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Nonada: Letras em Revista E-ISSN: 2176-9893 [email protected] Laureate International Universities Brasil Cardoso da Silva, Joel; dos Santos Júnior, Luiz Guilherme BATISMO DE SANGUE: ENTRE O ARQUIVO E O TESTEMUNHO Nonada: Letras em Revista, vol. 1, núm. 22, mayo-septiembre, 2014 Laureate International Universities Porto Alegre, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=512451668013 Como citar este artigo Número completo Sistema de Informação Científica Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto BATISMO DE SANGUE: ENTRE O ARQUIVO E O TESTEMUNHO BATISMO DE SANGUE: BETWEEN THE ARCHIVE AND TESTIMONY Joel Cardoso da Silva1 Luiz Guilherme dos Santos Júnior2 RESUMO: O artigo analisa o livro e o filme Batismo de Sangue, com o objetivo de entender como as artes trabalham com arquivos e testemunhos da ditadura militar brasileira. O debate envolve o estatuto do documento e da voz no processo de representação das torturas realizadas durante o regime militar. A análise está centrada, nas experiências do cárcere vividas pelo personagem Frei Tito, a partir da narrativa empreendida pelo livro de Frei Betto, e pela tradução fílmica de Helvécio Ratton. PALAVRAS-CHAVE: Artes; ditadura militar; arquivo; testemunho. ABSTRACT: The article discusses the book and the movie Batismo de Sangue with the goal of understanding how the Arts work with archives and testimonies of the Brazilian military dictatorship. The debate involves the statute of the document and voice in the process of representation of torture performed during the military regime. The analysis is centered on the prison experiences of character Frei Tito from the narrative undertaken by Frei Betto's book and by Helvetian Ratton's movie. KEYWORDS: Arts; military dictatorship; archive; testimony. 1. PALAVRA, IMAGEM E REPRESENTAÇÃO O advento da II Guerra Mundial e a ascensão do III Reich na Alemanha surgiu como um “divisor de águas” no que concerne ao estatuto da arte como representação, sobretudo se pensarmos na violência extrema perpetrada pelos nazistas nos campos de concentração administrados pelo Reich. A partir desse contexto, a narrativa de testemunho abriu caminhos para debates acerca de uma linguagem, seja literária ou cinematográfica, capaz ou não de representar experiências antes talvez imponderáveis para o domínio dessas e de outras artes. No tocante à literatura e ao cinema de testemunho, respectivamente, É isto um homem (1988), de Primo Levi e Shoah (1985), de Claude Lanzmann, são notórios quando surgem referências ao holocausto. Contudo, o debate em torno da representação desse período extremo suscitam algumas reflexões que envolvem o estatuto artístico da palavra e da imagem, além dos limites entre um acontecimento e sua manifestação através das artes. Huyssen (2000) aponta para o crescimento de uma produção voltada 1 Pós-Doutor em Artes (Literatura & Cinema) UFF-RJ. Doutor em Letras: Literatura Brasileira e Intersemiótica pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-SJRP, SP, 2001). 2 Doutorando em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Mestre em Teoria Literária (UFPA). para o testemunho do holocausto em romances e documentários. O autor enfatiza a necessidade, mesmo com certa abundância de produções mercadológicas, de diferentes maneiras de representações artísticas sobre o tema. Sobre essa conjuntura, Rancière (2012, p. 128) declara que “não existe mais uma regra de conveniência entre tal tema e tal forma, mas uma disponibilidade geral de todos os temas para qualquer forma artística”. Cabe, entretanto, a cada arte buscar um regime estético-representativo a partir de escolhas que dizem respeito a uma linguagem que melhor possa agenciar artisticamente os testemunhos. Primo Levi, no primeiro capítulo de É isto um homem, descreve os momentos transcorridos dentro de um vagão que leva os judeus para um campo de concentração nazista. Ele compara o martírio dos judeus, nessa viagem, com a travessia realizada por Caronte durante a transladação dos “danados” para o inferno dantesco (LEVI, 1988, p. 24). As imagens sugeridas pelo escritor através de seu testemunho evocam momentos extremos no interior do vagão, mas deixam certa opacidade, pois se mantêm no que Rancière (2012) chama de “subdeterminação”; ou seja, ao mesmo tempo em que revelam a angústia do acontecimento, se apossa de uma subjetivação através da voz do narrador: “uma massa humana confusa e contínua, entorpecida e sofrendo, erguendo-se aqui e acolá em convulsões repentinas, logo sufocadas pelo cansaço” (LEVI, 1988, p. 19). No caso específico do cinema, Shoah (1985) é um filme incomum entre as produções cujo tema envolve o holocausto. Lanzmann, seu diretor, optou em não colocar em cena imagens de arquivo. Entre as discussões ligadas à proposta estética escolhida pelo cineasta está o ponto de vista de que ele teria optado por um filme somente com testemunhos do holocausto, pois, no que concerne à representação, não seria possível que imagens traduzissem os acontecimentos envolvendo os campos de concentração. Em contrapartida, Didi-Huberman (2002, p.131) afirma que esse posicionamento diante da imagem tem como consequência descredenciar o estatuto do arquivo, ou criar uma distorção sobre seu caráter de documento: “mas nem por isso o arquivo é o ‘reflexo’ puro e simples do acontecimento, nem a sua pura e simples ‘prova’”. Desse modo, a representação de momentos extremos da história não estaria “autorizada” por uma única forma artística ou meios específicos. Além disso, não há apenas um regime de testemunho centrado no sujeito, como único capaz de representar o passado, pois, assim como a voz testemunhal, o arquivo também se engendra como “matéria” da história. Por outro lado, há um grande debate sobre o estatuto de verdade no que diz respeito às narrativas de testemunho em primeira pessoa, principalmente no que tange à subjetividade. Nessa perspectiva, Sarlo (2007) e Agamben (2008) lançam algumas questões que envolvem a relação entre discurso e experiências traumáticas. Tais experiências testemunhais se mostram como “fragmentos” do passado já que “a rememoração opera sobre algo que não está presente” (SARLO, 2007, p. 99). Para a estudiosa, o caráter “lacunar” do testemunho está ligado ao esforço, entre outras questões, de “presentificação” do passado e do trauma. Trazer ao presente essas vozes se configura como o não silenciamento diante de períodos extremos da história. Por isso, observamos em obras literárias e filmes a emergência do testemunho em primeira pessoa como uma possível “reconstituição” da violência causada por regimes de exceção. Noutro viés interpretativo, Agamben (2008, p. 146) explica que o testemunho está situado “entre uma possibilidade e uma impossibilidade de dizer”. Essa mediação se constitui através de um “lugar vazio do sujeito”. O debate sobre o sujeito em face do testemunho envolve o campo da subjetividade, isto é, o “poder ser” e o “poder não ser”, já que “o sujeito é, sobretudo, o campo de forças sempre já atravessado pelas correntes incandescentes e historicamente determinadas da potência e da impotência, do poder não ser e do não poder não ser” (AGAMBEN, 2008, p. 148). Contudo, a força descomunal do holocausto rompeu com esses paradigmas; assim, o que parecia impossível de materializar-se por meio do discurso torna-se visível, unindo passado e presente, o que em síntese estaria em acordo com as perspectivas teóricas discutidas sobre a possibilidade representativa das artes. Aproximando-se das questões levantadas por Agamben, Márcio Seligmann- Silva (2010, p. 5) entende que o testemunho “revela a linguagem e a lei como constructos dinâmicos, que carregam a marca de uma passagem constante, necessária e impossível entre o ‘real’ e o simbólico, entre o ‘passado’ e o ‘presente’”. Segundo o estudioso, esse trânsito mostra uma mudança de paradigmas no tocante à história e ao positivismo da abordagem documental. Nessa transição, os dramas coletivos dão lugar aos traumas e dores individuais, tanto na literatura quanto no cinema. Diante dos períodos de silenciamento, por conta da ascensão de regimes totalitários, as vozes individuais tornaram-se uma preocupação política e artística, além de ter aberto caminho para dimensões subjetivas do testemunho histórico. Dessa forma, o estatuto da voz e da imagem testemunhal se empenha na “desconstrução” dos discursos positivistas que tinham no documento escrito a única maneira de narrar a história cultural das humanidades. 2. O “MAL DE ARQUIVO” NA DITADURA BRASILEIRA O reconhecimento das atrocidades realizadas pelo nazismo alemão e a derrocada do comunismo no leste europeu, entre outros acontecimentos, são marcos ideológicos que abriram determinados debates em torno das narrativas de testemunho. Outra consequência foi a derrocada das utopias revolucionárias, quando a dialética envolvendo as concepções de esquerda e de direita se mostraram flácidas e intercambiáveis, pois o comunismo, como utopicamente se esperava, não representou um contraponto aos regimes ditatoriais, mas assemelhou-se na teoria e na prática com as ideias defendidas por estes. Para Huyssen (2000), foi a partir desses acontecimentos que o estudo das memórias do holocausto intensificou ações para o surgimento de museus, monumentos, documentários, romances autobiográficos, além de filmes de ficção e séries de TV sobre o tema. Outra consequência