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13 O avesso do avesso do avesso. Linhas retas e oblíquas da paródia na telenovela brasileira Biagio D’Angelo * RESUMO : As telenovelas brasileiras, transmitidas durante o bloco horário das 19h00, exploram, com freqüência, o terreno fértil da paródia, outorgando vitalidade a um gênero televisivo que, a partir do folhetim clássico, desenvolve os mesmos clichês. Teó- ricos da cultura e da literatura, como Bakhtin, Baudrillard e Block de Behar, entre outros, demonstram as convergências existentes entre cultura de massa e reflexão literária. PALAVRAS -CHAVE : Telenovela, paródia, literatura. ABSTRACT : Brazilian soap operas broadcasted at 7 p.m. fre- quently explore the fertile e territory o f parody, giving vitality to a TV genre which, since the classic feuilleton, has developed repeated clichés. Theorists of culture and literature, such as Bakhtin, Baudrillard and Block de Behar, among others, show the existing convergences between mass media culture and lit- erary thought. KEYWORDS : Brazilian soap opera, parody, literature. E foste um difícil começo afasto o que não conheço e quem vem de outro sonho feliz de cidade aprende depressa a chamar-te de realidade porque és o avesso do avesso do avesso do avesso (Caetano Veloso, Sampa ) * Professor doutor de “Aprende depressa a chamar-te de realidade”, canta Literatura Comparada do Programa de Pós-Graduação Caetano Veloso na sua homenagem poético-musical à ci- em Literatura e Crítica dade de São Paulo. A realidade contemporânea apresenta Literária da Pontifícia Universidade Católica de uma riqueza inter-semiótica extraordinária, multiplicada, São Paulo (PUC-SP). como afirma a crítica uruguaia Lisa Block de Behar (1990), 14 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.10, 2007 O avesso do avesso do avesso. Linhas retas e oblíquas da paródia... 15 por uma “congestão comunicativa”, em que a realidade Proust, Gombrowicz. Em algumas páginas, onde o escritor tem que ser decifrada em uma floresta sígnica que oscila boêmio continua a sua investigação sobre a figura central entre o visual e o verbal, entre o elitista e o popular. Essa de Cervantes no mundo ficcional do romance moderno, oscilação constitui a hibridez, condição da contempora- Kúndera (2005, p.114) modela uma síntese do verdadeiro neidade, segundo a célebre definição de García Canclini, descobrimento da literatura: “ Un telón mágico, tejido de que não deixa indiferente o leitor ou o espectador de hoje; leyendas, colgaba ante el mundo. Cervantes envió de viaje a ao contrário, trata-se de um hibridismo que absorve, criti- Don Quijote y rasgó el telón. El mundo se abrió ante el caballero ca e até polemiza com as formas do presente, enfatizando andante en toda la desnudez cómica de su prosa ”. uma dialética que se interroga, mais uma vez, sobre a Cervantes, acolhendo a tradição dos contos e da fa- reprodutibilidade da realidade e da intervenção da imagi- bulação, ferramenta que governa o discurso narrativo e a nação. Essa “pluralidade de códigos e médios” se compen- sua empatia no público de ouvintes (como era na Idade dia em uma “zona de intervalo” que o observador atravessa: Média e, em particular, nos tempos quase míticos de As mil e uma noites ) e leitores (como é a partir da era cervantina), “Divisiones, visiones diferentes, visiones reales y otras visiones, reinventa o romance como sistema de histórias interpoladas son atisbos que entrevé cada observador aspirando a conjeturar que suscitam a curiosidade e o interesse pelo seguimento entre cantos o cántaros quebrados una unidad - previa, primera, do núcleo central da fábula. O exemplo do relato de global- de la que quedan restos, textos que se salvan por repetición Luscinda e Cardenio, que começa no capítulo XXIV da y silencio ” (ibidem, p.12). primeira parte, segue e se intercala com os relatos de dom No caso do discurso semiótico de códigos de meios Fernando, Dorotea e a princesa de Micomicona, até o ca- comunicativos como a literatura e o cinema, seria superfi- pítulo XXXVI, várias vezes interrompido e enriquecido de cial restringir-se a uma simples constatação de hierarquia artifícios literários, típicos de narrações como o Burro de de “doações”: quem doa mais a quem... Ambos os signos ouro , de Apuléio, o Decameron , ou Lazarillo de Tormes . se doam em um proveitoso e recíproco intercâmbio. A estrutura narrativa cervantina leva à perfeição o A literatura não se dispersa na televisão ou no cine- sistema que regra também os mecanismos típicos do fo- ma; ao contrário, ela empurra a observação da realidade lhetim televisivo. Em particular, se consideramos as suas até novos conhecimentos, que se articulam em renovados variantes paródicas, o folhetim televisivo parece recobrar modelos de instrução e erudição. A televisão contribui para nova vida, transformando situações bem familiares ao o processo ativo da linguagem literária, superando a rigi- telespectador, e às vezes repetidas até o enjôo, sob o eixo dez de uma escrita que trasborda os limites das páginas e da ironia e da polêmica sagaz. da tela. Bakhtin (1998), em Questões de literatura e de estética , Falando de “tela”, não temos nome mais apropriado apresenta o romance como uma constante atualização de que isso, que reúne o significado de “tecido” (do textum uma forma artística no seu presente histórico, uma forma latino, e daqui o texto) e o painel de projeção de filmes. que, por sua natureza, deveria ser julgada como incomple- De Milan Kúndera – escritor que, entre levezas do ser e ta, em um fluxo irrefreável, um anel de Moebius narrati- testamentos traídos, não caberia no discurso previsto e vo, evitando o perigo de estabilização da mesma forma. anunciado na mensagem do título – foi publicado recen- A comparação entre o romance e a novela revela-se temente El telón (2005), um conjunto de ensaios sobre muito estimulante. Bakhtin ajuda na leitura de certas mu- literatura que dedica amplo espaço a autores como Fielding, danças estruturais dos fenômenos culturais realizadas, qua- 16 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.10, 2007 O avesso do avesso do avesso. Linhas retas e oblíquas da paródia... 17 se sempre naturalmente, embora o seu eixo paródico se A novela televisiva comporta-se, em seus mecanis- constitua sempre como ato voluntário de deformação e mos, da mesma maneira que a idéia do processo narrativo “totalizador” por excelência, apesar da sua marginalidade propalado por Bakhtin. Jean Baudrillard (1997, p.146) canônica. focaliza a sua atenção nessa direção: “Desde o momento A paródia contribui para o devir de formas como o em que estamos diante da tela, não percebemos mais o romance e a novela, determinando, também, o “drama” texto como texto, mas como imagem”. O texto oral e o que está atrás das coulisses da criação artístico-verbal, e, texto visual estão entrelaçados e produzem um novo “tex- finalmente, absorve o grotesco e o burlesco como varian- to” que se introduz como forma complexa no imaginário e tes literárias do espírito popular folclórico. na expectativa do telespectador. Víktor Shklovski (1979, Da mesma maneira que o romance, a novela cômica p.139), que se interessou pela análise dos mecanismos e (que possui uma nova significação do cômico como híbri- dos procedimentos técnico-formais do romance, em par- do, no sentido de um gesto renovador e contagioso, e nunca ticular do Don Quixote cervantino, resume em uma frase a como riso grosseiro e trivial) procede “fragilizando” o status conseqüência da linguagem narrativa e do estudo da com- “normal” da novela. Contudo, a fragilidade adquirida por posição textual da obra: “O efeito consiste no fato que as efeito da comicidade transforma a novela em uma contra- personagens se intercambiam a máscara, o que faz sentir novela, ou antinovela, porque a desordem irônica e a frag- como novo o velho material”. mentação dessacralizada escondem o verdadeiro rosto da As novelas - da Rede Globo propostas ao público da novela que, no seu mecanismo mais clássico e de maior assim chamada novela das sete - exibem um espaço singu- recepção, resulta ser, por sua vez, sofrimento, caos, angús- lar de representação paródica e experimentação, em cer- tia, violência, morte. Bakhtin (1998, p.453) vê no gesto tas ocasiões, realmente audaz. Essas “linhas oblíquas”, paródico do romance um sinal de modernização do dis- como poderíamos definir as franjas do material novo, se curso literário: apresentam dentro de um mecanismo velho, estereotipa- do, repetitivo - já que o público da telenovela psicologica- O romance é o único gênero em evolução, por isso ele re- mente sempre gosta de remake –, não se isolam nunca de flete mais profundamente, mais substancialmente, mais sen- maneira completa: o oblíquo mistura-se às linhas retas, sivelmente, e mais rapidamente, a evolução da própria rea- ordinárias, linhas de uma “normalidade”, e começa já a lidade. Somente o que evolui pode comprender a evolução. perder sua rigidez e seu esquematismo. A presença con- O romance tornou-se o principal personagem do drama da evolução literária na era moderna precisamente porque, junta de ambas as linhas depende de uma gradual propos- melhor que todos, é ele que expressa as tendências evolutivas ta ao público: o destinatário da mensagem é quem decide do novo mundo, ele é, por isso, o único gênero nascido na- sobre o sucesso de uma novela, assim como decide sobre quele mundo e em tudo semelhante a ele. O romance ante- um livro ou uma música, embora os campos semióticos cipou muito, e ainda anticipa a futura evolução de toda a possuam diferentes gradações de chegada e de ressonân- literatura. Desse modo, tornando-se o senhor, ele contribui cia no público e na crítica. Essa hibridez, que justamente para a renovação de todos os outros gêneros, ele os conta- encontra a sua ponta de diamante na anomalia do discur- minou e os contamina por meio da sua evolução e pelo seu so novelesco e na irregularidade das situações, tocou o seu próprio inacabamento.