0

Celebração: A trajetória musical de Ricardo Bezerra

Daniel Lopes Saraiva*

Resumo: Entre o fim da década de 1960 e o início da década de 1970, chegaram ao eixo Rio-São Paulo diversos cantores oriundos da região Nordeste. Pouco conhecido hoje, um desses artistas foi Ricardo Bezerra, natural do Ceará e um agitador cultural na região no fim da década de 1960. Estudante de arquitetura da Universidade Federal de , foi um dos organizadores do Festival Aqui No Canto. Parceiro de Fagner em composições como Cavalo de Ferro, Ricardo Bezerra mudou-se para o na década de 1970 para tentar a carreira musical. Gravou dois discos: Maraponga, em 1978, e, muitos anos depois, em 2003, Notas de Viagens. Este artigo tem por objetivo analisar a memória de Ricardo Bezerra, seguindo, para isso, a metodologia da História Oral. Como fontes, foram mobilizados seus discos e composições, reportagens de jornais sobre o cantor à época e, ainda, uma entrevista concedida a este autor em 2013. Assim, o artigo trabalha com o movimento cultural de artistas nordestinos, que ganhou grande repercussão no início de 1970, tendo em visa o processo de criação, a indústria cultural e outras temáticas que foram aventadas durante a entrevista. Palavras-chave: Ricardo Bezerra, Música, Nordeste, Maraponga

O início da explosão da música nordestina nas décadas de 1970 e 1980 A década de 1960 foi marcada pelos grandes festivais. As duas então maiores emissoras de televisão, Globo e Record, inclusive, realizavam os seus próprios: a primeira, o Festival Internacional da Canção (FIC) e, a segunda, o Festival da Record. Seguindo a grande repercussão dos festivais, diversas regiões e cidades do país passaram a organizar seus concursos: Uruguaiana (RS), com o Califórnia da Canção; Juiz de Fora (MG), com o Festival da Música Popular Brasileira de Juiz de Fora; e tantos outros (SEVERIANO e MELLO, 2006: pp. 178 - 179). Esses festivais regionais lançaram muitos artistas, mas as possibilidades de crescimento na carreira artística eram pouco prováveis em cidades que não fossem Rio

* Doutorando em História pela Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC), com pesquisas nas áreas de Cultura, Música Popular Brasileira e Ditadura Militar Brasileira. Bolsista PROMOP, é vinculado ao Laboratório de Imagem e Som (LIS) da UDESC. Endereço eletrônico: [email protected].

1 de Janeiro ou São Paulo. Portanto, um artista que quisesse realmente fazer uma carreira na música teria que se mudar para um desses municípios. Entre o fim da década de 1960 e o início da década de 1970, chegaram aos grandes centros culturais os artistas: Fagner, Belchior, Fausto Nilo, Cirino, Ednardo, Teti, Rodger, Nonato Luís, Ricardo Bezerra e Amelinha, vindos do Ceará; Clodo, Climério, Clésio e Jorge Mello, do Piauí; Terezinha de Jesus e Mirabô, do Rio Grande do Norte; Geraldo Azevedo e Alceu Valença, de Pernambuco; e Elba Ramalho e Zé Ramalho, da Paraíba. A lista de nomes é extensa, o que impossibilita citar todos. Essa contribuição dos artistas nordestinos para a música brasileira tem espaço discreto em um dos capítulos do livro Uma História de Música Popular Brasileira, do pesquisador musical Jairo Severiano (SEVERIANO, 2008: p. 422). Sobre sua saída de Natal (RN), Mirabô diz:

Entre 70 e 72 mais ou menos eu resolvi ir pro Rio achando que se eu fosse ficar aqui (Natal) nem disco a gente fazia, porque não tinha gravadora, não tinha estúdio de gravação. Estava no Rio e São Paulo, eu digo “eu vou”? Aí fui em São Paulo... Eu fui, morei um ano e meio em São Paulo no Copan, depois saí do Copan fui pra Cesário Mota que é a Rua da Santa Casa, depois eu achei São Paulo muito frio e fui morar no Rio de Janeiro (Mirabô, 2013).

Até então, os nordestinos mais conhecidos na Música Popular Brasileira (MPB) eram o paraibano Jackson do Pandeiro, o maranhense João do Vale e, o mais famoso deles, o pernambucano . Os três, de origem humilde, saíram de suas terras para tentar a vida na cidade grande e tiveram diversos empregos até conseguirem se firmar na vida artística. Eles cantavam um Nordeste sofrido em função da seca e dos problemas sociais lá encontrados. A obra desses artistas vai ao encontro da “Invenção do Nordeste”. Para o Professor Durval Muniz de Albuquerque:

O Nordeste é uma produção imagético-discursiva formada a partir de uma sensibilidade cada vez mais específica, gestada historicamente, em relação a uma dada área do país. E é tal a consistência desta formulação discursiva e imagética que dificulta, até hoje, a produção de uma nova configuração de “verdades” sobre esse espaço (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2002: p. 61).

2

Para Albuquerque, o público de Luiz Gonzaga eram os migrantes saídos da região Nordeste, pois seus arranjos suscitavam lembranças, emoções, ideias que remetiam à terra natal, promovendo, assim, uma ligação afetiva entre público, canção e artista (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 202: p. 61). O gênero musical tanto de Luiz Gonzaga quanto de João do Vale, Jackson do Pandeiro e outros artistas, denominado regional, era, até o início da década de 1970, marginalizado pelo mercado. Luiz Gonzaga, inspirado no acordeonista Pedro Raimundo, gaúcho que usava bombacha, botas, guaiaca e chicote nas apresentações, resolveu usar vestes que remeteriam à imagem do Nordeste. Adotou, então, em seu visual, o chapéu de couro, que faria referência ao cangaceiro Lampião (DREYFUS, 1996: p. 134) — o que Gonzaga talvez não atentasse é que ele estava contribuindo para a formação de um estereótipo do nordestino. , que tinha grande admiração pelo cantor, e alguns diziam até ser seu substituto, adotou também o uso do chapéu de couro durante sua carreira. Luiz Gonzaga seria uma das grandes referências para a nova geração de cantores vindos da região Nordeste. Diferentemente de suas vestes, que não seriam adotadas pelos artistas que desembarcaram no Rio de Janeiro e em São Paulo na década de 1970. Esses cantores e compositores em início de carreira participaram também de festivais que, mesmo não recebendo a mesma mídia de anos anteriores, atraíam olhares não só do público, mas também da crítica musical em busca de novas estrelas. A televisão ganhava cada vez mais destaque e, em 1970, consolidou-se como carro-chefe da indústria cultural brasileira (HAMBURGER, 2003: p. 47). Era, então, necessário estar nessa vitrine para alcançar o sucesso. Com o destaque nos festivais, sendo gravados e com respaldo de artistas de renome, as gravadoras começaram a convidar esses artistas para fazerem parte de seu cast. A Copacabana, por exemplo, lançou o long play (LP) Quadrafônico, em 1972, no qual Alceu Valença e Geraldo Azevedo dividiam as faixas. Em 1973, foi a vez da Philips lançar o primeiro LP de Fagner, Manera Fru-Fru, Manera. A Continental, por sua vez, lançou Pessoal do Ceará(1973), um disco em que Ednardo, Rodger e Teti dividiam os vocais. A indústria fonográfica crescia no Brasil e o número de

3 consumidores aumentava. Por isso, era necessário aumentar a variedade de produtos. Com isso, as gravadoras precisavam investir em novos talentos. Para se ter uma ideia, o faturamento da indústria fonográfica cresceu 1.375% entre 1970 e 1976 (ORTIZ, 1988: p. 127).

Tabela 1 – Crescimento da indústria fonográfica entre 1972 e 1979 Compacto Compacto Ano LPs Fitas Simples Duplo 72 11.700 9.900 2.500 1.000 73 15.000 10.100 3.200 1.900 74 16.000 8.200 3.500 2.800 75 16.900 8.100 5.000 3.900 76 24.000 10.300 7.100 6.800 79 39.252 12.613 5.889 8.481 Fonte: ORTIZ, 1988: p. 127.

Na tabela acima podemos observar o aumento da venda de diversos produtos do mercado fonográfico. A venda de toca-discos também cresceu: entre 1967 e 1980, o aumento foi de 813% (ORTIZ, 1988: p. 127). Junto com o aumento da venda de discos e fitas, cresceu também a contratação de novos artistas pelas gravadoras — e foi nesse contexto que os artistas vindos de diversas regiões ganharam a oportunidade de gravar e consolidar uma carreira artística. Contrapondo os compactos simples, o long play promoveu uma mudança profunda nos rumos da indústria fonográfica. Primeiro, porque permitiu que ela se expandisse pelos quatro cantos do país e, segundo, pois possibilitou que os artistas desenvolvessem discos autorais e conceituais na forma de álbuns (DIAS, 2016: p. 185). Os artistas oriundos do Nordeste traziam uma nova roupagem para a MPB. Eles tinham grande influência de cantores já consagrados, como Luiz Gonzaga, mas com um diferencial: a trajetória de vida. A maioria desses artistas pertencia à classe média urbana e quase todos tinham formação universitária (PIMENTEL, 1995: p. 103). Eles cantavam seu cotidiano, um Nordeste mais urbano, jovem e moderno, diferente daquele cantado por Gonzaga e João do Vale, porém, não tão diferente do “sul-maravilha”.

4

Fagner, que lançou seu primeiro LP em 1973, vinha trilhando um caminho de ascensão. Em 1976, gravou seu terceiro disco, Raimundo Fagner, e, pouco tempo depois, foi convidado por Jairo Pires a ser diretor artístico da gravadora CBS, sendo responsável pelo selo Epic, de grande prestígio nos Estados Unidos, mas ainda não conhecido no Brasil. Durante a diretoria de Fagner no selo Epic houve uma grande liberdade na criação dos discos. Diversos artistas, inclusive, tiveram suas estreias naquele selo. Foi a partir da contratação de Fagner que muitos artistas da região Nordeste tiveram a oportunidade de gravar seus discos, como, por exemplo, Elba Ramalho, Zé Ramalho, Terezinha de Jesus, Petrúcio Maia, Ricardo Bezerra, entre outros. A partir desse quadro, passaremos a abordar alguns aspectos específicos da carreira de Ricardo Bezerra, estudante de arquitetura a Universidade Federal do Ceará, organizador de eventos culturais em Fortaleza, tecladista e parceiro de composição de Fagner. Trabalharemos, então, com a questão de História Oral e Memória, uma vez que é o depoimento do artista, contrastado com outras informações, que balizam o artigo. Para isso, o texto divide-se em três partes: as influências musicais e o primeiro contato do compositor com a música, seguidos por sua experiência como organizador do Festival Aqui no Canto e, por fim, a gravação do disco Maraponga, em 1978.

A infância do artista Ricardo Bezerra narra sua trajetória artística com início na infância, pois nasceu em uma casa muito musical:

Olha, eu nasci em uma família musical, pelo lado da minha mãe. Ela vinha do Aracati, que é uma cidade na beira do Rio Jaguari, muito próxima da praia, e é uma cidade muito antiga, que foi mais importante que Fortaleza, Aracati, e ela vinha de uma família musical. O pai dela tocava vários instrumentos, não profissionalmente, mas, numa época em que não havia música mecânica, as pessoas ou tocavam alguma coisa ou não tinha música, e então, ela, minha mãe, estudou piano, minhas tias, meus tios, todos tiveram educação musical no Aracati. Aracati foi chamada a “Cidade dos Pianos” e então, eu já nasço numa casa com piano, já nasço numa casa onde as pessoas tocavam música clássica, aonde eu tinha uma tia que tocava música popular, mas também tocava clássico e liam partitura. Meu pai, apesar de não ter tradição muito musical, minha avó tinha um piano, minha avó por parte de pai, mas meu pai não tocava nenhum instrumento, mas era um amante, um

5

admirador de música erudita, e nós tínhamos na nossa casa, desde que eu nasci, ainda era uma época que a família almoçava e jantava, tomava café, almoçava e jantava juntos, na mesa, o café não, mas o almoço e no jantar era ao som de música clássica, música erudita. Isso aí era minha realidade (BEZERRA, 2013).

Neste artigo temos a memória do artista como uma forma de recontar sua trajetória. Ricardo Bezerra participou de um momento de efervescência cultural em Fortaleza e, posteriormente, migrou para o eixo Rio-São Paulo, onde gravou o LP Maraponga, em 1978. Após a gravação do disco, excursionou em algumas cidades fazendo shows, mas logo deu preferência para a carreira de arquiteto, na qual já era formado quando gravou Maraponga. O artista seguiu carreira acadêmica e até hoje é professor na Universidade Federal do Ceará (UFC). Entendemos a História Oral como uma das poucas formas de recontar a trajetória de Ricardo Bezerra, pois ele não ficou famoso como seus conterrâneos contemporâneos Fagner, Belchior ou Amelinha. Sua trajetória aparece discretamente em documentos da mídia impressa e em poucos trabalhos acadêmicos. Voltando ao depoimento sobre a infância, é evidente que o artista foca sua memória na questão da proximidade com a música, montando uma rede de proximidades entre seus parentes e a influência musical, direcionando sua memória para a temática da pesquisa, o que é comum nos depoimentos. Para Alessandro Portelli, isso ocorre, pois

As narrações possuem alto grau de mutabilidade e instabilidade. Isso deriva sobretudo do fato da memória não é um ato imediato e binário de retirada de informações já formadas, mas um processo múltiplo de produção gradual de significados, influenciado pelo desenvolvimento do sujeito, pelo interlocutor, pelas condições do ambiente (PORTELLI, 2010: p. 72).

O autor segue ainda dizendo que os historiadores orais precisam tirar o máximo proveito dessa mutabilidade. Portanto, neste artigo, vamos observar as memórias do entrevistado e de que forma elas são (re)organizadas, estabelecendo uma relação entre entrevistador e entrevistado, com base no que Juniele Rabêlo de Almeida chama de construção compartilhada (ALMEIDA, 2016: p. 50).

6

Prosseguindo sobre seus primeiros contatos com a música e suas influências, Ricardo Bezerra diz que:

Na época, não tinha loja de discos em Fortaleza, então, os discos eram vendidos de porta a porta. Chegava um representante, trazia uma mala, era como se fosse um vendedor, um caixeiro-viajante, digamos assim. Esse cara trazia os catálogos com discos, e ali, se comprava não só a maioria, era música erudita, mas se comprava, também, canções americanas, porque os discos eram todos, também, a maioria, americanos, os LPs eu peguei o disco de cera também, claro. Tinha disco de cera, na minha casa, que era mais a parte popular, porque aí também tinha os artistas populares, então, escutei muita música erudita, muita música americana daquela década de 1940, 1950, e também os artistas populares. Quando eu entrei na adolescência, aí já tinham lojas de discos, na cidade e tal, e eu, então, passo a começar a comprar disco. E aí, quando eu passo a comprar disco era MPB: Milton Nascimento, , , a geração pré, que desponta nos festivais (BEZERRA, 2013).

Nessa segunda parte do depoimento podemos perceber como funcionava o comercio de discos no Nordeste na década de 1950 e quais foram as primeiras influências do artista. Percebemos também uma cultura musical em sua família. Filho de comerciantes, sua família mantinha certa autonomia social, inserida nas faixas médias das posições sociais (RÓGÉRIO, 2008: p. 33). Ao fim do trecho citado, o compositor expõe suas influências da adolescência, na década de 1960, que já seriam dos artistas que, no período, formavam a sigla ainda embrionária MPB. Ao fim dessa década, o artista foi para Fortaleza, onde iniciou a faculdade de arquitetura.

Festival Aqui no Canto Para este artigo é importante destacar o Festival Aqui no Canto, realizado em Fortaleza (CE), no ano de 1968. Desse festival saiu o primeiro registro fonográfico de diversos cantores e compositores. Intitulado Música Popular Aqui no Canto, o LP reuniu as 12 canções classificadas entre as 150 inscritas no festival. (PIMENTEL, 2006: p.96) Entre os compositores das músicas classificadas estão Fagner, Ricardo Bezerra, Brandão, Wilson Cirino e Rodger Rogério — os dois últimos participaram também como intérpretes no disco. A organização do festival foi realizada pela Rádio Assunção e pelo diretório acadêmico da Escola de Arquitetura, do qual faziam parte Ricardo Bezerra, que já

7 cursava arquitetura, e Fausto Nilo, que foi um dos jurados do festival, mas não era letrista à época (FAUSTO NILO, 2013). Vale ressaltar que o cenário cultural do período teve grande destaque posteriormente, muito em função dos seus artistas terem atingido sucesso, em maior ou menor proporção. Além de Ricardo Bezerra, nomes como Teti, Rodger, Cirino, Petrúcio Maia, Ednardo, Belchior, Amelinha e Fagner gravaram no eixo Rio-São Paulo entre 1970 e 1980. Alguns deles, como Fagner, conquistaram fama nacional, construindo uma carreira sólida. As memórias de Ricardo Bezerra sobre o festival elucidam sobre o momento de agitação cultural na cidade:

Eu participei da organização desse festival, porque o festival estava sendo organizado pelo Aderbal Freire Filho, naquela época, o nome que ele usava era Aderbal Junior, o Augusto Pontes que é uma pessoa que também tem que estar citado aí, você já deve ter passado pelo Augusto, e tinham dois diretórios da universidade que ajudavam na organização. Era o da música, que era a Mércia Pinto, que era a namorada do Fausto (Nilo), e eu, representando arquitetura. Eu acho que, às vezes, eu fico pensando se tinha um terceiro diretório, mas não me lembro. Eu sei que, nesse festival, infelizmente, não tem música do Petrúcio (Maia), porque era a chance também de ter, porque ele estava no júri, então, ele não poderia ter música, e o Petrúcio era uma pessoa importante no júri (BEZERRA, 2013).

Sobre a premiação, Ricardo Bezerra diz: “Bom, o festival acabou que não teve premiação. Não fizeram a final. Não houve a final. Só teve umas classificatórias e eles selecionaram 12 músicas, e então, fazia o disco, que o grande documento que tem, é o disco” (BEZERRA, 2013). O disco, além de ser a primeira gravação de diversos intérpretes e compositores, mostrou como a organização cultural da cidade era destaque. Ricardo Bezerra diz que a gravação foi capitaneada pelo hoje diretor de teatro Aderbal Freire Filho. Vale destacar que fazer um disco no período não era um processo barato e as gravadoras independentes quase inexistiam. Esse disco funcionou também como pontapé inicial para que os artistas que dele participavam ou estavam próximos da organização começassem a se mobilizar para seguir carreira no eixo Rio-São Paulo. Mesmo com uma cena cultural rica, a cidade de Fortaleza não oferecia o que os grandes centros

8 poderiam possibilitar para os artistas: o reconhecimento em cenário nacional. E foi para ir atrás dessa carreira que os artistas cearenses e de outros estados da região saíram rumo ao “sul-maravilha”.

Maraponga Lançado em 1978, o LP Maraponga continha nove faixas. O disco foi um dos primeiros produzidos pelo selo Epic, braço fonográfico da CBS, e também um dos primeiros sob a direção de produção de Fagner. Jairo Pires, diretor artístico da CBS na época, queria lançar novos artistas vinculados à MPB — até então a CBS era considerada uma gravadora dos artistas vinculados ao movimento da Jovem Guarda, tendo como seu contratado principal Roberto Carlos. Assim, Jairo deu carta branca para Fagner produzir os novos artistas. Maraponga foi, então, um disco com grande produção. Fagner, além de diretor de produção musical, participa em algumas faixas, fazendo dueto com Ricardo Bezerra. , cedido pela gravadora WEA, também atuou como diretor musical e participou de algumas faixas, tocando piano e harpa. O long play teve ainda a presença de Robertinho de Recife na guitarra, Sivuca no acordeom e voz e Amelinha, também em dueto com Ricardo e fazendo vocalize em algumas faixas. Ricardo Bezerra atuou também como diretor musical do disco e fez o desenho da capa. Muito provavelmente por conta da proximidade com Fagner, de quem era parceiro em canções de sucesso, o artista teve a possibilidade de participar ativamente da produção do disco, atuando em diversas frentes do trabalho. O lançamento e o decorrer da produção do disco podem ser percebidos na coluna de Nelson Motta, no jornal O Globo. Em umas das edições de Março de 1977, Nelson Motta falou sobre os discos que Fagner estava produzindo e os que ainda iria produzir. Entre os nomes constavam Amelinha, Zé Ramalho, Robertinho de Recife, Ricardo Bezerra, Petrúcio Maia e Mirabeau (Mirabô). Desses, o único que não chegou a lançar um LP foi Mirabô Dantas, que acabou lançando só um compacto simples pela gravadora Epic/CBS(MOTTA, 1977).

9

No mês de outubro do mesmo ano, com uma nota intitulada “Fagner lança mais um cearense”, Nelson Motta escreveu: “Ricardo Bezerra, compositor e tecladista cearense, terá suas composições gravadas em disco a ser lançado logo pela gravadora CBS. A produção está sendo feita por Fagner, seu parceiro conterrâneo e amigo” (MOTTA, 1977). Abril e maio foram meses em que o lançamento de Maraponga foi destaque na coluna de Motta. O trabalho de Ricardo Bezerra foi citado três vezes. Em uma delas, como uma das novidades da CBS. Na coluna de 18 de abril foi dito que o disco havia sido lançado no dia anterior (MOTTA, 1978). Na mesma coluna, no mês de julho de 1978, Nelson Motta fez sua crítica sobre o disco:

Ricardo Bezerra. O problema desse cearense parceiro de Fagner em (entre outros) “Cavalo de Ferro” e “Manera Fru Fru”, é que ele tem pouquíssima voz e menos ainda habilidade como instrumentista. Sabiamente, recorreu ao auxilio de Fagner e Amelinha para os vocais, e a um time brilhante de músicos- Hermeto Paschoal a frente como arranjador- como apoio. O resultado- “Maraponga”- é um álbum de tramas delicadas, meios tons suave e fluente, de melodias bonitas e arranjos inspiradíssimos do campeão (quase sossegado, talvez impregnado pela paz das musicas de Ricardo). Um destaque é a nova versão de “Cavalo de Ferro”, tomada ao pé da letra por Hermeto, com auxilio do baixo de Itibirê e da percussão inspirada de Boré (MOTTA, 1978).

No ano seguinte, no mês de maio, o colunista, em uma nota intitulada “Mutirão de pretões”, já nominou o selo Epic, citando que ele pertencia à CBS e que foi criado para lançar novos valores— indicou como já tendo revelado, inclusive, Robertinho do Recife, Amelinha e Ricardo Bezerra. E, posteriormente, citou uma vasta lista de cantores que ainda seriam lançados pelo selo. Todos esses citados eram da região Nordeste e alguns nunca tinham lançado um disco, como Terezinha de Jesus, Petrúcio Maia e Elba Ramalho. Outros já tinham carreiras em desenvolvimento, como Ednardo Jorge Mautner e Paulinho Boca de Cantor (MOTTA, 1979). O que fica evidente ao analisarmos a coluna de Nelson Motta é que os lançamentos do selo Epic eram acompanhados pela imprensa, além de ser perceptível que, em pouco tempo, o selo realmente lançou vários artistas no mercado. Ricardo

10

Bezerra estava entre eles. Parceiro de Fagner em composições e tecladista em shows do cantor, teve o lançamento de seu disco comentado várias vezes pelo crítico. Em depoimento, Ricardo Bezerra disse que não tinha voz para ser cantor e conta a história de Maraponga, que era um sítio no qual morava com a esposa Bete e onde, por diversas, vezes recebia amigos — esse imóvel era um ponto de encontro de artistas. Até que Fagner, que já estava em alta na CBS e com o convite para ser diretor artístico, convidou Ricardo para gravar. Segundo ele, o disco era para ter um lado dele e o outro de Petrúcio Maia, entretanto, os cearenses estavam tão em alta que cada um fez o seu:

[sobre os momentos que tinha que cantar] Aí o Fagner entrava e resolvia lá, para valer, entendeu? E acho que para mim é uma sorte (não cantar bem), porque, talvez, se eu fosse cantor, porque eu acho que a pessoa que canta, ela fica mais mordida pela mosca da fama, de ser estrela, entendeu? Como eu não cantava e também nunca fui um cara que, desde pequeno que eu não quis estudar piano clássico, eu também nunca fui de passar dez horas treinando uma posição, treinando uma música, ou passar dez horas ensaiando um negócio para tocar a perfeição... Porque, na verdade, eu estou convencido disso, o que eu gosto é de compor e, hoje, de compor música (BEZERRA, 2013).

[sobre a gravação do disco] Pois é. Eu vou para o Rio, a gente faz toda a produção do disco com Hermeto e aquela turma. Você conhece o disco? Conhece? E aí eu saio, eu permaneço um pouco mais no Rio, a Bete volta com o Rafael, e eu permaneço no Rio, porque o Fagner me chama para tocar na banda dele, e eu vou lá tocar teclado. Eu toquei com ele no Teresa Raquel, nessa época, que são shows antológicos, que ele fez no Tereza Raquel, e depois, eu viajo para São Paulo, com ele, para fazer uma apresentação no Municipal. Mas aí a Bete voltou e eu quero voltar para casa também. (BEZERRA, 2013).

[sobre o lançamento do disco] Aí eu volto para casa, para Maraponga [sítio], e aí? O disco estava lá, gravado, não tinha saído ainda, e eu estou em um limbo, sem saber como é a vida, nem programação visual, e a música no suspenso, e aí eu faço uma turnê para lançar o disco, o disco sai e faz-se um lançamento incrível aqui, porque nós temos um amigo artista plástico, que chama Zé Tarcísio, eu tenho fotos disso e eu vou fazer o lançamento de disco oficial no José de Alencar, que é um teatro que você deve ir, ao teatro José de Alencar, porque o teatro José de Alencar é o palco de acontecimentos ligados à música daqui, fica no centro da cidade. Você tem que ir lá e visitar. Aí, a gente fez o lançamento, o Zé Tarcísio monta um cenário de Ceará: potes, redes, rendas, tudo que você puder imaginar. Ele vai na Feira de Cascavel e compra metade da feira, traz e bota no palco, foi um super cenário. Lança o disco, acontece aquilo ali, e eu resolvo ir embora. Vou fazer um lançamento, turnê nordestina. Aí saio daqui, do meu fusquinha. A essas alturas, eu consegui comprar, porque eu ganhei um dinheiro com a produção de disco. Aí eu compro um carro, um fusquinha, de novo, e saio daqui, de Fortaleza (BEZERRA, 2013).

11

Os três trechos citados fazem parte da narrativa do artista sobre a gravação e o lançamento do disco e a turnê que fez pela região Nordeste. É somente por meio da História Oral que conseguimos reconstruir esse processo de produção, uma vez que as gravadoras não abrem seus arquivos para que possam ser consultados a respeito do processo de produção dos discos. E por Ricardo Bezerra ser um artista iniciante à época, sua turnê e trajetória artística não eram muito divulgadas pela imprensa, então, cabe à memória o papel de unir pontas soltas sobre a carreira do artista. Em seu depoimento, como já citado, o artista afirmou que não tinha voz para ser cantor — e disse que teve sorte por isso. A “falta de voz” fez com que o artista voltasse para seu estado e investisse na sua carreira acadêmica, na qual obteve sucesso como professor de arquitetura da Universidade Federal do Ceará. Durante a entrevista, o artista relembrou os momentos em que foi tecladista de Fagner, já com carreira em ascensão, e, por último, destacou o lançamento de seu disco e como ele mesmo, sem a ajuda da gravadora, fez a divulgação e os shows para lançá-lo. Fica evidente na entrevista que o passado é espelhado no presente e a reconstrução dessa memória inclui ênfases, lapsos, omissões e esquecimento, com a contribuição do que passou sob olhar do depoente (NEVES, 2006: p. 6). Há ainda evidentes momentos de troca entre entrevistador e entrevistado. Para Daphne Patai:

Sem dúvida, a memória em si é gerada e estruturada de maneira específica, em função da oportunidade de contar uma história de vida e das circunstancias que isso acontece. Em outro momento da vida, ou diante de outro interlocutor, é provável que surja uma história bem diferente, com ênfases diferentes (PATAI, 2010: p. 30).

As mudanças de ênfase em fases diferentes da vida e da trajetória não deslegitimam o depoimento, fazem apenas com que seja mais prazeroso analisar as memórias e suas ressignificações. Para Paul Ricouer, é por meio da memória que articulamos nossas vivências e as transformamos em narrativas. Essa narrativa nos possibilitaria não apenas a noção do passado, como também do presente e do futuro (RICOUER, 2010: p. 140).

12

Observar as memórias do compositor Ricardo Bezerra é, então, a possibilidade de visualizar a história por outro prisma. Não o do artista que ficou mais famoso ou mais conhecido, mas o de um artista que faz parte de um grupo que tem sua trajetória individual e, ao mesmo tempo, pontos ligados ao coletivo. Ricardo Bezerra, como vimos, foi um dos primeiros de uma série de artistas que gravaram pela gravadora Epic. O grupo de artistas que gravou entre as décadas de 1970 e 1980 nominado Nova Canção Nordestina ou Explosão da Música Nordestina, tem em Ricardo Bezerra uma figura importante no início desse momento/movimento musical, tendo produzido um disco considerado referência como projeto autoral e como obra que englobava outros artistas do movimento. Possibilita, assim, partindo de suas memórias, entender um pouco do que foi esse momento da música popular brasileira e de que maneira podemos observar essa história, muitas vezes deixada de lado por críticos e historiadores musicais que relegam da história esse momento/movimento musical brasileiro.

Conclusão Alessandro Portelli ressalta que a elaboração da memória e o ato de lembrar são sempre individuais (PORTELLI, 1996: p. 27). Ao mesmo tempo, os narradores articulam memória, avaliação e relatos em diálogos com os entrevistadores que estão tentando reconstruir uma estrutura mais ampla (PORTELLI, 2010: p. 186). Assim, os entrevistados convidam o entrevistador a focalizar o encontro entre a história e suas vidas, entre mundos privados e eventos mais amplos. (PORTELLI, 2010: p.186). A entrevista de Ricardo Bezerra faz parte de um projeto sobre artistas nordestinos que gravaram discos entre as décadas de 1970 e 1980. Ao mesmo tempo em que faz parte desse grupo, sua trajetória tem uma série de particularidades, portanto, é possível ver no artigo os momentos em que sua trajetória cruza com o grupo e quando se distancia. Diferentemente da maioria de seus contemporâneos, ele seguiu outra trajetória profissional, o que ajuda na reconstrução de sua história musical, uma vez que o interesse do artista é ajudar na pesquisa, talvez em função de também ser um pesquisador.

13

Durante uma hora e quarenta minutos, o artista narrou sua trajetória e interagiu com o entrevistador, fazendo perguntas e dando dicas de entrevistados, locais e de onde fazer pesquisa. Essa interação deixa evidente a particularidade da História Oral, na qual o pesquisador literalmente conversa com a fonte. A entrevista de Ricardo Bezerra não apenas elucida pontos do momento/movimento musical aqui chamado de explosão da música nordestina, como também evidencia pontos de sua trajetória individual e de como o artista enxerga sua trajetória dentro de um contexto geral. Possibilita ainda observar as diversas formas de organização da memória, bem como a troca entre entrevistador e entrevistado.

Referências bibliográficas

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do nordeste e outras artes. SP: Ed Cortez, 2011. ALMEIDA, Juniele Rabêlo de. Práticas de história pública: O movimento social e o trabalho de história oral. In: MAUAD, A.; ALMEIDA, J.; SANTHIAGO(org) História Publica no Brasil Sentido e Itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016. DREYFUS, Dominique. Vida do Viajante: a saga de Luiz Gonzaga. RJ: Ed 34, 1996. DIAS, Marcia Tosta. Suportes e formatos da música gravada na atualidade: o lugar da tradição e as possibilidades de transformação cultural. In: GARCIA, T.; FENERICK, J. Música popular. História Memória e Identidades. São Paulo: Alameda, 2016. HAMBURGER, Esther. Teleficção nos anos 70: Interpretação da nação, In: Anos 70 trajetórias. RJ: Ed Iluminuras LTDA, 2003. NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira utopia e massificação (1950-1980). SP: Ed Contexto, 2004. NEVES, Margarida de Souza. Nos compassos do tempo. A história e a cultura da memória. In: SOIMER, R.; ALMEIDA, M.; AZEVEDO, C.; GONTIJO, R. Mitos, Projetos e Práticas Políticas - Memória e Historiografia. Rio de Janeiro: Ed Civilização Brasileira, 2005. ORTIZ, Ricardo. A Moderna Tradição Brasileira: Cultura Brasileira e Indústria Cultural. SP: Ed Brasiliense, 1988. PATAI, Daphne. História Oral, Feminismo e Política. São Paulo: Letra e Voz, 2010. PIMENTEL, Mary. Terral dos Sonhos (O Cearense na Música Popular Brasileira). CE: Editora Arte Brasil, 2006. PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val diChiana (Toscana: 29 de junho de 1944): mito, política, luto e senso comum. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaina. Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996.

14

PORTELLI, Alessandro. Ensaios de História Oral. São Paulo: Letra e Voz. 2010. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. São Paulo: Martins Fontes, 2010. ROGÉRIO, Pedro. Pessoal do Ceará Habitus e campo musical na década de 1970. Fortaleza: UFC, 2008. SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira. Das origens à modernidade. RJ. Ed 34. 2008. SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo: 85 anos de músicas Brasileiras vol. 1: 1901-1957. RJ: Ed 34. 2006.

Entrevistas

BEZERRA, Ricardo. [Set. 2013]. Entrevistador: Daniel Lopes Saraiva. Fortaleza, 29 de set. 2013. DANTAS, Mirabô. [Jul. 2013]. Entrevistador: Daniel Lopes Saraiva. Natal, 25 de jul. 2013. NILO, Fausto. [Set. 2013]. Entrevistador: Daniel Lopes Saraiva. Fortaleza, 30 de set. 2013.

Reportagens MOTTA, Nelson. O Globo 16 de mar. 1977. MOTTA, Nelson. O Globo. 12 de out. 1977. MOTTA, Nelson. O Globo. 11 de abr. 1978. MOTTA, Nelson. O Globo. 18 de abr. 1978. MOTTA, Nelson. O Globo. 25 de mai. 1978. MOTTA, Nelson. O Globo. 25 de jun. 1978. MOTTA, Nelson. O Globo. 23 de mai. 1979.

Discografia

BEZERRA, Ricardo. Maraponga, 1978. Epic. VÁRIOS ARTISTAS. I Festival de Música Popular Aqui. 1969. Independente.