundo, são de 1974, nascidos no Cambuci, em São Paulo. A dupla decide por um trabalho colorido mas com predominância do uso do amarelo nas personagens, uma constante, trabalham artisticamente com temas que transitam entre a fantasia e a realidade.

Figura 76 - Os Gêmeos.

Fonte: caixadepandora.com

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O grafiteiro Alex Hornest, nascido em 1972, no bairro do Tatuapé na zona leste de São Paulo, mais conhecido como Onesto é também pintor, escultor e artista multimídia de São Paulo. Desde a década de 90 faz graffitis. A relação entre a cidade e os moradores é o foco de seus graffitis. Como vemos na imagem de um personagem andando de bicicleta e levando consigo a placa de proibido, feita no festival Bike Here em Viena, 2010 (Fig. 77).

Figura 77 - Graffiti por Onesto

Fonte: Imagem do Festival Bike Here

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O também conhecido Kobra (Fig.78) cuja peculiaridade são os gigantescos murais que parecem fotografias com sobreposição de miscelâneas coloridas, veio da periferia da Zona Sul - Jardim Martinica. O muralista também iniciou suas atividades como pixador.

Figura 78 - Mural de Kobra retrata o arquiteto modernista e comunista Oscar Niemeyer

Fonte: Imagem de Juliana Abramides. Avenida Paulista, São Paulo, 2018

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Mesmo nos países de maior desenvolvimento do campo político democrático, a igualdade completa para as mulheres não foi atingida. Nenhum Estado burguês reconhece a completa igualdade dos direitos. As mulheres ganham menos ocupando os mesmos cargos que homens, são interrompidas incessantemente em suas falas, devem provar mais valor e competência numa mesma área. Nós vivemos a feminização do mundo do trabalho com piores condições e o maior de todos os problemas é a opressão e violência sofrida tanto no seio doméstico quanto nas ruas.

Figura 79 - Clara Leff, 2018.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides (Entrevista no dia da finalização do mural).. Rua Gama Cerqueira, 385, Cambuci - São Paulo, 2018.

Quando entrevistei a Clara Leff, ela estava finalizando o graffiti acima (Fig. 79) com seu então companheiro também grafiteiro, Gatuno. Ela me disse que pintava já a algum tempo, mas que começa a ir para os murais de rua para ocupar esse espaço público, que até então tinha medo de ocupar, mesmo andando, principalmente sozinha, nas ruas de São Paulo. Fazendo graffiti, muitas vezes está

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com alguma parceria, ou pessoas se interessam e param para acompanhar o trabalho. O sentimento de serenidade da mulher intercala-se às condições exteriores do mundo natural. Uma satisfação conquistada, numa alma que comprime o sensível e o finito, que triunfa nos sentimentos. O triunfo de uma conciliação com o mundo da natureza. A necessidade de se recolher na paz interior da alma reclusa em si. A profundidade da tela transborda conteúdos a serem contemplados; os objetos animados, colocados por si, provocam um eco na alma, a disposição do final do dia e a calmaria da água de um lago recolhido. Os elementos reunidos não são apenas imitação por uma disposição própria e vigor particular espargido, que causa certa fonte de simpatia, esta, a natureza, “uma fonte inesgotável de assuntos para a arte” (HEGEL, 1962, p. 81) A artista começou a fazer graffiti em 2015. Mesmo antes de começar a pintar, ela diz que tinha muito medo de andar nas ruas sozinha. Então ao ir ocupar os muros com a lata na mão a artista pode iniciar um processo de vivência segura nas ruas, já que, quando se pinta, muitas pessoas do bairro ou transeuntes param para conversar ou mesmo oferecer um prato de comida. O empoderamento feminino91, se torna então, inspiração e a forma de falar de Clara Leff, frente à realidade de tantos anos de silenciamento das mulheres. Em um de seus trabalhos, a série “faces”, ela faz uma crítica aos padrões de beleza criados para as mulheres, além das personagens serem sempre azuis e esverdeadas. A maioria de seus graffitis fala sobre a natureza e os seres humanos em uma esfera mais misteriosa, amorosa e mágica. Clara utiliza sempre as latas de spray e começou a pintar, praticando em casa por 06 meses para desenvolver a técnica antes de sair nas ruas: Eu só uso latas de spray! Um dos meus maiores amores neste mundo é a lata de spray. Eu nunca esquecerei o dia em que usei um pela primeira vez… Sempre digo que me apaixonei inicialmente pela lata de spray e depois com o graffiti. As latas de spray permitem uma “dança” com a parede, usamos todo o corpo para pintar, adoro isso! (entrevista em 2018).

A educação de gênero aprendida na família, escola, mídia, no posicionamento dos governantes e das políticas de Estado, por meio da

91Para saber mais de mobilizações de mulheres artistas na sociedade ler: Women, art, and Society by Whitney Chadwick. 2nd ed. Thames and Hudson, NY: 1996.

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socialização, em que crianças e adolescentes, gradualmente, internalizam normas sociais, corresponde a produções culturais e não determinações biológicas prévias. A desigualdade de gêneros resulta, prioritariamente, da diferença de socialização de papéis entre gêneros. Aprendemos a nos apresentar enquanto gênero, roupas, estilo de cabelo, linguagem corporal e tom de voz.92 Mag Magrela pinta desde 2007, a artista também tem uma referência em casa, já que o pai é desenhista e pintor. Mag começa a grafitar após uma oficina com o pioneiro artista urbano Rui Amaral, e lá conheceu uma galera da quebrada - onde começou a grafitar. Apesar de ser da Vila Madalena, lá foi o último lugar a pintar. O campo da criação não tem que ter regra. Mag cria personagens que caminham para o lúdico e para o mágico.

Todos os lugares que eu tentei me encaixar de alguma forma tinham regras de ser ou de fazer. Eu já desenhava e quando eu fui pro graffiti, eu me apaixonei, eu podia usar qualquer material e qualquer local. Se abriu um portal da minha personalidade. (...) o graffiti me proporciona conhecer a cidade e lugares de um jeito único (entrevista em 2019).

A artista multimídia e cantora diz que teve algumas fases, a primeira foi a criação personagem um ser masculino parecido com seu irmão. A segunda e mais longa fase retrata o feminino. Mag diz que sempre negou muito a feminilidade e então em 2010 começa a desenhar o sangue e “bucetas”, inicia o trabalho com a energia do chacra básico. A libido reverberou até 2016. A grafiteira faz uma reflexão sobre esta necessidade da negação do corpo feminino:

Parece que a sociedade só quer o seu lado gatinho. Então eu negava muito meu corpo. A cultura patriarcal vende o tempo inteiro para que você se encaixe nesse lugar. Muitas mulheres das artes passam por isso e questionam isso. (...) Já ouvi criança falar: - não sabia que mulher pingava.

A última fase da artista é o lugar de cura (Fig.80) pintando plantas e natureza mas busca entender e questionar o lugar da segregação (o mural de Mag Magrela sobre a temática aparece no capítulo IV). As mulheres foram excluídas e ainda são, seus salários são menores, toda a potência da mulher deve ser duplamente explicada seu valor sempre colocado à prova. E é por isso que as

92 A jornalista Norah Vincent passou 18 meses disfarçada de homem e transformou sua experiência no livro Self- Made Man: One Woman’s Year Disguised as a Man. Ela passou a frequentar círculos sociais, de esportes, casa de strip-tease, monastério e grupos de suportes masculinos. Em uma das experiências, ela relata que foi a uma loja de carros e o vendedor a assediou, quando era mulher, e quando voltou como homem, o vendedor apenas falou de negócios. 134

mulheres estão se organizando e se reunindo e trabalhando entre si no palco, no cenário. Mulher chama mulher, negras e negros estão se unindo nos movimentos sociais e também nas cenas profissionais para conquistarem trabalho e consideração. Figura 80 - Patuá da Fisgada, São Paulo, 2016.

Fonte: Mag Magrela

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Gisele é a Sagi (Fig. 81), a guria é de uma coragem atroz e ficou conhecida num tipo de pixo que considero “esportivo”. Ela é a maior pixadora e lançou suas marcas por todo Rio de Janeiro e fez muitos rolês em São Paulo chegando a fazer parte da grife Os Melhores. A jovem, agora aposentada do pixo, se considerou viciada com a lata na mão e hoje está há 06 meses sem pixar. Sagi começou em 1999 com 13 anos com amigos de onde morava que pixavam, lançou Sagi que é gisa, gisele de trás pra frente. Começou a pixar de escada e de pé (uma pessoa sobe no ombro da outra pra ganhar altura). Em um rolê em Nova Iguaçu - RJ levou um tiro na perna e parou por um tempo, quando voltou, viveu intensamente e impulsivamente, numa vontade de adrenalina. Ela lembra: Passei anos da minha vida pixando compulsivamente todas as semanas, muitas passagens na polícia, perdi as guardas dos meus filhos, meu casamento acabou (entrevista em 2019).

Figura 81 (A e B) - Sagi lança nos viadutos, sua marca registrada.

Fonte: Imagens cedidas pela xarpista.

No RJ são poucas mulheres que tem nome na rua (no sentido de divulgação mesmo, nomes espalhados pela cidade, que tem caminhada constante). O movimento da pixação é majoritariamente de composição masculina, segundo Djan (entrevista em 2017) quando as mulheres entram na pixação elas se destacam e viram o centro das atenções. Mas a “mina precisa vencer a descrença, criar o grupo dela e conseguir espaço. “Não é fácil você ser uma mina num movimento que só tem homem. Primeiro que todo mundo já quer te comer né?’.

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A xarpista começa a comandar a modalidade de fazer escadinha de ferro, de corda, em viadutos, descendo de corda de nó, corda de rapel (Fig. 82). Nesta modalidade, são poucas as pessoas que fazem. Por esse motivo, ela ficou muito conhecida no universo da pixação e ficou consagrada “no vandalismo da pixação”. O viaduto é uma modalidade que fica no mínimo 30 anos no mundo, somente sai quando o tempo desgasta em até 50 anos. E é uma modalidade altamente arriscada porque não tem equipamentos de segurança, “se eu tivesse uma câimbra eu poderia cair e morrer”, uma modalidade que você somente segura com as mãos. Fora isso ela lançou em pedras, janelas, linhas de trem com a versatilidade de modalidade.

Figura 82 (A e B) - Pixo de rapel.

Fonte: Imagem cedida pela xarpista.

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Na Califórnia, toda a cultura do graffiti, é obviamente acompanhada da cultura chicana ou dos mexicanos-estadunidenses. Os writers (escritores) cholo (de ascendência latino-americana) já tinham um estilo próprio na década de 40 antes do graffiti contemporâneo emergir. Ao longo do anos os estilos e alfabetos vão se aprimorando nas ruas e também quando emergem as ondas de encarceramento crescentes desde a década de 60. Os murais chicanos em São Francisco são de uma beleza de conteúdo e na forma. Uma arte que recupera a ancestralidade e dá continuidade a uma arte mexicana por excelência: o muralismo. Notadamente de cunho político, os murais tomam conta da região Mission. Descendo para Los Angeles, vemos pelas linhas de trem de norte a sul em becos e vielas o estilo bomb de letra, tão famoso nos EUA. São as letras arredondadas as chamadas bomb, por serem uma “bubble letter” ou letra em formato de bolha. O uso de tintas e spray nos muros e fachadas transforma a escritas urbanas tão contaminadas de publicidade, principalmente em LA. O grafismo selvagem, garranchos e rebarbas; o graffiti Naif (ingênuo e espontâneo) ou rebuscado se combinam aos preços, letreiros, mostradores de mercados.

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Los Angeles, como toda cidade grande, tem um ritmo acelerado de sociabilidade, ao mesmo tempo em que apresenta praias, trilhas e parques, que podem proporcionar um contraste de vivência. A grande metrópole multicultural apresenta arsenal de arte do mundo todo, tal qual NY; o entretenimento mundial. Urbanisticamente, não há tanto interesse em LA, uma cidade espaçada. A não ser o charme insuportável das áreas de luxo, na Beverly Hills, com enormes áreas verdes, por exemplo. São diversas vizinhanças, cada uma enquanto um nicho cultural de identidades e singularidades muito definidas: Westwood, Santa Mônica, Venice, Brentwood, Ecopark, Silverlake. O rigor com o graffiti ilegal é maior em LA do que em SP e também a cultura que aqui vemos de tags, pixos, colagens, murais, etc., por toda a cidade, em LA a profusão de imagens não compete com as publicitárias. Ali, as imagens suburbanas estão mais escondidas e as propagandas dominam o cenário de maneira massiva. Chegamos ao distrito de arte de LA e fizemos um tour em companhia de A.k.a One, pioneiro no graffiti em LA que explicou um pouco sobre a história da arte local. Ao longo do trajeto de trem pude observar diversas tags e graffitis nas linhas de trem e nas beiradas da cidade (FIg. 83), foi de lá que avistei o Rio Los Angeles. Figura 83 - Graffitis na beira dos trilhos

Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2018).

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A marca do graffiti em NY é o metrô; em SP, os arranha-céus, em LA é o rio Los Angeles, na beira da rodovia 101 (Fig. 62). Desde que o Corpo de Engenheiros do Exército se moveu para canalizar o rio, em 1938, o trecho de 51 quilômetros de concreto cinza do rio e a baixa presença policial ofereceram aos grafiteiros não apenas uma grande tela para murais coloridos, mas também a atração da aventura em um lugar aparentemente desprovido de leis.

Figura 84 - Rio Los Angeles Visto do Trem (2018).

Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2018).

Para realizar tags, desde o final da década de 1960, é preciso passar por túneis sob o rio. Nos anos 90, populariza-se o graffiti quando ainda ali era uma

93Subtítulo referenciado em Ulysses (2010). 140

terra de ninguém e o avistamento de um corpo morto, tráfico de drogas, ou tiroteio, era comum. Os primeiros escritos são do início de 1900, traçando uma linha do tempo físico da experiência humana ao longo do rio. Uma tag remonta ao início de 1900 e foi encontrada nas vigas de uma ponte perto da confluência do Arroyo Seco. Ele leu "Kid Bill 8-3-14" na fonte ocidental. Acredita-se que a tag e outras semelhantes, muitas vezes com "Kid" precedendo o nome, foram deixadas por transeuntes que viajaram pelos trens que correm o rio. O grupo também encontrou pichações deixadas por Pachucos94 no rio, nos anos 1940. Uma peça dizia "Killer de Dog Town 8-9-48" e foi escrita com alcatrão coletado de um pátio de trens local e pintado nas vigas perto do histórico William Mead Housing Projects, perto da Main Street, no centro de Los Angeles. Vivendo nos bairros pobres cercando o rio, os Pachucos marcariam o território de suas gangues que haviam se formado em face da crescente violência e discriminação motivada por motivos raciais contra os jovens mexicanos-americanos. Num local considerado, por anos, um repositório para o escoamento urbano, os grafiteiros traziam vida e vitalidade ao rio, algo que estava faltando desde que fora pavimentado. No início dos anos 1990, a cidade vivenciou altos exemplos de violência de gangues e assassinatos e um aumento nas tensões raciais, após o espancamento policial de Rodney King e o assassinato de Latasha Harlins95. O aumento na violência entre gangues e policiais coincidiu com uma explosão de pichações de gangues e de "tag banging", que foi um período perigoso para os grafiteiros, pois havia um sinal verde para que membros de gangues atirassem em qualquer tagger que entrasse no rio. No entanto, a violência do início dos anos 90 se esgotou lentamente, já que muitos taggers foram presos ou absorvidos por gangues. Isso deixou o rio aberto para os grafiteiros, em meados

94 Pachucos são Chicanos e mexicanos de cultura noturna e vestes extravagantes. 95Latasha Harlins (14 de julho de 1975 – 16 de março de 1991) uma menina afro-americana de 15 anos, estudante do Westchester High School, em Los Angeles. A garota entrou na Empire Liquor Market na South Figueroa Street, pegou o suco de laranja da geladeira e o colocou na bolsa, com 2 dólares em suas mãos para pagar por isso. No entanto, a dona da loja, a coreana-americana Soon Ja Du, acreditava que Harlins estava roubando o suco. Uma briga iniciou-se no local quando a senhora tentou puxar a bolsa da menina através do balcão. Enquanto isso, Harlins lutou de volta, derrubando a mulher de 51 anos. Harlins tirou o suco de laranja da bolsa e o colocou de volta no balcão e depois virou-se para sair. Logo, Du se levantou e puxou uma arma do balcão e disparou contra Harlins na parte de trás da cabeça, a três metros de distância. A morte de Harlins ocorreu treze dias depois do espancamento filmado de Rodney King pela polícia. Algumas fontes citam os dois assassinatos como uma das causas dos tumultos de Los Angeles, em 1992.

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da década de 1990 e trouxe uma onda de peças de arte grafitadas coloridas em grande escala. Crews (grupos) como MSK "Mad Society Kings" ganharam notoriedade internacional. O tagger Sabre, do grupo MSK, pintou uma das maiores obras de graffiti do mundo, ao longo da margem do rio, perto da autoestrada 5, em 1997. Outro notável escritor da MSK, REVOK, expôs seu trabalho na exposição "Art in the Streets" da MOCA, a primeira grande exposição de graffiti do museu e arte de rua nos EUA. Os grafiteiros da crew MTA - "Metro Transit Assassins" também ganharam notoriedade internacional, em 2008, por pintarem uma tag MTA na beira do rio escrita em letras maiúsculas de 700 metros de largura (Fig. 85), nas proximidades da rua 4. Ambas as marcas históricas foram pintadas com uma camada de tinta cinza, em 2009, que podia ser avistada de um avião, quando o Corpo de Engenheiros do Exército usou US$ 837.000 de dinheiro federal para pintar mais de 45 milhas de rio que caem em sua jurisdição. Para o grupo, o dinheiro poderia ser gasto pagando artistas para pintar o rio e deixando-o belo, ao invés de parecido com um presídio. Hoje, os escritores e artistas de ambas as crew estão agora vendendo seu trabalho em galerias de arte nacionais e internacionais.

Figura 85 - Mural gigante MTA.

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Fonte: Imagem de Lawrence K.Ho.

A onda de gentrificação, a partir da revitalização feita na região ribeirinha, desde 2012, em lugares como Elysian Valley (Frogtown), trouxe cafeterias da moda, boutiques, cervejarias artesanais e empresas para a região. Isso deixou muitos moradores antigos do local preocupados com o deslocamento e a mudança de sua comunidade para algo em que não poderão mais se identificar ou viver. À medida que a população dos bairros muda, trazendo um afluxo de moradores brancos para a área, os residentes mais novos já tomaram os esforços de combate aos graffiti em suas próprias mãos. O Conselho de Bairro de Los Feliz organiza eventos de limpeza, que incluem a limpeza de graffitis uma vez por mês, e o conselho do bairro Elysian Valley organiza o Dia de Embelezamento de EV, no qual os moradores limpam o lixo e as pichações. O Corpo de Engenheiros do Exército também toma medidas pesadas para manter o graffiti fora do rio, gastando cerca de US $ 250 mil por ano para espalhar pichações ao longo dos 90 quilômetros de aterros que caem em sua jurisdição. Os empreiteiros encarregados da remoção de pichações inspecionam o rio rotineiramente e tentam encobrir pichações dentro de 24 a 48 horas, disse Jay Field, porta-voz da Army Corp.

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Em 1976, Judith Baca inicia a história da pintura monumental, o The Great Wall of Los Angeles, maior mural no mundo, tem meia milha de longitude, ao longo do canal no Vale de São Fernando em North Hollywood (Fig. 86). O mural foi realizado com a colaboração multicultural de mais de 400 jovens e em torno de cem pessoas na equipe de apoio e 40 artistas assistentes. Cada seção da parede foi projetada por um artista diferente, sob a supervisão de Baca.

Figura 86 – Mural The Great Wall of Los Angeles

Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2018).

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Com 4 metros de altura por 840 metros de extensão, o equivalente a seis quarteirões, em LA, a grande muralha é o maior mural do mundo, oferece 105 murais compondo a narrativa da história da Califórnia, até a década de 1950, pela ótica das mulheres, minorias e dos povos étnicos (Fig. 87). Judith baca projetou a “grande muralha” preocupada com as condições estéticas físicas e espaciais mas também se direciona às questões históricas, sociais, ambientais e culturais que afetam a cidade. Por exemplo a Figura 87 representa o momento da deportação de mexicanos antes pertencentes àquela terra e são expulsos e segregados, ainda hoje os EUA querem limitar a entrada de mexicanos ou mesmo baní-los do país.

Figura 87 – Detalhe do mural que apresenta a narrativa da história da Califórnia até a década de 1950.

Fonte: Imagem por Juliana Abramides, 2019. .

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No antigo bairro de armazéns, do centro de Los Angeles, ainda existem alguns artistas residentes remanescentes dos anos 80; aqueles dias valentes em que pintores, escultores e outros, sem nenhum código oficial da cidade nos livros, começaram a trabalhar e a morar em prédios industriais abandonados. Em meados dos anos 1970, alguns artistas convertem antigos espaços industriais e comerciais em estúdios de trabalho, às vezes alugando espaços para criar e se alojar por preços muito baratos. Somente em 1981, a cidade de Los Angeles aprovou o decreto Artista em Residência, que permitia o uso residencial de edifícios anteriormente industriais e comercialmente zonados; os artistas há muito tempo usavam esses espaços como residências, de forma ilegal, e a lei procurou levar essa prática à legalidade e regulamentação. Galerias de arte, cafés e locais de espetáculos abriram-se, à medida que a população ao vivo crescia.

Figura 88 - Art District. “Influência legislativa à venda” (trad.)

Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2018).

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Venice Beach é onde se unem a street art e a praia mais icônica do sul da

Califórnia. Localizadas no coração do calçadão de Venice Beach, entre o skate park e as quadras de basquete, as paredes de arte são o marco histórico mais famoso do graffiti de Los Angeles.

Figura 89 - Um amor à beira mar

Fonte: Juliana Abramides (2018).

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Ao longo do movimento chicano por direitos civis e justiça social principiado no início dos anos 1960, os murais, como parte da afirmação identitária dos mexicanos-americanos, novamente provaram ser importante ferramenta na reivindicação de sua herança cultural. O muralismo chicano recupera símbolos do México, histórias, religiosidades e mitologias, em um movimento de identificação cultural e de resistência sociopolítica.

Figura 90 - Mural de Hailey Gaiser21.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides, 2018.96

O local com acentuada movimentação relativa ao muralismo chicano é São Francisco (a chamada Bay area), no distrito Mission. Ali, a “meca” dos murais chicanos apresenta um movimento anti-apartheid e identitário, com murais de temas políticos e campanhas, como a de 1992, no aniversário da invasão de Columbus, em que se organizaram os “500 anos de resistência”.

96“Este mural de Hailey Gaiser é inspirado pela cidade de San Juan Citala, Jalisco/México, de onde minha família provém. É uma pequena cidade de fazendeiros dedicada ao trabalho duro, valores familiares e comunitários. Eu dedico este mural a eles e à comunidade Mission/SF.” (trad. nossa). 148

Muitos dos murais são produzidos sob o estímulo da organização Precita Eyes, cuja gênese está diretamente conectada com o surgimento do movimento chicano (Figs. 91 e 92).

Figura 91 - Distrito Mission, San Francisco (2018). Imagens religiosas e bandeira do Panamá no poste de rua à esquerda.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides, 2018.

Figura 92 - Juana Alícia “La Llorona’s” Sacred Waters (2004).

Fonte: Imagem de Juliana Abramides, 2018.

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Os Muralistas da Mission apresentam um posicionamento de revoltas social e espiritual; aqui a arte e a política sempre caminham juntas. A arte pública, que toma conta da região, revela um centro de militância e ativismo com apoios diretos e participação em movimentos e protestos por direitos sociais, humanos e por igualdades étnica e social. Em São Francisco, vemos as marcas deixadas pelo muralismo de Rivera no City Club, Golden Gate e San Francisco Art Institute. A sua feroz marca política inspira o respeito pelos trabalhadores; a reverência à história e a luta contra a ganância. Na progressista e colorida cidade de San Francisco, temos a certeza de que o muralismo já não é mais símbolo de uma época mas uma forma artística de se posicionar no mundo. O mural reproduzido na Figura 93 é sobre as comunidades reclamando para si o que lhes pertence, utilizando os recursos naturais que lhes foram roubados por centenas de anos, o que fez da Europa e da América do Norte lugares tão ricos enquanto os demais mantiveram-se na pauperidade.

Figura 93 - Naya Bihana (Um Novo Alvorecer), Martin Travers, 2002.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2018).

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Quando examinamos a história do capitalismo, verificamos que está situado, em sua fase inicial, na Inglaterra, na segunda metade do século XVI e início do século XVII, ocasião em que se estabelece mais prontamente a relação entre capitalistas e assalariados (isto é, antes disso, existiam relações de produção nessas qualidades, mas não ainda em escala considerável). Ou seja, estamos levando em conta o modo pelo qual se define a propriedade privada dos meios de produção e suas relações sociais. A sociedade de produção de mercadorias é anterior ao estabelecimento da sociedade do capital, relação social de produção em que também a força de trabalho se torna uma mercadoria. A partir da propriedade privada dos meios de produção e da divisão social do trabalho, as relações entre os indivíduos se aplicam na forma de alienação97 onde os homens são limitados devido à existência de classes. O capitalismo, em sua essência, estabelece a exploração do humano pelo humano, relação social que se expressa na apropriação privada da produção social e coletiva. A contradição fundante da sociedade é o domínio do capital sobre a classe trabalhadora. O capital ainda em germe, não desenvolvido, cindiu os homens de suas potencialidades. De toda forma, conforme já foi apontado, todo esse processo de desenvolvimento é fruto da produção humana e reflete o salto qualitativo em relação à natureza. Isso significa que as diversas formas de propriedades registradas na história dos homens, tais como, a primitiva, antiguidade, medieval

97A alienação (entfremdung) é uma categoria fundante de toda a elaboração de Marx, existente em todas as formas de sociabilidade, que se constituem a partir da consolidação da divisão social do trabalho, do Estado, concomitantemente à política, às classes sociais e à propriedade privada. Nessa direção, a alienação é produto da sociedade de classes. Na Idade Média, enquanto o estranhamento se efetivou, por meio da religião, na sociedade capitalista moderna concretiza-se a partir do processo produtivo. Ainda, a produção passa a se consolidar de maneira alheia aos homens, ao ser concebida como parte integrante da sociedade estranhada. Vale ressaltar que na forma mais plena da divisão social do trabalho, isto é, do capital, a alienação adquire formas específicas, a partir da instituição da sociedade salarial, quando as capacidades humanas estão estabelecidas na forma do dinheiro; sua existência é medida pela venda da força de trabalho. 151

e moderna (sociedade capitalista) devem ser entendidas como afastamento das barreiras naturais dos homens, ainda que eles mantenham relação com a natureza. A existência e organização do comércio, mercado financista, dos bancos, da moeda de troca, do sistema de empréstimo, ao longo de outros tempos histórico- econômicos, não são suficientes para constituir uma sociedade capitalista. As transações monetárias e a produção para o mercado eram comuns, no mundo medieval, por sua vez, no mundo escravocrata, a compra e venda de pessoas escravizadas era lucrativo, enquanto na classe mercantil eram os grupos intermediários entre produtores e consumidores, e diferentes da classe burguesa. O que se vê como traço de continuidade são duas coisas interligadas, ou seja, os processos de dominação de povos e divisão de classes, ao longo das sociedades escravocratas, feudal ou capitalista. Isso se, em termos gerais, falarmos dos movimentos reais combinados e complexos, com traços peculiares a essas generalizações. Nas suas fases de desenvolvimento, o capitalismo passa por transições de desenvolvimento técnico e divisão de trabalho. O que nos interessa aqui é concentrar na hipótese de que o Capital, às vezes, tem sido representado sob o aspecto de uma luta constante pela liberdade econômica, pois, na falta de controle e regulamentação, pode encontrar condições favoráveis para sua expansão, portanto o caráter anárquico do capitalismo é inerente à sua lógica. O capital, para manter sua hegemonia sobre o trabalho, precisa do Estado, força externa ao homem e instrumento para amenizar os conflitos e garantir afluência e igualdade entre os detentores dos meios de produção e, também, para continuar a usurpar as capacidades humanas a fim de garantir a concorrência e a concentração de riqueza. Logo, o Estado é uma necessidade do capital e a ele está subordinado, daí as leis, a violência para perpetuar a ordem vigente e a concorrência que garantem a sobrevivência do capital.

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As primeiras cidades burguesas não passavam dos limites da muralha e mantinham até 20 mil habitantes. O crescimento delas com o advento e a ascensão burguesa espraia-se desde as feiras, enquanto grandes centros de comércio, e, com esse crescimento, criou-se uma grande malha econômica, que estimula o início das práticas bancárias. Burguês era, na Idade Média, a pessoa que morava nos burgos, povoados protegidos por muros. Os burgos são, portanto, as cidades protegidas por muros98. Também as primeiras cidades antigas eram cercadas por muros, que tinham a função de manter a defesa militar e enfatizavam a separação da comunidade urbana e da rural. Elas apareceram 3.500 anos a.C. nos vales do Rio Nilo, no Egito, do Tigre e Eufrates - hoje o Iraque, e nos vales do Rio Indo, onde hoje é o Paquistão. O pixo da Figura 94 é de 2010, feito embaixo da ponte da Av. Sumaré,SP. O pixador buscou um nome para lançar que tivesse relação com os muros, as muralhas e escolheu Burgo.

Figura 94 - Pixo: Burgo. Assinatura: G. Pixa desde 1989.

Fonte: Imagem: Juliana Abramides, 2017.

98Também as primeiras cidades antigas eram cercadas por muros, que tinham a função de manter a defesa militar e enfatizavam a separação da comunidade urbana e da rural. Elas apareceram 3.500 anos a.C. nos vales do Rio Nilo, no Egito, do Tigre e Eufrates - hoje o Iraque, e nos vales do Rio Indo, onde hoje é o Paquistão. 153

No filme Eu, Daniel Blake, de Ken Loach, o protagonista picha a parede do prédio da previdência. Após sofrer um ataque cardíaco, o carpinteiro é desaconselhado pelos médicos a retornar ao trabalho, e Daniel Blake busca, então, receber os benefícios de auxílio doença. Entretanto, esbarra na teia da burocracia governamental, potencializada pelo fato de ser um analfabeto digital. O filme mostra a luta entre as misérias relativas ao mundo do trabalho, o controle do Estado burocrático e o poder do Capital (Fig. 95). Figura 95 - Eu, Daniel Blake (2016).

Fonte: Foto frame do filme.

A mundialização do capital e suas transformações na esfera do mundo do trabalho, do Estado e da cultura expressam a extrema acumulação e concentração do capital, ampliação da desigualdade social, agudização da pobreza, desemprego estrutural, diferentes formas da exploração do trabalho (subemprego, trabalho precarizados), ampliação do trabalho informal, diversas expressões de negligência social e de violência, entre outras. No capitalismo em chamas, o modo de crescimento econômico apresenta contradições internas que se tornam crises cíclicas, fazem parte do processo de acumulação e impulsionam a reorganização lógica de sustentação da relação social - capital. O capital é um processo, uma relação social e não uma coisa material, é um processo de reprodução da vida social por meio da produção de

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mercadorias, em que todas as pessoas do mundo capitalista estão totalmente implicadas e “[…] o processo mascara e fetichiza, alcança crescimento mediante a destruição criativa, cria novos desejos e necessidades, explora a capacidade do trabalho e do desejo humanos, transforma espaços e acelera o ritmo da vida” (HARVEY,1992, p. 307). A reorganização do capital após a última grande crise estrutural e sistêmica, com características de queda da taxa de lucro e crise de superprodução, fez ampliar a exploração e incentivar, no campo estatal, a retração dos serviços e das políticas públicas. No modo vigente do “regime de acumulação flexível”, o capital, para voltar a ampliar o lucro, busca implementar a desregulamentação das relações de trabalho, a partir do desemprego estrutural, da terceirização e redução dos direitos trabalhistas, no intuito de adotar o trabalho informal, o trabalho em tempo parcial, intermitente e por período determinado. Essas transformações precisam ocorrer no âmbito do Estado para que sejam regulamentadas socialmente, e materializadas nas reformas trabalhista, sindical e previdenciária fundamentalmente. A crise estrutural do capital, de 1973, na esfera internacional deu-se na base do modelo de produção taylorista-fordista, atingindo principalmente as taxas de lucro das economias mundiais, como a dos EUA, Inglaterra e Alemanha. Nesse momento, iniciam-se outros processos de organização do capital, que já não é mais monopolista, mas, como acentua Otília Arantes (1998, p. 139):

Estamos diante de uma rede transnacional que interliga alguns nichos de desenvolvimento espalhados pelo mundo, que por sua vez vão escasseando em virtude do ímpeto destrutivo da competição capitalista atual: essa a fonte da nova marginalidade urbana, muito diversa da que conhecemos no auge do antigo processo de modernização.

Também fazem parte deste contexto histórico o fenômeno da estagflação que corresponde à estagnação econômica com altas taxas de inflação; a crise de superprodução e da crise internacional do petróleo como elementos detonadores da estagnação econômica. O conjunto dessas determinações impõe novas estratégias de recomposição orgânica metabólica, do capital (Mészáros). O perfil do capitalismo contemporâneo, em um todo planetarizado, apresenta processos inéditos, sua dinâmica transfere a lógica interna do capital

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para todos os processos da vida cultural e o desenvolvimento da socialização e reprodução política, cultural e ideológica por meios eletrônicos - celular, televisão, game, multimídia. Sob a orientação macroeconômica internacional da financeirização da economia, realiza-se a centralização do grande capital dos monopólios e das grandes corporações internacionais, sob o jugo de superpotências imperialistas que se tornam cada vez mais mundializadas e utilizando os países periféricos para exploração da força de trabalho a partir das compras das empresas nacionais privatizadas e das garantias do direito de propriedade dos estrangeiros. A base material é organizada de forma que, para reproduzir os seres sociais - nós precisamos fazer parte desse processo; aliás, a (re)produção refere-se justamente à produção da vida material e reprodução do modo de vida. E o sistema econômico-social capitalista atinge altos patamares de desenvolvimento, em curto período de tempo, ao longo de transformações abrangentes e difusas, por meio da nova divisão internacional do trabalho; de empresas transnacionais dinâmicas e rápidas; e intensa movimentação bancária internacional. A acumulação flexível, como resposta do capital à sua própria crise, no mundo do trabalho, advinda da reestruturação produtiva, atinge a objetividade e a subjetividade da classe trabalhadora, ocasionando desemprego estrutural; precarização do trabalho; diminuição de postos de trabalho; salários variáveis; contratos flexíveis; ampliação do trabalho informal, precarizado, temporário, intermitente, e na quebra de direitos sociais e trabalhistas99. A realidade no mundo do trabalho encontra-se atravessados pela implantação do neoliberalismo, um projeto político de Estado que redefine as regras, as relações sociais e as representações coletivas adequadas à realização do capital.100 A Nova gerência liberal quanto às políticas públicas: com a redução de dotação

99Ver: Harvey (1992) e Antunes (1995). 100“O balanço do neoliberalismo é provisório, pois esse é um movimento ainda inacabado. O veredicto, porém nos países mais ricos do mundo em que seus frutos parecem maduros pode-se dizer: Economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o neoliberalismo conseguiu muito de seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais desiguais, embora não tão desestatizadas como queria. Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores jamais sonharam, disseminando a simples ideia de que não há mais alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se às suas normas […]. Esse fenômeno chama-se hegemonia, ainda que, naturalmente, milhões de pessoas não acreditem em suas receitas e resistam a seus regimes” (ANDERSON, 1995, p. 22). 156

orçamentária para políticas sociais universais, como educação e saúde, privatizações e um conjunto de contrarreformas (do Estado, do ensino superior, previdenciária, sindical e trabalhista); está na ponta um estado punitivo e carcerário; atingindo e precarizando ainda mais a classe que só tem a vender a sua força de trabalho. A sociedade de classes cria cisões entre os seres e como esse modo operante de ser no dia a dia está vinculado ao processo de dominação? Vejamos, a maioria dos/as trabalhadores/as deve acordar cedo; pegar transporte lotado por duas horas101 ou mais e trabalhar o dia todo, chegar em casa exaustos/as, fazer comida, cuidar das crianças/adolescentes e no dia seguinte a história repete-se. Sobrando um dia de folga na semana, o que resta a fazer: o prazer, comer, embriagar-se, dançar, transar e, se der tempo, pois ainda tem-se as roupas a serem lavadas e passadas, o cuidado e as brincadeiras com as crianças, arrumar a casa, etc. Segundo Loicq Wacquant (2012)102, o surgimento de um novo regime de "marginalidade avançada" é impulsionado pela fragmentação do trabalho assalariado, o recuo do estado social e a disseminação da estigmatização territorial. Isso foi confirmado na década de 1990, quando um governo de esquerda após o outro atravessou a luta contra a criminalidade nas ruas até o posto de prioridade nacional, nas zonas urbanas, em que a insegurança social se aprofundava, com a normalização do desemprego e dos empregos precários. A penalização da pobreza emerge como elemento central da implementação do projeto neoliberal, o 'punho de ferro' do estado penal, acasalando-se com a 'mão invisível' do mercado, em conjunção com o desgaste da rede de segurança social.

Mapeando o boom carcerário da América depois de 1973, ficou claro que a retração acelerada do bem-estar social, levando à infame "reforma do bem-estar" de 1996, e a expansão explosiva da justiça criminal eram duas mudanças convergentes e complementares para a regulação punitiva da pobreza racializada; que o "workfare" disciplinar e o "prisonare" castigatório supervisionam as mesmas populações despojadas e desonradas desestabilizadas pela dissolução do pacto fordista-keynesiano e concentradas nos distritos depreciados da cidade polarizada; e que colocar as frações marginalizadas da classe trabalhadora pós- industrial sob rígida tutela guiada pelo behaviorismo moral oferece um estágio teatral privilegiado no qual as elites governantes podem projetar a autoridade do Estado e reforçar o déficit de legitimidade que sofrem sempre que abandonam suas missões estabelecidas. proteção social e econômica. (WACQUANT, 2012, p. 68, grifos do autor).

101 Vídeo: Terminal Grajaú, Humilhação Coletiva, publicado em 28 de agosto de 2013, mostra a precariedade da mobilidade dos/as trabalhadores/as na cidade de São Paulo, com enfoque no terminal Grajaú (Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cuXKJvLHUgM&t=2s. Acesso em: mar. 2019). 102O autor chega às ruas do hyper ghetto (hiperghetto); às profundezas do gigantesco sistema carcerário americano, a partir do trabalho de campo sobre as estratégias de vida de jovens afro-americanos em Chicago. 157

Há um número indefinido de processos nascidos da hibridização contínua de práticas e ideias neoliberais com as condições e formas locais. Para salvaguardar as instituições financeiras e reprimir a resistência popular, o neoliberalismo não é uma ideologia econômica ou um pacote de políticas, mas uma 'normatividade generalizada’ (WACQUANT, 2012). A busca antropológica do neoliberalismo como elaboração de Estado, conforme o mercado, centra-se no mecanismo institucional para estabelecer a dominação e seu impacto operacional para a adesão social. Loïc defende que o Estado regula ativamente - em vez de "desregulamentar" - a economia em favor das corporações transforma o apoio social em um vetor de disciplina; e o direito ao desenvolvimento pessoal em uma obrigação de trabalhar em empregos precários. Nesse sentido, o autor estabelece três teses sobre a reconstrução do Estado (e não redução ou minimização) como uma máquina de estratificação. Tese 1: O neoliberalismo não é um projeto econômico, mas um projeto político; o que implica não o desmantelamento, mas a reengenharia do estado. Em primeiro lugar, os mercados, em toda parte, são e sempre foram criações políticas: são sistemas de troca baseados em preços que seguem regras que devem ser estabelecidas e arbitradas por autoridades políticas robustas e apoiadas por amplos mecanismos legais e administrativos, que, na era moderna, equivale a instituições estatais. Em segundo, as relações sociais e os construtos culturais necessariamente sustentam as trocas econômicas e as pessoas normalmente se irritam com as sanções do mercado: o Estado deve intervir e superar a oposição e controlar as estratégias de evasão. Em terceiro, o neoliberalismo não tentou restaurar o liberalismo do final do século XIX, mas superar a falsa concepção de Estado do último século. Tal reengenharia institucional pauta-se nos mecanismos do mercado; na política social disciplinar, com a mudança do bem-estar protetor, concedida categoricamente como direito, para o trabalho corretivo, sob o qual a assistência social é condicionada à submissão ao emprego flexível e implica mandatos comportamentais específicos (treinamento, testes, procura de emprego); a política espacial expansionista, pela difusão da insegurança social nas zonas urbanas impactadas pelo trabalho flexível e pela organização da soberania do Estado controlador; e, por último, a responsabilidade individual como discurso motivador e fluxo cultural que compõem esses vários componentes da atividade

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do Estado. Essa concepção vai além da perspectiva da regra de mercado, na medida em que concede papel dinâmico ao estado nas quatro frentes: econômica, social, penal e cultural. Tese 2: O neoliberalismo implica uma inclinação para a direita do campo burocrático. Aqui o autor recupera Bourdieu, e sugere que o estado contemporâneo é atravessado por duas batalhas internas que são homólogas aos confrontos no espaço social: a batalha vertical (entre dominantes e dominados) opõe a “nobreza de alto estado” dos formuladores de políticas com noções neoliberais e que desejam fomentar a mercantilização; e a "nobreza do baixo estado" dos executantes que defendem as missões de proteção da burocracia pública. A “mão direita” é a ala econômica que pretende impor restrições fiscais e disciplina de mercado, e a "mão esquerda", o estado, a ala social, que protege e apoia as categorias desprovidas de capital econômico e cultural. A via da justiça criminal - a polícia, os tribunais, a prisão e suas extensões: condicional, liberdade condicional, bases de dados judiciais, responsabilidades civis e burocráticas ligadas a sanções criminais, são um componente do Estado disciplinador (mão direita).

It follows that the velocity, magnitude and Segue-se que a velocidade, a magnitude e effects of this institutional torque will vary os efeitos da toada institucional variam de from country to country, depending on its país para país, dependendo de sua posição position in the international order, the na ordem internacional, da composição de makeup of its national field of power and seu campo nacional de poder e da the configuration of its social space and configuração de seu espaço social e cultural divisions. (WACQUANT, 2012, p. divisões culturais. (WACQUANT, 2012, p. 74). 74).

Tese 3: O crescimento e a glorificação da ala penal do estado são um componente integral do Leviatã neoliberal. Com poucas e precisas exceções (Canadá, Alemanha, Áustria e partes da Escandinávia), o encarceramento aumentou em todas as sociedades pós-industriais do Ocidente; cresceu nas nações pós-ditaduras da América Latina e explodiu nos estados-nações. A constituição dos pobres urbanos está fadada ao sistema prisional, à precarização do trabalho; o que se encontra composto dos imigrantes em situação de trabalho ilegal e semiescravidão; os pauperizados: pessoas em situação de rua, com deficiência mental, ou física, e os idosos; a população estagnada: trabalhadores com condições de vida e trabalho insalubres e mal pagos (BRAGA,

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2013). Por exemplo, em junho de 2013, os donos e gerentes de 14 lojas Seven Eleven, nos EUA, foram indiciados e cobrados por fazerem “o sistema de plantation contemporânea”, forçando imigrantes sem documentos a trabalhar cem horas por semana, mas pagando-lhes menos do que o mínimo e forçando- os a viver em habitações lotadas e degradadas. Existe uma parcela populacional à espera do trabalho que. com a precarização do trabalho e o corte em políticas sociais, conforma-se nos pobres urbanos; os mesmos que vivem em condições alarmantes no cotidiano e que acabam por aceitar o trabalho e salário que tiver em vista a desregulamentação trabalhista ou mesmo a falta de qualquer regulação prévia. O aumento implacável da população carcerária é, além disso, apenas uma manifestação grosseira e superficial da expansão e exaltação do Estado penal na era do mercado em glória. Outros indicadores incluem o desdobramento agressivo da polícia nos bairros, com a propaganda midiática do perigo criminal constante e do combate ao “crime” como prioridade dos governos neoliberais. Não é por acaso que os EUA ficaram hiper punitivos depois de meados da década de 1970, assim como o trabalho precarizado, o apoio social foi revertido, o gueto negro implodiu e a pobreza endureceu, na metrópole dualista. Não é por acaso que o Chile se tornou o principal encarcerador da América Latina, no início dos anos 80 e o Reino Unido a locomotiva penal da União Europeia, no final dos anos 90, quando o Estado se torna neoliberal. Existe profunda conexão estrutural e funcional entre o domínio do mercado e a punição, após o fim da era keynesiana-fordista. Em novembro de 1990, assume a presidência dos EUA Ronald Reagan e, em 1994, inicia-se a reestruturação produtiva na América, com ondas de milhões de demissões e aumento da carga de trabalho com o mesmo salário; enquanto isso, os americanos mais ricos tiveram um corte de metade dos impostos. Com o congelamento de salários, houve aumento de empréstimos, explosão de falências pessoais, crescimento do uso de antidepressivos e encarceramento em massa, e subida dos custos de saúde. O Estado penal foi implantado nos países que percorreram o caminho neoliberal porque promete ajudar a resolver os dois dilemas. a mercantilização criada para a manutenção da ordem social e política: (1) reprime os crescentes deslocamentos causados pela normalização da insegurança social na base da classe

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e da estrutura urbana; e (2) restaura a autoridade da elite governante, ao reafirmar a “lei e ordem”, justamente quando essa autoridade está sendo minada pelos fluxos acelerados de dinheiro, capital, sinais e pessoas, além das fronteiras nacionais e pela limitação da ação estatal por parte dos governos, órgãos supranacionais e capital financeiro. O conceito de campo burocrático ajuda a capturar essas missões de punição gêmeas na medida em que nos direciona a prestar igual atenção aos momentos materiais e simbólicos da política pública - aqui, ao papel instrumental do disciplinamento de classes e à missão comunicativa de projetar soberania, a justiça assume. Também nos convida a passar de uma concepção repressiva para produtiva de penalidade, que enfatiza sua qualidade performativa (WACQUANT, 2008b), de tal forma que podemos discernir que o aumento de orçamentos, pessoal e precedência dada aos órgãos policiais e judiciais, em todas as sociedades transformadas pelo neoliberalismo, como programa econômico, não são uma heresia, uma anomalia ou um fenômeno transitório, mas componentes integrais do estado neoliberal. Adentrando o universo carcerário, há algumas décadas, nos EUA, os encarcerados são os negros e latinos; 13% da população no país é negra e 40% da população está presa. Além da prisão seletiva e das péssimas condições nas prisões103, o sistema de encarceramento em massa não funciona, tendo em vista que 70% dos presos voltam aos sistema prisional em três anos104. Os EUA abriga 5% da população mundial e 25% dos presos no mundo e o Brasil é o 3o país no mundo em total de população carcerária. O projeto neoliberal, de caráter conservador e punitivo, expressa a naturalização da sociedade capitalista e das desigualdades sociais a ele inerentes, tidas como inevitáveis. Essa forma política realiza ainda o desmonte das conquistas sociais acumuladas no processo de luta da classe trabalhadora consubstanciadas na conquista de direitos sociais. Os EUA, um país que segue o modelo de gestão neoliberal, do Estado Mínimo; o país dos grandes monopólios, como a Amazon, o Facebook e o Google,

103Em 2013, estima-se que 30 mil presos, nas prisões de toda a Califórnia, tenham participado de uma greve de fome para protestar contra o confinamento solitário e outras condições de tortura. 104Sobre sistema carcerário: a sociedade escandinava adotou um modelo de suspensão de liberdade com dormitório privativo, lavanderia e comida feita pelos presos, ajuda coletiva de mentores que são preparados por 3 anos para o cuidado, conhecimento de psicologia e valores comunitários; Os presos são encorajados a guardar dinheiro de ao menos 50% do que ganham; o trabalho na prisão tem o mesmo valor-hora médio de fora da prisão e as celas são quartos com duas trancas, sendo a tranca de fora usada apenas para a pernoite. 161

apresenta uma grande parcela da população em situação de precariedade. A média de riqueza estadunidense, por raça, no ano de 2016, era de US$ 171 mil da família branca e US$ 17.600 da família afro-americana. Em muitas comunidades, o sistema prisional está repleto de pessoas negras, e apenas 30% da população de americanos negros se forma na universidade. A desigualdade só aumentou, ao longo dos últimos cem anos. Os afro- americanos ganham menos, e estão mais suscetíveis ao desemprego, em decorrência da discriminação racial dos patrões. Por outro lado, 75% de brancos são proprietários de casas, enquanto menos de 50% de negros e latinos compõem essa porcentagem. A desigualdade, em relação à propriedade, acumulou por séculos o valor da moradia. Durante a grande depressão, quase 50% dos proprietários urbanos estavam endividados e, então, Franklin Roosevelt deu início ao New Deal, quando a população passa a ter o direito ao crédito hipotecário; no entanto, a administração federal não o concedeu em áreas que considerava de risco, geralmente calculado com base em raça. A mudança de uma família negra era uma ameaça ao preço dos imóveis. Quando a administração federal de hipotecas fez o mapa indicador de quais seriam as áreas de risco, pintou de vermelho as regiões com mais famílias negras. Os frutos do racismo viraram justificativa para mais racismo, pois a segregação afetou o acesso a empregos; a classificação da escola como segura; a valorização imobiliária. Os EUA, a terra das oportunidades? A lacuna entre ricos e pobres, nos últimos 30 anos, aumentou e os ricos ficaram ainda mais ricos. Os underclass, novos pobres urbanos, incluem muitos afro-americanos, que estão retidos por mais de uma geração no ciclo de pobreza. São os mais pobres que vivem em bairros com tráfico de drogas, gangues e violência, nas grandes metrópoles. E os negros são as pessoas que mais encontram barreiras para adquirir riquezas.

Figura 96 - Little Tokyo/LA (2018)

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Fonte: Imagem de Juliana Abramides, 2018.

Em Paulicéia Desvairada (1922), Mário de Andrade insulta o burguês e ataca as elites retrógradas que atuam no capitalismo105 dos anos 1920 na metrópole industrializada da cidade de São Paulo. O autor, partícipe do empenho modernista para destruir um passado literário, político e cultural que mantinha a sociedade brasileira amarrada a comportamentos que vigoraram em fins do século XIX, se questiona: Afinal, quem é esse burguês que se encontra plasmado da herança conservadora do passado? Quem é o burguês em sua ode? É o inimigo indiferente à modernização estética e social; o ser refugiado na bolha social e linguística. O asséptico satisfeito de si, diz Mário: Eu insulto o burguês-funesto! O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições! Fora os que algarismam os amanhãs! Olha a vida dos nossos setembros! Fará Sol? Choverá? Arlequinal! Mas à chuva dos rosais O êxtase fará sempre Sol! (Mário de Andrade, 1922).

Enquanto Oswald de Andrade enfatizava a decadência da burguesia cafeicultora, Mário de Andrade, ao criticar o burguês urbano, expressava o ritmo

105 Categoria de interpretação histórica. 163

da modernização e restauração da cidade de São Paulo. A metropolização torna- se objeto do exercício poético desse escritor106. A cidade é tema fundamental de seu primeiro e último livro de poesia: Paulicéia Desvairada (1922) e Lira Paulistana (1945). Do ponto de vista formal, são versos livres, uma linguagem coloquial marcada pela irreverência e crítica às convenções burguesas, elemento tanto da estrutura formal quanto do conteúdo crítico e radicalmente contrário à burguesia, no mais importante momento histórico-cultural do século XX, que dá origem às expressões artísticas concentradas na Semana de Arte Moderna, no caso brasileiro, mas, no todo, críticas que já eram feitas no romantismo e que se agudizam no modernismo; a postura revolucionária no intento de romper com os velhos padrões na arte e literatura. Figura 97 - Casarão na Avenida Paulista, 1919, entre as ruas Pd. João Manuel e Alameda Ministro Rocha Azevedo, construído em 1905, foi a residência do Barão do Café, Joaquim Franco de Mello

Fonte: Imagem por Julio Rocha, 2016 (companheiro da autora).

Os processos de modernização e de modificação urbanas acontecem inúmeras vezes ao longo da reprodução do capital. [...] a urbanização do capital pressupõe a capacidade de o poder de classe capitalista dominar o processo urbano. Isso implica a dominação da classe capitalista não apenas sobre os aparelhos de Estado (em particular, as instâncias do poder estatal que administram e governam as condições sociais e infraestruturais nas estruturas territoriais), como também sobre populações inteiras -

106 Em 1922, depois de ter participado da Semana de Arte Moderna, lançou a primeira edição de Paulicéia Desvairada. Sobre a cidade, publicou também outros livros de poemas, como Lira Paulistana (1945). 164

seus estilos de vida, sua capacidade de trabalho, seus valores culturais e políticos, suas visões de mundo. (HARVEY, 2014, p. 133).

O poeta modernista está consciente das modificações modernizantes de sua cidade natal, no processo de expansão do capital, e busca uma linguagem para exprimir a metrópole. A cidade explode em setores de comércio e indústria. Demograficamente e na implantação de equipamentos e serviços, ocorrem a crescente ebulição e reprodução do espaço urbano destinadas à valorização do solo urbano. Nesse processo, a metrópole paulistana cria uma identidade própria com a verticalização do maior centro da América do Sul. À época de Mário de Andrade, o momento estético parametriza-se por um modernismo importado da Europa, na “vanguarda brasileira”107. Há uma independência mental brasileira, mas com claras inclinações para as influências europeias, ao mesmo tempo em que conseguir uma expressão artística brasileira era um dos principais objetivos do modernismo. Em 1942, Mário de Andrade situou os alvos do movimento: o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional. Essa busca da brasilidade respondia, no plano cultural, às profundas modificações vividas pela sociedade brasileira e, especialmente, pelas elites paulistas, nos primeiros 20 anos do século XX. Anos de intensa ebulição cultural e do nascimento, no Brasil, da cultura urbana. A abolição da escravatura, a industrialização, os ciclos migratórios, deslocaram a supremacia da aristocracia rural para uma oligarquia urbana de sotaque estrangeiro, no intenso crescimento do intercâmbio com a Europa e os EUA. No século XXI, a Europa Central perde esse caráter influenciador das tendências artísticas e culturais, e torna-se inegável o potencial influenciador dos EUA na cultura mundializada - num mundo em que o imperialismo burguês apresenta caráter hegemônico. A ética consumista hedonista propõe o modelo estandardizado, a hiperglobalização, a partir da esfera de mercado global, que têm na revolução informacional a agilidade para fixar imagens que influenciam, a partir da cultura do consumismo, culturas do mundo inteiro.

107Tarsila do Amaral, de família rica alicerçada na fortuna do latifúndio e da monocultura cafeeira, estuda na Europa; Oswald, 10 anos antes da semana de 22 também volta da Europa impressionado com os movimentos renovadores, como o futurismo de Marinetti, e os versos livres de Paul Fort; Anita Malfatti estuda na Alemanha e nos EUA no choque de se romper com a tradição predecessora dos objetos e faces delimitadas pelo expressionismo e as paisagens deformadas; o escultor Victor Brecheret volta de Roma/Itália em 1917. 165

Para Trotsky, do ponto de vista histórico-antropológico, a civilização aparece com o surgimento da cultura (kultur), isto é, quando agrupamentos humanos criam e transmitem formas de conhecimento, valores e representações. Vinculados a um modo específico de produção da vida material de dadas sociedade e época, trabalho e cultura estão nas raízes do processo de constituição e desenvolvimento humana/o. É pelo trabalho que o ser se autoproduz e satisfaz as necessidades de sobrevivência enquanto conservação da existência: alimentos, proteção, roupas, habitação, comida e bebida. Após satisfeitas as necessidades básicas, outras aparecem e o atendimento dessas novas necessidades constitui o primeiro ato histórico. Por outro lado, em Lukács, a cultura aparece de maneira oposta à civilização (Zivilisation), compreendendo o conjunto das objetivações dotadas de valor e supérfluo ao sustento imediato. “Por exemplo, a beleza interna de uma casa pertence ao conceito de cultura; não sua solidez, nem sua calefação, etc.”

(LUKÁCS, 1978, p. 3]. Em Marcuse (1982), há um conceito de cultura geral que expressa a implicação do espírito no processo da totalidade da vida social em determinado momento histórico, tendo em vista que a reprodução de ideias – nos âmbitos cultural e espiritual – e a reprodução material – a civilização – devem ser entendidas como unidade indissolúvel. A cultura é articulada às outras esferas da vida social, e decifrada nas tendências sociais gerais dos fenômenos e pelos quais seus interesses se realizam. Nos últimos 40 anos, as mudanças na economia e na política, acentuam as modificações nas demais esferas da vida social. A condição do capitalismo mundial alterou-se muito e no âmago desse processo a lógica cultural do “capitalismo tardio”108(JAMESON,1984) também se modifica. O tempo e o espaço sociais são constructos culturais que dependem, portanto, do modo distinto de produção agregado de conceitos sociais de espaço e tempo (HARVEY, 1992). A apreensão do tempo na atualidade coloca o indivíduo refém do instante presente por não se abrir ao passado e nem ao futuro, o que permite dizer que a atuação em projetos, do indivíduo que não apresenta identidade pessoal, a qual depende da persistência do ‘eu’ através do tempo, será nula, pois, este não se lança ao futuro. A sociedade industrial dependia de uma identidade persistente a

108 Ou capitalismo transnacional, sociedade da imagem, capitalista midiático. Lembramos que Jameson parte de Derrida e Guy Debord para as elaborações teóricas às quais temos nos referido. 166

sociedade do esgotamento (Byung-Chul Han) necessita de flexibilidade, multitarefa para o aumento produtivo. Assim considerado pela linha do pensamento crítico americano, o pós- moderno109 caracteriza a dimensão cultural da fase superior do capitalismo avançado (HARVEY, 1992). Na pós-modernidade, embora incorpore a razão instrumental caracterizada na modernidade, expressão cultural do capitalismo em seu período de expansão econômica, consubstanciado no fordismo e na política de bem-estar social do Estado keynesiano, acrescentam-se ainda formas irracionalistas de apreensão, expressão e representação da realidade. Quando, em 1984, faz o ensaio Mapeando o Pós-moderno, Andreas Huyssen indica que a trajetória do pós-moderno apresenta uma confusão de códigos, o que dificulta o entendimento e a demarcação desse período histórico. De toda forma, o autor identifica que ali, na década de 1980, há uma transformação cultural sensível em curso, que modifica os parâmetros na estética e nos modos culturais, no entanto, seu ponto de vista difere do defendido por Fredric Jameson110, pois o último, identifica o pós-moderno com a lógica de um novo estágio de desenvolvimento do capital, não nos esqueçamos que, é também na década de 80, o principal momento em que no complexo de reestruturação produtiva, o Toyotismo111, alcança poder ideológico na era da mundialização do capital e de sua forma societal manipulatória. Nosso entendimento é que, se continuamos no capitalismo em chamas, não é possível ser outro tempo histórico e a relação de continuidade mantida, ou não, já que o próprio termo ‘pós-modernismo’ o estabelece enquanto fenômeno relacional: “O modernismo do qual o pós-modernismo se separa permanece

109 “Para começar, alguns breves comentários sobre a trajetória e as migrações do termo `pós- modernismo`. Em crítica literária, a expressão remonta ao fim da década de 50, quando o termo foi usado por Irving Howe e Harry Levin para lamentar a queda de nível do movimento modernista. [...] foi usado enfaticamente pela primeira vez nos anos 60 por críticos literários como Leslie Fiedler e Ihab Hassan, que sustentaram visões amplamente divergentes do que fosse literatura pós-moderna. Foi somente no início até meados da década de 70 que o termo ganhou um curso mais geral, aplicando-se primeiramente à arquitetura e depois à dança, ao teatro, à pintura, ao cinema e à música.” (HUYSSEN, 1984, p. 24 - self made translation). 110 Jameson foi estimulado pelo estudo de Ernest Mandel - Late Capitalism/O Capitalismo Tardio/ de 1977. 111 “[...] o potencial heurístico do conceito de toyotismo é limitado `a compreensão de uma nova lógica de produção de mercadorias, novos princípios de administração da produção capitalista, de gestão da força de trabalho, cujo valor universal é constituir uma nova hegemonia do capital na produção, por meio da captura da subjetividade operária pela lógica do capital.” (ALVES, 2010, p.31). 167

inscrito na própria palavra com a qual descrevemos nossa distância do modernismo” (HUYSSEN, 1984, p. 22). Passados todos esses anos, conseguimos identificar novas formas estéticas ou reciclagens do modernismo, ou mesmo outros tempos históricos da cultura? Se o consideramos um tempo histórico, o pós-modernismo ainda está vigente? Quais as características potencialmente transformadoras, na perspectiva emancipatória, que se vinculam a um ideário pós-moderno? Em termos de arte, a vertente crítica deixa de existir? Se levarmos ao campo da arte conceitual contemporânea, talvez sim. Mas basta olhar para o rap, o teatro e as artes urbanas para sabermos que há uma busca potencial de crítica social fundante. Partimos para a análise do pós-moderno enquanto uma ideologia, ou "uma forma específica de consciência social, materialmente ancorada e sustentada" (MÉSZÁROS, 1996, p. 22), donde a cultura se caracteriza como elemento específico da sociedade de consumo, um processo de culturalização, tal como vemos em Jameson. A dinâmica ideocultural do pós-moderno contribui para reverter os avanços políticos da década de 1960 e o avanço ao conservadorismo? Ou essa dinâmica está imbuída de críticas e rebate exatamente a perda desse poder de questionamento que o “alto modernismo” atinge ? A cultura vincula-se aos sujeitos históricos que a produzem e, portanto, se vincula a certas condições de existência, produção e reprodução social.

até que ponto modernismo e vanguarda, como formas de uma cultura de oposição, estiveram, entretanto, conceitual e praticamente ligadas à modernização capitalista e/ou ao vanguardismo comunista, esse irmão gêmeo da modernização. (HUYSSEN, 1984, p. 24).

Se o modernismo continha, no seu interior, o racionalismo, o movimento futurista e concretista e o anticapitalismo radical, romântico e utópico, também continham os posicionamentos modernizantes e os antimodernos. Não podemos crer que a versão do modernismo tão somente triunfou e, portanto, a nossa referência para a cultura unicamente pode ser ela e nos esquivar íamos prontamente do “pós-modernismo”, sendo que, como diz José Paulo Netto (2010, p. 15): “O que se pode designar como movimento pós-moderno constitui um campo ídeo-teórico muito heterogêneo e, especialmente no terreno das suas inclinações políticas, pode-se mesmo distinguir uma teorização pós-moderna de capitulação e outra de oposição” (grifos do autor).

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Na década de 1960, nos EUA, nas artes, o estatuto de museu surge como detentor de seleção da riqueza artística. A fase inicial do pós-modernismo envolve um ataque iconoclástico à “arte institucional” (BÜRGUER, 2008). O modo como a arte é socialmente percebida e como é produzida, distribuída, comercializada e consumida. Na teoria da vanguarda, o autor argumenta que a principal meta das vanguardas europeias - o movimento Dadá, o início do movimento surrealista e toda a arte de vanguarda pós-revolução soviética -, foi atacar e minar a arte institucional burguesa. Ou seja, a separação da “grande arte” da vida cotidiana. Como vemos nas defesas de Trotski (1981), a fusão entre arte e vida, quer romper com a tradição da “obra de arte autônoma”. A arte moderna emancipa-se de instâncias das quais dependia, como o reino, a aristocracia, o clérigo, a igreja. A/o artista individual ganha notoriedade pelo desenvolvimento autônomo imputado nas obras de arte. A principal característica da arte na idade moderna é sem dúvida a autonomia. A ordem burguesa não só liberou a arte de suas tutelas tradicionais (da igreja à corte), como instalou-se num mundo à parte, muito além do domínio material da reprodução da vida. Graças a essa transcendência da dimensão estética, passou para o primeiro plano o livre desenvolvimento da obra segundo sua legalidade interna. [...]. A arte autônoma deve portanto sua emancipação à racionalização capitalista da dimensão cultural. [...] Cumprindo seu destino moderno, a arte verá sua autonomia converter-se em princípio de dissolução. (ARANTES, 1998, p. 22).

Na década de 1960, a politização da cultura, caracterizada como de contestação, tem, em uma de suas vertentes, o discurso anti-institucional, que se torna força motriz para os pós-modernistas americanos:

Talvez pela primeira vez na cultura norte-americana fez sentido político uma revolta vanguardista contra uma tradição de grande arte e o que era percebido como seu papel hegemônico. A grande arte havia florescido e se institucionalizado na cultura burguesa dos museus, galerias, concertos, discos e livros de bolsos dos anos 50. (HUYSSEN, 1991, p. 38).

Essa vanguarda anti-institucional é a da contracultura, dos movimentos pacifistas, das revoltas universitárias, de visão antagônica à “grande arte” dos museus, identificadas com aquelas vanguardas e que está vivenciando o primeiro dos diversos momentos de booms tecnológicos. São dessa década o primeiro chip, a fita cassete, a TV em cores, o braço mecânico automatizado – o robô industrial. Os formatos de performances, happenings, vídeo-arte, as artes psicodélicas, os teatros alternativos e de rua abraçam as novas tecnologias pós-industriais (1960,

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70 e 80) que se tornam parte da estética do pós-moderno, isso mesmo nos dias atuais quando se convenciona o uso dos microfones sem fio, por exemplo, nas performances, uma tecnologia surgida na década de 1980. Os anos 1960 foram de questionamentos políticos e também artísticos quanto ao papel do artista, a função do público, o sistema artístico de produção e exposição. O público é repensado em posições ativas, retirando-o de uma situação contemplativa perante a produção artística. Questiona-se também a ideia de obra como algo relativo ao divino, eterno e merecedor de contemplação, surgindo a ideia de difundir a arte no cotidiano e mesmo apresentá-la efemeramente. Questionavam-se instâncias até então legitimadoras da arte: os museus, as galerias, os institutos e também o mercado de arte, o que resultou em crescente negação e insubordinação dos artistas112. Quando então o pós-moderno passa a ser o tempo de hegemonia do capital? Justamente o tempo em que o pensamento da oposição não é mais operante na cultura, do ponto de vista da crítica teleológica, no momento de radicalidade do fetichismo da mercadoria como a nossa natureza e realidade únicas e a pulsão de morte, o conformismo, a indiferenciação e o hedonismo enquanto realização do ser, tomam conta (HANSEN, 2000).Na década de 1970 é que a noção teleológica começa a ser extinta e se inicia o período “pós- vanguardas”; as distinções perdem terreno, os movimentos da década anterior passam a ser questionados. Esse é o momento em que ganha força o fragmento, a dispersão, o pastiche, o saque do vocabulário, imagens, temas e formas pré- modernos, não modernos e modernos. Em 1970, as bases de sustentação do capitalismo mundial começam a mostrar sinais visíveis de exaurimento em suas formas de produção e reprodução, impulsionando uma das maiores crises do modo de produção capitalista: a crise de superprodução, a queda tendencial da taxa de lucro, crise do petróleo, o fim do padrão ouro internacional, e início da derrocada de um tipo de ideário socialista - com a crise do socialismo real existente. Desse momento em diante, passamos a armazenar tudo nos computadores e a cultura de massas, que incorpora todas as conquistas artísticas no campo da

112 Utilizar-se dos espaços abertos de maneira a assumir novas relações entre o privado e o público, em oposição à academia, às escolas de artes e às galerias, e nascer enquanto arte de protesto é um dos potenciais das artes de rua. 170

publicidade, ganha vida. Naquela década, há o advento dos microprocessadores, e em 1976 o Apple I torna-se o primeiro computador pessoal. Também se embaralham as noções daquilo que se torna uma lacuna e um borrão, entre a grande arte e a cultura de massas, em que tudo se torna arte, e se cristaliza em princípios do século XXI. A valorização extremada do prazer imediato e individual nasce no mundo capitalista moderno. Na etapa atual histórica, a cultura é também produto, a partir da venda dos “estilos de vida”, a cada nova tendência e novo padrão de comportamento individual e social, surgem novos nichos de mercado: “a produção estética hoje está integrada à produção das mercadorias em geral: a urgência desvairada da economia em produzir novas séries de produtos que cada vez mais pareçam novidades” (JAMESON, 1991, p. 30). Será bem-sucedida a tese de que a pós-modernidade é a força motriz de influência na reprodução cultural na contemporaneidade? E em que medida? Tudo é arte ou o fim da “obra de arte?” Mas, e as razões de ser dos movimentos neoconservadores, neofascistas, reacionários, estarão vinculados a esse ideário? Ou como entender a relação dialética entre alvorecer e decadência, destruição e novos processos de encadeamentos artísticos? Para David Harvey (1993), a experiência da temporalidade humana, na “condição pós-moderna” é esquizofrênica113. O esquizofrênico é aquele que vive num presente perpétuo sem fazer conexões entre passado, presente e futuro. A experiência concreta do tempo pode se dar pela linguagem, quando conectamos fatos da nossa história em frases, mas o esquizofrênico não chega a articular a linguagem dessa maneira, vivenciando, portanto, como assinala Frederic Jameson (1984, p. 22), que será “[…] uma experiência da materialidade significante isolada, desconectada e descontínua que não consegue encadear- se em uma sequência coerente”. A apreensão do tempo, na atualidade, coloca o indivíduo refém do instante presente numa “contemplação virtual hipnótica” por não se abrir ao passado e nem ao futuro, o que permite dizer que a atuação em projetos é do indivíduo que não apresenta identidade pessoal, a qual “[…] depende da nossa persistência do ‘eu’ e de ‘mim’ através do tempo” (idem), será nula, pois o homem, como projeto, é

113 A esquizofrenia refere-se aqui a um modo de compreender a realidade; nesse sentido, não se propõe, de forma alguma, a constituir-se como diagnóstico. 171

aquele que se lança ao futuro. Jameson continua:“O esquizofrênico está sujeito desse modo a uma visão indiferenciada do mundo no presente, uma experiência que não é de modo algum agradável” (1984, p. 23). O presentismo como ideologia dominante da pós-modernidade dá sustentação a todas as formas de alienação, em que a fuga da realidade anestesiada na imediaticidade do prazer interfere no modo de vida dos seres sociais. É o que notamos no bojo de tal conjunto heterogêneo de ideias e valores - a ressonância cultural cotidiana e não apenas no campo da arte ou no campo estético. E aqui, novamente, concordamos com Jameson quanto a uma lógica cultural da sociedade “pós-industrial”, em algo colado ao econômico, por isso ser difícil examiná-la em separado. A “cultura de consumo” devora objetos, ideias e ideais “[...] e, nela, a própria distinção entre realidade e representações é esfumaçada: promove-se uma semiologização do real, em que os significantes se autonomizam em face dos referentes materiais e, no limite, se entificam”. (NETTO, 2010, p. 14, grifos do autor). Se pensarmos no potencial da comunicação nesse processo como um elemento importante que se aglutina à fase a-histórica da ideologia, verifica-se a produção cultural do mundo todo de muitos períodos históricos, o que complementa a “aflição contemporânea” de que tudo já foi feito. Parece que um ideário pós-moderno se aproveita justamente da crise do moderno.

O incêndio do prédio do Museu Nacional114, na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro em 2018, é o símbolo da falência da sociedade brasileira e de um tipo

114 Em 10 junho de 2018, o Museu Nacional, localizado no Rio de Janeiro completou 200 anos, pouco menos de 2 meses depois, foi devastado pelas chamas. Em 2010, o incêndio foi no Instituto Butantã; em 2013, no Memorial da América Latina; em 2014, o Liceu de Artes; em 2015, o Museu da Língua Portuguesa; em 2016, a Cinemateca; e agora, em 2018, o Museu Nacional. O Museu Nacional continha, entre tantos itens, o maior acervo de peças, documentos e pesquisas sobre os povos indígenas na América do Sul. Coleções etnográficas, de aracnídeos, borboletas, insetos e moluscos, fósseis, a biblioteca do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do museu, um dos acervos mais completos na área, contando com 37 mil volumes, constituído ao longo de mais de 50 anos.

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de sociedade chamuscada. Vimos no Brasil o adensamento da conduta reacionária, o descaso a certa história que aconteceu no País, somado aos etnocídios e extermínios diários, estão marcados no nosso sangue. Que país é esse que não vê valor na proteção das origens? No irracionalismo, a história não importa, principalmente nos países que devem ser controlados para não serem potência, como o Brasil. Os objetos guardados em formol, mumificados, ou preservados atrás dos vidros das vitrines, compunham a exposição do passado. No Brasil, a dizimação de muitos povos, como os Tupinambá, fez com que todo esse material coletado ao longo dos séculos, somados às pesquisas desenvolvidas especialmente no século XX, tenha se tornado fonte de conhecimento e retomada de uma história que – passada oralmente por vários séculos antes e mesmo depois do processo de colonização – desapareceu com os povos que as alimentavam. Tudo o que compunha a história dos chamados povos sem história. Além de múmias egípcias, coleção greco-romana, fósseis de animais pré-históricos, o crânio mais antigo encontrado em território nacional e nas Américas *Luiza*, objetos de antigas culturas sul-americanas, bibliotecas doadas por cientistas ligados ao museu, documentos históricos, relatórios científicos raros ou não, coleções de espécies da fauna, flora e da geologia, especialmente das brasileiras, coletadas ao longo de quase dois séculos por pesquisadores de várias procedências. Boa parte do acervo era também objeto de pesquisas atuais, de arqueólogos, antropólogos, biólogos, historiadores, que tinham nesses objetos a fonte primária de seus trabalhos acadêmicos. Tudo o que estava guardado no edifício do Museu virou cinza. Ainda perdemos a nossa cultura devastada pela invasão portuguesa, um massacre de vidas e de saberes que assola até hoje nossa cultura originária. Depois, ao longo do processo de miscigenação advindo dos colonizadores, fugitivos de guerra, imigração constante ao longo dos últimos 140 anos vimos compondo uma outra base de saberes e vivências culturais que mais uma vez vem sendo dizimada. Ora, esse é um contínuo processo de dominação. Por outro lado, danificar, destruir e inscrever em esculturas públicas pode ter um significado de questionar a memória e a história. Afinal, por quê temos

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figuras gigantescas de colonizadores e assassinos ao longo das cidades, nomes de ruas de ditadores e não temos explícitas as figuras representativas, saberes e povos originários ou das classes populares? Quando questionam a postura do movimento de pixadores que destroem monumentos históricos, o que se defende? São monumentos feitos por quem, para quê? O Pixo Manifesto Escrito (PME) foi um exemplo de guerrilha anônima iniciada nas mobilizações com o movimento passe livre em 2013 na cidade de São Paulo: fizeram atos como pixar o Monumento à Bandeira, quando da aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215115. Esse foi um dos momentos de participação política mais efetiva pelos pixadores que vinham no ano de 2013 se engajando nos atos pelo passe livre. Todos os protestos realizados pelo PME geraram repercussão sem expor ou creditar os membros do grupo pelos feitos (Fig. 98).

Figura 98 - Monumento às bandeiras, escultura de Victor Brecheret, foi alvo de tintas como formas de protesto diversas vezes e também com outros intuitos

115A principal medida prevista pela PEC 215 (em tramitação desde 2000) pretende transferir do poder Executivo para o Legislativo a atribuição de demarcar as terras indígenas. O Congresso brasileiro tem uma bancada ruralista e de apoio ao agronegócio muito forte. Segundo estudo produzido pelo Instituto Socioambiental (ISA), esta transferência de competência “impactaria diretamente os processos de demarcação de 228 Terras Indígenas (TIs) que ainda não foram homologados. Essas terras representam uma área de 7.807.539 hectares, com uma população de 107.203 indígenas. Outro aspecto relevante é a abertura das TIs para empreendimentos de alto impacto socioambiental, como estradas e hidrelétricas – o que é proibido na atualidade e pode afetar todas as 698 TIs do país. […]”. Ainda o texto também analisa as inovações incluídas pelo deputado Osmar Serraglio (PMDB/PR) no relatório da PEC 215 apresentado no início deste mês. Entre elas, estão a possibilidade de aplicação retroativa dos efeitos da PEC sobre TIs já demarcadas, homologadas e registradas e a inclusão da tese do “marco temporal” no texto constitucional – tanto para Terras Indígenas, quanto para Territórios Remanescentes de Quilombo. De acordo com essa tese, só teriam direito às terras as populações que detivessem sua posse em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. Caso a PEC 215 e as propostas agregadas a ela sejam aprovadas, os pesquisadores do ISA também preveem uma diminuição drástica na criação de Unidades de Conservação (UCs) – como parques e reservas –, uma vez que a atuação dos parlamentares nesse sentido é inexpressiva: das 310 UCs federais criadas nos últimos 65 anos, apenas cinco foram iniciativa do Congresso – ou 0,03% da área total das UCs federais. A proposta pode paralisar ainda os processos de reconhecimento de 1611 Territórios Remanescentes de Quilombo em andamento em diferentes regiões do país. (Disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/pec-215-pode-paralisar-228-processos-de-demarcacao- de-terras-indigenas. Acesso em: janeiro de 2017). 174

Fonte: Imagem por Cripta. O monopólio das influências culturais através de símbolo e poder apresentam funções sociais, este é um fenômeno criado desde fins do século passado que destrói organicamente as memórias históricas. Edward Said diz que a cultura é uma forma de memória contra a aniquilação, uma forma de luta contra a extinção e a obliteração, para ele a cultura pode ser uma ameaça para o poder, uma forma de resistência descolonizante, sendo a colonização perda do lugar para o estrangeiro. As histórias da formação das colonizações e independências, das ditaduras e lutas pelas democracias, dos fugidos e libertos, podem ser recompostas na evocação de lembranças, experiências e histórias de vida daqueles que ficam para semente - os velhos e velhas guardiões da memória. Narrativas que, no campo da moral, normatizam vidas, transmitem saberes e curas, lembram o que deve ser lembrado e assumem identidades na vida cotidiana. A memória, em nosso cotidiano, liga o presente ao passado; mostra a diferença e aponta a repetição, o que eu fiz ontem, o que farei hoje; permite- nos distinguir comportamentos, determinações. Quem é visto é lembrado, e a rua é uma potente mídia de divulgação de si mesmo. Quem não quer deixar uma marca na história? Alexandre Barbosa Pereira, no artigo Quem não É Visto não É Lembrado: sociabilidade, escrita, visibilidade e memória na São Paulo da Pixação, discute como a pixação configura-se como um dispositivo de sociabilidade, reconhecimento e memória para os protagonistas escritores jovens moradores das periferias. É um desejo permanente de ser lembrado, típico do indivíduo contemporâneo, que tem o

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risco real de perder-se nas massas. Ser esquecida/o é a impermanência finita, a luta pela sobrevivência é também a luta por ser imortal. O curioso é que ao mesmo tempo que se torna memória, a arte urbana pode ser apagada a qualquer momento sendo algo de temporalidade fugaz. Em Jean-Pierre Vernant o “passado” aparece como parte do cosmo e a exploração dele e o canto da Mnemosyne, um deciframento do invisível, do sobrenatural. A memória evoca o passado que aparece como dimensão do além. A Deusa Mnemósine é irmã do tempo e mãe das Musas. Narrar é uma forma de sobreviver a morte e permanecer na memória e na transmissão de uma geração para outra. (Anita Guimarães). A memória pode ser filha do tempo mas nem sempre o seu tempo é cronológico. A memória sofre flutuações a depender do momento que é acionada. Por exemplo, a memória de indivíduos que viveram uma situação traumática, difere da memória de meses após o trauma. Nesse caso, memória triste, a saber, aquela que pode provocar necessidade de esquecimento. Para quem viveu uma guerra ou outras experiências traumáticas muitas vezes o calar é frequente. Em face da lembrança traumatizante, o silêncio parece se impor a todos aqueles que querem evitar culpar as vítimas e quem é vítima prefere o silêncio. Ainda existem aqueles que sofreram traumas e que se aprisionam ao passado e que retomam o mesmo ponto quando, por instância, o corpo de algum ente querido não foi encontrado após anos ou foi brutalmente torturado e assassinado. Há a necessidade de reparação, encontro com a verdade. Em outra mão ao lermos na revista Veja "Ditabranda" ou na Folha de S. Paulo "Pra que mexer no passado?" a ordem do discurso de lembrar ou esquecer o passado se entrelaça à persuasão para o esquecer. Ou o lembrar se torna mexer em ossos pesados que podem alterar conjunturas políticas, favorecimentos, situações acomodadas de quem prefere manter verdades e lembranças esquecidas. As narrativas dos povos originários Dessanas (Brasil) dizem que não há cronologias ou datas de quando foi criado o sol, a lua ou as estrelas. Existe uma memória que recoloca o sentido das coisas e relaciona a origem do mundo com a vida do modo de viver que informa a arte, a música e os cantos. Na memória da antiguidade do mundo, montanhas tem sentimentos, igarapés, cachoeiras e bichos são parentes e cada um compondo grandes famílias no sentido universal da criação.

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Platão escreveu que a natureza mortal procura, na medida do possível, ser e ficar imortal. O lugar da memória é o ser imortal, o que foi deixado de legado e aprendizado na história, valores, culturas e constante mutação. Em meio a nossa sempre constante incapacidade de entender a magia da vida, temos no abafamento estressante do mundo moderno, corpos e mentes atados à imediaticidade, presos no presente perpétuo, naturalizando a barbárie sem possibilidade de criar um futuro proibido pois a história acabou e nossas mentes criadoras estão atadas e cegas. O que lembramos na inversão da criação da humanidade é que há sempre o caráter de transformação da realidade pelas objetivações humanas: no trabalho, na arte ou na ciência, o que se faz modificar as estruturas da tradição para algo novo. No Brasil, tem sido frequente a tentativa de apagar a história das violências do passado nas ditaduras latino-americanas e do fascismo e nazismo. Tenta-se naturalizar as violências para servir de mote às truculências do presente. Uma forma de “esquecimento organizado” (Rosas, 2010) No ano de 2019, é empossado o atual presidente do Brasil, e o cenário de desinformação, des-historicização, à medida que o critério de validade de notícia e história se torna flutuante e opinativa, crível com uma foto descontextualizada, um título chamativo e com a narração inventada. É assim que, no quinto maior país do Mundo, o maior país da América do Sul, aqui, a esquizofrenia está implantada enquanto ideologia. Chega-se ao absurdo de comemorar, aberta e oficialmente, o golpe de 1964, antes o revisionismo historiográfico (que durante mais de duas décadas procurou suavizar o terror da ditadura para as gerações mais recentes) já havia se instalado na antessala da barbárie para lhes abrir a porta. Enquanto nosso atual governo proclama a nova política, a mais antiquada, a escola sem partido, na verdade, a escola sem criticidade, fica cada vez mais evidente, ou escamoteado, o uso das várias formas de ideologia - discursos de e sobre a moralidade, a religião, a política e a arte. Não é a primeira vez que tentam nos convencer disso; lembremo-nos do período do pós-guerra, em que estudantes foram levados a acreditar no fim da ideologia. É essa a estratégia de rotular a esquerda como um todo de “ideólogos” e reivindicar para si - o governo atual, por exemplo - a imunidade relativa à corrupção e a toda forma de ideologia, colocando-se fora da política, estando dentro dela de maneira falaciosamente neutral.

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O desejo por beleza e significados é fundamental na existência humana e algumas formas artísticas, têm se expressado ao longo de todos os períodos, como a dança e a grafia em paredes. Antes do desenvolvimento do mercado cultural de pinturas privativas surgido no Século XVII na Holanda, a maior parte das artes eram públicas, comissionadas pela realeza, o clérigo ou cidadãos poderosos pela glória comunitária e enaltecimento de conquistas e assim eram colocadas nos espaços públicos. Figura 99 - Graffiti no Brás - SP (2015).

Fonte: Imagem cedida pelo artista Paulo Ito.

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No entanto, o cenário se modifica após a revolução industrial e do desenvolvimento do Capitalismo, donde os valores econômicos sobrepõem se aos valores de sociabilidade. A cidade, enquanto produção de riquezas e multiplicação das desigualdades, ao segregar os grupos e as classes sociais, é espaço de luta para a fruição e produção da vida urbana, como espaço coletivo de sociabilidade. O grafiteiro e o pixador, habitantes da cidade, afirmam o território e transformam a sua ação pincelada em cenário da cidade; sendo a pincelada, ou a sprayada, decorativa ou de demarcação identitária. A desigualdade crônica brasileira é aguda, tal qual a de NY dos anos 70 e a São Francisco e a Los Angeles dos anos 2000 e a vibrante cultura do graffiti é exponencial, em ambos os locais. A pixação, enquanto forma de tag tipicamente brasileira, e mais singular em São Paulo, é originária dos bairros pobres. Uma caligrafia crua, em preto, normalmente alongada. As tipografias vêm sendo desenvolvidas por muitas mãos, ao longo do tempo. Uma marca urbana, um vandalismo sagaz, advindo daqueles totalmente desprovidos de direitos. Em São Francisco, o muralismo chicano, realizado por artistas de origem ancestral latina, marcadamente mexicana, é referenciado no muralismo mexicano e apresenta um viés social e político bem definido. Em Los Angeles, a repressão policial é intensa e os graffitis estão mais escondidos ou em locais bem demarcados. As metrópoles amplamente culturais apresentam um urbanidade desenvolvida com particularidades urbanísticas e uma desigualdade social atroz que no mais se presentifica no crescimento contínuo da população em situação de rua. No Brasil e nos EUA são os negros dentre todos os ainda mais perseguidos e confinados, os que estão mais sujeitos à violência policial, ao preconceito, à discriminação, ao estigma fortemente presentes em uma sociedade de classes de exploração e opressão. O subúrbio alastra-se e espalha-se. Os escritores das ruas têm a chance da fama, de publicar seus nomes do mesmo jeito que veem as marcas e publicidades estampadas em painéis de ônibus116. Do caos à experimentação artística, o graffiti é tanto um conjunto de manifestações da questão social quanto a reação artística a essas expressões. Enquanto parte da

116 Em 2007 foi regulamentada a lei municipal 14.223, a Lei Cidade Limpa visou reduzir a poluição visual na cidade, principalmente a partir da proibição de propaganda em áreas externas da cidade. Antes da lei Cidade Limpa, na capital Paulistana, toda a comunicação visual de mídia exterior(outdoors, faixas e anúncios) competiam entre si, assim como acontece na Time Square, por exemplo. No entanto, esta mesma lei, deixou uma única exceção: a publicidade em espaços externos só seria possível no mobiliário urbano (ou seja, pontos de ônibus, totens, banheiros públicos, entre outros, incluindo, portanto, bancas de jornais e revistas). 179

cultura geral, a cultura de rua apresenta a voz sistematicamente negligenciada da sociedade. Uma possível forma de desenvolver habilidades e alcançar algum tipo de sucesso. A Periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros. A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a diversidade. (ANTROPOFAGIA PERIFÉRICA, Sérgio Vaz117).

Os muros fazem parte da arquitetura e da cultura das cidades, são símbolos da separação e da fragmentação sócio-cultural e do segregacionismo entre classes e do ponto de vista político, as implicações da realização dessas atividades nascem imbuídas de rebeldia expressas nas marcas inscritas nos muros, edifícios e monumentos das cidades. No Brasil, 84,35% das pessoas habitam e/ou vivem em situação urbana, nos EUA 80,7% da população está no meio urbano. A arte urbana de rua, marcadamente o graffiti e o pixo é um protesto instintivo fruto da desigualdade social vivida por jovens das periferias e favelas. Ao increver- se desenhos e símbolos em um muro, uma lateral de prédio pela cidade é uma forma de marcar um local a que não tem acesso. A precariedade de condições de vida, moradia e trabalho a que são submetidas a maior parte da população jovem, negra; o descaso do Estado mínimo; a muralha cultural da elite; a segregação territorial; a gentrificação urbanística estão presentes na vida cotidiana de grande parte daqueles que fazem a guerrilha do signo por meio da arte urbana. O pixo e o graffiti são as vozes da cidade que clamam por igualdade de direitos, de condições e acesso. O gueto e a periferia estão vivos! O graffiti intervém na paisagem urbana, atinge diretamente a população transeunte e apresenta uma concepção de mundo que escancara a principal fronteira da divisão social, a propriedade privada, ao mesmo tempo em que nega a principal forma da sociedade de classes - a mercadoria. O graffiti não é institucional e está fora dos limites do mercado de arte. Apesar de que, podem entrar no circuito de galerias - já não sendo mais graffiti ou fazer parte de estampar o arsenal mercadológico de objetos, roupas e acessórios.

117 Segundo seu perfil no Facebook:"Vira-lata da literatura, Poeta das ruas, agitador cultural, Cooperifa até os ossos, vagabundo nato";. ‘ 180

Embora a parte do graffiti escrita e ilegal compartilhe elementos essenciais da sociedade de consumo de massas - a produção de signos, a criação de marcas, a reprodução repetitiva de imagens -, nessa mesma ilegalidade é que permanece na atitude de transgressão e ocupa espaços que a publicidade outrora ocupou, ou em algumas cidades ainda ocupa. grafiteiros, em geral, são originários de bairros periféricos, e dos que são moradores de regiões mais centrais, uma ínfima minoria fez curso superior, principalmente entre os escritores de pixo; o analfabetismo funcional é marcante e em sua maioria escancara-se a situação de pobreza e escasso acesso às políticas públicas, à cidade e ao emprego. Como acentua Caldeira (2012, p. 2): “Por meio das inscrições pintadas nos mais diversos locais, eles transcendem seus locais de origem e suas condições originais, e penetram em todos os tipos de espaço [...]”. Figura 100 - “Nina” por Apolo Torres. Avenida da Consolação-SP.

Fonte de Imagem: Juliana Abramides (2017).

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A urbanização é crucial na história do processo de acumulação do capital, sendo necessária uma constante readequação da vida urbana. E por mais que as forças do capital estejam em constante movimento, é impossível o controle total das populações. É nesse sentido que levantamos a questão política estratégica de prestar atenção aos movimentos anti-capitalistas urbanos e em como eles podem ser potencializados. Fig 101 - Ponte da Avenida Sumaré, São Paulo.

Fonte de Imagem: Juliana Abramides (2016).

É quase impossível conceber a vida fora das cidades, ou ao menos sem ter a referência do urbano. O urbano é permeado de admiração, sociabilidade, prazer, produção social de riqueza e apropriação desigual, fruição social e coletiva de diferenciações que se batem com a questão material. O espaço118 metrópole relaciona-se com as forças produtivas, com a divisão do trabalho e com as relações da propriedade privada dos meios de produção. Para os humanos, na sociedade burguesa, o produto do trabalho aparece como um objeto estranho que tem poder sobre ele e, simultaneamente, o mundo

118 Henri Lefebvre, no livro A Produção do Espaço, diz que existe uma história do espaço, que está por ser escrita, o conceito de espaço liga o mental e o cultural, o social e o histórico. Ele divide esse complexo em: Descoberta de espaço; Organização espacial na produção da sociedade; Criação de obras, paisagem e o cenário. 182

exterior sensível o enfrenta hostilmente. O trabalho produz mercadorias e produz a si mesmo como mercadoria. Assim, a natureza do trabalho, enquanto práxis positiva de autocriação, é negada. A alienação torna-se a inversão da natureza criativa, livre e consciente do trabalho. Vale ressaltar que, na forma mais plena da divisão social do trabalho, isto é, do capital, a alienação adquire formas específicas a partir da instituição da sociedade salarial, quando as capacidades humanas estão sumariadas na forma do dinheiro e sua existência é medida pela venda da força de trabalho. O espaço é continuamente reestruturado no urbanismo moderno; os processos são determinados pelo capital financeiro de compra e venda de terras e edifícios, em que se instalam novas fábricas, indústrias ou escritórios119.

Figura 104 - Pixo escrito Harlem em um bairro mais elitizado, o Soho.

Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2015).

O sistema capitalista é extremamente dinâmico e adaptável ou tempo inteiro as criações de comunicação, arte e no trabalho são capturadas e absorvidas como parte das novas tecnologias, dos processos de capturar os consumidores nos anúncios e propagandas. O capitalismo em chamas utiliza-se muito da propaganda, da venda de um modo de ser, de padrões morais. Como parte da acumulação capitalista, a produção é imediatamente reprodução, circulação, distribuição e consumo. No seio do processo de circulação de mercadorias, a reprodução de ideias, práticas e valores tornam-se parte do incentivo à aquisição das

119 Quando uma área apresenta possíveis lucros, é especulada, desocupam-se moradias, por exemplo, das áreas centrais, para construção de edifícios para escritórios e assim que a área está remodelada investidores buscam um potencial especulativo para outra área.

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mercadorias, ao mesmo tempo, em que há o estímulo ao consumo reproduzem- se ideais e valores burgueses como o consumismo, a ideia de livre mercado, o ter em detrimento do ser; relações de posse. O lugar da inovação tecnológica é rápido e dinâmico e ocupa um espaço crescente desde a industrialização da sociedade pós industrial se comparado a outros sistemas sociais, em que a imensa maioria vincula-se ao trabalho na terra e com desenvolvimento tecnológico mais lento. A cidade triunfa na existência de fábricas, escritórios, lojas e indústrias. O tempo do capital quadricentenário, o maior desenvolvimento de riquezas e a contradição entre a humanização e desumanização traduzem-se na vida cotidiana com suas expressões dilaceradas. A riqueza; o conforto material; o acesso à informação, educação, cultura, ao lazer, à saúde; de outro lado, a falta de acesso, a pobreza, penúria, miséria, falta de trabalho e moradia; 8 milhões de pessoas no Brasil não têm onde morar. A desigualdade é gerada pela apropriação privada da riqueza produzida coletivamente. Com a divisão do trabalho e com o desenvolvimento das forças produtivas cria-se a produção excedente que passa a ser apropriada de forma privada, gerando o fim da propriedade comunal e a necessidade histórica da propriedade privada. O Estado surge para regular a desigualdade criada pela propriedade privada, portanto, o fundamento histórico do Estado é a desigualdade. O fundamento da desigualdade não é a capacidade de produção do excedente em si, pois o que gera a produção excedente é a divisão do trabalho e o desenvolvimento das forças produtivas. Isso supõe dizer que, no modo de produção capitalista, a exploração econômica (re)produz a desigualdade social, cultural, educacional e territorial que cria e recria antagonismos de classe, enquanto valores inerentes à criação de valor e de mais-valia. A desigualdade é intrínseca ao capitalismo para a manutenção da exploração da força de trabalho, da propriedade privada dos meios de produção, da existência de classes antagônicas na sociedade. Por outro lado, o capitalismo é um modo de produção associado a um sistema de ideias. A noção de propriedade privada é socialmente construída e legalmente instituída. Na reprodução de valores na sociedade burguesa o direito tem lócus privilegiado. O direito de propriedade, tal qual o direito à vida e à liberdade, é defendido como direito natural humano por juristas, filósofos e economistas políticos. A propriedade do solo e da terra é considerada fonte

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originária de toda riqueza e é vista como um valor eterno120. Figura 105 - Um picho (grafia comum) entre a Avenida Francisco Matarazzo e a Rua Cardoso de Almeida. Um direito por favor!

Fonte: Imagem de Juliana Abramides (2015).

A declaração dos direitos humanos coloca o direito à propriedade entre os direitos naturais. Terra, campos, águas e florestas são propriedades adquiridas e não inatas. O princípio moral e legal da propriedade privada se sobrepõe aos direitos de vida e do morar. O agravamento das precárias condições de habitação dos trabalhadores e a ausência de moradia relacionam-se à industrialização e à crescente migração para as grandes cidades no processo de desenvolvimento do capitalismo. A precariedade, insuficiência e déficit da habitação social têm se configurado como uma das expressões mais dramáticas da questão social para amplas parcelas da população. O acesso à moradia definido pelo mercado do solo é de alto custo. Cortiços, favelas, ocupações irregulares, moradias sem registro, aparecem como formas mais comuns de reprodução da população empobrecida no capitalismo contemporâneo. As favelas e as áreas de autoconstrução na periferia urbana revelam estratégias de sobrevivência em uma metrópole em que a economia de mercado, aí incluído o preço do solo, impede o acesso da classe trabalhadora de baixa renda à moradia em áreas centrais da cidade e com infraestrutura. O acesso à moradia definido pelo mercado do solo é de alto custo. Cortiços e favelas aparecem como formas mais comuns de reprodução da classe

120 Se a conquista gerou um Direito Natural de poucos, os muitos precisam apenas reunir forças suficientes, para adquirir o Direito Natural à Reconquista daquilo que lhes foi tomado. No curso da história, os conquistadores procuram conferir, por meio de leis, por eles mesmos promulgadas, um certo reconhecimento social ao seu Direito de Posse que emerge originariamente da violência (MARX, 2005, p. 2). 185

trabalhadora no capitalismo contemporâneo. As favelas e as áreas de autoconstrução na periferia urbana revelam estratégias de sobrevivência em uma metrópole em que a economia de mercado, aí incluído o preço do solo, impede o acesso da classe trabalhadora de baixa renda à moradia em áreas centrais da cidade e com infraestrutura. O custo que existe para morar está embutido em todas as taxas pagas, no preço do terreno e do imóvel e na localização. Qualquer terreno apresenta um custo para a cidade que é fruto da infraestrutura que a cidade oferece. Ruas pavimentadas, esgoto, luz, água, linhas telefônicas, transporte, enfim uma série de serviços. O custo do terreno varia de acordo com os serviços vinculados a ele, levando em conta a localização e características da área. As ocupações em favelas são geralmente realizadas em áreas desvalorizadas pela localização e qualidade ambiental e geológica, fora dos interesse dos agentes do mercado da terra. O movimento socioterritorial de urbanização brasileiro foi intenso e veloz. Esse desenvolvimento urbano foi acompanhado da privação da população pobre e trabalhadora do acesso a serviços públicos, a direitos sociais da cidade e à riqueza social. “Desde 1970, o crescimento das favelas em todo o Hemisfério Sul ultrapassou a urbanização propriamente dita” (DAVIS, 2006, p. 27). As construções das cidades têm sido a autoconstrução de moradias populares por meio da qual os próprios moradores aliados a parceiros, amigos e parentes constroem suas moradias sem planejamento ou projeto, com materiais improvisados e, por etapas, de acordo com a entrada de recursos financeiros. Muitas vezes, começam com barracos feitos de madeiras improvisadas e lonas que, aos poucos, vão se tornando moradias de alvenaria; sobem-se andares e algumas casas tornam-se até pequenos prédios. A prática de autoconstrução insere-se no contexto capitalista como forma construtiva autônoma em que trabalhadores aos finais de semana, feriados e férias constroem suas próprias casas: escolhem terreno, fazem projeto e realizam a obra sem custos com intermediários para o planejamento e a mão de obra. O surgimento das favela, a moradia de aluguel em casas insalubres, cortiços ou mesmo o crescente número de pessoas vivendo nas ruas, é a resposta de luta pela sobrevivência dos setores mais pauperizados no padrão perverso de ocupação socioespacial. Em síntese, as periferias das cidades brasileiras são castigadas pelas

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enchentes, ausência ou escasso acesso aos serviços de saneamento básico, péssimas condições de habitabilidade, ausência de serviços básicos, como rede de esgoto, coleta de lixo e água potável – essa é a dura realidade urbana vivida por milhões de moradores das grandes metrópoles brasileiras.

A sociabilidade, o prazer de estar com o outro é que estabelece a diferença urbana. A cidade tem mil encantos e movimentação constante. Estamos a dezenove anos adentro do século 21 e, nesse tempo, tornou-se quase impossível conceber a vida fora das cidades ou, ao mesmo tempo, sem ter a referência do urbano, que constitui espaço de admiração, produção social de riqueza e apropriação desigual, fruição social e coletiva de diferenciações que se imbricam com a questão material. O Neon vaga veloz por sobre o asfalto irregular, ignorando ressaltos, lombadas, regos, buracos, saliências, costelas, seixos, negra nesga na noite negra, aprisionada, a música hipnótica, tum-tum tum-tum, rege o tronco que trança, tum-tum tum-tum, sensuais as mãos deslizam no couro do volante, tum-tum tum- tum, o corpo, o carro, avançam, abduzem as luzes que luzem à esquerda à direita [...]. (RUFFATO, L.,2001, p.g 14).

De um lado, a riqueza, o conforto material; acesso à informação, educação, ao lazer, à saúde, aos espaços culturais, aos excessos. De outro, a pobreza, penúria, miséria; a falta de moradia, de acesso.

Figura 106 - A grande São Paulo

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Fonte: Governo do Estado de SP. Pânico, medo, ansiedade, depressão, jogo de interesses, jogos patológicos, reificação, desejo, individualismo, vontade de morte, descontentamento, compulsões. Comportamentos que refletem a angústia inerente à precariedade da vida humana. A grande patologia social é o medo acrescido das patologias psíquicas do transtornos de ansiedade e humor.

Figura 107 - Bairros de São Paulo por Zona

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Fonte: Governo do Estado de SP.

Os murais e graffitis revelam uma dada realidade social e que são também o conhecimento de um tipo de vida nas grandes cidades que traduzem sua complexidade policlassista multifacetada. Outrossim, toda cultura deve ser vista como a maneira possível de humanos se organizarem, se adaptarem e transformarem o meio em que vivem. As particularidades do cotidiano, nas grandes cidades, afetam direta e indiretamente as populações participantes desses grupos sociais.

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O cotidiano corresponde ao dia a dia, quando satisfazemos as nossas necessidades primárias de higiene ao acordar, escovar os dentes; buscar e preparar o alimento; dormir, morar; satisfazer as vontades e os desejos. A vida cotidiana é a vida plena; ou seja, cada um de nós participa dela com todos os aspectos da individualidade, personalidade, do jeito de ser. O cotidiano é a esfera da reprodução do indivíduo nas suas necessidades básicas e na vida social; é no dia-a-dia que nos colocamos como seres por inteiro com nossas capacidades, conquanto não possamos vivenciar aguçadamente com toda intensidade todas as nossas potências todos os dias. As grandes aglomerações, denominadas hipercidades, onde vivem mais de 10 milhões de habitantes, estão inseridas em estruturas de urbanização consolidada, nas quais o preço desse processo, denominado de conurbação urbana, é o agravamento das expressões da questão social, mais precisamente, da desigualdade social. As diversas manifestações da questão social interferem nas condições de vida e trabalho por meio do desemprego, do trabalho informal; da situação de moradia em cortiços, pensões, favelas, moradias provisórias; do acesso precário à educação, saúde, ao lazer e à cultura e se reproduzem nas expressões culturais, no modo como vivem, se relacionam, se comportam, criam e resistem às opressões da sociedade capitalista em chamas. As marcas urbanas expõem contradições abarcadas pela questão social e inseridas na profunda marca da desigualdade intrínseca ao capital e revelam a necessidade de jovens empobrecidos conquistarem visibilidade e intervirem de maneira criativa e transgressora na configuração social do urbano. Como diz a Mag Magrela “a rua é muito incrível pra quebrar barreiras segregacionista” (artista plástica e grafiteira, entrevista em 2019).

Figura 108 - Mag Magrela, Fortaleza - CE (2018).

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Fonte: Imagem cedida pela artista, foto tirada pela equipe do 5º Festival Concreto

Um espaço segregador, contraditório, de jovens sem emprego e/ou

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ocupados com bicos121 rotativos que giram pelas ruas da cidade sem encontrar o espaço para se ocuparem com trabalho ou sem acesso a escolaridade de qualidade. Como adentrar os shopping centers envidraçados com preços inacessíveis à população majoritária ou conviver com opressoras residências com monumentais fortalezas de defesa, que distanciam os grupos sociais. Vamos ao cinema, pagar 38 reais, ou 5% do salário mínimo de fome. A segregação residencial na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) por classe e etnia é também a segregação da sociabilidade e da apropriação e do uso dos espaços coletivos da cidade. A separação de locais de brancos e negros, de pobres e ricos, ou da classe média, demonstra de que modo barreiras étnicas e de classe estão inscritas na espacialidade e no tempo, moldando relações e cristalizando desigualdades. 122 São exemplos os espaços segregados, em que grupos sociais e raças não se misturam, como os concertos pagos da Sala São Paulo. Grupos periféricos terão menos acesso à seletividade de oportunidades a recursos, ao mercado de trabalho, a serviços públicos, equipamentos culturais e de consumo. Nessa perspectiva, grupos com menor diversidade de relações terão menor mobilidade social123. O mapa racial do Brasil do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta São Paulo como a terceira região de maior segregação.124 Os muros têm a função primordial de separar e delimitar territórios e determinar os espaços entre o público e o privado, entre o que pode ser mostrado e o que se pretende ocultar: protegem, definem caminhos, escondem, restringem o olhar, limitam a passagem, são barreiras entre territórios e espaços. Muros de pedra-fortaleza, muro de ferro-presídio, o alambrado com arame farpado, muro de vidro- aquário, pastilhas cerâmicas ou pintadas é muro alvo para inscrição vida longa. Existem muros que cercam até mesmo pedaços da cidade e o bairro do Morumbi, por exemplo, traz a nítida lembrança do modelo mastodôntico de fachadas fortalezas. A forma estética dessa arquitetura identifica-se com a

121 Bicos: trabalho temporário, pontual. 122 A tese de Danilo Sales do Nascimento concentra-se na segregação racial encontrada nas classes média e alta, e evidencia que negros das classes média e alta têm as residências localizadas mais próximas dos pobres do que de brancos do mesmo estrato social. Os brancos de classes média e alta vivem nos locais mais privilegiados da metrópole paulistana. 123O debate está pautado em diversas pesquisas e publicações, a exemplo: Territorialidade Negra e Segregação na Cidade de São Paulo, de Reinaldo José de Oliveira, Editora Martins Fontes, 2016. 124Avaiable in : https://www.nexojornal.com.br/especial/2015/12/16/O-que-o-mapa-racial-do-Brasil-revela- sobre-a-segregação-no-país. Dezembro de 2016. 192

segurança contra a violência urbana, com o pressuposto de que quanto mais muros e grades maior a segurança125. Os “enclaves fortificados” (CALDEIRA, 2000) são espaços fechados e monitorados, destinados a residência, lazer, trabalho e consumo; por exemplo, conjuntos comerciais, shopping centers, condomínios auto suficientes, com estruturas abrangentes de comércio, e estabelecimentos particulares de saúde, educação e divertimento. Espaços criados para ampliar a homogeneidade social e distanciar os pobres, pessoas em situação de rua e negros; espaços fechados com vigilância e acessos controlados; espaço do abrigo e da solidão. Os muros dividem o público e o privado e são as telas em branco para as inscrições. As culturas das expressões gráficas urbanas contêm um caráter político manifestado na visibilidade transgressora, e tendo em vista a recusa a comportamentos e leis instituídas, desvinculam-se do fator excludência urbana de usufruto cultural e moradia, e agridem a propriedade particular na ocupação de fachadas, paredes e muros de casas e prédios, modificando o cenário de invisibilidade das produções culturais periféricas. A dimensão ilegal desse comportamento de grupo torna-se marca indelével de expressão cultural e resistência à hegemonia burguesa126. O pressuposto aqui é a transgressão enquanto sinônimo de desobediência civil de agredir as leis, não se ater a elas; tais ações explicitam as tensões sociais existentes na metrópole. Certa noite de outono, um sujeito marca uma propriedade alheia com a sua tag ou símbolo do seu grupo. O que essa existência não violenta traz, à luz do dia? Na rua cê me encontra um dia vai entender Sociedade me ignora de manhã todos vão ver Meu protesto é ilegal o gringo filma em agá-dê Mas a real do que acontece é só na hora do rolê. (Cabes Mc, Hd Rolê 2)

125 “A ideia, que parece óbvia, é a de que, ocultando o máximo possível o que se passa intramuros, evita-se a invasão e o roubo. Entretanto, um prédio murado não deixa de ser assaltado e na visão de assaltantes o muro protege as ações de arrastão e furtos.” (Raquel Rolnik. Disponível em: https://raquelrolnik.wordpress.com/2012/08/16/quanto-mais-altos-os-muros-e-grades-mais-protecao-certo- errado/. Acesso em: agosto de 2015 ). 126 Historicamente estabelecida, a lei penal explicita-se por ser uma das formas de poder do Estado de acordo com as decisões políticas funcionais em determinada época, se referem-se à esfera da reprodução de valores e comportamentos disciplinados e vigiados pelo Estado de interesse à manutenção [do status quo] da sociedade capitalista. (KARAM, 2003). 193

Tais desobediências não têm caráter de manutenção de status quo ou de preservação de direitos, mas apresentam um impasse que gera incômodos por ser algo que não pode ser controlado. “É por protesto mesmo, contra o sistema que eu pixo” (MN, pixador, entrevista em 2017127). MN, hoje, começa a experimentar pernas robóticas para voltar a andar; perdeu-as enquanto pixava no trem. Há uma resposta desmedida e altamente opressora em resposta ao ato transgressor, são sanções, punições, agressões físicas ou até a morte realizada pela força punitiva do Estado (Fig. 109). Figura 109 - Com tanta função possível ao Estado por quê a punição truculenta é a normatividade?

Fonte: Arquivo MN

Os grafiteiros ilegais e os pixadores estão entre os poucos grupos sociais que atacam a base simbólica e material da vida social. O pessoal da pixação é fanático com a lata na mão, claramente vê o muro enquanto mídia de si mesmo, com invenção de códigos ou pseudo nomes. Não é prática de modismo e nem se veem pixadores fazendo apologias para que outros inscrevam em muros. A pixadora Gisele adverte quanto aos perigos e ao vício de pixar, ela que por anos fez o xarpi, trata o pixar como uma ação viciante que gera adrenalina, pelos riscos e desafios que se coloca. Gisele tem seu pixo SAGI marcado por muitos viadutos no RJ, ela que adorava se pendurar nas pontes hoje parou de pixar após um episódio de quase morte. O questionamento de território demarcado por regras leva à ultrapassagem de limites e obstáculos, o muro; adentrar um prédio; escalar um monumento. O

127 MN que já assinou exorcity, pixa desde o início da adolescência e em um rolê que fazia em um trem, teve um súbito apagão e foi parar embaixo do trem, perdeu as pernas. MN continua a pixar. 194

gesto, cotidiano, contém risco enquanto o sistema normativo está intacto. Tanto a pixação quanto o graffiti são atos transgressivos128 e a maior parte dos entrevistados diz que ambos perdem a legitimidade, se forem legalizados. Eles escancaram, principalmente em áreas mais ricas, um destoar na cidade que desestabiliza uma continuidade de modus vivendi, do estado de coisas da normalidade cadente. A desobediência civil que se instaura na calada da noite, em ações que violam a lei e a propriedade privada, demonstra uma série de conflitos e negações do status quo: inscrever e escrever, com códigos cifrados, a negação da submissão; questionar a lei e a forma do existir social. Ao pixar uma casa, ou prédio abandonado, prática bem comum ao pixo, escancara-se mais uma injustiça social, um local sem usufruto útil se destaca pela distopia do feio. Conquanto os grupos de pixadores não se caracterizem em organizações ideológicas definidas, têm originalidade tática, comunicação própria e afirmam valores anti-sistema, conforme denominação por eles atribuída.

Eu pixo de escada ou então/Eu vou na escalada/Na calada da noite/Eu vou varando a madrugada/Pixando sua parede pintada/Não quero nem saber/O vício é rebelde só pra você não esquecer/Correr o risco de morrer ou de ser preso é normal. (Criadores não domesticados, Rap do Xarpi).

Grupos sociais que buscam e lutam pela sobrevivência na ilegalidade devem ser entendidos no sentido amplo de penalização da pobreza “elaborada para administrar os efeitos das políticas neoliberais nos escalões mais baixos da estrutura de sociedades avançadas” (WACQUANT, 2015, p. 93). A vida cotidiana apresenta-se afetada por múltiplos códigos no espaço de reprodução econômica e também cultural. Uma potente forma de suspender o cotidiano de jovens precarizados, um movimento que tem uma íntima relação com a metrópole, um movimento que cria a cidade e é influenciado por ela. São sujeitos subversivos na forma, a cidade é suporte independente de autorizações, e no conteúdo, na subversão das letras e criação de códigos próprios. O ato é poético e é político. Processos criativos na vida em sociedade podem contribuir para ações e escolhas mais livres e autônomas, em face do abafamento criativo cotidiano. Nem todo processo criativo é artístico, e pode ocorrer em todas as

128A transgressão das regras pode vir ainda pela necessidade de trabalho, como acontece com músicos de rua, ambulantes, ou artesãos. 195

práxis, no cotidiano, ou no momento de suspensão do cotidiano no trabalho, no estudo129.

No caso dos países periféricos, o precariado (Fig. 110) é constituído pela parcela dos trabalhadores que desempenha os trabalhos mais instáveis; jovens, que desenvolvem suas atividades em trabalhos temporários, parciais, intermitentes, na informalidade, sem carteira assinada. É a “fração mais mal paga e explorada do proletariado urbano e dos trabalhadores agrícolas, excluídos a população pauperizada e o lumpemproletariado, por considerá-la própria à reprodução do capitalismo periférico” (BRAGA, 2013, p. 19).

Figura 110 - Avenida Consolação nas proximidades da praça Rosavelt.

Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2017).

129São elementos disparadores de processos criativos: a fantasia, imaginação, sensibilidade; brincar; a brincadeira interior, as ideias aparentemente desconexas, emoções, cores, os sons, as formas, os conceitos, a curiosidade, as imagens, a desconstrução do cotidiano e o inconformismo. 196

Parte desta população é composta por jovens que criam uma cultura independente, a cultura urbana que traz elementos de sociabilidade em atividades que aumentam a possibilidade de objetivação de desejos e de inserção social. Este tipo de cultura pode criar de maneira autônoma oportunidades financeiras para grupos que realizam atividades de chapéu130, artesãos de ruas, ou esportistas. Esta realidade se vê atravessada pelo sistema repressor estatal que de um lado não provê políticas públicas de inserção da juventude ao trabalho e a cultura e, por outro lado, reprime as práticas criativas e autônomas com apreensão de mercadorias, artesanatos e expulsão dos locais de trabalho. Ainda neste contexto há artistas urbanos que se tornam profissionais e começam a realizar murais e graffitis pagos ou passam a fazer parte do mundo das galerias. São eles, jovens sobrepujando o esquecimento social frente a um sistema de educação pública tosco que mais se assemelha a presídios com grades e janelas de ferro, insuficiência de vagas, professores mal remunerados e merendas controladas. A ausência de trabalho, individualismo extremado e ausência de perspectivas de significado social são marcas de suas vidas cotidianas no capitalismo em chamas. Como ressalta Harvey sobre como identificar as necessidades de usufruir da vida na cidade:

o direito à cidade surge dos gritos que vem das ruas do papel desenfreado pela sensibilidade que vem das ruas (…) do sombrio desespero, da marginalização e da juventude ociosa perdida no puro tédio do aumento do desemprego e do desleixo nos subúrbios sem alma que termina por se transformar em redutos de ruidosa rebeldia. (HARVEY, 2014, p. 12)

A arte urbana é marginal, não vem da cultura escolar, nem da cultura oficial e muito menos da cultura erudita. Esta forma de apropriação do espaço urbano, expresso na cultura de rua é expressão do mundo da imediaticidade131; esta arte reflete o grau de desagregação da cultura que vem no bojo das crises das relações sociais do capital, tanto no Brasil quanto nos EUA. O reflexo desta crise de sociabilidade na construção cultural aparece na miséria e na grandeza de um tipo de produção periférica- o hip-hop, o rap, o pixo, as poesias marginais, com teor de

130 Atividades de chapéu são aquelas em que uma performance (musical, cômica, teatral, mímica) tem ao lado um chapéu para que o público transeunte em parques, museus, grandes avenidas, joguem no chapéu um dinheiro, uma gorjeta de incentivo ao artista. 131“É preciso partir da imediaticidade da vida cotidiana, e ao mesmo tempo ir além dela para poder apreender o ser como autêntico em-si” (LUKÁCS, 2010, p. 37). Admite-se aqui que a sociedade massificada, racionalista, logicista, pragmática, individualista e repressiva tende a reduzir, ou, até mesmo, aniquilar essas potencialidades. 197

elaboração e criticidade variável; que no caso do pixo, apresenta uma mediação menor, por se tratar de uma comunicação endógena, mas ao mesmo tempo tem alto poder de criação de uma estética própria a partir de novos signos até então inexistentes.

Enquanto movimentos culturais estas expressões também fazem parte do mundo da reificação, quando algumas apresentam de um lado uma grande alienação, estranhamento, em relação a eles mesmo, e de outro lado uma grande manifestação relativa aos problemas que eles vivem por mais que isto nem sempre esteja expresso nas representações sígnicas e artísticas em si ou no discurso sobre a ação. O mesmo acontece com grandes murais que apresentam uma expressão mais impactante com maior elaboração artística que podem se referir ou não a um grau maior de mediação, já que encontramos dentre eles muitos murais decorativos, por exemplo, sem necessariamente expressar uma criticidade social. O que se vê é que independentemente do grau de desagregação social que vivemos, a arte urbana se coloca entre as expressões culturais de peso na atualidade. São estas, expressões artísticas num momento de crise estrutural. É uma arte periférica que fala dos problemas sociais e da crise do capital, como veremos mais detalhadamente no próximo capítulo. O graffiti é a ruína das cidades. Um bairro que sucumbiu ao graffiti telegráfico para o mundo que o controle social e parental lá quebrou. De maneira geral aqueles que agem em insurreição total ao status quo em enfrentamento ao capitalismo seriam segundo Hobsbawm “certamente revolucionários no sentido mais literal do termo” (1985, p. 246). No entanto, uma subversão total dependeria de atacar as forças produtivas, ao invés de propriedades particulares, propriedades privadas de meio de produção, grandes corporações e bancos. Se não se questiona a base material ou a “produção da vida” não questiona-se o Capital se não puramente o status quo que no mais é a forma de viver particular mas não necessariamente universal. Vamos exemplificar a partir do grupo de pessoas que se tornam veganas, deixam de consumir produtos de grandes empresas e passam a plantar o seu próprio alimento e consumir de produtores pequenos artesanais e locais. Elas atacam o status quo mas o Capital permanece se reproduzindo. E mais nesse

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quesito continuamos marxistas não adianta mexer no consumo se o todo é consumo, circulação e produção. Na contribuição à crítica da economia política Marx descreve que a produção não se limita a apenas oferecer um objeto material à necessidade mas oferece uma necessidade ao objeto material, ou seja, quando o consumo perpassa a camada primitiva do imediato, o consumo-impulso apresenta o objeto-mediador. E prossegue dizendo que: O objeto de arte - como qualquer outro produto - cria um público capaz de compreender a arte e fruir a sua beleza. Portanto, a produção não produz somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto (2010, p. 137).

Hoje, as artes plásticas urbanas são modos particulares de manifestação, criados majoritariamente por jovens de todos os grandes centros do mundo, originariamente132 setores pauperizados, moradores das periferias dos grandes centros urbanos, em que a desigualdade, em todos os níveis, se acentua, fruto do desenvolvimento desigual e combinado da sociabilidade capitalista. O jovem precariado, em suas lutas, aparentemente mais ‘desorganizado’, quer o fim da precarização completa que o avassala e sonha com um mundo melhor” (ANTUNES, 2018, p.59). Bem e como alguém sem emprego pode abrir um comércio e trabalhar se não tem capital de giro. Esta pessoa na linha da miséria deverá : trabalhar no comércio ambulante ou roubar, agora temos uma opção extra que é o trabalho em serviços tipo Uber. Nesse tipo de serviço de chofer qualquer pessoa com carta de motorista pode trabalhar e se o indivíduo não tiver carro, uma outra empresa aluga o carro a ele. Vejamos, a princípio uma empresa estrangeira entra no mercado nacional e pessoas sem nenhuma experiência anterior de trabalho em carros passam a ser choferes. A empresa não paga nada de impostos e também não é penalizada. Uma operação irregular, ilegal e aceita por diversos grupos sociais que podem ter acesso a um transporte confortável por um preço anteriormente impraticável. Na mesma via, o profissional, motorista, paga de 20 a 25% para a empresa uber sob cada corrida praticada e as despesas do carro: óleo, gás, manutenção, balinha e água ou qualquer outra despesa com o carro, incluso acidentes é ônus do trabalhador.

132 Na gênese do ressurgimento do graffiti, em potencialidade, os realizadores dessa expressão são pessoas periféricas, jovens pauperizados. Hoje, com a globalização da expressão consolidada na chamada Street Art, existem outros setores sociais que também o fazem. 199

Figura 110 - Stickers, Tags, graffitis em Downtown LA, 2018.

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Fonte: Imagem por Juliana Abramides

Na cidade dos commodities, por muito tempo, as laranjas foram o principal produto; depois, a indústria dos automóveis; houve a época do cigarro; e, hoje, o entretenimento está em alta por lá. L.A. é provavelmente a cidade mais diversificada dos EUA. Ao longo de cem anos, vem importando talentosos artistas, escritores e visionários, agregando um enorme contingente de labour intelectual

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de imigrantes de todo o mundo.

Yet for even more peculiar reasons- Ainda por razões ainda mais this essentially deracinated city has peculiares - esta é a cidade become the world capital of an desvinculada que se tornou a capital immense Culture Industry which since mundial da imensa indústria cultural the 1920s has imported myriads of the que desde os anos 20 importou most talented writers, filmmakers, miríades dos mais talentosos artists and visionaries. (DAVIS, 1990:17) escritores, cineastas, artistas e visionários. (DAVIS, 1990, p.17).

Na Califórnia, na região das proximidades da Baía de São Francisco, está o modelo da nova indústria, o vale do silício. A tecnologia é uma das grandes forças motrizes da economia californiana. Em L.A. está a já antiga e bem desenvolvida Hollywood, colônia de economia mundial. Os EUA apresentam as maiores empresas de mídia e também a maior economia do mundo. Organizações de larga escala, lobistas, corporações econômicas, agências governamentais exercem influência direta nos hábitos e nas decisões e com veloz visualidade midiática. A descoberta de ouro, nas montanhas da Serra Nevada, foi um dos motivos de os EUA batalharem pela Califórnia, antes pertencente ao México, na nomeada Guerra Civil: América versus México (1846-1848). Apesar da potencialidade para o trabalho escravo destinado a cavar atrás do ouro, a prática de escravismo não ocorreu na Califórnia, pois quando ela foi tornada parte dos EUA já era o momento de proibição da escravidão133. Com clima de deserto, banhado pelo Oceano Pacífico, por praias, desde pouco depois da expansão americana, o Estado da Califórnia é considerado a lenda presentificada simbolicamente na cidade de Los Angeles, a cidade das estrelas, das fotos, das palmeiras e do campo de óleos, onde todos teriam seus carros. Foi a partir de 1870 que começam a criar a venda da “ideia” do Paraíso na terra, a tão sonhada Califórnia134. Até 1876, a cidade era inacessível, distante dos centros populacionais; não apresentava uma baía de fácil acesso, tal qual São Francisco, ou oceano navegável,

133Para saber sobre a Guerra Civil citada: RICHARDS, Leonard L. The California GOld Rush and the Coming of The Civil War. New York: Alfred A. Knopf, 2007. 134 No livro Paradise Promoted: the Booster Campaign that Created Los Angeles: 1870-1930, Tom Zimmerman apresenta uma série de coleções de imagens e estórias sobre as estratégias imagéticas que tornaram o sul da Califórnia a terra prometida, ou seja, como a cidade se promoveu por 60 anos como o local onde os sonhos se realizam. 202

como Sacramento, mas torna-se acessível com a vinculação à ferrovia transcontinental do Pacífico Sul. Em 1886, Santa Fé trouxe a segunda linha transcontinental mais econômica, e a competição intra linhas na emergência do espírito capitalista. Começa o tráfego de pessoas para trabalhar nas linhas de trem e permanecer nas terras e tráfego de bens consumo. Aí começam os anúncios, a Califórnia estava sendo chamada de a “Nossa Itália” e de Céus Ensolarados da Glória (Sunlit Skies of Glory). Os esforços impulsionados primeiramente por turistas e fazendeiros depois se desenvolvem economicamente na forma da Câmara de Comércio, que se tornou em dois anos a maior organização do tipo no país. Já em 1920, outras organizações estavam montadas, como a Associação de Manufatureiros e Comerciantes, o Clube Automobilístico e outros clubes. Primeiramente, os impulsionadores profissionais de propaganda iniciam as campanhas de superlativos californianos: a metrópole do sudoeste; a cidade das maravilhas dos EUA; a capital climática do novo mundo. A Câmara de Comércio encoraja os anúncios sobre a maravilha de cidade e estabelece primeiramente os escritórios de agricultura e, posteriormente, os industriais, para que os recém-chegados tivessem local para trabalhar. A campanha serve para atrair pessoas para LA e também criar uma cidade funcional em prover trabalhos. Sempre impulsionando, por meio de panfletos, aa busca de criação do porto, valorização de recursos naturais, métodos para a agricultura semi-árida, e irrigação. Se precisavam manter a cidade em emergência, também precisavam encontrar trabalho para os que vinham para estruturar uma cidade industrial que estava sendo construída. Curioso ressaltar que quem cria o sistema de água que muda o curso da história no sul da Califórnia foi o engenheiro William Mulholland.135 LA, desde então, têm sido a cidade de grandes distâncias, deliberadamente escolhida para ser configurada na horizontal e não na vertical. O que, naquele momento, abrandava o acúmulo populacional da cidade emergente, mas posteriormente se torna uma questão para o transporte de mercadorias e pessoas. Foi criada a Los Angeles Railway (Lary), ou Carros Amarelos, e a Elétrico Pacífico, ou os carros vermelhos, que em 1929 rodavam 1.164 milhas (o maior sistema

135 Sobrenome dado a uma rua em LA. Quem não se lembra do icônico filme Mulholland Drive (A CIdade dos Sonhos) do diretor DAvid Lynch? 203

interurbano à época) e a Lary abrangia 406 milhas. A última linha dessas rodovias em Long Beach foi fechada em 1963. Figura 111 - Região Metropolitana de Los Ângeles/Califórnia

Fonte:www. censusreporter.org.

O primeiro estúdio, em LA, foi uma lavanderia no centro da cidade e o primeiro estúdio de Hollywood era um celeiro. Já nos anos 30, oito grandes estúdios dominavam o mercado de filmagem e estabeleceram gigantescas e complexas fábricas de produção. Uma delas, a conhecida Universal Studio, iniciou a sua própria cidade.

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[...] Contemporary residential security in [...] A segurança residencial Los Angeles - whether in the fortified contemporânea em Los Angeles - seja mansion or ther average suburban bunker - na mansão fortificada ou em outro depends upon voracious consumption of abrigo médio - depende do consumo private security services. (DAVIS, 2006, p. voraz de serviços de segurança privada. 248). (DAVIS, 2006, p. 248).

Em LA encontrava-se a eterna primavera - simbolizada majoritariamente pelas laranjas - e Hollywood, a cidade cenário para filmes. O objetivo da indústria de filmagens era criar a nova fantasia - o Cinema. Pessoas lindas e belas vivendo um modo de vida sem limites, em meio ao ar limpo e fresco. A mítica Hollywood, perto das montanhas e do mar, dos desertos e da vida urbana. O que se torna, anos depois, a maior máquina de sonhos. Os efeitos culturais da massificação da mídia e da globalização de mercado favorecem a disseminação das informações; de produtos e estilos de vida, de maneira que a reprodução social da vida, ao mesmo tempo mesclada por diferentes cruzamentos de cultura, em que se acessa a toda a produção que se veicula e compartilha na rede internacional, também permite questionar se não se vivia em uma ordem informacional única e singular e não plural. Hollywood é uma das maiores indústrias de influência, que participa vividamente na reprodução de valores e condutas no mundo e se constitui no maior e mais poderoso impulsionador da cultura popular. As culturais locais adquirem adicionais culturais de outros países e, ao mesmo tempo, se fragmentam. O interessante é que se criam formas híbridas de ser. No entanto, o poder da indústria audiovisual abrange muito mais visualidades do que uma produção local pode alcançar. O alcance do cinema (uma das principais formas de dominação da ideologia estadunidense) e também da música, ou da cultura pop USA, apresenta uma abrangência inigualável e é por meio dessa cultura também que, contraditoriamente, outras culturas se destacam. Por exemplo, quando Bhangra, uma melodia da região de Punjab, na Índia, é reconhecida na música de Beyoncé, que utiliza esse ritmo e harmonia próprios. Segundo Mike Davis, em seu estudo sobre Los Angeles intitulado Cidade de Quartzo, o processo de intervenção dos intelectuais: literatos, cineastas, músicos e artistas - isto é, os fabricantes do espetáculo [e não os intelectuais práticos - planejadores, engenheiros e políticos -] que realmente constroem cidades na formação cultural de LA e na produção de mitos das cidades, integram o espectro 205

de "Los Angeles", de onde se retira fundamental entendimento sobre o destino do modernismo e o futuro de uma Europa do pós-guerra dominada pelo fordismo estadunidense. E onde estão os cientistas, a cultura mais preciosa do sul da Califórnia, que moldaram sua economia pós-guerra impulsionada por foguetes?

Corporate America prides itself on profit, A América corporativa orgulha-se do greed and the overall Disneyite lucro, da ganância e do condicionamento conditioning of its workforce.) call geral da força de trabalho da Disney. 'imagineering'. Where one might have Chame "imaginar". Onde se poderia expected the presence of the world's esperar que a presença da maior largest scientific and engineering comunidade científica e de engenharia community to cultivate a regional do mundo cultivasse um esclarecimento enlightenment, science has consorted regional, a ciência consorcia com a ficção instead with pulp fiction, vulgar pulp, a psicologia vulgar e até o satanismo psychology, and even satanism to create para criar mais uma camada da cultura yet another layer of California cultdom. da Califórnia. Essa irônica dupla This ironic double transfiguration of transfiguração da ciência em ficção science into science fiction, and science científica e ficção científica em religião é fiction into religion, is considered in a considerada em um breve relato dos brief account of the Sorcerers. (DAVIS, Feiticeiros. (DAVIS, 1990, p. 22-23, grifo 1990: 22-23) do autor).

Um, em cada cinco californianos, vive na pobreza; o índice mais alto do país. Além disso, a Califórnia tem 140 mil sem-tetos, fundamentalmente nas cidades de LA e San Francisco. Representam 25% de pessoas em situação de rua no país e cerca de 10% estão apenas em LA. O estado é desigual, a moradia é cara, o preço médio de uma casa é US$ 540 mil. Só cerca de 30% dos lares podem se permitir a pagar uma hipoteca assim, assumindo 20% de entrada. São as facetas mais sombrias da cidade considerada umas das capitais do mundo, que nos levam ao inferno da classe subalternizada e pobre trabalhadora. Uma cidade glamourizada e considerada, pela maioria dos que ali buscam uma vida, como um lugar mítico, onde tudo é possível acontecer. “O paradoxo da fábrica de sonhos e da manufatura idílica de pesadelos” (Mike Davis,1990). Alguns em LA vivem em um potencial set de filmagem; na Hollywood Street parece ser halloween todos os dias. Cidade louca, uma grande metrópole, multicultural, super diversificada, com muitos nichos representados por específica vizinhança, em que cada região tem uma identidade muito singular.

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Um ritmo super acelerado, ao mesmo tempo em que se pode viver a cidade com imersão cultural de todas as formas, do entretenimento à diversão e culinária. Apresenta a internacionalização da formação de classes com enorme quantidade de trabalhadores manuais latinos e um crescente estrato rentista de investidores asiáticos. “Ondas de imigrantes chineses, coreanos e armênios de classe média, aumentados por israelenses, iranianos e outros, fizeram de Los Angeles o centro mais dinâmico do capitalismo étnico familiar no planeta” (DAVIS, 1990, p. 104). 3.999.742 pessoas vivem na área metropolitana de LA, o maior condado do país. São muitos imigrantes, vindos de todo o mundo para trabalhar na grande indústria do entretenimento. Dos moradores de LA, 36,9% são nascidos fora dos EUA, e, desses, 60% são latino-americanos e 30% asiáticos (Gráfico 2)136.

Gráfico 2 – Dados de estrangeiros residentes em LA – naturalidade.

Os residentes de LA se configuram em metade do gênero masculino e metade do gênero feminino. A maior porcentagem da população é latino americana majoritariamente da região central - 39%, sendo declarados 28% brancos, 11% Asiáticos e 9% negros. (Gráfico 3).

Gráfico 3 – Dados de residentes em LA – Gênero e Etnicidade.

136Todos os dados e gráficos a seguir foram reproduzidos a partir do censo oficial. (Disponível em: censusreporter.org. Acesso em: 21 maio 2019). A confiabilidade dos dados foram conferidas com o Prof. Dr. Kevin B. Anderson.

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59% da população residente em LA têm uma outra língua falada dentro das moradias, sendo a língua espanhola, a principal segunda língua e 42% dos adultos falam apenas inglês dentro de casa.

Gráfico 4 – Idioma.

O Glamour e a ilusão de que quem vai para LA tudo alcança pode ser contraposta pelos dados sociais de que 17,4% pessoas vivem atualmente abaixo da linha da pobreza. (Gráfico 5).

Gráfico 5 – Pobreza.

Para se locomover em LA é preciso ter carro, o sistema de transporte não é

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dos mais eficientes e são longas jornadas para se chegar aos destinos, 70% da população usa carro para trabalhar (Gráfico 5).

Gráfico 6 – Meios de transporte para o trabalho.

O maior ranking de iletrados em todo o país, 33, 5%, está na Califórnia e apenas 10% da população possui graduação superior (Gráfico 6).

Gráfico 7 – Níveis de escolaridade da população de LA

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Figura 112 - Axis Valhalla, Art District, Los Angeles

Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2018).

Algumas expressões de artistas engajados apresentam uma forma contestatória e insurgente a um tipo de sociedade. A produção artística se refere a um mundo inteiramente nosso e tem um caráter evocador de si mesma que reflete as contradições da vida social. A arte atua essencialmente na conscientização dos conflitos histórico-sociais que brotam da realidade. Assim, selecionamos alguns murais, graffitis, estêncil e pixo por valores simbólicos, políticos ou por apresentarem um questionamento social no conjunto das representações. Selecionamos fotografias sobre artes urbanas e, a partir delas, recolhemos reflexões da questão redigida em forma de ensaios com os temas que se impõem 210

ao instante do real contemporâneo: ansiedade, depressão, alienação, feminismo, degradação ambiental, crise do capital. Ao mesmo tempo, tentei escolher não apenas reproduções representativas de uma dada realidade mas algo que penetrasse os poros e os sentimentos, não tão somente contemplativos, mas com inclinações de práticas, críticas ou vislumbramentos de um tipo de sociedade. Quais serão os teores de verdade que as imagens contém e induzem a quais efeitos, quais são as origens históricas e quais os destinos políticos da estética contemporânea mais difundida no mundo? No que as imagens públicas urbanas concernem ao jeito de ser de indivíduos e das coletividades? Ao resgatar toda referência cultural e artística do legado da humanidade há que se pensar no desenvolvimento da própria cultura e de que maneira ela se articula com a universalidade137. Em sua obra Estética, o filosofo húngaro György Lukács decifrou que as respostas humanas emocionais estão vinculadas ao mundo objetivo circundante que as desencadeiam, os indivíduos reagem no interior de alternativas concretas nas relações entre liberdade e necessidade. A nossa proposição aqui é a de que a criação artística é, ao mesmo tempo, descobrimento do núcleo da vida e crítica da vida sendo parte do processo de autoconsciência da humanidade. Para além dos interesses práticos imediatos, a arte afeta a humanidade por inteira, à substância humana dos indivíduos histórico-sociais, contra as tendências que ferem e envelhecem a integridade humana. Em sua dialética, a arte possibilita a elevação do indivíduo de sua genericidade em si à sua genericidade para si, à compreensão do caráter histórico-social da individualidade. Se a criação artística remete à autocompreensão dos indivíduos em seu vínculo com a história, os destinos sociais, a estética e a dimensão ética se encontram numa viva unidade. Aqui propomos que a experiência estética da arte urbana é parte causadora da transformação qualitativa da subjetividade em relação à coisificação e fragmentação do indivíduo sob o sociometabolismo do capital. Se a barbárie é o real, se a arte contemporânea verifica uma crítica social, ética e política ao real,

137 É fundamental que o ser humano genérico se aproprie de todos os bens culturais produzidos pela humanidade. (...) Uma nova classe não recomeça a criar toda a cultura desde o início, mas se apossa do passado, escolhe-o, retoca-o, o recompõe e continua a construir daí. Sem o uso do guarda-roupa de “segunda mão” do passado não haveria progresso no processo histórico (...) Os dias que vivemos ainda não representam a época de uma nova cultura, mas no máximo seu limiar. Devemos em primeiro lugar nos apossar oficialmente dos elementos mais importantes da velha cultura, a fim de podermos ao menos abrir caminho à construção de uma cultura nova (TROTSKY, 2007, p. 143 e 154).

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ainda podemos voltar a apontar para o futuro. Não é apenas identificar a catástrofe mas reinventar a cidade ludicamente e criar novas possibilidades de sociabilidade humana. As dimensões políticas, embora não sejam obrigatórias, estão presentes na arte. Se na política existe a organização da vida em sociedade; na arte, temos o sentido da beleza, felicidade, do prazer, gosto e, possivelmente, da influência moral, mas a arte mostra, em cada uma das suas linguagens próprias, uma forma de vivenciar o mundo, e, por vezes, de captura magnética ou aprendizado prévio para apreciação. Tais dimensões podem aparecer nos fatos urbanos, na memória privada que reflete o processo de reprodução do cotidiano urbano, a realidade, enquanto modo de ver a sociedade, ou, também, de maneira consciente e estrategista e de proposição moral e de influência de comportamento enquanto arte engajada, de protesto, marginal, as duas últimas no campo da desobediência civil em forma de arte. No filme The Edukators (2004), o diretor e roteirista Hans Weingartner descreve os últimos dez anos de sua vida, numa tentativa de encontrar um movimento político que dialogasse com os anos de ativismo político por ele vivido. A resistência poética baseia-se em um trio que invade mansões de pessoas milionárias para bagunçar, mover todas as coisas de lugar. Uma ação direta não violenta que balança individualmente as estruturas mas não está atenta a causar transformações. O filme alemão narra a insatisfação de três jovens que se tornam “os educadores” e ao invadirem propriedades alheias sem roubar nada criam uma sensação de insegurança e de falta de comando. Uma tática de mudança de padrão de comportamento, de questionamento do status quo. O título original: Die Fetten Jahre Sind Vorbei/Os Dias de Fartura Estão Contados, consta nas mensagens deixadas nas casas. Questiona-se o consumismo, o abuso das televisões, a desigualdade social.

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Figura 113 - Todo coração é uma célula revolucionária. (trad.).

Fonte: Imagem Frame do Filme Edukators, 2003.

A ação não violenta de bagunçar a casa alheia apresenta-se ali na desobediência civil contra a supremacia de uma classe social sobre a outra ou de um grupo social sobre o outro. A emergência de superar o sistema vigente, as leis, normas e formas de governo apresenta por meio da objetivação do ato, a busca por mudança, mas qual o imperativo histórico e concreto? A desordem para acabar com a riqueza? No desenvolvimento das dimensões antropológica, econômica e política das forças sociais e da história, a cultura engloba os valores, as normas e regras, as linguagens, as formas de expressão, as artes, formas de vestir, comer, adornar o corpo. Uma forma de ilustrar o poder das normas sociais é por meio das reações às violações das normas. Aqueles que violam as regras são comumente alvo de críticas dos demais. Algo como ser repreendido por pegar gelo com a mão no freezer ou ser ridicularizado pela menor falta de etiqueta à mesa; as normas são poderosas, pois as normas e os valores podem se tornar leis. As contestações, militâncias e os ativismos nas ruas ora ocorrem por meio de um discurso crítico, um protesto verbal, palavras de ordem/slogan; de recursos não verbais, como barricadas com pneus, paralisação de uma via com caminhões em protestos coletivos; em protestos individuais pode-se atear fogo ao corpo,

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praticar jejum prolongado, ou suicídio público. O direito de greve, uma contestação de trabalhadores, por exemplo, está em vias de ser extinto. Ao longo da história, outras manifestações coletivas que desobedecem à lei em nome de um ideal, da conquista de direito, transformação societária, notória injustiça são: a rebeldia, desordem de rua, as insurreições, agitações momentâneas. E, ainda, as mídias sociais vêm transformando protestos políticos numa nova forma de comunicação e estratégia de mobilização, diferente das mobilizações da década de 1960138. As diversas mobilizações sociais139 expressam um conjunto de ações coletivas dirigidas tanto às necessidades imediatas de melhores condições de vida e trabalho, quanto às manifestações históricas na construção de novas sociabilidades, em que as ações de rua, os bloqueios, as passeatas, paralisações e pichações são estratégias de agitação e propaganda das lutas sociais. As múltiplas formas de organização apresentam distintas motivações ou demandas de classe, gênero, etnia, raça, religião, entre outras, e têm papel fundamental na superação das formas de exploração e dominação capitalista e na construção de uma nova sociabilidade.

138Por exemplo, os protestos turcos antigoverno, em 2013, publicaram mais de 10 milhões de tweets. Se a mídia local não divulga, usar bem essas ferramentas pode ser uma forma eficiente de comunicação. 139Por movimento social se entende que é sempre uma ação coletiva decorrente de uma luta sociocultural, econômica ou política. São elementos constitutivos dos movimentos sociais: estratégias, identidade e visão de mundo, lideranças, articulação, redes de mobilização, comunicação, ocupações urbanas. Podem realizar ações coletivas propositivas as quais resultam em transformações nos valores e instituições da sociedade. Mas também pode haver mobilização social que abarca outros valores; de conquista de novos direitos, de contestação ao sistema capitalista ou manutenção do status quo. 214

Figura 114 - Imagem da esquerda, Os Gêmeos; imagem da direita, o italiano Blu. Avenida Fontes Pereira de Melo, prédio vazio, Lisboa/Portugal.

Fonte: Imagem por José Ivanez dos Santos - pai da autora.

O grafiteiro/muralista italiano Blu é um artista engajado, tem sua identidade escondida e começou a pintar em Bologna/Itália. Nessa mesma cidade, decidiu apagar todos os seus trabalhos das paredes em protesto contra a especulação imobiliária; eram murais com mais de 20 anos. Os murais de Blu podem ser encontrados em cidades como Berlim/Alemanha, Santiago/Chile, Lisboa/Portugal, Cidade do México, Belgrado/Sérvia e Manágua/Nicarágua. Suas obras ocupam faces inteiras de edifícios, na indissociabilidade do prédio e mural.

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O conteúdo político emerge do seu trabalho, por exemplo, no Chile, os murais cercam o rio Mapocho e retratam o projeto da construção da hidrelétrica de Hidroaysén e seu impacto ambiental no ecossistema da Patagônia. A prefeitura de Bolonha inicialmente quis abolir o que chamavam de “vandalismo gráfico” e passou a oferecer um serviço pago às administradoras de condomínios para remoção dos graffitis. E depois quando os murais começaram a ficar famosos propôs fazer tours de arte de rua com a criação de produtos: estampa de cartões, capas de livros e discos. A cidade começou a usar a estética da resistência para suas campanhas de marketing140 e para posar de salvadora da arte de rua. Para evitar que seus murais se tornassem privados e pudessem impulsionar na alta de preços dos aluguéis e propriedades da região, o muralista Blu começou a apagar os murais antes da abertura da exposição. Com a ajuda de coletivos locais e voluntários, Blu cobriu de tinta cinzenta suas obras, algumas com mais de vinte anos de existência. O capitalismo está em crise, ao mesmo tempo, contraditoriamente, está fixado como modo de vida predominante e apresenta uma hegemonia internacional. Um sistema rígido, que afunila a riqueza para uma pequena elite burguesa. Desde a década de 1970, nos contam a mentira do gotejamento econômico: se cortarmos as taxas das grandes riquezas, então, trabalhos serão gerados e todos se beneficiarão. A classe dominante, detentora dos meios de produção, que detém a riqueza socialmente produzida, por meio da exploração da força humana de trabalho, vem destruindo o meio ambiente, expandindo o complexo industrial prisional, congelando gastos com a educação pública e programas sociais, e declarando guerra aos sindicatos. Tudo isso sob a alegação de uma “democracia saudável” que se sustenta a serviço do capital sobre o trabalho. Na realidade, bancos, instituições financeiras, empresas e corporações, acumulam mais poder do que o próprio governo. Suas decisões afetam a todos, mas ninguém os elegeu e eles não são responsáveis perante ninguém. Suas únicas

140 Se, por um lado, os organizadores da exposição não pediram autorização para o autor, antes de incluir suas obras no evento, por outro, os murais foram retirados pelo museu de prédios abandonados para serem exibidos no evento e os envolvidos alegam que pediram permissão aos proprietários dos edifícios. O caso de Blu expõe as reações contraditórias despertadas por trabalhos não requisitados ou permitidos que oscilam entre rejeitar como poluição visual indesejada pelos proprietários e pela administração pública, ou promover como atrativos turísticos e imobiliários.

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motivações são os resultados finais. Decisões econômicas e políticas que afetam a vida das pessoas comuns devem estar sob controle popular. À medida que os ricos ficam mais ricos, as pessoas comuns trabalham mais e lutam para sobreviver. O capitalismo em chamas limita a democracia, porque a elite econômica pode comprar o poder, o que deveria estar na soberania exercida pelo povo (democracia) Esse não é um sistema que promova a aptidão de muitos, e sim de poucos. É um sistema que desconsidera o bem-estar das pessoas e da maioria da população do planeta. O futuro das reservas naturais de água, óleo, pré-sal e o grau de sustentabilidade e salubridade para habitarmos o planeta Terra têm dependido dos níveis de expansão do capital. A expansão constante que produz rompantes destruições de variadas espécies, desmatamento, extorsão de reservas naturais; ou você acha que basta você reduzir o seu tempo do banho para que as coisas mudem?141 É evidente a necessidade de ser superada essa ordem metabólica destrutiva da humanidade e natureza. Qual o desafio maior senão o de destruir o curso destrutivo do capital? Até que ponto o desenvolvimento econômico, a pós- industrialização, a pós-colonização e a modernização podem ser considerados progresso? O ser humano tem origem na natureza e é ele próprio ser orgânico e natural; seus atributos de diferenciação com os demais seres naturais aparecem em sua autoconstrução humana, na materialidade da existência histórica, a partir da relação com a natureza. O devir do ser humano está para si mesmo, em relação à natureza e o devir da natureza está para o ser social. A natureza é seu corpo e sua alma. Na interatividade do homem com a natureza (mediada pelo trabalho), a fim de satisfazer suas necessidades, o homem não somente a alterou como também a si mesmo e se distanciou dela, logo, possibilitou-lhe – também por meio do trabalho – criar a linguagem, cuja finalidade foi a de se comunicar com os demais e, concomitantemente, produzir arte, cultura, formas de organização societária e outros atributos que resultam das relações travadas no mundo humano. É no ato do trabalho que os homens vão rompendo as barreiras naturais; é a libertação dos

141 A barbárie capitalista é omnilateral e polifacética - e é ubíqua: contém-se no arsenal termo-nuclear que pode aniquilar repentinamente todas as formas de vida sobre o planeta tanto quanto na lenta e cotidiana contaminação/destruição dos recursos hídricos, que pode igualmente inviabilizar a vida sobre a terra. (NETTO, 2010, p. 31). 217

limites da natureza. No entanto, na exploração desenfreada desse ato, dessa relação, é que os limites da natureza se fazem novamente presentes e não se pode ter controle das forças da energia natural com a incessante expropriação. O trabalho, para Marx, é condição fundamental para a existência humana; é atividade universal do ser humano. Escrevendo em 1876, em seu ensaio intitulado O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem”, Engels (1976), ao afirmar que não só a riqueza, mas também o homem é o produto do trabalho, evidencia que o trabalho está contido nos homens, pois foi o trabalho que os criou. Concordando com o autor, partimos da premissa de que o processo de desenvolvimento do homem é resultado do trabalho, devido ao homem (por meio do trabalho) ter dado o salto – ontológico – de ser animal para social. O trabalho possibilitou ao homem se libertar da natureza e subordiná-la. Para manter a vida humana, há necessidade eterna de relacionamento com o mundo da natureza, onde se encontra o necessário para a existência. E até quando manteremos esse hiato com a natureza, se somos parte dela? A natureza é o corpo do humano e com ela devemos permanecer em relação, para não morrermos; o humano é parte da natureza e o trabalho é atividade-meio vital dessa relação. A economia capitalista nutre a ilusão de que mais capital gera mais vida, que gera mais capacidade para viver. Enquanto isso, a luta e a histeria coletiva na preocupação em sobreviver dirige-se ao sustento da mera vida e não da boa vida. A humanidade não precisa sucumbir à barbárie.

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Figura - 115. Mural do grafiteiro espanhol Belín na Alemanha.

Fonte: @Belín

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Miguel Ángel Belinchón Bujes, o Belin, nasceu em 26 de setembro de 1979, na cidade de Linares/Espanha. Belin apresenta uma arte com uma justaposição de estilos. Aqui vemos um mural hiper-realista, com a reprodução minuciosa do rosto de uma senhora, combinado a um corpo e cores, sombra e luz, na roupa, mais lúdico. Uma idosa solitária tem nas mãos um cofrinho, depreende-se que ela não tem apoio da família, do Estado, apenas conta com as moedinhas para sobreviver. Essa senhora nos faz lembrar de algumas personagens da terceira ou quarta idade que circulam por São Paulo, algumas estão em situação de rua. Qual é o lugar na sociedade de uma pessoa após os 75 anos? Ela não está aposentada, ou é aposentada compulsoriamente; se receber aposentadoria, será, em média, um salário mínimo por mês, o que hoje, no ano de 2018, é de R$ 954. Uma pessoa nessa idade tem mais gastos cotidianos do que um adulto de 50 anos, porque tem que cobrir a compra de medicações. O lugar social da pessoa idosa é ficar para “escanteio”; a capacidade de raciocínio, em geral, fica mais lenta; não há espaço de socialização no trabalho, na família, por vezes, os mais novos não têm paciência e já se mantém o poder de voz e ensinamento de que o respeito foge à regra, para com os idosos. Se pensarmos nos espaços destinados à socialização dos grupos que não podem trabalhar, vemos clubes, escola, parques de diversão, brinquedotecas, para crianças na fase de crescimento, mas e para uma senhora idosa, o que há? No filme Réquiem para um Sonho, de Darren Aronofsky, é apresentada uma visão frenética, perturbada e única, sobre pessoas que vivem em desespero, mas que tentam caçar seus sonhos. Harry Goldfarb e Marion Silver formam um casal apaixonado, que tem como sonho montar um pequeno negócio e serem, assim, felizes; mas ambos são viciados em heroína, o que faz com que, repetidamente, Harry penhore a televisão de sua mãe, uma idosa que fica o dia todo em casa, para conseguir dinheiro. Sara, mãe de Harry, é viciada em assistir programas de TV, e um dia recebe um convite para participar do seu show favorito, o Tappy Tibbons Show, que é transmitido para todo o país. Sara começa a tomar pílulas de emagrecimento, receitadas por seu médico, para entrar em seu vestido predileto. Só que, aos poucos, Sara começa a tomar cada vez mais pílulas, até se tornar uma viciada no medicamento. A crueza de um tipo de realidade está

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ali representada, é o lugar a que estão relegados tantos idosos que não tem mais serviência à sociedade em chamas. Nas famílias, decai a autoridade de homens e mulheres mais velhos. Na sociedade industrial, já aposentados, tornam-se mais pobres do que enquanto compunham a força de trabalho ativa. Já sem função laborativa ou familiar, muitos idosos apresentam dificuldade em manter uma vida digna. A questão do isolamento pode ser um estereótipo, se olharmos para as estatísticas de que ainda continuam a se relacionar com a família e que os filhos adultos cuidam de seus pais. Mas qual é a qualidade dessas relações sociais? Figura - 116- Bratislava/Eslováquia.

Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2013).

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Figura 117 - TVNAUTA, por Celso Gitahy

Fonte: Imagem cedida pelo artista.

Uma cabeça de monitor de computador e tigres sedentos de petróleo; ao fundo, as cores da bandeira brasileira, o verde e o amarelo. Os elementos de

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composição remetem a uma vivência muito atual. O que seria esse rolê chamado “Americanização?”. Tal influência não se restringe ao meio financeiro, mas é considerada como impulso para a difusão de sua cultura, padrão de vida e ideais, que repercute na substituição de características nacionais por valores dos demais países, em busca de assemelhar-se (ainda que involuntariamente) com o que é valorizado. Seria o povo brasileiro demasiado certinho, educado para ser servo? O país é mais velho que os EUA, mas não pode se desenvolver jamais. Porque o Brasil é um dos países mais “paga pau” e americanizado do mundo? No Brasil, vendem- se as estatais a preços baixos e favorecem a entrada do capital internacional. Por onde caminha essa síndrome de pequenez? Temos petróleo, água em abundância, fauna, flora, ervas medicinais. Mas teve o caso da produtividade das refinarias abaixo da capacidade, em 2018, quando o nosso petróleo foi enviado para ser refinado fora do país para er (re)comprado com valor atrelado ao dólar, escancarando a abertura do mercado nacional para o mercado externo. Semiurgia é a ciência da manipulação da força ideológica do discurso para efeito de domínio sociopolítico. Fui buscar um biquíni na loja e vi uma calça que não é mais bailarina, é flare; e o biquíni cintura alta, é cropped; e os outros modelos todos de calça: pantacourt, cigarrete, boyfriend, legging, skiny, jegging, fitness, wellness e a loja, em promoção, estava, é claro, On sale e 50% OFF. Não é novidade sermos colonizados. Se a língua é pátria, estamos americanizados. Há uma massiva divulgação do modo de vida americano, por meio da indústria cinematográfica, de onde são transmitidos padrões de comportamento, jeito de ser e consumir. E o uso cotidiano das palavras: backup, shopping center, jeans, pen drive, check-in, design, ok, link, show, jeans, pizza, delivery, game, TBT - throwback thursday. O homem no estêncil tem cabelo LCD, os tigres com cabeça de motor LCD encurralam a figura central; o espraiamento da comunicação eletrônica e a mídia de massas desenvolvem um papel muito potente na reprodução da vida social. Influenciam a partir dos signos, memes, imagens, fluxos contínuos, das mensagens cognitivas e subliminares. Essa é a idade da dominação midiática, em que todo o significado é criado pelo fluxo imagético. Parte significativa de nosso mundo tornou-se um universo de faz-de-conta, em que respondemos muito mais

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a imagens nas mídias sociais do que a uma pessoa real. A vida é fragmentada, dissolvida e descrita na TV; a vida é inventada, falseada por meio dos aplicativos. Na idade cibernética, tudo é produto cultural baseado em imagem. Votamos em memes, Facebook é sinônimo de RG, só que com muito mais informações sobre nossos hábitos e padrões; e ideológico, com “infos” que são divulgadas para influenciar o nosso consumo, voto, posicionamento frente à vida. É veículo de informação sem nenhum filtro. O que aqui está, é verídico e ponto, e assim é a rede de buscas mundiais. Quem é que passa da página 2 do Google para pesquisar algo? A informação rasa e fácil. Se Baudrillard, que, em sua juventude, foi influenciado pelo marxismo, diz que a expansão da comunicação eletrônica e do poderio dos meios midiáticos de massa revertem a teoria marxista de que as forças econômicas moldam e influenciam a sociedade. Mas quem rege os meios de comunicação? Após os períodos revolucionários, de colônia; períodos de governos de ditadura, agora o capital, que se reestrutura cada vez mais rapidamente, adentrou profundamente as subjetividades. As novas práticas sociometabólicas da sociedade neoliberal tendem a fragmentar as subjetividades. Os tipos humanos, que a sociedade burguesa produz, forma e deforma, têm em si, na mente e no corpo, a marca do fetichismo da mercadoria. A individualidade de classe, na medida em que a negação da individualidade pessoal tensiona, no limite de sua negação, a subjetividade humana. O capitalismo vai saturando as formas de ser e existir, tanto nas condições objetivas, materializadas no trabalho e suas formas, quanto nas várias dimensões da subjetividade (personalidade, reflexo condensado, criatividade, desejos, pulsões, cognição, em que se relacionam consciente versus inconsciente). O sociometabolismo do capital é constituído por processo de subjetivação, que forma os indivíduos e as classes. Nesse sentido, objetividade e subjetividade, se apresentam em uma unidade. A sociedade imersa no capitalismo em chamas é uma subjetividade em frustração constante, por não atingir o nível de exigência, uma subjetividade em desefetivação pelo estresse de longas jornadas de trabalho e alcances de produtividade também na vida familiar e na social e zumbizada pelas teias da manipulação social. As imagens publicitárias com incentivo a práticas e valores, como o consumismo, individualismo, imediatismo e exibicionismo exacerbados

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encontram-se nos metrôs, ônibus, banheiros, mensagens de celular, spams,em e- mails, nas salas de cinema e no teatro, Instagram, snapchat, Facebook. O uso de instagrans é um exemplo simples da superexposição de imagens e da própria imagem, em que um perfil pode ser divulgador de marcas apenas em troca de produtos. Ex.: Postar fotos esportivas sempre usando produtos nike. A televisão é ainda parte da sociedade do “sim senhor”, “obrigado”, “por favor”. A obediência servil, passiva e de inconsciente atemporal. O sujeito obediente é o do dever, o sujeito ativo pós-moderno142 , é o sujeito do prazer, da liberdade, do bel-prazer, da autoajuda, do ouvido interno. Narcisista, “o eu difunde-se e torna-se difuso” (HAN, 2018, p. 84). O estêncil de Celso apresenta uma crítica aos modos de alienação presentes na sociedade capitalista consumista, a arte pode nos trazer processos reflexivos de se repensar a realidade social, política, cultural e econômica. Como diz o escritor espanhol “O modo mais eficaz de tornar os pobres inofensivos é ensiná-los a querer imitar os riscos. Esse é o veneno com que o capitalismo cega 143. Figura - 118 - Picho com frase do escritor Carlos Ruiz.

Fonte: Imagem por Juliana Abramides

142O pós–moderno é o tempo de hegemonia do capital: Como explicita James Hansen “(…) pós-moderno é justamente o tempo em que o pensamento da oposição não é mais operante na cultura […] conforme a crítica teleológica, […], não mais encontramos a imagem da nossa esperança nos nossos produtos, que passam a existir de modo alegremente autonomizado, em formas que radicalizam o fetichismo da mercadoria como a nossa natureza e realidade únicas e em que encontramos, como realização da nossa felicidade, a indiferenciação, a regressão, a pulsão de morte, em formas hedonistas, conformistas e de má-fé”. (HANSEN, 2000, p. 62-63). 143 A Sombra do Vento, de Carlos Ruiz Zafón. São Paulo: Editora Objetiva, 2015 225

Figura - 119 - Mural na região de casas noturnas entre downtown e chinatown, Los Angeles/CA.

Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2018).

The colonial world is a world cut in two. The O mundo colonial é um mundo cortado em dividing line, the frontiers are shown by dois. A linha divisória, as fronteiras são barracks and police stations. In the colonies it is mostradas por quartéis e delegacias de polícia. the policeman and the soldier who are the Nas colônias é o policial e o soldado que são o official, instituted go-betweens, the spokesmen oficial, instituíram intermediários, os porta- of the settler and his rule of oppression. In vozes do colono e sua regra de opressão. Nas capitalist societies the educational system, sociedades capitalistas, o sistema educacional, whether lay or clerical, the structure of moral leigo ou clerical, a estrutura dos reflexos reflexes handed down from father to son, the morais transmitidos de pai para filho, a exemplary honesty of workers who are given a honestidade exemplar dos trabalhadores que medal after fifty years of good and loyal service, recebem uma medalha após cinquenta anos and the affection which springs from de serviço bom e leal e a afeição que brota da harmonious relations and good behavior--all harmonia relações e bom comportamento - these aesthetic expressions of respect for the todas essas expressões estéticas de respeito established order serve to create around the pela ordem estabelecida servem para criar em exploited person an atmosphere of submission torno da pessoa explorada uma atmosfera de and of inhibition which lightens the task of submissão e de inibição que ilumina policing considerably. In the capitalist countries consideravelmente a tarefa de policiar. Nos

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a multitude of moral teachers, counselors and países capitalistas, uma multidão de "bewilderers" separate the exploited from those professores de moral, conselheiros e in power. In the colonial countries, on the "perplexos" separa os explorados daqueles que contrary, the policeman and the soldier, by their estão no poder. Nos países coloniais, pelo immediate presence and their frequent and contrário, o policial e o soldado, por sua direct action maintain contact with the native presença imediata e sua ação frequente e and advise him by means of rifle butts and direta, mantêm contato com o nativo e o napalm not to budge. It is obvious here that the aconselham por meio de pontas de fuzil e agents of government speak the language of napalm a não ceder. É óbvio aqui que os pure force. The intermediary does not lighten agentes do governo falam a linguagem da the oppression, nor seek to hide the força pura. O intermediário não alivia a domination; he shows them up and puts them opressão nem procura ocultar a dominação; into practice with the clear conscience of an ele os mostra e os põe em prática com a upholder of the peace; yet he is the bringer of consciência limpa de um defensor da paz; mas violence into the home and into the mind of the ele é o portador da violência para o lar e para native. (FRANTZ FANON, 1963, p. 37). a mente do nativo. (FRANTZ FANON, 1963, p. 37).

As diversas formas de racismo adquirem papéis social, ideológico e político. Em O Racismo como Arma Ideológica de Dominação, Clóvis Moura (1994) analisa como o racismo se renova enquanto instrumento de dominação tendo sido ao longo da história a “justificação dos privilégios das elites e dos infortúnios das classes subalternas”. O autor se refere ao racismo enquanto instrumento de ideologia da dominação “[...] e somente assim pode-se explicar a sua permanê ncia como tendê ncia de pensamento”.

O racismo tem um caráter de dominação ideopolítico, além da dominação étnica. Nas nações que vivenciaram a dominação colonial escravista, a herança desses sistemas se reproduz quando mantém um sistema de exploração das camadas trabalhadoras negras e mestiças. Mantém formas de segregação ou de não inserção social dos negros e negras. Desde o século VII, países ocidentais estabeleceram colônias em numerosas áreas, impondo o poderio e as regras em territórios alheios, com uso militar superior e força, o que moldou socialmente o mundo como o conhecemos hoje. O neocolonialismo, ou a fase do imperialismo, multiplica as formas de racismo, em novas roupagens. O racismo como ideologia neocolonial adquire algumas formas, como de “[...] uma reciclagem hipó crita do antigo sistema colonial, que se reestrutura no neo-colonialismo tecnocrá tico, racista”. (MOURA, 1994, p. 15). Em Rebeliões da Senzala, Clóvis Moura 2014 destaca o caráter ativo dos negros na resistência ao escravismo e luta por emancipação. Uma rebeldia permanente e organizada dirigida pelos escravizados em todo o território nacional, no Brasil. Moura destaca que o movimento de mudança radical foi uma

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força importante no desgaste do sistema escravista; dissolveu as bases do modo de vida em diversos níveis – econômico, social e militar – e influiu poderosamente para que esse tipo de trabalho entrasse em crise e fosse substituído pelo trabalho livre. Em Civilização Americana em Julgamento, Raya Dunayevskaya (1983) apresenta contundente crítica à sociedade americana donde fala sobre a auto- atividade do negro desde antes da Guerra Civil até depois da II Guerra Mundial. Em uma clara alusão à política do governo Kennedy, do posicionamento das forças armadas do Estado, “os cães” da polícia nos ataques ao negro e o espraiamento do posicionamento racista “branco do sul uivando aos ventos” para o norte, através do Ku Klux Klan (KKK). Na atividade de organização pelos direitos sociais dos negros, principalmente entre as eras da pós I Guerra e da era pós-II Guerra Mundial, “quando o negro, longe de fugir defensivamente do linchamento, tomou a ofensiva por seus plenos direitos sobre todos frentes e, sobretudo, no sul”. O capitalismo estadunidense, em uma revolução inacabada, expande-se, depois da Guerra Civil. O capitalismo que fora amarrado às plantações de algodão. Ainda em 1877, quando o trabalho emerge no norte e iniciam-se as primeiras greves ferroviárias, toda a mão de obra negra, no sul, se volta para a agricultura. Quais as forças de atuação, no sul, para abandonar a segregação social? Parece que a conclusão, até 1942, era que todo pensamento progressista, no sul, inexistia. Será que a mentalidade patriótica e mestre de escravos ainda permanece por lá, dentre os fazendeiros? A civilização americana é identificada na consciência mundial por três fases, no desenvolvimento da sua história. A primeira é a Declaração da Independência e a liberdade das treze colônias americanas do domínio imperial britânico. A segunda é a Guerra Civil. A terceira é a tecnologia e o poder mundial, que estão atualmente sendo desafiados pelo país, que quebrou o monopólio nuclear da América - a Rússia -, e afirma que todo louvor pela emancipação e pela proclamação da independência não podia branquear o presente ou que a democracia americana jamais poderia reescrever a história. Após a guerra civil, que culminou com o fim da escravidão, em 1865, a discriminação legal (como a segregação obrigatória no sul - hotéis, restaurantes,

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bares, etc. e escolas separados), ataram os negros aos mais baixos degraus da escada econômica). A discriminação racial se tornou-se ilegal desde o ato dos direitos civis, mas, na prática, persiste, apesar de alguns negros terem se tornado classe média, com melhores trabalhos, a maioria é pobre e tem trabalhos mal pagos. A autora marxista defende que há uma nova dimensão humana alcançada por meio do gênio de um povo oprimido na luta pela liberdade, nacional e internacionalmente; o papel da vanguarda dos negros torna-se a medida do homem em ação e pensamento e “[...] nada pode impedi-lo de ser o mais amargo inimigo da sociedade existente” (DUNAYEVSKAYA, 1983, p. 6). No meio da guerra, o negro eclodiu em uma série de manifestações, em Chicago, Detroit, NY, bem como nos acampamentos do exército, com os mineiros, na greve geral do mesmo ano, foram a primeira instância na história dos EUA, quando ambos os trabalhadores, branco e negro, recusaram-se a suspender a luta de classes ou a luta pela igualdade de direitos. Sobre o abolicionismo e a guerra civil, ela fala sobre a impossibilidade de se ter uma definição sobre esses momentos históricos, desde que a atividade do negro, na formação da civilização americana, permanece em branco (até aquele momento) nas mentes dos historiadores acadêmicos. Segue Raya:

O historiador burguês é cego não só para o papel do negro, mas para o do branco Abolicionistas. Principalmente não registrado por todos os padrões historiadores, e hermeticamente selado de seu poder de compreensão, são três décadas de Luta abolicionista de brancos e negros que precedeu a Guerra Civil e tornou isso irreprimível conflito inevitável. No entanto, estas são as décadas quando o cadinho do qual o primeiro grande expressão independente do gênio americano foi forjado. (...) Apenas historiadores negros como W. E. B. Du Bois, G. Carter Woodson e J. A. Rogers fizeram a pesquisa meticulosa para definir o s limites e revelar o papel criativo dos negros na História americana”. (DUNAYEVSKAYA, 1983, p. 7).

O africano, trazido aqui como escravo contra a sua vontade, desempenhou um papel decisivo na formação da Civilização Americana144. No início do século 17, havia cerca de 10 mil negros livres nos EUA. Nesse ínterim, o que a autora ressalta é a importância das revoltas de escravos, primeiro no apelo dos negros

144“Alguns sentem que é errado começar a história do negro na América com sua chegada aqui como um escravo, em 1619, desde que ele já havia alcançado estas costas muito antes - com a descoberta do mundo novo, na verdade, principalmente como servos ou, em alguns casos, na comitiva dos próprios exploradores.” (DUNAYEVSKAYA, 1983, p. 8). 229

livres, no escravo fugitivo sendo "conduzido" através da Ferrovia Subterrânea por ex-escravos fugitivos. Os anos 1820-1830 marcaram o nascimento do capitalismo industrial, de modo que o algodão e a economia das plantações movia o comércio e, na Nova Inglaterra, a indústria têxtil e apolítica em geral. A manutenção de uma “supremacia branca” nos estados do sul surge a partir da produção do algodão. Houve um "acordo de cavalheiros" entre os proprietários das plantações com o capital do norte, bem como com auxílio do KKK, de que, na indústria do sul - os produtos têxteis - se desenvolveriam sob a condição de deixar intocado um suprimento de mão de obra negra das plantações, “quando eles estabelecem o palco desenfreado de violência contra o trabalho” (DUNAYEVSKAYA, 1983, p. 12). Além de estarem livres da escravidão, os negros foram libertados também de uma maneira de ganhar a vida: “sem-terra eram os novos libertos e sem dinheiro” (DUNAYEVSKAYA, 1983, p. 2).

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Figura 120 - O trabalho abaixo ganhou proporções por conta do ano de 2014, das mobilizações não vai ter copa. Vila Madalena, SP.

Fonte: Imagem cedida por Paulo Ito.

O artista pinta em locais públicos nas redondezas do campus universitário desde 1997, com atividades junto a um coletivo. Na rua, por conta própria nos anos 2000, integrou o núcleo do aprendiz do Gilberto DImenstein, na época pintava com rolo e pincel, pintava muros comerciais e postes. A partir daí inicia o uso de spray tendo uma atuação mais solitária, e faz com os amigos o que chama “pintura de domingo”, para pintar, relaxar e curtir no sol mais do que enquanto carreira. Para ele é uma satisfação pintar dentro de uma ocupação e fortalecer o movimento de moradia e vê a sua arte e a pintura como uma forma de colaborar socialmente. Então busca ter essa participação com o movimento social.

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Qual a profundidade de sentimentos que a figura de uma criança representa? Uma criança em choro olha para o céu; uma figura que clama por piedade. Quem negará a necessidade por carinho e alimento de uma tenra face inocente? Quem são esses seres enervados que ignoram os sofrimentos físicos de uma criança?

Só nas estações, quando vai parando, lentamente começa a dizer: - se tem gente com fome, dá de comer; se tem gente com fome dá de comer; se tem gente com fome dá de comer. Mas o freio de ar todo autoritário manda o trem calar Psiuuuuuuuuuuuuu (SOLANO TRINDADE).

Por que mesmo os países ricos também apresentam, dentre a população, pessoas extremamente pobres? A desigualdade de poder e riqueza pode ser visualizada na comparação dos dados econômicos de riqueza nacional, exportação, produto interno bruto e renda per capita e dados sociais de fome, moradia, expectativa de vida, crescimento populacional, mortalidade infantil. Países de alta renda contém 18% da população mundial, mas concentram 68% de riqueza, quase metade da população mundial, 3,4 bilhões de pessoas vivem com menos de 5,50 dólares. A fome, a má nutrição e a famigeração são as maiores causas para problemas de saúde, subsistência e desenvolvimento pessoal. Uma em cada nove pessoas no mundo, ou 795 milhões, não tem comida o suficiente para ter uma vida ativa e sadia. A vasta maioria das pessoas famintas mora em países que foram colonizados, explorados pelos ditos países desenvolvido.145 Não falta alimento no mundo, existe um padrão perverso que caminha para dois sentidos a escassez e o desperdício. Os americanos desperdiçam a cada dia cerca de 150 mil toneladas de alimentos, em torno de 422 gramas por habitante, principalmente frutas e verduras.

145As duas tabelas a seguir são de dados coletados do Serviço de Educação Mundial contra a Fome (disponível em: https://www.worldhunger.org/world-hunger-and-poverty-facts-and-statistics): ⅔ de toda essa população vive na Ásia, a África Subsaariana apresenta a maior prevalência de famigerados, uma em cada quatro pessoas está desnutrida. 232

Gráfico 8 - Desperdício de comida diário per capita nos EUA146 .

Não dá para metade da população no mundo estar com fome ou subnutrida enquanto sustentamos o modelo do consumismo e desperdício de países imperialistas tal qual os EUA. O desperdício é diário, comida no prato, alimentos que passam da validade, a compra daquilo que não se necessita, os restaurantes colocando alimentos na lata do lixo todos os dias. Enquanto tem gente com fome. Ainda há o problema do desperdício na colheita, na produção, transporte, armazenamento, comercialização e consumos dos alimentos. Porcentagem de todas as terras cultivadas colhidas desperdiçadas por categoria e porcentagem de cada tipo de terra cultivada explorada desperdiçada (Gráfico 9) . Total de terras cultivadas desperdiçadas = 30,02 milhões de acres (IC 95%: 29,29 a 30,76 milhões de acres), representando 7,7% (7,5-7,9%) do total colhido: Gráfico 9 - Desperdício de alimentos na colheita.

146 As duas tabelas acima que seguem foram reproduzidas do artigo “Relationship between food waste, diet quality, and environmental sustainability” (Relação entre desperdício de alimentos, qualidade da dieta e sustentabilidade ambiental) https://journals.plos.org/plosone/article/authors?id=10.1371/journal.pone.0195405 233

Será que não existe algo de errado quando se é possível alimentar cada ser maravilhoso neste mundo e bilhões de pessoas estão desnutridas? Tem alimento mas é preciso da mediação do dinheiro para comprar o alimento, ou de terra para plantar o alimento próprio. Então é a pobreza a questão! Se todo mundo puder ter comida, por quê não estabelecemos urgentemente um parâmetro mínimo de humanidade em que esteja decretado que amanhã todos tenham moradia e comida? É o Lucro ou as Pessoas? a tese do Noam Chomsky. É Socialismo ou Barbárie segundo Rosa Luxemburgo. Será que tudo precisa visar o lucro? Até mesmo a comida que é algo básico para a existência humana? Que loucura é essa? Atravessadores na comercialização de comida? Especuladores que fazem fortuna nos mercados futuros de alimentos? Deveríamos começar por aí um processo de socialização das riquezas. Por que não produzir alimento para a vida ao invés de para o lucro? Que tal? Transformar todas as empresas capitalistas de alimentos em cooperativas sem fins lucrativos controladas pequenos produtores rurais e pelos trabalhadores? A pouca nutrição de populações na miséria causa 45% das mortes de crianças com menos de 5 anos, ou 3,1 milhões todos os anos. Crianças abaixo do peso, sem forças, substância para sobreviver, para aprender, crianças com atrofia no cérebro. Se as mulheres agricultoras tivessem o mesmo acesso a recursos que os homens, o número de famintos no mundo poderia ser reduzido em até 150 milhões. Registra-se que 66 milhões de crianças em idade escolar freqüentam as aulas estando famintas, em todo o mundo do sul e Ásia, com 23 milhões somente na África. Em torno de U$ 3,2 bilhões são necessários, por ano, para alcançar todos os 66 milhões de crianças em idade escolar famintas. No mundo, 32 milhões de pessoas passam fome, e mais de 65 milhões de pessoas não ingerem a quantidade mínima diária de calorias, ou seja, se alimentam de forma precária. Quanto foi gasto na Copa do Mundo de 2014, no Brasil? De acordo com o relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), foram R$ 25,5 bilhões. Do total, R$ 7 bilhões foram gastos em mobilidade urbana e R$ 8 bilhões em estádios. As obras relativas a aeroportos custaram R$ 6,2 bilhões e as obras no entorno dos estádios custaram R$ 996 milhões. O Brasil apresenta um potencial agrícola potente o suficiente para dominar o comércio mundial, no entanto a bárbara desigualdade social e a concentração fundiária impede que as pessoas tenham o suficiente para sua nutrição, apesar de

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o país ter alimentos em quantidade suficiente para todo mundo. A fome é um problema social da sociedade cindida em classes, a fome é crônica, é a incerteza da sobrevivência em países como Brasil, Índia, Nepal, Iêmen e vários outros. Com o surgimento da divisão social do trabalho associada à apropriação da riqueza coletiva, rompe-se a condição de acesso à alimentação para parte da população, o que resulta em fome coletiva. Apesar do avanço no combate à fome, nos últimos anos, a pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2016, mostrou que 13 milhões de brasileiros ainda passam fome, e que 50 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza. A luta contra a fome, no Brasil, teve atenção especial durante o governo Lula, quando foram criados programas sociais, como o Fome Zero, que substitui o Programa implantado por FHC: Comunidade solidária; e o programa Bolsa Família que amplia e unifica programas anteriores de transferência de renda . Em 2014, pela primeira vez, o Brasil saiu do mapa da fome da Organização das Nações Unidas (ONU). O direito à alimentação deveria ser o primeiro elemento de um tratado mundial. Mas quem será ingênuo de crer que o capital está interessado em erradicar a fome? O combate à fome, a promoção da segurança alimentar tem que ser política de estado mas por quê não é? É importante enfatizar que a miséria é uma produção humana. Miséria e pobreza são, antes de tudo, uma questão ético- política. A situação de penúria é tal que, ou se tem um trabalho mal remunerado, que não é suficiente para a própria alimentação, o que obriga a todos os membros da família a trabalhar, inclusive as crianças e os idosos! Será que estamos voltando aos tempos da revolução industrial? Que parâmetro de vida é esse em que crianças não estudam e vão pra carvoaria? Em que idosos não podem ter o seu direito ao descanso depois de uma vida toda árdua sol a sol na batalha pela sobrevivência. Estamos em guerra, a guerra por se manter vivo.

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Figura 121 - Drew Merritt, Downtown de Los Angeles, setembro de 2018.

Fonte: Imagem por Juliana Abramides (2018).

O ser contemporâneo inebriado de sono e potencializado a sentir medo em seu ócio, é estimulado a trabalhar ou, então, fugir ao real, absorto em imagens que chegam ao córtex visual primário estimulando a sonolência. O estresse, a ansiedade, obesidade, o esgotamento, a depressão, são vivências corpóreo-psíquicas, ou doenças que estão intimamente ligadas a um modo de vida. Levamos em conta que, por exemplo, a depressão relaciona-se com produções químicas do corpo e a obesidade também pode estar relacionada ao metabolismo da pessoa, mais do que a fatores externos. Ainda assim, essas doenças, além do fator sofrimento, também vinculam-se ao aparecimento de novas doenças estimuladas por essas.

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Esses processos de desefetivação ampliam o mundo subterrâneo da alma ao abafar processos de criatividade e limitar capacidades ontológicas humanas fundamentais, na redução da criação de alternativas. Somos afetados por símbolos e sentidos implícitos na reprodução cultural e o consumismo é a principal forma de fetichismo. As dimensões corporal, espiritual e mental, que compreendem a subjetividade, estão estimuladas para a liberação de instintos e desejos, atrelando o desejo de ser ao desejo de ter (consumir), com hiperssexualização, com permanência do estímulo à disciplinarização e ao produtivismo, com formas cada vez mais plurais de realização, ao mesmo tempo em que se exige a ultra especialização novamente, como forma de consumo e não finalidade, já que o mais especializado será tão igualmente precarizado, mas com força motriz inversa, dado o tempo de escolarização. A massiva desesperança e vontade de morte toma conta manifesta no excesso de estímulos, informações, imagens, impulsos. A atenção excessiva em uma longa jornada de trabalho ou duas nos deixa estafados. Nós enchemos o mundo com objetos e mercadorias com vida útil e validade cada vez menores. essa loja de mercadorias não se distingue muito de um manicômio. Aparentemente, temos tudo; só nos falta o essencial, a saber, o mundo. O mundo perdeu sua alma e sua fala, se tornou desprovido de qualquer som. O alarido da comunicação sufoca o silêncio. A proliferação e massificação das coisas expulsa o vazio. As coisas super povoam céu e terra. Esse universo-mercadoria não é mais apropriado para se morar. (...) Já é hora de transformar essa casa mercantil novamente numa moradia, numa casa de festas, onde valha mesmo a pena viver. (HAN, 2018, p.127- 128) A apreensão do tempo na atualidade coloca o indivíduo refém do instante presente por não se abrir ao passado e nem ao futuro, o que permite dizer que a atuação em projetos, do indivíduo que não apresenta identidade pessoal, a qual depende da persistência do ‘eu’ através do tempo, será nula, pois, este não se lança ao futuro. A sociedade industrial dependia de uma identidade persistente a sociedade do esgotamento (Byung-Chul Han) necessita de flexibilidade, multitarefa para o aumento produtivo. A lógica pós-moderna com ênfase no presentismo, na valorização do consumo de forma a levar ao extremo o fetichismo da mercadoria, em que a publicidade e o show business triunfam enquanto dimensão artística, contribui para a reprodução e ampliação da alienação presente no modo de produção capitalista. A sociedade do desempenho é a nossa angústia, fracasso, sentimento de insuficiência transferido para o consumo. O mundo se vê

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confrontado em ser o si mesmo que se transfere por ter que ter pra ser o si mesmo. A multitarefa não é uma capacidade para a qual só seria capaz o homem na sociedade trabalhista e de informação pós-moderna. Trata-se antes de um retrocesso. A multitarefa está amplamente disseminada entre os animais em estado selvagem. Trata-se de uma técnica de atenção indispensável para sobreviver na vida selvagem. Nesta outra etapa da modernidade, vive-se num “estado de perpétua emergência” (BAUMAN, 2005, p. 41) e ir contra o caos estabelece a medida de ir pela norma e lei de uma sociedade em degenerescência das relações sociais e fragmentação das relações de produção. No tempo devastado pela objetividade e subjetividade do capital em meio à banalização cultural generalizada os humanos inseridos nessa sociabilidade aprendem a se comportar na intensidade fragmentada. O ser humano tem potencialidades inerentes a si e para sua concretização busca a projeção para fora de si da sua potencialidade no processo teleológico de acúmulo de finalidades posto em ação. No processo de consciência é possível perceber a finalidade contida na ação, no entanto, a prévia ideação pode não caminhar para a teleologia. Entende-se que as determinações objetivas, por vezes, dificultam a efetivação de uma vida lúdica e sensibilizadora; ainda assim na cotidianidade, é possível enxergar além da parede, sempre, em busca das suspensões147. O processo de coisificação a valorização das coisas se tornam sombras que colocam a valorização humana na penumbra do palco. Afirmar a humanidade é repor as relações diretas entre os seres sociais sem que elas sejam reduzidas e mediadas pelas coisas, isto é, colocar como central a dissolução dessa sociedade pautada nas relações coisificadas. O capital, o modo de vida burguês é uma

147 “Elas – que permitem aos indivíduos, via homogeneização, assumirem-se como seres humano- genéricos – não podem ser contínuas: estabelecem um circuito de retorno à cotidianidade; ao efetuar este retorno, o indivíduo enquanto tal comporta-se cotidianamente com mais eficácia e, ao mesmo tempo, percebe a cotidianidade diferencialmente: pode percebê-la como espaço compulsório de humanização (de enriquecimento e ampliação do ser social). Está contida aqui, nitidamente, uma dialética de tensões: o retorno à cotidianidade após uma suspensão (seja criativa, seja fruidora) supõe a alternativa de um indivíduo mais refinado, educado (justamente porque se alçou à consciência humano-genérica) (...) CARVALHO; NETTO, 1996, p. 70). A determinação essencial do indivíduo está em seu caráter humano genérico e se confirma no processo de elaboração do mundo objetivo, onde “se relaciona consigo mesmo como um ser universal, e por isso livre”. (MARX, 1992, p. 85) O ser humano é ser existente conscientemente para si mesmo e além de ser objetivo é um ser genérico, para Marx a objetividade genérica (Gattungsgegenständlichkeit) expressa a universalidade humana que se objetiva na realidade, a objetividade está em que cada objeto do seu trabalho que é, portanto a objetivação da vida genérica humana.# 238

existência circundada por coisas ou objetos, a reprodução e força de existência do capital está nas formas de realização da produção, da circulação e do consumo desses objetos-mercadorias. A imagem aqui é a forma final do objeto e o extremo do fetiche, a forma final da reificação da mercadoria. A sociedade de mercado é movida por esses valores imagéticos em que o mundo fetichizado com formas-fetiche movem as existências. Como ilustração, uma trabalhadora poupa 08 meses de salário para comprar um produto com multi-funcionalidades pouco utilizadas mas por ser uma mercadoria de imagem- último tipo. Ao comprar este objeto-imagem sente-se mais bonita, mais poderosa e inserida socialmente. Esta mulher será elogiada por ter esse objeto. Não é o valor de uso do objeto que fascina mas a generalização do código “atualização”. O sistema deverá ser atualizado (software, app sistema Os ou etc), estar em compasso com a moda ou a atualidade dos usos de roupas, o que pressupõe novos consumos. O código estar atualizado se liga ao presente perpétuo148. Além da ausência de perspectivas e de projetos, da crise econômica e falta de empregos há um convencimento, uma compreensão de que buscar uma outra forma de sociedade e o comprometimento com a vida cotidiana coletiva é algo utópico. A nós foi ensinado de que não há mais possibilidades, que o capitalismo venceu. E é esse o cerne da diferenciação entre moderno e pós- moderno. A insegurança social gerada na era do assalariado precário e do desemprego estrutural em massa é gerida pela mão direita do controlador de vidas, o aparato repressor do Estado. A adesão da classe dominante à ideologia neoliberal resulta na redução do Estado Social, no aumento do favorecimento econômico das classes dominantes pelo Estado e no fortalecimento do Estado penal para os pobres. Esta ênfase prisional se apresenta no encarceramento em massas majoritariamente de pobres, jovens e negros e do extermínio desta mesma população. A criminalização da pobreza no Brasil é uma cultura pública inscrita na estrutura do Estado. Ora, se determinadas práticas de sobrevivência se tornam recorrentes elas

148“O próprio ato de consumir se apresenta sob a aparência de um gesto cultural legitimador, na forma de bens simbólicos - como se disse à exaustão: de imagens ou de simulacros. É a forma-mercadoria no seu estágio mais avançado como forma-mercadoria no seu estágio mais avançado como forma-publicitária. O que se consome é um estilo de vida e nada escapa a essa imaterialização que tomou conta do social (...) a cultura tornou-se peça central na máquina reprodutiva do capitalismo, a sua nova mola propulsora”. (ARANTES, 1998, p. 99) 239

se sobrepõe à legalidade e a lei se torna retrógrada. Vejamos se o Estado que deve promover emprego para a regulação social, prioriza investimentos em bancos ao perdoar dívidas bilionárias e congela gastos sociais. Esse Estado está reproduzindo condições de desregulação social que empurra. Aqui lembramos que o entendimento de uma sociedade em decadência sendo a arte vinculada a este momento histórico mais relacionada a ele a arte urbana ou street art. A essência histórica desta realidade conduz a um ciclo autêntico desta compreensão de mundo ao nos referirmos ao conhecimento imanente. Este corpo nobre lotado de tudo que precisa, mastiga e devora a sua própria negação. Byung-Chul Han em seu pequeno e inovador livro a Sociedade do Cansaço argumenta que hoje já não vivemos na sociedade disciplinar, da negatividade e proibições, isso primordialmente, já que sempre há uma combinação de formas de viver. A sociedade do desempenho torna-se a sociedade do esgotamento através do poder hábil. O sujeito de psique da afirmação. Um combo transicional de uma sociedade disciplinar, onde entre muros e paredes, a vida foi apagada. Onde o sujeito obediente e mental ainda não é depressivo; e a do esgotamento neurológico e informacional de descrença e labirinto quanto ao futuro, o que nos incapacita para tomar ações.

We shall not be reactives.

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Figura 122 - Manifestante lança flores.

Fonte: Imagem Reprodução do livro - wall and piece.

Quando a gaúcha Espertina Martins, filha de família anarquista de Lajeado/RS, armada com um buquê de flores que camuflava dinamites, aos 15 anos, foi a heroína da manifestação de operários que protestavam por melhores salários, em 1917. A garota lançou as flores contra a tropa de policiais, e, ao mesmo tempo, possivelmente um tio seu (já que toda a família Martins tinha a marca do

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ativismo contra opressões e injustiças das condições de trabalho, no início do século passado), jogou uma bomba, e com a explosão a tropa debandou. Meses depois, estourava a A Guerra dos Braços Cruzado, que parou Porto Alegre/RS e da qual Espertina e a família participaram ativamente. Espertina, já moça, tornou-se feminista e continuou fiel à suas concepções revolucionárias e anarquistas, até o final da vida, e performou um ato poético radical que, anos depois, foi figurado por Banksy (Fig. 122), um dos conhecidos artistas de rua. Mas será que ele sabia dessa história?

They expect to be able to shout their message Eles esperam poder gritar mensagens na tua in your face from every available surface but cara de todas as formas possíveis, mas você you’re never allowed to answer back. Well, nunca tem permissão para responder. Bem, they started a fight and the wall is the weapon eles começaram uma briga e o muro é a arma of choice to hit then back (...) Some people de escolha para bater e depois voltar [...] become cops because they want to make the Algumas pessoas se tornam policiais porque world a better place. Some people become querem tornar o mundo um lugar melhor. vandals because they want to make the world Algumas pessoas se tornam vândalos porque a better looking place. (Banksy, 2006. Banksy querem tornar o mundo um lugar mais - wall and piece. The Random House Group bonito. (BANKSY, 2006. Banksy - Wall and Limited, United Kingdom, 2006). Piece, 2006). . No Cabaret Voltaire, centro de entretenimento artístico, um grupo de escritores, poetas e artistas plásticos de diversas nacionalidades reuniam-se a fim de realizar concertos, leitura de poesias e reuniões políticas. Em Zurique, 1916, no centro da guerra o desencanto vivido nos fins da carnificina - na primeira guerra mundial, Hugo Ball quase foi listado para a batalha mas por problemas de saúde não o foi, começou a publicar artigos anti-guerra, foi perseguido em terra natal na Romênia e migrou para a Suíça, e questionava a necessidade da arte em meio à barbárie. Um momento de crise de vida e moral impulsionou um grupo de artistas a recusa ao positivismo, à razão positiva. Os artistas queriam destruir todas as convenções com respeito a essa forma, criando uma anti-arte. Escândalo, ruptura, experimentação contra as leis da lógica, as purezas do pensamento, crônica da intemporalidade, o caos contra a ordem, a perfeição contra a imperfeição. A estética dadaísta negava a razão, o sentido, a provocação, a poesia estaria na ação e as fronteiras entre arte e vida deveriam ser abolidas. Clamava Tristan Tzara: "Não reconhecemos nenhuma teoria, estamos fartos das academias cubistas e futuristas: laboratórios de ideias formais. Se faz arte para acariciar aos

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gentis burgueses?". O movimento criou uma linguagem poética livre, anárquica e sem limites com mescla de gêneros. E é essa síntese que nos interessa para nossa argumentação. O principal problema de todas as manifestações artísticas estava, segundo os dadaístas, em almejar o impossível: explicar o ser humano Tristan Tzara 149 decreta: "A obra de arte não deve ser a beleza em si mesma, porque a beleza está morta". No seu esforço para expressar a negação de todos os valores estéticos e artísticos correntes, os dadaístas usaram, com frequência, métodos deliberadamente incompreensíveis. Nas pinturas e esculturas, por exemplo, tinham por hábito aproveitar pedaços de materiais encontrados pelas ruas ou objetos que haviam sido jogados fora150. Para nós um ícone do pixo, Ata, trabalha atualmente como operador de empilhadeira, cria uma síntese, a palavra que vem de seu nome e que está em toda a cidade, um pixo comunicável. O maior pixador dos anos 2000. Por 20 anos narra a sua estória, um esportista mo pixo e outras práticas como patins, escalada, rapel, etc; aventureiro, planeja meticulosamente seus atos e vai da janela ao topo, da funicular à linha de trem. Seu material de trabalho: a corda, cadeirinha de madeira, equipamentos que um trabalhador usaria para limpar as pastilhas de um prédio, e muitas latas de spray. O objetivo? Alcançar o topo mais alto, esticar as linhas para um traçado longo e firme, desafiar o perigo. Ousadia define o pixo, não há limites.

149Tristan Tzara, cujo verdadeiro nome era Samuel Rosenstock, nasceu em Moinesti, na Romênia, em 16 de abril de 1896. Começou a escrever poesia muito cedo e, aos dezessete anos, já era colaborador de uma das revistas de vanguarda de seu país: Simbolul. Em 1915 adotou o pseudônimo pelo qual ficou conhecido e que significa “triste em meu país”. No mesmo ano mudou-se para Zurique, para estudar ciências humanas e filosofia. Ali se converteu em um dos fundadores do Cabaré Voltaire. Junto a Jean Arp e Hugo Ball, foi um dos criadores e líder do movimento dadaísta. Em 1918, subscreveu o Manifesto Dadá, a declaração programática mais importante do movimento que revolucionaria a arte através da sua negação, buscando romper com todos os parâmetros estabelecidos ao longo da história da arte ocidental. 150Não quero nenhuma palavra que tenha sido descoberta por outrem. Todas as palavras foram descobertas pelos outros. Quero a minha própria asneira, e vogais e consoantes também que lhe correspondam. Se uma vibração mede sete centímetros, quero palavras que meçam precisamente sete centímetros. As palavras do senhor Silva só medem dois centímetros e meio. Assim podemos ver perfeitamente como surge a linguagem articulada. Pura e simplesmente deixo cair os sons. Surgem palavras, ombros de palavras; pernas, braços, mãos de palavras. Au, oi, u. Não devemos deixar surgir muitas palavras. Um verso é a oportunidade de dispensarmos palavras e linguagem. Essa maldita linguagem à qual se cola a porcaria como à mão do traficante que as moedas gastaram. A palavra, quero-a quando acaba e quando começa. Cada coisa tem a sua palavra; pois a palavra própria transformou-se em coisa. Porque é que a árvore não há-de chamar-se plupluch e pluplubach depois da chuva? E porque é que raio há- de chamar-se seja o que for? Havemos de pendurar a boca nisso? A palavra, a palavra, a dor precisamente aí, a palavra, meus senhores, é uma questão pública de suprema importância. Zurique, 14 de Julho de 1916 (Primeiro Manifesto Dadá, Hugo Ball) 243

Figura 123 - Ata.

Fonte: Imagem cedida pelo Ata (2018).

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O núcleo central das nossas indagações se estabelece acerca da arte urbana enquanto a principal vertente plástica no mundo, uma estética periférica que se manifesta de forma diferenciada como expressão de resistência e ocupação urbana, artística, política e cultural. Reafirmamos a atualidade do objeto pesquisado e a pertinência de dar ouvidos à voz, aos gritos que vem das ruas; dar à luz a imagens e comunicações enquanto formas de afirmação da existência e contestação ao mundo normativo, autoritário, destruidor da natureza; da desigualdade, racismo, preconceito e discriminação. Por mais que o significado social street art apresente um primado da forma frente ao conteúdo, já que aparece como uma expressão muito visual, por ser expressão da época da imagem, encontramos significações sociais e políticas de maneira explícita no questionamento do status quo visível em desenhos ou contida intrinsecamente ao ato transgressor. Toda pessoa tem capacidade de ser criativa e cada uma de maneira diferente expressa sua criatividade e a busca da emancipação é a de criar outra sociabilidade, libertária e igualitária de indivíduos sociais, com o fim da sociedade de classes. A arte de rua com graffitis e pixações se soma ao conjunto de indignações, transgressões, gritos de negação do status quo opressor, mesmo que de forma dispersa, sem organização e consciência necessária, mas sem dúvida, sujeitos sociais históricos, partícipes da classe trabalhadora e portanto, sujeitos aliados de um processo de transformação social. O spray é sintético, e envolve o ambiente com economia de palavras e reivindicação ideogrâmica. O graffiti é uma caligrafia geométrica singular urbana; um pensamento não linear com letras móveis litigantes que apresenta ramificações: graffiti-protesto, graffiti-curtição, graffiti-arte.

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Se as cidades foram construídas a partir de muros, são eles os suportes de comunicação mais eficientes e visíveis. A inscrição em muros não é novidade, parte da história na ancestralidade e desenvolvimento de civilizações até mesmo esquecidas, é expressão humana presente na antiguidade com narrativas históricas, religiosas e míticas de diversos povos. É uma constante histórica. O destino político da arte urbana se volta ao questionamento da sociedade espetacular mercantil. O desenrolar das crises urbanas. Quem são esses sujeitos ativos nas ruas das grandes cidades? Como a insurgência na esfera urbana se articula com outras lutas mais gerais? Vimos no desenvolvimento da tese que os/as insurgentes pixadores/as e grafiteiros/as dos grande centros urbanos analisados, são jovens, periféricos/as, parte do precariado urbano que se amplia a cada dia fruto das investidas do capital contra o trabalho. De outro lado, sofrem a discriminação e opressão de classe, social, e racial, tanto em São Paulo, no Brasil, como na Califórnia nos Estados Unidos da América. Pelas entrevistas e depoimentos essas vozes que se expressam nas inscrições vêm de uma negação econômica, social, cultural, que é estrutural e estruturante da sociedade de classes do modo de produção capitalista que se amplia a partir da crise metabólica do capital a partir de meados dos anos 70, em que para recuperar as taxas de lucro o capitalista estabelece novas estratégias de superexploração no trabalho e retração de direitos sociais e políticas na esfera do Estado. É o capitalismo em chamas, em decomposição, posto que há um antagonismo entre forças produtivas e relações sociais de produção, portanto as reformas democráticas passíveis de serem desenvolvidas no período do crescimento econômico do capitalismo, nesta fase, do neoliberalismo, já não mais são passíveis de realização, pelo esgotamento e crise do antigo Estado de Bem Estar Social, que no Brasil sequer se realizou. Porém o capitalismo permanece hegemônico e articuladamente estruturado e dominante no plano internacional. A quadra histórica contemporânea expressa a barbárie com guerras, fome, desregulamentação do trabalho, desemprego estrutural, destruição da natureza, destruição de direitos sociais e trabalhistas historicamente conquistados, ampliação da discriminação e preconceito, avanço da direita em vários países do planeta. No caso brasileiro, desde 2016, com o golpe de direita, a regulação do Estado Neoliberal e as medidas de destruição de direitos se aceleraram, apresentando um quadro ainda mais barbarizante a partir de 2019 com a eleição

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de um governo de extrema direita, racista, homofóbico, preconceituoso com traços fascistas de governar, privatista, subordinado ao imperialismo norte- americano, em que o projeto civilizatório está fortemente ameaçado. O governador eleito e ex-prefeito da cidade de São Paulo criminaliza os/as jovens pixadores/as e grafiteiros/as da cidade, bem como os moradores de rua, e residentes na Cracolândia, com repressão, prisões e criminalização. Em todo o Brasil e particularmente em São Paulo, aumentam-se os chamados crimes de ódio e de racismo. Entre janeiro e maio de 2018, cresceram em 29%, na cidade de São Paulo, os crimes de racismo e injúria racial. A pesquisa da Rede Nossa São Paulo151 apresenta que 70% dos paulistanos avaliaram que o preconceito e a discriminação contra a população negra aumentou, nos últimos 10 anos. A sociedade exige de todas e todos nós vigilância, resistência e unidade nas lutas, reconhecendo todas as formas de resistência popular, social, cultural e a arte de rua e os artistas de rua, aliados nesta trajetória de lutas. Os EUA erguem um muro contra não brancos, contra pobres, os mexicanos, centro- americanos, sul americanos. Cerca de 900 incidentes152 (pichações, agressões verbais e físicas racistas ou xenófobas) foram registrados em 2016, nos dez dias após a posse do presidente dos EUA, Donald Trump e outros muros vêm sendo erguidos153. Muitos autores evocaram o nome de Trump, durante os ataques, o que demonstra uma ligação da onda de ataques ao êxito eleitoral. Para além do fenômeno de um presidente específico naquele país, por vezes, o nosso co-orientador nos disse da importância de se estudar e analisar os EUA pois como disse Kevin B. Anderson: “O racismo aqui é tão profundo que mesmo os “progressistas” dos EUA são às vezes cegos ou tomados como garantidos, enquanto pessoas de fora, até mesmo

151 13/11/de novembro de 2018. 152 ONG Associação de Monitoramento Southern Poverty Law Center . ❖ 153Em 2018 Donald Trump anuncia que vai construir um muro na fronteira dos EUA com o México, para evitar que os latino-americanos entrem ilegalmente nos EUA. ❖ Israel vem construindo na Cisjordânia desde 2002. O Muro de Israel possui enormes dimensões, com uma extensão de 721 km, 8 metros de altura, trincheiras com 2 metros de profundidade, arames farpados e torres de vigilância a cada 300 metros – tudo isso para ser intransponível. Foram construídos dois muros: um muro que cercou as fronteiras da cidade de Jerusalém, bloqueando a passagem livre dos palestinos para a parte ocidental de Jerusalém; e o outro muro foi construído externamente, onde Israel visou cercar e controlar suas colônias na faixa de Gaza. ❖ Em 2015 a Hungria termina de erguer ps 175 km de barreira com arames farpados na fronteira com Sérvia. ❖ Também em 2015 a Bulgária constrói uma barreira de 32km de arame farpado para bloquear a população da turquia. em 2011 a Grécia bloqueou em Kastanis a fronteira com a Turquia. ❖ Aqui em São Paulo temos a cidade amuralhada Alphaville, á 30 km do centro da capital paulista com 12 mil residências e segurança própria. 247

liberais como Tocqueville (e muitos desde então) perceberam verdades sobre profundidade do racismo que aqui intelectuais têm evitado ou minimizado”. No decorrer da tese, garantidas as situações de particularidades sócio- históricas das cidades metrópoles em que a arte de rua é uma constante e se amplia, a situação do modo de produção é o mesmo, ou seja o capitalismo em chamas. De um lado, o capitalismo de um país central, imperialista, os Estados Unidos da América, de outro a cidade de São Paulo, o polo mais desenvolvido do Brasil, com seu processo de industrialização e urbanização desnudando a desigualdade social, territorial e espacial, em um país de capitalismo periférico, tardio e dependente. Ou seja a classe trabalhadora é internacional, assim como a solidariedade de classe. A juventude pobre e negra da periferia de São Paulo e dos guetos dos EEUU, são filhos/as da classe trabalhadora explorada e oprimida pelo capital, e o racismo estrutural e estruturante mata lá e mata cá. Como pesquisadoras, estudiosas, militantes, profissionais da área das ciências humanas e sociais, da educação, das artes, que partimos das múltiplas expressões da Questão Social, como matéria-prima do trabalho profissional, que articulamos o projeto profissional a um projeto societário emancipatório, compreendemos ainda que a arte de rua como mediação do trabalho profissional, e expressão contestatória que envolve objetividade e subjetividade, sensações e desejos, rebeldia e contestação, estratégias e táticas e sobretudo uma forma própria de linguagem precisa ser conhecida, apreendida como uma de nossas aliadas libertárias.

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Agenda - coexistência de vários pixos preenchendo uma mesma superfície de maneira organizada sem atropelo.

Atropelo/atropelar – escrever por cima de outra inscrição: graffiti, pixo, stêncil, tag, etc.

Bafo – Pessoa que está iniciando na pixação ou que é a primeira a pixar em um grupo.

Backjump - graffiti feito com spray feito em trem/ônibus enquanto está parado durante o percurso (numa estação por exemplo). Segunda tendência

Bite - Cópia, influência directa de um estilo de outro writer.

Bomb ou Bombing - graffiti rápido, associado à ilegalidade, com letras mais simples e eficazes. O bomb original é feito com contorno mais grosso e preenchimento das letras em cor diferente.

Bubble Style - Estilo de letras arredondadas, mais simples e "primárias", mas que é ainda hoje um dos estilos mais presentes no graffiti.

Cap - Cápsula aplicável nas latas para a pulverização do spray. Existem variados caps, que variam a pressão, originando um traço mais suave ou mais grosso Characters - Retratos, caricaturas, bonecos pintados a graffiti.

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Crew - Tradução de da palavra grupo em inglês. Grupos que se reúnem para pichar e que representam um mesmo nome - a grife. É regra geral no pixo assinatura do nome/ tag e a respectiva crew.

3D - Estilo tridimensional, baseado na sombra das letras ou letras tridimensionais. O estilo foi desenvolvido inicialmente nos EUA e em sua evolução os resultados são pinturas que transbordam as paredes, é bem comum que apareçam animais pintados.

Degradé - Passagem de uma cor para a outra sem um corte directo. Por exemplo uma graduação de diferentes tons da mesma cor.

Encaixe –Serve como ‘’tapa buraco”, pixo feito em pequenos espaços brancos.

Escada humana – Quando um pichador utiliza o outro para subir, a fim de pixar.

Escalada - modalidade de pixação na qual o indivíduo escala locais altos, como prédios, para deixar sua marca.

End to end - Carruagem ou comboio pintado de uma extremidade à outra, sem atingir a parte superior do mesmo (por ex. as janelas e parte superior do comboio não são pintadas).

Fill-in - Preenchimento (simples ou elaborado) do interior das letras de um graffiti.

Folhinha – Uma espécie de autógrafos que são trocados em reuniões.

Grafismo selvagem – escritas, garranchos e rebarbas. graffiti - Considera-se graffiti uma inscrição caligrafada ou um desenho pintado ou gravado sobre um suporte que não é normalmente previsto para esta finalidade. Por muito tempo visto como um assunto irrelevante ou mera contravenção, atualmente o graffiti já é considerado como forma de expressão incluída no âmbito das artes visuais, mais especificamente, da street art ou arte urbana - em que o artista aproveita os espaços públicos, criando uma linguagem intencional para interferir na cidade. Grafitar em locais públicos ou privados, sem autorização dos respectivos proprietários, é atividade proibida por lei em vários países.

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graffiti Naif – ingênuo – preços, letreiros, mostradores de mercados.

Grife - grupo formado por várias gangues de pixadores. Para mostrar a qual pertencem, os pichadores assinam o nome ou símbolo da grife junto com sua tag.

Grapixo – O grapixo é uma mescla de graffiti com pichação. Utilização de mais de uma cor no estilo de escrita ou tag reto, com contorno e preenchimento.

Grife - grupo formado por vários pixadores. Para mostrar a qual pertencem, os pixadores assinam o nome ou símbolo da grife junto com sua tag.

Hall of Fame - Trabalho geralmente legal, mural mais trabalhado onde normalmente pinta mais do que um artista na mesma obra, explorando as técnicas mais evoluídas.

Highline - Contorno geral de todo o graffiti, posterior ao outline.

Hollow - graffiti ou Bomb que não tem fill (preenchimento) algum e, geralmente, é ilegal

Homenagem - pixo com nomes de pixadores já falecidos.

Ibope - nível de popularidade dentro da pixação. Os mais conhecidos são os que conseguem deixar mais marcas pelas ruas da cidade ou em lugares de grande visibilidade, altos e perigosos.

Inline - Contorno das letras, realizado na parte de dentro das letras.

Jet – Tala ( lata ao inverno) – Tatin ( tinta ao inverso) = spray

Kings Writer que adquiriu respeito e admiração dentro da comunidade do graffiti. Um estatuto que todos procuram e que está inevitavelmente ligado à qualidade, postura e anos de experiência.

Mídia – Quando um pichador diz: “Alí é mídia” significa que é um lugar bom para sair em veículos de comunicação com televisão, internet, fotografias entre outros.

Outline - Contorno das letras cuja cor é aplicada igualmente ao volume das mesmas, dando uma noção de tridimensionalidade.

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Pichação - Escritos legíveis nas formas de poemas, protestos, indignações, frases de amor, frases sem sentido, rabiscos de nomes.

Pico - topo do prédio

Pixo – pixação paulista, inscrição com letras em geral em monocromatismo feita nas modalidades: muros, janelas, viadutos, prédios altos ou baixos, túneis, trens, locais e casas abandonadas. Para cada região do Brasil a pixação possui características únicas mas a principal cidade é São Paulo. Também conhecida com o tag reta.

Point - local onde os pixadores se reúnem para confraternizar, pixar juntos e trocar folhinhas.

Quebrada – Onde o pixador cresceu

Rodar - ser pego pela polícia.

Rolê - sair para pixar ou grafitar.

Roof-top - graffiti aplicado em telhados, outdoors ou outras superfícies elevadas. Um estilo associado ao risco e ao difícil acesso mas que é uma das vertentes mais respeitáveis entre os writers.

Rolê – sair para praticar o pixo

Spot - Denominação dada ao lugar onde é feito um graffiti.

Tag - Nome/Pseudónimo de quem grafita ou pixa. O termo surgiu em Nova Iorque, com os jovens que denominavam o ato de escrever seus nomes pela cidade, e principalmente, nos vagões dos trens, como 'writing', 'tagging" ou 'hitting'.

Tag reto - traços retos, com letras alongadas e pontiagudas, estilo caligráfico desenvolvido em São Paulo. Pode ser realizado com tinta spray ou rolo de tinta.

Topo – Lugar alto para pixar

Throw-up - Estilo situado entre o "tag"/assinatura de rua e o bombing. Letras rápidas normalmente sem preenchimento de cor (apenas contorno).

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Top to bottom - Carruagem ou carruagens pintadas de cima a baixo, sem chegar no entanto às extremidades horizontais.

Toy - O oposto de King.

Writer inexperiente, no começo ou que não consegue atingir um nível de qualidade e respeito dentro da comunidade.

Train - Denominação de um comboio pintado.

Whole Car - Carruagem inteiramente pintada, de uma ponta à outra e de cima a baixo.

Whole Train - Um comboio com todas as carruagens inteiramente pintadas, de uma ponta à outra e de cima a baixo.

Wild Style - Estilo nova iorquino de letras. Um dos primeiros estilos a ser utilizado no surgimento do graffiti.

Writer - Escritor de graffiti ou no caso brasileiro - pixador.

Xarpi - pixação carioca.

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