Celebração: a Trajetória Musical De Ricardo Bezerra Daniel Lopes
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0 Celebração: A trajetória musical de Ricardo Bezerra Daniel Lopes Saraiva* Resumo: Entre o fim da década de 1960 e o início da década de 1970, chegaram ao eixo Rio-São Paulo diversos cantores oriundos da região Nordeste. Pouco conhecido hoje, um desses artistas foi Ricardo Bezerra, natural do Ceará e um agitador cultural na região no fim da década de 1960. Estudante de arquitetura da Universidade Federal de Fortaleza, foi um dos organizadores do Festival Aqui No Canto. Parceiro de Fagner em composições como Cavalo de Ferro, Ricardo Bezerra mudou-se para o Rio de Janeiro na década de 1970 para tentar a carreira musical. Gravou dois discos: Maraponga, em 1978, e, muitos anos depois, em 2003, Notas de Viagens. Este artigo tem por objetivo analisar a memória de Ricardo Bezerra, seguindo, para isso, a metodologia da História Oral. Como fontes, foram mobilizados seus discos e composições, reportagens de jornais sobre o cantor à época e, ainda, uma entrevista concedida a este autor em 2013. Assim, o artigo trabalha com o movimento cultural de artistas nordestinos, que ganhou grande repercussão no início de 1970, tendo em visa o processo de criação, a indústria cultural e outras temáticas que foram aventadas durante a entrevista. Palavras-chave: Ricardo Bezerra, Música, Nordeste, Maraponga O início da explosão da música nordestina nas décadas de 1970 e 1980 A década de 1960 foi marcada pelos grandes festivais. As duas então maiores emissoras de televisão, Globo e Record, inclusive, realizavam os seus próprios: a primeira, o Festival Internacional da Canção (FIC) e, a segunda, o Festival da Record. Seguindo a grande repercussão dos festivais, diversas regiões e cidades do país passaram a organizar seus concursos: Uruguaiana (RS), com o Califórnia da Canção; Juiz de Fora (MG), com o Festival da Música Popular Brasileira de Juiz de Fora; e tantos outros (SEVERIANO e MELLO, 2006: pp. 178 - 179). Esses festivais regionais lançaram muitos artistas, mas as possibilidades de crescimento na carreira artística eram pouco prováveis em cidades que não fossem Rio * Doutorando em História pela Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC), com pesquisas nas áreas de Cultura, Música Popular Brasileira e Ditadura Militar Brasileira. Bolsista PROMOP, é vinculado ao Laboratório de Imagem e Som (LIS) da UDESC. Endereço eletrônico: [email protected]. 1 de Janeiro ou São Paulo. Portanto, um artista que quisesse realmente fazer uma carreira na música teria que se mudar para um desses municípios. Entre o fim da década de 1960 e o início da década de 1970, chegaram aos grandes centros culturais os artistas: Fagner, Belchior, Fausto Nilo, Cirino, Ednardo, Teti, Rodger, Nonato Luís, Ricardo Bezerra e Amelinha, vindos do Ceará; Clodo, Climério, Clésio e Jorge Mello, do Piauí; Terezinha de Jesus e Mirabô, do Rio Grande do Norte; Geraldo Azevedo e Alceu Valença, de Pernambuco; e Elba Ramalho e Zé Ramalho, da Paraíba. A lista de nomes é extensa, o que impossibilita citar todos. Essa contribuição dos artistas nordestinos para a música brasileira tem espaço discreto em um dos capítulos do livro Uma História de Música Popular Brasileira, do pesquisador musical Jairo Severiano (SEVERIANO, 2008: p. 422). Sobre sua saída de Natal (RN), Mirabô diz: Entre 70 e 72 mais ou menos eu resolvi ir pro Rio achando que se eu fosse ficar aqui (Natal) nem disco a gente fazia, porque não tinha gravadora, não tinha estúdio de gravação. Estava no Rio e São Paulo, eu digo “eu vou”? Aí fui em São Paulo... Eu fui, morei um ano e meio em São Paulo no Copan, depois saí do Copan fui pra Cesário Mota que é a Rua da Santa Casa, depois eu achei São Paulo muito frio e fui morar no Rio de Janeiro (Mirabô, 2013). Até então, os nordestinos mais conhecidos na Música Popular Brasileira (MPB) eram o paraibano Jackson do Pandeiro, o maranhense João do Vale e, o mais famoso deles, o pernambucano Luiz Gonzaga. Os três, de origem humilde, saíram de suas terras para tentar a vida na cidade grande e tiveram diversos empregos até conseguirem se firmar na vida artística. Eles cantavam um Nordeste sofrido em função da seca e dos problemas sociais lá encontrados. A obra desses artistas vai ao encontro da “Invenção do Nordeste”. Para o Professor Durval Muniz de Albuquerque: O Nordeste é uma produção imagético-discursiva formada a partir de uma sensibilidade cada vez mais específica, gestada historicamente, em relação a uma dada área do país. E é tal a consistência desta formulação discursiva e imagética que dificulta, até hoje, a produção de uma nova configuração de “verdades” sobre esse espaço (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2002: p. 61). 2 Para Albuquerque, o público de Luiz Gonzaga eram os migrantes saídos da região Nordeste, pois seus arranjos suscitavam lembranças, emoções, ideias que remetiam à terra natal, promovendo, assim, uma ligação afetiva entre público, canção e artista (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 202: p. 61). O gênero musical tanto de Luiz Gonzaga quanto de João do Vale, Jackson do Pandeiro e outros artistas, denominado regional, era, até o início da década de 1970, marginalizado pelo mercado. Luiz Gonzaga, inspirado no acordeonista Pedro Raimundo, gaúcho que usava bombacha, botas, guaiaca e chicote nas apresentações, resolveu usar vestes que remeteriam à imagem do Nordeste. Adotou, então, em seu visual, o chapéu de couro, que faria referência ao cangaceiro Lampião (DREYFUS, 1996: p. 134) — o que Gonzaga talvez não atentasse é que ele estava contribuindo para a formação de um estereótipo do nordestino. Dominguinhos, que tinha grande admiração pelo cantor, e alguns diziam até ser seu substituto, adotou também o uso do chapéu de couro durante sua carreira. Luiz Gonzaga seria uma das grandes referências para a nova geração de cantores vindos da região Nordeste. Diferentemente de suas vestes, que não seriam adotadas pelos artistas que desembarcaram no Rio de Janeiro e em São Paulo na década de 1970. Esses cantores e compositores em início de carreira participaram também de festivais que, mesmo não recebendo a mesma mídia de anos anteriores, atraíam olhares não só do público, mas também da crítica musical em busca de novas estrelas. A televisão ganhava cada vez mais destaque e, em 1970, consolidou-se como carro-chefe da indústria cultural brasileira (HAMBURGER, 2003: p. 47). Era, então, necessário estar nessa vitrine para alcançar o sucesso. Com o destaque nos festivais, sendo gravados e com respaldo de artistas de renome, as gravadoras começaram a convidar esses artistas para fazerem parte de seu cast. A Copacabana, por exemplo, lançou o long play (LP) Quadrafônico, em 1972, no qual Alceu Valença e Geraldo Azevedo dividiam as faixas. Em 1973, foi a vez da Philips lançar o primeiro LP de Fagner, Manera Fru-Fru, Manera. A Continental, por sua vez, lançou Pessoal do Ceará(1973), um disco em que Ednardo, Rodger e Teti dividiam os vocais. A indústria fonográfica crescia no Brasil e o número de 3 consumidores aumentava. Por isso, era necessário aumentar a variedade de produtos. Com isso, as gravadoras precisavam investir em novos talentos. Para se ter uma ideia, o faturamento da indústria fonográfica cresceu 1.375% entre 1970 e 1976 (ORTIZ, 1988: p. 127). Tabela 1 – Crescimento da indústria fonográfica entre 1972 e 1979 Compacto Compacto Ano LPs Fitas Simples Duplo 72 11.700 9.900 2.500 1.000 73 15.000 10.100 3.200 1.900 74 16.000 8.200 3.500 2.800 75 16.900 8.100 5.000 3.900 76 24.000 10.300 7.100 6.800 79 39.252 12.613 5.889 8.481 Fonte: ORTIZ, 1988: p. 127. Na tabela acima podemos observar o aumento da venda de diversos produtos do mercado fonográfico. A venda de toca-discos também cresceu: entre 1967 e 1980, o aumento foi de 813% (ORTIZ, 1988: p. 127). Junto com o aumento da venda de discos e fitas, cresceu também a contratação de novos artistas pelas gravadoras — e foi nesse contexto que os artistas vindos de diversas regiões ganharam a oportunidade de gravar e consolidar uma carreira artística. Contrapondo os compactos simples, o long play promoveu uma mudança profunda nos rumos da indústria fonográfica. Primeiro, porque permitiu que ela se expandisse pelos quatro cantos do país e, segundo, pois possibilitou que os artistas desenvolvessem discos autorais e conceituais na forma de álbuns (DIAS, 2016: p. 185). Os artistas oriundos do Nordeste traziam uma nova roupagem para a MPB. Eles tinham grande influência de cantores já consagrados, como Luiz Gonzaga, mas com um diferencial: a trajetória de vida. A maioria desses artistas pertencia à classe média urbana e quase todos tinham formação universitária (PIMENTEL, 1995: p. 103). Eles cantavam seu cotidiano, um Nordeste mais urbano, jovem e moderno, diferente daquele cantado por Gonzaga e João do Vale, porém, não tão diferente do “sul-maravilha”. 4 Fagner, que lançou seu primeiro LP em 1973, vinha trilhando um caminho de ascensão. Em 1976, gravou seu terceiro disco, Raimundo Fagner, e, pouco tempo depois, foi convidado por Jairo Pires a ser diretor artístico da gravadora CBS, sendo responsável pelo selo Epic, de grande prestígio nos Estados Unidos, mas ainda não conhecido no Brasil. Durante a diretoria de Fagner no selo Epic houve uma grande liberdade na criação dos discos. Diversos artistas, inclusive, tiveram suas estreias naquele selo. Foi a partir da contratação de Fagner que muitos artistas da região Nordeste tiveram a oportunidade de gravar seus discos, como, por exemplo, Elba Ramalho, Zé Ramalho, Terezinha de Jesus, Petrúcio Maia, Ricardo Bezerra, entre outros. A partir desse quadro, passaremos a abordar alguns aspectos específicos da carreira de Ricardo Bezerra, estudante de arquitetura a Universidade Federal do Ceará, organizador de eventos culturais em Fortaleza, tecladista e parceiro de composição de Fagner.