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Ano LII, número 13 (2.710) Cidade do Vaticano terça-feira 30 de março de 2021

Francisco celebrou o domingo de Ramos na basílica de São Pedro Com o olhar na Cruz para receber a graça do assombro No Angelus o Papa manifestou a sua proximidade às vítimas do atentado na Indonésia

«Todos os anos, esta liturgia cria em nós uma atitude de espanto: passamos da ale- gria de acolher , que entra em Jerusalém, à triste- za de o ver crucificado», fri- sou o Papa presidindo à missa no domingo de Ra- mos na basílica do Vaticano, na manhã de 28 de março. A surpresa, explicou, «é uma atitude interior que nos acompanhará ao longo da Semana santa», e por isso é necessário pedir «a graça do assombro» e recomeçar a partir dele, pois Jesus «che- ga à glória pelo caminho da humilhação» e «triunfa aco- lhendo a dor e a morte». Na cruz, acrescentou o Pon- tífice, Deus «aproxima-se das nossas fragilidades... es- tá ao nosso lado em cada fe- rida: nenhum mal, nenhum pecado tem a última pala- vra». Em síntese, «Ele ven- ce, mas a palma da vitória passa pelo madeiro da cruz. Por isso, os ramos e a cruz estão juntos».

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No VII centenário da NO PRIMEIRO ANIVERSÁRIO DA STAT I O ORBIS DE 27 DE MARÇO DE 2020 morte de Dante Alighieri Carta O vazio é uma barca

JOSÉ TOLENTINO DE MEND ONÇA 1. A ousadia de habitar a vulnerabilidade blema da cultura hodierna. Também emergiu como uma figura sacerdotal ap ostólica como lugar da experiência humana e crente a performance religiosa tem alguma di- capaz de representar a todos. sabido que vivemos na era É verdade que a cultura dominan- ficuldade em integrar aquilo que Mi- da massificação das ima- te, o m a i n s t re a m modelado como um chel de Certeau chamava a «fraqueza 2. A ousadia de abraçar gens. Em nenhuma época automatismo pelas nossas sociedades de crer». A imagem que se transmite e resignificar o vazio anterior da história se pro- de consumo, fizeram da vulnerabili- é mais a de uma operação cumprida a Uma das experiências mais impac- duziramÉ tantas imagens, e também dade uma espécie de tabu. A fragili- partir de um guião do que o despoja- tantes do confinamento foi, no início nenhuma outra, como a nossa, assis- dade é sujeita a um ocultamento. E à mento e a abertura para realizar uma da pandemia, assistir ao esvaziar-se tiu à sua radical banalização. Em vez força de interditarmos o encontro «caminho não traçado». O Papa das cidades. Um estranho e desco- de imagens únicas e autênticas temos com o sofrimento humano sabemos Francisco ousou habitar a vulnerabi- nhecido silêncio cresceu de um mo- produtos realizados em série, selfies fa- cada vez menos reconhecermo-nos aí lidade. Não se quedou a falar da vul- mento para outro. Incrédulos, olhá- bricadas num instante e num instante ou partirmos daí para aprofundarmos nerabilidade do mundo, como se esti- vamos das nossas janelas para as ruas prontas a ser devoradas pelo esqueci- o sentido da nossa comum humani- vesse isento dela. Na medida em que e as praças numa solidão absoluta, mento. O filósofo Walter Benjamin dade. Mas este não é apenas um pro- aceitou se expor como mais um, sentindo-nos como que expropriados falou com razão da «perda da aura», do mundo. A nossa primeira reação isto é da imagem deixar de constituir foi ler o vazio como algo hostil que «a aparição única de uma coisa dis- nos ameaçava. Ora, Francisco teve a tante» e fixar-se na sonâmbula repeti- grande sabedoria de abraçar o vazio ção de um déjà vu. Por isso, o comovi- em vez de repudiá-lo, sublinhando o do consenso em torno à imagem do seu potencial simbólico e revelador. «Neste particular momento, mar- Papa Francisco na Praça de São Pe- Para isso foi muito importante o texto cado por sombras, por situações dro vazia é alguma coisa que dá que evangélico escolhido, a cena da tem- que degradam a humanidade, pe- pensar, fora e dentro do espaço ecle- pestade acalmada segundo Mc 4, 35- la falta de confiança e de perspeti- sial. 41. Porque se, por um lado, se aceita- vas, a figura de Dante, profeta da Vale a pena, a um ano de distância, va o vazio, abraçando-o como lugar esperança e testemunha do desejo revisitar aquela imagem, que na ver- existencial e teológico, por outro, a de felicidade», setecentos anos dade não cessou de continuar presen- Palavra de Deus fornecia a chave para após a sua morte «pode ainda te, e perguntar-se donde lhe vem o resignificar o vazio. O vazio tornava- dar-nos palavras e exemplos que seu excepcional poder icónico. Por- se uma barca. «Demo-nos conta de estimulam o nosso caminho». O que é aquela imagem que ficou a re- estar no mesmo barco, todos frágeis e Papa expressa esta profunda con- presentar isto que vivemos e não ou- desorientados mas ao mesmo tempo vicção na carta apostólica Candor tra qualquer? O que é que ela nos re- importantes e necessários: todos cha- lucis aeternae, unindo a sua voz à vela de si mesma e o que é que ela en- mados a remar juntos, todos careci- dos «Predecessores que honraram sina acerca de nós próprios? Procu- dos de mútuo encorajamento. E, nes- e celebraram» o poeta florentino. rando sintetizar o que mereceria cer- te barco, estamos todos». O vazio tamente uma reflexão mais ampla, in- PÁGINAS 6-9 dicaria quatro razões. CO N T I N UA NA PÁGINA 2 página 2 L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 30 de março de 2021, número 13

O Papa Francisco celebrou o Domingo de Ramos na Basílica de São Pedro Com o olhar na Cruz para receber a graça do assombro

Na manhã de 28 de março, o Papa «crucifica-o»? Que sucedeu? coisas do género. Admiram- ter encontrado Jesus, se não Francisco celebrou na basílica de São Aquelas pessoas seguiam uma no, mas a vida deles não muda. nos deixamos surpreender ca- Pedro a missa do Domingo de Ra- imagem de Messias, e não o Porque não basta admirar Je- da dia pelo seu amor espanto- mos, que marca o início da Semana Messias. Ad m i ra v a m Jesus, mas sus; é preciso segui-lo no seu so, que nos perdoa e faz reco- santa. Publicamos a seguir a homilia não estavam prontas para se caminho, deixar-se interpelar meçar? Se a fé perde o assom- proferida pelo Pontífice, após a pro- deixar s u rp re e n d e r por Ele. A por Ele: passar da admiração à bro, torna-se surda: já não sen- clamação da Paixão do Senhor, tira- surpresa é diferente da admira- s u r p re s a . te a maravilha da graça, deixa da do Evangelho de Marcos. ção. A admiração pode ser E qual é o aspeto do Senhor de sentir o gosto do Pão da vi- mundana, porque busca os e da sua Páscoa que mais nos da e da Palavra, fica sem perce- Todos os anos, esta liturgia cria próprios gostos e anseios; a surpreende? O facto de Ele ber a beleza dos irmãos e o em nós uma atitude de espan- surpresa, ao contrário, perma- chegar à glória pelo caminho dom da criação. E não lhe resta to, de surpresa: passamos da outra saída senão refugiar-se alegria de acolher Jesus, que nos legalismos, clericalismos e entra em Jerusalém, à tristeza tudo o mais que Jesus condena de o ver condenado à morte e no capítulo 23 de Mateus. crucificado. É uma atitude in- Nesta Semana Santa, erga- terior que nos acompanhará ao mos o olhar para a cruz a fim longo da Semana Santa. Abra- de recebermos a graça do as- mo-nos, pois, a esta surpresa. sombro. São Francisco de As- Jesus começa logo por nos sis, ao contemplar o Crucifica- surpreender. O seu povo aco- do, maravilhava-se com os seus lhe-o solenemente, mas Ele en- frades por não chorarem. E cobrir que somos amados. A sabe encher de amor o próprio tra em Jerusalém num jumenti- nós, conseguimos ainda dei- grandeza da vida está precisa- morrer. Neste amor gratuito e nho. Pela Páscoa, o seu povo xar-nos comover pelo amor de mente na beleza do amor. No inaudito, o centurião, um pa- espera o poderoso libertador, Deus? Porque é que já não sa- Crucificado, vemos Deus hu- gão, encontra Deus. Ve rd a d e i ra- mas Jesus vem cumprir a Pás- bemos surpreender-nos à vista milhado, o Omnipotente re- mente era Filho de Deus! A sua fra- coa com o seu sacrifício. O seu d’Ele? Porquê? Talvez porque duzido a um descartado. E, se chancela a Paixão. Muitos povo espera celebrar a vitória a nossa fé foi corroída pelo há- com a graça do assombro, antes dele no Evangelho, ad- sobre os romanos com a espa- bito; talvez porque ficamos fe- compreendemos que, acolhen- mirando Jesus pelos seus mila- da, mas Jesus vem celebrar a nece aberta ao outro, à sua no- da humilhação. Triunfa aco- chados nas lamúrias e deixa- do quem é descartado, aproxi- gres e prodígios, reconhece- vitória de Deus com a cruz. vidade. Também hoje há mui- lhendo a dor e a morte, que mo-nos paralisar pelos dissa- mando-nos de quem é humi- ram-no como Filho de Deus, Que aconteceu àquele povo tos que admiram Jesus: falou nós, súcubos à admiração e ao bores; talvez porque perdemos lhado pela vida, amamos Je- mas o próprio Cristo manda- que, em poucos dias, passou bem, amou e perdoou, o seu sucesso, evitaríamos. Ao con- a confiança em tudo, chegan- sus, porque Ele está nos últi- va-os calar, porque havia o ris- dos “hossanas” a Jesus ao grito exemplo mudou a história, e trário, Jesus «despojou-se — do ao ponto de nos considera- mos, nos rejeitados, naqueles co de se deterem na admiração disse São Paulo — humilhou- mos mal feitos. Mas, por trás que a nossa cultura farisaica mundana, na ideia de um Deus se» (Fl 2, 7.8). Isto surpreende: destes «talvez», encontra-se o condena. que se devia adorar e temer en- ver o Omnipotente reduzido a facto de não estarmos abertos O Evangelho de hoje, ime- quanto poderoso e terrível. nada; vê-lo, a Ele Palavra que ao dom do Espírito, que é diatamente depois da morte de Agora já não há tal risco; ao pé sabe tudo, ensinar-nos em si- Aquele que nos dá a graça do Jesus, mostra-nos o ícone mais da cruz, já não é possível equi- O vazio é uma barca lêncio na cátedra da cruz; ver o a s s o m b ro . belo da surpresa. É a cena do vocar-se: Deus revelou-se e rei- Rei dos reis que, por trono, Recomecemos do espanto; centurião, que, «ao vê-lo expi- na só com a força desarmada e CO N T I N UA Ç Ã ODA PÁGINA 1 4. A ousadia de rezar a Deus tem um patíbulo; ver o Deus olhemos o Crucificado e diga- rar daquela maneira, disse: desarmante do amor. no silêncio de Deus. do universo despojado de tu- mos-lhe: «Senhor, quanto me “Verdadeiramente este homem Irmãos e irmãs hoje, Deus oferecia uma nova gramática As tempestades são expe- do; vê-lo coroado de espinhos amais! Como sou precioso a era Filho de Deus!”» (Mc 15, ainda surpreende a nossa men- para nos descobrirmos não riências de crise também para em vez de glória; vê-lo, a Ele vossos olhos!». Deixemo-nos 39). Deixou-se surpreender pe- te e o nosso coração. Deixemos como fragmentos isolados, os crentes. Há um escândalo bondade em pessoa, ser insul- surpreender por Jesus para lo amor. De que maneira vira que nos impregne este assom- mas . implícito no grito dos discí- tado e vexado. Porquê toda es- voltar a viver, porque a grande- Jesus morrer? Viu-o morrer bro, olhemos para o Crucifica- pulos que procuram acordar ta humilhação? Por que permi- za da vida não está na riqueza amando, e isto maravilhou-o. do e digamos também nós: 3. A ousadia de encontrar Jesus: «Mestre, não te impor- tistes, Senhor, que vos fizessem nem no sucesso, mas na desco- Sofria, estava exausto, mas «Vós sois verdadeiramente Fi- uma metáfora tas que pereçamos?» (Mc 4, tudo aquilo? berta de que somos amados. continuava a amar. Eis aqui a lho de Deus. Vós sois o meu Comentando o texto 38). Como explica o Papa, es- Fê-lo por nós, para tocar até Esta é a grandeza da vida: des- surpresa diante de Deus, que D eus»! evangélico de Mc 4, 35-41, o ta «é uma frase que fere e de- ao fundo a nossa realidade hu- Papa Francisco fez um gesto sencadeia turbulência no co- mana, para atravessar toda a de grande alcance: reorien- ração». Perante a dissemina- nossa existência, todo o nosso tou a perceção acerca da ção do mal, da sua vizinhança mal; para se aproximar de nós pandemia. Os primeiros che- traumática sentimos com so- e não nos deixar sozinhos no Antes da recitação do Angelus e da bênção fes de estado a falar referiam- frimento o que parece ser o sofrimento e na morte; para se a ela como uma guerra, incompreensível silêncio de nos recuperar, para nos salvar. metáfora até certo ponto Deus. E a grande tentação Jesus sobe à cruz para descer Oração pelas vítimas compreensível, mas demasia- nesses momentos é o niilismo ao nosso sofrimento. Prova os do equívoca e com tantos pe- ou a desmobilização. nossos piores estados de âni- do atentado na Indonésia rigos à espreita. O Papa foi o Sobre o poder das ima- mo: o falimento, a rejeição ge- primeiro a falar dela como gens, Heidegger escreveu ral, a traição do amigo e até o No final da missa do Domingo de Ramos, antes de que é também a sua primeira discípula. Ela uma tempestade. Esta deslo- que «a essência da imagem abandono de Deus. Experi- conceder a bênção conclusiva do altar da cátedra da seguiu o seu Filho. Assumiu sobre si a sua cação do estrito plano beli- consiste em mostrar algo». A menta na sua carne as nossas basílica do Vaticano, o Santo Padre presidiu à recita- parte de sofrimento, de obscuridade, de per- gerante para o plano cosmo- imagem do Papa a rezar e a contradições mais dilacerantes ção do Angelus, introduzindo-a com as seguintes pala- plexidade, e percorreu o caminho da paixão, lógico correspondeu a um oferecer a bênção eucarística, e, assim, as redime e transfor- v ra s . mantendo acesa no coração a lâmpada da fé. alargamento de visão. Permi- num contexto universalmen- ma. O seu amor aproxima-se Com a graça de Deus, também nós podemos tiu, por exemplo, desmontar te experimentado como de das nossas fragilidades, chega Estimados irmãos e irmãs! percorrer este caminho. E, ao longo da via-sa- o impulso inicial de encon- desolação, faz ver como o in- até onde mais nos envergonha- Entramos na Semana Santa. Pela segunda cra de todos os dias, encontramos os rostos de trar um culpado, aceitando visível de Deus perfura os mos. Agora sabemos que não vez, vivemo-la no contexto da pandemia. No tantos irmãos e irmãs em dificuldade: não sim que a tempestade nos bloqueios da história e o Seu estamos sozinhos! Deus está ano passado ficamos mais chocados, este ano passemos além, deixemos que o coração se desmascara a todos numa silêncio nos dá a possibilida- connosco em cada ferida, em estamos mais provados. E a crise económica comova de compaixão e aproximemo-nos. vulnerabilidade que não de de viver, seguindo os pas- cada susto: nenhum mal, ne- agravou-se. No momento, tal como o Cireneu, podemos queremos ver e nos envolve a sos de Jesus, as situações de nhum pecado tem a última pa- Nesta situação histórica e social, que faz pensar: “Por que precisamente eu?”. Mas en- todos numa reconstrução abandono como confiança e lavra. Deus vence, mas a palma Deus? Carrega a cruz. Jesus carrega a cruz, tão descobriremos o dom que, sem o nosso que globalmente nos com- entrega nas Suas mãos. Fran- da vitória passa pelo madeiro ou seja, toma sobre si o mal que tal realidade mérito, nos foi concedido. promete. Este tempo de pro- cisco pediu: «Desta colunata da cruz. Por isso, os ramos e a implica, o mal físico, psicológico e sobretudo Oremos por todas as vítimas da violência, va representa assim um tem- que abraça Roma e o mundo cruz estão juntos. espiritual, porque o Maligno se aproveita das em particular por aquelas do atentado que te- po para novas e proféticas es- desça sobre vós, como um Peçamos a graça do assom- crises para semear desconfiança, desespero e ve lugar esta manhã na Indonésia, diante da colhas que nos unam, em vez abraço consolador, a bênção bro. A vida cristã, sem surpre- d i s c ó rd i a . Catedral de Makassar. de acirrar o triunfo da lógica de Deus». E foi isso que sa, torna-se cinzenta. Como se Quanto a nós? O que devemos fazer? No- Que Nossa Senhora nos ampare, ela que dos conflitos e das partes. aconteceu. pode testemunhar a alegria de lo mostra a Virgem Maria, a Mãe de Jesus, nos precede sempre no caminho da fé.

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Catequese —Sobre a oração em comunhão com a Virgem Maria está próxima de quem morre sozinho nos dias de pandemia

Maria «esteve e está presente nos dias da pandemia, ao lado em comunhão com a Virgem. Também esta semana, devido às das pessoas que infelizmente concluíram a sua viagem terrena medidas de segurança impostas para conter o vírus, a audiên- numa condição de isolamento, sem o conforto da proximidade cia teve lugar na Biblioteca particular do Palácio apostólico do dos seus entes queridos», afirmou o Papa Francisco na au- Vaticano, sem a presença de fiéis, que puderam segui-lo através diência geral na quarta-feira, 24 de março, dedicada à oração dois meios de comunicação social.

Prezados irmãos e irmãs, aquela nudez, mas na verdade Je- partir daquele momento, fomos bom dia! sus é representado nu, para indi- todos colocados debaixo do seu A catequese de hoje é dedicada à car que Ele, homem nascido de manto, como vemos em certos oração em comunhão com Maria, Maria, é o Mediador. E Ela indi- afrescos ou quadros medievais. e ocorre precisamente na véspera ca o Mediador: Ela é a Odigitria. Também na primeira antífona la- da Solenidade da Anunciação. Na iconografia cristã a sua pre- tina, Sub tuum praesidium confugimus, Sabemos que a via mestra da ora- sença está em toda a parte, às ve- sancta Dei Genitrix: Nossa Senhora ção cristã é a humanidade de Je- zes até com grande destaque, mas que, como Mãe a quem Jesus nos sus. Com efeito, a confiança típi- sempre em relação ao Filho e em confiou, envolve todos nós; mas ca da oração cristã não teria sen- função d’Ele. As suas mãos, o seu como Mãe, não como deusa, não tido se o Verbo não se tivesse en- olhar, a sua atitude são um “cate- como corredentora: como Mãe. É cismo”vivo e indi- verdade que a piedade cristã sem- cam sempre o âma- pre lhe atribui títulos bonitos, co- go, o centro: Jesus. mo um filho à mãe: quantas pa- Maria está totalmen- lavras bonitas um filho dirige à EITURA D O DIA L te voltada para Ele sua mãe, a quem ama! Mas te- (cf. CIC, 2674). A tal nhamos cuidado: as belas pala- Atos dos Apóstolos 1, 12-14 ponto que podemos vras que a Igreja e os Santos di- afirmar que é mais rigem a Maria em nada dimi- Desceram então do monte chamado das discípula do que nuem a singularidade redentora Oliveiras, situado perto de Jerusalém, à Mãe. Aquela indica- de Cristo. Ele é o único Reden- distância de uma caminhada de sábado, ção, nas bodas de tor. São expressões de amor, co- e foram para Jerusalém. Quando chega- Caná, Maria diz: mo de um filho à mãe, às vezes ram à cidade, subiram para a sala de ci- “Fazei o que Ele vos exageradas. Contudo, como sa- ma, onde se encontravam, habitualmen- disser!”. Indica sem- bemos, o amor leva-nos sempre a te. Estavam lá: Pedro, João, Tiago, An- pre Cristo; é a sua fazer coisas exageradas, mas com dré, Filipe, Tomé, Bartolomeu, Mateus, primeira discípula. a m o r. cípula —na passagem para a vida são vãs. Mulher do “sim”, que Tiago, filho de Alfeu, Simão, o Zeloso, e Este foi o papel E assim começamos a rezar a eterna. aceitou prontamente o convite do judas, irmãos de Tiago. E todos unidos que Maria desempe- Ela com algumas expressões que Maria está sempre presente à Anjo, responde também às nos- pelo mesmo sentimento, entregavam-se nhou ao longo de to- lhe são dirigidas, presentes nos cabeceira dos seus filhos que dei- sas súplicas, ouve as nossas vo- assiduamente à oração, em companhia da a sua vida terrena Evangelhos: “cheia de graça”, xam este mundo. Se alguém se zes, até aquelas que permanecem de algumas mulheres, entre as quais Ma- e que conserva para “bendita sois vós entre as mulhe- encontra sozinho e abandonado, fechadas no coração, que não ria, mãe de Jesus, e de Seus irmãos. sempre: ser a humil- re s ”(cf. CIC, 2676 ss.). Em breve, Ela é Mãe, está ali perto, tal co- têm a força para sair mas que de serva do Senhor, à oração da Ave-Maria seria mo estava próxima do seu Filho Deus conhece melhor do que nós nada mais. Numa acrescentado o título “Th e o t o k o s ”, quando todos o tinham abando- mesmos. Ouve-as como Mãe. certa altura, nos “Mãe de Deus”, sancionado pelo nado. Como e mais do que todas as carnado, doando-nos no Espírito Evangelhos, Ela parece quase de- Concílio de Éfeso. E, analoga- Maria estava e está presente mães bondosas, Maria defende- a sua relação filial com o Pai. Na saparecer; mas volta nos momen- mente ao que acontece no Pai- durante os dias da pandemia, nos nos perigos, preocupa-se leitura ouvimos falar daquela reu- tos cruciais, como em Caná, Nosso, depois do louvor acres- perto das pessoas que infelizmen- connosco, até quando estamos nião dos discípulos, das mulheres quando o Filho, graças à sua in- centamos a súplica: pedimos à te concluíram o seu caminho ter- ocupados com os nossos afazeres piedosas e de Maria, que reza- tervenção solícita, fez o primeiro Mãe que reze por nós, pecadores, reno numa condição de isola- e perdemos o sentido do cami- vam depois da Assunção de Je- “sinal”(cf. Jo 2, 1-12), e depois no para que interceda com a sua ter- mento, sem o conforto da proxi- nho, colocando em perigo não só sus: era a primeira comunidade Gólgota, ao pé da Cruz. nura, “agora e na hora da nossa midade dos seus entes queridos. a nossa saúde, mas a nossa salva- cristã, que esperava o dom de Je- Jesus estendeu a maternidade morte”. Agora, nas situações con- Maria está sempre presente, ao ção. Maria está presente reza por sus, a promessa de Jesus. de Maria a toda a Igreja quando cretas da vida, e no momento fi- nosso lado, com a sua ternura nós, reza por quem não ora. Reza Cristo é o Mediador, a ponte lhe conf iou o discípulo amado, nal, a fim de que nos acompanhe maternal. connosco. Porquê? Porque Ela é que atravessamos para nos diri- pouco antes de morrer na cruz. A —como Mãe, como primeira dis- As orações a Ela dirigidas não a nossa Mãe! girmos ao Pai (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2674). É o único Redentor: não existem correden- tores com Cristo. É o Mediador por excelência, é oMediador. Ca- da oração que elevamos a Deus é Democracia e paz para o Níger por Cristo, com Cristo e em Cristo, e realiza-se graças à sua interces- O pensamento do Pontífice também pelas vítimas das inundações na Austrália e pelos doentes de tuberculose são. O Espírito Santo alarga a mediação de Cristo a todos os Pelas vítimas dos ataques terroristas no Níger, pela população da Austrália atin- tempos e lugares: não há outro gida pelas cheias, e por quantos sofrem de tuberculose: foi para estas realidades nome no qual podemos ser salvos que se dirigiu o pensamento do Papa no final da audiência geral, antes de saudar (cf. At 4, 12). Jesus Cristo: o úni- os fiéis, de recitar o Pai-Nosso e de conceder a bênção. co Mediador entre Deus e os ho- mens. Foi com tristeza que recebi a notícia sobre os recentes ataques ter- Da mediação única de Cristo roristas no Níger, que provocaram a morte de 137 pessoas. Oremos adquirem significado e valor as pelas vítimas, pelas suas famílias e por toda a população, a fim de outras referências que o cristão que a violência sofrida não faça perder a fé no caminho da demo- encontra para a sua oração e de- cracia, da justiça e da paz. voção, em primeiro lugar à Vir- Nestes dias, grandes inundações causaram graves prejuízos no Es- gem Maria, Mãe de Jesus. tado de New South Wales, na Austrália. Estou próximo das pessoas Ela ocupa um lugar privilegia- e famílias atingidas novamente por esta calamidade, especialmente do na vida e, portanto, também de quantos viram as suas casas destruídas, e encorajo aqueles que na oração do cristão, porque é a trabalham para procurar os desaparecidos e para levar socorro. Mãe de Jesus. As Igrejas do Hoje é o Dia Mundial de Luta contra a Tuberculose. Possa esta celebra- Oriente representaram-na fre- ção favorecer um impulso renovado no tratamento desta doença e quentemente como a Odigitria, uma maior solidariedade para com quantos dela sofrem. Sobre eles aquela que “indica o caminho”, e sobre as suas famílias invoco a consolação do Senhor. ou seja, o Filho Jesus Cristo. Saúdo os ouvintes de língua portuguesa e convido, nas vésperas Vem-me à mente aquela bonita, da solenidade da Anunciação, a dirigir-vos com confiança à Virgem antiga e simples pintura da Odigi- Mãe. Mulher do “sim”, que acolheu com prontidão o convite do tria, na catedral de Bari: Nossa Anjo, responde de igual forma às nossas súplicas. Como e mais do Senhora mostra Jesus nu. Depois que toda a boa mãe, Maria protege-nos nos perigos. Lá, está Ela a vestiram-lhe a camisa para cobrir rezar por nós, a rezar por quem não reza. Porque é a nossa Mãe! página 4L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 30 de março de 2021, número 13

Entrevista com o cardeal Mario Zenari «Não deixemos morrer a esperança»

MASSIMILIANO MENICHETTI deou o conflito foi aceso inconscientemente por algumas crianças de Daraa, no sul da Síria, A guerra na Síria devorou vidas e paz e corre o que foram presas e detidas durante alguns dias risco de anular a esperança. Este é o receio do porque tinham escrito slogans contra o Presi- núncio apostólico em Damasco, cardeal Mario dente Assad na parede da sua escola. Tudo isto Zenari, que vive num país, há dez anos dilace- teve inexoravelmente repercussões sobre os rado pela guerra, violência e interesses de parte. seus coetâneos como um bumerangue cruel. Nem sempre foi assim, recorda, mas atualmente Um verdadeiro massacre de inocentes. falta tudo e é necessário um “rio”de ajuda orientada. No Angelus de 14 de março e duran- Que papel desempenham os jovens, presentes e futuros, na te o voo de regresso do Iraque, o Papa dirigiu reconstrução do país? mais uma vez o seu pensamento à «amada e Os jovens são os melhores recursos de um atormentada Síria» . país. Eles são o futuro da sociedade e da Igreja. Infelizmente, a Síria e a Igreja perderam muito Eminência, o Papa voltou a invocar para a Síria recons- deste património incomparável. Com efeito, trução, convivência e paz... um grande número deles, não vendo um futuro Desde o início do conflito, o binómio muitas seguro, empreenderam o caminho do exílio. vezes recorrente nos apelos do Papa Francisco Poder-se-ia definir esta perda incalculável co- permanece o mesmo: «amada e atormentada mo mais uma “b omba”mortal para a Síria. Síria». É um dos países mais próximos do seu coração. Também recentemente, durante a via- Para reiniciar a Síria, estima-se que são necessários cerca gem apostólica ao Iraque, o Santo Padre men- de 400 mil milhões de dólares. Pensa que é necessário cionou a Síria. Durante o Angelus de ontem, mais esforço por parte da comunidade internacional falando do triste aniversário de dez anos de As Nações Unidas, as várias Ongs envolvi- guerra, recordou uma vez mais o imenso sofri- das no campo humanitário e as Igrejas estão a mento da população, e fez um apelo urgente à procurar colmatar as muitas emergências, espe- solidariedade internacional para que silenciem cialmente a alimentação e a saúde. Infelizmen- as armas possam, e para que se trabalhe pela re- te, a reconstrução e o lançamento da economia, conciliação, reconstrução e recuperação econó- para a qual seriam necessárias várias centenas mica, reavivando assim a esperança de tantas de biliões de dólares, ainda não começaram. pessoas, duramente provadas pela crescente Além do grave fenómeno da corrupção e de vá- pobreza e incerteza sobre o futuro. rios outros fatores, as sanções, em particular, Nos últimos anos, houve muitas e variadas têm um efeito negativo em tudo isto. Para este iniciativas, primeiro do Papa Bento XVI, e de- trabalho de reconstrução e recuperação econó- pois do Papa Francisco, para pôr fim à violên- mica, há necessidade de uma intervenção pode- cia e lançar o processo de paz. Também tem ha- rosa e urgente por parte da comunidade inter- vido muitas iniciativas relativas à ajuda huma- nacional. A Síria não terá paz sem reconstrução nitária. Tornou-se célebre a convocação de um e arranque económico. «Desenvolvimento é o dia de jejum e oração pela paz na Síria a 7 de novo nome da paz», escreveu o Papa São Paulo setembro de 2013, alguns meses após a sua elei- VI na Encíclica Populorum Progressio de 1967. E o ção como Papa. A Praça de São Pedro estava Papa Francisco, na Encíclica Fratelli tutti, n. 126, repleta de fiéis, precisamente num momento citando a Centesimus annus do Papa São João dramático, talvez um dos mais cruciais para a Paulo II, fala da necessidade de assegurar o «di- Síria. Ele próprio o recordou no avião, há al- reito fundamental dos povos à subsistência e ao guns dias, durante a sua viagem de regresso da progresso». Se me é permitido fazer meu e pa- visita apostólica ao Iraque. rafrasear o título de um romance que surgiu há alguns anos, The peace like a river (“A paz como Qual é hoje o rosto do país que também enfrenta a emer- um rio”), há necessidade de um “rio”de ajuda gência de Covid-19? te dez anos. O solo é pisado e os céus atraves- mais alto órgão responsável pela segurança e destinado à reconstrução de hospitais, escolas, Já não é a Síria que eu conhecia quando lá sados pelas forças armadas de cinco potências paz mundiais continuarem. No entanto, para fábricas e várias infraestruturas. cheguei há doze anos como núncio apostólico. em desacordo, como nos lembra muitas vezes o além destes momentos frustrantes e sem suces- Hoje, saindo pelas ruas de Damasco, vejo lon- enviado especial da Onu para a Síria, o Senhor so, é também necessário recordar o acordo unâ- Qual é o papel da Igreja neste contexto? gas filas de pessoas em frente das padarias, es- Geir Pedersen. Em suma, um quadro verdadei- nime da comunidade internacional em pelo Um enorme desafio para as várias religiões perando pacientemente pela sua vez para com- ramente desolador. menos duas ocasiões cruciais: a primeira, em presentes na Síria, em particular as religiões prar pão a preços subsidiados pelo Estado, setembro de 2013, quando, graças ao acordo en- cristã e muçulmana, é reconciliar e remendar o muitas vezes o único alimento que podem pa- Após estes longos anos de guerra, a economia está forte- tre os presidentes da Federação Russa e dos Es- tecido social, danificado por estes longos anos gar. Cenas nunca vistas antes, nem sequer du- mente prejudicada, há falta de serviços básicos como esco- tados Unidos, Putin e Obama, foi resolvido o de guerra. A Igreja, além disso, está ativa no rante os anos mais difíceis da guerra. E pensar las e hospitais, a pobreza é outra chaga que esmaga o po- grave e delicado problema do desmantelamen- terreno com uma vasta rede de projetos huma- que a Síria faz parte da chamada “Meia-lua fér- vo. A Síria corre o risco de se perder num cenário de to do arsenal químico sírio; outra ocasião foi nitários abertos a todos, sem diferenças étnico- til”, a Alta Mesopotâmia, com planícies enor- abandono? quando a Resolução 2254 acima referida foi vo- religiosas, graças à ajuda de várias instituições mes, estendendo-se por cerca de 500 km entre É verdade que em várias regiões da Síria, há tada por unanimidade, o que, como menciona- de caridade de todo o mundo. Poderíamos di- os rios Eufrates e Tigre: um tapete de ouro du- já algum tempo, as bombas não têm caído, mas do, estabeleceu o ro a d m a p para o processo de zer que é o trabalho do “bom Samaritano”. rante o mês de maio, quando os campos enlou- aquilo a que se poderia chamar a “b omba”da paz. recem! Vê-se, além disso, longas filas de carros pobreza explodiu. De acordo com os últimos Como se vive este período da Quaresma e com qual hori- em frente dos postos de gasolina, e tem dificul- dados das Nações Unidas, cerca de 90% da po- Há crianças que experimentaram apenas a dimensão da zonte? dade de encontrar gasóleo para aquecimento pulação síria vive atualmente abaixo do limiar violência, da privação. Como irão sarar estas feridas? Procura-se viver esta “Q u a re s m a ”em con- doméstico, embora na parte oriental do país, na da pobreza. É o pior dado do mundo! A lira sí- Como em todas as guerras, este longo e cruel junto com o povo, que dura, sem interrupção, fronteira com o Iraque, existam poços de petró- ria perdeu muito do seu valor e os preços dos conflito teve efeitos devastadores, especialmen- há 10 anos, à espera de poder entrever o fim do leo que seriam suficientes para um abasteci- bens de consumo básicos subiram muito. As te nas camadas mais débeis da população, so- túnel e um vislumbre da recuperação da Síria, mento quase completo de combustível para uso pessoas chamam a esta fase do conflito “guerra bretudo crianças, mulheres e idosos. Muitas uma “re s s u r re i ç ã o ”deste país. interno. económica”. Além disso, há falta de fábricas, o crianças morreram sob os bombardeamentos trabalho é difícil de encontrar e os salários são ou no fogo cruzado, outras foram extraídas fe- Qual é o seu desejo, o seu apelo para este país? Qual é o balanço de dez anos após a eclosão do conflito? muito baixos, e ainda não há sinais de uma re- ridas e mutiladas dos escombros, algumas mor- Uma jornalista síria, com o pseudónimo de A Síria de hoje tem o rosto de um país onde, cuperação económica substancial. reram na travessia marítima, muitas outras so- Waad Al-Kateab, escreveu no «The New York em relação a dez anos atrás, várias categorias de freram traumas psicológicos difíceis de curar, Times» a 7 de fevereiro de 2020 um artigo inti- pessoas estão desaparecidas: os mortos do con- Durante cerca de dois anos na maior parte do país as outras ficaram sem um ou ambos os pais. Mui- tulado: «We are left to face death alone» (“So- flito somam cerca de meio milhão; 5,5 milhões bombas pararam, as Nações Unidas continuam os seus tas morreram de desnutrição, frio, desidratação, mos deixados sozinhos a enfrentar a morte”). E de refugiados sírios estão nos países vizinhos; esforços para negociar entre as facções e o governo para co- como os cerca de cinquenta bebés que morre- o Papa Francisco, a 9 de janeiro de 2020, por outros 6 milhões vagueiam, com frequência vá- meçar a trabalhar numa nova Constituição, mas isso não ram nos braços das suas mães enquanto fugiam ocasião da troca de bons votos de Ano Novo rias vezes, de uma aldeia para outra como pes- parece ser suficiente para restaurar a esperança e a con- de Baghouz no inverno de há dois anos. Uns com o Corpo Diplomático acreditado junto da soas deslocadas internas. Falta também cerca fiança. Por que não? certos números delas, juntamente com as suas Santa Sé, disse: «Refiro-me, antes de mais na- de um milhão de pessoas que emigraram. De- Infelizmente, tem-se com a impressão de que mães, continuam à espera, em vários campos de da, à cortina de silêncio que corre o risco de en- zenas de milhares de pessoas estão desapareci- o processo de paz, indicado pela Resolução refugiados, de repatriamento para as suas cida- cobrir a guerra que devastou a Síria durante a das. Faltam os jovens, que são o futuro do país. 2254 (2015) do Conselho de Segurança das Na- des de origem, em condições muito precárias, última década». A Síria, nestes longos anos de Falta mais de metade dos cristãos. Não há pais, ções Unidas, está parado. No seu briefing ao especialmente no tristemente famoso campo de guerra, perdeu a paz, perdeu pessoas, perdeu e por vezes não há mães, para muitas crianças. mesmo Conselho de Segurança a 9 de fevereiro, Al-Hol (Hassaké). Após a sangrenta batalha de jovens, perdeu cristãos. Muitas pessoas perde- Para muitas delas não há casa. E ainda mais o Enviado especial da Onu chamou a atenção Alepo em 2016, vários milhares de crianças apa- ram e estão também a perder a esperança. Po- grave, faltam escolas, hospitais, médicos e en- para a necessidade de uma “diplomacia inter- receram, vagueando pelas ruas e ruínas da cida- deria ser comparada com o infeliz da parábola fermeiros em plena emergência de Covid-19. nacional construtiva sobre a Síria”, tanto para a de, sem família, sem nome nem apelido. Graças do “bom Samaritano”: atacada por ladrões, as- Não existem fábricas nem atividades produti- continuação da reforma constitucional como aos esforços conjuntos das autoridades religio- saltada e deixada meio morta e humilhada na vas. Aldeias e bairros inteiros desapareceram, para o processo de paz em geral. Durante al- sas muçulmanas e cristãs de Alepo, foram feitos berma da estrada. Ela está à espera de ser rea- foram dizimados e despovoados. O famoso pa- guns momentos cruciais, nestes anos de guerra, esforços para as registar no cartório com um bilitada social e economicamente, e de ver a sua trimónio arqueológico, que atraiu visitantes de houve ásperos debates e divisões no seio do nome e um apelido, e para as colocar num ca- dignidade reconhecida. Por isso, dirijo um todo o mundo, foi dilapidado. O tecido social, Conselho de Segurança, e o uso do direito de minho de reinserção social. Com uma escola agradecimento especial a todos os “bons sama- o mosaico da coexistência exemplar entre gru- veto foi utilizado cerca de quinze vezes, por al- em cada três fora de uso, cerca de dois milhões ritanos”, alguns dos quais até perderam a vida pos étnicos e religiosos, foi seriamente danifica- guns membros permanentes, quando se tratava de crianças sírias não vão à escola. Algumas são para lhe demonstrar a sua generosa solidarieda- do. A natureza também sofre com a poluição de adotar resoluções importantes. A partir dis- vítimas de exploração sexual e outras são recru- de: são instituições humanitárias internacio- do ar, da água e do solo causada pela utilização to, é fácil concluir que não haverá paz na Síria tadas. As meninas, em particular, são expostas nais, organizações religiosas, indivíduos. Não de explosivos e vários tipos de artilharia duran- enquanto estas diatribes e divisões dentro do a casamentos precoces. O rastilho que desenca- deixemos morrer a esperança! número 13, terça-feira 30 de março de 2021 L’OSSERVATORE ROMANO página 5

Mensagem a um congresso por ocasião da abertura do Ano especial «» Para salvaguardar a beleza e curar as feridas da família

«Hoje precisamos de um novo olhar sobre a fa- manas da escravidão que muitas vezes Amoris laetitia, então ela torna-se uma mília», para salvaguardar a sua beleza e cui- desfigura o seu rosto e as torna instá- palavra viva de Deus-Amor, pronuncia- dar das «suas fragilidades e feridas»: frisou o veis: a ditadura das emoções, a exalta- da ao mundo e para o mundo. Com Papa na mensagem enviada a 19 de março ao ção do provisório que desencoraja os efeito, a gramática das relações familia- congresso online «O nosso amor diário», pro- compromissos ao longo da vida, a pre- res —ou seja, de conjugalidade, mater- movido pelo Dicastério para os leigos, a família dominância do individualismo, o medo nidade, paternidade, filialidade e frater- e a vida, pelo Vicariato de Roma e pelo pon- do futuro. Face a estas dificuldades, a nidade —é a forma através da qual a tifício Instituto teológico João Paulo II, por oca- Igreja reitera o valor do matrimónio linguagem do amor é transmitida, o sião da inauguração do Ano da Família «Amo- como projeto de Deus para os esposos que dá sentido à vida e qualidade hu- ris laetitia». cristãos, como fruto da sua Graça e co- mana a todas as relações. É uma lin- mo chamada a ser vivida com totalida- guagem feita não só de palavras, mas Estimados irmãos e irmãs! de, fidelidade e gratuidade. Este é o também de formas de ser, de como fa- Audiência à Associação Fidesco Saúdo todos vós que participais no caminho para que as relações, mesmo lamos, dos olhares, gestos, tempos e es- Congresso de estudo sobre o tema «O através de um percurso marcado por paços da nossa relação com os outros. nosso amor diário». Dirijo o meu pen- fracassos, quedas e mudanças, possam Os cônjuges sabem-no bem, pais e fi- samento em particular ao Cardeal Ke- abrir-se à plenitude da alegria e da rea- lhos aprendem-no diariamente na esco- O uvir vin Joseph Farrell, Prefeito do Dicasté- lização humana e tornar-se um fermen- la de amor que é a família. É também rio para os Leigos, a Família e a Vida, to de fraternidade e amor na socieda- aqui que tem lugar a transmissão da fé ao Cardeal , Vigário de. entre as gerações: ela passa precisamen- o grito dos pobres da Diocese de Roma, e a D. Vincenzo Por outro lado, este anúncio não po- te pela linguagem das relações boas e Paglia, Grão-Chanceler do Instituto de e nunca deve ser dado do alto ou saudáveis que se vivem na família to- Um convite a «ouvir o grito dos po- vossa relação pessoal com o Se- Teológico João Paulo II para as Ciên- de fora. A Igreja encarna-se na realida- dos os dias, especialmente ao enfrentar bres» e a «deixar-se provocar pelo so- nhor e com a vossa vida de fé, a cias do Matrimónio e da Família. de histórica como fez o seu Mestre, e em conjunto conflitos e dificuldades. frimento dos outros» foi dirigido pelo preservar intacta a maravilha, o Há cinco anos, foi promulgada a também quando proclama o Evangelho Neste tempo de pandemia, no meio Papa à delegação da Associação Fi- fascínio, o entusiasmo de viver Exortação apostólica pós-sinodal Am o r i s da família, fá-lo mergulhando na vida de tantas dificuldades psicológicas, desco —organização católica de soli- o Evangelho da fraternidade laetitia sobre a beleza e a alegria do real, conhecendo de perto o trabalho bem como económicas e de saúde, tu- dariedade internacional com sede em (cf. ibid., 179). Precisamos disto Paris e ativa sobretudo em África, mas nos momentos mais difíceis de com missões também na América Lati- solidão, desânimo, desilusão... na e no Sudeste asiático —recebida em Gostaria de agradecer à FI- audiência a 20 de março, na Sala D E S C O, aos seus responsáveis, Clementina. aos seus voluntários, e de dar graças ao Senhor pelo trabalho Estimados irmãos e irmãs! realizado nestes quarenta anos Sinto-me feliz por vos receber, de serviço missionário, bem co- responsáveis e voluntários da mo pelo testemunho dado a organização F I D E S C O, durante Cristo, que veio para salvar o a vossa peregrinação a Roma homem todo e todos os ho- por ocasião do 40º aniversário mens. A vossa ação de solida- de fundação ao serviço da Igre- riedade está de facto orientada ja e do desenvolvimento. Agra- para o desenvolvimento inte- deço ao Diretor as suas pala- gral das pessoas, para o cuida- vras de saudação e introdução. do não só das suas necessidades A vossa visita aos túmulos dos materiais, mas também da sua Apóstolos permite-vos enraizar integração social, do seu cresci- ainda mais firmemente as ações mento intelectual, cultural e es- que realizais diariamente na piritual, dando a cada um a vossa fé em Cristo morto e res- própria dignidade. Encorajo- suscitado e no coração da mis- vos a perseverar neste caminho, são da Igreja. É minha esperan- permanecendo enraizados na ça que esta renovação espiritual doutrina social da Igreja. É ho- que estais a experimentar, que je importante como nunca que tem uma conotação penitencial os fiéis de Cristo sejam teste- neste tempo da Quaresma, vos munhas de ternura e compai- faça regressar junto dos vossos xão. Ouvir o grito dos pobres irmãos e irmãs ainda mais entu- que ressoa dentro de nós, dei- siasmados e alegres. xar-se provocar pelo sofrimen- amor conjugal e familiar. Convidei-vos diário dos cônjuges e dos pais, os seus do isto se tornou evidente: os laços fa- «Deixar-se amar por Deus e to dos outros e decidir sair para a viver um ano de releitura do Docu- problemas, os seus sofrimentos, todas miliares foram e continuam a ser dura- [...] amá-Lo com o amor que tocar as suas feridas —que são mento e de reflexão sobre o tema, até à aquelas situações pequenas e grandes mente provados mas, ao mesmo tempo, Ele mesmo nos comunica, pro- as feridas de Cristo —não só celebração do Décimo Dia Mundial que pesam e por vezes dificultam o seu permanecem o ponto de referência voca na vida da pessoa e nas nos faz participar na constru- das Famílias que, se Deus quiser, terá caminho. Este é o contexto concreto mais firme, o apoio mais forte, o guar- suas ações uma primeira e fun- ção de um mundo mais bonito, lugar em Roma a 26 de junho de 2022. em que o amor diário é vivido. Este é o dião insubstituível para a estabilidade damental reação: desejar, pro- mais fraterno e mais evangéli- Estou-vos grato pelas iniciativas que título do vosso Congresso: «O nosso de toda a comunidade humana e so- curar e ter a peito o bem dos co, como fortalece a Igreja na tomastes para este fim e pelo contribu- amor diário». É uma escolha significa- cial. outros» (Exort. Ap. Evangelii sua missão de apressar a instau- to que cada um de vós dá na vossa es- tiva. Trata-se do amor gerado pela sim- Portanto, apoiemos a família! Defen- gaudium, 178). É este “bem dos ração do Reino de Deus (cf. fera de trabalho. plicidade e o trabalho silencioso da vi- damo-la contra tudo o que puder com- o u t ro s ”que procurais, impul- ibid., 180). Neste quinquénio, Amoris laetitia mar- da de um casal, por esse compromisso prometer a sua beleza. Abordemos este sionados pelo sopro do Espíri- Por fim, gostaria de salientar cou o início de um caminho ao procu- diário e por vezes cansativo realizado mistério de amor com admiração, dis- to, quando decidis partir por o crescimento pessoal que um rar encorajar uma nova abordagem por cônjuges, mães, pais, filhos. Um crição e ternura. E comprometamo-nos alguns anos com a organização compromisso, mesmo tempo- pastoral à realidade da família. A prin- Evangelho que se propusesse como na salvaguarda dos seus laços preciosos FIDESCO para servir os irmãos e rário, na vossa associação pode cipal intenção do Documento é comu- uma doutrina vinda do alto e que não e delicados: filhos, pais, avós.... Preci- irmãs mais distantes, menos trazer, tanto a nível humano co- nicar, num tempo e numa cultura pro- entrasse na “carne”desta vida quotidia- samos destes laços para viver e para vi- afortunados, mais desfavoreci- mo a nível de fé. Aqueles que se fundamente alterados, que hoje é ne- na, correria o risco de permanecer uma ver bem, para tornar a humanidade dos, com menos oportunidades comprometem com as vossas cessário um novo olhar sobre a família bonita teoria e, por vezes, de ser vivida mais fraterna. do que vós, mas também ama- missões têm não só a oportuni- por parte da Igreja: não basta reiterar o como uma obrigação moral. Somos Por conseguinte, o ano dedicado à dos por Deus e dotados de dig- dade de abertura ao mundo e às valor e a importância da doutrina, se chamados a acompanhar, a ouvir, a família, que começa hoje, será um mo- nidade. culturas, mas também os meios não nos tornarmos guardiões da beleza abençoar o caminho das famílias; não mento propício para continuar a nossa A Igreja nestes dias entra na para responder à misericórdia da família e se não cuidarmos com apenas a delinear a direção, mas a per- reflexão sobre a Amoris laetitia. E por is- grande meditação da Paixão do de Deus: «Sede misericordio- compaixão da sua fragilidade e feri- correr o caminho com elas; a entrar nos to agradeço-vos de coração, sabendo Senhor. O Cristo sofredor está sos, como o vosso Pai é miseri- das. lares com discrição e amor, a dizer aos que o Instituto João Paulo II p o de presente no pobre, excluído, cordioso» (Lc 6, 36). Encon- Estes dois aspetos estão no cerne de cônjuges: a Igreja está convosco, o Se- contribuir de muitas maneiras, em diá- doente e faminto que carrega tram, além disso, um percurso toda a pastoral familiar: a franqueza do nhor está perto de vós, queremos aju- logo com outras instituições académi- com Ele o mistério da Cruz. Be- espiritual em resposta ao dom anúncio evangélico e a ternura do dar-vos a preservar o dom que recebes- cas e pastorais, para o desenvolvimento neficiareis muito em viver ple- gratuito de Deus. Mais uma acompanhamento. tes. da atenção humana, espiritual e pasto- namente este tempo da Paixão vez merece reconhecimento a Por um lado, anunciamos aos casais, Anunciar o Evangelho, acompanhan- ral em apoio à família. À Sagrada Fa- para haurir da fonte da vossa oportunidade que ofereceis, es- aos cônjuges e às famílias uma Palavra do as pessoas e colocando-nos ao ser- mília de Nazaré confio vós e o vosso missão. «Confessar que Jesus pecialmente aos mais jovens, que os ajude a compreender o signifi- viço da sua felicidade: desta forma, po- trabalho; e peço-vos que façais o mes- deu o seu sangue por nós impe- de crescer na fé e na humanida- cado autêntico da sua união e do seu demos ajudar as famílias a caminhar de mo por mim e pelo meu ministério. de-nos de ter qualquer dúvida de. amor, o sinal e a imagem do amor tri- modo que respondam à sua vocação e acerca do amor sem limites que Desejo-vos uma boa peregri- nitário e da aliança entre Cristo e a missão, conscientes da beleza dos laços Roma, São João de Latrão, enobrece todo o ser humano» nação e confio-vos, como a to- Igreja. É a Palavra sempre nova do e do seu fundamento no amor de Deus 19 de março de 2021 (ibid.). Todo o ser humano é dos os membros da F I D E S C O,à Evangelho a partir da qual todas as Pai, Filho e Espírito Santo. Solenidade de São José, digno. Cada ser humano é para proteção da Virgem Maria. doutrinas, incluindo a da família, po- Quando a família vive no sinal desta início do Ano da Família Amoris laetitia. mim um irmão ou irmã. Convi- Abençoo-vos de coração, e pe- dem tomar forma. E é uma Palavra exi- Comunhão divina, que eu quis explici- do-vos, quando estiverdes no ço-vos, por favor, que rezeis gente, que quer libertar as relações hu- tar nos seus aspetos existenciais na FRANCISCO meio da vossa missão, com a por mim. Obrigado! página 6, terça-feira 30 de março de 2021, número 13 L’OSSERVATORE ROMANO número 13, terça-feira 30 de março de 2021, página 7

Carta apostólica do Papa Francisco no VII centenário da morte de Dante Alighieri

«Profeta de esperança e testemunha da se- Candor lucis de de infinito ínsita no coração do ho- mem», assim o Papa Francisco define Dante Alighieri na carta apostólica «Candor lucis aeternae», assinada a 25 de março por ocasião dos setecentos anos da morte do “sumo poeta”. A seguir, o tex- æternæ to da carta apostólica.

ma do equinócio da primavera e Antecessores que honraram e cele- que o obséquio da mente e do co- vista na perspetiva pascal, tal data braram o Poeta, especialmente por ração a Deus corte as asas do enge- aparecia associada quer com a cria- ocasião dos aniversários do nasci- nho; pelo contrário, estimula-o e ção do mundo quer com a reden- mento ou da morte, para o propor eleva-o». Por isso, defendia ainda ção realizada por Cristo na cruz, de novo à atenção da Igreja, à uni- o Papa, «os ensinamentos que início da nova criação. À luz do versalidade dos fiéis, aos estudio- Dante nos deixou em todas as suas Verbo encarnado, convida a con- sos de literatura, aos teólogos, aos obras, mas sobretudo no seu triplo templar o desígnio de amor que é artistas. Recordarei brevemente es- poema» podem servir «como guia o próprio coração e a fonte inspi- tas intervenções, focando a aten- validíssimo para os homens do radora da obra mais célebre do ção nos Pontífices do último sécu- nosso tempo», e de modo particu- Poeta, a Divina Comédia. No último lo e nos seus documentos de maior lar para alunos e estudiosos, já que canto desta, o acontecimento da re l e v o . ele, «ao compor o seu poema, não Encarnação é lembrado por São teve outro objetivo senão levantar Bernardo com estes versos famo- 1. As palavras sobre Dante os mortais do estado de miséria, is- C A R TA APOSTÓLICA sos: «No ventre teu reacendeu-se Alighieri dos Romanos to é, do pecado e conduzi-los ao «CAND OR LUCIS ÆTERNÆ» amor / e em paz eterna fez que Pontífices do último século estado de beatitude, isto é, da gra- D O SANTO PA D R E FRANCISCO germinasse / a seu calor assim tão Há um século, em 1921, por oca- ça divina». NO VII CENTENÁRIO DA MORTE bela flor» (P a r.XXXIII, 7-9).* sião do VI centenário da morte do Passando a São Paulo VI, as suas DE DANTE ALIGHIERI Mas, já no P u rg a t ó r i o , Dante re- Poeta, Bento X V, recolhendo as várias intervenções estão relaciona- presentara a cena da Anunciação ideias que surgiram nos pontifica- das com o VII centenário do nasci- splendor da Luz Eterna, o Verbo esculpida num penhasco rochoso dos anteriores, particularmente de mento, em 1965. No dia 19 de se- de Deus tomou um corpo da Vir- (X, 34-37.40-45). Leão XIII e São Pio X, comemorou tembro, ofereceu uma cruz doura- gem Maria quando, ao anúncio do Por isso, nesta circunstância, o aniversário de Dante quer com da para embelezar a Capela de Ra- Anjo, Ela respondeu: «Eis a serva não pode faltar a voz da Igreja que uma Encíclica,1 quer promovendo vena que guarda o túmulo de Dan- do Senhor» (Lc 1, 38). O dia em se associa à comemoração unâni- obras de restauro em Ravena na te, até então desprovida de «tal si- que a Liturgia celebra este mistério me do homem e do poeta Dante igreja de São Pedro Maior, chama- nal de religião e esperança».4 Em inefável é particularmente signifi- Alighieri. Melhor do que muitos da popularmente de São Francis- 14 de novembro, enviou a Florença cativo também na vida histórica e outros, soube exprimir, com a be- co, onde se celebrou o funeral de uma coroa áurea de louros para ser literária do insigne poeta Dante leza da poesia, a profundidade do Alighieri tendo sido sepultado na encastoada no Batistério de São Alighieri, profeta de esperança e mistério de Deus e do amor. O seu respetiva área tumular. O Papa, João. Finalmente, no termo dos testemunha da sede de infinito poema, expressão sublime do gé- vendo com apreço as numerosas trabalhos do Concílio Ecuménico presente no coração do homem. nio humano, é fruto de uma nova e iniciativas tendentes a solenizar a Vaticano II, quis doar aos Padres Por isso, nesta ocorrência, desejo profunda inspiração, de que o ocorrência, reivindicava o direito Conciliares uma edição artística da unir-me também eu ao coro nume- Poeta aliás tem consciência quan- da Igreja, «que foi sua mãe», de Divina Comédia. Mas sobretudo roso de quantos querem honrar a do fala dele como «poema santo ser protagonista de tais comemora- honrou a memória do insigne Poe- sua memória no VII centenário da que consagro, / em que puseram ções, honrando o «seu» Dante.2 Já ta com a Carta Apostólica Al t i s s i m i Esua morte. mão o céu e a terra» (P a r.X X V, 1- na Carta ao Arcebispo de Ravena, cantus,5 na qual reiterava a forte li- Em Florença, de facto, o ano ti- 2). D. Pasqual Morganti, com a qual gação entre a Igreja e Dante Depois Paulo VI ilustrava as ca- nha início, segundo o cômputo ab Desejo, com esta Carta Apostó- aprovara o programa das celebra- Alighieri: «Se alguém quisesse raterísticas que fazem do poema Incarnatione, em 25 de março. Próxi- lica, unir a minha voz à dos meus ções do centenário, Bento XV moti- perguntar por que motivo a Igreja de Dante uma fonte de riqueza es- vou a sua adesão da seguinte for- Católica, por vontade do seu Che- piritual ao alcance de todos: «O ma: «Além disso (e isto é mais im- fe visível, tenha a peito cultivar a poema de Dante é universal: na portante) há uma razão particular memória e celebrar a glória do sua amplitude imensa, abraça céu para considerarmos que se deve poeta florentino, é fácil a nossa e terra, eternidade e tempo, os mis- celebrar o seu fausto aniversário resposta: porque, por um direito térios de Deus e as vicissitudes dos com grata memória e grande con- particular, Dante é nosso! Nosso, homens, a doutrina sagrada e a curso de povo, ou seja, o facto de queremos dizer da fé católica, por- que deriva da luz da razão, os da- que Alighieri é nosso. (...) Com que tudo nele respira amor a Cris- dos da experiência pessoal e as efeito, quem poderá negar que o to; nosso, porque muito amou a memórias da história». Mas sobre- nosso Dante tenha alimentado e Igreja, cujas glórias ele cantou; e tudo especificava a finalidade in- fortalecido a chama do engenho e nosso, porque no Romano Pontífi- trínseca da obra de Dante, particu- a virtude poética inspirando-se na ce reconheceu e venerou o Vigário larmente da Divina Comédia (finali- fé católica, a ponto de cantar num de Cristo». dade essa, nem sempre claramente poema quase divino os mistérios Mas tal direito, continuava o apreciada e avaliada): «O objetivo sublimes da religião?»3 Papa, longe de autorizar atitudes da Divina Comédia é primariamente Num momento histórico marca- triunfalistas, constitui um compro- prático e transformador. Não se do por sentimentos de hostilidade misso. «Dante é nosso: podemos propõe apenas ser poeticamente à Igreja, o Pontífice reiterou, na ci- justamente repeti-lo. E afirmamo- bela e moralmente boa, mas capaz tada Encíclica, a pertença do Poe- lo, não para fazer dele um almeja- de mudar radicalmente o homem e ta à Igreja, «a união íntima de do troféu de glória egoísta, mas levá-lo da desordem à sabedoria, Dante com esta Cátedra de Pe- antes para nos lembrar a nós pró- do pecado à santidade, da miséria dro»; mais, afirmou que a sua prios o dever de o reconhecer co- à felicidade, da visão terrificante obra, apesar de ser expressão da mo tal e explorar na sua obra os te- do inferno à contemplação beatifi- «prodigiosa vastidão e agudeza do souros inestimáveis do pensamen- cante do paraíso». seu engenho», recebeu «um pode- to e sentimento cristãos, convenci- Num momento histórico denso roso impulso de inspiração» preci- dos como estamos de que só quem de tensões entre os povos, o Papa samente da fé cristã. Por isso, «ne- penetra na alma religiosa do insig- tinha a peito o ideal da paz e en- le —continuava Bento XV —não ne Poeta pode compreender pro- contrava na obra do Poeta uma re- devemos admirar apenas a altura fundamente e saborear as suas ma- flexão preciosa para a promover e sublime do engenho, mas também ravilhosas riquezas espirituais». E suscitar: «Esta paz dos indivíduos, a vastidão do tema que a religião este compromisso não dispensa a das famílias, das nações, da socie- divina ofereceu ao seu canto». E Igreja de acolher também as pala- dade humana, paz interna e exter- tecia o seu elogio, respondendo in- vras de crítica profética pronuncia- na, paz individual e pública, tran- diretamente a quantos negavam ou das pelo Poeta contra quem devia quilidade da ordem, é perturbada criticavam a matriz religiosa da sua anunciar o Evangelho e represen- e abalada, porque são espezinha- obra: «Respira-se em Alighieri a tar, não a si próprio, mas a Cristo: das a piedade e a justiça. E, para mesma piedade que há em nós; a «Nem me custa recordar que a voz restaurar a ordem e a salvação, são sua fé tem os mesmos sentimentos. de Dante se ergueu, pungente e se- chamadas a trabalhar em harmo- (...) O motivo principal de elogio vera, contra mais de um Romano nia a fé e a razão, Beatriz e Virgí- nele é este: ser um poeta cristão e Pontífice, e teve amargas repri- lio, a Cruz e a Águia, a Igreja e o ter cantado com acentuações quase mendas para instituições eclesiásti- Império». Nesta linha, assim defi- divinas os ideais cristãos dos quais cas e pessoas que foram ministros nia a obra poética na perspetiva da contemplava, com toda a alma, a e representantes da Igreja»; contu- paz: «A Divina Comédia é poema da beleza e o esplendor». E o Pontífi- do resulta claro que «tais atitudes paz: lúgubre canto da paz perdida ce prosseguia: a obra de Dante é inexoráveis nunca abalaram a sua para sempre é o Inferno, suave can- um exemplo eloquente e válido fé católica firme nem o seu afeto fi- to da paz esperada é o P u rg a t ó r i o , O túmulo de Dante em Ravena para «demonstrar quão falso seja lial à santa Igreja». epinício triunfal de paz eterna e página 6, terça-feira 30 de março de 2021, número 13 L’OSSERVATORE ROMANO número 13, terça-feira 30 de março de 2021, página 7

Carta apostólica do Papa Francisco no VII centenário da morte de Dante Alighieri

e entendente, te amas, ris assi!” remete-nos para as raízes cristãs da última etapa do seu exílio foi Rave- (P a r. XXXIII, 124-126). Na realidade, Europa e do Ocidente, representa o na, onde foi acolhido por Guido ainda mais impressionante que esta património de ideais e valores que Novello da Polenta, e lá faleceu — revelação de Deus como círculo tri- também hoje a Igreja e a sociedade regressava de uma missão a Veneza nitário de conhecimento e amor é a civil propõem como base da convi- —aos 56 anos, na noite de 13 para 14 perceção de um rosto humano —o vência humana, na qual podemos e de setembro de 1321. A sua sepultu- rosto de Jesus Cristo —que aparece devemos reconhecer-nos todos ir- ra num sarcófago em São Pedro a Dante no círculo central da Luz. mãos. Sem me embrenhar na com- Maior, por trás do muro externo do (...) Este Deus tem um rosto huma- plexa história pessoal, política e ju- antigo claustro franciscano, foi pos- no e —podemos acrescentar —um diciária de Alighieri, gostaria de teriormente transferida para a adja- coração humano». 6 O Papa desta- lembrar apenas alguns momentos e cente Capela do século XVIII, onde cou a originalidade da visão de factos da sua existência, pelos quais em 1865, depois de atribuladas vi- Dante na qual se comunica poetica- ele aparece extraordinariamente cissitudes, foram colocados os seus mente a novidade da experiência próximo de muitos dos nossos con- restos mortais. O lugar é ainda hoje cristã, decorrente do mistério da temporâneos e que são essenciais meta de inúmeros visitantes e admi- Encarnação: «A novidade de um para compreender a sua obra. radores do insigne Poeta, pai da amor que impeliu Deus a assumir À cidade de Florença, onde nas- língua e literatura italianas. um rosto humano; mais, a assumir ceu em 1265 e se casou com Gema No exílio, o amor à sua cidade, carne e sangue, o ser humano intei- Donati gerando quatro filhos, este- traído pelos «celerados florenti- ro » . 7 ve primeiramente ligado por um nos» (Epist. VI, 1), transformou-se Por minha vez, na primeira Encí- forte sentimento de pertença, o em triste saudade. A profunda desi- clica,8 fiz referência a Dante para qual, por causa de dissensões polí- lusão pela queda dos seus ideais expressar a luz da fé, citando um ticas, com o tempo se transformou políticos e civis, juntamente com a verso do P a ra í s o onde ela é descrita em aberto contraste. Contudo nun- penosa peregrinação de uma cidade como «a cintila / que se dilata em ca morreu nele o desejo de lá re- para outra à procura de refúgio e chama então vivaz, / e qual astro no gressar, não só pelo afeto que conti- apoio não são alheias à sua obra li- céu, em mim rutila» (P a r. X X I V, 145- nuou em todo o caso a nutrir pela terária e poética; pelo contrário, 147). Pelos 750 anos do nascimento sua cidade, mas sobretudo para ser constituem a sua raiz essencial e a do Poeta, quis honrar a sua memó- coroado poeta lá onde recebera o motivação de fundo. Quando Dan- ria com uma mensagem, almejando Batismo e a fé (cf. P a r. X X V, 1-9). No te descreve os peregrinos que se que «a figura de Alighieri e a sua cabeçalho de algumas das suas Car- põem a caminho para visitar os lu- obra sejam novamente compreendi- tas (III,V,VI eVII), Dante define-se gares sagrados, de certo modo des- das e valorizadas»; e propunha que como «florentinus et exul inmeritus — creve a sua condição existencial e se lesse a Divina Comédia como «um florentino imerecido no exílio», en- manifesta os seus sentimentos mais grande itinerário, aliás como uma quanto na carta XIII, dirigida a íntimos: «Oh peregrinos que partis verdadeira peregrinação, tanto pes- Cangrande della Scala, especifica pensativos...» (Vita Nova, 29 [XL soal e interior, como comunitária, «florentinus natione non moribus —flo- (XLI), 9], v. 1). O motivo reaparece eclesial, social e histórica»; com rentino de nascimento, não de cos- mais vezes, por exemplo nestes ver- efeito, «ela representa o paradigma tumes». Guelfo da fação branca, sos do P u rg a t ó r i o : «Como romeiros de cada viagem autêntica para a vê-se envolvido no conflito entre pensativos lançam, / cruzando pela qual a humanidade está chamada a Guelfos e Gibelinos, entre Guelfos via gente ignota, / apenas um olhar abandonar a terra que Dante define brancos e negros, e depois de ter e não descansam» (XXIII, 16-18). A “a jeira que nos torna tão ferozes” ocupado cargos públicos cada vez pungente melancolia de Dante pe- (P a r. XXII, 151), para chegar a uma mais importantes até se tornar regrino e exilado adivinha-se tam- nova condição, marcada pela har- Prior, em 1302, devido às vicissitu- bém nos famosos versos do canto monia, a paz, a felicidade».9 Por is- des políticas adversas, é exilado por VIII do P u rg a t ó r i o : «Era hora em que so, apresentei a figura do insigne dois anos, banido dos cargos públi- a saudade aos navegantes / regressa plenamente possuída é o P a ra í s o ». tornou serva da bondade e da ver- Poeta aos nossos contemporâneos, cos e condenado ao pagamento de e os enternece já de cor / o adeus a Nesta perspetiva, continuava o dade, e a bondade matéria da bele- propondo-o como «profeta de es- uma multa. Dante rejeita a senten- amigos doces dito antes» (VIII, 1- Pontífice, a Divina Comédia «é o poe- za». Por fim, citando a Divina Comé- perança, anunciador da possibilida- ça, em sua opinião injusta, e o jul- 3). ma da melhoria social na conquista dia, Paulo VI exortava a todos: de de resgate, da libertação, da mu- gamento contra ele torna-se ainda Dante, refletindo profundamente de uma liberdade, que está isenta «Honrai agora o altíssimo poeta» dança profunda de cada homem e mais severo: exílio perpétuo, con- sobre a sua situação pessoal de exí- da escravidão do mal e nos leva a (Inf. I V, 80). mulher, de toda a humanidade».10 fiscação dos bens e pena de morte lio, incerteza radical, fragilidade, encontrar e amar a Deus (...) pro- De São João Paulo II, que repeti- Por fim, no dia 10 de outubro de em caso de regresso à terra natal. mobilidade contínua, transforma-a, fessando um humanismo, cujas damente citou nos seus discursos as 2020, ao receber a Delegação da Assim começa a dolorosa história sublimando-a, num paradigma da qualidades julgamos ter ficado bem obras do insigne Poeta, quero lem- Arquidiocese de Ravena-Cervia por de Dante, que tenta em vão poder condição humana, que se apresenta esclarecidas». E Paulo VI re i t e r a v a brar apenas a intervenção de 30 de ocasião da abertura do Ano de regressar à sua amada Florença, pe- como um caminho —mais interior uma vez mais quais eram as quali- maio de 1985 na inauguração da Dante e anunciar este documento, la qual lutara com paixão. que exterior —sem paragem algu- dades do humanismo de Dante: Exposição Dante no Vaticano. Como sublinhei como a obra de Dante Torna-se assim o exilado, o «pe- ma enquanto não atingir a meta. «Em Dante, todos os valores huma- Paulo VI, também ele destacou a pode ainda hoje enriquecer a mente regrino pensativo», caído numa Deparamo-nos, assim, com dois te- nos (intelectuais, morais, afetivos, sua genialidade artística: a obra de e o coração de muitos, sobretudo condição de «penosa pobreza» mas fundamentais de toda a obra culturais, civis) são reconhecidos, Dante é interpretada como «uma de Dante: o ponto de partida de to- exaltados; e é muito importante no- realidade visualizada, que fala da do o itinerário existencial, o desejo, tar que este apreço e honra se veri- vida do além-túmulo e do mistério presente no ânimo humano, e o ficam enquanto ele mergulha no di- de Deus com a força própria do Desejo unir a minha voz ponto de chegada, a felicidade, da- vino, quando a contemplação teria pensamento teológico, transfigura- à dos meus Predecessores que honraram da pela visão do Amor que é podido anular os elementos terre- do pelo esplendor da arte e da poe- D eus. nos». Daí, afirmava o Papa, nasce — sia, simultaneamente conjuntas». e celebraram o Poeta, de maneira O insigne Poeta, embora atraves- e justamente —o apelativo de Sumo Depois o Pontífice deteve-se a exa- a propô-lo novamente à atenção da Igreja, sando vicissitudes dramáticas, tris- Poeta e o atributo de divina dado à minar um termo chave da obra de tes e angustiantes, nunca se resigna, Comédia, bem como a proclamação Dante: «“Tr a n s u m a n a r ”, ultrapas- à universalidade dos fiéis, aos estudiosos não sucumbe, nem aceita suprimir de Dante como «senhor do altíssi- sar o humano. Foi este o esforço su- de literatura, aos teólogos, aos artistas a ânsia de plenitude e felicidade mo canto», no incipit da própria premo de Dante: fazer que o peso que está no seu coração, e muito Carta Apostólica. do humano não destruísse o divino menos se resigna a ceder à injustiça, Além disso, avaliando as quali- que existe em nós, nem a grandeza à hipocrisia, à arrogância do poder, dades artísticas e literárias extraor- do divino anulasse o valor do hu- ao egoísmo que faz do nosso mun- dinárias de Dante, Paulo VI re i t e r a - mano. Por esta razão, o Poeta leu jovens, que, abeirando-se da sua (Convívio,I,III, 5) que o impele a do «a jeira que nos torna tão fero- va um princípio por ele afirmado justamente a própria vicissitude poesia «numa forma acessível a procurar refúgio e proteção junto zes» (P a r. XXII, 151). muitas outras vezes. «A teologia e a pessoal e a da inteira humanidade eles, constatam, por um lado, inevi- de alguns suseranos locais, entre os filosofia têm com a beleza ainda em chave teológica». tavelmente toda a distância do au- quais os Scaligeri de Verona e os 3. A missão do Poeta, outra relação, e é esta: a beleza, ao Bento XVI falou frequentemente tor e do seu mundo; mas, por ou- Malaspina na Lunigiana. Nas pala- profeta de esperança emprestar à doutrina o seu vestido do itinerário de Dante, tirando das tro, captam uma ressonância sur- vras de Cacciaguida, antepassado Deste modo, relendo a sua vida e ornamento, com a suavidade do suas obras tópicos de reflexão e me- p re e n d e n t e » . 11 do Poeta, intuem-se a amargura e o sobretudo à luz da fé, Dante desco- canto e a visibilidade da arte figura- ditação. Por exemplo, ao apresen- desconforto desta nova condição: bre também a vocação e a missão tiva e plástica, abre a estrada para tar a sua primeira Encíclica —aDeus 2. A vida de Dante Alighieri, «Deixarás toda a cousa que é dileta que lhe foram confiadas, de modo os seus preciosos ensinamentos che- caritas est —partiu precisamente da paradigma da condição humana / mais caramente; e este é dardo tal que, paradoxalmente, de homem garem a muitos. As pesquisas pro- visão de Deus que tinha Dante e na Com esta Carta Apostólica, dese- / que o arco do exílio antes projeta. aparentemente falido e desiludido, fundas, os raciocínios subtis resul- qual «luz e amor são uma coisa só», jo também eu abeirar-me da vida e / Tu provarás assim sabor a sal / do pecador e desanimado, transforma- tam inacessíveis aos humildes, que para propor novamente uma sua re- obra do ilustre Poeta, para captar alheio pão e como é duro mal / se se em profeta de esperança. Na são uma multidão, e famintos tam- flexão sobre a novidade da obra de precisamente esta ressonância, ma- desça escada alheia ou já se escale» Carta a Cangrande della Scala, com bém eles do pão da verdade. Entre- Dante: «O olhar de Dante vislum- nifestando tanto a atualidade como (P a r. XVII, 55-60). extraordinária nitidez, deixa claro o tanto estes percebem, sentem e bra uma coisa totalmente nova (...). a sua perenidade, e recolher aquelas Depois, não aceitando as condi- objetivo da sua obra, que se concre- apreciam o influxo da beleza e, por A Luz eterna apresenta-se em três advertências e reflexões que ainda ções humilhantes da amnistia que tiza e explicita, já não através de este veículo, brilha mais facilmente círculos aos quais se dirige com es- hoje são essenciais não apenas para lhe teria permitido o regresso a Flo- ações políticas ou militares, mas para eles a verdade e nutre-os. Bem tes versos densos que conhecemos: os crentes mas para toda a humani- rença, em 1315 foi de novo condena- graças à poesia, à arte da palavra o compreendeu e realizou o senhor “Luz eterna que só tens sede em ti, dade. Com efeito, a obra de Dante do à morte, desta vez, juntamente do altíssimo canto, cuja beleza se / e a ti entendes, e por ti intelecta / é parte integrante da nossa cultura, com os seus filhos adolescentes. A CO N T I N UA NA PÁGINA 8 página 8, terça-feira 30 de março de 2021, número 13 L’OSSERVATORE ROMANO número 13, terça-feira 30 de março de 2021, página 9

Carta apostólica do Santo Padre Francisco no VII centenário da morte de Dante Alighieri

CO N T I N UA Ç Ã O DA PÁGINA 6 afirma Beatriz: «O maior dom que Deus em tal largueza / já fez que, dirigida a todos, tudo pode criando e à sua bondade / mais mudar: «É preciso dizer breve- conformado e esse que mais pre- mente que a finalidade do todo e za, / foi ter-se de vontade liberda- da parte é tirar os viventes nesta de» (P a r. V, 19-22). Não são afir- existência de um estado de misé- mações retóricas e vagas, visto ria e conduzi-los a um estado de que brotam da existência de felicidade» [XIII, 39 (15)]. Tal fi- quem conhece o preço da liberda- nalidade desencadeia um cami- de: «Liberdade ele busca, que é nho de libertação de todas as for- tão cara, / e sabe-o quem por ela mas de miséria e degradação hu- a vida enjeita» (P u rg . I, 71-72). manas (a «selva escura») e simul- Mas a liberdade —lembra-nos taneamente aponta para a meta Alighieri —não é fim em si mes- derradeira: a felicidade, entendi- ma; é condição para subir conti- da quer como plenitude de vida nuamente. E o percurso nos três na história quer como bem-aven- reinos ilustra-nos plasticamente turança eterna em Deus. esta subida até tocar o Céu, alcan- Desta dupla finalidade, deste çar a plena felicidade. O «alto de- audacioso programa de vida, sejo» (P a r. XXII, 61), suscitado pe- Dante é mensageiro, profeta e tes- la liberdade, não pode extinguir- temunha, confirmado na sua mis- se senão em presença da meta, na são por Beatriz: «Por isso, em visão última e na bem-aventuran- prol do mundo que mal vive, / ao No Paraíso São Tomás apresenta a Dante e a Beatriz São Domingos e São Francisco (miniatura do século IV) ça: «E eu que ao termo da ânsia carro põe os olhos e o que vês / lá toda vi / me aproximava, tal co- regressado, a tua escrita o arqui- mião, São Bento e São Pedro, o já afirmava Santo Agostinho12 — monte / que é razão da alegria e mo devia, / o fim de tal ardor em ve» (P u rg . XXXII, 103-105). Tam- Poeta, ao mesmo tempo que de- não encontrar repouso e paz em dela cheio?» (Inf. I, 76-78). mi senti» (P a r. XXXIII, 46-48). De- bém o seu antepassado Caccia- nuncia a corrupção dalguns seto- D eus. pois o desejo faz-se também ora- guida o exorta a não desfalecer na res da Igreja, faz-se porta-voz de No Convívio, analisa precisa- 5. Poeta da misericórdia de ção, súplica, intercessão, canto sua missão. Ao Poeta, que recor- uma renovação profunda e invoca mente o dinamismo do desejo. Deus e da liberdade humana que acompanha e assinala o itine- da brevemente o seu caminho nos a Providência para que a favoreça «O desejo supremo de todas as Trata-se de um caminho que rário de Dante, tal como a oração três reinos do Além e assinala a e torne possível: «Mas a alta pro- coisas, conferido de início pela não é ilusório nem utópico, mas litúrgica cadencia as horas e os dificuldade de comunicar as ver- vidência, que a Cipião / foi a ro- natureza, é retornar ao seu princí- realista e possível, onde todos po- momentos da jornada. A paráfra- dades que doem e incomodam, o mana glória nas mãos pondo, / pio. E como Deus é princípio das dem entrar, porque a misericórdia se do Pai-Nosso, que o Poeta pro- ilustre antepassado responde: «... cedo virá, em minha conceção» nossas almas (...) a alma deseja de Deus oferece sempre a possibi- põe (cf. P u rg . XI, 1-21), entrelaça o A consciência fusca / ou já da (P a r. XXVII, 61-63). intensamente retornar a Ele. E co- lidade de mudar, converter-se, en- texto do Evangelho com a expe- própria ou de alheia vergonha / E assim Dante exilado, peregri- mo um peregrino, que segue um contrar-se a si mesmo e encontrar riência pessoal, com as suas difi- bem sentirá tua palavra brusca. / no, frágil, mas agora forte pela caminho nunca antes percorrido a via para a felicidade. A propósi- culdades e sofrimentos: «Venha a E tu porém, sem que a mentir se profunda e íntima experiência por ele —quando avista de longe to, são significativos alguns episó- nós do teu reino assim tamanho / ponha, / toda tua visão faz mani- que o transformou, renascido gra- uma casa espera que seja a hospe- dios e personagens da Divina Co- a paz, que só por nós não vamos festa; / e deixa que se cocem onde ças à visão que, das profundezas daria, acabando depois por verifi- média, que mostram como tal via ter. (...). Dá-nos hoje a maná quo- hão ronha» (P a r. XVII, 124-129). dos infernos, da mais degradada car que não o é, então deposita a não esteja vedada a ninguém na tidiana, / sem a qual por este ás- Um idêntico incitamento a viver condição humana, o elevou à pró- sua esperança noutra e assim, de terra; exemplo disso é o impera- pero deserto, / atrás vai quem com coragem a sua missão profé- pria visão de Deus, ascende a casa em casa, até encontrar final- dor Trajano, pagão mas colocado avante mais se afana» (7-8.13-15). tica é dirigido a Dante, no P a ra í s o , mensageiro de uma nova existên- mente a hospedaria —a nossa al- no Paraíso. Dante justifica esta A liberdade de quem acredita em por São Pedro, quando o Apósto- cia, a profeta de uma nova huma- ma, ansiosa por ter entrado no presença assim: «Regnum coelorum a Deus como Pai misericordioso lo, depois de uma tremenda inve- nidade que anseia pela paz e a fe- novo e nunca percorrido caminho violência há de / sofrer de quente não pode senão confiar-se a Ele tiva contra Bonifácio VIII, se diri- licidade. desta vida, dirige o olhar para a amor, viva esperança, / que vence na oração, não sendo por isso mi- ge ao Poeta desta forma: «E tu, meta do seu bem supremo, acre- assim a divinal vontade; / não de nimamente lesada, mas antes re- filho, que voltarás aonde o / mor- 4. Dante ditando encontrá-lo em tudo o homem que homem a vencer se forçada. tal peso há de pôr—te, abre a bo- cantor do desejo humano que vê e lhe parece ter em si al- lança, / mas vence-a, pois quer ela ca, / e não escondas o que eu não Dante é capaz de ler o coração gum bem» (I V,XII, 14-15). ser vencida, / para vencer então 6. A imagem do homem escondo» (P a r. XXVII, 64-66). humano em profundidade; e em O itinerário de Dante, ilustra- benigna e mansa» (P a r. XX, 94- na visão de Deus Assim, na missão profética de todos, mesmo nas figuras mais do sobretudo na Divina Comédia,é 99). O gesto de caridade de Traja- No itinerário da Divina Comédia, Dante, inserem-se também a de- abjetas e molestas, consegue vis- verdadeiramente o caminho do no para com uma «viúva» (P a r. como já sublinhava o Papa Bento núncia e a crítica contra os cren- lumbrar uma cintila de desejo de desejo, da necessidade profunda e XX, 45) ou a «lagrimeta» de arre- XVI, o caminho da liberdade e do tes, tanto Pontífices como simples alcançar alguma felicidade, uma interior de mudar a sua própria pendimento derramada à hora da desejo não traz consigo —como fiéis, que atraiçoam a adesão a plenitude de vida. Detém-se a es- vida para poder alcançar a felici- morte pelo Buonconte de Monte- porventura se poderia imaginar — Cristo e transformam a Igreja cutar as almas que encontra, dia- dade e, assim, mostrar a estrada a feltro (P u rg . V, 107) não só mos- uma redução do humano na sua num instrumento em prol dos loga com elas, interpela-as para se quem se encontra, como ele, nu- tram a infinita misericórdia de realidade concreta, não aliena a próprios interesses, esquecendo o adentrar e participar nos seus tor- ma «selva escura» e perdeu «a di- Deus, mas confirmam também pessoa de si mesma, não anula espírito das bem-aventuranças e a mentos ou na sua beatitude. As- reita via». Além disso, é significa- que o ser humano pode sempre, nem negligencia o que constituiu caridade para com os pequenos e sim, partindo da sua condição tivo que, desde a primeira etapa com a sua liberdade, escolher a sua existência histórica. Com os pobres e idolatrando o poder e pessoal, o Poeta faz-se intérprete deste percurso, o seu guia —o qual caminho seguir e qual sorte efeito, mesmo no P a ra í s o , Dante a riqueza: «Que quanto a Igreja do desejo que todo o ser humano grande poeta latino Virgílio —lhe m e re c e r. representa os bem-aventurados — guarda, é atributo / todo da gente tem de continuar o caminho en- indique a meta aonde deve che- Sob esta luz, é significativo o as «alvas» (P a r. XXX, 129) —no que por Deus demande; / não de quanto não chegar ao destino fi- gar, incitando-o a não ceder ao rei Manfredo, colocado por Dan- seu aspeto corpóreo, evoca os parentes nem de outro mais bru- nal, não encontrar a verdade, a medo nem ao cansaço: «Mas por- te no Purgatório e que assim re- seus afetos e emoções, os seus to» (P a r. XXII, 82-84). Mas, atra- resposta aos porquês da existên- que volves ao ansioso enleio? / corda o seu fim e a sentença divi- olhares e gestos, em resumo, mos- vés das palavras de São Pedro Da- cia, enquanto o coração —como Porque não vais ao deleitoso na: «Depois que se rompeu mi- tra-nos a humanidade na sua per- nha pessoa / de feridas mortais, feição completa de alma e corpo, eu me rendi, / chorando, a quem prefigurando a ressurreição da de bom grado perdoa. / Eu horrí- carne. São Bernardo, que acom- veis pecados cometi; / mas bon- panha Dante no último trecho do Iniciativas do Pontifício conselho para a culura dade infinita tanto abraça / que caminho, mostra ao Poeta as quem se a ela volta aceitar vi» crianças presentes na rosa dos (P u rg . III, 118-123). Parece quase bem-aventurados e convida-o a No VII aniversário da morte de Dante Alighieri (Florença, Em seguida, será lançado um projeto educativo virtual, vislumbrar-se a figura do pai da observá-las e ouvi-las: «Dos ros- 1265 —Ravenna, 1321), o pontifício Conselho para a denominado «Dante nos Museus do Vaticano», parábola evangélica, com os bra- tos podes vê-lo se os perscrutas / cultura instituiu uma Comissão científico-organizacional, destacando todas as obras dos Museus que se referem à ços abertos pronto a acolher o fi- e também pelas vozes pueris, / se presidida pelo cardeal Gianfranco Ravasi, para a figura e à obra do poeta florentino. Na tarde de 28 de lho pródigo que volta para ele (cf. já os bem contemplas e os escu- realização e a promoção de iniciativas destinadas a maio, o cardeal Ravasi realizará uma conferência em Lc 15, 11-32). tas» (Par. XXXII, 46-48). Resulta celebrar e a homenagear o exímio poeta. As Florença (basílica da Santa Cruz), intitulada «“All’etterno Dante faz-se paladino da dig- comovente ver como esta mani- comemorações começaram a 25 de março (em dal tempo”(Paradiso XXXI, 38): la teologia di Dante». nidade de todo o ser humano e da festação dos bem-aventurados na coincidência com o Dantedì, promovido pelas Instituições Em meados de junho, em colaboração com a pontifícia liberdade como condição funda- sua luminosa humanidade inte- italianas), com a publicação da Carta apostólica Candor Comissão de arqueologia sacra, o Pátio dos gentios mental tanto das opções de vida gral é motivada não só por senti- lucis aeternae, do Papa Francisco. Em colaboração com a organizará um sugestivo evento cultural “a convite”, nas como da própria fé. O destino mentos de afeto pelos seus entes Biblioteca Apostólica do Vaticano (Bav), os Museus do Catacumbas de San Calisto: uma verdadeira viagem pela eterno do homem —sugere Dante queridos, mas sobretudo pelo de- Vaticano, a pontifícia Comissão de arqueologia sacra e o Comédia de Dante, que será lida e interpretada por quatro ao narrar-nos as histórias de tan- sejo explícito de voltar a ver os Pátio dos gentios, foi apresentada uma primeira edição da atores italianos (Carlo Verdone, Margherita Buy, tas personagens, ilustres ou pou- seus corpos, as feições terrenas: exposição virtual «Viajar com Dante» Alessandro Haber e Nancy Brilli), escolhendo alguns dos co conhecidas —depende das «Seus corpos desejando antes da (https://sp otlight.vatlib.it/teaserdante), organizada pela trechos e personagens mais significativos. Na manhã de 12 suas escolhas, da sua liberdade: morte; / talvez não só por si, mas Bav e promovida pela Comissão científico-organizacional de setembro o cardeal Ravasi concluirá em Ravenna as os próprios gestos diários, apa- pela mãe, / pelo pai, pelos mais dantesca e pelo Pátio dos gentios. celebrações do Ano de Dante, com uma conferência rentemente insignificantes, têm que cada amava, / antes de eterna A exposição permite que os utilizadores acedam pela precedida pela celebração eucarística. De 25 a 26 de um alcance que se estende para chama ser também» (Par. X I V, 63- primeira vez, diretamente do computador, a manuscritos, novembro, a Comissão dantesca organizará um congresso além do tempo, são projetados na 66). livros antigos, gravuras e medalhas temáticas que científico na “Università degli studi Roma Tre”, centrada dimensão eterna. O maior dom E, finalmente, no centro da vi- abrangem um arco de tempo que vai do final do século na figura de Dante e nas grandes questões escatológicas de Deus ao homem, para que são última, no encontro com o XIII até ao século XIX . Nos meses seguintes, a exposição por ele propostas, com a participação de peritos e possa alcançar a meta última, é Mistério da Santíssima Trindade, será continuamente enriquecida com novos elementos. estudiosos da sua obra. precisamente a liberdade, como Dante vislumbra precisamente página 8, terça-feira 30 de março de 2021, número 13 L’OSSERVATORE ROMANO número 13, terça-feira 30 de março de 2021, página 9

Carta apostólica do Santo Padre Francisco no VII centenário da morte de Dante Alighieri

um Rosto humano, o de Cristo, palma / lá a Maria quando o Fi- grande poema do Além a lingua- gem de Dante e a sua visão da vi- ção, a dar forma, cor e som à poe- da Palavra eterna feita carne no lho de Deus / quis carregar com gem de todos e povoando a sua da além da morte não são sim- sia de Dante, ao longo da via da seio de Maria: «E na profunda e toda a nossa xalma» (P a r. XXXII, narração com personagens conhe- plesmente objeto de uma narra- beleza que ele percorreu magis- clara subsistência / do alto lume 112-114). A referência a Maria é cidos e menos conhecidos, mas ção, não constituem apenas um tralmente; e assim comunicar as três círculos vi vir / de três cores e constante em toda a Divina Comé- completamente iguais em digni- acontecimento pessoal, embora verdades mais profundas e, com de uma continência (...). Nessa dia. Ao longo do percurso no Pur- dade aos poderosos da terra. Ou- excecional. as linguagens próprias da arte, di- circulação, que assim concepta / gatório, é o modelo das virtudes tro traço une os dois personagens: Se Dante conta tudo isto (e fá- fundir mensagens de paz, liberda- parecia em ti lume refletido, / dos que se opõem aos vícios; é a estre- a abertura à beleza e ao valor do lo de maneira admirável), usando de, fraternidade. olhos meus um pouco circunspec- la da manhã que ajuda a sair da mundo das criaturas, espelho e a linguagem vulgar do povo, a Neste momento histórico parti- ta, / dentro de si, do próprio colo- selva escura para se encaminhar «vestígio» do seu Criador. Como língua que todos podiam compre- cular, marcado por muitas som- rido, / me apareceu pintada nossa rumo ao monte de Deus; é a pre- não reconhecer nestes versos da ender, elevando-a a língua univer- bras, por situações que degradam efígie» (Par. XXXIII 1 1 5 - 1 1 7. 1 2 7 - 1 3 1 ) . sença constante, através da sua in- paráfrase de Dante ao Pai-Nosso — sal, é porque tem uma mensagem a humanidade, por falta de con- Só na visão de Deus se aplaca o vocação («Nome da bela flor que «sejas louvado em nome e em va- importante a transmitir-nos, uma fiança e de perspetivas para o fu- desejo do homem, e termina todo sempre rogo, / manhã e tarde...»: lor / por toda a criatura...» (P u rg . palavra que quer tocar o nosso turo, a figura de Dante, profeta o seu fatigoso caminho: «Então a P a r. XXIII, 88-89), que prepara pa- XI, 4-5) — uma referência ao Cân- coração e a nossa mente, destina- de esperança e testemunha do de- mente me era percutida / por um ra o encontro com Cristo e com o tico das Criaturas de São Francis- da a transformar-nos e mudar-nos sejo humano de felicidade, pode fulgor em que seu querer veio. / mistério da Deus. co? já agora, nesta vida. É uma men- ainda dar-nos palavras e exem- Foi a alta fantasia aqui colhida» Dante, que nunca está sozinho No canto XI do P a ra í s o, essa sagem que pode e deve tornar- plos que estimulam o nosso cami- (Par. XXXIII, 140-142). no seu caminho, mas se deixa consonância aparece com um no- nos plenamente conscientes da- nho. Pode ajudar-nos a avançar, O mistério da Encarnação, que guiar primeiro por Virgílio, sím- vo aspeto, que os torna ainda quilo que somos e daquilo que vi- com serenidade e coragem, na pe- hoje celebramos, é o verdadeiro bolo da razão humana, e depois mais semelhantes. A santidade e a vemos dia após dia na tensão in- regrinação da vida e da fé que to- centro inspirador e o núcleo es- por Beatriz e São Bernardo, ago- sabedoria de Francisco sobres- sencial de todo o poema. Nele ra, graças à intercessão de Maria, saem precisamente porque Dante, realiza-se o que os Padres da Igre- pode chegar à pátria e gozar a olhando do céu a nossa terra, vis- ja chamavam «divinização», admi- alegria plena desejada em cada lumbra a tacanhez de quem con- rabile commercium – o prodigioso in- momento da existência: «...e ain- fia nos bens terrenos: «Ó cuidar tercâmbio, pelo qual, ao mesmo da me distila / ao coração dulçor insensato dos mortais, / por tempo que Deus entra na nossa que lhe começa» (P a r. XXXIII, 62- quantos defetivos silogismos / fa- história fazendo-se carne, o ser 63). Não nos salvamos sozinhos zem que asas ao fundo a dar tu humano, com a sua carne, pode (parece repetir-nos o Poeta, cons- vais!» (P a r. XI, 1-3). Toda a histó- entrar na realidade divina, simbo- ciente da sua insuficiência): «Por ria ou, melhor, a «vida admirá- lizada pela rosa dos bem-aventu- mim próprio não venho» (Inf. X, vel» do santo assenta sobre a sua rados. A humanidade, na sua rea- 61); é necessário que o caminho relação privilegiada com a senho- lidade concreta, com os gestos e seja empreendido em companhia ra Pobreza: «Mas por que eu não as palavras diárias, com a sua in- de quem nos possa apoiar e guiar pareça assaz escuso, / Francisco e teligência e afetos, com o corpo e com sabedoria e prudência. a Pobreza por amantes / entendas as emoções, é assumida em Deus, Neste contexto, resulta signifi- ora em meu falar difuso» (P a r. XI, no Qual encontra a verdadeira fe- cativa a presença feminina. No 73-75). No canto de São Francis- licidade e a realização plena e úl- início do fatigoso itinerário, Virgí- co, recordam-se os momentos sa- tima, meta de todo o seu cami- lio — o primeiro guia — conforta e lientes da sua vida, as suas prova- nho. Dante havia desejado e pre- encoraja Dante a prosseguir, por- ções e por fim o acontecimento visto esta meta no início do P a ra í- que três mulheres intercedem por no qual a sua configuração a Cris- so: «Mais o desejo aceso então ele e o hão de guiar: Maria, a Mãe to, pobre e crucificado, encontra surgiu / de ver aquela essência em de Deus, figura da caridade; Bea- a sua extrema, divina confirma- que se vê / como nossa natura e triz, símbolo de esperança; Santa ção na marca dos estigmas: «Por- Deus se uniu. / Lá se verá o que Luzia, imagem da fé. Com pala- que de mais azeda já observa / a se tem por fé, / não demonstrado, vras comoventes, assim se apre- gente à fé, por não ficar em vão, / Durante a audiência à diocese de Ravena-Cervia (10 de outubro de 2020) mas por si é noto / qual verdade senta Beatriz: «Eu sou Beatriz, ao fruto regressou da ítala erva, / o Papa Francisco benze a “cruz de Dante” enviada por Paulo VI à cidade em 1965 primeira que o homem crê» (P a r. ora a fazer-te andar; / do lugar e entre Arno e Tibre em cru pene- II, 40-45). venho a que voltar pretendo, / e do então / foi ter de Cristo o últi- amor me move, que me faz falar» mo sigilo, / que dois anos seus terior e contínua para a felicida- dos somos chamados a realizar 7. As três mulheres (Inf. II, 70-72), afirmando que a membros levarão» (P a r. XI, 103- de, para a plenitude da existência, até o nosso coração encontrar a da Divina Comédia: única fonte que nos pode dar a 108). para a pátria última onde estare- verdadeira paz e a verdadeira ale- Maria, Beatriz, Luzia salvação é o amor, o amor divino mos em plena comunhão com gria, até chegarmos à meta última Cantando o mistério da Encar- que transfigura o amor humano. 9. Acolher o testemunho Deus, Amor infinito e eterno. de toda a humanidade, «o amor nação, fonte de salvação e alegria Depois Beatriz remete para a in- de Dante Alighieri Embora Dante seja um homem que move o sol e as mais estrelas» para toda a humanidade, Dante tercessão de outra mulher, a Vir- No final deste olhar sintético à do seu tempo e possua sensibili- (P a r. XXXIII, 145). não pode deixar de cantar os lou- gem Maria: «Uma gentil senhora obra de Dante Alighieri, uma mi- dade diferente da nossa em al- vores de Maria, a Virgem Mãe no céu plange / o impedimento a na quase infinita de conhecimen- guns assuntos, todavia o seu hu- Vaticano, Solenidade que, com o seu «sim», com a sua que enviar-te entendo, / e o mais tos, experiências, considerações manismo é ainda válido e atual e da Anunciação do Senhor, aceitação plena e total do projeto duro juízo assim confrange» (Inf. em todos os campos da pesquisa pode certamente constituir um 25 de março do ano de 2021, de Deus, torna possível que o II, 94-96). Depois intervém Luzia, humana, impõe-se uma reflexão. ponto de referência para aquilo nono do meu pontificado. Verbo Se faça carne. Na obra de que se dirige a Beatriz: «Beatriz, A riqueza de figuras, narrações, que queremos construir no nosso Dante, encontramos um tratado divina loa verdadeira, / pois não símbolos, imagens sugestivas e temp o. estupendo de mariologia: com socorrerás quem te amou tanto, / atraentes que Dante nos propõe Por isso, aproveitando esta 1. Carta enc. In praeclara summo- acentuações líricas sublimes, par- que abandonou por ti vulgar filei- suscita certamente admiração, ocasião propícia do centenário, é rum (30 de abril de 1921): AAS 13 ticularmente na oração pronun- ra?» (Inf. II, 103-105). Dante reco- maravilha, gratidão. Nele pode- importante que a obra de Dante (1921), 209-217. ciada por São Bernardo, sintetiza nhece que somente quem é movi- mos quase entrever um precursor seja dada a conhecer ainda me- 2. Cf. ibidem: o. c. 210. toda a reflexão teológica sobre do pelo amor pode verdadeira- da nossa cultura multimediática, lhor e de maneira mais adequada, 3. Epistola Nobis, ad catholicam Maria e a sua participação no mente apoiar-nos no caminho e na qual palavras e imagens, sím- isto é, seja tornada acessível e (28 de outubro de 1914): AAS 6 mistério de Deus: «Virgem e mãe, levar-nos à salvação, ao renova- bolos e sons, poesia e dança se atraente não só para alunos e es- (1914), 540. que és filha de teu filho, / humil- mento da vida e, consequente- fundem numa única mensagem. tudiosos, mas também para todos 4. Discurso ao Sacro Colégio e de e alta mais que criatura, / de mente, à felicidade. Assim se compreende por que o aqueles que, ansiosos por dar res- à Prelatura Romana (23 de de- eterno querer termo fixo e brilho, seu poema tenha inspirado a cria- posta às questões interiores, dese- zembro de 1965): AAS 58 (1966), / aquela és que a humanal natura 8. Francisco, ção de inúmeras obras de arte de josos de realizar em plenitude a 80. / tanto nobilitaste, que o fator / esposo da Senhora Pobreza todo o género. sua existência, querem viver o seu 5. Cf. AAS 58 (1966), 22-37. não desdenhou fazer de si feitu- Na cândida rosa dos bem- Mas a obra do insigne Poeta itinerário de vida e de fé de forma 6. Discurso aos participantes no En- ra» (P a r. XXXIII, 1-6). O oximoro aventurados, em cujo centro bri- suscita também alguns desafios consciente, acolhendo e vivendo contro promovido pelo Pontifício Conse- inicial e a sucessão de termos an- lha a figura de Maria, Dante colo- para os nossos dias. Que poderá com gratidão o dom e o compro- lho «Cor Unum» (23 de janeiro de titéticos destacam a originalidade ca também numerosos santos, cu- ela comunicar-nos, no nosso tem- misso da liberdade. 2006): Insegnamenti 2006, II/1, 92- da figura de Maria, a sua beleza ja vida e missão esboça, para os po? Terá ainda algo a dizer-nos, a Congratulo-me naturalmente 93. s i n g u l a r. propor como figuras que, na rea- oferecer-nos? Terá a sua mensa- com os professores que são capa- 7. Ibidem: o.c., 93. São Bernardo, mostrando os lidade concreta da sua existência gem alguma função a desempe- zes de comunicar com paixão a 8. Cf. Carta enc. (29 bem-aventurados colocados na e mesmo através de numerosas nhar também para nós na atuali- mensagem de Dante, introduzir de junho de 2013), 4: AAS 105 rosa mística, convida Dante a provações, alcançaram a finalida- dade? Poderá ainda interpelar- no tesouro cultural, religioso e (2013), 557. contemplar Maria, que deu as fei- de da sua vida e da sua vocação. nos? moral contido nas suas obras. 9. Mensagem ao Presidente do Ponti- ções humanas ao Verbo Encarna- Mencionarei brevemente apenas a Hoje Dante — tentemos fazer- Mas este património pede para fício Conselho para a Cultura (4 de do: «Contempla agora a face tal figura de São Francisco de Assis, nos intérpretes da sua voz — não ser tornado acessível fora das au- maio de 2015): AAS 107 (2015), 551- que a Cristo / mais se assemelha, ilustrada no canto XI do P a ra í s o, nos pede para ser simplesmente las das escolas e universidades. 552. pois sua clareza / só te pode dis- onde se fala dos espíritos sapien- lido, comentado, estudado, anali- Exorto as comunidades cristãs, 10. Ibidem: o.c., 552. por a veres Cristo» (P a r. XXXII, tes. sado. Pede-nos sobretudo para sobretudo as estabelecidas nas ci- 11. L’Osservatore Romano (10 de 85-87). O mistério da Encarnação Existe uma profunda sintonia ser escutado, ser de certo modo dades que conservam as memó- outubro de 2020), 7. é de novo evocado pela presença entre São Francisco e Dante: o imitado, fazer-nos seus compa- rias de Dante, as instituições aca- 12. Cf. Confissões, I, 1, 1: PL 32, do Arcanjo Gabriel. Dante per- primeiro, juntamente com os seus nheiros de viagem, porque quer- démicas, as associações e os movi- 661. gunta a São Bernardo: «Quem é companheiros, saiu do convento e nos mostrar também hoje qual é o mentos culturais a promoverem esse anjo em tão festivo jogo / foi para o meio do povo, pelas es- itinerário para a felicidade, a di- iniciativas visando o conhecimen- * Usou-se a tradução portu- que na nossa rainha o olhar atina, tradas de aldeias e cidades, pre- reita via para viver plenamente a to e a difusão da mensagem de guesa da obra bilingue de Vasco / e tão enamorado é quase fogo?» gando ao povo, parando nas ca- nossa humanidade, superando as Dante na sua plenitude. Graça Moura, A Divina Comédia de (P a r. XXXII, 103-105). E o Santo sas; o segundo fez a escolha, en- selvas escuras onde perdemos a De maneira particular encorajo Dante Alighieri, Bertrand Editora — responde: «Ele é esse que levou a tão incompreensível, de usar no orientação e a dignidade. A via- os artistas a dar voz, rosto e cora- Venda Nova, 52000. página 10 L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 30 de março de 2021, número 13

150º aniversário da proclamação de Santo Afonso Maria de Ligório doutor da Ig re j a

Mensagem do Papa As exigências do Evangelho não se opõem à fragilidade humana

«Um estilo de teologia moral capaz de man- fiéis ao chamamento de Deus à santi- dade humana. ter unidas as exigências do Evangelho e a dade. Seguindo o exemplo do Santo fragilidade humana»: eis o legado espiritual Portanto, Santo Afonso «não é Doutor, convido-vos a enfrentar se- de Santo Afonso Maria de Ligório, 150 anos nem laxista nem rigorista. Ele é um riamente, a nível da teologia moral, depois que Pio IX o proclamou doutor da realista no verdadeiro sentido cris- «o grito de Deus, perguntando a to- Igreja, em 1871. Nessa ocasião, a 23 de mar- tão», pois compreendeu bem que dos nós: “Onde está o teu irmão?” ço —data do aniversário —o Papa Francisco «no próprio coração do Evangelho (Gn 4, 9). Onde está o teu irmão es- enviou a seguinte carta ao superior-geral dos aparece a vida comunitária e o com- cravo? Onde está o irmão que matas Redentoristas. promisso com os outros» (EG, 177). cada dia na pequena fábrica clandes- O anúncio do Evangelho numa tina, na rede da prostituição, nas Ao Rev.D O Pe . sociedade que muda rapidamente crianças usadas para a mendicidade, MICHAEL BREHL,C.Ss.R. exige a coragem da escuta da realida- naquele que tem de trabalhar às es- Sup erior-Geral de, para «educar as consciências a condidas porque não foi regulariza- da Congregação pensar de maneira diferente, em des- do?» (EG, 211). do Santíssimo Redentor continuidade com o passado».3 Face a passagens epocais como a Mo derador-Geral Cada ação pastoral tem a sua raiz atual, existe um risco concreto de ab- da Academia Afonsiana no encontro salvífico com o Deus da solutizar os direitos dos fortes, esque- vida, nasce da escuta da vida e nutre- cendo os mais necessitados. Há cento e cinquenta anos, em 23 de se de uma reflexão teológica que sai- A formação das consciências para março de 1871, Pio IX pro clamou ba responder às interrogações das o bem parece ser uma meta indispen- Santo Afonso Maria de Ligório Dou- pessoas para indicar caminhos viá- sável para cada cristão. Dar espaço às tor da Igreja. veis. A exemplo de Afonso, convido consciências —lugar onde ressoa a A Bula de proclamação do título os teólogos moralistas, os missioná- voz de Deus —para que possam rea- de Doutor de Santo Afonso põe em rios e os confessores a entrar em rela- lizar o seu discernimento pessoal na evidência a especificidade da sua ção viva com os membros do povo de realidade da vida (cf. AL, 37) é uma ta- proposta moral e espiritual, dado que Deus, e a olhar para a existência do refa formativa à qual devemos per- ele soube indicar «o caminho seguro seu ponto de vista, para compreender manecer fiéis. A atitude do Samarita- no enredo das opiniões contrastantes as dificuldades reais que encontram e Audiência do Papa à Academia Afonsiana no 70° aniversário de fundação no (cf. Lc 10, 33-35), como indiquei na do rigorismo e do laxismo».1 para ajudar a curar as feridas, pois (9 de fevereiro de 2019) Fratelli tutti, impele-nos nesta direção. Cento e cinquenta anos depois da- somente a verdadeira fraternidade A teologia moral não deve ter re- quela jubilosa celebração, a mensa- «sabe ver a grandeza sagrada do pró- como nos recorda o próprio Santo pre necessário encontrar o caminho ceio de ouvir o clamor dos últimos da gem de Santo Afonso Maria de Ligó- ximo, sabe descobrir Deus em cada Afonso, só o conhecimento dos prin- que não distancie mas aproxime os terra, tornando-o seu. A dignidade rio, padroeiro dos confessores e dos ser humano, sabe tolerar os transtor- cípios teóricos não é suficiente para corações de Deus, tal como Afonso dos frágeis é um dever moral que não moralistas, bem como modelo para nos da convivência agarrando-se ao acompanhar e corroborar as cons- fez mediante o seu ensinamento espi- pode ser contornado nem delegado. toda a Igreja em saída missionária, amor de Deus, sabe abrir o coração ciências no discernimento do bem a ritual e moral. Tudo isto porque «a É necessário testemunhar que direito ainda indica vigorosamente a via ao amor divino para procurar a felici- fazer. É necessário que o conheci- imensa maioria dos pobres possui significa sempre solidariedade. mestra para aproximar as consciên- dade dos outros como a procura o mento se torne prático, mediante a uma especial abertura à fé; tem ne- Convido-vos, como fez Santo cias do rosto hospitaleiro do Pai, pois seu Pai bom» (EG, 92). escuta e o acolhimento dos últimos, cessidade de Deus e não podemos Afonso, a sair ao encontro dos irmãos «a salvação, que Deus nos oferece, é Fiel ao Evangelho o ensinamento dos frágeis e de quantos a sociedade deixar de lhe oferecer a sua amizade, e irmãs frágeis da nossa sociedade. obra da sua misericórdia» (EG, 112). moral cristão, chamado a anunciar, considera descartados. a sua bênção, a sua Palavra, a cele- Isto exige o desenvolvimento de uma aprofundar e ensinar, seja sempre bração dos Sacramentos e a proposta reflexão teológico-moral e de uma Escuta da realidade uma resposta «a Deus que nos ama e Consciências maduras de um caminho de crescimento e obra pastoral capaz de se comprome- A proposta teológica afonsiana salva, reconhecendo-o nos outros e para uma Igreja adulta amadurecimento na fé. A opção pre- ter em prol do bem comum, que tem nasce da escuta e do acolhimento da saindo de nós mesmos para procurar A exemplo de Santo Afonso Maria ferencial pelos pobres deve traduzir- a sua raiz no anúncio do querigma, fragilidade dos homens e mulheres o bem de todos» (EG, 39). A teologia de Ligório, renovador da teologia se, principalmente, numa solicitude que tem uma palavra decisiva em de- mais abandonados espiritualmente. moral não pode refletir unicamente moral,4 torna-se desejável e portanto religiosa privilegiada e prioritária» fesa da vida, a favor da criação e da O Santo Doutor, que se formou nu- sobre a formulação de princípios e necessário seguir, acompanhar e (EG, 200). fraternidade. ma mentalidade moral rigorosa, con- normas, mas deve assumir de manei- apoiar os mais destituídos de ajuda Como Santo Afonso, somos cha- Nesta especial circunstância enco- verte-se para a “b enignidade”através ra proativa a realidade, que ultrapas- espiritual no caminho da redenção. A mados a ir ao encontro do povo co- rajo a Congregação do Santíssimo da escuta da realidade. sa qualquer ideia (cf. EG, 231). Esta é radicalidade evangélica não se deve mo comunidade apostólica que se- Redentor e a Pontifícia Academia A experiência missionária nas pe- uma prioridade (cf. EG, 34-39) pois, opor à fraqueza do homem. É sem- gue o Redentor entre os abandona- Afonsiana, como sua expressão e riferias existenciais do seu tempo, a dos. Ir ao encontro de quem está des- centro de exímia formação teológica busca dos distantes e a escuta das provido de auxílio espiritual ajuda a e apostólica, a pôr-se em diálogo confissões, a fundação e a orientação superar a ética individualista e a pro- construtivo com as realidades de to- da nascente Congregação do Santís- mover uma maturidade moral capaz das as culturas,7 a fim de procurar simo Redentor, e ainda as responsa- de escolher o verdadeiro bem. For- respostas apostólicas, morais e espiri- bilidades como Bispo de uma Igreja mando consciências responsáveis e tuais a favor da fragilidade humana, particular levaram-no a tornar-se pai misericordiosas, teremos uma Igreja conscientes de que diálogo significa e mestre de misericórdia, convicto de adulta capaz de responder de forma marturya. que o «paraíso de Deus é o coração construtiva às fragilidades sociais, em Que Santo Afonso Maria de Ligó- do homem».2 vista do reino dos céus. rio e a Virgem Maria do Perpétuo A conversão progressiva para uma Ir ao encontro dos mais frágeis Socorro sejam sempre os vossos com- pastoral decididamente missionária, permite combater a «lógica “da com- panheiros de viagem. capaz de proximidade em relação ao petitividade e da lei do mais forte” povo, de saber acompanhar os seus que “considera o ser humano, em si Roma, São João de Latrão, passos, de participar concretamente mesmo, como um bem de consumo, 23 de março de 2021. na sua vida, até no meio de grandes que se pode usar e depois lançar fo- limites e desafios, levou Afonso a re- ra”, dando “início à cultura do descar- FRANCISCO ver, não sem esforço, inclusive a me- tável”» (cf. EG, 53). todologia teológica e jurídica recebi- Nos últimos tempos, os desafios 1. PIO IX,Acta Sancta Sedis, vol. VI, da nos anos da sua formação: inicial- que a sociedade enfrenta são inúme- Typis Polyglottae Officinae S.C. De mente caraterizada por um certo ri- ros: a pandemia e o trabalho no mun- Propaganda Fidei, Romae 1871, 318. gorismo, transformou-se em seguida do pós-Covid, o cuidado que deve 2. A. DE LI G Ó R I O,«MOD O DI em abordagem misericordiosa, dina- ser assegurado a todos, a defesa da CONVERSARE ALLA FA M I L I A R E CON mismo evangelizador capaz de agir vida, os inputs que nos são oferecidos DIO» in Opere ascetiche vol. I,CSSR, Ro- por atração. pela inteligência artificial, a salva- ma 1933, 316. Nas disputas teológicas, preferin- guarda da criação, a ameaça antide- 3. Ibid., 221. do a razão à autoridade, não se limi- mocrática e a urgência da fraternida- 4. Cf. JOÃO PAU L O II,«Spiritus Do- tou à formulação teórica de princí- de. Ai de nós se, neste esforço evan- mini», in Enchiridium Vaticanum, vol. 10, pios, mas deixou-se desafiar pela gelizador, separássemos o «clamor Ed. Dehonianas, Bolonha 1989, p. própria vida. Defensor dos últimos, dos pobres»,5 do «clamor da terra».6 1420. (cf. AAS 79 [1987] pp. 1367- dos frágeis e dos descartados da so- Alfonso de Ligório, mestre e pa- 1368). ciedade do seu tempo, defendeu o droeiro dos confessores e dos mora- 5. Cf. Laudato si’, n. 49. “d i re i t o ”de todos, especialmente dos listas, ofereceu respostas construtivas 6. «Programar passos corajosos para res- mais abandonados e dos pobres. Este aos desafios da sociedade do seu ponder melhor às expetativas do povo de percurso levou-o à escolha decisiva tempo, através da evangelização po- Deus. Discurso de Sua Santidade o Papa de se colocar ao serviço das consciên- pular, indicando um estilo de teolo- Fra n c i s c o » , in Studia moralia, 57/1 (2019) cias que, apesar das inúmeras dificul- gia moral capaz de manter unidas as 13-16. dades, procuram fazer o bem, porque exigências do Evangelho e a fragili- 7. , 36. número 13, terça-feira 30 de março de 2021 L’OSSERVATORE ROMANO página 11

Motu proprio do Papa Francisco relativo às retribuições do pessoal da Santa Sé, do Governatorato e de outras Entidades afins Para a contenção das despesas

No dia 24 de março foi divulgado o texto do te item de despesa no orçamento da §1 A partir de 1 de abril de 2021, a de de um parente até ao segundo grau §1 As disposições citadas nos arti- — assinado pelo Papa Francisco Santa Sé e do Estado da Cidade do retribuição, independentemente da de parentesco. Os pressupostos para gos precedentes aplicam-se igualmen- — relativo à contenção das despesas relativas Va t i c a n o ; sua denominação, líquida e excluindo a aplicação do presente artigo serão te ao Vicariato de Roma, aos Cabidos às retribuições do pessoal da Santa Sé, do Go- d) considerando que, apesar de remunerações adicionais concordadas avaliados anualmente. A relativa do- das Basílicas Papais do Vaticano, La- vernatorato do Estado da Cidade do Vaticano uma adequada capitalização da Santa no relativo contrato, paga pela Santa cumentação deverá ser apresentada: teranense e Liberiana, à Fábrica de e de outras Entidades afins. A seguir, o texto Sé e do Estado da Cidade do Vatica- Sé e pelo Governatorato do Estado da a) à Secretaria para a Economia, São Pedro e à Basílica de São Paulo pontifício. no, era necessário assegurar a susten- Cidade do Vaticano às pessoas inseri- para os funcionários que dela depen- fora dos muros. tabilidade e o equilíbrio entre receitas das nos níveis de remuneração C e C 1, dem administrativamente; CA R TA APOSTÓLICA e despesas na gestão económica e fi- será reduzida em oito por cento (8%) b) ao Governatorato do Estado da Artigo 7 SOB FORMA DE MOTU PROPRIO nanceira corrente; em relação ao último salário pago. Cidade do Vaticano, para os seus fun- § 1 A Secretaria da Economia, de D O SUMO PONTÍFICE FRANCISCO e) tendo em conta que, a tal propó- cionários; acordo com o Governatorato do Esta- relativa à contenção das despesas sito, era preciso agir segundo critérios Artigo 3 c) à Instituição a que pertencem, do da Cidade do Vaticano e depois de com o pessoal da Santa Sé, de proporcionalidade e progressivi- Remuneração de eclesiásticos para os funcionários da Congregação ter consultado o Fundo de Pensões, o do Governatorato do Estado dade; e religiosos para a Evangelização dos Povos e das Fundo de Saúde e outras Entidades da Cidade do Vaticano f) em vista de salvaguardar os § 1 A partir de 1 de abril de 2021, a Entidades citadas no art. 6. interessadas, adota medidas de apli- e de outras Entidades afins atuais postos de trabalho; retribuição paga pela Santa Sé e pelo cação do presente Decreto. g) tendo recebido o parecer com- Governatorato do Estado da Cidade Artigo 5 Disponho que quanto foi estabele- Um futuro economicamente sustentá- petente da Secretaria para a Econo- do Vaticano aos eclesiásticos e mem- Escalões bienais de antiguidade cido tenha efeito imediato, pleno e es- vel exige hoje, entre outras decisões, mia e depois de ter examinado cuida- bros de Institutos de vida consagrada § 1 No período entre 1 de abril de tável, revogando também todas as inclusive a adoção de medidas relati- dosamente todas as questões relativas ou Sociedades de vida apostólica, in- 2021 e 31 de março de 2023, a acumu- disposições incompatíveis, e que o vas às retribuições do pessoal. à matéria, estabeleço o seguinte: seridos nos níveis de remuneração C 2 lação de escalões bienais de antigui- presente decreto seja publicado em a) Tendo em conta o défice que há e C 3 e nos dez níveis funcionais não dade será suspensa para as pessoas «L’Osservatore Romano» de 24 de vários anos carateriza a gestão econó- Artigo 1 executivos, será reduzida em 3 por mencionadas nos artigos 2 e 3 e para o março de 2021 e sucessivamente nas mica da Santa Sé; Retribuições dos Cardeais cento (3%) em relação ao último salá- pessoal com contrato de nível funcio- Acta Apostolicae Sedis. b) considerando o agravamento §1 A partir de 1 de abril de 2021, a rio pago. nal de 4 a 10, ambos incluídos, da desta situação após a emergência sa- retribuição, independentemente da Santa Sé, do Governatorato do Esta- nitária causada pela propagação da sua denominação, paga pela Santa Sé Artigo 4 do da Cidade do Vaticano e das Enti- Dado em Roma, em São Pedro, Covid-19, que influenciou negativa- aos Cardeais será reduzida em dez A redução prevista nos artigos 1, 2 e dades cujas remunerações forem pa- a 23 de março de 2021, mente todas as fontes de receitas da por cento (10%) em relação ao último 3 não se aplica se a pessoa em questão gas pela Santa Sé ou pelo Estado da nono ano de Pontificado. Santa Sé e do Estado da Cidade do salário pago. apresentar documentos de que não Cidade do Vaticano. Va t i c a n o ; pode suportar os custos fixos decor- c) tendo em conta que os custos Artigo 2 rentes da sua própria saúde ou da saú- Artigo 6 com o pessoal constituem um relevan- Retribuições dos outros Superiores Outras Entidades

Audiências gi, Auxiliar da Arquidiocese Metropo- litana de Santiago e Administrador O Papa Francisco recebeu em audiências parti- Apostólico “sede vacante et ad nutum c u l a re s : INFORMAÇÕES Sanctae Sedis” de Talca. Bispo Auxiliar de Roma (Itália), o No dia 18 de março toral da Diocese de Canelones (Uru- o Rev.do Pe. Marcos Pirán, do clero da 1983. R e v.do Pe. Benoni Ambarus, do clero Sua Ex.cia o Senhor Jean Jude Pi- guai). Diocese di San Isidro (Argentina), até Arcebispo de Rossano-Cariati, na da mesma Diocese, até hoje Pároco de quant, Embaixador do Haiti junto da hoje Pároco de San José e Vigário para Itália, o Rev.do Pe. Maurizio Aloise, do “SS. Elisabetta e Zaccaria a Valle Mu- Santa Sé, para a apresentação das Car- A 20 de março a Pastoral do Vicariato de Holguín, si- clero da Arquidiocese Metropolitana ricana” e Diretor da Cáritas de Roma, tas Credenciais. De D. Marcelo Alejandro Cuenca multaneamente eleito Bispo Titular de Catanzaro-Squillace, até agora simultaneamente eleito Bispo Titular O Senhor Cardeal Luis Francisco Revuelta, ao governo pastoral da Dio- de Boseta. P r ó - Vi g á r i o - G e r a l . de Truentum. Ladaria Ferrer, Prefeito da Congrega- cese de Alto Valle del Río Negro (Ar- D. Marcos Pirán nasceu no dia 7 de março D. Maurizio Aloise nasceu no dia 20 de D. Benoni Ambarus nasceu no dia 22 de se- ção para a Doutrina da Fé; e o Rev.mo gentina). de 1961, em Buenos Aires (Argentina), e rece- abril de 1969, em Catanzaro, Arquidiocese tembro de 1974, em Somusca-Bacau (Romé- Mons. Guido Marini, Mestre das Ce- De D. Giuseppe Fiorini Morosini, beu a Ordenação sacerdotal em 9 de dezembro Metropolitana de Catanzaro-Squillace (Itá- nia), e recebeu a Ordenação sacerdotal em 29 lebrações Litúrgicas Pontifícias. O.M., ao governo pastoral da Arqui- de 1988. lia), e recebeu a Ordenação presbiteral a 18 de de junho de 2000. diocese Metropolitana de Reggio Ca- novembro de 1995. No dia 20 de março labria-Bova (Itália). A 20 de março Bispo da Diocese de Amiens, na A 24 de março O Senhor Cardeal Marc Ouellet, Arcebispo Metropolitano de Reg- França, o Rev.do Pe. Gérard Le Stang, Subsecretária do Setor “Fé e Desen- Prefeito da Congregação para os Bis- gio Calabria-Bova, na Itália, o Rev.do do clero da Diocese de Quimper, até volvimento” do Dicastério para o Ser- pos; D. Savio Hon Tai-Fai, Arcebispo Disposições especiais Pe. Fortunato Morrone, do clero de esta data Pároco de “Notre-Dame du viço de Desenvolvimento Humano Titular de Sila, Núncio Apostólico na Crotone-Santa Severina, até à presen- Folgoët-Abers-Côte des Légendes”. Integral, a Rev.da Ir. Alessandra Sme- Grécia; e o Rev.do Pe. Dante Carraro, Sua Santidade prorrogou: te data Pároco de San Leonardo de D. Gérard Le Stang nasceu a 28 de junho rilli, F.M.A., Professora de Economia Diretor de “Medici con l’Africa- Cutro e Docente de Teologia Sistemá- de 1963, em Plougonvelin, Finisterre, Diocese Política na Pontifícia Faculdade de No dia 24 de março CUA M M” . tica no Instituto Teológico Calabrês. de Quimper (França), e foi ordenado Presbíte- Ciências da Educação Au x i l i u m , em Ro- Por um ano, o mandato dos mem- D. Fortunato Morrone nasceu a 20 de se- ro em 17 de junho de 1990. ma. No dia 22 de março bros da Pontifícia Comissão para a Tu- tembro de 1958, em Isola di Capo Rizzuto, Ar- Bispo da Diocese de Talca (Chile), Membro da Pontifícia Comissão O Senhor Cardeal Luis Antonio G. tela dos Menores: D. Luis Manuel Alí quidiocese di Crotone-Santa Severina (Itália), D. Galo Fernández Villaseca, até à para a Tutela dos Menores por um pe- Tagle, Prefeito da Congregação para a Herrera; Pe. Hans Zollner, S.J.; Ir. Jane e foi ordenado Sacerdote no dia 1 de outubro de presente data Bispo Titular de Simin- ríodo de três anos, o Sr. Juan Carlos Evangelização dos Povos; D. James Bertelsen, F.M.D.M.; Ir. Arina Gonsal- Cruz (Chile). Patrick Green, Arcebispo Titular de ves, R.J.M.; Ir. Kayula Lesa, M.S.C.; Ir. Altinum, Núncio Apostólico na Sué- Hermenegild Makoro, C.P.S.; e os Se- cia, Islândia, Dinamarca, Finlândia e nhores e Senhoras Ernesto Caffo; Ga- Prelados falecidos Noruega; e D. Hanna G. Alwan, Bis- briel Dy-Liacco; Benyam Dawit Mez- po Titular de Sarepta dos Maronitas, mur; John Owen Neville; Nelson Gio- Audiência Adormeceram no Senhor: Bispo de Cúria de Antioquia dos Ma- vanelli Rosendo dos Santos; Hanna ronitas e Delegado Pontifício para a Sucho cka;Myriam Wijlens; Sinalelea ao primeiro-ministro da Ucrânia No dia 19 de março Ordem Maronita da Bem-Aventurada Fe ’ao; e Teresa Kettelkamp Morris. D. Luis Armando Bambarén Gaste- Virgem Maria. lumendi, da Companhia de Jesus, Bis- po Emérito da Diocese de Chimbote No dia 24 de março Nomeações (Peru), de Covid-19. O Colégio dos Prelados Auditores O venerando Prelado nasceu a 14 de janeiro do Tribunal da Rota Romana. O Santo Padre nomeou: de 1928, em Yungay, Diocese de Huaraz, no Peru. Foi ordenado Sacerdote em 15 de julho de A 19 de março 1958 e recebeu a Ordenação episcopal no dia 7 Renúncias Bispo da Diocese de Boma, na Re- de janeiro de 1968. pública Democrática do Congo, o O Sumo Pontífice aceitou a renúncia: R e v.do Pe. José-Claude Mbimbi No dia 23 de março Mbamba, até agora Reitor do “Grand D. Metod Pirih, Bispo Emérito da A 19 de março Séminaire de Philosophie Abbé Ngi- Diocese de Koper, na Eslovénia. De D. Cyprien Mbuka, C.I.C.M., ao di” e Vigário Episcopal para os Lei- O saudoso Prelado nasceu no dia 9 de maio governo pastoral da Diocese de Boma gos. de 1936, em Lokovec (Eslovénia). Recebeu a (República Democrática do Congo). D. José-Claude Mbimbi Mbamba nasceu a Ordenação sacerdotal em 29 de junho de 1963 De D. Dieudonné Watio, ao gover- 30 de julho de 1962, em Kinshasa (República e foi ordenado Bispo a 27 de maio de 1985. no pastoral da Diocese de Bafoussam Democrática do Congo), e foi ordenado Presbí- Na manhã de 25 de março, no Palácio apostólico do Vaticano, o Papa (Camarões). tero em 28 de agosto de 1988. Francisco recebeu em audiência o Senhor Denys Shmyhal, primeiro-mi- De D. Paul Nguyên Thái Hop, O.P., Bispo da Diocese de Canelones nistro da Ucrânia, que em seguida se encontrou com o secretário de Es- Início de Missão ao governo pastoral da Diocese de Ha (Uruguay), D. Heriberto Andrés Bo- tado, cardeal , acompanhado pelo arcebispo Paul Richard de Núncio Apostólico Tinh (Vietname). deant Fernández, até esta data Bispo Gallagher, secretário para as Relações com os Estados. Nos diálogos fo- De D. Alberto Francisco María de Melo. ram frisadas as boas relações existentes entre a Santa Sé e a Ucrânia, e De D. Novatus Rugambwa, nas Sanguinetti Montero, ao governo pas- Bispo Auxiliar de Holguín (Cuba), vários temas relacionados com a vida da Igreja católica no país. Ilhas Cook (3 de março). página 12 L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 30 de março de 2021, número 13

Vinte e cinco anos após a exortação apostólica «Vita consecrata» Te s t e m u n h a s da beleza de Deus

«Testemunhas da beleza de Deus» é o título de Ti, minhas mãos não estão vazias, que anuncia e celebra. Uma santidade da carta que o cardeal João Braz de Aviz e o mas cheias de tua graça. Saber ver a que é comunitária, feita não de per- arcebispo José Rodríguez Carballo —re s p e t i - graça é o ponto de partida» (Homilia, 1 feitos solitários, mas de pobres peca- vamente prefeito e secretário da Congregação de fevereiro de 2019). Voltar-se para dores que todos os dias comparti- para os institutos de vida consagrada e as so- trás e reler a própria história não ape- lham e se dão mutuamente misericór- ciedades de vida apostólica —enviaram «aos nas com o nosso olhar, mas com «o dia e compreensão. Uma c o n s a g ra ç ã o irmãos e irmãs consagrados», por ocasião do olhar dos fiéis» (Vita consecrata, 1) é ver que não se opõe aos valores do mun- vigésimo quinto aniversário da publicação da nela o dom fiel de Deus, na plena do e à sede universal de felicidade Exortação apostólica pós-sinodal de João consciência de que o mistério do Rei- mas, pelo contrário, que diz a todos Paulo II «Vita consecrata». no de Deus já esta atuando em nossa que ser pobre, casto e obediente tem história e aguarda sua plena realiza- um poder humanizador capaz de se Aos irmãos e irmãs consagrados! ção no céu (ibid.). transformar numa verdadeira ecolo- Rendemos graças a Deus conti- gia do ser humano, de dar sentido e nuamente a vosso respeito, «por cau- Diante de Deus para o mundo equilíbrio para a vida, e harmonia e sa da graça que vos concedeu em A Exortação apostólica Vita conse- liberdade para a relação com as coi- Cristo Jesus, no qual fostes enrique- crata foi publicada em tempos de sas, salva de qualquer abuso, que é cidos com todos os dons» e «chama- grande incerteza e em uma sociedade capaz de criar fraternidade e dar be- dos à comunhão com o seu Filho, Je- líquida, com identidades confusas e leza... Hoje a vida consagrada sente- sus Cristo, Nosso Senhor» (1 Cor 1, laços de pertença enfraquecidos. É, se “mais pobre”do que no passado, 4). Neste momento dramático senti- portanto, surpreendente notar a cer- mas —pela graça —vive bem mais a mo-nos solidários com todos e todas teza com que se define a identidade relação com a Igreja e o mundo, com «na tribulação e na perseverança» da vida consagrada, «ícone de Cristo quem crê e com quem não crê, com ta o apelo da viúva; que sofre com a Belo é o nosso ser virgens para (cf. Ap 1, 9), não semente por causa transfigurado» (Vita consecrata, 14) que quem sofre e esta só. humanidade e pela humanidade. amar com o seu coração, belo é ser do evento da pandemia, mas espe- revela a glória e o rosto do Pai no es- Acreditamos que a vida consagrada, pobre para dizer que Ele é o nosso cialmente pelas suas consequências plendor radiante do Espírito. Vida Os sentimentos do Filho com seus múltiplos carismas é, preci- único tesouro, bela é a nossa obe- que nos afetam de perto nos aconte- consagrada, portanto, como confessio Um aspeto particular da dimensão samente, a expressão desta sensibili- diência à sua vontade de salvação cimentos quotidianos da comunida- Trinitatis! Na realidade, aqui não exis- relacional parece atingir seu ponto dade. Pode-se dizer que cada institu- também entre nós, para buscarmos de civil e eclesial. Os consagrados e te apenas a preocupação de dar uma culminante quando, no documento, to sublinha com seu próprio carisma somente a Ele. consagradas são pessoalmente cha- base sólida à identidade da pessoa se toma em consideração o tema da um sentimento divino particular. É justa- Belo é ter um coração livre para mados a despertar em todos o senti- consagrada, mas sim de buscar um formação. Fica, então, claro que não se mente por isso que a formação é acolher a dor daqueles que sofrem e do da esperança. modo originai de ver essa identidade, trata de uma relação qualquer, mas apresentada na Exortação como um para lhes mostrar a compaixão do Não gostaríamos que passasse des- integrando o divino e o humano e de uma relação que nos leva a ter os processo que conduz nessa direção: Eterno... percebido o 25º aniversário (25 de percebendo essa misteriosa e lumino- mesmos sentimentos do Filho obedien- experimentar as mesmas sensações, Belo deve ser até mesmo o am- março de 1996) da publicação da sa ligação entre ascensão e descida, te, do Servo sofredor, do Cordeiro emoções, sentimentos, afetos, dese- biente, na sua simplicidade e sobrie- Exortação apostólica de São João entre altura transcendente e imersão ino cente. jos, gostos, critérios eletivos, sonhos, dade criativa: a casa, a mesa posta... Paulo II,Vita consecrata, fruto da refle- quenótica nas periferias do humano, Este não é um elemento essencial- expectativas, paixões... do Filho-Ser- que haja gosto e decoro nos quartos, xão da IX Assembleia do Sínodo dos entre beleza sublime a ser contempla- mente novo, considerando que já no v o - C o rd e i ro . para que tudo na habitação deixe bispos, celebrada em outubro de da e pobreza dolorosa a ser servida. passado foram utilizados os registos Trata-se de um projeto entusias- transparecer a presença e a centrali- 1994. Nela os bispos confirmaram re- Consequências preciosas derivam relacionais de seguimento, identifica- mante, que mais uma vez reúne (“in- dade de Deus. petidamente que «a vida consagrada desta intuição fecunda. ção, imitação de Cristo, mas aqui al- tegra”) admiravelmente as dimensões Beleza suprema, sacramento da esta colocada no coração da Igreja go mais é dito, ou melhor, é ofereci- espiritual e antropológica. É um pro- misteriosa beleza do Eterno, daquela como elemento decisivo de sua mis- A força da relação do pela Palavra (cf. Fl 2, 5), algo iné- jeto que poderia realmente transfor- beleza exclamada por Pedro no Ta- são [...] Um dom precioso e necessá- Vita consecrata é inteiramente cons- dito em certos aspetos. Trata-se de mar a ideia de formação, seja em seus bor, diante da explosão de luz e es- rio também para o presente e o futu- truída em torno da ideia de relação, re - uma relação de contacto tão intenso conteúdos, em suas modalidades e p l e n d o r. ro do Povo de Deus» (Vita consecrata, lação gerada no e pelo Mistério de e profundo que redescobre em si a seus tempos. Seria finalmente uma Vita consecrata certamente marcou a 3). Deus, comunhão trinitária. Uma salva- sensibilidade do Filho que, por sua vez, formação integral, construída sobre a experiência e a reflexão das pessoas Nesta ocasião, fazemos nossa a in- ção que passa pela vida de quem se é imagem e encarnação da sensibili- rocha do amor eterno que liberta, consagradas nos últimos anos. Esta- vocação e a ação de graças expressas encarrega do outro. Um testemunho dade do Pai. Com efeito, nós cristãos forma pessoas íntegras, que aprende- mos convencidos de que ela deve mediante as palavras do Papa Fran- que não é individual, mas que per- acreditamos em um Deus sensível, que ram a evangelizar sua sensibilidade, a continuar sendo um ponto de refe- cisco: «Senhor, minha salvação vem tence a uma fraternidade que vive o ouve o gemido dos oprimidos e escu- amar a Deus com um coração huma- rência também para os próximos no e a amar o homem com um cora- anos, juntamente com os documen- ção divino! Seria uma formação que tos do Magistério e da C I V C S VA , que perduraria no tempo, ao longo da vi- aprofundaram seus temas fundamen- da. E esta é outra grande intuição tais. Com efeito, estamos convenci- Mensagem em vídeo do Papa Francisco que permanece por ser compreendi- dos de que a Exortação ainda pode da e, mais ainda, por ser implementa- alimentar nas pessoas consagradas da. aquela fidelidade criativa que é a espi- O futuro do Bangladesh baseia-se no diálogo nha dorsal da vida consagrada no O encanto da Beleza terceiro milênio. Responder aos de- Por ocasião das celebrações do centenário do nascimento do xeque e procuraram acompanhá-lo na superação das adversi- Se Deus é belo e o Senhor Jesus «é safios que vêm da Igreja e da socie- Mujibur Rahman e do 50º aniversário da independência do país dades iniciais, apoiando-o na exigente tarefa de cons- o mais belo entre os filhos do ho- dade atual implica crescer no signifi- asiático, o Sumo Pontífice enviou a 24 de março ao presidente, ao trução e crescimento da Nação. Espero que as boas re- mem», então ser consagrado a Ele é cado evangélico: «Não podemos — primeiro-ministro e a toda a população do Bangladesh a seguinte lações entre a Santa Sé e o Bangladesh continuem a belo. A pessoa consagrada é chama- exorta o Papa Francisco —ficar pre- mensagem em vídeo. florescer. Estou também confiante de que o clima de da a ser testemunha da beleza. Em sos na nostalgia do passado ou limi- encontro e diálogo inter-religioso cada vez mais favo- um mundo que corre o risco de cair tar-nos a repetir as coisas de sempre e É com alegria que aproveito a oportunidade de dirigir rável, que pude experimentar durante a minha visita, em uma inquietante brutalização, a a reclamarmos de tudo. Precisamos as minhas mais calorosas saudações e os meus melho- continuará a permitir que os fiéis expressem livremente via pulchritudinis parece ser a única ma- da paciência corajosa para caminhar, res votos ao Presidente, ao Primeiro-Ministro e à ama- as suas mais profundas convicções sobre o significado neira para chegar à verdade ou para para explorar novos caminhos, para da população do Bangladesh, quando a Nação celebra e o propósito da vida, ajudando assim a promover os torná-la credível e atraente. Os con- buscar o que o Espírito Santo nos su- o centenário do nascimento do Xeque Mujibur Rah- valores espirituais que são a base segura para uma so- sagrados e consagradas devem des- gere. E tudo isto se faz com humilda- man e o cinquentenário da independência do Bangla- ciedade pacífica e justa. pertar em si mesmos, mas sobretudo de, com simplicidade, sem grande desh. Uno-me a todos vós em ação de graças a Deus Caros irmãos e irmãs, enquanto comemorais o cin- nos homens e mulheres de nosso propaganda, sem grande publicida- pelas numerosas bênçãos concedidas ao vosso país ao quentenário da vossa independência, renovo a minha tempo, a atração pelo Belo, portanto, de» (Homilia, 2 de fevereiro de 2021). longo destes anos. firme convicção de que o futuro da democracia e a saú- e não apenas corajoso e verdadeiro, Dirigimos com confiança nossa O Bangladesh — “Bengala dourada”(Sonar Bangla ) de da vida política do Bangladesh estão essencialmen- deve ser o testemunho e a palavra oração a Maria, para que os consa- —é um país de rara beleza natural e uma Nação mo- te ligados aos seus ideais fundadores e à riqueza do oferecida, porque belo é o rosto que grados e as consagradas possam «dar derna, que se esforça por preservar a unidade da língua diálogo sincero e do respeito pela diversidade legítima, anunciamos. testemunho de uma existência trans- e da cultura, no respeito pelas diversificadas tradições que procurastes alcançar ao longo destes anos. Belo deve ser o que fazemos e co- figurada, caminhando alegremente e comunidades que ali habitam. Este é um dos legados Como amigo do Bangladesh, encorajo cada um de mo o fazemos. com todos os outros irmãos e irmãs que o Xeque Mujibur Rahman deixou a todos os Ben- vós, especialmente as jovens gerações, a renovar os es- Bela deve ser a fraternidade e a at- rumo à pátria celestial e à luz que galis. Ele promoveu uma cultura do encontro e do diá- forços para trabalhar pela paz e prosperidade da nobre mosfera que nela se respira. não conhece ocaso» (Vita consecrata, logo, caraterizada pela sabedoria e por uma visão am- Nação que representais. E peço a todos vós que conti- Belo deve ser o templo e a liturgia 112). Aproveitamos esta oportunida- pla e clarividente. Estava convicto de que só numa so- nueis o vosso compromisso de generosidade e de sen- —à qual todos são convidados —p ois de para saudar-vos e desejar-vos todo ciedade pluralista e inclusiva, na qual cada pessoa po- sibilização humanitária em relação aos refugiados, aos belo é rezar e cantar os louvores do o bem no Senhor, Ele que é Tudo para de viver em liberdade, paz e segurança, é possível mais pobres, aos deserdados e a quantos não têm Altíssimo e deixar-se ler por sua pala- nós, consagrados e consagradas. construir um mundo mais justo e fraterno. voz. vra. O Bangladesh é um Estado jovem e ocupou sempre Com estes votos cordiais, invoco abundantes bên- Belo é estar juntos em seu nome, Cidade do Vaticano, um lugar especial no coração dos Papas, que desde o çãos divinas sobre o Golden Bangladesh e sobre todos os trabalhar juntos, mesmo que às vezes 25 de março de 2021, solenidade início manifestaram solidariedade para com o seu povo seus cidadãos. seja exigente. da Anunciação do Senhor.