Luciano Jahnecka

REGIMES DE VISIBILIDADE: A CONSTITUIÇÃO DE FUTEBOLISTAS EM UM FUTEBOL MENOR

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Doutor em Ciências Humanas.

Orientadora: Profa. Dra. Carmen Silvia de Moraes Rial

Coorientador: Prof. Dr. Luiz Carlos Rigo

Florianópolis 2018

Esta tese é dedicada a todos os futebolistas infames, e também para as futebolistas em sua condição atual, eminentemente infame.

AGRADECIMENTOS

Apesar das muitas horas de isolamento no processo de escrita da tese, estas não foram acompanhadas por uma sensação de solidão, mas sim compartilhadas com muitas pessoas. Sabendo que sua conclusão só foi possível mediante o apoio de pessoas, grupos e instituições, sem dúvida nenhuma este processo é muito mais coletivo que individual. As poucas linhas e palavras dedicadas a cada uma delas são uma pequena mostra do privilégio que tive de contar com suas presenças durante este largo processo, meu mais sincero agradecimento. Em primeiro lugar, a Izolina Anita, minha mãe, por seu apoio incondicional e por demonstrar-me com exemplos o protagonismo cotidiano das mulheres. A Luiz Carlos Rigo pelos anos de trabalho compartilhado, responsável pelas coisas boas do processo formativo e pelos diálogos futebolísticos e filosóficos, acadêmicos ou não. A Carmen Rial pela aceitação, os puxões de orelha e convites inusitados que me habilitaram a uma formação qualificada. Por sua leitura atenta, objetiva e crítica, sua paciência e incentivos para pensar alternativas que possibilitassem a conclusão desse longo processo. Aos membros das duas bancas de qualificação, e da banca de defesa: Luzinete Simões, pelas leituras sociológicas interseccionais acompanhadas de carinho e afeto e pela acolhida em sua casa; Alexandre Fernandez Vaz, pela leitura atenta, crítica e respeitosa do trabalho; Caroline Soares de Almeida, pela interlocução nos muitos espaços que estivemos juntes; Fernando Gonçalves Bitencourt, por compartilhar seus conhecimentos futebolísticos e filosóficos; Arlei Damo, por aceitar o convite e servir de referência a este trabalho. À Eliane Pardo, pela acolhida no ―jardim‖ em tempos de reflexão. Às colegas, docentes e funcionárixs do DICH, por compartilhar de uma ética comprometida com a transformação pautada em uma educação pública, qualificada e inspiradora. Foi através desses muitos anos de comprometimento ético da UFSC e de sua comunidade que pude ao longo do período de doutorado, contar com apoio das bolsas CAPES, CNPq e participar das propostas interinstitucionais do IBP e do convênio CAPES-NUFFIC. Seguramente o período sem esse apoio seria muito mais difícil e tortuoso. Foi também na UFSC que compartilhei espaços, dúvidas, anseios e desejos com muitas pessoas queridas. No NAVI: Carol, Mari, Matias, Mônica, Marina, Yuri, Valentine, Adriana, Cristian e Fernando. Em especial, Florianópolis não seria espetacular sem a existência (da baixaria, vulgar sem ser sexy) da ABB e suas agregadas: Bruno, Alex, Anninha, Keo, Pedro, Letícia, Paulão, Nando, Cora, Rari, Sophia, Ric, Marcus, Manu e Marco. Na versão Beagá: Hudson, Patrícia, Rachel, Ana Paula, Maíra, Marcus, Kirlian, Mário e Andrei. Ainda em Florianópolis, dos afetos de Marília e sua família, e das companhias de Nádia, Letícia, Melina e Beto, Cibele, Elsa, Maria Fernanda, Oscar, Paulo, Elias, Olandina, Viviane e Paula. Também do futebol latinoamericano de sexta- feira: Alejo, Ruben, Juan, Gabriel, Oscar, Rafael, Bruno, Virgílio, Felipe, Tito e todes que de alguma forma participaram das ―peleas‖. A Freek Colombijn por sua sagaz leitura acadêmica, pelos seminários e pela capacidade de acolher um estrangeiro fazendo com que me sentisse em casa. Durante o período de doutorado na Vrije Universiteit Amsterdam, não poderia deixar de expressar minha gratidão a Jéssica Greganinch, Margarete Fagundes, Fábio Lima, Tiago, Lula, Chetna Aswal, Ina Keuper, Erik, Alexander, Mijke, Maaike, Marjo, Emine e Annet. Assim como ao grupo da UvA, tutoriado por Niko Besnier, Douglas, Márk, Adnan, Uroš e Daniel. Em Amstelveen, a meus companheiros no AMVJ, jogadores de um futebol menor. Às amigas de longa e de nem tão longa data: Inácio, Helena, Alan, Ícaro, Graci, Gregore, Gregori, Greg, Mateus, Fino, Júlio, Digue e Maria. Assim como, aos afetos das parcerias de trabalho: Viviane e Ileana, decisivas para minha ida ao Uruguai. A Meri Rosane (in memorian) pelos aprendizados e a paciência. Às colegas, amigas e estudantes do Instituto Federal Catarinense em Camboriú pelas gentilezas na acolhida e na despedida. A turma das feministas era demais, mas as outras também. No paísito que me acolheu tão bem, minha inserção profissional e os vínculos afetivos se devem a muitas generosidades. Desde a curiosidade às políticas progressistas do Uruguai até minha chegada em Rivera, o Instituto Superior de Educación Física da Universidad de la República foi o responsável por respaldar meu processo de radicação, assim como de meus/minhas companheiras e possibilitar a ampliação do direito à educação superior pública e qualificada em Rivera, em especial a Paola, Mario Clara, Andrés, Bruno, Federico, Liber, Raumar, Franco, Martin, Camilo, Gonzalo, Ruben, Natalia, Tefa e Loreley. A ANII por conceder o incentivo à pesquisa. Meu especial obrigado às pessoas que fazem do Centro Universitario de Rivera um lugar de encontros e resistências às desigualdades gritantes na/da ―frontera‖. Às funcionárias técnico-administrativas e ao diretor Mario Clara pelo respaldo invisível, mas imprescindível para o funcionamento da universidade no ―interior‖. A mis compas de laburo por el aguante, el cariño y el respecto en la convivencia: Mario, Jesica, Gimena, Ney, Camila, Thiago, Rafa, Dani, Javier, César, Patrícia, Martin, Oscar, Sofía y Ana Laura. A Amaral, Basualdo, Enrique y Flavia por la bienvenida (el agua del Gran Bretaña siempre me hizo bien).

También a: Bianca, Goyo, Ruso, Ruben, Edwin, Maga, Seba, Luis, Sérgio, Álvaro, ―Pollo‖, Berni, Ana Clara, Childre, Seba Gutierrez, Graciela, Érica, Gonzalo, Juan, Gilda, Nacho (junto a Juan y Sofi), Pato, Paula, Mari, Luciana, Maria Laura, Mahira, Ludmila, Gisela, Fernando y Nacho, y la inquietud desafiante de lxs estudiantes. A los equipos del EFI, Se joguemo y Aproximación al Deporte en Mandubí, por creer en una universidad popular. A Analía por me deixar acompanhá-la, pela cumplicidade e afetos compartidos, nossos momentos prazerosos nos encontros do dia-a-dia. Também pela aceitação de sua família, pelo acolhimento e pela maravilhosa comida, Gladis, Darcy, Mauro, Blacky e Gandhi, e toda la barra de La Barra. A Miel, Preto, Patita e Ariel pelos afetos humanos.

Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da ―história universal‖, mas também foi somente um minuto. Passado poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer.

Friedrich Nietzsche, filósofo.

O futebol não está preparado para certos questionamentos.

Wallace Reis Silva, futebolista.

RESUMO

A presente tese aborda a constituição de um futebol menor a partir da interlocução com futebolistas de clubes situados no Brasil, em Portugal e nos Países Baixos. Através de elementos etnográficos multi-situados, verificou-se um distanciamento entre a produção imagética dos futebolistas presentes no tele-espetáculo daqueles visibilizados em escalas locais. A alternância da exposição midiática configura regimes de visibilidade que passam a hierarquizar clubes e futebolistas. Por sua vez, através dos capitais corporais e de visibilidade os futebolistas buscam a circulação profissional mediados por sujeitos (empresários, dirigentes e outros futebolistas) e dispositivos antropotécnicos (vídeos, DVD`s, redes sociais e livros). Em uma condição infame, as carreiras dos futebolistas são abordadas tendo em conta a concretização profissional, sua relação com a fama e o reconhecimento de suas trajetórias de vida. Dessa forma, a carreira e os projetos de vida de futebolistas atuantes em um futebol menor encontram-se pautados pela ―aposta familiar‖ e são reconfigurados em meio a campos de possibilidade dos mercados nacionais e da visibilidade dos futebolistas considerados celebridades globais. A atualização dos ―sonhos‖ de concretização profissional contrasta com a exposição midiática que passou a associar o êxito esportivo com a fama. Em condições dissonantes daquelas imaginadas para a carreira, os futebolistas infames são um exemplo paradigmático para pensar o elitismo midiático e a falácia meritocrática individual contemporâneas.

Palavras-chave: Infame. Futebol menor. Projeto de vida. Visibilidade.

ABSTRACT

This thesis deals with the constitution of a minor football considering the interlocution with footballers of clubs situated in Brazil, Portugal and the Netherlands. Through multi-situated ethnographic elements, there is a gap between the imagetic production of the footballers present in the tele-spectacle of those visible in local scales. The alternation of the media exposure sets up visibility regimes that begin to rank clubs and footballers. In turn, footballers through body and visibility capitals, seek professional circulation mediated by subjects (entrepreneurs, managers and other footballers) and anthropotecnical devices (videos, DVD`s, social networks and books). In an infamous condition, the careers of footballers are approached taking into account the professional concretion, their relation with fame and the recognition of their life trajectories. In this way, the career and life projects of footballers in a minor football are based on a kind of "family bet" and are reconfigured by possibility fields of national markets and the visibility of footballers considered global celebrities. The updating of the "dreams" of professional concretion, contrasts with the media exposure that started to associate sports success with fame. In dissonant conditions of those imagined for the career, infamous footballers are a paradigmatic example to think contemporary media elitism and individual meritocratic fallacy.

Keywords: Infamous. Minor Football. Life Project. Visibility.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Contratação Fabiano Eller ...... 93 Figura 2 - Capa do livro ―Leo: sofrendo e rindo com Leonardo Vitor Santiago‖ . 97 Figura 3 - Reportagem no jornal ―Spits‖ sobre a venda do livro ―Leo: sofrendo e rindo com Leonardo Vitor Santiago‖ ...... 99 Figura 4 - Anúncio sobre a venda do livro ―Leo: sofrendo e rindo com Leonardo Vitor Santiago‖ no jornal ―Spits‖ ...... 99 Figura 5 - Michel Bastos regressa ao clube ―formador‖: articulação entre a vibilidade clubística e do futebolista ...... 102 Figura 6 - Contratação de Guly ...... 103 Figura 7 - Anúncio da ―Taça Pelotas 200 anos‖ ...... 104 Figura 8 - Saída de Cleverson do clube ...... 107 Figura 9 - Romário nos Jogos Olímpicos de Seul (1988) ...... 116 Figura 10 - Notícia da proposta de contrato de Bruno Andrade por clube nos Países Baixos ...... 128

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Relações de interlocução com futebolistas ...... 42

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Contratação de futebolistas brasileiros pelos clubes situados nos Países Baixos ...... 117 Tabela 2 - Transferências de futebolistas brasileiros para Portugal ...... 120

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CBF - Confederação Brasileira de Futebol CFK - Contractspelersfonds KNVB CONMEBOL - Confederación Sudamericana de Fútbol DFB - Deutscher Fussball-Bund FA - The Football Association FFF - Fédération Française de Football FGF - Federação Gaúcha de Futebol FIFA - Fédération Internationale de Football Association FIGC - Federazione Italiana Giuoco Calcio KNVB - Koninklijke Nederlandse Voetbalbond MLS - Major League Soccer RFEF - Real Federación Española de Fútbol UEFA - Union of European Football Associations

SUMÁRIO

1 DO CAMPO TEÓRICO-METODOLÓGICO- EXISTENCIAL: ALGUNS ENCONTROS E OPÇÕES .. 27 1.1 CONSTRUINDO CORPOS ENTRE IGUAIS? INSERÇÃO EMPÍRICA E CONTEXTO HISTÓRICO .... 31 1.2 USOS DA IMAGEM E O CONTEXTO HISTÓRICO DE RECONHECIMENTO DE FUTEBOLISTAS ...... 46

2 CARREIRAS DE JOGADORES FAMOSOS E NÃO- TÃO-FAMOSOS (DOS “POUCO-BADALADOS” AOS “OPERÁRIOS”): A CONSTITUIÇÃO DE ALGUNS FUTEBOLISTAS...... 53 2.1 PRODUZINDO INFAMES: IMAGENS E REPRESENTAÇÕES DOS PROJETOS DE VIDA ...... 63 2.2 TRAJETÓRIAS DA/NA PROFISSIONALIZAÇÃO .. 66 2.3 PREFERENCIAS E OPORTUNIDADES NACIONAIS: ALGUMAS RELAÇÕES ENTRE FUTEBOLISTAS E CLUBES ...... 74 2.4 DAS APOSTAS FAMILIARES: ALGUNS FUTEBOLISTAS INFAMES ...... 78

3 CONSTITUIÇÃO DE UM FUTEBOL MENOR: A EMERGÊNCIA DE UM CONCEITO ...... 87

4 DAS CIRCULAÇÕES MENORES FACILITADAS E INTERROMPIDAS: ALGUNS FUTEBOLISTAS E SEUS (IM)PONDERÁVEIS ...... 111 4.1 FORNECIMENTO DE PÉS-DE-OBRA E CIRCULAÇÃO DE FUTEBOLISTAS POUCO- CÉLEBRES NOS PAÍSES BAIXOS E PORTUGAL ...... 113 4.2 REPRESENTAÇÃO, (ANTI-)HERÓIS E PROJETOS DE VIDA ...... 129 4.3 CIRCULAÇÃO E RELIGIOSIDADE EM UM FUTEBOL PRATICADO POR HOMENS: “FUTEBOL DE MENTIRA” E “FUTEBOL DE VERDADE” ...... 136

5 PINGUINS: CENTROS DE UMA HISTÓRIA OUTRA147

6 POST-SCRIPTUM: SOBRE AS VIDAS INFAMES ..... 155

REFERÊNCIAS ...... 167 27

1. DO CAMPO TEÓRICO-METODOLÓGICO-EXISTENCIAL: ALGUNS ENCONTROS E OPÇÕES

Mi experiencia como jugador de fútbol nunca fue del todo comprendida ni por los espectadores ni por mis compañeros de equipo. A mí siempre me pareció más interesante marcar un autogol que un gol. Un gol salvo si uno se llama Pelé o Didí o Garrincha, es algo eminentemente vulgar y muy descortés con el arquero contrario, a quien no conoces y que no te ha hecho nada, mientras que un autogol es un gesto de independencia. Aclaras ante tus compañeros y ante el público, que tu juego es otro.

Roberto Bolaño, escritor, ―Entrevista, Bolaño por si mismo‖, 2006.

A diáspora latinoamericana setentista do século XX, entre outros deslocamentos, alterou a permanência de artistas, escritores e escritoras e musicistas, principalmente naqueles países que sofreram com as ditaduras civis concretizadas a partir dos golpes militares. Entre estes deslocamentos, quando possíveis de serem realizados, encontramos o percurso feito entre o Chile e México, como atesta a trajetória de vida do escritor Roberto Bolaño. A exemplo do escritor latinoamericano, como Bolaño se autodeclarava, muitos foram e são influenciados pelos selecionados nacionais tendo como ídolos os futebolistas1. Ironicamente, a preferência por marcar um ―gol contra‖ parece assinalar uma vanguarda no futebol ainda inexistente, tal como praticou Bolaño ao participar do movimento literário denominado ―infrarrealismo‖, também conhecido por ―realismo visceral‖. Ao questionar alguns grandes expoentes literários e suas pretensões de perdurar por muitas gerações como grandes escritores, este pequeno gesto de uma literatura marginal expunha as debilidades das imagens icônicas de um tempo2.

1 Referimos como futebolista para tratar de uma categoria profissional mesmo que a categoria êmica utilizada seja ―jogador de futebol‖. Embora muitos não se intitulem desse modo, optamos por evidenciar a existência de relações trabalhistas que condicionam suas práticas.

2 Como as críticas feitas a Octavio Paz, importante escritor mexicano. Para saber mais de Roberto Bolaño e do movimento Infrarrealista, procurar Mac Auliffe (2012) e Bolognese (2009). 28

Possivelmente influenciado por certo furor das conquistas do selecionado nacional brasileiro nas edições anteriores da Copa do Mundo de Futebol na sua versão praticada por homens, tenha feito o jovem Bolaño vivenciar com entusiasmo sua recente chegada ao México no final da década de 1960, véspera da competição em 1970. Além de terem se tornado referências nacionais, Garrincha, Pelé e Didi até hoje são lembrados como ídolos indiscutíveis para contextualizar o futebol enquanto uma prática global e de grande aceitação popular. Exercida nos contextos locais, a aceitação do futebol e sua massificação transcorrida e ampliada ao longo do século XX, evidenciaram o interesse crescente por parte dos Estados-nação em associar as vitórias dos selecionados, organizados e administrados por associações filiadas a FIFA, com os supostos êxitos dos governos locais. Ademais, os reforços de uma identificação em relação à nacionalidade a partir das conquistas e vitórias no campo esportivo fortaleceram certa unidade nacional para além dos territórios (largamente simbólicos) de um Estado-nação. A respeito destas relações tomamos como exemplo a seleção ―brasileira‖ da Copa de 1970, a seleção ―argentina‖ de 1978 e a seleção ―chilena‖ de 1974, todas noticiadas com alguma cooptação por parte de seus respectivos regimes ditatoriais. Os dois primeiros exemplos mais justificáveis através da relação com os êxitos esportivos forneceram ídolos para uma adulação coletiva de caráter nacional e nacionalista. Por sua vez, os futebolistas, nem sempre conseguiram perceber o contexto político no qual se encontravam e dos usos feitos de suas imagens a partir da prática do futebol – bem como poderíamos citar tantos outros sujeitos, entre estes escritoras, escritores, musicistas e artistas. Em muitos casos omitindo-se ou minimizando a importância de sua participação na política institucional, entretanto, as imagens e representações de futebolistas não foram nem um pouco desprezadas pelos agentes de Estado. Ao contrário de Bolaño, perseguido e preso durante sua curta estadia no Chile em 1973, o futebolista chileno Carlos Caszely não fora interrogado diretamente. Este último recusou-se a saudar o militar colocado como presidente, Augusto Pinochet, no momento de seu embarque para a Copa de 1974 realizada na Alemanha. Em consequência ao seu gesto, a mãe do futebolista foi torturada e interrogada sob a suspeita de discordar do regime de governo vigente no país3. Quanto aos usos políticos, apesar de não fazer qualquer alusão à política institucional e aos usos imagéticos dos futebolistas, a ironia feita por

3 OS REBELDES DO FUTEBOL. Direção: Gilles Perez, Gilles Rof. França. ARTE France, 13 Productions, 2012. DVD. 29

Roberto Bolaño na epígrafe acima citada destaca sua condição infame (não- famosa) e a importância conferida e amplamente aceita de certos futebolistas. De certo modo, em uma condição privilegiada para justificar um ―gol contra‖ diante da situação, Carlos Caszely assinalou seu ―gesto de independência‖ ao utilizar seu descontentamento para desestabilizar os acordos pré-estabelecidos de poder que estavam colocados naquele momento. Através de uma leitura historiográfica que recorre a uma construção semelhante a muitas metanarrativas (eurocêntricas), Georges Minois (2012) distingue as formas de aceitação, reconhecimento e exaltação de personagens ao longo de períodos históricos aceitos na literatura ocidental (gregos, romanos, medievo, modernidade, etc.). Tais personagens, contemporaneamente chamados de celebridades, assumem papéis de protagonismo transformando-se em ícones de seu tempo. Apesar da leitura desiludida com a transformação histórica das celebridades, o autor sugere a multiplicação e fragmentação das referências icônicas atuais onde podem ser encontradas inúmeras esportistas, entre elas futebolistas. Se o excesso, a efemeridade e a pulverização das personagens históricas caracterizam aquilo que Minois (2012) adjetiva como um tempo cacofônico, nesta tese tomamos como modelo algumas imagens produzidas de futebolistas para problematizar algumas relações com a ―fama‖. Um modelo repetitivo centrado na articulação de um capitalismo global, mas que nem por isso deixa de ter implicações locais nas condições materiais, e, portanto subjetivas de apropriação, ressignificação e experimentação da multiplicação de imagens relacionadas ao futebol. Esta relação contemporânea com a fama está explicitamente problematizada no terceiro capítulo, sobre o conceito de futebol menor4 intitulado ―Constituição de um futebol menor: a emergência de um conceito”. Ao contrário de um encantamento exercido pelos/aos grandes futebolistas, destes que são mais dignos de nota, optamos nesta tese abordar a constituição daqueles menos visíveis, mas que ainda assim se encontram em regimes privilegiados de visibilidade, acessados de tempos em tempos por flashes, e por relações midiáticas de poder. Apesar de obedecer a certa hierarquia em consonância com seu tempo pautada em discursos e instituições,

4 Assinalamos provisoriamente a noção de ―futebol menor‖ a partir do encontro com fontes empíricas e de parte da literatura especializada. Em relação às fontes empíricas, a Revista dos Esportes (1951), publicação local da cidade Pelotas, dedicava uma seção titulada como ―Futebol Menor‖, refirindo-se aos clubes com inserção local, e conforme aufere Luiz Carlos Rigo (2004, p.175), ao ―futebol da cidade não pertencente a primeira divisão‖. 30

a constituição destes futebolistas atua ao praticar este ―outro jogo‖ eminentemente vulgar e cotidiano. O ―outro jogo‖ destes futebolistas nem por isso merece maior reconhecimento dentro do jogo constituído, organizado e administrado pela FIFA e suas instituições filiadas. Foi interessado nesta condição de menor visibilidade que iniciamos a tese questionando como se dá a constituição de alguns futebolistas em meio a uma carreira profissional? Como são utilizadas as imagens pelos próprios futebolistas, que apesar de privilegiadas, produzem zonas de in/visibilidade? Qual a relação de alguns futebolistas com a fama? Ao longo da trajetória destes questionamentos, inicialmente tomamos o conceito de infame como uma forma de pensar as condições dissonantes entre os futebolistas. Recorremos ao texto de Michel Foucault (s/d) sobre as vidas brevemente escritas e resumidas a relatórios psiquiátricos e policiais, tratadas pelo autor como infames. Além das poucas linhas dedicadas ao ―aparecimento‖ destes sujeitos, Foucault sugere a incompatibilidade com valores de uma época. Algo um tanto distante da produção imagética feita aos futebolistas como abordamos especialmente ao longo do quarto capítulo intitulado ―Das circulações menores facilitadas e interrompidas‖. Ao colocar sob questão o uso de um conceito, como fizemos para analisar algumas trajetórias que através da interlocução foram compondo narrativas, nossas opções teórico-metodológicas consideraram este conceito de infâmia. Mesmo nos casos míticos de Jorge Luis Borges (1999), as descrições de vidas opacadas pelos valores de seu tempo repercutem com alguma notoriedade e chegam a tangenciar as invisibilidades de muitos futebolistas (pouco-célebres) que de tempos em tempos adquirem certa visibilidade. Portanto, não encontraremos ressonâncias para poder analisar sob a ótica da subversão de valores de seu tempo, ou seja, de uma história não- reconhecida, ou ainda, desprezada por seu tempo, as trajetórias de vida destes futebolistas considerados aqui como pouco-famosos, sinônimo de infame. No que se refere à forma pela qual os futebolistas adquirem, transformam e atualizam suas visibilidades, também estamos colocando sob análise quais são as invisibilidades. Em quais espaços e de que forma as (in)visibilidades são re-apresentadas. Logo, pensamos a partir daí a composição de um futebol menor, composto de singularidades através das quais poderíamos situar muitos futebolistas5.

5 Em relação à diferenciação menor, nos referimos às relações de poder existentes no contexto do futebol ―profissional‖, onde uma maioria de futebolistas são aqui referidos como minorias no que se refere ao reconhecimento e visibilidade. Guardadas as devidas proporções e as análises relativas à literatura, uma possível leitura para abordar o tema da minoridade pode ser encontrada em: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, 31

Inicio a tese problematiazando minhas estratégias metodológicas, aqui se incluem tanto as posições que tomei no trabalho de campo (utilizando a participação observante ―a partir do corpo‖, Loïc Wacquant, 2002), quanto um modo de leitura do ―material empírico‖ que diz respeito ao cruzamento com fontes ―imagéticas‖ (reportagens de jornal, notas divulgadas nos sites dos clubes, vídeos no youtube, reportagens de programas televisivos), isto que pretendo chamar de ―regimes de visibilidade‖ dentro de um contexto de futebol pouco visível, ou ainda, menor. Diante das opções teórico-metodológicas, privilegio a análise das práticas religiosas que encontrei em cultos e estudos bíblicos, exclusivamente acompanhadas durante minha estadia nos Países Baixos, bem como as aproximações geracionais, de nacionalidade e de gênero, que me levaram à concentração de um dos clubes e a hospedagem na casa de um jogador em Portugal.

1.1 CONSTRUINDO CORPOS ENTRE IGUAIS? INSERÇÃO EMPÍRICA E CONTEXTO HISTÓRICO Em primeiro lugar, ao começar o esboço da composição disto que estamos chamando de futebol menor, composto por futebolistas pouco- famosos, ou ainda, pouco-célebres como trataremos no segundo capítulo intitulado ―Carreiras de jogadores famosos e não-tão-famosos (dos 'pouco- badalados' aos 'operários'): a constituição de alguns futebolistas‖, tomamos em conta as dimensões icônicas relacionadas aos futebolistas frequentemente potencializadas através do êxito esportivo com repetitivas reproduções e a ampliação das incessantes transmissões midiáticas (como atesta o aumento na quantidade de canais exclusivamente destinados às transmissões esportivas)6. De imediato, se percorrermos a trajetória da constituição dos futebolistas no Brasil, perceberemos profundas e tensas disputas étnico-raciais até hoje pouco resolvidas, por exemplo, através da ausência de negros nas posições de gerência do espetáculo esportivo, sejam eles ―técnicos‖ e/ou ―dirigentes‖, ao menos no Brasil. Disputas estas que dizem respeito a uma composição étnico-racial na formação do Estado-nação e de alguns elementos

Félix (1977).

6 Para saber mais sobre a espetacularização do esporte e sua tele-espetacularização, ver: VIGARELLO, Georges. Estádios: O espetáculo esportivo das arquibancadas às telas. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do Corpo. Vol. 3 As Mutações do Olhar: O Século XX. Petrópolis: Vozes, 2008. pp. 445- 480. 32

étnicos e raciais que compõem o país. Ao contrário de muitas experiências de exploração e discriminação profissional, os futebolistas, ao menos no Brasil, gozam de certa importância e visibilidade no cotidiano de milhões de pessoas. Conhecidos popularmente como ―jogadores de futebol‖, mas aqui tratados como futebolistas, estes sujeitos tencionam o modo de exercício de uma profissão e a relação contemporânea com o trabalho ao exemplificar através de um modo de vida bastante singular a diluição das fronteiras entre trabalho e lazer, jogo e esporte, profissão e hobby, prazer e obrigação. Certamente as imagens da atuação destes constituíram parte importante de certa unidade relativa à identidade nacional e ao pertencimento a um Estado-nação, como já destacamos acima. Principalmente ao fortalecer a construção de uma coerência a partir do momento no qual se passou a relacionar as vitórias do time representativo e administrado pela CBF (sugestivamente chamado de ―seleção brasileira‖) com um sentimento de pertencimento nacional, assim conformado pela moderna forma de controle territorial disposta em Estado-nação. Este momento, dilatado ao longo do século XX, consolidou a prática do futebol como algo a ser praticado, mas particularmente a ser observado, em última instância espetacularizado e, como argumentamos ao longo do texto, tele-espetacularizado, especialmente nos dois capítulos subsequentes. O futebol e os futebolistas (muito mais do que as mulheres futebolistas) atuaram ao longo dos tempos de modo à pedagogizar modos de existência e transformar o legível em visível, e vice-versa. Legível no sentido de configurar um sujeito a ser lido de certa maneira, consagrado por conquistas e acontecimentos transformados em épicos e, portanto, em concordância com uma história reconhecida por seu tempo. Visível, entendido não somente pela multiplicação de suas imagens nos mais diversos meios de comunicação, mas também pela presença em um imaginário social supostamente homogêneo e comum às vidas mais ordinárias através do qual se tornaram legítimas e, até mesmo, necessárias suas exposições. Diante desta oscilação, entre o visível e o legível, tal como César Guimarães (1997) analisa a relação entre produção de imagens e formação de memórias, procuramos nesta tese questionar condições de existência em meio a uma história reconhecida por seu tempo e analisar as trajetórias de vida não apenas como algo confluente e delimitado por questões de identificação. Através desta opção nos distanciamos daquelas narrativas que procuram reduzir à experiência ao Ser, ou ainda, das análises que tomam uma trajetória como algo congruente, linear e cercada de identidades. A nosso ver, estas leituras cerceiam as experiências não compreendendo a constituição dos sujeitos em meio às experiências, ao modo como algumas críticas feministas 33

tem apontado (ver, por exemplo, Joan W. Scott, 1998). Entre tantas imagens produzidas e reconhecidas relativas aos futebolistas (amplamente mais difundidas se comparadas às mulheres futebolistas), quais são as singularidades de algumas trajetórias em meio às condições afetivo-materiais, mais ou menos próximas, desta prática ―profissional‖? De que maneira foi se constituindo um modo pelo qual certas trajetórias de vida foram sendo consideradas mais válidas que outras? Quais rupturas e consonâncias demarcam processos de subjetivação tão desiguais, mas ao mesmo tempo tão próximos uns dos outros? Neste jogo político de análise de algumas constituições em meio a experiências, confrontamos tais questionamentos com certo corpo teórico e empírico privilegiando: 1. O uso das interlocuções para construção do texto, constituídas por entrevistas semiestruturadas e ―resenhas‖ (conversas informais) com futebolistas em clubes situados no Brasil, particularmente no Rio Grande do Sul, em Portugal e Países Baixos. Opção esta composta por mais de 80 sujeitos ao longo da pesquisa, em sua maior parte futebolistas ―profissionais‖, além de assessores e assessoras de imprensa, fisiologista e mulheres, esposas de futebolistas, sendo que deste total, escolhi apenas 13 futebolistas para manter relações de interlocução ao longo da pesquisa (encontram-se no Quadro 1, mais abaixo); 2. Publicações em jornais, revistas, meios digitais como os sítios dos clubes e federações relativas a alguns futebolistas, interlocutores ou não; 3. Vídeos com acesso disponível em rede ou cedidos pelos próprios futebolistas; 4. Diário de campo e a prática do futebol em um clube das divisões amadoras situado nos Países Baixos. Passamos a analisar ao longo da tese um modo de vida que não pressupõe necessariamente atingir reconhecimento, tampouco a visibilidade daquilo que seria/é um ―verdadeiro‖ futebolista, daqueles que fazem parte disto que estamos chamando de um regime de visibilidade menor. Isto significa fazer funcionar a leitura de algumas narrativas compostas a partir de experiências e do modo como às interlocuções ocorreram, diante das suas limitações, lacunas e possibilidades. Este modo singular de se relacionar com o futebol fica explicitado ao longo do quarto e quinto capítulos, respectivamente intitulados ―Das circulações menores facilitadas e interrompidas‖ e ―Pinguins: centro de uma história Outra‖. Assim, pretendemos problematizar algumas representações de futebolistas brasileiros de clubes situados na ―Europa‖, bem como pensar casos paradigmáticos daqueles que optaram por abandonar uma carreira em meio ao futebol, ou ainda, daquelas trajetórias profissionais transformadas a partir do 34

futebol, como o caso de algumas mulheres. No que se refere à constituição de um futebolista, esta é exercida mediante muitas horas de treinamento, como é possível pressupor e como alguns trabalhos demonstraram7, sendo também feita pela incorporação de um etos futebolístico através da negociação com empresários, nas sociabilidades masculinas em concentrações e vestiários, com códigos de masculinidade específica destes espaços, normas de conduta que inculcam maneiras de se relacionar com os outros e consigo mesmo. Foi a partir da interlocução que percebemos como se adestra e modela o corpo e seus gestos, e de que isto não basta para descrever como um sujeito possui ou incorpora elementos para uma determinada ―técnica corporal‖ (Marcel Mauss, 2003) formatada em meio a relações socioculturais. Quanto às indicações metodológicas utilizamos uma modificação significativa na maneira com que se conduz uma pesquisa acadêmica. Tomamos como indicativo aquilo que Loïc Wacquant (2002, p.13) sugere como uma relação metodológica a partir do corpo (―from the body‖). Isto significou assumir condições a partir das quais um corpo (o meu em relação a outros e em relação a ele mesmo) estabelecia relações e fora percebido durante o trabalho de campo em relação aos outros (interlocutores). A partir de alguns elementos etnográficos, como os citados acima, realizamos uma etnografia multi-situada (George Marcus, 1995). Multi-situada porque acompanhamos as trajetórias de alguns futebolistas, assalariados ou não, em regime contratual ou não, utilizando algumas redes sociais e de contatos face-a-face de tempos em tempos. Também me utilizei da ―experiência‖ que tive por ter participado das atividades de um clube ―amador‖ nos Países Baixos tendo como rotina treinamentos e jogos durante sete meses de um total de doze nos quais residi nos Países Baixos8. Foi a partir do corpo que pude tomar contato com diferentes espaços e sujeitos que mantinham alguma relação com o futebol. Dentre estas: futebolistas e suas esposas, treinadores, jogadores não- assalariados e pastores de uma igreja brasileira neopentecostal nos Países Baixos. Somada a isso, a inserção no contexto futebolístico local tem como antecedente minha trajetória pessoal com relação à prática do futebol

7 Ver, por exemplo, a análise etnográfica da formação de futebolistas no Brasil e na França feita por Arlei Damo (2005).

8 O conceito de experiência está sendo utilizado tendo como referência o uso que Jorge Larrosa (p. 91, 2006), o qual reconhece o sujeito a partir de suas afetações e sensibilidades para produzir saberes, um sujeito da experiência. 35

imprescindível para uma fácil inserção nas sessões de treinamento e na interpretação dos significados atribuídos ao futebol nos contextos estudados. Procuramos ao longo da interlocução assumir algumas condições corporais estabelecidas em meio a relações entre sujeitos. Buscamos evitar os resquícios de uma tradição científica positivista onde uma pretensa neutralidade procura isolar a/o pesquisador/a das suas intervenções nas relações criadas a partir de sua inserção nos contextos ―empíricos‖ e distinguir através da clássica oposição entre sujeito/objeto, e mais que isso, como se ―colocar em campo‖, interpretar, analisar, fazer questionamentos, utilizar e transformar conceitos, e construir uma narrativa a partir da qual toma materialidade uma tese.

A ideia antropológica de cultura coloca o antropólogo em posição de igualdade com o nativo, ao implicar que todo conhecimento antropológico de outra cultura é culturalmente mediado. Tal igualdade é, porém, em primeira instância, simplesmente empírica ou de fato: ela diz respeito à condição cultural comum (no sentido de genérica) do antropólogo e do nativo. A relação diferencial do antropólogo e o nativo com suas culturas respectivas, e portanto com suas culturas recíprocas, é de tal ordem que a igualdade de fato não implica uma igualdade de direito — uma igualdade no plano do conhecimento. O antropólogo tem usualmente uma vantagem epistemológica sobre o nativo. O discurso do primeiro não se acha situado no mesmo plano que o discurso do segundo: o sentido que o antropólogo estabelece depende do sentido nativo, mas é ele quem detém o sentido desse sentido — ele quem explica e interpreta, traduz e introduz, textualiza e contextualiza, justifica e significa esse sentido. A matriz relacional do discurso antropológico é hilemórfica: o sentido do antropólogo é forma; o do nativo, matéria. O discurso do nativo não detém o sentido de seu próprio sentido. De fato, como diria Geertz, somos todos nativos; mas de direito, uns sempre são mais nativos que outros. (EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.114-115)

Tomando em conta certos limites na interlocução, problematizamos uma dimensão de corporalidade que parte de uma inserção empírica pautada por relações corporais. Assim, por vezes fui reconhecido como um jornalista nos primeiros contatos pela maneira através da qual estabeleci relações. Principalmente ao recorrer ao registro das entrevistas com câmera e/ou 36

gravador, em algumas situações através do contato institucional dos assessores de imprensa dos clubes e mesmo através da mediação feita por outros futebolistas, o modo como se deu os primeiros contatos com os interlocutores assemelhou-se aos registros midiáticos, como comentaram alguns interlocutores. Tendo em consideração as muitas críticas feitas ao jornalismo esportivo feito de maneira superficial por parte destes interlocutores, entre elas a pontualidade dos interesses, principalmente quando próximos de um acontecimento considerado importante envolvendo jogos com interesse massivo, esta não fora a melhor atribuição de significado para a interlocução. Mesmo porque nos contatos dos futebolistas com jornalistas existiam muitas relações de troca das quais não faziam parte nossos acordos. A mais imediata dentre elas, a publicização imagética de discursos, fotografias e/ou vídeos nos meios de comunicação. Apesar da relativa familiaridade com muitos dispositivos tecnológicos, como câmeras, microfones e gravadores, em alguns casos, mesmo tendo em dúvida a possível utilização da entrevista para a pesquisa, quando a entrevista se encerrava iniciavam as ―resenhas‖ (conversas informais) onde se tratava de uma conversa de corpos percebidos como iguais: homens, jovens, identificados pelo gênero e de sexualidades aparentemente hegemônicas. Isto significou, em certos momentos, a aproximação com temas pouco debatidos, ou omitidos durante uma entrevista, mesmo que esta tivesse um teor mais aberto de diálogo. Entre estes temas podemos citar as relações extraconjugais, homosociabilidade e contratos com empresários. Nas relações mantidas com maior frequência e aproximação, em grande medida por estes elementos de aparente igualdade de identificação, mas também por escolhas metodológicas, ingressei naquilo que podemos denominar como o ―espaço privado‖. Nestes casos fui avaliado como um par em potencial ao receber, por exemplo, um convite para participar de uma espécie de ―jogo‖ com alguns ―boleiros‖ 9. Convite este feito por um de meus interlocutores como uma forma de retribuir à importância dada a entrevista e ao interesse de um ―pesquisador‖. Ao mesmo tempo em que avaliava e comparava os capitais corporais (Loïc Wacquant, 2002) e futebolísticos dos demais futebolistas com o meu. Evidentemente, ao longo de um jogo entre ―boleiros‖, demonstrava-se o quão significativas são as diferenças entre a prática esporádica do futebol (no meu caso), dos treinamentos diários exercidos ao longo de anos por futebolistas.

9 Remete à ―bola‖, uma referência empírica aos futebolistas, auto-referida no momento de parte das entrevistas. 37

A prática do futebol eminentemente corporal é exercida quase diariamente em todos os casos com os quais mantive contato através de interlocutores em alguns clubes-locais situados no Rio Grande do Sul, Países Baixos e Portugal10. Ao longo de uma semana de treinamento, na maior parte dos casos, apenas um dia é reservado a inatividade. Em parte, para atender as demandas trabalhistas de legislação a partir da ―Lei Pelé‖ (BRASIL, 1998), mas também para cumprir funções eminentemente simbólicas sobre o ―descanso‖. Em muitos outros casos esta fabricação corporal se dá em dois turnos de ―trabalho‖. Nesta comparação, a noção de capital corporal elaborada por Loïc Wacquant (2002, p.119), e especificamente, de capital futebolístico (Arlei Damo, 2005), demonstra o quão significativo é o processo de transformação e a incorporação de gestos úteis a determinadas práticas. Assim, de modo a passar por uma formatação que se dá também, mas não só exclusivamente pelo corpo, os futebolistas com quem mantive contato assinalavam as distâncias ante os capitais corporais e futebolísticos daqueles praticantes esporádicos ou sazonais, como era o meu caso. Esta forma de troca, retribuição e comparação, estava confrontada com os capitais corporais (futebolísticos) e sociais exercidos por futebolistas e um ―pesquisador‖. Ao mesmo tempo em que fora percebido como alguém ―com estudos‖ vinculado a uma instituição tão seletiva e restrita como é vista a universidade, o capital social de um ―jornalista‖ e/ou ―pesquisador‖ poderia fazer funcionar a ―circulação‖ de imagens e, quem sabe de pessoas, através dos contatos institucionais que estabeleci com clubes situados nos Países Baixos. Com este exemplo, chamo atenção para as condições distintas pelas quais clubes situados em Portugal oferecem profissionalmente se comparadas ao imaginário de solidez e desenvolvimento econômico com os quais os clubes situados nos Países Baixos são percebidos. Como comentou um dos futebolistas em Portugal após minha solicitação de seu material em vídeo: ―vá que dê alguma coisa‖, referindo-se a possibilidade de ser visto por ―alguém‖ nos Países Baixos. Este modo de relacionar-se com os ―capitais‖ sejam eles corporais e/ou sociais, apresenta-se como uma das leituras possíveis para entender a rede de

10 Em complemento ao que Carmen Rial (2008) denomina como clubes-globais, chamo de clubes-locais aqueles clubes que não mantém uma presença constante nos grandes meios de comunicação, mesmo que de tempos em tempos possam ter alguma visibilidade nestes mesmos meios. Desta forma, os clubes-locais compartilham sua presença nos meios de comunicação com estes que atravessam constantemente fronteiras territoriais por sua importância na constituição de uma visibilidade global da qual goza o futebol. 38

conexões estabelecidas entre os futebolistas com os demais sujeitos que circulam nos espaços diários dos clubes. Capitais sociais e corporais também disputados internamente nos clubes. Em minha curta permanência em um dos clubes do Rio Grande do Sul, presenciei as disputas entre um saber empírico, exercido pela incorporação desse etos e de um capital corporal por futebolistas aposentados que no momento ocupavam cargos de comissão técnica, e um saber científico e acadêmico daqueles profissionais com formação universitária e ―pouca experiência‖ no futebol ―profissional‖ 11. Antigas disputas entre ―teoria‖ e ―prática‖ permeando as relações de trabalho no futebol. Esta dimensão de distanciamento também foi assimilada pelo que minha presença aparentemente representava naquele espaço, uma vez que, utilizando de meu capital cultural fui solicitado a utilizá-lo para esboçar um diálogo em forma de ―brincadeira‖ com um dos integrantes da comissão técnica. Esta consistiu em esboçar um diálogo em inglês mesmo que meu interlocutor não compreendesse minhas questões. A partir daí fui visto como alguém com ―estudos‖ e detentor de um capital cultural exercido pela linguagem e pelo conhecimento, assim como reconhecido como um ―par‖ por um fisiologista com formação universitária e com conhecimentos teórico-práticos de um especialista. O que significou também o distanciamento daqueles futebolistas mais intimidados com a educação formal em um contexto onde grande parte não havia concluído o nível secundário na educação formal. Foi também através da percepção de minha corporalidade em uma relação de interlocução (principalmente por alguns elementos de gênero e geracionais) que fui convidado em dois momentos para frequentar os espaços nos quais as práticas e sociabilidades são exercidas ―fora do campo‖ e dos treinamentos. Assim, fiquei hospedado na casa de um dos interlocutores em Portugal. O que diferiu potencialmente da experiência de participar da sociabilidade feita na moradia dos futebolistas no estádio de um clube ao qual estava um interlocutor no Rio Grande do Sul, numa espécie de regime de confinamento. Alguns elementos identificam e demarcam uma corporalidade que tornou possível a inserção nestes espaços fortemente marcados por uma

11 Optamos por utilizar a categoria êmica de ―profissional‖ para referirmos aquelas instituições inseridas no modelo de ―futebol espetacularizado‖ segundo Arlei Damo (2005). Os clubes de futebol nomeados como ―profissionais‖ são aqueles que segundo o autor obedecem 3 características diferenciadoras de outros modelos de prática do futebol, são estas: a. exercício legitimado do controle das atividades pela FIFA e suas filiadas; b. divisão social e especialização do trabalho; c. busca pela excelencia da performance e demanda por interesses do ―público‖. Ainda que, foi possível perceber a transitoriedade dos futebolistas para outros modelos sugeridos pelo autor: futebol de bricolagem e futebol comunitário. 39

sociabilidade masculina hegemônica assentada em uma norma heterossexual. Esta espécie de diálogo sem a necessidade de colocar os discursos para o sujeito, ou ainda, dos muitos discursos que são pré-discursivos ou que antecedem os sujeitos, de certa forma me colocaram em posições talvez inacessíveis a outras corporalidades. Por outro lado, delimitaram minhas interlocuções com as mulheres, esposas de alguns futebolistas, pois estas foram todas às vezes intermediadas por estes últimos. Em Rotterdam, por exemplo, cidade situada nos Países Baixos, apesar de minhas inúmeras insistências, não obtive qualquer consentimento para poder entrevistar ou tomar contato com Sandra12 – a brasileira responsável por receber e administrar a casa oferecida aos jovens futebolistas contratados por um dos clubes da cidade. Além da questão de gênero e geracional (pois ela se encontrava por volta de 50 anos), a identificação de ―um pesquisador‖ também dificultou qualquer tipo de diálogo com Sandra, conforme comentou o interlocutor responsável por colocar-nos em contato. Em um primeiro momento fui solicitado a contatá-la novamente após uma viagem que faria ao Brasil. Após este período, não obtive qualquer consentimento para manter uma conversa pessoalmente. No caso da tentativa desta interlocução, não identifiquei quais eram os vínculos de Sandra com o clube, mas o que possivelmente fez com que uma brasileira fosse a responsável por administrar a casa mantida pelo clube foi a quantidade de jovens brasileiros contratados pelo clube. Entre 1995 e 2008 foram 12 brasileiros contratados pelo clube, destes 10 foram para o primeiro clube europeu de suas carreiras e no momento de sua contratação tinham entre 18 e 21 anos, com a exceção de uma ―contratação‖ feita aos 12 anos de idade. Além desta relação de interlocução que se estabelece a partir de elementos discursivos estruturados (gênero, geração, sexualidade, entre outros), aqui também é válido lembrar as condições de muitos ―migrantes‖ constantemente confrontados com políticas migratórias restritivas à sua permanência no ―contexto europeu‖. Esta última é outra hipótese para estabelecer algum tipo de interlocução com Sandra, pois em outros contatos que mantive nos Países Baixos com brasileiras foi possível identificar os tensionamentos quanto às questões de legalidade e ilegalidade, formas de permanência no país e remuneração do trabalho informal. Já no contexto das interlocuções, de um total de 9 futebolistas brasileiros com os quais tomei contato nos Países Baixos, todos afirmaram um trânsito repentino para o país, sendo que da proposta feita pelo

12 Nome fictício. 40

clube/empresário até sua contratação e consequente regulação quanto a sua permanência no país eram transcorridos não mais do que 20 dias. Apesar de não poder mencionar os casos onde a transferência não foi concretizada, a decisão sobre a migração dos interlocutores aos clubes situados nos Países Baixos não tomava demasiada atenção sobre as condições legais de ingresso e permanência como em outros casos sob o rótulo geral de ―migrantes‖. Portanto, uma condição de ingresso amplamente facilitada e realizada pelos clubes e/ou empresários. Por outro lado, minha condição étnico-racial em um contexto migratório também tornou próxima a relação com os futebolistas brasileiros nos Países Baixos, onde pude participar de cultos e ―estudos bíblicos‖ de tradição cristã, organizados e frequentados por brasileiros. Em dois contextos distintos marcados pelo momento de ingresso no país, um grupo de futebolistas participava dos cultos institucionalizados de uma igreja neopentecostal, enquanto outro intitulava essa forma de reunião de ―estudos bíblicos‖. Também divergiam os locais de realização dos encontros, enquanto este último realizava-se apenas na casa dos futebolistas, circunscrito à participação de futebolistas e seus familiares, o primeiro, aconteceu também nos espaços mais íntimos como nas casas de futebolistas. Todavia, de maneira institucional em salas de conferências de hotéis com um público não restrito aos futebolistas, apesar de muitas relações se darem a partir do futebol. Conforme é possível perceber, nossos contatos foram fortemente marcados por questões de representação e identificação. Além disso, estava em disputa uma concepção pouco acabada de jeito, modo ou de uma ética corporal, como lidamos com o corpo e das relações que este estabelece com aquilo que o cerca. Esta marca de uma corporificação dos sujeitos está cercada de elementos culturais que se leem e que se veem, todavia permanentemente cheia de fraturas. Assim, a corporalidade através das imagens mediadas e produzidas dentro de um contexto (midiático, portanto social) que privilegia uma narrativa mais ou menos unânime daquilo que seria um ―ser jogador de futebol‖ se encontra demasiadamente pautada pelas continuidades de um sujeito, mais do que por suas rupturas. Pensar e problematizar as narrativas concernentes aos futebolistas interlocutores significa colocar em questão esses modos de se ver e de se ler. Digamos então que a antropologia se distinga dos outros discursos sobre a socialidade humana não por dispor de uma doutrina particularmente sólida sobre a natureza das relações sociais, mas, ao contrário, por ter apenas uma vaga ideia inicial do que seja uma relação. Pois seu problema característico consiste 41

menos em determinar quais são as relações sociais que constituem seu objeto, e muito mais em se perguntar o que seu objeto constitui como relação social, o que é uma relação social nos termos de seu objeto, ou melhor, nos termos formuláveis pela relação (social, naturalmente, e constitutiva) entre o ‗antropólogo‘ e o ‗nativo‘. (EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 122).

Diante destas relações, colocamos sob análise ao longo da tese as noções de ―carreira‖ e ―status‖ (Everett Hughes, 1993), ―projetos de vida‖ (Gilberto Velho, 1999), e ―circulação‖ (Carmen Rial, 2008), conferindo especial atenção aos processos migratórios de futebolistas e suas famílias. Estas relações estão problematizadas ao longo do quarto capítulo que trata das mobilidades contemporâneas especialmente de futebolistas e de seus núcleos familiares e intitula-se Das circulações menores facilitadas e interrompidas: alguns futebolistas e seus (im)ponderáveis. Concomitantemente a processos de ―individuação‖ dos futebolistas, onde se transformam singularidades através de condições existenciais e de constituição em meio às experiências, também ocorrem processos coletivo-individuais, pois é através de um ―projeto‖ a partir e em torno de um núcleo familiar, seja em suas relações de parentesco ou na formação de seus próprios núcleos familiares. Como exemplo desta articulação entre projetos e singularidades, cito a recusa de um dos interlocutores cristãos em transferir-se para um território simbolicamente ―perigoso‖, pois se tratava de um clube situado em Israel sob a justificativa da existência de ―muita bomba e guerra‖. Pouco tempo depois, este mesmo interlocutor decide ―regressar‖ ao Brasil tendo como opção oferecer aquilo que considerava ―melhores‖ condições de nascimento ao seu segundo filho. Na primeira gravidez de sua esposa, segundo seu relato, o tratamento pelo sistema de saúde oferecido nos Países Baixos não correspondeu às expectativas familiares, em particular ao tratamento oferecido à esposa. De forma a contextualizar as relações de interlocução, organizo de modo mais sistemático algumas notas importantes quanto ao modo de vida dos interlocutores levando em conta moradia, circulação, conjugalidade, circulação, nacionalidade, tempo de contrato:

42

Quadro 1 - Relações de interlocução com futebolistas Nome13 Idade Estado Filha/ Moradia Contratos Circulaçã 2a.Nacio (anos) Civil o o14 nalidade Iago 41 Casado 3 Própria, Ex- Chipre, Sim, com futebolista, Países Holandes conjugê. técnico de Baixos, a categorias Brasil, BA, de base. SP e RJ. Mauríci 39 Casado 2 Alugada, Acordo Colômbia, Sim, o com por jogo Países Holandes conjugê. clube Baixos e a amador e Brasil, ES, trabalho RJ e RS. ―fora‖ do futebol. Brian 36 Casado 1 Alugada, Contrato Países Sim, com anual. Baixos e Holandes conjugê. Brasil, ES. a Nathan 35 Casado 2 Fornecid Por Portugal e Não o pelo competiçã Brasil, RS clube. o. e SP. Sérgio 31 Casado 0 Alternad Por China e Não a. competiçã Brasil, AC, o. DF, MG, PA, RS. Camilo 30 Casado 1 Alternad Por Brasil, RS Não a. competiçã e SP. o. Fábio 28 Casado 1 Alugada, 3 anos. Países Sim, compartil Baixos, Italiana

13 Mesmo que tenha a autorização de todos os interlocutores para a identificação através do nome, optamos por utilizar nomes fictícios para resguardar suas identidades. Exceção feita aos futebolistas consultados através de fontes disponíveis em sítios de internet, jornais, revistas e outros formatos de impressão.

14 Nome dos países onde os clubes estavam situados, no caso do Brasil acompanha abreviatura do estado onde os clubes estavam situados. 43

hada Brasil, RS com e SP conjugê. Édson 26 Solteiro 1 Alternad Por Portugal e Não a. competiçã Brasil, PR, o. RS e SC. Gafana 25 Solteiro 0 Fornecid 1 ano de Portugal, Não a pelo contrato. Turquia, clube, Alemanha. compartil hada com jogador. Caio 25 Solteiro 0 Fornecid 3 anos de Itália, Sim, a pelo contrato. Bélgica, Italiana clube, Países compartil Baixos, hada Brasil, SP. com jogador. Solano 23 Solteiro 0 Fornecid 2 anos de Países Sim, a pelo contrato Baixos, Italiana clube, (opção Brasil, RJ compartil mais 2). e SP. hada com jogador. Sílvio 22 Solteiro 0 Alugada, Por Portugal, Não Moradia competiçã Brasil, SP. compartil o. hada. Márcio 21 Solteiro 0 Fornecid 5 anos de Inglaterra, Sim, a pelo contrato, Países Italiana clube, Empréstim Baixos, presença o. Alemanha, familiar. Brasil, SP. Fonte: elaboração própria. (Atualizada em 2015).

Durante os contatos que fui estabelecendo para a interlocução, 44

privilegiei a heterogeneidade das trajetórias pessoais de cada jogador, com exceção do futebolista ―Gafana‖, oriundo de Guiné (Conacri), todos os demais são brasileiros. Esta opção levou em consideração seus vínculos com muitos brasileiros, uma espécie de ―Doc‖ em meu trabalho de campo, uma vez que em Portugal, são muitos os clubes que mantém contratos periódicos com estes últimos15. Com relação aos tipos de contrato, a FIFA estabelece desde 2008 em suas regulações de status e transferência de jogadores (FIFA, 2007) um prazo ambíguo com relação ao tempo mínimo de contrato entre futebolista e clube. Em seu artigo 18, paragrafo 2, refere-se ao tempo mínimo como ―A duração mínima de um contrato deve ser desde a sua data efetiva até o final da temporada [...]‖ (FIFA, 2007, p.15)16, o que deixa em aberto a possibilidade da contratação por cada competição que o clube participa, uma vez que considera como a ―temporada‖ (no inglês, ―season‖) o período entre a primeira e a última partida do campeonato nacional mais relevante. Nos casos que pude tomar contato, os futebolistas que tinham contrato por campeonato disputavam competições estaduais (no Brasil), o que poderiam gerar contratos entre 2 e 4 meses ao total em um ano. Estas foram as menores durações de contrato que pude encontrar. Ainda com relação ao regime contratual nos casos de menor duração (―por competição‖), muitas vezes a continuidade desse contrato estava condicionada ao êxito do clube em cada competição, uma vez que o clube fora desclassificado realizavam-se ―acordos mútuos‖ para a desvinculação do futebolista. O que por um lado permitia a busca por parte do futebolista à realização de um novo contrato com outro clube, por outro lado colocava sua permanência de forma bastante instável e na grande parte das narrativas, os ―acordos‖, quando cumpridos, não eram benéficos para os futebolistas. No caso dos contratos feitos ―por competição‖, os futebolistas em muitas vezes chegavam ao número máximo de contratos durante o ano estipulado pela mesma regulação (FIFA, 2007), a qual prevê um máximo de 3 clubes por ano. Na contramão das negociações de curtíssimo período de tempo, encontrei nos Países Baixos situações muito distintas, ainda que com maior duração se comparada aos contratos feitos no Brasil e em Portugal. Todavia,

15 Referencia as relações de interlocução da pesquisa etnográfica realizada por William Foote-Whyte (1980). No refererido estudo, ―Doc‖ foi o interlocutor responsável por introduzir e respaldar o autor no contexto estudado.

16 Tradução própia de: ―The minimum length of a contract shall be from its effective date until the end of the season‖ […] (FIFA, 2007, p.15). 45

mesmo nas situações nas quais os contratos superavam 12 meses, a duração do contrato tomava em consideração o componente geracional para determinar o quão extenso seria o contrato. O caso de Brian, Maurício e Iago são paradigmáticos nessa interpretação, pois quando alcançam 30 anos de idade, estes começam a realizar acordos por 1 ano de contrato, uma vez que, segundo seus relatos, tal duração permitem a negociação ano a ano. Segundo Francisco Xavier Freire Rodrigues (2007), podemos chamar as novas regulações que permitiram novas formas de negociação de contrato de uma ―modernização conservadora‖, pois apenas recentemente foram regulamentadas algumas situações de ―exploração‖ na relação entre clubes e futebolistas em função do conhecido caso Bosman e de suas posteriores regulamentações nacionais, no caso do Brasil, através da já citada Lei Pelé (BRASIL, 1998)17. Quanto ao que chamamos de ―circulação‖, concordamos com a ideia geral de uma provisória permanência abordada por Carmen Rial (2008). Assim, nos referimos aos países no ―Quadro 1‖ pelos quais os futebolistas efetivamente tiveram seus contratos assinados. No caso do Brasil, pela heterogeneidade regional e pela circulação preponderante, detalhamos os estados onde estavam situados os clubes contratantes. No que se refere à moradia, categorizamos segundo a prevalência dos contextos de cada um dos futebolistas. Quando nos referimos à condição de moradia ―alternada‖, estas são devidas ao exercício dos contratos dos futebolistas Édson, Nathan, Camilo e Sérgio. Como seus contratos eram feitos ―por competição‖, as condições de moradia dependiam diretamente da oferta do clube contratante, ora encontrando-se em apartamentos alugados pelo próprio clube, ora tendo alojamento oferecido nos estádios dos clubes, vivendo numa espécie de regime de confinamento. Quanto à forma com que se deram as interlocuções, os usos dos capitais sociais, culturais, futebolísticos e corporais, me permitiram aceder às moradias de parte dos futebolistas (no Brasil, em Portugal, assim como nos Países Baixos), frequentar esporadicamente suas casas e, mesmo poder acessar a residência no estádio de um dos clubes situados no Rio Grande do

17 Ocorrido em 1992, o episódio que ficou conhecido como caso Bosman pode ser considerado um dos marcos legais mais importantes das relações trabalhistas no futebol contemporâneo. Mesmo que se refira primariamente aos futebolistas da comunidade europeia, a sentença do Tribunal de Justiça da Comunidade Européia favorável ao futebolista Jean-Marc Bosman teve repercurssões sobre as contratações dos considerados ―extra-comunitários‖. Maiores considerações sobre o episódio e suas repercussões nas relações trabalhistas no futebol consultar: Sandra Gil Araújo, 2002. 46

Sul. Igualmente fui convidado a participar de cultos cristãos organizados por futebolistas nos Países Baixos, em suas casas e em lugares públicos destinados as cerimonias religiosas. Em todos os casos, os convites para participação nestes espaços foram mediados necessariamente logo da realização de entrevistas elaboradas para a realização do estudo. Estas últimas aconteceram de modo geral em lugares ―públicos‖ frequentados pelos futebolistas (entre estes espaços se encontram bares, restaurantes, lancherias, cafeterias, os estádios dos clubes que os futebolistas mantinham contrato). Tais convites me permitiram também observar o espaço mais íntimo, reservado as relações conjugais e, de certo modo, estabelecer aproximações com o acompanhamento da carreira de cada um dos interlocutores. As demais análises da elaboração do ―Quadro 1‖ serão feitas nos três capítulos subsequentes.

1.2 USOS DA IMAGEM E O CONTEXTO HISTÓRICO DE RECONHECIMENTO DE FUTEBOLISTAS O que singulariza uma vida são os ―indefinidos‖ de que ela é feita, ou seja, ―virtualidades, acontecimentos, singularidades‖; e são estes que ganham singular ―determinação na medida em que preenchem um plano de imanência‖ (Luiz Orlandi, 2009, p.73). Este último, por sua vez, ―trata-se de um conjunto infinito de blocos de espaço-tempo. Na linguagem bergsoniana, nesse plano as imagens são sem serem percebidas. Estamos diante da presença absoluta da imagem. A representação ainda não teve início.‖ (César Guimarães, 1997, p. 94, grifos do autor)18. Logo, que significa dizer que existem ao mesmo tempo projetos de uma maneira linear e processos pré-individuais que extrapolam a uma interpretação de um sujeito? Reconhecer que existem trajetórias em meio a experiências onde existe a possibilidade permanente de um recomeço, de uma segunda origem, ou ainda, uma linha sem origem. Em meio a essa constituição conferida pela narrativa histórica, composta de continuidades e rupturas quando menos esperamos, a utilização de uma visibilidade não oferece prescrições tão bem delimitadas, tendo em vista as condições distintas entre os ―craques‖, recentemente também chamados de ―jogadores diferenciados‖, daqueles futebolistas menores. Estas, porém não são categorias êmicas fixas, os ―craques‖ atuam mediante um regime de visibilidade alternando maior ou menor exposição de tempos em tempos, mas nem por isso determinam o que pode ser visto, nem como ser

18 O plano de imanência é um conceito que Gilles e Félix Guattarri (1992) se apropriam de Henry Bergson para utilizar em diferentes momentos de sua filosofia, como por exemplo, quando tratam da natureza e da criação dos conceitos, o que pode ser encontrado no livro ―O que é a Filosofia?‖. 47

visto. Em muitos casos, junto a essa exposição midiática eminentemente articulada com um capitalismo global, existem formas de reconhecimento e retribuição daquilo que os futebolistas autoreferem-se como um ―dom‖. Adquirido e/ou exercido, na literatura antropológica podemos encontrar a contrapartida dessa visibilidade sempre exercida localmente, por exemplo, através dos conhecidos ―projetos sociais‖ administrados ou que utilizam a visibilidade de futebolistas19. Este exemplo de uma dimensão local articulada ao contexto global midiático a partir da imagem construída de alguns futebolistas redefine algumas relações amplamente individualistas transformando o que consideram como uma retribuição. Em outros termos, sem qualquer tipo de obrigação moral, mas que recai principalmente sobre aqueles futebolistas mais ―consagrados‖, portanto de maior visibilidade, e oriundos de camadas populares, exerce-se aquilo que a partir da antropologia maussiana nomeou-se como um contra- dom. Assim, a fórmula maussiana da dádiva composta pelo dar, receber e retribuir, é reatualizada através do aproveitamento das imagens dos futebolistas, a compensação econômica e o reconhecimento social, e sua posterior inserção em ―projetos sociais‖. Estas últimas, em muitos casos são as mais prováveis formas de reconversão profissional após o término de uma carreira. Aqui não importa demarcar o início ou origem de quando o futebol passou a ser mediado pelas compensações econômicas. Mesmo em um regime ―amador‖ é possível perceber a utilização destas trocas e a distinção conferida entre associados e praticantes dos clubes. Um de nossos questionamentos surge com a importância conferida à mídia nos seus modos de propagar a imagem relativa ao futebol. De que maneira esta visibilidade confere importância a certos sujeitos e subjuga outros tantos modos de se relacionar com o futebol? Apesar de constituírem certa identidade a partir de uma prática profissional, eles não formam um grupo minoritário que desviam da normalidade. Marcado inicialmente como uma prática que assegurou a consonância de uma elite com um etos amador esportivo de origem europeia, o futebol e suas praticantes evidenciaram as tensões existentes entre os ―sportsmen‖ ou ―players‖, membros ostentadores de certa distinção social em meio a prestigiosas associações contemporaneamente conhecidas como clubes, e os operários e demais trabalhadores que foram paulatinamente incorporando o

19 Ver, por exemplo, Simoni Guedes, et al (2006), Arlei Damo (2005), Carlos Henrique de Vasconcellos Ribeiro (2008). 48

jogo às rotinas das/nas fábricas, além de todas aquelas práticas que se deram fora de instituições. No Brasil, tais disputas culminaram com a institucionalização de um regime que passou a regular as compensações econômicas como legítimas e legais mesmo que isto não significasse a regulamentação de uma atividade profissional. Assim, os interesses de uma elite aristocrata defensora de uma prática supostamente isenta de finalidades para além dela mesma foram confrontados com os anseios de uma elite emergente composta por pequenos comerciantes e, sem dúvida, naquele momento a parcela com menor poder decisório, operários e trabalhadores que passariam a fazer do futebol um meio para subsistência. Esta proletarização do futebol foi demarcada pelo acordo entre ligas e clubes quando passou a vigorar a primeira fase de um profissionalismo incipiente já em 1933, ainda que se conheçam versões que ampliam o mito fundacional do profissionalismo no ano citado, o que na leitura historiográfica ficou conhecido como o embate do ―amadorismo‖ com o ―profissionalismo‖ 20. Em meio a isso, a aceitação e a presença dos primeiros ―jogadores negros‖ evidenciaram as pretensões de uma espetacularização a longo prazo ao colocar em disputa os interesses pautados pela divisão entre classes sociais que estavam, e ainda estão, imbricadas pela constituição étnico-racial no país. De tal maneira, como os discursos assimilacionistas sugerem, a ―inclusão‖ de negros feita a partir da prática do futebol passou a tolerar e permitir sua presença nestes espaços formadores de uma sociabilidade urbana, as associações esportivas. Entretanto, sem ocultar os interesses particulares da profunda massificação da exibição futebolística nos clubes e da multiplicação dos espaços para a prática não exclusivos de uma elite que procurou distinguir-se mediante um estilo high life (Leonardo Pereira, 2000), a incorporação de negros e brancos ―pobres‖ fora mediada pelo recrutamento daqueles ―jogadores‖ que

20 Como marcos para essa profissionalização citamos a criação da Federação Brasileira de Futebol, defensora de um regime profissional, em oposição a Confederação Brasileira de Desportos (atual CBF), defensora de um regime amador, assim como a inclusão desta categoria profissional na legislação trabalhista brasileira durante a gestão presidencial de Getúlio Vargas em 1931. Para maiores detalhes do processo de reconhecimento profissional dos jogadores de futebol no Brasil: Waldenyr Caldas (1994) e Marcelo Proni (1998). Para ampliar a leitura historiográfica e seu deslocamento das narrativas centradas nos clubes de Rio de Janeiro e São Paulo, assim como para uma genealogia do profissionalismo nestes termos, ver: Mayor, Sarah Teixeira Soutto (2017) e Correia, Jones Mendes (2014). 49

atendiam certos critérios técnicos para desempenhar a prática do futebol. Negros e brancos ―pobres‖ que passaram a frequentar os campos de futebol das associações ainda que tolhidos da participação das demais atividades dos clubes, tal como argumentam Leonardo Pereira (2000), Gilmar Mascarenhas de Jesus (1999), Anatol Rosenfeld (1993), Mario Rodrigues Filho (2003), entre outros. Contemporaneamente, a prática profissional do futebol ainda pode ser lida como uma forma de ―ascensão social‖ e pela busca daquilo que os futebolistas consideram como melhores condições de vida. Sobretudo, realiza o entrelaçamento de fluxos desejantes com fluxos monetários. Além desta referência ao entrelaçamento entre condições materiais dispostas em classes sociais e de como esta está articulada com a composição étnico-racial, os investimentos para tornarem-se futebolistas se dão por uma disputa subjetiva marcada por ―sonhos‖ mediada pelas imagens propagadas globalmente de futebolistas famosos ou célebres, sustentados por ―apostas‖ sumamente familiares na concretização profissional e de ―promessas‖ de um futuro ainda porvir. Concomitantemente à massificação e reconhecimento social do futebol no Brasil que conferiram certo status aos futebolistas, em muitos casos, as práticas exercidas por este conjunto pouco uniforme de sujeitos passaram a determinar parte da relação espaço-temporal das sociabilidades na vida contemporânea mesmo de quem está supostamente alheia ou prefere manter certa distância do contexto futebolístico. Como exemplo, citamos as alterações do fluxo urbano nos dias de jogos, ou ainda, na extensa e intensiva comoção nacional e de caráter nacionalista durante as copas do mundo de futebol na sua edição praticada por homens. Além dessas, outras implicações menos visíveis embora demasiadamente perceptíveis digam respeito à constituição de práticas aceitas nos espaços de performance através/do futebol, sejam elas exercidas no estádio ou não, como as várias maneiras de discriminação étnico-racial, de gênero, geracional, sexual e relativas à classe social. Tais discursos e práticas performativas foram constituídas ao longo do tempo especialmente por divisões binaristas presentes no contexto futebolístico (eu/outro, nós/eles, homem/mulher, macho/fêmea, velho/jovem, macho/bicha, preto/branco, rico/pobre, etc.), e auxiliam a fomentar ordinariamente o reconhecimento social daqueles grupos que mantiveram/mantém privilégios ao atuar através de processos de subjetivação para fabricar certa coerência da organização social através do ―primado da identidade‖ (Suely Rolnik, 1997b). Nesta maneira de se relacionar com certas identidades toleradas em um contexto explicitamente discriminatório, as práticas (entre elas as discursivas) dos futebolistas são acompanhadas (ou ―seguidas‖, na linguagem das mídias 50

contemporâneas) por milhões que compartilham afetos mediados a partir de unidades de filiação sentimental estabelecidas pelo ―pertencimento clubístico” (Arlei Damo, 2005). Visibilidade esta potencialmente ampliada pelas mídias, especialmente as televisivas, engendrando modos de ver e de ler ao conferir certos lugares e posições a serem ocupadas por certos sujeitos. Diante desta tolerância de limitadas diferenças, conforme foi e ainda se dá a inclusão de homens brancos e negros ―pobres‖ num regime profissional da prática do futebol, a formação dos futebolistas, conforme veremos ao longo da tese, está pautada por uma série de elementos imagéticos que por vezes super-expõem certos futebolistas em detrimento de tantos outros. Nossa análise concerne aos regimes de visibilidade produzidos através de elementos imagéticos e referem-se a como os futebolistas utilizam estratégias para tornarem-se visíveis e concretizar os ―sonhos‖ de uma carreira em meio ao futebol. Apesar de tal exposição poder ser lida através de uma composição de elementos estruturais e estruturantes, como a hierarquia que qualifica clubes ―grandes‖ ou ―pequenos‖, ou ainda, ―famosos‖ e ―desconhecidos‖ futebolistas, estes não determinam a priori como se dá a rede de relações entre os jogadores e outros sujeitos, como empresários, esposas, jornalistas, médicos, etc., e sua relação com a exposição midiática. Todavia, lidam permanentemente com as formas de representação dos heróis (muito mais do que heroínas), as quais demarcam as visibilidades conferidas ao gênero, à sexualidade, à racialização, à geracionalidade e à nacionalidade no ―sistema futebolístico‖ (RIAL, op.cit.)21. Para atender este modo de intervenção através das interlocuções e da escrita dando especial atenção ao que estamos nomeando como futebolistas pouco-célebres, menores ou ainda, infames, mantivemos nossa interlocução com futebolistas ao longo do trabalho de campo constituída por diversas estratégias. Entre elas, a busca por futebolistas que não poderiam ser consideradas como celebridades globais, apesar de alcançarem certo reconhecimento social nos contextos locais: ―Então, uma vez eu entrei no metrô, um homem me reconheceu e veio perguntar o que eu estava fazendo depois do futebol‖ (Maurício, 37 anos, Rotterdam, clube ―amador‖ Países Baixos, entrevista, outubro de 2013).

21 Carmen Rial (2008) utiliza-se do conceito de ―campo‖ tomando como referência o sociólogo Pierre Bourdieu. Segundo a autora, o ―sistema futebolístico‖ faz parte de um contexto composto pelos campos ―econômico‖, ―jornalístico‖ e ―futebolístico‖, sendo que deste último está composto pela prática do futebol profissional presente permanentemente nas mídias, como também aquele futebol praticado nas ―escolinhas‖ e nos terrenos baldios. 51

Reunimos ao longo da pesquisa uma quantidade significativa de materiais imagéticos, entre estes, vídeos disponíveis em rede, reportagens de jornais locais, notas divulgadas pela imprensa dos clubes através de sítios em rede. Durante o período nos Países Baixos, foi também a partir de ferramentas metodológicas que concernem ao reconhecimento e auto-reconhecimento a partir de um corpo (neste caso, o corpo como ferramenta investigativa) onde fui convidado a ingressar nas práticas de culto de futebolistas cristãos. Foi também nos Países Baixos onde pude participar da rotina de treinos e jogos de um dos clubes das divisões amadoras do país. Esta última, apesar de constituir-se como uma estratégia para perceber disputas relativas à nacionalidade e a inserção de um ―outro‖ em um contexto migratório, não diz respeito ao modo pelo qual futebolistas brasileiros ―circulam‖ nos clubes europeus, afinal, mesmo que a experiência em um clube ―amador‖ tente reproduzir várias práticas dos clubes ―profissionais‖, incluídas aí as compensações econômicas, tantas outras divergem como a atuação de empresários, a publicização midiática e uma mobilização massiva de pessoas para além das relações de parentalidade. Embora meu jogo sempre tenha sido outro e tenha deixado evidente para muitos de meus companheiros durante os jogos dos quais participei, não segui a sugestão de fazer um ―autogol‖ (ou ―gol contra‖ como é conhecido no Brasil) de Bolaño durante minha trajetória com o futebol. Meu outro-jogo, muitas vezes próximo de um anti-jogo22, também foi colocado em questão nas minhas participações frequentes neste clube de futebol ―amador‖ situado nos Países Baixos. Outro-jogo praticado, segundo as palavras de meu treinador quando ―voluntariamente desisti do dia‖ para atuar como goleiro. Ou ainda, em outro momento, após perder um ―gol sem goleiro‖, coisa que nenhum brasileiro faria, ou ainda, segundo meus companheiros, não falaria quando regressasse ao Brasil. Acima de tudo, no futebol não se joga com, se joga contra. Este tensionamento nem mesmo exclusivamente ao que se refira à prática esportiva propriamente dita, como é o caso das diversas relações jocosas a partir daquilo que se forma neste jogo agonístico, não produz relações definitivas entre os

22 Sobre o anti-jogo, ―O problema então colocado é que as práticas esportivas dissonantes participariam das lógicas do jogo, porém contendo potencial disruptivo, dissonante, o que as levaria, indubitavelmente, a exploração de outra dimensão, não tão linear, nem tão previsível, mas ritualística ou mágica (e também temporalmente suspensa da vida cotidiana). Nesse sentido, resta determinar onde se encontram tais práticas nas antinomias entre jogo e anti-jogo, a fim de saber até que ponto se apresentam como possibilidades outras do esporte.‖ (de Camargo, 2014), assim como Toledo (2012). 52

sujeitos, e pela mesma razão, não determinam suas condições de existência. Da mesma maneira podemos questionar a essencialização feita desses sujeitos e de uma prática, como se privilegiássemos os sentidos de seus discursos mais do que os efeitos que estes mesmos discursos produzem. Para além do que Norbert Elias e Eric Dunning (1986) em sua sociologia configuracional interpretaram como uma substituição de um etos guerreiro em detrimento de um etos esportivo em consonância com aquilo que chamam de um ―processo civilizatório‖ assinalamos a multiplicação discursiva e de meios pelos quais os futebolistas passaram a dar sentido às suas práticas. Ademais, a partir de suas constantes presenças midiáticas e da formação de um ―sistema futebolístico‖, os futebolistas passaram a atuar em múltiplos espaços numa proliferação discursiva globalmente propagada e localmente apropriada, como problematizado na dissertação de Gustavo Freitas (2009)23. Tal condição passou a regular as diversas práticas incorporadas aos rituais expressivos concernentes ao jogo, mas que nem por isso determina a relação que os futebolistas estabelecem com o próprio futebol. Esta possibilidade relacional com a prática do futebol, mais atenta aos efeitos que ela produz do que os sentidos que lhe são atribuídos, diz respeito a um modo pelo qual os sujeitos significam suas práticas, como as colocam em funcionamento e a partir de quais condições. Durante o trabalho de campo da presente tese, meu jogo também foi outro quando fui convidado a ingressar na concentração de um clube ―profissional‖ no interior do Rio Grande do Sul e fui constantemente colocado em posições que eram quase minhas: jornalista, doutor, professor, acadêmico. Ainda assumindo jogar outro jogo, fui convidado por futebolistas a participar de estudos bíblicos e cultos evangélicos durante minha estadia nos Países Baixos. Assim como, hospedado na casa de um jogador no interior de Portugal depois de tê-lo conhecido em um hostel na cidade do Porto. Outro-jogo como combate, não o acadêmico militante que propõe, mas um acadêmico combativo que enxerga as linhas pelos quais o poder transforma e faz funcionar as relações entre sujeitos, e as cartografa, neste caso por meio de um futebol, certos futebolistas e suas redes. Se a pergunta ao militante é: ―o que você propõe?‖, a pergunta ao combativo é a seguinte: ―o que você enxerga, em quais condições e sob qual ótica?‖.

23 Neste caso, o estudo cidado toma o exemplo das práticas discursivas sobre os acontecimentos de uma Copa do Mundo amplamente midiatizados no contexto nacional para pensar as condições de enunciação e produção de verdades do campo midiático. Sobretudo, podemos contrastar a análise da visibilidade e a presença midiática dos futebolistas da seleção brasileira com as reproduções midiáticas dos futebolistas ―locais‖. 53

2. CARREIRAS DE JOGADORES FAMOSOS E NÃO-TÃO-FAMOSOS (DOS “POUCO-BADALADOS” AOS “OPERÁRIOS”): A CONSTITUIÇÃO DE ALGUNS FUTEBOLISTAS

Agora o braço não é mais um braço erguido num grito de gol. Agora o braço é uma linha, um traço, um rastro espalhado em brilhante. E todas as figuras são assim: desenho de luz, agrupamentos de pontos, de partículas, um quadro de impulsos, um processamento de sinais. E assim – dizem – recontam a vida. Agora retiram de mim a cobertura de carne, escorrem todo o sangue, afinam os ossos em fios luminosos e aí estou, pelas casas, pelo salão, pelas cidades, parecida comigo. Um rascunho. Uma forma nebulosa, feita de luz e sombra. Como uma estrela. Agora eu sou uma estrela.

Fernando Faro, produtor musical, 1981, abertura do programa ―Trem Azul‖.

A data é imprecisa, a estória pouco documentada. Exceção feita por alguns poucos recortes de jornais, a trajetória de Carlos Kaiser pode ser descrita como a de qualquer outro futebolista durante a década de 1980 no Brasil. Algum prestígio, relatos constantes nos meios de comunicação impressos e televisivos, assim como uma relação de subordinação às instituições (clubes). Entretanto, através da manutenção de suas relações com outros futebolistas, de seus ―contatos‖, de algumas poucas matérias positivas da mídia impressa a respeito de sua gloriosa carreira e da negociação com dirigentes dos clubes, Carlos Kaiser manteve contratos com clubes de futebol por alguns anos sem ―entrar em campo‖. Durante sua carreira literalmente ―passa‖ por alguns clubes situados no Brasil, França, Argentina e México. Os contratos não duram mais do que 3 meses, o que pode ser considerado de curtíssima duração. Tornou-se um futebolista sem jogar. Sua tática foi desenvolvida ao passar pelos clubes, na primeira oportunidade em uma sessão de treinamento em um novo clube aparentava sofrer uma lesão que o impedia de continuar com as atividades e assim permanecia até quando não pudesse mais estender seu contrato. No seu ―reaparecimento‖ em reportagens agora veiculadas pelos meios digitais da mídia televisiva no Brasil, já não mais era apresentado como Kaiser – uma homologia ao apelido de Franz Beckenbauer, futebolista amplamente mediatizado –, mas sim como Carlos Henrique Raposo. Futebolista performático que manteve estreitos vínculos com futebolistas famosos da 54

época, ele negou a possibilidade de exercer seu dom/talento, ao mesmo tempo manteve uma relação de reciprocidade com a cobrança materna de se tornar um futebolista e dessa forma solucionar as expectativas de renda familiar, segundo seus relatos. Assim como a busca de tantos outros jovens, Carlos Raposo insistiu em seu reconhecimento através do futebol? Procurava a tão ―glamorosa‖ fama? Aquela que contemporaneamente passa pela regulação midiática. Ou ainda, buscava através do futebol um simples meio para subsistência? Talvez todas estas perguntas façam algum sentido, ao mesmo tempo em que podem ser válidas e afirmadas para um sem número de casos. Todavia, em suas reinterpretações memorialísticas Carlos Kaiser afirma que se existiu algum ―voltar atrás‖ em suas dúbias verdades, este seria refazer a escolha de sua desistência da tentativa de jogar futebol, apesar de ter se tornado um futebolista, mesmo sem jogar. As possibilidades de se visualizar (em seus múltiplos sentidos) uma carreira que não passe pela intermediação de empresários, pela observação e o acompanhamento constante e pela multiplicação comunicacional midiática que podem informar em instantes os atributos físico-técnicos e ético-morais de um futebolista, torna quase improvável a repetição de outros Carlos Kaiser's contemporaneamente. A conhecida frase de Andy Warhol sobre a espetacularização da vida e dos ―15 minutos de fama‖ sublinhou um momento de exarcebação do encantamento com as celebridades, mas também evindeciou o auto- reconhecimento para com as pessoas ―comuns‖, ordinárias. Assim, apesar das referências ocidentalizantes do que seria o reconhecimento público de algo ou alguém, aquilo que Edgar Morin (1989) assinalou como ―star-system‖ num uso identitário das ―estrelas‖ do cinema, as mídias contemporaneamente têm fornecido elementos importantes para pensar o modo como se produzem as celebridades (globais) e o reconhecimento (local), sendo uma espécie de intermediária e articuladora entre público/privado. Nesta zona de produção do reconhecimento público e social cada vez mais são travadas lutas por espaços de representação midiática em grande medida pautada por afirmações identitárias (fortemente interpeladas por grupos minoritários, não quantitativamente, mas que são afetados por desigualdades nas relações de poder). Sem enfrentar maiores questionamentos por representação e evidência midiática, o futebol e certos futebolistas gozam de certa importância em suas exposições justificando sua permanente presença ao longo da programação de canais com concessão pública no Brasil, por exemplo. Assim, em quais condições e de que maneira são produzidas as 55 imagens (carregadas de práticas discusivas) de futebolistas? Mais do que essencializar um modo pelo qual são produzidos alguns futebolistas e suas imagens, importa-nos identificar os ―feixes de luz‖ pelos quais adquirem visibilidade, mas que também invisibilizam outras tantas maneiras de se relacionar com o próprio futebol, com a fama e com este reconhecimento público. Nesta espécie de regime de visibilidade estamos de acordo que ―cada formação histórica vê e faz ver tudo o que ela pode, em função de suas condições de visibilidade, da mesma forma que ela diz tudo o que ela pode, em função de suas condições de enunciação‖ (Peter Pal Pelbart, 1989, p. 131). Neste capítulo pretendo abordar a constituição de alguns futebolistas contemporaneamente, priorizando aqueles que fizeram parte do acompanhamento etnográfico com os quais pude realizar entrevistas, frequentar suas casas e ao mesmo tempo acompanhar pelas fontes imagéticas. Conceber o ―jogador de futebol‖ como um símbolo que não detém um significado a priori, mas que adquire significados e que, portanto é produzido a partir deles. Através da ambiguidade da profissão enquanto o reconhecimento de uma categoria, com as referências das leis Bosman e Pelé que reconfiguraram a relação entre ―jogadores‖ e clubes e de estudos sobre estas leis. Tal ambiguidade evidenciada também pela categoria auto-referenciada pelos interlocutores, os quais não consideram como um trabalho, pois, em sua perspectiva, o trabalho não pode ser ―jogar‖ futebol. Ainda neste capítulo discuto os processos de ―formação‖ na trajetória de profissionalização dos futebolistas ―brasileiros‖. Sendo assim, e a partir das indicações do trabalho de campo, sublinho a importância dos entrecruzamentos entre classe social e diferenças de gênero para uma espécie de ―aposta familiar‖ ao prosseguimento de uma carreira no futebol. Não por acaso a constante auto-referência midiática de ―país do futebol‖ passou a nomear a importância e a relação de sujeitos em muitos países com esta prática esportiva. Esta condição de deter um etos futebolista em um Estado-nação ao que parece nada tem de transitória, pois ao longo do século XX, o futebol enquanto fenômeno esportivo adquiriu legitimidade ao ser praticado e fazer parte de sucessivos acontecimentos nas cidades em torno de si24.

24 Ao referenciarmos as cidades como o espaço que mais vem sendo privilegiado para as análises do futebol ―profissional‖ temos em vista a localização geográfica de suas instituições, sendo que a maior parte das pesquisas atentas ao contexto ―profissional‖ discute questões do contexto urbano. Salientamos a importância de outras tantas práticas realizadas em contextos rurais comumente descritos no Brasil como futebol ―de várzea‖ ou ―amador‖. Este último, frequentemente também acontece nos contextos urbanos. Aqui particularmente, nos deteremos a um modelo de futebol que poderíamos 56

Especialmente no Brasil, conhecer regras, frequentar os espaços onde aconteciam os ―matches‖, empregar esses termos originários do inglês e até mesmo praticar o futebol, foram considerados fatores de ―distinção social‖. No início do século XX, este marcador de identidades socialmente aceitas poderia ser sintetizado na consonância com um estilo ―high-life‖ incorporado pelas ―elites‖. Inicialmente, de modo geral, podemos demarcar a prática do futebol enquanto uma atividade de pertencimento de classe social (ao mesmo tempo étnico-racial), muito ainda vinculada a um suposto etos esportivo de certa espontaneidade, não isento de conflitos e interesses (Leonardo Pereira, op.cit.). Ao longo dos anos, as disputas entre classes sociais entrelaçadas aos conflitos étnico-raciais indicariam a possibilidade de, através do futebol, conquistar um posto de trabalho em fábricas ou outros setores, ou mesmo se dedicar exclusivamente à sua prática nos clubes25. Isto passou a demarcar, quem praticaria o futebol como forma de subsistência daqueles menos interessados em seu exercício propriamente e mais nas receitas proporcionadas por sua exibição26. Recentemente, podemos supor que uma categoria importante para se pensar a prática do futebol ―profissional‖ é a de ―ascensão social‖, através da qual supomos a existência de um significativo contingente de meninos (bem

chamar de futebol ―profissional‖ ou da ―matriz-espetacularizada‖ conforme nomeou Arlei Damo (2005), àquela que possui suas instituições associadas e regulamentadas junto à FIFA. Reconhecemos ainda a circularidade dos sujeitos em redes fluidas e concomitantes por regimes ―amadores‖ e ―profissionais‖ nestes distintos futebóis (futebol de ―várzea‖ e futebol ―profissional‖). Para saber mais sobre estas articulações e a circularidade dos sujeitos nos distintos futebóis, ver especialmente o trabalho de Enrico Spaggiari (2009).

25 No Brasil, os clubes formados a partir dos funcionários de fábricas foram muitos até a metade do século XX. Uma referência importante é o trabalho de Fátima Antunes (1992), que trata detalhadamente de como o futebol foi incorporado pela classe operária em São Paulo e praticado nas fábricas, passando das fábricas ao profissionalismo e da várzea ao profissionalismo. Já em outro contexto local, todavia é possível perceber uma relação de desconfiança no que refere ao contexto profissional do futebol como única fonte provedora de finanças aos operários e demais trabalhadores. Na cidade de Pelotas, não foram poucos os casos de rechaço à dedicação exclusiva ao futebol como argumenta Aline da Cunha (2008).

26 Para saber mais sobre a constituição da profissionalização de futebolistas no Brasil, consultar o artigo de Arlei Damo (2009). 57 mais recentemente meninas27) que tentam sua ―profissionalização‖ para desempenhar esta atividade. Estes, em sua maioria, são oriundos de camadas populares e buscam ―mudar de vida‖ através do futebol. ―Status‖ ou fama e dinheiro, são alguns dos ―sonhos‖ que rondam comumente o imaginário nesta/desta profissão, a de futebolista. Todavia, nem mesmo uma ―imagem‖ daquilo que representaria um futebolista pautado no imaginário de fama e sucesso é compartilhado entre os futebolistas. Assim, a categoria de ―ascensão social‖ deve ser analisada de modo mais cuidadoso, pois, se por um lado proporciona certas transformações no acesso às condições materiais de existência tantas vezes dificultadas pelas desigualdades sociais vivenciadas historicamente na formação do ―Estado brasileiro‖, por outro, trata-se de colocar certos sujeitos em determinados papéis sociais hierarquicamente inferiores e que a partir de um ponto dado pelo ―acesso‖ ao consumo se daria uma mudança na escala social. Reforçada pelos meios de comunicação, pelas sociabilidades na infância e pela participação familiar, a busca pela concretização da almejada carreira de futebolista tem imposto rotinas de treinamentos e adestramento corporal para muitos meninos desde jovens28. Além do investimento prioritário em um capital corporal estritamente delimitado para exercer a profissão, existe uma quantidade limitada de clubes e destes, pouquíssimos disputam competições com certa visibilidade. Por conseguinte, apenas alguns clubes podem manter os pagamentos ilusórios de grandes salários aos jovens, cifras

27 Embora exista um considerável número de times de futebol para a prática de mulheres em um regime que se assemelha ao ―profissional‖ – isto é, recebendo compensações econômicas –, segundo o levantamento feito por Caroline Almeida (2013) e Mariane Pisani (2013) apenas recentemente as mulheres praticantes de futebol passaram por processos de profissionalização. Para uma leitura historiográfica do processo de profissionalização do futebol de mulheres no mundo, consultar: Jean WILLIAMS (2007); assim como no Brasil, Almeida e Pisani (2015).

28 Fernando Bitencourt (2009) faz uma análise detalhada de ―técnica‖ e ―ciência‖ em um centro de treinamento de um clube de futebol. Seu trabalho, tendo como referenciais a Antropologia e Filosofia, insere-se em um espaço onde o saber biomédico é altamente valorizado e instaura práticas de medição de variáveis ―biológicas‖. ―Um corpo‖ deve tornar-se ―o corpo‖, de maneira a incorporar o capital pretendido pelo ―mercado futebolístico‖. Passando das ―categorias de base‖ ao ―profissional‖ os parâmetros tecnicamente quantificáveis auxiliam na formação do capital corporal de um determinado futebolista. Ver principalmente, o sexto, sétimo e oitavo capítulos, respectivamente ―Uma estrutura biomédica‖, ―O treinamento esportivo: o caso do CAP‖, e ―A alimentação/nutrição‖. 58 constantemente divulgadas nos meios de comunicação de massa29. No Brasil, autointitulado midiaticamente ―país de futebol‖, jovens investem na carreira de futebolista. Muitos não chegam a ingressar neste mercado de trabalho, outros tantos após o ingresso defrontam-se com condições dissonantes daquelas inicialmente pretendidas, e uma pequena parte, embora em algum momento possa concretizar um suposto projeto de vida (VELHO, 1999), somente permanece por algum tempo (nunca o desejado) na profissão30. Aqui entendemos a composição de um mercado profissional do futebol estando constituída por uma suposta hierarquia a qual vem conferindo importância a determinadas instituições, sujeitos e competições, e desta maneira impondo certa forma de reconhecimento social e constituição de uma carreira. Tem feito parte da procura por certas profissões, não só o contexto no qual o ―status‖ de uma profissão é elaborado, como também as sucessivas transformações passando de um ―status‖ a outro na forma de ciclos dentro de uma mesma atividade (HUGHES, 1987). Assim podemos situar a hierarquia feita dentro desta profissão (futebolista) como uma forma de adquirir prestígio e fama dentro de uma escala limitada de possibilidades, por exemplo, a escolha anual institucional da FIFA de um jogador ―melhor do mundo‖. Para lidar com o excessivo contingente de profissionais e a falta de expansão dos mercados nacionais, os futebolistas vêm encontrando inúmeras alternativas, entre as mais significativas: a transferência de clubes após os términos dos contratos de trabalho ou das competições em um mesmo país; a alternância de contratos de trabalho no futebol e outras profissões; transferências transnacionais para clubes fora do país de origem. Sobre esta última, por exemplo, no ano de 2008 (último ano no qual houve uma divulgação

29 Mesmo sendo um conceito provisório estamos tomando a noção de ―carreira‖ como uma forma com que sujeitos interpretam sua vida e suas ações em determinados contextos assumindo funções e responsabilidades de um ofício, tal como definiu Everett Hughes (1993, p. 137), ―objetivamente, em séries de status e ofícios bem definidos‖ dentro de um sistema social.

30 Ao investigar o cotidiano de camadas médias em grandes centros urbanos, Gilberto Velho (1999, p.47) elabora o conceito de ―projeto de vida‖ com o qual ―As trajetórias dos indivíduos ganham consistência a partir do delineamento mais ou menos elaborados de projetos com objetivos específicos. A viabilidade de suas realizações vai depender do jogo e interação com outros projetos individuais ou coletivos, da natureza e da dinâmica do campo de possibilidades‖. Importa-nos destacar uma natureza permanentemente coletiva e relacional destes projetos mesmo que em alguma instância tomada por uma decisão do sujeito, dentro de certas condições históricas (ou ―campos de possibilidades‖ nos termos de Gilberto Velho), tanto com suas liberações, como suas sujeições. 59 dos registros de transferência, citado por Carmen Rial, 2008) foram registradas junto a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) 1176 transferências de brasileiros para clubes fora do Brasil, muito embora estes movimentos migratórios significativos ainda não tenham merecido atenção suficiente (exceção feita pelos trabalhos: Carmen Rial, 2006, 2008, 2009; Lenita Ruggi, 2008; Arlei Damo, 2009; Paulo Miranda Favero, 2009; Sine Agergaard, Nina Clara Tiesler, 2014; Camilo Araújo Máximo de Souza, et all, 2008). Assim, nos baseamos nas possibilidades de constituição de uma carreira no futebol, nas constantes mobilidades geográficas que têm feito parte das opções de viver desta/nesta profissão, e nas escolhas para fazer contratos de trabalho, consumir produtos e decidir sobre seu destino. Mas, não somente a partir de referências geopolíticas podemos analisar as mobilidades e a busca por uma carreira no futebol, mas também por uma constante produção de afetos que mobilizam desejos, e, portanto, escolhas mesmo que não declaradas discursivamente. Representativas de uma pequena parte da profissão, as imagens (midiáticas e sociais) propagadas globalmente cercam os futebolistas de muito glamour e conferem fama às suas carreiras. Entretanto, se sustentamos como Michel Foucault em “As palavras e as coisas‖, que pensar sobre o discurso significa questionar ―[...] que representações ele designa, que elementos recorta e recolhe, como analisa e compõe, que jogo de substituições lhe permite assegurar seu papel de representação. O comentário cedeu lugar à critica” (p. 109, 2000, grifos no original), permitimo-nos compreender esta representação e a colocação de signos em ―coisas‖. Desta forma a palavra (em termos gerais, o discurso) atribui significados a um suposto ―real‖, onde os signos esboçam uma semelhança com a realidade (verdade) categorizando, por exemplo, heróis, anti-heróis, vilões, bandidos, mocinhos, etc. Em nosso caso, o ―sonho europeu‖, mesmo que se efetue com a contratação e transferência de futebolistas para clubes situados neste continente, se encontra conjugado a partir de uma produção do desejo aliado à compensação monetária ao ressaltar valores individuais e individualistas através da qual um ―sonho de jogar futebol‖ nada seria sem essa coprodução. Assim o investimento para a construção de um ―sonho‖ funciona não apenas como uma projeção ou projeto a ser realizado, mas que se encontra centrada pelo desejo. Tais investimentos são permanentemente construídos através de muitos dispositivos. Apesar de um acesso seletivo às publicações periódicas especializadas, a revista Placar é um exemplo disso. Em sua edição de número 1112 (PLACAR, fev. 1996) traz em sua capa a imagem de Ronaldo Nazário (na época Ronaldinho) projetada com uma nota da moeda estadunidense. O valor 60 de seu passe igualmente divulgado na capa da revista: ―O garoto de 20 milhões de dólares‖. Ronaldo detém o interesse midiático e auxilia na produção de uma representação do que seria um futebolista, naquele momento aos 19 anos, realiza a trajetória de Romário o qual anos antes já havia sido reconhecido como um futebolista importante em seu mesmo clube, o PSV, situado na cidade de Eindhoven nos Países Baixos. Para ambos a transferência representou a contratação pelo primeiro clube ―europeu‖ em suas carreiras. Ainda, segundo a referida reportagem, Ronaldinho manteve certa relação afetiva com a filha de um dos dirigentes do clube, e trata de ressaltar a racialização de uma suposta mulher brasileira, segundo o trecho da entrevista: ―As holandesas são lindas, só que não tem corpo bonito. Quando vejo uma mulher com um corpo legal digo que ela tem bunda brasileira.‖ (PLACAR, 1996, p. 27). Todo esse aparato midiático, contemporaneamente articulado com as redes sociais, produzem discursos, mas não pode prever os efeitos de como serão apropriados os significados do que seria ser um futebolista, ou como a linguagem midiática comumente refere-se, um ―jogador de futebol‖. Assim, as revistas especializadas, como esta de maior ressonância por sua amplitude de publicação e de número de tiragens, a revista Placar, utilizam-se dos múltiplos discursos de sujeitos (o empresário, o dirigente, o futebolista, etc.) para produzirem novos discursos. Ao mesmo tempo em que selecionam, conduzem o modo como os futebolistas ―aparecem‖31. A maior parte das informações produzidas a partir do futebol e dos futebolistas tem atualmente um grande número de serviços especializados que cada vez mais ocupam espaços exclusivamente destinados ao esporte para além dos noticiários diários. Se os/as jornalistas se interessam pelo ―extraordinário do ordinário‖, como sugere Pierre Bourdieu (1997), ou ainda, criam esse ―extraordinário‖, se poderia perguntar sobre a existência de ordinariedades no futebol? Quais seriam? Nestes casos, o extraordinário seria estes sujeitos, em especial os futebolistas? As mídias contemporâneas articuladas de maneira impressa e eletrônica, e, portanto largamente telemáticas, atuam reforçando a produção em torno desse símbolo que não possui significado a priori, todavia é incessantemente conduzido a se tornar um futebolista. Dentre as categorias utilizadas para classificar e hierarquizar alguns futebolistas e suas trajetórias identificamos não só um modo de produção destes sujeitos, mas uma amplitude através da qual a linguagem midiática destina seu discurso e direciona os sentidos para este sujeito.

31 Para uma análise mais detalhada das representações produzidas na Revista Placar e da repercussão de suas publicações, ver: Renato Machado Saldanha (2009). 61

Através do uso de diferentes categorias, as mídias consultadas situam sujeitos e instituições através de uma hierarquia bem delimitada pautada pelo mercado. Entre as muitas categorias referidas aos futebolistas brasileiros nas mídias, atentamos para a oscilação do modo como são expostos. Isto vai desde os ―operários‖32 de clubes das divisões regionais do Rio Grande do Sul, até os ―pouco-badalados‖33 brasileiros de clubes situados na Europa desconhecidos pelas mídias, ou seja, mesmo que se trate de multiplicar as imagens e os discursos destes sujeitos, as mídias são mediadoras da expansão da presença dos futebolistas e do futebol nas vidas diárias de um público massivo. Nos casos citados, esta oscilação se deu a partir da repercussão de um jornal impresso local e de uma rede de portais da internet de massiva consulta. No primeiro caso, a imprensa ―local‖ classifica um modo de ler a ―realidade‖ (sic) como a de ―operários‖. Em seu título a reportagem que ocupa a capa do periódico anuncia: ―Operários da Segundona: série de reportagens especiais iniciada hoje mostrará a realidade dos principais clubes da região que vão disputar a Segunda Divisão do Campeonato Gaúcho‖ (Diário Popular, 06 fev. 2011, p.1). Nos termos dos efeitos que esta reportagem produz ―no mundo da bola dos operários da segunda divisão, o sonho é ultrapassar barreiras e crescer‖ (Diário Popular, 06 fev. 2011, p.3), centrada na produção de um sujeito que não é único, os futebolistas são colocados como partícipes de uma suposta divisão de trabalho, onde a exposição de suas imagens é um dos produtos dessa divisão. Assim, ao mesmo tempo em que mercadorias comodificadas, pois são atribuídos valores em um mercado global, a argumentação em torno da lógica de divisão de trabalho não dá conta da complementariedade entre mercadoria, mão-de-obra, projeto de vida e desejo. Por outro lado, os ―pouco-badalados‖ seriam os futebolistas de alguns clubes situados na Europa pouco noticiados nas mídias ―brasileiras‖. Embora tenham efetivado o ―sonho de jogar na Europa‖, muito mais um catalisador de desejos e de produção de um realismo imaginado do que a efetuação de uma realidade, os ―sonhos‖' são construídos em meio à possibilidade de viver a partir do futebol. Através dos registros das transferências de futebolistas

32 Referência à notícia ―Operários da segundona‖, publicada no Diário Popular no dia 6 de fevereiro de 2011 por Giacomo Bertinetti (2011).

33 Referência à notícia ―Brasileiros pouco badalados se destacam no futebol europeu‖, publicado por IG São Paulo, 2013, acessível em: 62 quantificadas e problematizadas no capítulo subsequente, bem como das relações de interlocução, poderemos problematizar essa transição muitas vezes definidora do status de uma carreira, inclusive alterando a relação monetária do clube com um futebolista em seu contrato. Uma vez que consideramos essa produção imagética monetarizada ou comodificada não basta estabelecer a relação entre ―força de trabalho‖ com a referente compensação econômica para referenciar os futebolistas assim como outras categorias de trabalho são lidas em um sistema capitalista global. A importância imagética considerada no exemplo da utilização de uma política institucional no capítulo anterior por parte do Estado foi assimilada pelo ―sistema futebolístico‖. As ―aparições‖ e as ―exibições‖ abriram precedentes para o surgimento desta compensação monetária para o uso da imagem, mesmo porque analogamente ao star-system hollywoodiano, dentre outros esportistas (em sua maior parte homens), futebolistas ocupam posições que fazem com que suas exposições produzam distinção social mesmo em espaços que não fazem parte do tele-espetáculo esportivo. Desde as ―categorias de base‖ (como são referidos os centros de formação/produção de futebolistas) a importância da exposição já é incorporada pela linguagem de se fazer ―visto‖. Assim ser ―revelado‖ é uma das categorias utilizadas para demarcar a origem de um futebolista, além de estabelecer vínculos de compensação econômica nas possíveis transferências no caso da concretização da carreira deste34. Além disso, os ―direitos de imagem‖ apenas recentemente começaram a dividir a compensação econômica que até então era detida exclusivamente nas instituições, por sua vez formam parte significativa do orçamento dos clubes. Agora repassada aos demais sujeitos. Contextualmente essa produção imaginária, portanto consensualmente aceita, de como significam alguns futebolistas suas práticas não é válida como explicação universal. Seus discursos diferem, por exemplo, da explicação de uma busca por fama, principalmente em termos geracionais, como afirma Camilo ―Eu gostaria de jogar em um grande clube, mas eu saí de casa, e olha o meu pensamento: ―Eu quero ser um jogador profissional, eu não me importo se eu ganhar mil ou dez, eu quero ser um jogador profissional‖. Isso é mais forte que eu tinha em mente‖ (Camilo, 28 anos, Pelotas, clube segunda divisão do Rio Grande do Sul, entrevista, agosto 2012).

34 Esta última afirmação se refere à introdução regulatória da ―contribuição solidária‖ (FIFA, 2007) e à ―formação do atleta‖ no caso da Lei Pelé (BRASIL, 1998). 63

2.1 PRODUZINDO INFAMES: IMAGENS E REPRESENTAÇÕES DOS PROJETOS DE VIDA Neste momento, ao tentar evitar uma construção conceitual genealógica referente ao pensamento cristão e apesar dos usos morais de algo ou alguém ser nomeado como infame, nossas intenções ao qualificar alguém como infame diz respeito a pelo menos duas razões. A primeira delas, aceitando algumas referências empíricas, a constituição de uma carreira através do futebol é cerceada por uma condição, nem um pouco unânime no que diz respeito ao reconhecimento de uma trajetória, e neste sentido, adquirido por certas posições ocupadas e aceitas por certos futebolistas. O segundo sentido para nomear como infames alguns futebolistas e sua constituição em um futebol menor é perceber algumas singularidades de carreiras desconhecidas que tomam decisões em meio às relações cotidianas não seguindo uma prescrição, nem mesmo ante aos acontecimentos previamente definidos por encantadores flashes do poder. Passamos a analisar tais flashes como algo que os torna visível, como a fama e o reconhecimento social por ocupar um determinado lugar inserido em uma instituição como um clube de futebol. Aqui, nos referimos à exposição diária dos famosos jogadores-celebridades, desde o segredinho sujo de um relacionamento conjugal até a certeza do próximo contrato. Entre interesses econômicos, políticos, sociais e conquistas (extra)ordinárias, a exemplaridade de alguns jogadores são colocadas em evidência tanto em nível global como local. Mediado por dispositivos midiáticos (jornal, televisão, internet) e reconhecimento social, a busca por tornar-se um jogador famoso é possivelmente à condição que pode ser comparada com um dos pontos mais fortes e ao mesmo tempo mais fracos do capitalismo, afinal não se tem trabalho para todos, não se tem espaço para cada jogador. Esta condição menor é assumida como uma posição marginal ocupada pela maioria minoritária. Ante esta condição infame, uma dimensão de incerteza está permanentemente colocada, como pode ser a oferta de emprego para o próximo clube (os contratos com menor duração são oferecidos pela duração de 2 a 4 meses). No que diz respeito a uma condição menor, a busca por reconhecimento neste último futebol é afetada por algumas variáveis conforme veremos adiante, sendo que cada uma delas pode ser dita como uma conquista. A primeira delas, quando transposta, diz respeito à prática tão comum e disseminada midiaticamente, a profissionalização. De outro modo, podemos analisar a condição infame de homens e mulheres a partir de um mérito esportivo contido no binômio vitória-derrota, sugerindo sua aplicação para a relação entre fama-infâmia. De um lado, o famoso, o vencedor, o bom, e de outro, o perdedor, o ruim, e 64 consequentemente o infame. Isto vem sendo constantemente reafirmado por narrativas midiáticas, literárias e científicas para deduzir o que está certo e o que deu errado, o que não nos é válido, daquilo é. Tomando o exemplo de um futebolista que alternou períodos de evidência em ―grandes‖ clubes, sendo visibilizado através de campeonatos considerados ―importantes‖, ele traz consigo em sua trajetória de vida a construção de sua carreira, pelo menos nos contratos de maior prestígio, acompanhada pela pergunta: ―onde você jogou‖? Neste caso, a infâmia, é uma condição de esquecimento não apenas promovida de maneira individual ou institucional através de recordes, mantida por números, ídolos e grandiosas conquistas, pois ―o herói recebe tantos elogios que é quase como se não tivesse existido‖, como argumenta Michel Foucault (s/d). Isto é sustentado por uma transitoriedade das relações de poder e validado por práticas mais aceitas, por exemplo, reconhecer como unânimes as decisões tomadas para jogar em um clube ao invés de outro. Como exemplo, podemos citar as decisões de alguns jogadores para transferências para ―clubes grandes‖, ou ainda, para ―clubes europeus‖ como sendo a concretização de um ―sonho‖. Se as identidades são usadas como forma de encurtar o entendimento de como alguém expressa uma prática comum, temos alguns limites em relação à constituição de um jogador de futebol brasileiro e sua carreira, mesmo se usarmos tal adjetivo, infame. Leis, normas e práticas são confrontadas com opções e acontecimentos. Através de uma etnografia multi- situada, Carmen Rial (2008) analisa o cruzamento entre fronteiras nacionais de futebolistas famosos e não-famosos brasileiros tratando-o como circulação. Ao evitar tomar como um caso de ―emigração‖, de acordo com suas comparações com outros trabalhadores migrantes tradicionais especializados e dando importância ao entourage que cercam principalmente jogadores-celebridade, a presença no exterior não parece ser percebida como um lugar de pertencimento, ao mesmo tempo este movimento atua para uma manutenção na circulação de jogadores, de discursos e de dinheiro35.

35 Entre os interlocutores acompanhados no processo da presente pesquisa, apenas em um dos casos este entourage familiar fora do Brasil era mais amplo que a relação conjugal entre futebolistas e suas esposas. Esta exceção ao contexto de futebolistas infames, em grande parte se deve a que este caso em particular se deu em função de um empréstimo por tempo determinado de um futebolista de um dos ―clubes-globais‖ a um clube situado nos Países Baixos. Mais recentemente, a autora citada amplia as relações de interlocução e passa incluir também futebolistas com pouco ou nenhum reconhecimento enquanto prática profissional. Ainda analisando a presença do entourage familiar dos jogadores-celebridade, Carmen Rial (2016) encontra-se com a 65

Tomando o exemplo do entourage composto por membros da família que seguem o deslocamento de alguns jogadores de futebol brasileiros, as condições materiais deste tipo de circulação permitem que apenas uma parte dos jogadores possa oferecer condições materiais para este acompanhamento, minimizando a distância quando o destino de sua carreira afasta-se dos vínculos afetivos mais próximos. Jogar futebol ―fora‖, é uma condição permanente, inicialmente deixar a casa da família, deixar a cidade de origem, jogar em outro país, ao mesmo tempo em que cruzar fronteiras nacionais constitui uma das primeiras concretizações na carreira em uma espécie de projeto coletivo. Embora, como nos referimos enfrentado por condições materiais que se poderiam chamar de acontecimentos, o planejamento de uma carreira é suportado, a maior parte do tempo, por um projeto familiar, o que significa consentido por familiares e para si. Usado para conceituar a relação entre as perspectivas de trabalho e classe social em camadas médias no Rio de Janeiro, Gilberto Velho (1999), propõe a noção de projeto de vida, que é usado aqui para se referir sobre a assistência familiar nas camadas populares de homens jovens potencialmente treinados para se tornarem futebolistas no Brasil. Desta forma, o trabalho de Carmen Rial destaca a predominância do filho mais novo de uma família nuclear tradicional em se tornar um futebolista, preferentemente, mas não só, famoso. Fato justificado pela libertação da contribuição sobre a renda familiar a partir de um trabalho remunerado, pelo menos momentaneamente. Além disso, de acordo com o uso de Gilberto Velho do conceito de ―projeto de vida‖ que não é apenas uma decisão racional tomada por alguém, de forma inteligente somos confrontados com elementos contextuais que constituem uma espécie de imanência chamada de condição de possibilidade. Por exemplo, as preferências de idade para o contrato de jogadores estrangeiros em muitos casos entre 19 e 23 anos, ou ainda a possibilidade de se casar em um determinado momento da carreira. Estas condições para alcançar algo imaginado se tornam mais evidente quando é possível jogar no exterior, concretizando um sonho, e o destino mais desejado é a Europa. Tal forma homogênea nesta referência enfatiza a disputa sobre o que é importante na constituição de uma carreira de futebolista. No entanto, a suposta categoria êmica de um país francofônico como a de ―Kaká-noir‖. Esta foi a menção a um dos brasileiros de um clube situado no Marrocos para nomear-lo como um jogador ―infame‖ que mantinha laços étnicos com o Brasil. Além disso, a autora analisa o particular caso da circulação de brasileiros na MLS, uma vez que no contexto estadunidense são as camadas médias que recorrem a estratégia de profissionalização no futebol. 66 representação do que é válido para uma carreira poderia ser questionada por um dos nossos interlocutores:

O sonho de jogador não é parar e ter que trabalhar, só que a realidade é muito diferente. Eu jogava num time grande, sempre fui titular, você fica com aquela expectativa de um dia jogar na seleção brasileira. Quando você chega no profissional o sonho aumenta, mas chega um momento que você tem que ser realista, eu não me firmei, então como que vou sonhar? (Maurício, 37 anos, Rotterdam, clube ―amador‖ Países Baixos, entrevista, outubro 2013).

A presença na seleção brasileira, como Maurício se refere, é um elemento importante que está relacionado com a visibilidade dos futebolistas brasileiros, embora apenas alguns efetivamente atuem, poderíamos dizer que é inacessível para aqueles que estão posicionados fora dos ―grandes clubes‖.

2.2. TRAJETÓRIAS DA/NA PROFISSIONALIZAÇÃO

Exploração invisível de um bem invisível, a vida, é igualmente no invisível que deverão operar as artimanhas para combatê-la. A resistência, hoje, tende a não mais situar-se por oposição à realidade vigente, numa suposta realidade paralela; seu alvo agora é o princípio que norteia o destino da criação, já que, como vimos, esta tornou-se uma das principais senão a principal matéria prima do modo de produção atual. O desafio está em enfrentar a ambiguidade contemporânea do capitalismo, colocar-se em seu próprio âmago, associando-se ao investimento do capitalismo na potência criadora, mas negociando para manter a vida como princípio ético organizador. (ROLNIK, 2003, p.209)

Ao longo das próximas páginas tentarei evidenciar como estão feitos alguns estudos sobre a temática do futebol, os quais têm enfocado dois momentos na carreira de futebolistas: 1- a inserção ou conversão para este mercado de trabalho; 2- a reconversão ou aposentadoria e busca por outras profissões. Feito este levantamento situarei onde está inserido o nosso estudo e nossos interlocutores, para depois esboçar como uma vida pode agir como um princípio ético. Durante o estudo evitei duas condições de leitura das carreiras futebolistas estudadas: a) de um encantamento por este estilo de vida; 67 e b) a de uma vitimização do ponto de vista de uma vida sem valor, algo que não deu certo, ficando à mercê de uma configuração que não permite espaços para sua mobilidade dentro de uma estrutura. Segundo a abordagem aqui adotada, é questionável o uso de uma categoria universal para qualificar um etos contemporâneo a partir de um modo de produção, como por exemplo, o capitalista. Mais interessa-nos investigar quais são os efeitos de suas práticas e como essas são modificadas. Se o círculo vicioso indicado por Suely Rolnik (2003) tenta nos colocar incessantemente ao mesmo tempo como produtores e consumidores desse modo de produção, o que significa colocar ―a vida como princípio ético organizador‖? O trajeto mais aceito, porém não o único, para a profissionalização de futebolistas passa prioritariamente pela formação nas ―categorias de base‖. A estas, nos referimos como sendo as instituições especializadas na formação de um capital futebolístico e corporal específicos para a prática desse esporte, podendo estar presentes nos clubes ―profissionais‖, ou não. A conversão para a incorporação de um habitus foi longamente analisada pela pesquisa de Arlei Damo (2005). Em sua pesquisa, o autor utiliza uma classificação colocando o futebol ―profissional‖ em uma ―matriz espetacularizada‖ (p.115)36 ao analisar o processo de formação (ou produção) de futebolistas em algumas instituições que mantém atividades das chamadas ―categorias de base‖. Servindo-se da metáfora ―pés-de-obra‖ como aquilo que gera essa força de trabalho, o autor mostra como se dá no âmbito do treinamento de jovens a construção e apropriação da categoria ―dom‖ pelo campo futebolístico. Dentre duas acepções êmicas de dom, o dom é contrabalanceado entre algo que se adquire

36 A partir da ―unidade futebolística‖, ou melhor, daqueles princípios que ordenam as mais diversas práticas do futebol, o autor divide em quatro matrizes as práticas futebolísticas atuais: matriz escolarizada, matriz bricolage, matriz espetacularizada e matriz comunitária. A matriz espetacularizada é organizada de forma geral através da entidade FIFA e suas filiadas (CONMEBOL, CBF, FGF, etc). Esta por sua vez, exerce um controle minimizando a discrepância na aplicação de regras que regulam o jogo. Conforme Damo (2005, p.43), ―a segunda característica distintiva do futebol de espetáculo é a divisão social do trabalho, dentro e fora de campo‖ e uma última onde ―a excelência performática exigida dos praticantes‖ difere das demais matrizes. Nesta matriz, reconhece o autor, existe uma grande divisão social do trabalho, aproveitando-se da distribuição dos atores que compõem este universo feita por Luiz Henrique de Toledo (2002). Seguindo a lógica de divisão do trabalho dentro e fora de campo elaborada pelo autor, os atores estão distribuídos em: profissionais, especialistas, torcedores e dirigentes. Não é de todo incorreto chamar de ―espetacularizada‖ esta matriz, entretanto ficaria muito mais próximo às nossas pretensões ligar ao futebol organizado pela FIFA e suas filiadas. 68 com a rotina de treinamentos (dom/talento) e algo próximo de uma herança, algo que já se tem incorporado, ―se nasce com‖, um jeito (dom/dádiva). Esta ambiguidade característica do dom futebolístico está presente nos discursos representativos dos futebolistas e de seus treinadores para justificar as qualidades para o exercício em seu ofício. Mas principalmente coloca em funcionamento toda uma lógica de formação organizada pelos clubes. Empiricamente, o uso da categoria dom tem utilidade para investir em determinados pés-de-obra promissores e encontra-se fortemente vinculado ao discurso da formação (ou produção) desses jovens. Ao se confirmar, o processo de formação que culmina na profissionalização (nos casos que são efetivados), segundo o levantamento feito (Damo, 2005), das categorias iniciais até o regime profissional, são necessárias mais de 5.000 horas de treinamento para tornar-se um jogador de futebol profissional no país, pelo menos nesta trajetória mais aceita. Em outro estudo sobre a profissionalização de futebolistas, Maurício Pimenta Marques (2008), através de uma abordagem quantitativa com 186 atletas em idade para tornarem-se profissionais (18 a 20 anos, categoria júnior) vinculados aos clubes profissionais da primeira divisão do campeonato nacional brasileiro de 2008, conseguiu mensurar através de um questionário os seguintes dados:  Os meninos avaliados fizeram os primeiros testes para ingressar em um clube de futebol aos 12 anos de idade, junto à isso vêm os primeiros registros nas federações de futebol, ou seja, já existe uma vinculação entre o jovem e o clube;  Grande parte dos jovens passou por mais de um teste até fixarem- se no clube onde estavam durante o estudo;  O primeiro contrato de trabalho é assinado aos 17 anos de idade;  Aos 18 anos de idade, mais da metade desses jovens residia no alojamento dos clubes, encontrando-se em cidades diferentes daquelas que as famílias estavam;  Metade dos entrevistados em algum momento parou de frequentar a escola para seguir as atividades futebolísticas e grande parte não havia concluído o ensino médio;  Predominância de jovens das camadas populares. Com esta amostra significativa dos jovens vinculados aos clubes profissionais da primeira divisão no ano de 2008, podemos observar como são precoces a circulação e os investimentos na formação de futuros ―craques‖ do futebol profissional. A pouca idade dos jovens não impede a procura por um clube e dedicação quase exclusiva aos treinamentos em um projeto de tornar- se um jogador de futebol profissional, sendo um ―projeto de vida‖ (Velho, 1999) 69 de muitos deles. Mais recentemente, corroborando com os dados acima citados, através de um estudo de caso de 5 clubes na cidade de Pelotas, Rio Grando Sul, Rigo, da Silva e Rial (2018), analisaram a circulação e suas relações com a profissionalização e escolarização de 84 interlocutores. Ao reforçar a ideia de ―circulação‖, também recorrente na etapa prévia a profissionalização, a prioridade na conversão profissional referenda-se principalmente no suporte familiar para seguir adiante. Uma das principais referências comumente citadas para aceitação e a continuidade nesta carreira futebolística é a instituição familiar. Este ―suporte‖ dá condições não só materiais, mas também afetivas para poder dar prosseguimento na carreira pretendida. Carmen Rial (2008, p.39) em sua pesquisa já citada anteriormente investigou o processo de ―circulação‖ de futebolistas brasileiros no exterior, observa que uma das primeiras iniciativas dos ―boleiros‖ ao concretizarem a profissionalização e ao alcançarem certo poder aquisitivo é a de comprar uma casa para a mãe (família), ―realizando um sonho e devolvendo um pouco do que dizem ter recebido‖, deste projeto familiar. Ao evitar uma categoria mais usual de ―migração‖, a ―circulação‖ está ligada aos deslocamentos transnacionais entre clubes, e ainda, esta circulação é distinta de outros contextos, pois não acontece no interior de uma família tradicional nuclear. Conforme a própria autora intitula, o ―rodar‖ de futebolistas consagrados que estão no exterior torna-se possível, em grande parte, por ser um projeto familiar ancorado no ―caçulismo‖, pois os caçulas de famílias das camadas populares são os permitidos para ―investir‖ nesta carreira:

[...]é necessário algum excedente econômico para propiciar a liberação de um integrante da família do trabalho remunerado. Assim, o fato de serem os caçulas os que com mais probabilidade conseguem realizar o projeto de serem jogadores profissionais pode ser explicado tanto por terem tido a possibilidade de serem liberados da tarefa de garantir a sobrevivência do grupo familiar com o seu trabalho (função assumida pelos irmãos mais velhos) quanto por poderem contar com a presença de um integrante da família, irmão mais velho, pai e muitas vezes a mãe, para acompanhá-los à escolinha ou campos de prática, o que às vezes implica em longos deslocamentos em transporte público. (RIAL, 2008, p. 35).

Mesmo que utilizado para explicar como futebolistas brasileiros mais 70 reconhecidos ―rodam‖ ou ―circulam‖ no exterior, esse projeto de vida familiar tem grande ressonância nas camadas populares de jogadores que atuam no país conforme demonstram Rigo, da Silva e Rial (2018). Nestes dois últimos estudos citados, os jovens ―jogadores‖ também tinham origem das classes baixa e média-baixas, o que parece reafirmar uma tentativa de encontrar no futebol ascensão social e econômica, embora, após algumas observações, para o contexto de um futebol menor, as mobilidades de familiares e parentes, são consideradas exceções, pois dificilmente acontecem. Todavia, nem mesmo a dedicação quase exclusiva aos treinamentos assegura a profissionalização dos jovens futebolistas, e quando profissionalizados, os jovens ainda têm sua força de trabalho avaliada para ingressar em um regime dos clubes ―maiores‖ na busca de melhores condições de trabalho, de salários e de vida. Como assinalam Camilo Araújo Máximo de Souza e colaboradores (2008), essa busca por condições existenciais desejadas na trajetória de vida de futebolistas são apresentadas a partir das histórias de vida de dois jovens brasileiros que, aos 12 anos de idade, realizaram testes em um clube situado nos Países Baixos. Neste caso, dois jovens que tiveram uma formação futebolista semelhante vinculada a um determinado clube foram a Europa em um mesmo período de tempo. Um desses jovens, meses depois retorna e consegue fixar- se no clube europeu tornando-se um jogador ―bem-sucedido‖, e o outro permanece no Brasil realizando testes e insistindo para ingressar nessa mesma matriz espetacularizada. A busca pelo potencial de uma promissora carreira de futebolista, quantitativamente, ao que parece, oferece poucas alternativas aos que tentam permanecer no meio futebolista como forma de trabalho assalariado, pelo menos aquelas almejadas. No caso desses dois jovens: um consolida sua profissionalização em um clube europeu, como em alguns casos conhecidos de jogadores bem-sucedidos; e outro, permanece algum tempo buscando por sua afirmação enquanto jogador de futebol profissional em clubes da segunda divisão estadual, destino de muitos37. Contudo, é necessário questionar o quanto este destino é preterido e até que ponto ele é agenciado pelos próprios futebolistas. A possibilidade de se tornar um craque afeta as escolhas e investimentos dos jovens para a sua futura profissionalização. Estes e outros estudos sinalizam para um considerável contingente de jovens que apostam em

37 Os registros da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), entidade responsável pela organização da matriz espetacularizada no Brasil, possuem 800 clubes ditos profissionais. Nos últimos anos, consolidando um processo de hierarquização futebolística, apenas 60 destes disputam as três principais divisões nacionais. 71 sua profissionalização no futebol como uma das grandes possibilidades profissionais de vida, se não única alternativa, e, conforme destacam os autores Camilo de Souza e colaboradores (2008, p. 107), existem poucas ―oportunidades de reconversão do capital investido‖ 38. Um ponto ainda não explicitado no que se refere à formação dos jovens, todavia já incorporado ao sistema ―produtor‖ de futebolistas, diz respeito ao único espaço de construção desse jogador de futebol, ou seja, a formação específica para tornar-se um craque se dá nos clubes. É pensando na lógica de ―produção‖ de futebolistas para atuação no mercado de trabalho do futebol que Arlei Damo (2005), em outra parte de sua pesquisa, de acordo com a destinação dos jovens, divide os clubes formadores/produtores em três perspectivas: produção endógena, produção exógena e produção híbrida. Esses ―centros de formação estipulam, aferem e manipulam os capitais corporais demandados para a atuação profissional, estabelecidos a partir da relação entre a oferta de dom/talento e as demandas do mercado.‖ (DAMO, 2005, p. 124). Na lógica dos clubes, conforme o trabalho do autor, essas demandas podem produzir ―pés-de-obra‖ para atuar profissionalmente no próprio clube (modelo endógeno), atendendo exclusivamente as demandas do mercado como um todo (modelo exógeno), ou mesclando os interesses do clube com os de mercado em uma lógica considerada ―oportunista‖ (modelo híbrido). Os clubes do interior do Rio Grande do Sul atuam quase que exclusivamente em uma lógica híbrida, isto quando o ―departamento amador‖ (empiricamente nomeado como ―categorias de base‖) está em atividade. Não raro, neste contexto, as categorias de base alternam períodos de funcionamento e inatividade39. Quase exclusivamente, os investimentos iniciais visam à futura atuação nesse mercado forjado em torno do futebol, tanto por parte dos clubes como pelo lado dos jovens. Um investimento para uma condição diferenciada de atuação, portanto não é qualquer investimento. A operacionalização do mercado de formação futebolista parece se pautar na eminência de tornar-se

38 Quando acontecem, os investimentos nos centros de formação dos jogadores são baseados na lógica de um mercado do futebol. Arlei Damo (2005, p. 152) cita o exemplo de um clube que ofertou aulas particulares de língua inglesa para os jovens, tendo como justificativa uma melhor inserção no mercado europeu pela facilidade da negociação.

39 Sobre a produção de futebolistas em clubes do interior do Rio Grande do Sul e as possibilidades de inserção no universo do futebol profissional consultar: RIGO, Luiz Carlos; da SILVA, Daniel; RIAL, Carmen, (2018). 72 um ―jogador diferenciado‖, um ―craque‖. Essa condição diferenciada nomeada pelo ―craque‖, para além da especialização técnico-tático-física, contém a visibilidade de que, através do futebol, estes jovens podem ter fama e glória. A construção em torno do ―craque‖, que parece orientar os investimentos dos modelos de produção de futebolistas, constitui um dispositivo que deixa marcas na história de vida dos jovens. No caso do estudo de Camilo de Souza (2008, p.107), a trajetória de vida dos jovens compartilha um saber empírico de que ―à medida que o tempo passa, a entrada no mercado do futebol de espetáculo se torna mais difícil‖. Sem a necessidade de auferir uma idade de profissionalização média ou exata para os futebolistas, a constituição da carreira esportiva parece ―nascer com os dias contados‖. A precocidade em voga para a formação dos jovens futebolistas coaduna com o tempo de aceitação para o desempenho com alguma excelência40. Mesmo com muitos investimentos apresentados aqui – formação inicial nos centros de treinamento, disponibilidade familiar, além de outros importantes, como intermédio de empresários nos contratos com clubes, etc. – o tempo de carreira é relativamente curto se comparado a outras profissões. Como é afirmado ao longo da literatura, dificilmente este saber futebolístico é reconvertido em outras profissões. Ao permanecer algum tempo na profissão e com alguma antecedência ao final da carreira, parte dos futebolistas preparam-se para permanecer próximos do sistema futebolístico, principalmente tendo em vista a ―aposentadoria‖: ―Curso administração para atuar como empresário no futebol‖ (trecho diário de campo conversa com Camilo); ou ainda, ―estou optando por investir em imóveis, nós vamos fazer uma quadra sintética‖ (Nathan, 29 anos, Rio Grande, clube ―segunda divisão‖ Rio Grande do Sul, entrevista, maio 2012).

40 Mesmo aqueles que conseguem a profissionalização e seguem no futebol, obtendo fama ou não, lidam com o pouco tempo de duração do trabalho assalariado no futebol que é reduzido se comparado a outras profissões. Em uma pesquisa na área da Psicologia do Esporte, Marisa Cury Agresta e colaboradores (2008) entrevistaram 79 ex- atletas profissionais de duas modalidades, futebol e basquetebol. Com uma média de 18 anos de prática, os atletas aposentavam-se por volta dos 34 anos de idade. Embora os ex-atletas de futebol estivessem na mesma amostra dos ex-atletas de basquete, o que poderia causar uma variação no levantamento de dados do estudo para nossos fins, pode-se perceber que pelos anos de prática (18) e pela idade de aposentadoria (34), o começo da carreira de atleta inicia-se por volta dos 16 anos de idade. Com uma amostra de 57 futebolistas e 22 ex-jogadores de basquete, o estudo citado está próximo de outros dados já citados, qual seja, o tempo de prática considerado pelos futebolistas ao aposentarem-se inicia entre o ingresso nos clubes de formação (12 anos) e o da profissionalização (entre 17 e 20 anos). 73

Por isso, o tempo de permanência na profissão é limitado e seguramente nunca o desejado. O investimento feito em um capital corporal específico tem limitado a atuação de uma ―reconversão‖ para outras profissões. Somado a isso, poucos clubes podem manter pagamentos aos futebolistas os grandes salários divulgados nos meios de comunicação de massa. Com raríssimas exceções, estes mesmos meios de comunicação reforçam as possibilidades de um ―futuro promissor‖ e de cifras elevadas até mesmo para o sistema futebolístico41. Logo, duas formas distintas de aceitação estão colocadas nesse meio futebolístico. A primeira diz respeito à condição de aspirante à profissional, contudo, assim que conseguem a vinculação profissional com um clube existe uma segunda aceitação, a da permanência no mercado de trabalho do futebol pelas exigências do desempenho do futebolista. Como já indicado, os espaços para se destacar em um mercado extremamente competitivo são poucos e altamente seletivos. Os jovens ainda têm de aprender a lidar com este tensionamento profissional constante, aliado à eminência de tornarem-se craques e alcançar fama e glória enquanto futebolistas. Entretanto, o que é possível fazer quando tais expectativas não se realizam? Até o momento, conforme o levantamento feito aqui, os estudos já realizados com jogadores de futebol enfatizaram dois momentos ou estados pelos quais estes passam em sua trajetória, a formação/produção/conversão e a aposentadoria/reconversão. Em maior parte, a fase de iniciação ou formação de futuros craques está visível e ganha importância no meio acadêmico, principalmente no que se refere às estratégias para a profissionalização, condições físico-estruturais dos investimentos iniciais dos clubes em jovens, o regime de treinamento aplicado nas ―categorias de base‖, entre outros conhecimentos mediados. Um segundo momento ainda pouco investigado trata-se da reconversão profissional ou aposentadoria do futebol, já passando a ocupar profissões ligadas ou não ao futebol42.

41 Ver, por exemplo, reportagem do maior jornal de circulação do Rio Grande do Sul com autoria de Silva e Germano (2012) sobre o pagamento com valores exorbitantes de uma exceção a regra dos baixos custos e investimentos nas categorias de base.

42 Neste segundo momento da carreira de futebolista, tratado por ―aposentadoria‖, alguns estudos estão preocupados principalmente na procura pelas causas e conseqüências da aposentadoria no esporte, a motivação e os comportamentos durante as carreiras esportivas, evidenciados pelo referencial comportamental da Psicologia em estudos na área de Psicologia do Esporte, com o qual não pretendemos pormenorizar. Todavia foi possível encontrar dois estudos sobre o período de transição (ou 74

Tendo em conta a perspectiva dos jogadores de futebol profissional, supondo que os investimentos por uma profissionalização no futebol se deem, em grande parte, pela busca de ―fama‖ e ―glória‖ contidas no projeto de tornarem-se craques, o que podemos fazer com esse suposto que existe? Em outras palavras, como é possível permanecer em um estado porvir de jogador na espera pela concretização da almejada carreira profissional43? Entre os estudos encontrados para a discussão da profissionalização do futebol verificamos a pouca atenção dada, ou mesmo desconsideração, para uma carreira que está à margem de outras mais ―gloriosas‖. Muitos ingressam e permanecem em um futebol menor (distante da permanente exposição midiática), entretanto diante dessa maioridade quantitativa, poucos são aqueles que se tornaram objetos de estudos acadêmicos. Assim, as questões de formação e aposentadoria estão presentes nas análises feitas, mas tem como ponto de partida o contato com futebolistas que se mantiveram no sistema futebolístico. Prestamos-nos questionar sobre os processos e acontecimentos constituintes da trajetória profissional (prioritariamente em clubes menores), futebolistas que na maior parte de suas carreiras estiveram longe do glamour midiático e dos milionários salários que recebem alguns (poucos) reconhecidos futebolistas nacionais e internacionais. Uma das lacunas identificada nos estudos acadêmicos referentes ao futebol no Brasil.

2.3 PREFÊRENCIAS E OPORTUNIDADES NACIONAIS: ALGUMAS RELAÇÕES ENTRE FUTEBOLISTAS E CLUBES Os Países Baixos é um exemplo possível para analisar o deslocamento de futebolistas em busca da concretização de um ―sonho‖: se tornar um jogador profissional e jogar no continente europeu. Comparado com outras ligas de futebol, é um destino preterido por alguns futebolistas brasileiros, apesar do baixo número de transferências nos últimos 30 anos temos o registro de 81 no total (levantamento quantitativo atualizado até 2014). Como comparação, em qualquer ano desde o ano 2000, Portugal, Alemanha e Japão superam esta quantidade. Tomando como exemplo a circulação para os Países Baixos, para 53 jogadores, foi o primeiro clube europeu, alguns deles mais famosos como reconversão) profissional como os estudos de Radamés de Mesquita ROGÉRIO (2014) e Aline Rodrigues GUIMARÃES (2012). 43 Compartilho do entendimento de Cláudia Neves (2004, p. 38) de que o porvir não se reduz a um estado futuro que sucede um tempo cronológico presente. Conforme a perspectiva deleuzeana, esse porvir é entendido como ―ruptura e condição possível no presente‖. 75

Romário, Ronaldo, Vampeta, Michel Bastos, Gomes, Maxwell e Cassio Ramos, e outros menos, como Leonardo dos Santos Silva, Alair Cruz Vicente, Hugo Alves e Leonardo Vitor Santiago. As escolhas para jogar no exterior dificilmente não são mediadas por agentes, principalmente quando são feitas para clubes e países desconhecidos, assim como no contexto nacional: "Eu pensei que era hora de sair e procurar planos maiores, então eu fiz a escolha errada. Fui para Brasília, um agente me ligou, ele viu alguns jogos, ele também leu alguma notícia, por um longo tempo, ele estava em contato comigo." (Sérgio, 28 anos, Pelotas, temporariamente sem contrato, entrevista, maio 2012). Embora, alguns destinos não são os mais privilegiados para se obter visibilidade internacional, as escolhas de Sérgio se deram a partir de algumas condições em um determinado momento de sua carreira para ir à China. Como Sérgio se referiu, "Eu não pensei duas vezes, eu tenho que ir. Foi a oportunidade econômica da minha vida. Eu não hesitei." A negociação com os agentes, não significa apenas uma forma de obter no exterior, assinar bons contratos e manter a circulação de discursos, dinheiro e pessoas. Mais que isso, disputa desejos, sonhos e projetos de carreira sempre coletivos. A efetividade de novos contratos, para destinos não imaginados anteriormente são consolidados por três dispositivos: agentes, treinadores e indicações de outros futebolistas. Em um nível menor, tais deslocamentos muitas vezes não aparecem nos números oficiais, como observamos em 2012, quando um grupo de jogadores de futebol brasileiros que foram para a cidade do Porto e regressaram ao Brasil sem concretizar a transferência, além disso, sem concretizar o planejamento acordado com seus agentes44. Mobilidades e existências que não compõem os números oficiais ao longo do tempo e não são expostos pelos flashes dos meios de comunicação ou outros dispositivos de poder, embora sejam celebradas micropoliticamente, o que significa de forma coletiva. A estratégia de vincular futebol e identidade nacional também é um dispositivo contextual. Associada com a idade, a quantidade de ―aparições‖ nas seleções internacionais, ou outras variáveis quantitativas, deriva a importância e o salário de um jogador de futebol, de uma carreira e frequentemente o valor de uma vida. Mesmo nos exemplos que decidem permanecer em um país, é necessário notar a presença do que citamos como condições de possibilidade e projetos de vida, em última

44 Na cidade do Porto mantive contato com um grupo 4 brasileiros em setembro de 2012. Em um período de uma semana, estive em contato diário com alguns deles, frequentando seu período de testes em um dos clubes da cidade, acompanhando-os nos trajetos de metrô, e logo deste período, nenhum deles foi contratado pelo clube. Nesta ocasião, 3 deles regressaram ao Brasil para tentar assinar novos contratos. 76 instância, quais são as opções e as escolhas possíveis para esta permanência. Outros estudos também abordam essa questão. Como Carmen Rial (2008) sugere os futebolistas não atravessam fronteiras do mesmo modo que outros emigrantes econômicos, vivendo em uma espécie de ―bolha‖ oferecido por clubes, hotéis e agentes, embora existam alguns elementos locais que constituem singularidades. As disputas sobre as identidades nacionais e a associação histórica entre brasileiros e as vitórias da equipe nacional do país de origem são componentes que interferem no capital futebolístico de cada sujeito. Como afirma Carmen Rial (2016, p.84):

[...] as celebridades exalam uma aura que ilumina jogadores desconhecidos, causando o seu valor a subir no mercado como se a sua origem nacional lhes desse uma garantia étnica de bons desempenhos45.

Com relação aos processos migratórios efetuados pós-1990, recai sobre nossa análise a importância dos marcos regulatórios que influenciaram as decisões ―individuais‖ (condições de possibilidade, nos termos de Gilberto Velho, 1999), e, por conseguinte reconfiguraram as relações entre clubes e futebolistas fazendo emergir uma nova figura, intermediária no processo de estabelecimento de vínculos contratuais (entre outros): ―agentes‖, ou ainda, empresários. Especialmente o conhecido ―caso Bosman‖ detonou instâncias decisórias para a formulação de leis específicas quanto às relações contratuais entre futebolistas e clubes, e consequentemente, sobre os processos migratórios (circulação) de futebolistas. No contexto europeu, antes do caso Bosman, as trasferências de futebolistas estavam desarticuladas e pouco regulamentadas. A UEFA se sobrepunha as leis internas de suas afiliadas, além de interferir com maior organização e defesa dos interesses dos clubes (o corpo diretivo de cada clube era o responsável pelos contratos e não existiam empresários como intermediários) e menor organização dos ―trabalhadores‖ (McArdle, 2000). Há vários registros sobre os processos jurídicos que mudaram paulatinamente a relação entre clubes e futebolistas, sobretudo aqueles que dizem respeito à circulação de futebolistas e às condições de possibilidade para esta circulação. Um destes processos refere-se ao ―caso Eastham‖ em 1963 na

45 Tradução própia de: ―[...] the celebrities exude an aura that casts its light onto unknown players, causing their value to rise in the market as if their national origin give them an ethnic guarantee of good perfomances‖. 77

Inglaterra como prévio ao caso Bosman, considerando a migração de futebolistas de diferentes origens ao contexto inglês. Segundo McArdle (Op.cit.), após o julgamento desse caso, as negociações de salário deveriam ser do mesmo patamar das do contrato anterior, além do período de duração dos contratos serem iguais, ou superiores, nunca inferiores. Neste momento ocorre a imposição de ―cotas‖ com a justificativa de que o time vencedor de um campeonato seria ―representativo‖ do campeonato da região e, portanto, deveria expressar as relações de pertencimento regionais através do esporte. Quanto a essas considerações anteriores ao caso Bosman, as prerrogativas regulatórias envolvendo a transferência de futebolistas elaborada pela UEFA, foram questionadas pelo Tribunal Europeu (Euroupean Courty) a respeito de ―interesses exclusivamente esportivos‖ 46, uma vez que as imposições restritivas da circulação de futebolistas nas ligas profissionais afetavam o acordo europeu (conhecido como Tratado de Roma) sobre os direitos migratórios de livre circulação de pessoas e prestação de serviços estabelecidos. Foi somente em 1991 que a UEFA passou a definir uma política regulatória para os futebolistas ―extra-comunitarios‖ (foregin players), através de um ―acordo entre cavalheiros‖ (gentlemen's agreement), quando definiu a quantidade aceitável de futebolistas não pertencentes a ―comunidade européia‖, assim como estabeleceu a categoria de ―assimilados‖ (assimilated), os quais deveriam ter uma permanência não menor a cinco anos nos países membro. Tais condições alteraram significativamente o mercado europeu, ainda que a aplicação e a regulação das transferências de futebolistas encontrem-se sob controle de contextos dramaticamente nacionais. Neste sentido, ao concordar com Loïc Wacquant (1995, p.66), procuro ―situar as estratégias individuais e as trajetórias coletivas tanto na estrutura social local como no quadro mais amplo do mercado e do Estado nacional‖. No contexto brasileiro, a Lei Pelé (BRASIL, 1998) implementou a extinção da relação contratual anteriormente conhecida como ―Lei do passe‖. Passou a vigorar um controle sobre o contrato das transferências no mercado nacional, assim como ocorreu uma paulatina modificação da atuação de associações esportivas pensadas sobre a lógica empresarial, onde a produção de mercadorias (futebolistas) adequou-se ao contexto nacional, ainda sim, com alguma articulação no mercado internacional47.

46 Termo da sentença do caso italiano de 1976, ―Dona v. Mantero‖ (McArdle, 2000, p.30). 47 Para uma análise detalhada sobre a Lei Pelé, consultar: RODRIGUES, Francisco Xavier Freire (2007); SOUZA, Priscilla Andreata Rosa de (2008). 78

Mesmo modificada pela emergência de um novo marco regulatório para o mercado de transferências de futebolistas, a busca por estratégias de inserção profissional também é condicionada pelas condições de possibilidade de cada sujeito. No caso de Fábio (26 anos, Groningen, clube primeira divisão Países Baixos, entrevista, out. 2013), brasileiro com cidadania italiana, ―[...] entrei como europeu, eles [clube] puderam pagar um salário como o de qualquer um aqui. Facilitou muito, se eu não tivesse passaporte eu não teria vindo. Eles só me pegaram também por eu ter o passaporte‖. Ainda que, Maurício, como um futebolista ―assimilado‖ por sua permanência de mais de 15 anos no país, tenha relativizado tais estratégias a partir do seu pedido de nacionalidade holandesa:

[…] pensava também poder ir para outro país com nacionalidade européia para jogar bola. Mas hoje eu sei que isso não ajuda, não. Ajuda um pouquinho, o que ajuda é voce ser bom mesmo. Não importa se você é Brasileiro, se você é Africano, se você é Australiano, não importa, se você for bom mesmo eles [clubes] contratam e pronto. (Maurício, 36 anos, Rotterdam, clube ―amador‖ Países Baixos, entrevista, junho 2013). Tais condicionantes para a circulação de futebolistas encontram-se colocadas a partir de restrições, liberações e algumas contingências. Passamos agora a situar tais estratégias individuais em contextos coletivistas.

2.4 DAS APOSTAS FAMILIARES: ALGUNS FUTEBOLISTAS INFAMES Como recurso à constituição das relações de interlocução, procurei privilegiar os contatos com futebolistas que não disputavam os campeonatos nacionais em suas divisões principais. Somado a condicionante de acompanhar futebolistas de clubes situados no Brasil, Países Baixos e Portugal, tal opção não foi tomada como um critério excludente, uma vez que: a. 2 dos 13 selecionados já não estavam sobre regime contratual como futebolistas de um clube, enquanto um deles havia realizado a reconversão profissional sendo treinador das categorias de base de um dos clubes de sua atuação enquanto futebolista, o outro se encontrava sobre um regime semelhante ao ―profissional‖, recebendo retribuições pecuniárias por ―partida‖, ao mesmo tempo que mantinha um emprego estável alheio ao futebol; b. 2 dos 13 selecionados participavam do principal campeonato do país, uma vez que mantinham relações com outros 2 interlocutores, ao mesmo tempo que ao longo da carreira alternavam participações em clubes de maior ou menor visibilidade, optei por manter uma relação de contatos permanente. 79

Mesmo assim, 7 dos 13 futebolistas já haviam participado do principal campeonato dos países onde foram contratados, entre eles o Chelsea e Feyenoord, e um dos entrevistados já havia participado das seleções brasileiras das categorias de base; c. 12 dos 13 interlocutores, haviam tido alguma experência profissional fora do país sob regime contratual; d. 1 dos interlocutores não era ―brasileiro‖, tampouco possuía qualquer tipo de registro civil que o reconhecesse como tal. Neste caso, a escolha deve- se principalmente pelo fato de manter estreitos vínculos com outros interlocutores, como já citado anteriormente. No que diz respeito a algumas escolhas tomadas pelos interlocutores, é unânime a condição de ―suporte familiar‖ nas decisões de continuidade para sua profissionalização:

Eu jogava em escolinha e meu pai falou: ―tem essa peneira aqui para gente poder dar um passo maior e tudo mais, vamos ver até onde você chega...‖ [L: Teu pai que te incentivou?] Meu pai sempre do meu lado. ―Vamos ver aonde você chega, 72 mil é bastante‖. Deu que desses 72 mil, 72 seriam escolhidos, quer dizer, um jogador para cada mil. Eu fui escolhido, foi onde começou. (Caio, 24 anos, Tilburg, clube segunda divisão Países Baixos, entrevista, setembro 2013).

Essa espécie de ―aposta‖ na concretização profissional é acompanhada de muitas outras relações estabelecidas entre a família nuclear e o futebolista. Assim como as exigências no que refere aos treinamentos rumo à profissionalização não é isenta de certo grau de compromisso quanto à dedicação quase exclusiva às práticas futebolísticas. Mesmo com uma profissionalização tardiamente concretizada, Nathan (29 anos, Rio Grande, clube ―segunda divisão‖ Rio Grande do Sul, entrevista, maio 2012) refere-se à obrigatoriedade demandada por suas referentes familiares:

eles [mãe e pai] sempre queriam que eu jogasse futebol sabe, sempre me apoiavam, porque eu não gostava de pedir dinheiro pra eles sabe, nem tinha trabalhado alguma coisa, uma vez nós fomos trabalhar até, me deram uma tunda, porque eu fui trabalhar escondido48.

48 No Rio Grande do Sul ―tunda‖ refere-se aos golpes e castigos físicos feitos contra uma pessoa. 80

Ao referir-se ao suporte familiar, Caio coloca a questão da seguinte forma:

Até hoje. Ele [pai] e minha mãe. Tem que colocar eles a par da história senão eles ficam meio malucos. Eles gostam de saber tudo e de dar opinião deles também. Eu acho legal também receber a opinião deles também porque querendo ou não, pai e mãe, vem a opinião coração, as vezes é importante. Até pros clubes e caminhos que eu estou fazendo, muito foi parte deles, foi opção deles, ajuda deles. Até hoje é assim e vai continuar sendo assim. (Caio, 24 anos, Tilburg, clube segunda divisão Países Baixos, entrevista, setembro 2013).

Além disso, parte dos recursos do orçamento familiar é destinada ao auxílio econômico como relata Maurício (entrevista, 37 anos, Rotterdam, clube ―amador‖ Países Baixos, outubro 2013):

Meu pai sempre me ajudou na questão financeira. Nós recebíamos uma ajuda de custo, mas era pouco, meu pai sempre me ajudou na ―passagem‖ vamos dizer assim, ou as vezes no lanche, as vezes nem tinha dinheiro para comprar lanche, mas a passagem nunca faltou. E a minha mãe também em casa, me ajudando, dando força.

Particularmente, considero como evidente através do relato de Maurício que esta ―aposta‖ não diz respeito exclusivamente à destinação dos recursos econômicos familiares, como citado no trecho acima, sua ―mãe também em casa, me ajudando‖. Assim, podemos afirmar que parte da ―aposta‖ familiar na esperada ―profissionalização‖ também é realizada a partir da redistribuição econômica em função do trabalho doméstico. Em outras circunstâncias, segundo a divisão do trabalho, o suporte familiar foi exercido para dar sustentação à assistência aos treinamentos como Édson refere-se (25 anos, Balneário Camboriú, clube segunda divisão de Santa Catarina, entrevista, março 2013): Era longe pra caramba, minha mãe me levava a pé. No ano seguinte, fui jogar no Coritiba, era muito longe e tinha que pegar 2, 3 ônibus para chegar até o local. Mais a minha mãe, meu pai sempre trabalhou o dia inteiro e a minha mãe ficava em casa. 81

De outra forma, direta e explicitamente citada, o caso de Camilo expressa mais formas de como o suporte familiar é exercido de modo mais amplo que a própia família nuclear com vistas à concretização do ―sonho‖. Em seu relato, algumas ―condições de possibilidade‖ se referiam a melhores condições de moradia em seu primeiro clube fora de sua cidade de residência:

Fiquei um mês no próprio clube, embaixo das arquibancadas. Um quartão gigante e tinha umas 10 camas. Muito grande e muito ruim também. E nesse um mês, um mês e pouco, uma tia minha que mora em Porto Alegre me convidou para morar com ela. Se não eu continuaria morando no clube. Essa minha tia me ajudou muito no começo, ela foi a minha mãe, porque com 14 anos tu saí de casa, 14 pra 15 anos tu saí de casa, tu sofre no começo, o cara chora de saudade no começo, mas o que vale mais é o sonho do cara. E essa minha tia nesse período me ajudou muito, nem se fala. (Camilo, 28 anos, Pelotas, clube segunda divisão do Rio Grande do Sul, entrevista, agosto 2012).

No que se refere às condições de moradia, seu relato coincide com algumas das condições ofertadas ao grande contigente de ―sonhadores‖ que pude tomar contato através dos relatos de meus interlocutores e algumas situações vivenciadas durante o trabalho de campo. No caso de Brian, essa condição de moradia compatilhada esteve associada à possibilidade de continuar a educação formal, ―depois eu mudei pra Vitória, morei um tempo com a minha tia, passei a estudar lá pra não perder as aulas‖ (32 anos, ‗s- Hertogenbosch, clube ―segunda divisão‖ Países Baixos, entrevista, fevereiro 2014). Assim como Brian, muitos são os futebolistas brasileiros em formação que encontram dificuldades para conciliar o investimento em se produzir futebolista e seguir a escolarização com algum ―êxito‖. Fato que a passa a restringir as possiblidades de reconversão profissional para aqueles que não venham a efetivar-se como profissional e ainda interrompam a formação escolar (RIGO, DA SILVA, RIAL, 2018). Com relação aos aportes econômicos exercidos através das relações de parentesco, Camilo ainda refere-se:

No começo era meio difícil, como eu te falei, no primeiro ano de juvenil, 14 anos tu ganhas uma ajuda de custo, mais passagem, alimentação essas coisas, 82

mais uns trocados assim. Às vezes não dava, quem me ajudou muito foi a minha tia, financeiramente ela me ajudou mais que meus pais até. (Camilo, 28 anos, Pelotas, clube segunda divisão do Rio Grande do Sul, entrevista, agosto 2012).

Nesse sentido, a ―aposta familiar‖ é extendida às relações de parentesco a partir do núcleo familiar em uma espécie de projeto coletivo e individual. A realização individual do ―sonho‖ é marcada por um conjunto de ações de uma coletividade mais ampla que o própio núcleo familiar como relata Camilo. Quanto a essa questão, Enrico Spaggiari (2015, p.393) refere-se a uma configuração ―a partir de um projeto quase sempre encetado na família de origem (de concentração, principalmente do pai, mãe e filho), mas que se alarga, cria novas formas de laços que atualizam as dinâmicas relacionais‖. Tal projeto vem ao encontro do argumento utilizado por Enrico Spaggiari (2015) ao basear sua análise naquilo que chama de ―famílias esportivas‖, estas por sua vez se referem ao:

Modelo de constituição e atualização de relacionalidades do projeto familiar futebolísticos, a família esportiva é um constructo mais vasto do que o de família, articulado pelas relações que adquirem novos significados dentro do sistema futebolístico. Tem como base a produção de relacionalidade (relatedness), aqui entendida como a constituição relacional de contexto e pessoas observada nas experiências cotidianas de jovens, crianças, adultos, mulheres e homens (treinadores, olheiros, agentes de futebol, dirigentes amadores) que atravessam e circulam pelo sistema futebolístico. (SPAGGIARI, 2015, pp.392-393, grifos no original).

No que pese o contexto familiar, essa ―relacionalidade‖ é construída a partir das trajetórias dos futebolistas. Em distintos contextos migratórios, os interlocutores com quem mantive contato deixaram as moradias de seus familiares entre os 14 e os 16 anos com vistas à ampliação das rotinas de treinamento para a prática futeboliística e o regime de confinamento nas moradias dos clubes receptores. Por outro lado, as questões afetivas são colocadas permanentemente quando o ―empresário‖ assume o protagonismo de algumas relações esperadas pela instituição familiar. Ao concordar com a noção de famílias esportivas (Enrico Spaggiari, 2015), as quase sempre tensas relações entre futebolistas e 83 empresários, Caio lança mão da ideia de um ―amigo-pai‖ a partir dos vínculos criados com o empresário que ―administrava sua carreira‖, por ele assim referido: Eu já tive vários problemas, família, às vezes você não está num dia legal, às vezes você está triste ou você quer conversar com ele, já me deu vontade de voltar para o Brasil e às vezes o empresário não está ali para isso. Às vezes ele está só para ganhar dinheiro com você. Ele não, ele é um cara que você pode ligar porque vai te dar um conselho como um ―amigo-pai‖, vamos dizer assim. Então nessa parte aí eu posso dizer que eu tive sorte por encontrar um empresário bacana. (Caio, 24 anos, Tilburg, clube segunda divisão Países Baixos, entrevista, setembro 2013).

Em relação às expectativas afetivas e à construção da relacionalidade colocada por Enrico Spaggiari (2015), a partir do relato da experiência de Sílvio também encontrei a mudança no rol profissional de seu pai, em função de sua condição de ―empreendendor‖ alheio ao futebol e sua aproximação com as expectativas do futebolista. Sílvio, quando perguntado sobre sua relação com empresários, respondeu da seguinte forma: ―Tiveram outros que não valeram a pena [empresários], eu tive outros exemplos, mas eu tô indo mais pelo meu pai, meu pai está me ajudando muito‖. (Sílvio, 21 anos, Porto, clube divisão distrital Portugal, entrevista, fevereiro 2014). Ainda assim, com relação à complexa construção das afetividades a partir do futebol, especialmente nos contextos migratórios (quase a regra das trajetórias de futebolistas), são entramadas circunstacialmente pelas experiências dos sujeitos, como Sílvio sugere ao relatar uma possível ―volta ao Brasil‖: As dificuldades que eu teria de voltar para o Brasil [...] teria que falar muito bem com o meu pai, eu to indo pra um clube na Alemanha, mas não tem nada certo, meu pai que está tratando disso. Se aparecer alguma coisa boa, a gente pode pensar, hoje depende tudo do meu pai, eu só jogo bola. Se tiver contrato é ele quem cuida, pra não ficar com essas coisas na cabeça. Ele me fala, tem isso, isso e isso, ele fala com a pessoa, se der tudo certo eu sigo. (Sílvio, 21 anos, Porto, clube divisão distrital Portugal, entrevista, fevereiro 2014).

E, por último, Maurício refere-se ao contexto de sua ―família esportiva‖ do seguinte modo: ―Minha família jogava futebol, mas ninguém nunca jogou 84 profissionalmente. Então eles só achavam legal que eu jogava profissional‖ (36 anos, clube ―amador‖ Países Baixos, entrevista, junho 2013). Mesmo com a ausência do profissionalismo familiar no futebol, Maurício ainda recorreu a este suporte quando necessitou fazer escolhas para sua profissão ―Tinha até um tio que me ajudava mais, a gente falava assim, que tinha mais estudo ou sabedoria‖. Com relação à constituição das experiências dos futebolistas em questão, uma das ambiguidades aparentes colocada para as escolhas profissionais passa pela atualização do conceito de ―jogo‖ do historiador holandês Johan Huizinga (2007). A carreira em meio ao futebol pode ser concebida a partir de uma aparente contradição, uma vez que em oposição ao ―trabalho‖ das vidas ordinárias como sendo ―sério‖, futebolistas oriundos de camadas populares investem em um capital futebolístico e produzem um etos relacionado ao prazer, à desobrigação e ao divertimento. Por sua vez, futebolistas oriundos de camadas médias também mantêm a produção desse etos, apostando na concretização da esperada carreira, mas possuem alternativas pautadas no ingresso no Ensino Superior, tal como colocam: a. Camilo: ―[...]futebol pode chegar um treinador ali, outra pessoa e te tirar, o estudo é uma coisa que ninguém vai me tirar, então comecei a estudar. Isso eu fiz, um ano e meio na faculdade[...]‖ (entrevista, agosto 2012); b. Caio: ―[...]estava estudando na época, vai pra faculdade ou vai ter que dar uma segurado nos estudos pra poder ir embora pro futebol‖, (entrevista, setembro 2013); c. Édson: ―[...]meu irmão sempre jogou comigo, mas quando ele teve que optar, ele optou, o ensino médio, depois facultade, hoje ele é advogado‖, (entrevista, março 2013); d. Fábio, o qual teria seguido ―estudando‖ no caso de que não houvesse efetivado o primeiro contrato profissional. Tal ambiguidade aparente se encontra submetida ao tratamento de um trabalho onde se trata de ―jogar‖, mesmo que conceitualmente a prática do futebol não possa ser considerada como autotélica e que tampouco tenha o divertimento como componente central de seu exercício. ―Jogar futebol‖, tal como concebem os futebolistas, contradiz a prática lúdica imaginada para o contexto do futebol ―profissional‖ ou inserido na ―matriz espetacularizada‖ nos termos de Arlei Damo (2005). Esses profissionais são homens, mantém uma espécie de projeto coletivo através de migrações (circulação) constantemente potencializadas por suas famílias, no entanto, ao mesmo tempo encontramos alguns discursos dissidentes. Os futebolistas infames, não são apenas um produto a ser vendido e comprado, para, além disso, ocupam lugar nesta demanda subjetiva em se 85 tornar algo precioso para ser visto, falado, ouvido, comentado nas vidas diárias. Neste sentido, fazer parte de discursos que avaliam algumas narrativas mais válidas do que outras. Por outro lado, contando com leis permissivas e sem maiores regulações sobre a atuação dos empresários, é a partir da legislação nacional que se habilita a exportação de futebolistas com baixos investimentos internos e progressivos dividendos nos mercados internacionais. Ao ponto do epicentro do mercado futebolístico drenar parte dessa produção precocemente sem oferecer maiores contrapartidas e garantias profisionais, sejam elas no futebol ou fora dele. Conferindo essa condição comum, passamos a definir algumas questões a seguir, tendo em consideração as contracorrentes, as relutâncias de caminhos tortuosos abominados pelos contos nobres e pela história oficial. Diante disso, é possível escrever sobre exemplares vidas infames, sem a intenção de torná-las gerais? Como é realizado um tornar-se menor (devir) de um futebolista? Como o exercício profissional, e mais, o estilo de vida, é alterado pelas condições de possibilidade? Quais são as potencialidades de prestar a atenção para a questão infame no contexto do futebol?

86

87

3. A CONSTITUIÇÃO DE UM FUTEBOL MENOR: A EMERGÊNCIA DE UM CONCEITO

Não estou absolutamente em busca de aprofundar o sentido do texto quando o leio, (…) o que procuro é o primeiro estado desse texto, assim como a gente tenta se lembrar de um acontecimento longínquo, não vivido, mas ―ouvido dizer‖. O sentido virá depois, não precisa de mim. A voz da leitura, por si mesma, irá dá-lo sem intervenção de minha parte. A leitura se propões em voz alta exatamente como se propões só para você, da primeira vez, sem voz. Essa lentidão, essa indisciplina da pontuação, é como se eu despisse as palavras, uma depois das outras e descobrisse o que estava por baixo, a palavra isolada, irreconhecível, despojada de qualquer identidade, abandonada.

Marguerite Duras, escritora e cineasta, 1988, p.111.

No que se refere à legitimação desse espaço a ser disputado a contrapelo das narrativas hegemônicas sobre o futebol ―profissional‖ e seus futebolistas, entendo a minoria distinto de minoritário. O primeiro um conjunto, um estado, condição, a segunda uma potência, um processo. Do enunciado ―moça, você é machista‖, a mulher, sujeita da enunciação, precisa passar por um devir-mulher para questionar as relações de poder colocadas no plano cultural. Nem todos os futebolistas passam por um devir- menor. O que seria esse devir-menor? A relação estabecida por cada sujeito para tornar-se o ―devir‖, já que não é um processo de filiação, tampouco de aliança aos processos pelos quais passam as experimentações em uma carreira. Primeiro pela exigência, ou ainda o ―sonho‖, de ter uma carreira. Ao tomar a produção midiática nacional de um ―deus encarnado‖ como foi feito a imagem do piloto brasileiro Ayrton Senna – tecnologia associada aos anseios nacionais –, Daniel Lins (1995, p.87), nos oferece uma interpretação para a construção da falácia imaginária do herói, personagem necessária para a realidade midiática, pois ―o herói, o ganhador, significa então um rebelde em potência. Herói apocalítico, ideologicamente apático, sem reivindicação nem grito de protesto‖ 49. Em um futebol menor, a (im)possibilidade de narração dos fatos a partir da mitologia e do herói em suas múltiplas formas dizem respeito a uma figura

49 Ainda sobre a construção imagética de Senna, consultar o trabalho de: BERNARDO, Adiléia (1988), intitulado: ―Efeito Tamburello: um estudo antropológico sobre as imagens de/em Ayrton Senna‖. 88 de representação, a qual, permanece no imaginário com ínfima duração intensiva. Uma imolação que deve ser constantemente repetida para ser atualizada. O conceito de futebol menor necessariamente estabelece uma relação com a fama, pois historicamente a incorporação dos futebolistas no futebol contemporâneo vem acontecendo a partir da transição entre um futebol de espetáculo para um futebol de tele-espetáculo. Essa transição demarcada pela ampliação da importância midiática na transmissão esportiva (Marcelo Proni, 1998; José Sérgio Leite Lopes, 1999; Georges Vigarello, 2008) produz novas formas representação em função da especialização técnica (criação de canais esportivos, proliferação e aumento de competições esportivas, multiplicação das horas transmitidas, etc.) que por sua vez é retroalimentada pela fruição estética de quem a consome (Hans Gumbrecht, 2007). Neste sentido, ao longo da tese contraponho a versão de uma história oficial, assim como, de uma memória comum para significar de maneira unânime a história vitoriosa, ou dos vencedores, proliferadas a partir de imagens telemáticas (aquelas concentradas em bancos de imagens digitais e/ou físicos). Ao mesmo tempo, a partir dos projetos de vida de futebolistas infames, contesto a pseudo-meritocracia de ―jogar bem‖ (dom/talento) como via exclusiva e excludente para a profissionalização no esporte. No que se refere à noção de regimes de visibilidade, concordamos com o argumento de Andrea Brighenti (2010) que a define a partir da intersecção entre os domínios da estética (relações de percepção) e da política (relações de poder). Assim, tomamos em consideração a visibilidade do tipo midiática para situar a veiculação de imagens de futebolistas de um futebol menor50. Sobre a produção de imagens contemporâneas, podemos analisar pelo menos a partir de dois aspectos: a) a forma com que as imagens são produzidas e o valor de sua exposição (ou dos usos do espetáculo), o que poderia ser considerado em nosso caso para o contexto onde, quando e como estão inseridas a (re)produção das imagens de futebolistas brasileiros (através

50 Segundo a autora, ainda podemos diferenciar a visibilidade a partir do tipo ―social‖, a qual se encontra associada à ideia de reconhecimento; a visibilidade como ―controle‖, utilizada como forma de regulação; e a ―midiática‖, a qual ―os sujeitos são isolados de seu contexto original e projetados em outro contexto dotado de lógica e regras especificas‖ (Nathalie HEINICH, 2012, p.24). Sobre a visibilidade, ver: Andrea Brighenti (2007; 2010) e Nathalie Heinich (2012). Esta última é uma das obras de referência à noção de visibilidade. Diferentemente das teses que sucederam o star-system de Edgar Morin (1989), a autora historiciza a relação contemporânea com a fama desde a notoriedade da sociedade ocidental moderna iniciada com o museu de cera de Madame Tussauds e confere ênfase na análise do elitismo midiático do século XX. 89 de dispositivos antropotécnicos); e, b) dos usos dessas imagens pelos interlocutores e o modo como se veem inseridos em um contexto de produção do tele-espetáculo. É sobre este segundo aspecto que abordaremos o capítulo. Contemporaneamente, recorrentes são as imagens veiculadas midiaticamente sobre futebolistas consagrados. O incessante bombardeio de informações sobre carreiras exitosas no futebol tem minimizado a importância e a presença de jogadores que recebem baixos e médios salários. Mesmo que essa situação possa ser passageira, pois os salários, o reconhecimento e a (in)fam(i)a alternem períodos de maior ou menor visibilidade, a atuação subjetiva apela à produção de imagens baseadas no êxito esportivo, mesmo que em pequena escala. Logo, as meta-narrativas do futebol evidenciam histórias de heróis, glória, fama e muito dinheiro, deixando à margem da profissionalização outros modos de existência. Para contrapor uma das justificativas mais recorrentes da busca por profissionalização no futebol, qual sejam, os altos salários pagos, utilizamos alguns levantamentos estatísticos para dimensionar sua proporção em escala nacional – pelo menos os salários divulgados oficialmente (registrado pela CBF). Isto porque, a declaração do salário em contrato de trabalho, em alguns casos, não condiz com o que é efetivamente pago, podendo ou não ser encontrado um salário maior (Rodrigues, 2007). Na década de 1990 (entre 1993 e 1996), dos 14.000 atletas registrados na CBF, 81% recebiam até dois salários mínimos (neste período o valor do salário mínimo era de R$112,00), citado por Marcelo PRONI (1998, p.229). Já ao final da década, mais precisamente no ano de 1999, o número de atletas recebendo até dois salários aumenta para aproximadamente 85% (DAMO, 2005, p. 182). Outro dado importante quanto às compensações econômicas de futebolistas se refere ao ano de 2003, quando foi divulgado pelo Sindicato dos Atletas do Rio Grande do Sul (citado por Rodrigues, 2007), dos 22000 futebolistas registrados na CBF, 18500 estavam desempregados e 3500 tinham vinculação a algum clube. Naquele momento 85% recebiam até 3 salários mínimos. O que isto importa ou para quem isto importa? Prescindindo de dados mais recentes, dificilmente este quadro tenha se alterado substancialmente, uma vez que, conforme um dos interlocutores, a crescente intervenção estatal e as políticas de precarização de trabalho que operam no futebol, mesmo o salário declarado com finalidades de arrecadação de tributos e jubilatórios ―para não fazer a declaração, eu boto R$ 1.550,00 certinho, sabe? […] prefiro pegar a maioria por fora‖ (trecho entrevista)51.

51 Valor correspondente à isenção do imposto de renda no momento da realização da 90

Embora o pagamento do salário (e o ato de ―pegar por fora‖) revele uma retribuição maior que a ―declarada‖, esta remuneração não diz respeito às grandes cifras divulgadas constantemente pelos atletas de maior exposição midiática. No que se refere à visibilidade de ser reconhecido enquanto futebolista, ao contestar a visão mais aceita da carreira, um dos interlocutores situa este plano não-visto na profissão: ―[...] a maioria das pessoas só vê o lado bom de jogador, só vê esses jogadores que jogam na Europa, jogam em uma série A de brasileiro, que ganham horrores de dinheiro [...]‖ (Caio, 24 anos, Tilburg, clube segunda divisão Países Baixos, entrevista, outubro de 2012), referindo-se aos futebolistas que estão identificados como detentores dos maiores salários. Assim sendo, o nome é a imagem, e a imagem é a identificação. Ao tomar a trajetória de um dos futebolistas que compunham uma rede mais extensiva (não necessariamente os interlocutores com quem mantive contato ao longo da pesquisa), utilizo-me de uma das publicações de alcance nacional intitulada ―Achei! Andarilho, Fabiano Eller vira ídolo em Pelotas e sonha com Série A‖ (Caetanno FREITAS, 2012). Através da referida reportagem, a dimensão da visibilidade pode ser tensionada a partir da pergunta: ―onde você jogou?‖, ou ainda, ―por onde passou‖, uma vez que Fabiano Eller, reconhecido futebolista ―carrega Mundial de Clubes e três Libertadores nas costas ainda não pensa em pendurar chuteiras e cogita até vida parlamentar‖ (FREITAS, 2012, p.1). Essa articulação entre reconhecimento profissional, exposição midiática e visibilidade clubística opera de modo a colocar em evidência as efêmeras ―aparições‖ de futebolistas, consagrados ou não, pelo campo midiático. A partir das narrativas compostas pelo dom e do reconhecimento de uma identidade (futebolista), como é exercida a atualização dessa imagem entre os infames? Para responder a essa questão, lançamos mão da leitura de Gilles Deleuze (2001, p.100), para o qual a constituição do sujeito ultrapassa o dado e se constitui a partir dele, de sua menor parte, aquela que nos parece indivisível, ―embora haja coisas menores do que os menores corpos que apareçam aos nossos sentidos permanece o fato de que não há nada menor do que a impressão que temos desse corpos ou do que a ideia que deles fazemos‖. Neste sentido nossa impressão é de que os heróis devem ser maiores daquilo que realmente são. E em contrapartida, os infames são considerados menores daquilo que realmente são. Os ―títulos‖ mencionados na reportagem acima (―Mundial de Clubes e três libertadores‖), nos ajudam a fazer funcionar a lógica da visibilidade que

entrevista, ano de 2013. Propositalmente sem uso de qualquer identificação. 91 associada ao reconhecimento é claramente atualizada nos muitos espaços de veiculação do futebol de (tele-)espetáculo. Ainda sobre a atualização dessa imagem, ela só pode ser considerada como contra-hegemônica se tomamos o parâmetro da visibilidade, onde:

[...] esse modelo que se impõe cotidianamente ao planeta, dízima modos de vida ditos menores, minoritários, não apenas mais frágeis ou mais precários ou mais vulneráveis, mas também mais hesitantes, mais dissidentes. Ora tradicionais, ora ao contrário, ainda nascentes, tateantes ou mesmo experimentais.‖52

O trecho acima coloca em evidência as contradições da construção das imagens midiáticas pautadas nas celebridades, o que, somado as hierarquias presentes no futebol, a importância do mercado, a cobertura midiática, valor da transmissão pago aos clubes, passa a associar a imagem a um modo de vida e uma representação do logos ―futebolista‖. Em certo sentido o tele-espetáculo transformou a presença massiva nas/das arquibancadas como requisito à produção do espetáculo, para um deslocamento da visão e da produção de imagens mediadas, mais especificamente mediatizadas. A partir das câmeras e dos ângulos de visão ampliados pelo detalhamento tecnológico foram introduzidos novos procedimentos quanto às regras do jogo e à interferência tecnológica, novas maneiras de se relacionar com o aprimoramento tecnológico, ampliação das leituras feitas de um jogo e repetição a partir de agências especializadas que configuram novas formas de inserção no mercado. Assim, há um estabelecimento de nova relação imagética entre público (espectador) e os futebolistas, ―enquanto esteticamente imediata, a visibilidade é politicamente mediada‖ 53. Este impulso midiático e de tele-espetáculo expandido para as partidas ditas ―menores‖ não satisfazem as exigências consumidoras e consumistas de um apelo estético e cada vez mais interessado nas minúcias daquilo que se imagina ser do ―jogo‖ 54.

52 Os grifos na fala são meus para justificar os processos de subjetivação empregados na produção social. Transcrição da fala de PELBART, Peter Pal. ―Anote aí: eu sou ninguém‖ 10 ago. 2013. Disponível em: Acessado em: 10 jan. 2014.

53 Tradução de: ―[...] while aesthetically immediate, visibility is politically mediated‖ (Andrea Brighenti, 2010, p. 52). 54 Um exemplo disso é a configuração de uma nova polarização do pertencimento 92

Este futebol menor é necessário à configuração hierárquica clubística, sobretudo pela formulação do ídolo esportivo e pela impossibilidade histórica de negação das filiações afetivas biográficas por parte de seu público (espectadores). Por sua vez, o futebol menor, atinge uma escala limitada em termos de difusão midiática sem, todavia, estar excluído de uma propagação massiva conforme as particularidades que possa apresentar. Essa articulação midiática é colocada em funcionamento por sujeitos concretos. Todavia, a vibilidade é uma condição (a minoritária) e não somente um sujeito designado como ―celebridade‖. Se examinarmos em detalhe a construção de um regime de visibilidade, supomos que enquanto a ―glória‖ encontra-se em uma posição de visibilidade mais meritocrática, sobretudo por sua relação com uma história oficial, a ―fama‖ encontra-se relacionada com propagação das celebridades, contemporaneamente relacionada à história da produção de sujeitos e de verdades. Esta última, mais utilizada pelas mídias contemporâneas, até certo ponto mais ―democrática‖ e menos elitista. O ―achado‖ da reportagem que possui uma difusão ―nacional‖ de Fabiano Eller, contrasta com o status de ―grande contratação‖ do clube em reportagem com projeção ―local‖:

clubístico (Arlei Damo, 2005) entre as preferências do clube local e dos clubes-globais. 93

Figura 1: Contratação Fabiano Eller

Fonte: Diário Popular, 08.05.2012, p. 21.

A diferença de escalas também se refere ao público a que está dirigido cada uma das reportagens, mesmo com acessibilidade global através de sua difusão digital em rede, a reportagem escrita pelo jornal ―Diário Popular‖ encontra-se direcionada para o público leitor da cidade do clube contratante. Já a reportagem escrita por Caetanno Freitas (2012) foi publicada em um dos maiores portais digitais do país (Globo.com), encontrando uma difusão com maior alcance midiático. Segundo a reportagem apresentada na Figura 1, o futebolista é qualificado como o ―principal reforço do Grêmio Esportivo Brasil‖ (Henrique Risse, 2012, p. 21)55. Além de refirir-se à parte exitosa de sua trajetória esportiva através da descrição de ―campeão mundial pelo Internacional‖ 56, a

55 Rerefe-se ao Grêmio Esportivo Brasil, popularmente conhecido como Brasil de Pelotas ou Xavante. Fundado em 1911, o clube mantém presença constante nas competições nacionais e regionais. Sobre algumas referências históricas do clube, ver trabalho anterior: Luciano Jahnecka (2010).

56 Rerefe-se ao Sport Clube Internacional, fundado em 1909, o clube tem grande 94 notícia associa sua imagem a passagem vitoriosa pelo clube com a reprodução de uma fotografia de sua atuação profissional no clube que o ―consagrou‖ como ―campeão mundial‖. Por outro lado, a ―reaparição‖ de Fabiano Eller em um clube que naquele momento (2012) disputava a ―Série D‖ (ou 4ª Divisão Nacional) 57, revela um relativo escalanomento da visibilidade clubística. Esta, por sua vez, difundida pelos meios de comunicação ao associar a transferência do futebolista – referida como uma das suas principais contratações para a temporada – com a visibilidade dos clubes nos quais atuou (―grandes clubes, como Vasco, Palmeiras, Flamengo, Fluminense, Santos e Internacional‖, RISSE, 2012 p. 21), ou ainda, sua trajetória ―internacional‖, na qual suas ―passagens mais importantes foram em 2005, pelo Trabzonspor da Turquia, e em 2007 e 2008, pelo Atlético de Madrid, da Espanha‖ (RISSE, 2012, p.21), configuram uma forma de relacionar a visibilidade clubística com a trajetória individual. Ao considerar o exemplo citado, a difusão da circulação de futebolistas – em especial no ―contexto europeu‖, segundo os meios de comunicação nacionais – faz funcionar uma engrenagem onde a visibilidade que detém os visibilidade regional e nacional. No que diz respeito ao ―mundial‖, refere-se à participação do futebolista na vitória do torneio intercontinental com os clubes ganhadores das competições organizadas pelas confederações subsidiárias de FIFA. Até o ano de 2004 conhecido como Copa Intercontinental, os clubes disputavam uma única partida entre os ganhadores dos torneios continentais da UEFA e da CONMEBOL, respectivamente subsidiárias de FIFA na Europa e América do Sul. A partir de 2005 a competição foi substituída pela Copa Mundial de Clubes FIFA, quando passou a incluir os clubes ganhadores das 4 demais confederações (OFC, AFC, CONCACAF e CAF, respectivamente administradoras dos clubes e campeoanatos reconhecidos pela FIFA na Oceânia, Ásia, América do Norte e Central e África). Em termos de visibilidade, junto com a Liga dos Campeões da Europa (competição organizada com clubes da UEFA), a Copa Mundial de Clubes FIFA é uma das competições que possui maior prestígio clubístico, principalmente por habilitar o confronto entre clubes com visibilidade nacional e os clubes-globais europeus, reunindo de uma só vez os campeões das ―principais‖ competições continentais.

57 No Brasil, a matriz tele-espetacularizada encontra-se atualmente dividida em divisões nacionais e estuduais. Com exceção dos clubes que detém sua participação assegurada pela classificação do ano anterior nas 3 divisões nacionais (séries A, B e C, nessa ordem de hierarquia), a 4ª divisão (―série D‖) mantém interligação com as divisões estaduais. Estas por sua vez, a cada ano, habilitam a participação na ―Série D‖ conforme o desempenho dos clubes a cada competição. 95 clubes de futebol inseridos nos primeiros escalões da matriz tele- espetacularizada é associada à difusão em escala global dos campeonatos nacionais. Por sua vez, a imagem criada para o reconhecimento profissional de cada futebolista possui direta relação com seu ―curriculum esportivo‖ (referido como ―passagens‖ dada sua condição transitória). Assim, o futebol menor pode ser considerado aquele inserido na matriz tele-espetacularizada com maiores restrições quanto ao alcance de sua visibilidade. Este faz operar um conjunto de relações baseadas nas hierarquias clubísticas e na exposição midiática de clubes e futebolistas. Mesmo assim, tal exposição não se encontra definida a priori, uma vez que a comunicação midiática opera por redes e conexões conforme alguns interesses circunscritos a um determinado momento histórico. No caso acima, mesmo que as ―passagens‖ pelos clubes citados não sejam autorreferidas pelo futebolista como dentre aquelas em que considera ―mais importante‖ em sua carreira, a reportagem opera com o reconhecimento social conferido aos ―clubes europeus‖, assim como atribui relações hierárquicas entre os clubes situados no Brasil, fazendo com que a ―aparição‖ seja associada ao status de cada clube nessa hierarquia clubística. Aqui, o conceito de ―plano de imanência‖ (Gilles DELEUZE; Félix GUATARRI, 1992) nos pode ajudar a desnaturalizar as representações produzidas pelas imagens de clubes e futebolistas que participam do futebol menor. Se há um aparecer da imagem, surge um outro sistema, que não aquele do plano de imanência. Esse outro sistema, porém, não é natural, mas algo que deve ser produzido (ou mediado). No caso dos clubes e dos futebolistas de um futebol menor, mesmo que estes não sejam detentores de uma visibilidade em escala global permanentemente, essa duração depende de operações e de alguns dispositivos antropotécnicos que compõem o regime de visibilidade: ―DVD's‖, livros (de estilo biográfico) e o uso de certas redes sociais como ―youtube‖, ―facebook‖ e ―twitter‖ (mais recentemente o ―instagram‖). Como em vários momentos citados ao longo do trabalho de campo, os futebolistas utilizam alguns dispositivos de modo a ampliar as possibilidades de serem visibilizados:  Sérgio, entrevista, maio 2012: ―ele [futebolista brasileiro] foi perguntado se conhecia algum goleiro. Acabou meu DVD chegando às mãos dele, os chineses olharam, gostaram, acabaram fazendo contato através dele para fazer o contrato de um ano‖;  Édson, entrevista, março 2013: ―Fiz um monte de DVD com esses jogos e mandei para vários empresários de clubes de Portugal, devo ter feito umas 15, 20 cópias de DVD. Foi pra Portugal porque me 96

disseram que eles gostavam muito de jogadores brasileiros. Isso devo ter feito em março quando começou o nosso campeonato, em maio ou junho foi quando eu recebi o primeiro contato do empresário, dizendo que me levaria pro Porto ou pro Boavista que tinham gostado do meu DVD e que o Boavista tinha se interessado‖.  Camilo, entrevista agosto 2012: ―Sobre o vídeo, fui a um produtor aqui na cidade. [Luciano: Tu pagaste para ele?] Isso, ele fez os lances‖.  Sérgio, entrevista, março 2013: ―E aí ele [diretor do clube] olhou meu link no youtube, o DVD, gostou, mandou contratar, mandaram passagem, fizemos acerto, fui para lá [China]‖. No caso de uma demanda específica de um clube, alguns futebolistas também são consultados sobre alguma informação sobre outro futebolista como relatou Sérgio em sua transferência para a China. É por essa mesma razão que futebolistas solicitaram seu auxílio para a exposição de suas imagens: ―‗me ajuda aí, leva DVD‘. Isso aí tem muito. Tem amigos que não falam comigo há anos. Eu estava lá na China: 'mostra o meu DVD aí'‖ (Sérgio, 29 anos, Erechim, clube segunda divisão Rio Grande do Sul, entrevista, março 2013). Por sua vez, essas imagens podem provir de fontes variadas, inclusive por meios pelas quais elas não estão destinadas, como relatou Édson (25 anos, Balneário Camboriú, clube segunda divisão de Santa Catarina, entrevista, março 2013): Eu estou jogando o catarinense, o próprio clube filma todos os jogos pra ter a disposição do treinador, se ele quiser fazer algum estudo se o jogador rende ou não. O próprio clube te fornece os DVD's dos jogos no final, é por minha conta pegar e editar os meus melhores lances, a gente sempre faz. Sempre bom ter material.

Com relação ao produto dessa edição, Édson complementa seu comentário ao sugerir quais são os seus usos na carreira:

Porque se o rapaz [olheiro] acompanhou o campeonato catarinense, ele vai falar: ―Eu conheço o Édson, o 10 do Camboriú, ah não ele não jogava, ele era banco‖. Se eu estou indo pro Japão onde meu empresário tem muita porta aberta, ele nunca ouviu falar em Camboriú, ele vai precisar ver um material meu. Mas ele jogou no Boavista de Portugal, não interessa, ele quer ver o material do mesmo jeito, então você precisa ter um vídeo, atual de preferência. (Édson, 25 anos, Balneário Camboriú, clube segunda divisão de Santa Catarina, 97

entrevista, março 2013).

Assim, o ―currículo esportivo‖ com relação à filiação em clubes anteriores (como no caso do Boavista, de Portugal), não é suficiente para auferir os potenciais de visibilidade, justificativa pela qual pode ser ampliada pelos diversos dispositivos antropotécnicos citados. Outro exemplo, excepcional no contexto do futebol menor, foi a publicação do livro biográfico de um futebolista nos Países Baixos no ano de 2013, conforme a figura abaixo.

Figura 2: Capa do livro ―Leo: sofrendo e rindo com Leonardo Vitor Santiago‖

Fonte: Acervo pessoal, capa do livro.

O uso desses dispositivos auxilia a permanência nesse regime de visibilidade, uma vez que a duração dessa exposição deve ser reatualizada. A publicação de livros é muito menos central na produção de visibilidade se comparado a outros dispositivos. No caso da Figura 2, trata-se da biografia de um futebolista brasileiro que teve grande parte de sua carreira vinculada a clubes situados nos Países Baixos58. Mesmo reconhecido como um cidadão

58 Leonardo Vitor Santiago é uma exceção das transferências precoces realizadas por 98 holandês já aos 18 anos, as cores da capa do livro biográfico escrito por Bart Vlietstra em 2013, remetem a identificação relativa à nacionalidade associada ao futebolista. Não por acaso as cores verde e amarelo, simbolizadas pelas cores da bandeira do Brasil são as que conferem as cores das letras da capa do livro. Esta identificação empodera o portador de sua imagem, uma vez que futebolistas ―brasileiros‖ atualmente se encontram com um valor potencial no mercado futebolístico. Além disso, o prefácio é escrito por um dos futebolistas de maior visibilidade do país naquele momento, Robin van Persie, conforme aparece na parte inferior direita da figura 2 (―prefácio de Robin van Persie‖) 59. Com respeito a estas articulações antropotécnicas as quais produzem um ―regime de visibilidade‖, os futebolistas têm o ―dever‖ de ser quem eles são, mesmo que eles não sejam, pois nunca o são, mas aparentam ser. Assim, ao concordar com Pierre Bourdieu, Edson Gastaldo afirma que ―o ato de enunciação possui uma dimensão sociológica, na medida em que toda ação social é um ato de comunicação. Assim, quando alguém 'fala', o faz de algum lugar, com uma certa autoridade e dirigindo-se a alguém‖ (Gastaldo, 2006, p.17).

clubes situados nos Países Baixos. No seu caso, a circulação ao país é realizada aos 12 anos de idade quando começa a formar parte da ―jeugdopleiding‖, como são conhecidas as categoais de base em holandês, do Feyenoord Rotterdam. Em sua ―passagem‖ pelos Países Baixos, o futebolista permanece de 1995 a 2011, onde além de ―jogar‖ pelo Feyenoord, também ―passa‖ por NAC Breda, Ajax Amsterdam, e no ano de 2017 regressa ao país contratado pelo FC Eindhoven depois de haver circulado por clubes situados na Áustria, Hungria, Alemanha e Austrália entre 2011 e 2016. A análise sobre a precocidade da contratação de futebolistas ―brasileiros‖ é realizada no capítulo subsequente.

59 Tradução de ―Voorword door Robin van Persie‖. Robin van Persie, foi um dos futebolistas que atuou junto a Leonardo Vitor Santiago entre 2001 e 2004 no Feyenoord Rotterdam. Particularmente em 2013, ano de publicação do livro, Robin van Persie tornou-se o maior artilheiro da história da seleção holandesa, o que reforça a justificativa sobre a utilização da visibilidade de clubes e futebolistas que encontram maior exposição midiática para atualizar a visibilidade do futebolista ―brasileiro‖. 99

Figura 3: Reportagem no jornal ―Spits‖ sobre a venda do livro ―Leo: sofrendo e rindo com Leonardo Vitor Santiago‖

Fonte: Jornal Spits, 22 novembro de 2013, p.15.

Figura 4: Anúncio sobre a venda do livro ―Leo: sofrendo e rindo com Leonardo Vitor Santiago‖ no jornal ―Spits‖

Fonte: Jornal Spits, 22 novembro de 2013, p.15.

Sobre o título ―Leo tem a sua própria língua‖, a reportagem é finalizada com a foto da capa do livro vendido acompanhada da descrição sobre a venda do livro: ―A partir de hoje na loja ou para encomendar via kickuitgever.nl‖. Além 100 de uma extensa descrição do conteúdo do livro e de parte dos contatos entre o escritor e o futebolista, a reportagem articula parte dos dispositivos antropotécnicos para a atualização da visibilidade do futebolista. Logo, existe uma constante atualização dessa representação, as imagens são produzidas com intencionalidades posicionadas em meio a relações de visibilidade. Mesmo que a análise sobre os ―regimes de visibilidade‖ que fazem emergir um ―futebol menor‖ diga respeito ao campo esportivo, sobretudo, ao futebol de tele-espetáculo, a condição de uma multiplicação das personagens que pixelizam o reconhecimento contemporâneo ocorre nos mais diversos âmbitos, como refere-se Georges Minois (2012, p.393):

A banalização da celebridade não diz respeito apenas ao mundo do espetáculo. Também afeta a santidade. O pontificado de João Paulo II (1978-2005) conheceu uma inflação sem precedentes no número de beatificações (cerca de 1500) e canonizações (cerca de 500): mais do que o dobro de todos os casos registrados anteriormente 450 anos desde o século XV60.

Em paralelo a esse fenômeno de produção de celebridades ocorreu nos últimos anos a relativizaçao do poder dos meios de comunicação a partir do surgimento das pequenas mídias e das ―redes sociais‖ 61. O que de certa forma ajuda a descentralizar a veiculação de imagens ao mesmo tempo em que propaga uma ilimitada quantidade de dados. No que se refere à produção das visibilidades no campo esportivo, esta também vem sendo utilizada para a veiculação da representação dos futebolistas em outros contextos, como no caso da política institucional. A sugestão feita pela reportagem de 2012, quando Fabiano Eller ―cogita até a

60 Tradução própria de: ―La banalisation de la célébrité ne concerne pas seulement le monde du spectacle. Elle touche aussi la sainteté. Le pontificat de Jean-Paul II (1978- 2005) a connu une inflation sans précédent du nombre des béatifications (environ 1500) et de canonisations (environ 500): plus du double de tous les cas enregistrés auparavants em 450 ans, depuis le XV sièle!‖ (Georges MINOIS, 2012, p. 393).

61 Neste caso, Andrea Brighenti (2010), realiza a diferenciação entre ―meios de comunicação de massa‖ e ―novas mídias‖, referindo-se principalmente a uma nova forma de produção imagética. Essa construção se baseia em uma percepção contemporânea de territorialidade na esfera ―pública‖ mediada pelos diferentes meios de comunicação. 101 vida parlamentar‖, concretiza-se. No ano de 2018, Fabiano Eller (futebolista, anteriormente citado), a reportagem do jornal ―Gazeta Online‖ intitulada ―‗Famosinhos‘ estreiam nas urnas, mas não conseguem a eleição‖, compara a candidatura de ―conhecidos no esporte, na TV ou exercendo posições de destaque no Poder Executivo‖ (Gazeta Online, 2018, s/p.). Essa difenciação feita entre a visibilidade ―no esporte‖ e ―na TV‖ refere-se a outras candidaturas realizadas por jornalistas e outras personagens com presença constante nos meios de comunicação televisivos. Para o caso do citado futebolista ―apesar da vantagem da visibilidade anterior‖ (Gazeta Online, 2018, s/p.), no ano de 2018 não logra alcançar a quantidade de votos requeridos para a eleição como Deputado do estado do Espírito Santo62. A respeito do uso do reconhecimento esportivo a construção de um regime de visibilidade se faz a partir da articulação dos meios antropotécnicos disponíveis historicamente. Ainda assim, o desenvolvimento de tecnologias da informação que visam o controle e o monopólio da produção de imagens (a atuação sobre o plano de imânencia), se utiliza de técnicas padronizadas que quase não possuem margens para sair do roteiro estimulado pelos meios de comunicação. Um exemplo disso no campo esportivo são as entrevistas aos futebolistas, cada vez mais roteirizadas. Assim, é possível afirmar quais são os momentos nos quais é permitido ―falar‖ e quais são os conteúdos a serem reproduzidos pelos diferentes dispositivos antropotécnicos.

Os registros históricos precisam ser lidos a contrapelo, levando em consideração o que podemos chamar de regime de visibilidade, o qual é intrinsecamente ligado ao código moral hegemônico. […] Um regime de visibilidade traduz uma relação de poder sofisticada, pois não se baseia em proibições diretas, antes em formas indiretas, mas altamente eficientes, de gestão do que é visível e aceitável na vida cotidiana. Assim, um regime de visibilidade é também um regime de conhecimento, pois o que é visível e reconhecido tende a estabelecer as fronteiras do pensável (Miskolci, 2014, p. 62) 63.

62 Recentemente muitos foram os futebolistas eleitos para cargos legislativos, entre eles: Romário, Jardel e Valdomiro, No pleito de 2018, foram eleitos os futebolistas Danrlei e Bebeto, mas outros sujeitos que se utilizam da exposição midiática aumentam consideravelmente essa lista, entres estes outros esportistas, atores e artistas televisivos, etc. 63 ―Na esfera da sexualidade, regime de visibilidade é uma noção que busca sintetizar a 102

No caso dos futebolistas, o ―código moral hegemônico‖ diz respeito a essa associação entre o êxito esportivo e a fama que cada sujeito adquire ao longo de sua trajetória esportiva (carreira). Assim, um regime de visibilidade aplicado ao campo esportivo, centrado, sobretudo nos futebolistas de um futebol menor, diz respeito à distribuição valorativa em uma escala hierárquica ocupada momentaneamente por clubes e futebolistas em consonância com este código moral hegemônico.

Figura 5: Michel Bastos regressa ao clube ―formador‖: articulação entre a vibilidade clubística e do futebolista

Fonte: site ―Rede Esportiva‖ (2014)

Através da figura 5 procuro associar o êxito esportivo individual do futebolista Michel Bastos à sua atuação no seu clube ―formador‖, Esporte Clube Pelotas64, onde o jogador aparece com a atual camiseta do clube (na época da publicação, 2014) e ao fundo, um pôster fixado em uma das salas no estádio do clube no qual se pode visualizar o futebolista atuando pelo clube (imagem à esquerda) ao lado de uma imagem onde o futebolista atua pela seleção maneira como uma sociedade confere reconhecimento e torna visível certos arranjos amorosos, enquanto controla outras maneiras de se relacionar por meio de vigilância moral, da coibição de sua expressão pública, em suma, pela manutenção dessas outras formas amorosas e sexuais em relativa discrição ou invisibilidade‖ (Miskolci, 2014, p. 62). 64 Refere-se ao Esporte Clube Pelotas, fundado em 1908, um dos clubes mais tradicionais clubes da cidade de Pelotas, também mantém assidua participação em torneios nacionais e regionais. 103 brasileira (à direita). No caso de Michel Bastos, é o futebolista quem amplia o potencial de visibilidade clubístico, uma vez que sua imagem é associada à trajetória esportiva exitosa. Esta última imagem, máximo expoente do êxito futebolístico, encontra-se socialmente aceita como hierarquicamente superior às demais, uma vez que o sujeito portador da visibilidade reconhece na sua carreira os clubes por onde ―passou‖, como é o caso do Esporte Clube Pelotas, seu primeiro clube enquanto ―profissional‖.

Figura 6: Contratação de Guly

Fonte: Jornal Diário Popular, 22 dezembro 2011, p.24.

Por outro lado, ao retomar o conceito de ―família esportiva‖ (Spaggiari, 2015), na Figura 6 podemos notar como se dá o uso da visibilidade de um dos membros familiares (Edinson Cavani, futebolista com atuação constante na ―seleção uruguaia‖) para difundir a notícia da contratação de Walter Fernando Guglielmone Gomez, Guly, junto ao Esporte Clube Pelotas. No que diz respeito à atualização da visibilidade através do uso de imagens, no destaque Cavani com atuação na ―seleção‖ com a foto na parte inferior da figura, Guly possui ―currículo‖ socialmente validado, afinal é o ―irmão de Edinson Cavani‖, e biologicamente testado, pois se trata de seu ―irmão por parte de mãe‖. Já no que diz respeito à visibilidade clubística, com a Figura 7 destaco o uso da visibilidade de um clube através de suas descrições complementarias mais do que seu reconhecimento social fora do campo esportivo. No caso do 104

Club Atlético Independiente vem acompanhado das razões de sua visibilidade clubística, afinal o clube argentino ―é o maior campeão da Taça Libertadores‖, ou simplesmente ―Rey de Copas‖, conforme o anúncio da realização da ―Taça Pelotas 200 anos‖65.

Figura 7: Anúncio da ―Taça Pelotas 200 anos‖

Fonte: Jornal Diário Popular, 12 julho 2012, p.25.

A repetição sistemática é uma estratégia para associar a imagem (relações de percepção) com a construção dessa imagem (relações de poder), uma vez que assegura o funcionamento da visibilidade. Nem mesmo o fato de que o Club Atlético Independiente foi ganhador por 7 vezes da Taça Libertadores da América oferece condições suficientes para o exercício dessa visibilidade, pois os elementos que compõem essa historicidade necessariamente devem ser atualizados constantemente. Assim, não é possível determinar como a visibilidade conferida pelas ―passagens‖ por determinados clubes afeta nas escolhas sobre a circulação de cada sujeito, uma vez que as carreiras dos futebolistas também são compostas por historicidades e elementos biográficos. No caso de Nathan, futebolista com uma longa trajetória em clubes do Rio Grande do Sul, a visibilidade de um clube de São Paulo (―melhor mercado no Brasil‖, segundo muitos dos

65 Refere-se ao Club Atlético Independiente, fundado em 1905. Desde então, o clube já foi vencedor por 7 vezes (nos anos de 1964, 1965, 1972, 1973, 1974, 1975, 1984) da Taça Libertadores da América. Campeonato que reune os clubes ganhadores dos campeonatos nacionais organizados pelas subsidiárias da CONMEBOL e mantém muita visibilidade midiática. 105 interlocutores) não foi suficiente para assegurar sua permanência no clube:

[…] fui bem, tava bem no campeonato, tiveram alguns [clubes] interessados, só que como eu tinha contrato, eu queria ficar ali, era uma coisa boa ali, Campinas, time grande da série A do campeonato brasileiro, está agora aí? Fiz um baita campeonato! Fomos sentar de novo para conversar e ele [empresário] me cobrou quatro mil reais por mês […] eu disse: "Ah não, não tem como, nem pro lanche eu vou fazer‖. (Nathan, 29 anos, Rio Grande, clube ―segunda divisão‖ Rio Grande do Sul, entrevista, maio 2012).

Em seu contrato por um campeonato, Nathan refere-se a sua participação no Guarani Futebol Clube como um clube com muita visibilidade no campo esportivo66. Ao final do contrato, em sua negociação para a renovação de contrato, o empresário que havia mediado à realização do contrato junto ao clube, aumentou a cobrança sobre o salário recebido pelo futebolista, o que foi decisivo para a decisão de retornar ao Rio Grande do Sul:

Não me arrependi, porque o salário era melhor que eu ganharia lá, e como eu tinha 28 anos já, meu negócio era dinheiro [...] tudo pra mim profissionalmente seria muito melhor em São Paulo, de repente hoje eu poderia ter feito um campeonato lá, eles subiram pra série B do Brasileiro, poderia ter ganhado três mil reais e hoje estar ganhando trinta mil, mas eu prefiri não arriscar até por estar em uma idade de não poder perder dinheiro, então eu prefiri optar pelo dinheiro […] desde quando eu saí de lá do Guarani, tive sempre uma sequencia de salário muito boa [...] poderia estar em um clube melhor, no brasileirão, alguma coisa assim sabe, mas não me arrependo. (Nathan, 29 anos, Rio Grande, clube ―segunda divisão‖ Rio Grande do Sul, entrevista, maio 2012).

Como se refere Nathan, além da visibilidade da participação dos clubes em determinados campeonatos, a questão geracional também teve seu lugar ao momento de decidir sobre a continuidade na carreira. Ao optar por um clube inserido no ―futebol menor‖, mesmo que tudo ―profissionalmente seria muito

66 Refere-se ao Guarani Futebol Clube, fundado em 1911, o clube tem presença permanente nos ―principais‖ campeonatos nacionais. 106 melhor‖, sua avaliação foi sobre o condicionamento da idade às suas pretensões na carreira. Além disso, o futebolista poderia voltar para o Rio Grande do Sul sem a intervenção do empresário, segundo ele ―tu [empresário] não precisa arrumar time pra mim porque aqui no RS eu já tenho um nomezinho, aqui eu me emprego‖ (Nathan, 29 anos, Rio Grande, clube ―segunda divisão‖ Rio Grande do Sul, entrevista, maio 2012). Entretanto, a produção dessas imagens não é com fins exclusivamente econômicos. Nathan e Camilo, por exemplo, situam a utilização das imagens em um plano afetivo. O primeiro, sobre a relação com os filhos refere-se ao ―orgulho pra eles [filhos], tipo volta e meia tu estás na tv, aí dizem pro teu filho: ‗Olha lá teu pai!‘ E no colégio dele, todo mundo conhece: ‗Ah, teu pai é jogador […]‘‖ (entrevista, Rio Grande, maio 2012). Já Camilo, quando questionado sobre a posse da cópia física de seu ―DVD‖, comentou: ―Tem na internet, o DVD não tenho. Acabei dando para o meu pai deixar de lembrança na casa do meu avô‖ (entrevista, Pelotas, agosto 2012). Assim, pensar a produção de imagens a partir de uma lógica pragmática em um regime de visibilidade do futebol menor não é suficiente para abordar a complexidade dos usos feitos sobre a construção imagética dos futebolistas. Mesmo que estas sejam utilizadas para a manutenção desse regime do que é visibilizado e daquilo que não é, não resta dúvida que o futebol menor existe a partir de outras relações criadas por futebolistas, clubes e ―espectadoras‖. Se por um lado, as ―aparições‖ nesse regime de visibilidade sejam em maior ou menor escala anunciadas efusivamente quando a circulação dos futebolistas é feita – principalmente a partir de sua contratação, ou a possibilidade de, e de seu desempenho esportivo –, os finais de contrato ou mesmo às desvinculações quando publicadas, são numericamente inferiores e dificilmente exibidas pelo reconhecimento do desempenho esportivo.

107

Figura 8: Saída de Cleverson do clube

Fonte: Site do Grêmio Esportivo Brasil, 2 fevereiro 2016.

Sobretudo, as práticas de contratação dos clubes situados no Brasil, em sua grande maioria, não privilegiam a permanência dos futebolistas por períodos superiores a 10 meses. No caso do rompimento do contrato empregatício, as visibilidades colocadas não ultrapassam as breves linhas destinadas a justificar a ―rescisão de contrato‖, nas quais é comum encontrar ―motivos pessoais‖ como argumento suficiente para a informação. No caso do futebolista Maicon Sapucaia, também parte de uma rede mais extensiva de interlocutores, o motivo foi de ―ordem familiar‖ e mesmo que o desempenho do clube não correspondera às expectativas, ―não tem ligação com suas últimas atuações defendendo a camisa azul e ouro‖ 67. No caso do futebolista Fabiano Eller, anteriormente referida como uma contratação feita com muita exposição midiática, a descrição sobre a finalização do contrato com o Grêmio Esportivo Brasil no ano de 2012 também é tímida se comparada às estratégias de difusão de sua ―chegada‖. No dia 10

67 Refere-se à nota emitida pelo Esporte Clube Pelotas no dia 5 de setembro de 2012, quando da rescisão contratual do futebolista Maicon Sapucaia. Conforme o site do clube ―O atleta Maicon Sapucaia não faz mais parte do plantel áureo-cerúleo. Em comum acordo com a direção do clube, o jogador rescindiu seu contrato e está desligado do grupo que disputa a Copa Hélio Dourado. O motivo apresentado por Maicon Sapucaia é de ordem familiar e não tem ligação com suas últimas atuações defendendo a camisa azul e ouro‖ (ESPORTE CLUBE PELOTAS, Nota oficial publicada 5 de setembro 2012). Particularmente, o futebolista manteve contrato esporadicamente com o clube totalizando aproximadamente 40 meses de atuação profissional. 108 de dezembro de 2012, o jornal Diário Popular publica uma notícia composta por 8 fotos de Fabiano Eller – todas elas enquanto futebolista do Grêmio Esportivo Brasil –, onde a justificativa é da ordem afetiva pois ele ―contou que estava com saudade da cidade maravilhosa e não poderia desperdiçar essa chance‖ (Diário Popular, 10 dez. 2012, s/p)68. Aqui, as questões geográficas e de visibilidade com relação aos centros urbanos, vão além da visibilidade clubística. Sem muitos argumentos sobre os términos de contrato, tampouco com extensa difusão, a produção da visibilidade no futebol menor parece estar muito mais em evidência no que se refere às expectativas da circulação de futebolistas. Os repetidos atos simbólicos de ―vestir a camiseta‖, não são os mesmos de ―retirar a camiseta‖. Tais atos são atualizados a partir dos muitos dispositivos disponíveis para a construção do regime de visibilidade nos quais se encontram inseridos clubes e futebolistas. Contudo, a exposição das imagens dos clubes e dos futebolistas não deve ser pensada desvinculada da mediação feita pelos canais de televisão, assim como dos parâmetros estabelecidos pela FIFA. Sobretudo, tal mediação encontra ressonância na relação entre estética (formas de percepção sobre os futebolistas e clubes) e a política (modos de visibilizar e representar futebolistas e clubes), a partir da qual são produzidas zonas de (in)visibilidade do tele- espetáculo. No caso do futebol menor, este vem sendo modificado também pela redefinição dessa mediação imagética a partir da qual a produção de imagens de futebolistas e clubes busca inserção na hegemonia imagética do tele- espetáculo. Concomitantemente à visibilidade dos clubes, os futebolistas de um futebol menor promovem sua circulação através do uso de imagens em meio a dispositivos antropotécnicos. Por outro lado, mesmo que haja uma circularidade da visibilidade, o tele-espetáculo opera a partir da oscilação entre ―momentos‖ ou ―cenas‖ minuciosamente detalhadas (altamente roteirizadas) daquelas que pouco ou nada signifiquem. Isto não exclui a possibilidade da existência de brechas para os micro-poderes69. Mesmo que a constituição de um regime de visibilidade defina – a partir de critérios de elegibilidade hegemonicamente aceitos – as condições para a

68 Logo após o término do contrato com o Grêmio Esportivo Brasil, Fabiano Eller vai para o Audax Rio de Janeiro Esporte Clube, do estado do Rio de Janeiro. 69 Como na recusa do bailarino em prosseguir com a coreografia na cerimônia de abertura da Copa do Mundo de futebol praticada por homens em 2014 no Brasil. Segundo seu comentário, difundido pelas redes sociais logo após o acontecimento, o ato foi uma forma de protesto para questionar a realização do mega-evento conforme muitos movimentos sociais também haviam feito nos meses que o antecederam. 109 exposição midiática, as brechas (micro-resistências) encontram-se disponíveis para reconfigurar as relações de poder e o que pode ser visibilizado. Embora as questões sobre as visibilidades em futebol menor digam respeito a um campo específico de dinâmica cultural, insistimos no questionamento sobre como o majoritário é transformado pelos devires- menores? Sem dúvida a identificação com uma maioria descrita em termos sociológicos a partir de categorias que tem como ―centro‖ o homem médio, urbano, branco, heterossexual, cis-gênero, consumidor, pode nos oferecer pistas para a produção de outros devires. No caso dos futebolistas, independentemente de qual seja a visibilização conferida a sua carreira, uma condicionante é respeitada quanto ao exercício profissional: ―Precisa jogar para aparecer, teu trabalho tem que estar na vitrine, tem que estar exposto. Quem não joga não é visto‖ (Sérgio, 28 anos, Pelotas, temporariamente sem contrato, entrevista, maio 2012). Sendo assim, as performances ―individuais‖ e a meritocracia, tão mencionadas como valores socialmente aceitos contemporaneamente devem ser pensados também a partir do ―capital da visibilidade‖ (Nathalie Heinich, 2012).

110

111

4. DAS CIRCULAÇÕES MENORES FACILITADAS E INTERROMPIDAS: ALGUNS FUTEBOLISTAS E SEUS (IM)PONDERÁVEIS

É necessário desfazer os dualismos porque, antes de tudo, eles foram feitos. E é possível desfazê-los pela mesma razão, porque eles foram feitos.

Eduardo Viveiros de Castro (2007), antropólogo.

Neste capítulo discuto algumas mobilidades a partir da noção de ―circulação‖ de Carmen Rial (2008). Para isso, me valho, mais uma vez da discussão de ―aposta‖/projeto familiar (Gilberto Velho, 1999, p.22) ao problematizar os projetos individuais a partir da divisão de classes sociais, uma vez que o autor considera a partir do desempenho escolar das camadas médias é possível constituir uma identidade de classe e a composição da família burguesa ao associá-la ao desempenho individual: ―a noção de que os indivíduos escolhem ou podem escolher é a base, o ponto de partida para se pensar em projeto‖ grifos do autor (Velho, 1999, p.24) Giberto velho ainda utiliza o ―status‖ e a ―ascensão social‖ como categorias de articulação e concretização dessa noção de ―projeto‖. Ao mesmo tempo não nega ambiguidade de dimensões como o individual é contituído por uma dimensão coletiva, pautadas pela atomização da família nuclear. Para o contexto estudado (futebol menor), tal ―projeto‖, respaldado pelo modelo de família nuclear urbana, os jovens que buscam a profissionalização deixam a núcleo familiar para serem administrados pelas instituições, adentrando nas rotinas de treinamento e na agenda institucional dos clubes onde existe uma extrema vigilância de seus cotidianos. Através de algumas comparações entre meu trabalho de campo feito no Brasil (junho de 2012 a março 2013), nos Países Baixos (março 2013 a fevereiro de 2014) e em momentos pontuais em Portugal (setembro de 2012, setembro de 2013 e fevereiro de 2014) faço comparações entre algumas circulações que foram facilitadas e/ou interrompidas tendo em conta um mercado futebolístico, as crises macroeconômicas vivenciadas de diferentes maneiras nas trajetórias dos futebolistas e as diferentes redes de contato que colocaram em circulação tais ―pés-de-obra‖, cito-as: empresários, técnicos e futebolistas. Depois de ter feito a constituição de um conceito aqui referido como ―futebol menor‖ inicio a discussão sobre o acesso à cidadania pela via do consumo em que apresento alguns casos do cosmopolitismo de futebolistas como exemplaridade das diferentes trajetórias sobre as condições de permanência na carreira. Ainda aqui, pretendo relacionar a presença do 112 neopentecostalismo fortemente vivenciada nos Países Baixos com um etos do aqui e agora vinculada pela Teologia da Prosperidade, associando aos valores da ―disciplina‖ e do ―trabalho‖ e de com isso tem formado um futebolista desejado pelos clubes, contrapondo a ―malandragem‖ outrora ―à brasileira‖ 70. Todavia, é necessário questionar a tentativa da formação de um discurso em curso que busca referenciar os temas voltados ao estudo das práticas esportivas como um campo recentemente estudado por parte das Ciências Sociais e Humanas. Em grande parte tal discurso se sustentou pelas parcas atenções acadêmicas no século XX voltadas a tais práticas em sua constituição contemporânea, apenas excetuada por algumas esparsas iniciativas que tangenciaram algumas relações possíveis entre o esporte e os jogos de maneira mais geral71. As justificativas para esta ausência (anterior ao atual momento) podem ser muitas, talvez todas elas com sua importância e pertinência. Entre outras, cito algumas: a incompatibilidade da relação entre quem ―escreve‖ e aquilo que é ―escrito‖ (sujeito e objeto); a desconsideração do ―esporte‖ como um tema ―sério‖ ou ―digno‖ de atenção em face de outros temas considerados mais importantes por parte da ciência; ou ainda, a percepção de que o ―esporte‖ como um conjunto de atividades homogêneas não teria importância na dinâmica social contemporânea. Esta última, talvez com menor razoabilidade, parece fazer pouco ou nenhum sentido, pelo menos naqueles modos de vida afetados por uma constante permeabilidade dos meios de comunicação72. Além disso, uma maior abertura ao estudo daquilo que viemos nomeando como ―campo esportivo‖ (Bourdieu apud Rial, 2006) por parte das Ciências Sociais e Humanas evidenciou o descompasso entre categorias, conceitos e pressupostos teórico-metodológicos já disponíveis e aquelas

70 Sobretudo, foi através das ―resenhas‖ (conversas informais para os futebolistas) que pude constatar que há uma nova constituição identitária para os ―futebolistas brasileiros‖ que se encontravam no ―exterior‖ (Países Baixos e Portugal). No caso dos futebolistas cristãos (protestantes ou vinculados a igrejas neopentecostais diretamente) a uma sobrevalorização do comportamento esperado que contrapõe a ―malandragem‖ das décadas de 1980 e 1990. Uma análise desse momento histórico pode ser encontrada na obra de Antônio Jorge Soares (1994).

71 Cito como exemplos desta excepcionalidade os escritos de Huizinga (1940), Caillois (1958) e Elias e Dunning (1986). As versões ―originais‖ das duas primeiras publicadas respectivamente em 1938 e 1958.

72 A respeito da relação contemporânea com os meios de comunicação e a visibilidade, ver HEINICH (2012). 113 criadas a partir de algumas relações particulares ao fenômeno esportivo. Entre estas, destaco os questionamentos e transformações relativos aos mais variados processos migratórios, pois estes diretamente interessam para algumas das questões tratadas neste capítulo (CARTER, 2011; DARBY, 2013; ENGH e AGERGAARD, 2013; RIAL, 2008, 2012). Assim como as/os autoras citadas acima, entendemos a circulação de futebolistas como um processo que oscila entre os fluxos disponíveis pelo mercado de trabalho e a agência (possibilidades de escolha dos sujeitos) para a circulação. Ao longo do capítulo, estabelecemos relações com o que Carmen Rial (2008) chama de ―rodar‖ ou da ―circulação‖ de futebolistas brasileiros, em nosso caso feito no Brasil, bem como para outros países, mais pontualmente em Portugal e nos Países Baixos. A primeira ressalva é de que esta ―circulação‖ esteve atenta aos futebolistas infames, o que implica em uma distinção daquilo que é constantemente produzido por múltiplas referências midiáticas constantemente ligadas ao consumo de luxo e à fama. Ao manter a interlocução com tais futebolistas não pretendemos fazer com que este capítulo elabore uma representação daquilo que seriam ―verdadeiros‖ homens futebolistas pouco- célebres, estes que compõem um futebol menor. Tampouco esta condição menor se refere ao jogo moral que tenta distinguir e estabelecer ―bons‖ e ―maus‖ futebolistas, mas sim assume certas condições pelas quais alguns futebolistas afirmaram escolhas e decidiram sobre seus destinos de maneira relacional, isto é, dentro de um contexto sociocultural particular a cada trajetória. Além do conceito de ―projeto de vida‖ referido acima, para entendermos como se dá a inserção em um mercado de trabalho e como estes profissionais realizam escolhas ao optar por clubes e por fazer parte de um projeto coletivo- individual, um ―projeto de vida‖ é realizado dentro de um ―campo de possibilidades‖ (VELHO, 2003). Como é criado este ―campo de possibilidades‖ diante de certo contexto profissional? Como acontece esta ―circulação‖ de futebolistas infames? São algumas questões pelas quais este capítulo se detém em pormenorizar.

4.1 FORNECIMENTO DE PÉS-DE-OBRA E CIRCULAÇÃO DE FUTEBOLISTAS POUCO-CÉLEBRES NOS PAÍSES BAIXOS E PORTUGAL

– Você vai para o estádio? Respondo que sim. Imediatamente ele complementou com um gesto atencioso: – Sobe no ônibus pois existe um ponto mais próximo. Estabelecendo assim uma relação mais próxima do 114

que a prestação de serviço entre motorista e passageiro. E prosseguiu: – Então você é alemão? Neste momento esbocei um sorriso ao lembrar que estava carregando uma bolsa do St. Pauli73. Respondendo por minha vez: – Não, eu sou brasileiro. O condutor continuou com seu interesse amigável: – Então você é o novo Romário? Em seguida sorriu e sinalizou o ponto em que deveria sair do ônibus. Entrei na sua brincadeira e repliquei: – Não, infelizmente. (Somado a um sorriso). E completei: – Não sou jogador. Vim para encontrar outro brasileiro. Este sim pode ser o novo Romário, basta fazer muitos gols. Gargalhamos juntos e despidimo-nos. Do parco vocabulário que havia aprendido do ―dutch‖ agradeci com uma pronúncia carregada: – Dank u wel. – Alstublieft. (Trecho do diário de campo, outubro de 2013)74.

Em que pese às questões de gênero e geracionais, o diálogo que tive com um homem condutor de ônibus destacam as referências de nacionalidade que estão associadas a um etos da ―brasilidade‖ e do ―ser brasileiro‖, ou como conceituou Machado (2009), o núcleo central de uma identidade como sendo a identidade-para-o-mercado. O breve diálogo com o condutor de ônibus, este

73 Fussball-Club Sankt Pauli, clube filiado a DFB e participante da Bundelisga é amplamente conhecido por ter em sua torcida muitos punks, estudantes e anarquistas, assim como historicamente manter relações de aceitação ao cristianismo judaíco. Também conhecido por contrapor-se ao regime nazista na Alemanha tendo vários dirigentes e torcedores perseguidos e torturados. Para saber mais sobre as posições políticas contemporâneas do clube, algumas consideradas ―anti-capitalistas‖, consultar: Mariano SCHUSTER, 2013.

74 Ao contrário da lógica de minha comparação, naquele momento Fábio atuava na posição de zagueiro. Mesmo somando os gols marcados durante os 8 anos nos 3 clubes pelos quais passou nos Países Baixos seria difícil atingir o número de gols de uma temporada do Romário. Este último, atacante enamorado pelo risco da pequena área adversária foi artilheiro da Eredivisie em 3 temporadas (1988-89, 1989-90, 1990- 91), totalizando 165 gols em 167 partidas. Como se esta comparação fosse possível mesmo com outros atacantes em determinado momento. 115 por volta de seus 60 anos, colocou em circulação uma identidade relativa à nacionalidade fortemente presente no campo esportivo. Esta reativação identitária se deu 20 anos após a ―passagem‖ de Romário pelo PSV (clube situado na cidade de Eindhoven), em uma direção diametralmente oposta da região do país da qual nos encontrávamos, a cidade de Groningen. Sob os anseios da busca por uma identidade a partir de práticas mais ou menos comuns (o que podemos chamar grosso modo de ―culturais‖) existe uma retomada constante feita a partir de elementos da nacionalidade que atuam para agrupar de forma quase homogênea um grupo de sujeitos em um determinado lugar. Assim, a inclusão de sujeitos em uma categoria, neste ponto relativa à nacionalidade, pauta-se a partir de um núcleo comum e central. Nossa rejeição em reificar este conjunto de práticas ―culturais‖ sob o signo ―grupos étnicos‖, como poderiam ser colocados ―os brasileiros‖, se dá por distintas condições pelas quais os sujeitos lidam com certas práticas, conforme destacou Igor José Machado (Op.cit., p. 62). Em nosso caso, durante o período de trabalho de campo nos Países Baixos, observei a presença imagética do referido futebolista em alguns programas esportivos transmitidos por algumas mídias televisivas nos Países Baixos. Assim, Romário era tratado como um sinônimo de futebolista brasileiro e as comparações feitas se davam em torno do desempenho esportivo relativo ao número de gols feitos durante sua permanência entre os anos 1988 a 1993. Para além do campo esportivo, o que o trecho destacado pelo diário de campo evidencia a ampliação do uso de uma identidade nacional através de uma personagem com recorrente visibilidade midiática e de uma corporalidade próxima desta personagem, neste caso a minha como potencialmente próxima de um futebolista. Romário se estabele nos Países Baixos como uma personagem paradigmática para a transferência de futebolistas brasileiros especialmente para o país. Sobre tal identificação de nacionalidade, Romário tornou-se o quarto futebolista brasileiro a ser registrado nas competições nacionais dos Países Baixos desde 1954, ano no qual iniciou o regime ―profissional‖ no país.

116

Figura 9: Romário nos Jogos Olímpicos de Seul (1988)

Fonte: Revista Placar, n.969, 30.12.1988, p. 5.

Além dos cinco anos que Romário esteve no país com ampla visibilidade midiática (e, portanto, nacional), em última instância como um futebolista brasileiro, alguns outros elementos auxiliam na interpretação do fornecimento e das escolhas para a ―circulação‖ de alguns ―pés-de-obra‖ em detrimento de outros tantos. Como por exemplo, a vitória na Copa do Mundo pelo time selecionado pela CBF em 1994. Imediatamente após a conclusão desta, Ronaldo, um dos futebolistas do time, é contratado pelo mesmo clube no qual Romário havia atuado nos Países Baixos, o PSV. Em sua passagem Ronaldo torna-se artilheiro do campeonato da Eredivisie (na tradução literal, ―Divisão de Honra‖ dos Países Baixos) na temporada de 1994/1995 permanecendo até o final da temporada de 1995/96. Uma associação elaborada entre vitórias do selecionado nacional e nacionalidade. Se por um lado a visibilidade no campo futebolístico favoreceu a ―abertura‖ de um mercado para certos futebolistas neste caso rotulados a partir de certa identidade nacional, por outro a trajetória de ―sucesso‖ feita em ambos os casos conferiu também visibilidade para que outros futebolistas conhecessem os clubes situados nos Países Baixos, em última instância, projetaram o mercado ―europeu‖. A partir de então, existe um aumento exponencial na contratação de futebolistas brasileiros culminando com a temporada de 2007/2008, período no qual houve o maior registro de brasileiros 117 nas duas divisões ―profissionais‖ dos Países Baixos (Eredivisie e Eerstedivisie), vinte quatro no total. Conforme mostra tabela a seguir:

Tabela 1: Contratação de futebolistas brasileiros pelos clubes situados nos Países Baixos

Temporada Novos Transferência Total futebolistas contratos outros países no país 1994/95 2 0 2 1995/96 2 0 4 1996/97 5 1 8 1997/98 2 3 7 1998/99 7 2 12 1999/2000 3 5 10 2000/01 4 1 13 2001/02 4 3 14 2002/03 5 6 13 2003/04 8 8 13 2004/05 5 4 14 2005/06 7 9 12 2006/07 8 4 16 2007/08 10 2 24 2008/09 0 4 18 2009/10 0 0 18 2010/11 1 8 11 2011/12 0 4 9 2012/13 1 2 8 2013/14 (até 1 0 9 fev. de 2014)

Fonte: Elaboração própria. Cruzamento de dados dos sites dos clubes, relatos orais e do sítio colaborativo zerozero.pt.

118

Com uma permanência média superior a dois anos, dos 81 futebolistas, 23 destes ficaram por um período menor ou de até uma temporada (11 meses) nos clubes situados nos Países Baixos. Dentre aqueles 58 registrados em pelos menos duas temporadas a permanência média é de 41 meses, com alguns casos de longa duração como os 168 meses (14 anos) de Brian e os 144 meses (12 anos) de Maurício, sendo que ambos ainda residem no país. Se as justificativas para a permanência podem ser múltiplas, as escolhas para ingressar no país são comumente referidas pela visibilidade conferida aos futebolistas que já haviam atuado no país. Além destas referências, Maurício (2013) definiu assim o conhecimento prévio à sua entrada nos Países Baixos: ―Vaca, frio, Romário, PSV e Ronaldo. Só sabia disso. [...] Também a impressão que eu tinha é que: “Eu vou para um time da Europa” (Maurício, 36 anos, Rotterdam, clube ―amador‖ Países Baixos, entrevista, junho 2013). Mesmo que tais ―fluxos‖ possam ser analisados a partir da presença de futebolistas brasileiros no referido país como explicitado pela tabela acima, de outra maneira Paul Darby (2013) mapeou pontos comuns que chamou de nódulos para identificar aqueles processos através dos quais a migração de futebolistas acontece em Gana75. No entanto, ao comparar a circulação com

75 Em sua análise, o autor pauta-se pela forma com que algumas estruturas (instituições e seus agentes) fornecem e produzem futebolistas em Gana, tanto em nível local como global. Assim, segundo o autor, podemos dividir esta produção a partir dos seguintes nódulos: embrionário, novatos e da academia, todos ligados ao processo de formação daquilo que conhecemos por ―categorias de base‖; neste último nódulo, da academia, encontramos uma subdivisão entre os futebolistas destinados aos clubes locais e as seleções de base, daqueles inseridos naquilo que chamou de relação ―Afro-Européia‖ devido aos ―investimentos‖ de clubes situados na ―Europa‖ com sedes locais em Gana ou mesmo eventuais contratos com clubes locais já existentes. No caso dos clubes situados em Gana, o Feyenoord mantém um centro de formação na cidade de Fetteh- Gomoa e o Ajax desde 1999 é o detentor de 51% das ações de um dos clubes que disputam a Primeira Liga do campeonato local. Após o nódulo dos Centros de Formação, o autor ainda distingue outros dois: o nódulo Europeu, diz respeito aos futebolistas transferidos às ligas situadas na Europa; e o nódulo de pós-carreira, quando os futebolistas regressam a Gana e reintegram o processo de produção de futebolistas nos Centros de Formação. Assim, encerra uma espécie de ciclo, mas que diz respeito a pouquíssimos casos midiáticos de ―sucesso‖. Distanciamos-nos da pretensão de esboçar uma cadeia de acontecimentos sucedidos através do tempo e dos fluxos de mercado disponíveis para futebolistas brasileiros, que assim como ganeses, tem circulado a partir de conexões transnacionais. Mas sim, esboçamos uma cartografia com algumas condições afetivo-materiais que permeiam trajetórias marcadas por continuidades e desistências. 119 estes nódulos forçosamente desconsideramos aquilo que os futebolistas têm referenciado como ―sonhos‖, levando em conta também as desistências e as impossibilidades de continuidade na carreira. Analogamente, contraponho com os ciclos de formação de Arlei Damo (2007, p.95) iniciado pelo ―ciclo de aprendizagem‖ e vai até a ―reconversão ou aposentadoria‖. Seguindo as advertências do autor, muitas carreiras ficam inconclusas sem mesmo ter começado. Sendo assim, ao considerar as distintas condições de acesso ao referido ―sonho‖ de atuar em um clube ―europeu‖ equiparamos as escolhas metodológicas à maneira dialógica pelas quais ―brasileiros‖ disputam a construção de identidades na cidade do Porto em Portugal. Igor José Machado (Op.cit.) contrapõe o discurso unívoco do apelo a uma identidade étnica e recusa-se a evocar o uso de ―grupos étnicos‖, não somente pelas distinções jurídico-legais que dicotomizam as condições de vida entre ―migrantes‖ legais e ilegais, mas também pela multiplicação de significados produzidos a partir dos processos migratórios de brasileiros/as. No que se refere aos futebolistas, nem mesmo podemos colocar sobre as mesmas condições de ―circulação‖, pois como se sabe os jogadores- celebridade possuem uma rede extensa que faz com que a possibilidade de migração em muitos casos de ―jogar na Europa‖ (como a ―entourage‖ citada por Arlei Damo, op.cit.) concretize-se. Esta vai desde a presença de membros da família nuclear até empresários que gerenciam suas transferências. Nesta disputa por um núcleo comum de significados a qual poderíamos nomear como subjetividade, os discursos que se propagam a partir de elementos étnicos esforçam-se em produzir algumas similitudes. Desdobrados diante desta aparente assimilação, mais do que latino- americanos, os futebolistas ―brasileiros‖ utilizam-se da sua ―brasilidade‖ para destacar-se e/ou inserir-se em diversos mercados de trabalho. Outro exemplo é o caso de Portugal, como se referiu um interlocutor, ―a porta de entrada‖ para o mercado ―europeu‖. O país tem sido o principal destino clubístico fora do país conforme tabela a seguir: 120

Tabela 2: Transferências de futebolistas brasileiros para Portugal

Ano de referência Transferência Transferências Percentual para Portugal internacionais 2009 (até novembro) 176 960 18.30% 2008 209 1176 17.70% 2007 227 1085 20.90% 2005 138 804 17.10% 2004 134 857 15.60% 2003 141 858 16.40% 2002 130 665 19.50% Fonte: Adaptada de CBF apud Rial (2009, p. 4).

No caso da transferência de futebolistas brasileiros para clubes situados em Portugal além das relações historicamente produzidas ao longo dos períodos colonial e pós-colonial, entre elas a manutenção da língua portuguesa no país, a programação televisiva brasileira está presente na vida cotidiana portuguesa. Além da quase indispensável assinatura dos canais televisivos brasileiros com transmissão internacional e da familiaridade com a língua falada, a proximidade com as práticas alimentares feitas no Brasil são elementos identitários que reforçam as relações culturais e a possibilidade de transferência de alguns futebolistas sem maiores dificuldades de ―adaptação‖, nem por isso isenta de conflitos. Em condições distintas, e sem esta rede de relações que em alguns casos é bastante extensa, assim se referiram Maurício e Sérgio quanto a sua ―chegada‖ e suas diferenças com relação aos Países Baixos e a China respectivamente:

E a adaptação foi difícil porque tudo era novo, me ensinaram a falar sopa em holandês, é bem parecido, soup e me ensinaram a falar pão em inglês, bread, eu falava meio americanizado, sabe caipira no Brasil, bread, bread [acento no R]. Era sopa e pão. Depois até reclamou, uma história legal, o hotel reclamou, nós ficamos em um hotel chamado Posterion lá em Groningen e lá eles falam que tem uma comida boa, como nós não sabíamos e ninguém ficava nos paparicando para dizer que é assim, a gente só comia pão. Uma vez na hora do almoço nós pedimos Chikenwings só que a gente não sabia que aquilo era 121

picante, veio um prato assim [mostra com as mãos] meio dia e eu falei, não aguento não, meu colega foi, ainda está lá no Groningen ainda, comeu tudo. Cheguei ao Brasil, fininho, só comia pão e sopa, e os holandeses tem a mania de comer na hora do almoço, pão com tudo, coloca queijo, presunto, até salada, até morango, dentro do pão. Manteiga, granulado. Hoje eu acho gostoso, hoje eu faço, mas antes não fazia. Pasta de amendoim e tomam sopa. E fruta assim, mas na hora da janta é normal, igual à gente, igual lá no Brasil, normal. Mas a adaptação foi difícil, sempre. E também a língua, você tem que se comunicar um pouquinho. (Maurício, 37 anos, Rotterdam, clube ―amador‖ Países Baixos entrevista, outubro 2013).

E, por sua vez, Sérgio:

Meus quinze (15) primeiros dias eu estava em avaliação. Só depois desses dias eles foram lá, me deram dinheiro, aí eu pude fazer um rancho no mercado, comprar arroz, massa carne, para poder cozinhar em casa. Até então eu tinha que me virar, levei um dinheiro extra daqui. O que era mais fácil? Em um calor de quarenta e dois (42°C), fiz um trilho, do apartamento para o estádio e tinha um shopping que tinha um mercado, então eu só andava nesse trilho para não me perder. Então tinha um McDonald‘s, eu chegava lá, passei quatro (4) dias comendo seguido no McDonald‘s, o almoço e a janta, o almoço e a janta. E comprava uma bolachinha, uma fruta no mercado até depois começar a cozinhar. Mas foi bem assim, chato, porque é muito barato o McDonald‘s lá. Muito barato mesmo, centavos. Mais barato do mundo. (Sérgio, 29 anos, Erechim, clube segunda divisão do Rio Grande do Sul, entrevista, março 2013).

Mesmo com uma presença de futebolistas brasileiros em Portugal superior aos números registrados para outros países, Sílvio também expressou da seguinte maneira sua primeira experiência migratória com relação ao futebol: Quando eu tinha acabado de chegar, foi uma época [pausa para pensar] primeira vez que você está passando frio, eu estava sozinho, com 16 anos chorava muito. Era muito difícil pra mim e pra minha família. 122

Tava bem no clube e meu empresário falou, o Sílvio é jogador para time grande. Ele falou pra mim, era um domingo, até hoje eu lembro, na terça-feira eu vou te levar pro Benfica, eu vim pra ir pro Benfica, eu olhei pra ele e disse que eu não queria ir, que eu não estava preparado pra ir. Agora eu penso comigo mesmo que foi uma besteira que eu fiz, mas na época eu não estava me sentindo bem, era muito frio pra mim, eu tava sentindo falta dos meus familiares, a comida não era a mesma. Depois você vai se acostumando. (Sílvio, 21 anos, Porto, clube divisão distrital Portugal, entrevista, fevereiro 2014).

Sobre essa significativa presença, com auxílio de algumas fontes empíricas, verificamos no início da temporada de 2013/14 a presença de 141 brasileiros atuando nos clubes da Primeira e Segunda Liga Portuguesas (os dois campeonatos ―profissionais‖ do país). Apesar de uma redução dessa presença se comparada ao caso das transferências (do Brasil para Portugal) de anos anteriores citado na tabela acima, foram registrados 90 brasileiros nos clubes participantes da Liga Zon Sagres (Primeira Liga) e 51 na Segunda Liga76. Com um total de 38 clubes nas duas ligas, apenas quatro clubes não mantinham naquele momento brasileiros em seu ―plantel‖, Belenenses, Sporting B, União da Madeira e Porto B. Portanto, se considerarmos incorreta a afirmação de que existiu pelo menos um brasileiro em cada clube de futebol situado em Portugal, a presença de brasileiros nos clubes é no mínimo considerável. No caso do Clube de Futebol Os Belenses localizado em Lisboa, embora não existissem brasileiros contratados para o momento inicial da temporada, pude verificar a transferência de três futebolistas em fevereiro de 2014 contratados junto a clubes situados no Brasil. Já as equipes do Sporting B e Porto B, uma espécie de segundo time de duas importantes equipes de mesmo nome na Primeira Liga, o Sporting Club de Portugal e o Futebol Clube do Porto, apresentam um fluxo constante de futebolistas do segundo time para o primeiro e vice-versa. A comparação entre a situcionalidade do trabalho de campo não é justa nem no que se refere ao contexto dos clubes e dos significados assumidos pelo futebol nos contextos locais de clubes situados no Brasil, nos Países Baixos e em Portugal, tampouco quanto aos significados e práticas elaboradas pelos

76 Através do levantamento da revista esportiva impressa ―Cadernos de A Bola‖ de agosto de 2013, com dados atualizados até o dia 25 de julho de 2013. Ainda que não tenhamos dados ao longo ano, vários desses futebolistas já se encontravam em Portugal nas temporadas anteriores. 123 interlocutores e suas trajetórias. Como já referido, se comparado à migração reconhecida para outros países, o fluxo de futebolistas brasileiros para os Países Baixos é quantitativamente pequeno. Desde o reconhecimento ―profissional‖, que nos Países Baixos está datado pelo ano de 1954, até o final da década de 1980 foram apenas três casos de participação de futebolistas brasileiros nos clubes situados no país77. Ainda que esta circulação seja efetivada ao longo do tempo permanentemente, como sugerem os nódulos de Darby (2013), alguns interlocutores referiram-se à utilização de algumas estratégias de migração utilizadas por outros migrantes, como por exemplo, a ―entrada‖ nos países sob a condição de ―turistas‖. Mesmo que possa ser realizada, a conversão de um ―capital corporal‖ (Wacquant, 2002) para a prática do futebol ―profissional‖ dificilmente é feita para outra profissão. Esta conversão não é preterida em razão da recusa ou do insucesso em um clube, entretanto no caso de Maurício (meu principal interlocutor nos Países Baixos) ela aconteceu aos 32 anos quando começou a atuar nas divisões ―amadoras‖ (embora com remuneração pecuniária permanente) e minimizou o uso do ―capital corporal‖ útil ao futebol78.

77 Existem algumas maneiras desta circulação acontecer nos interstícios entre legalidade e reconhecimento. Nos Países Baixos encontrei dois casos de brasileiros que não constavam nos registros dos clubes enquanto ―não-comunitários‖ (estrangeiros não pertencentes a União Européia) pois estavam dentro do contexto de uma migração geracional (ambos filhos paternos de holandeses). Um deles, não estava registrado oficialmente na instituição, pois se encontrava em período de testes, portanto sua ―entrada‖ no país havia sido feita como a de qualquer outro cidadão. Enquanto isso, na cidade do Porto, em Portugal, percorri trajetos de metrô com alguns brasileiros que estavam em um período de treinamentos em um dos clubes, mesmo que tivessem sido considerados como ―turistas‖ pelos controles alfandegários, seus contatos com o clube foram intermediados por dois empresários, um brasileiro, outro português. Destes, nenhum permaneceu no clube após o período de um mês. Da mesma maneira, um de meus interlocutores no Brasil afirmou que sua ―entrada‖ na China, antes da assinatura do contrato com o clube, foi feita sob a condição de ―turista‖ e teve a intermediação de um ―brasileiro‖ que compunha a equipe técnica do clube.

78 Tais condições migratórias não são análogas às da migração oferecidas pela prostituição conforme analisada por Adriana Piscitelli (2013). Ainda que mulheres façam parte do contexto migratório dos futebolistas, como algumas esposas que também circulam, não é possível comparar com as categorias erroneamente utilizadas para o mercado do sexo como ―tráfico de pessoas‖. Em seu estudo a autora concorda com a existência de uma agência na atuação das mulheres prostitutas, entretanto ao analisar as trajetórias de vida destas destaca a possibilidade da modificação das condições de vida e esta agência se dá de um modo conservador, por exemplo, com relação ao 124

Sem a produção de um ―capital corporal‖ exigido para o mercado do futebol, a possibilidade de converter-se em um ―pé-de-obra‖ é bastante improvável no contexto migratório pesquisado. Quando a circulação concretiza- se através da assinatura de contrato, em muitos casos, como uma estratégia coletivo-individual sustentada pela família, as esposas que constituem a família nuclear, ou que passam a constituir, circulam também e, quando possível, passam a integrar o mercado de trabalho nos países ―receptores‖. Com relação aos futebolistas, entre outras estratégias para inserção em alguns mercados fora do país, ainda com relação aos elementos nacionais, a racialização dos corpos é feita discursivamente através da nacionalidade quando associada ao dom/talento para desempenhar o futebol. Neste caso, a aceitação e transferência de futebolistas brasileiros no mercado global, especialmente no epicentro ―europeu‖, trazem comparações forçadas a outras ―matérias-primas‖ para a exportação, como por exemplo, a reportagem que comparou as matérias-primas oriundas de alguns países da América Latina, entre eles o Brasil, sendo que os valores das transações envolvendo futebolistas eram superiores ao de ―animais vivos‖ e inferiores ao de ―carne‖ (FERDMAN e YANOFSKY, 2013). Além do capital corporal constantemente associado aos futebolistas, algumas trajetórias fixaram marcas de nacionalidade fortemente simbólicas, como a ―falta‖ de disciplina nas atividades cotidianas, e mais recentemente, o uso de substâncias ilícitas como a cocaína por um futebolista nos Países Baixos. Apesar das comparações carregadas de simbolismos que extrapolam a associação do dom/talento dos futebolistas, enquanto sujeitos portadores e constituídos por discursos, aos ―brasileiros‖ são atribuídos múltiplos significados de nacionalidade daquilo que é ―ser‖ brasileiro, ou seja, de uma propriedade identitária de um grupo. Estas marcas relativas à nacionalidade produzidas pela atuação dos brasileiros no mercado global futebolístico têm efeitos sobre as contratações dos clubes. Através do levantamento de Besson, Poli e Ravenel (2012) reafirmamos a presença de brasileiros em clubes situados na Europa em consonância com o auto-referido ―sonho‖. Nos 500 clubes participantes das Primeiras Ligas de 33 Associações de futebol europeias79 na temporada de matrimônio principalmente no contexto migratório de busca por ―segurança‖ e ascensão social. 79 Associações situadas nos seguintes países: Chipre, Itália, Grécia, Inglaterra, Romênia, Polônia, Turquia, Espanha, Russia, Bulgaria, Hungria, Portugal, Suécia, Ucrânia, França, República Bielorússia, República Checa, Escócia, Alemanha, Eslováquia, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Suiça, Islândia, Israel, Noruega, Finlândia, Servia, Países Baixos, Croácia, Irlanda e Eslovênia. 125

2011/12 registrou-se 528 brasileiros de um total de 12410 jogadores considerando o calendário de agosto a maio do período. Diante dessa exportação dos ―produtos‖ e, ao mesmo tempo, ―produtores do tele-espetáculo‖, além dos ―brasileiros‖, destacamos os registros significativos de franceses, sérvios, portugueses, holandeses (entendidos como ―expatriados‖, ou seja, atuando fora de sua federação de origem) e argentinos tendo respectivamente 247, 228, 132, 101 e 211 futebolistas com atuação nas ligas ―europeias‖. Sob a análise dos fluxos para o epicentro ―europeu‖, reunidos sobre esta identificação nacional, os futebolistas brasileiros reafirmam a presença quantitativa nas demais ligas situadas na Europa chegando a um total de 529 ao longo do ano de 2009, 566 em 2010, 524 em 2011, 515 em 2012 (Poli, Ravenel, Besson, 2013). Tendo em conta apenas aquelas ligas hierarquicamente distribuídas pela importância mercadológica, ainda podemos quantificar a presença de brasileiros naquelas consideradas as ―5 mais importantes‖ (ou ―Big-5‖), ou seja, Premier League (organizada pela FA, Inglaterra), Bundesliga (DFB, Alemanha), (RFEF, Espanha), Serie A (FIGC, Itália) e Ligue 1 (FFF, França). Nestas ligas temos seguintes registros: na temporada 2006/2007, 129 brasileiros nas 5 ligas, em 2007/2008 um total de 145, 2008/2009 foram 154, 2009/10 foram 131, já na temporada de 2010/11 foram 123 brasileiros, sendo que 38 na Itália, 27 na Espanha, 26 na Alemanha, 22 na França, 12 na Inglaterra (Poli, Ravenel, Besson, 2011, p.52-53) Com relação à contratação de futebolistas, a preferência pelo uso da situcionalidade de um clube, como adotado ao longo do texto, se dá pelas distintas formas de produção desta ―mercadoria‖. A partir da lógica institucional refutamos a explicação através de um modelo nacional de produção, mesmo nos Países Baixos, considerado por muitos como um modelo de referência para as categorias de base, apresenta distintas condições. Um exemplo das assimetrias nas relações de poder desta produção é o recrutamento de futebolistas feito pelo Feyenoord Rotterdam, clube possuidor de um Centro de Formação em Ghana. O que ocorre em outros pouquíssimos casos de clubes situados nos Países Baixos. Mesmo que a formação transnacional feita pelo Feyenoord seja centrada em elementos do campo da nacionalidade para a seleção de possíveis futebolistas ganeses (em muitos casos essencializados como ―africanos‖), esta não se dá da mesma maneira ao que ocorre, por exemplo, com as ―canteras‖ do F.C. Barcelona que faz do pertencimento ―étnico- territorial‖ um componente estratégico (Rigo e Torrano, 2013) 80. Todavia, o Barcelona mantém um ―Centro de Formação‖ na cidade Rosário na Argentina

80 ―Canteras‖ são como são chamadas as ―categorias de base‖ no clube. 126 de maneira a ampliar as possibilidades de fornecimento de pés-de-obra. Outro exemplo de formação em distintas escalas dos clubes situados nos Países Baixos é o do AFC Ajax. Durante a temporada 2013/2014, o Ajax foi o clube europeu que mais ―formou‖ futebolistas para os campeonatos realizados na Europa, 69 ao total, dos quais 12 continuam vinculados ao clube81. O segundo clube com maior número de futebolistas formados é o Partizan Belgrado (Klub Fudblaski Partizan, situado na Sérvia), 66 ao total, dos quais 7 permanecem no clube. O Futebol Clube Barcelona (situado na Espanha), constantemente referenciado como um importante centro formador teve 61 futebolistas formados em atuação durante a temporada 2013/2014, destes, 16 atuaram pelo clube. (Fonte: Poli, Ravenel, Besson, Demographic Study, 2014, p.21) 82. Com esta forma de ampliar as possibilidades daquilo que chamam de ―captação‖ de futebolistas, Ajax e Feyenoord, ambos situados nos Países Baixos, ampliam enormemente as possibilidades de ―formação‖ de futebolistas. Além de contratos e repasses econômicos aos clubes conveniados exclusivamente feitos a partir dos futebolistas que ―dão certo‖, os clubes utilizam a visibilidade do mercado futebolístico para obterem exclusividade na escolha de possíveis futebolistas com baixos investimentos e altos lucros a cada circulação feita pelos futebolistas, pois como se nota, muitos não permanecem nos clubes. Com processos de formação que acontecem simultaneamente na sede do clube ou naquelas instituições destinadas à formação fora do país, no que se refere ao acolhimento dos futebolistas, ou de possíveis futebolistas, o Feyenoord possuía uma espécie de governanta para lidar com os menores oriundos de outros países. A ―formação‖ dos futebolistas começa precocemente. No caso da

81 Aqui consideradas só as Primeiras Ligas dos países anteriormente citados.

82 Contigencialmente, esta formação pode ser analisada a partir de parâmetros do futebol ―global‖. Com relação à formação dos futebolistas das 32 seleções participantes da Copa do Mundo de 2014, o Feyenoord, junto com Barcelona, foram os clubes que mais ―formaram‖ futebolistas que atuaram no torneio. Ao todo, cada clube foi responsável por ―formar‖ 9 jogadores presentes nas seleções que disputaram a Copa do Mundo. Por sua vez, o clube brasileiro que mais ―formou‖ futebolistas foi o Cruzeiro, com 3 futebolistas participantes. O que de certa forma contrapõe as discursividades apresentadas por algumas transmissoras situadas no Brasil durante a Copa do Mundo de 2014 exaltando um modelo de formação ―à Alemanha‖. Não por acaso tal modelo foi extensivamente exposto principalmente após a derrota da seleção da CBF, pautado em certo planejamento racional em oposição ao dom/talento individual ―brasileiro‖. 127

―contratação‖ de Leonardo Vitor Santiago, isto ocorreu aos 12 anos de idade, quando o futebolista foi incorporado ao ―Centro de Formação‖ em Rotterdam após deixar uma das ―escolinhas‖ de futebol no Rio de Janeiro em 1995. Os futebolistas, brasileiros ou não, confrontam-se com assimetrias de poder no que se refere aos contratos oferecidos e as condições de trabalho mesmo nos clubes situados no epicentro ―europeu‖. Muitas vezes tratados como ―mercadoria‖, passíveis de serem descartados, se para alguns os contratos podem ser milionários, como em um levantamento prévio a Copa do Mundo de junho de 2014 onde dos 60 jogadores mais bem avaliados pelo valor de mercado, 7 eram brasileiros (todos atuando nas big-5)83, em 2003 a CBF divulgou o registro de 3.500 futebolistas empregados no país de 22.000 registrados, sendo que daqueles em situação contratual cerca de 2.700 recebiam até 3 salários mínimos84. Mesmo que constantemente referenciada como um bloco homogêneo, para estes futebolistas ―jogar na Europa‖ também é uma maneira de conferir status e experiência à circulação, mesmo que em condições dissonantes daquelas celebridades do futebol de tele-espetáculo. Deste modo, a cada novo contrato, clubes e as mídias esportivas associam a trajetória de um futebolista aos clubes pelos quais atuou. Um periódico ―on-line‖ assim referiu-se a Denílson: ―Aos 19 anos, desembarcou na Holanda, no Feyenoord, e por lá ficou. Passou pelo México, pela Arábia, e só veio dar as caras de novo na terra natal este ano, já "consagrado" aos 34 anos.‖ (Lance.net, MUNHOZ e MEGIOLARO, 2011). De outra forma, através da divulgação do sítio do clube Willem II, situado nos Países Baixos, assim foi noticiado o futebolista Bruno Andrade destacando os seus contratos feitos no Helmond Sport (situado nos Países Baixos) e na Bélgica:

83 Todos eles atuando em clubes das ligas ―Big-5‖. Fonte: Poli, Ravenel, Besson, Annual Review CIES Football Observatory 2014, p.8.

84 Citado por Rodrigues, 2007, p.227. Na falta de dados mais atualizados, no ano de 2014, através do sítio da CBF estão registrados 13.190 futebolistas brasileiros. Já o Bom Senso Futebol Clube, movimento organizado por futebolistas no país em 2013, calcula que existiam nesse momento em torno de 16.000 futebolistas registrados pela CBF. 128

Figura 10: Notícia da proposta de contrato de Bruno Andrade por clube nos Países Baixos.

Fonte: Periódico ―Omroep Brabant‖, 16 junho 2013, on-line.

De maneira impressa, o jornal local se referiu ao regresso de Bruno Hepp a um dos clubes da cidade de Pelotas: ―Depois de uma passagem pelo Santa Cruz, Bruno chegou à Boca do Lobo para disputar a Segunda Divisão do Campeonato Gaúcho de 2008.‖ (Diário Popular, p. 16, 2012). Ao tratar do modo como às mídias fazem circular a informação relativa aos futebolistas, além das instituições que fazem parte do currículo dos futebolistas, as questões de nacionalidade apresentam-se como uma forma de encurtar a problemática das trajetórias de cada futebolista. Mediante o exemplo do ―fluxo‖ de futebolistas brasileiros aos clubes dos Países Baixos, indicaremos a seguir certa abertura para as transferências internacionais que começa a ser significativa a partir da década de 1990 para o país. Como sugeriu Arlei Damo (2006, p. 53) ―a imbricação entre o time organizado pela CBF e a nação brasileira, é algo que, no Brasil, está naturalizado, de tão convincente que foram os mediadores do passado e o são os do presente‖, o que de forma mais sútil pode ser considerada uma condição análoga à configuração histórica dos Países Baixos e o time organizado pela KNVB. Historicamente, além das importantes participações durante as campanhas dos jogos na Copa do Mundo constantemente referenciadas pelas seleções de 1974 e 1978, o título da Eurocopa85 de 1988 é tratado como um marco para o futebol neerlandês. Uma das hipóteses que levantamos para o

85 Jogos organizados pela UEFA com seleções representantes das Federações de Futebol européias. 129 aumento de futebolistas brasileiros contratados durante as duas décadas posteriores se dá por uma maior aproximação ao pertencimento nacional a partir do futebol após a vitória pelo selecionado neerlandês durante a Eurocopa no ano de 1988. No referido ano, o selecionado da KNVB venceu a semifinal com o selecionado representante da Alemanha Federal (naquele momento, a parte ―ocidental‖), e posteriormente derrotou o time representante da então União Soviética, retomando um sentimento nacionalista pós-guerra quando milhares de cidadãos saíram às ruas para comemorar (ver Kuper, 2012) 86. Poucos meses depois, o PSV (clube situado na cidade de Eindhoven) paga a maior transferência já registrada até então por um futebolista brasileiro. Romário, após ter sido artilheiro dos Jogos Olímpicos no mesmo ano, na época com 22 anos, tranfere-se para seu primeiro clube europeu (durante sua carreira ainda atuou por Fútbol Club Barcelona e Valência Club de Fútbol, ambos os clubes situados na Espanha). Além da participação decisiva de Romário e de alguns outros futebolistas que se tornaram célebres nas suas permanências no país (não só com passagens pelo selecionado representativo da CBF), o uso da nacionalidade junto ao relativo sucesso na produção de times vitoriosos pelo selecionado da CBF tornaram os futebolistas brasileiros conhecidos e reconhecidos mundialmente. Apesar da significativa presença de futebolistas brasileiros na ―Europa‖ sugerimos uma paulatina diminuição da circulação com destino a clubes situados na Europa através das tabelas 1 e 2. Esta hipótese coincide com o discurso da crise econômica mundial, constantemente referenciada nas conversas e entrevistas com futebolistas, jornalistas e técnicos dos clubes.

4.2 REPRESENTAÇÃO, (ANTI-)HERÓIS E PROJETOS DE VIDA Em contraposição ao futebol menor, o futebol de tele-espetáculo sinaliza uma aceitação dos códigos e valores socialmente aceitos para a representação da imagem de futebolistas e clubes. Entretanto, consideramos que no futebol menor o que acontece é uma multiplicação da diferença e das singularidades, por exemplo, na possibilidade de diferir de um projeto pautado no futebol, na escolha da mobilidade, nas associações e relutâncias feitas ao acaso.

86 Consultar especialmente o segundo capítulo de Simon Kuper (2012) intitulado ―El fútbol es la guerra‖ que trata especialmente do jogo entre os selecionados representativos de Países Baixos e Alemanha Federal na semi-final do campeonato. Ademais, este jogo foi constantemente referenciado em algumas conversas informais com neerlandesas sobre futebol como um acontecimento de exaltação ao nacionalismo e extensas e efusivas celebrações no país. 130

Durante os anos de 2012, 2013 e 2014 acompanhei as transferências de alguns interlocutores que cruzaram fronteiras nacionais e intercontinentais. Mais propriamente, concordando com Carmen Rial (2008), mais do que cruzar fronteiras geográficas, ―jogadores de futebol‖, especialmente aqueles que identificamos como célebres, circulam em espaços altamente controlados como clubes, aeroportos, hotéis, etc., ao mesmo tempo em que vivem transnacionalmente. Entretanto esta circulação se apresenta em escalas distintas para jogadores pouco-célebres87, aqueles situados nos clubes menores88. Situamos esta condição de fazer parte de um contexto ―profissional‖ como infame (Luiz Carlos RIGO, 2004) 89. Esta posição significa um contraste com as celebridades do futebol de tele-espetáculo onde sujeitos ficam à margem da profissão mesmo quando estão empregados, assim como alternam períodos de emprego e desemprego. Embora esta condição seja significativa para a maior parte dos jogadores que atuam em clubes menores optamos por utilizar com restrições a referência de ―infâmia‖, pois analogamente, não encontramos ressonância naquelas vidas com ―outros ânimos de existência‖ (FOUCAULT, 2003), aquelas que diferem de uma norma social e são relegadas às breves linhas de prontuários psiquiátricos e boletins policiais, ou seja, aquelas existências que parecem não convergir para as linhas de uma história reconhecida por seu tempo (LOBO, 2008). Diferentemente, os futebolistas infames (ou pouco-célebres) se alinham

87 Tratamos como celebridades aqueles jogadores que mantém uma visibilidade midiática permanente e com alcance que ultrapassa fronteiras nacionais em larga escala.

88 Diante do contexto de um futebol menor, não se pode negar a inclusão deste futebol em um sistema de escala mais amplo. A referência tomada aqui também remete ao que Rial (2008) chama de ―clubes globais‖, instituições presentes constantemente no ―mediascape‖ (Arjun Appadurai, 1990) e que não necessariamente estão situados nas ―cidades globais‖ (Saskia Sassen). Como categoria, não se pode utilizar ―clubes não- globais‖ pois este não mantém uma divisão precisa quanto as condições sócio-políticas dos clubes de futebol em um contexto nacional, durante a pesquisa priorizei aqueles futebolistas vinculados aos clubes que não participavam dos campeonatos nacionais da ―primeira divisão‖ no Brasil, Portugal e Países Baixos, ainda que esta divisão fosse borrada a partir dos contatos entre futebolistas principalmente no contexto dos Países Baixos onde a religiosidade mantinha importância na rede de relações dos interlocutores.

89 Rigo (2004) apropria-se do conceito de infame de Michel Foucult para referir-se especificamente ao futebol de várzea e suas possíveis variações. 131 em certos momentos aos discursos produzidos pelos jogadores-celebridade, negociando contratos e aquilo que avaliam como melhores condições de vida. Mesmo não tendo a repercussão midiática das celebridades globais, os interlocutores com quem mantive contato são amplamente reconhecidos localmente como pude notar ao acompanhar em diversos momentos seus trajetos urbanos da moradia ao clube, do clube aos centros de treinamento, em restaurantes e cafés. É com esta distinção que passamos a referir a uma condição de atuação profissional e existencial como pouco-célebre. Embora existam algumas diferenças quanto a este reconhecimento de clube para clube, e mesmo de tempos em tempos em um mesmo clube90, manter uma carreira enquanto futebolista é uma condição privilegiada mesmo para aqueles que mantêm uma condição menos visível como esta nomeada como pouco-célebre. No caso dos futebolistas que mantiveram contratos de trabalho nos clubes situados no Brasil, com raras exceções, os contratos de trabalho feitos tem uma duração de 2 a 6 meses, ou como referida por um interlocutor ―por campeonato‖. Enquanto para aqueles jogadores que se encontravam em clubes situados em Portugal esta média oscilou entre 1 e 2 anos e para os contratados por clubes situados nos Países Baixos os contratos feitos não foram menores do que 2 anos. Seja pela oferta de emprego para o próximo clube, pelas lesões que os afetam de tempos em tempos alterando suas práticas cotidianas quando não raro são utilizadas como justificativa para o término de um contrato, uma dimensão de incerteza está permanentemente colocada91.

90 Esta mudança de status e reconhecimento em um mesmo clube acontece em meio a duas condições: contratação por um clube de reconhecimento internacional, prioritariamente ―europeu‖; e/ou, participação na seleção brasileira. Durante o trabalho de campo, parte do estádio de um clube fez referência ao jogador que havia sido ―revelado‖ no clube e expôs imagens do jogador com camisetas do clube local e da ―seleção brasileira‖, pois acabara de passar por um período de reconhecimento atuando pelo time da CBF. Entre muitos sentidos podemos assinalar que o uso da categoria de ―revelado‖ reitera uma obrigação moral do dom (Mauss, 2003) retribuindo uma ―formação‖ adquirida no clube, combinado com as estratégias de marketing feitas pelos clubes para afirmar aquilo que ―deu certo‖ servindo de modelo para jovens ainda ―em formação‖. Ademais, tal reconhecimento serve como dispositivo jurídico para assegurar os repasses pecuniários das transferências posteriores ao clube ―formador‖.

91 Como comparação, no caso do futebol praticado por mulheres as próprias instituições encontram-se na eminente condição de fechamento. Embora com muitas aproximações no que diz respeito a uma condição menor, a busca por reconhecimento neste último futebol é afetado por algumas variáveis sendo que cada uma delas pode ser dita como uma conquista, como por exemplo, ter um contrato de trabalho, receber compensações 132

Mais do que a fama, alguns interlocutores justificam a escolha pelas condições de trabalho e o salário. Entretanto, nem sempre esta lógica está colocada como em uma transferência que envolveu a idade de um dos interlocutores (na época com 30 anos), a relação com um empresário e a possibilidade da renovação de contrato. Neste caso, o futebolista opta por deixar um clube considerado importante no contexto nacional e regressa ao contexto regional no interior do Estado do Rio Grande do Sul. Analogamente ao que Gilberto Velho (2003) chama de ―campo de possibilidades‖, isto é, algumas escolhas possíveis de serem tomadas dentro de certas condições, ainda foi possível confrontar-se com discursos que diferiam bastante daquilo imaginado para certa condição. No que se refere às possibilidades de ―jogar‖ futebol em um clube europeu ao mesmo tempo em que significou para muitos a redefinição de seus relacionamentos conjugais através da concretização do matrimônio, a transferência para clubes situados em Portugal e nos Países Baixos foi o momento de ressignificação da atuação profissional: Eu não olhava que era o FC Groningen, era um time da Europa. Depois eu fui descobrir que o FC Groningen era um time pequeno. Mas eu estava tão feliz que iria aumentar tudo para mim na questão financeira, na questão de ter mais chance de jogar, de que eu poderia casar, nós éramos noivos e não tínhamos condição para casar, então para mim foi ótimo (Maurício, 36 anos, Rotterdam, clube ―amador‖ Países Baixos, entrevista, junho 2013).

Neste contexto migratório, a redefinição conjugal configura um modo de continuidade de projeto coletivo-individual familiar vivido transnacionalmente. Em muitos casos o matrimônio efetiva-se a partir do momento de circulação dos futebolistas. No caso de Maurício, o registro civil de união afetiva foi feito por procuração, pois o jogador já se encontrava nos Países Baixos. De forma alguma esta foi uma condição unânime mesmo se considerarmos a nacionalidade como um elemento de análise. Quanto ao elemento de nacionalidade dessa circulação, o ―ser brasileiro‖ é utilizado também como uma estratégia de comodificação como a possibilidade de ter visibilidade no momento de uma transferência para ―fora‖ do país, no caso neerlandês, a abertura a partir da nacionalidade se deu em grande parte pelos pecuniárias, e talvez a primeira delas quando efetivada, diz respeito à prática tão comum e disseminada entre homens, poder praticar o futebol. Para maiores considerações, ver: WILLIAMS, 2007; PISANI, 2013; ALMEIDA, 2013; RIAL, 2013. 133 futebolistas que ―deram certo‖, como já sugerimos. A identidade nacional ―brasileira‖ é utilizada como forma de encurtar o entendimento de como alguém expressa uma prática comum, afinal, no contexto do futebol ―ser brasileiro‖ supõe estar ligado ao capital corporal necessário para a prática do futebol. No caso dos futebolistas brasileiros que se encontravam nos Países Baixos, conforme o trecho de entrevista acima, as passagens de alguns brasileiros de relativo sucesso são até hoje presentes em programas televisos dedicados ao futebol. Como o já citado caso de Romário, um dos atacantes mais célebres ainda é lembrado por ―ser brasileiro‖. Assim, esta relativa fama das celebridades também amplia as possibilidades de inserção nacional neste mercado de trabalho nos Países Baixos. Contudo, além da construção de uma imagem de nação, tal inserção nacional não se dá de maneira homogênea, nem mesmo ao comparar futebolistas ―brasileiros‖ presentes (ou com passagens) pelos Países Baixos. Ao recusar a definição de ―grupos étnicos‖ contrapomos as possibilidades de visibilidade que os jogadores mantêm com os meios de comunicação. Assim, ―o problema de construção política da diferença tem uma limitação estrutural dada pelo discurso-mestre da nação brasileira, que impede a construção de fronteiras definidas‖ (MACHADO, op.cit., p.62). Tal discurso assinala de maneira englobante a identidade pautada no nacionalismo e na nacionalidade ―mestiça‖ e ―integrada‖ como central. Nossa intenção em rechaçar esta definição de construção da identidade ―brasileira‖ se dá pela confrontação destas mostras de contato empírico que mantivemos com os/as interlocutores/as. Apesar disso, em muitos momentos os elementos étnicos são utilizados para obterem espaços nos clubes ―europeus‖, possibilitando contratos mais extensos quando comparados aos feitos no Brasil. Como uma espécie de identidade nacional às avessas da imagem concebida pelos discursos presentes na nossa relação de interlocução, as condições para o ingresso e permanência nos clubes ―europeus‖ são bem distintas, pois como explicitado acima ―depois eu fui descobrir que o FC Groningen era um time pequeno‖, afinal ―era um time da Europa‖. Não por acaso a efetivação de um projeto de ―jogar na Europa‖ é tão desejada e procurada, ainda que as condições para sua realização não sejam nem um pouco semelhantes. A respeito da efetivação desta circulação, tais condições divergem, por exemplo, no que se refere à presença do entourage vivido por jogadores- célebres. No caso de sua etnografia multi-situada, Carmen Rial (2008) observou a presença de muitos familiares nas residências de futebolistas brasileiros famosos em suas estadias fora do país, produzindo uma espécie de 134

―bolha‖ e tornando possível a concretização de um projeto sustentado pelos discursos e práticas familiares. Entretanto, algumas trajetórias constituídas em meio à experiência questionam as representações mais conhecidas de futebolistas, tal como argumenta um dos nossos interlocutores:

Eu gostaria de jogar em um grande clube, mas eu saí de casa, e olha o meu pensamento: ―Eu quero ser um jogador profissional, eu não me importo se eu ganhar mil ou dez, eu quero ser um jogador profissional.‖ Isso é mais forte que eu tinha em mente: ―Eu saí de casa, fui rodar mil quilômetros, eu tenho algumas dificuldades, mas agora eu vou conseguir‖, e jogar em um grande clube, eu não pensava sobre a seleção brasileira, eu sinto que eu perdi essa ambição. (Camilo, Pelotas, clube segunda divisão do Rio Grande do Sul, entrevista, setembro de 2012).

Tais possibilidades para ―jogar‖ no exterior são mediadas por ―agentes‖ ou ―empresários‖, em se tratando de clubes e países desconhecidos, assim como, para a experiência de atuar no Brasil: "Eu pensei que era hora de sair e procurar planos maiores, então eu fiz a escolha errada. Fui para Brasília, um agente me ligou, ele viu alguns jogos, ele também leu alguma notícia, por um longo tempo ele estava em contato comigo" (Sérgio, 28 anos, Pelotas, temporariamente sem contrato, entrevista, maio de 2012). Embora, alguns destinos não são os mais privilegiados para se obter visibilidade internacional, as escolhas neste caso enfrentaram algumas condições definidas em um determinado momento de sua carreira, como a possibilidade de ir à China. Como se refere em outro trecho da mesma entrevista: "Eu não pensei duas vezes, eu tenho que ir. Foi a oportunidade econômica da minha vida. Eu não hesitei". A negociação com os agentes, não significa apenas uma forma de obter ―entrada‖ no exterior, assinar bons contratos e manter a circulação de discursos, dinheiro e pessoas. Mais que isso, disputa desejos, sonhos e projetos de carreira sempre coletiva. Mobilidades e existências que não compõem os números oficiais ao longo do tempo e não são expostos pelos flashes dos meios de comunicação ou outros dispositivos que tem atuado nas relações de poder, embora sejam celebradas micropoliticamente, o que significa de forma coletiva pela família92.

92 Algumas das circulações não aparecem nos números oficialmente divulgados. Como observamos no ano de 2012 quando um grupo de jogadores de futebol brasileiros que foram para a cidade do Porto regressou ao Brasil sem concretizar a almejada assinatura 135

A estratégia de vincular futebol e identidade nacional também é um dispositivo contextual conforme acima referenciado a partir do caso do Romário nos Países Baixos. Associada com a idade, a quantidade de ―aparições‖ nas seleções nacionais, ou outras variáveis, deriva a importância e o salário de um jogador de futebol, assim como de uma carreira. Mesmo nos exemplos que decidem permanecer em um país, é necessário notar a presença do que citamos como ―campos de possibilidade‖ e ―projetos de vida‖, em última instância, quais são as opções e as escolhas possíveis para esta permanência. Como Carmen Rial (2008) afirmou os futebolistas não atravessam fronteiras, vivendo nesta ―bolha‖ oferecida por clubes, hotéis e agentes, embora existam alguns elementos locais que constituem singularidades. Tais disputas sobre as identidades nacionais também são usados como valor de troca para justificar a importância de escolher a Europa ou outro destino (ou ainda, nos termos de Machado, 2008, identidade-para-o-mercado). Quanto à associação histórica entre brasileiros e as vitórias da equipe nacional e do país de origem, os futebolistas brasileiros são uma mercadoria de valor nos mercados de muitos países. No entanto, mesmo nesses exemplos que ficam em um clube/país por longos anos, é importante notar em última instância, algumas condições que favorecem as escolhas para sua permanência. Esses profissionais são homens, mantém uma espécie de projeto familiar coletivo-individual através de migrações constantemente potencializadas por suas famílias, no entanto, ao mesmo tempo, encontramos alguns discursos dissidentes. Como Mariane Pisani (2013) mostrou em sua etnografia, para as mulheres brasileiras futebolistas, não só os contratos estão permanentemente em uma condição de risco, mas também as instituições que detêm a possibilidade de concretizar seu ―sonho‖ de jogar futebol e tentar sobreviver diariamente. Homens e mulheres pouco-célebres não são apenas comodificados e se tornam um produto a ser vendido e comprado, para, além disso, ocupam lugar nesta demanda subjetiva em se tornar algo precioso para ser visto, falado, ouvido, comentado nas vidas diárias. Neste sentido, compõem discursos que avaliam algumas narrativas mais válidas do que outras93. de contrato. 93 Por sua vez, uma carreira não menos desejada e procurada por mulheres no Brasil, através do trabalho de Caroline Soares (2013) é possível identificar a relação do uso da imagem das mulheres e de uma feminilidade enfatizada através de reportagens de revistas. É válido lembrar uma das campanhas publicitárias feitas por um clube de futebol, há dois anos, vendeu fotos vindo a reforçar e incentivar uma certa constituição de beleza para as mulheres que jogam futebol. Para o caso dos contratos, até o presente momento no ―futebol feminino‖ estes não possuem valor jurídico, o que tem provocado um aumento do número de agentes para intermediar as contratações, assim 136

4.3 CIRCULAÇÃO E RELIGIOSIDADE EM UM FUTEBOL PRATICADO POR HOMENS: ―FUTEBOL DE MENTIRA‖ E ―FUTEBOL DE VERDADE‖ 94

Ao colocar em questão uma forma de vida que tenta se sobrepor em relação a outras, Peter Pal Pelbart (2013) descreve um imperativo político ordenado por uma cultura midiática retroalimentada por valores de uma suposta classe média brasileira. Debruçado sobre aquilo que ficou conhecido no Brasil como ―as jornadas de junho‖ no ano de 2013, o autor realiza sua narrativa sobre os acontecimentos a partir do conceito de ―multidão‖. Para o filósofo, este fluido disforme, sem rosto, sem centro e sem líderes, se torna um novo ator social pouco definido e definitivo. como uma relativa desregulação no que se refere ao cumprimento dos mesmos. Para uma comparação feita entre as trajetórias de vida no futebol praticado por mulheres e homens, consultar: ALMEIDA, PISANI e JAHNECKA (2013). 94 Categorias utilizadas por Sérgio (2012 e 2013) para descrever a distância existente entre o futebol menor daquele de tele-espetáculo. Segundo ele, o futebol menor é o futebol de ―mentira‖, pois não é o que está ao alcance da visibilidade midiática, ainda que, segundo ele, seu ―treinamento é igual ao do Grohe [referência a Marcelo Grohe]‖ (nota diário de campo, maio 2012). No que se refere ao ―futebol de mentira‖ e ―futebol de verdade‖ Sérgio descreve da seguinte forma: ―Tu vais olhar um atleta do Grêmio [Gremio Futebol Porto-Alegrense] ou do Inter [], ele ganha 300 mil por mês. Se ele ganha 300 mil por mês ele pode estar junto da esposa. Eu ganho meu salário por mês e minha esposa tem que trabalhar pra ter uma renda maior, esse é o ponto de partida. Aí tu vais ver as condições desse atleta do Grêmio, do Inter, ou do Flamengo [Clube de Regatas Flamengo]. Não estou falando em carrão. Ele tem a melhor chuteira, o clube tem bola nova sempre, material esportivo, tudo do bom e melhor, melhor fisioterapia. Aí eu começo a comparar com o interior que é o de ―mentira‖ que eu falo. Muitas vezes o clube no interior não tem nem bola, compra bola em loja, é diferente da bola do campeonato. A Federação Gaúcha [FGF] dá bola da Penalti [marca esportiva], quando vês o elenco, o time do interior treina com bola da Dal Ponte que é mais pesada, já muda a ―batida‖ [forma de chutar a bola]. E por aí vai, a chuteira, não faz exame de sangue quando tu chegas. Poucos times que tem essa visão de tratar o jogador de futebol como atleta profissional de alto rendimento, então é uma coisa desparelha, vou querer ganhar do Grêmio, do Inter, sabendo que os caras tem todo o aparato, bem calçados, do bom e do melhor, digamos que é até uma injustiça. Porque se um time pequeno for campeão gaúcho em cima de Grêmio e Inter, houve mérito, claro que houve, mas abre precedentes para que outros times do interior copiem o modelo do interior e fique nessa mentalidade, não valorizar o atleta, em pagar só 4 meses depois, quando está parado em casa não paga, por isso a minha resolução, essas aspas que eu abro com ―jogador de verdade‖ e ―jogador de mentira‖. É bem diferente o futebol‖ (Sérgio, 29 anos, Erechim, clube segunda divisão do Rio Grande do Sul, entrevista, março 2013). 137

Analogamente, ao contrapor ―modos de vida‖ tateantes e pouco visíveis, ao longo do texto evidenciamos algumas rupturas com aquilo que está colocado como o exemplo, no caso de futebolistas célebres constantemente relacionados à fama, ao consumo e às circulações esperadas. Embora os roteiros para as circulações estejam colocados de modo a limitar as experimentações, como na recusa de um de nossos interlocutores a transferir- se para um clube situado em Israel mesmo sendo cristão sob a justificativa de ―ficar longe de bombas e da guerra‖, certas condições de possibilidade são exercidas de modo um tanto quanto imprevistas e decididas em um contexto coletivo-individual. Amparado por uma ordem cronológica de suporte familiar podemos indicar as passagens de um contexto de uma família nuclear a outra, que se inicia a partir da profissionalização de jovens e, seguindo as redefinições conjugais que coincidiram com as transferências internacionais, passa-se a constituição de uma família nuclear de modelo patriarcal centrada na carreira do futebolista. Assim, a família como um núcleo individual e ao mesmo tempo coletivo é tomada como referência para concretização de determinados projetos de vida: ―Decidimos voltar para o Brasil porque o primeiro parto foi traumático. Não queríamos passar por isso novamente‖ (Maurício, Rotterdam, 37 anos, clube ―amador‖ Países Baixos, entrevista, outubro de 2013). De maneira semelhante, o discurso centrado na família dos futebolistas foi utilizado de maneira recorrente para justificar os términos de contrato entre clube e futebolista: ―o motivo de seu desligamento é de ordem familiar‖, como informou uma nota divulgada através do sitio eletrônico de um dos clubes. Sem maiores repercussões na imprensa local e no contingente de torcedores do clube, a família enquanto instituição é pouco questionada quanto às suas funções e a relação com as escolhas tomadas pelos futebolistas. Conferindo a esta condição comum pouco-célebre exercida por um número considerável de ―boleiros‖, como certas existências são colocadas a margem e outras repetidamente celebradas? Ainda que se encontrem privilégios quanto às condições materiais em diversos contextos, a categoria êmica de ―futebol de mentira‖ e ―futebol de verdade‖ é suficientemente significativa para definir como as visibilidades de certas carreiras e de certos futebolistas detonam certos tipos de representação daquilo que é ―ser jogador‖ de futebol e impõem certo silêncio a respeito de tantos outros. A categoria de ―emigrantes‖, comumente utilizada para tratar os deslocamentos entre países de uma mão-de-obra não especializada para o mercado de trabalho, não pode ser a mesma para designar as fronteiras e os fluxos territoriais de futebolistas, como bem chamou atenção Carmen Rial. Conforme os trabalhos da autora já citados anteriormente (RIAL, 2006; 2009), 138 os ―emigrantes‖ futebolistas, devem ser colocados próximos dos profissionais especialistas, os quais ocupam cargos privilegiados em corporações, pois fazem parte de uma ―bolha‖ ou ―zona‖ de difícil acesso. No caso dos futebolistas, passam por aeroportos, hotéis e clubes de futebol, espaços altamente vigiados e controlados que, em suma, facilitam a seletividade nessa ―bolha‖. A autora adverte-nos para o uso indistinto de categorias as quais não são simplesmente reprodutíveis, neste caso, nas constantes migrações ―brasileiras‖. Entretanto, a partir daqui tratamos de discutir quais são as condições para criar visibilidades, por enquanto, sem levar em conta as especificidades do ―sistema futebolístico‖ (RIAL, 2008), ou seja, como alguém pode tornar-se um infame. Migração, projeto de vida familiar, envolvendo um planejamento mais ou menos extenso das escolhas a serem tomadas. No caso de futebolistas, mais do que as de outros migrantes que passam por processos relativos à legalidade-ilegalidade, estes enfrentam extensas comprovações, circulam conforme seus interesses e interesses dos clubes e colocam seus ―serviços‖ a disposição em curto período de tempo. Como coloca Sherry Ortner (2006) sobre as relações de poder:

Em resposta a isso, a ideia de jogos sérios era para mover questões da teoria da prática em várias novas direções. Como na teoria da prática, a vida social numa perspectiva de jogos sérios é vista como algo que é jogado ativamente, orientado para objetivos e projetos culturalmente constituídos, envolvendo tanto práticas cotidianas quanto ações intencionalizadas. (Ortner, 2006, p. 129) 95.

Parece improvável uma prática que não faz perguntas, mesmo quando consideramos que muitas dessas práticas se assemelhem a uma reprodução – porque não leva em conta ou procura ignorar os questionamentos feitos ao longo de seu curso, tampouco o que está em seu entorno – são muitas as questões permanentemente colocadas. Ao buscar ―desnaturalizar‖ o cultural, ou seja, identificar os processos pelos quais conferimos significados a certas práticas e reconhecer o cultural como aquilo impregna e produz efeitos nas práticas dos sujeitos. É através de questões, mesmo que produzidas de modo

95 Tradução de: ―Reponding to this the idea of serious games was meant to move questions of practice theory in several new directions. As in practice theory social life in a serious games perspective is seen as something that is actively played, oriented toward culturally constituted goals and projects, and involving both routine practices and intentionalized action‖. 139 inconsciente, talvez também inconsistente, que, em última instância, nos constituimos a partir de experiências (Joan Scott, 1998). Para tanto, ao utilizar a problematização entre: o futebol, entendido como o futebol contemporâneo presente na vida de milhões de sujeitos em nível global através dos mais diferentes meios de comunicação, aquele que Arlei Damo (2005) definiu como pertencente a ―matriz espetacularizada‖, ou ainda, aquele que empiricamente pode ser nomeado como ―futebol profissional‖; a política, concebida como a política institucional presente nas distintas instâncias do Estado e suas articulações com o mercado; e a religião, definida como as variadas formas de expressão de religiosidade de sujeitos; tratamos de realizar certos questionamentos para pensar uma formação acadêmica que está permanentemente atravessada por elementos culturais. Dentre os elementos empíricos para fazer-si questões, e, portanto, pensar a constituição de futebolistas em um futebol menor, problematizamos algumas relações possíveis feitas entre política, religião e futebol contemporaneamente. Neste caso, tornamos o corpo como ferramenta analítica entendendo que este se encontra imerso em determinados contextos históricos e sociais e está constituído por determinadas subjetividades. Destacamos, portanto que ―o corpo‖ é transformado em ―um corpo‖, elemento fundamental para realizar uma leitura interseccional dos sujeitos e a partir daí pensar a produção de sujeitos. Dentro de nossas possibilidades, delimitadas por certos limites e potencialidades, esta leitura interseccional das subjetividades levou em conta pelo menos algumas indicações de autoras feministas relativas: ao gênero, à classe social, à etnia-raça e à sexualidade. Tal forma de conceber um método e a producão científica em si mesma, encontra-se fundamentada naquilo que Donna Haraway (2000) chamou de uma ciência situacional, ou ainda, que os saberes produzidos sob a alcunha de ―científicos‖ estão localizados, e, portanto, nunca são neutros. É que, no momento em que alguém dá um passo fora do que já foi pensado, quando se aventura para fora do reconhecível e do tranquilizador, quando precisa inventar novos conceitos para terras desconhecidas, caem os métodos e as morais, e pensar torna-se, como diz Foucault, um ―ato arriscado‖, uma violência que se exerce primeiro sobre si mesmo. (Gilles DELEUZE, 1992, p.128).

Dessa forma, quando um corpo é utilizado como ferramenta analítica, as relações estabelecidas entre sujeitos não são reprodutíveis e embora se utilizem de certas generalizacões para fazer comparações, apenas recorrem-se 140 a estas para a identificação de certos contextos e para estabelecer diálogos entre os sujeitos que estão envolvidos nesta espécie de interlocução entre o empírico e o que é feito a partir desta interlocução. Assim, nos encontramos permanentemente intervindo nos contextos culturais e nas experiências dos sujeitos. Para tanto, como forma de sistematizar este modo de produzir ciência, faremos uso de ―cenas‖ compostas de imagens e de descrições. Diante dos elementos empíricos utilizados, passamos a análise de alguns contextos que nos auxiliarão a formular questões para pensar a produção do conhecimento e as relações entre sujeitos.

Cena 1: Identidades contrastivas Diante de certas identificações que podem ser qualificadas como contrastivas, ou radicalmente opostas, nem sempre podem estabelecer-se diálogos. Quando estes são possíveis de serem feitos, não se trata de chegar a um consenso, nem mesmo da criação de empatia e produção de algo em comum, mas sim de situar certa percepção da relação que um sujeito mantém com a identidade que lhe é atribuída (anti-fascista, professor, homem, etc.). A figura acima é amplamente utilizada por torcedoras, torcedores e demais simpatizantes do FC St. Pauli, clube de futebol situado na cidade portuária de Hamburgo, Alemanha. Atualmente o clube disputa a ―2.Bundesliga‖ na Alemanha, o que corresponde a ―Série B‖ no sistema de competição adotado no ―futebol brasileiro‖ na sua versão praticada por homens. A história do clube é descrita aqui brevemente como sendo um clube que manteve certa relação com a religião através de sua identificação com símbolos judaíco- cristãos. Em função desta identificação, dirigentes, associados e simpatizantes foram perseguidos, torturados e mesmo assassinados durante o período sob o regime nazista na Alemanha. Desde então, o clube institucionalmente, assim como, seus torcedores, torcedoras, e simpatizantes fazem questão de demarcar sua posição contra qualquer alusão aos facismos contemporâneos, atribuindo às posturas políticas ―à direita‖ sua responsabilidade histórica de promover modelos de governo ―fascistas‖ através do ―gegen rechts‖ (tradução de ―contra a direita‖)96. Assim, as subjetividades e a identificação cumprem uma função de ―falar‖ pelo sujeito, feitas previamente ao sujeito, e, portanto, desprezam sua constituição histórica.

96 Para saber mais da constituição histórica do clube e de suas apropriações contemporâneas feitas, por exemplo, pelo movimento punk, procurar: Mariano Schuster (2013). 141

A associação entre religião e futebol é de longe reconhecida como uma entre tantas outras97. Se esta identificação é tomada em um período histórico como o nazismo, é evidente certa forma de reconhecimento das implicações que isto suponha. Afinal, o holocausto judeu foi um marco do declínio de certa racionalidade iluminista. Todavia, contemporaneamente, são muitos os usos feitos por esta identificação. Os novos fascismos podem ser encontrados nas muitas invisibilidades conferidas a certas condições de exploração, como por exemplo, na onda de xenofobia de parte das populações e dos Estados de um ―norte global‖ que se recusam a receber as ―sobras‖ de sua exploração econômica, e quando o fazem, tornam os/as migrantes de um ―sul global‖ como cidadãos de segunda categoria, elegíveis para a ―mão-de-obra barata‖. O que deve ser ressaltado é como certos processos de identificação transformam a constituição histórica com suas singularidades, ou seja, a diferença, em um reconhecimento que já está definido de antemão. As formas de pertencimento, em nosso caso, o ―pertencimento clubístico‖ (Arlei Damo, 2005), o ―pertencimento religioso‖ e o ―pertencimento político‖ conformam à participação de sujeitos em determinadas comunidades afetivas onde já não é possível definir quais destas mantêm maior fidelidade quanto ao seu engajamento, muitas vezes implicando em novas formas de discriminação. Assim, lançamos mão da afirmação recorrente de que o modo como se discute sobre a política institucional ou reconhecimento de determinada forma de religiosidade pode ser comparável às escolhas clubísticas, onde aquela que não faz parte de dita comunidade é até certo ponto intolerável. Ao pensar a produção científica em termos situacionais, nos questionamos quanto às relações de poder estabelecidas em níveis estruturais que se aplicam às micropolíticas do cotidiano, por exemplo, no caso do futebol, através da invisibilidade da homossexualidade no esporte, enquanto a heterossexualidade está constantemente sendo reafirmada e colocada à prova.

Cena 2: Expandindo territórios através do futebol, delineando políticas e

97 No contexto da criação de rivalidades entre clubes reconhecidamente religiosos, citamos o caso dos clubes escoceses situados na cidade de Glasgow, o protestante Glasgow Rangers e o católico Celtic. Como política de contratação de futebolistas, apenas em 1989 o Glasgow Rangers passou a permitir a contratação de católicos sendo sua fundação datada de 1873. No contexto brasileiro, poderíamos ainda destacar a relação entre as disputas clubísticas e a aceitação e/ou negação da participação de ―negros‖ (conforme a literatura historiográfica esportiva) nas associações de alguns clubes. Estas, por sua vez, também com implicações de ordem classista, algo conhecido pelas disputas de ―clubes do povo‖ e ―clubes de elite‖. Para o caso do contexto escocês ver: Richard Giulianotti (2002). 142 subjetividades A relação entre política e religião está permanentemente colocada quando tratamos da laicidade do Estado brasileiro. Algo que se tornou conhecido como ―bancada evangélica‖ tem delineado muitas políticas públicas no que se refere à Educação, por exemplo, através do impedimento das cartilhas anti-homofobia nas escolas no ano de 2011. Menos perceptíveis, mas constantemente presentes são as demonstrações religiosas feitas midiaticamente por muitos futebolistas a cada transmissão de um jogo de futebol. São gestos que atuam simbolicamente fazendo referência às suas práticas religiosas em momentos precisos do jogo: a entrada em campo, em menor frequência a saída de campo, o agradecimento de uma possibilidade de gol, a ―defesa difícil‖ feita pelo goleiro, e quando feito, o gol, entre outros. De modo quase imperceptível, tais retóricas corporais expressam certa relação que alguém (interpelada por questões de gênero, classe social, geração, entre outras) estabelece com determinada religião. Ao estudar as relações feitas por futebolistas com as práticas religiosas, Carmen Rial (2012) denomina as constantes aparições destas referências religiosas de ―religiosidade banal‖, atribuindo o papel de ―novos missionários‖ aos futebolistas brasileiros diante das suas muitas ―circulações‖ 98. Mobilidades instituicionais que acompanham a presença dos futebolistas brasileiros nos locais onde estão situados seus clubes. Ao associar a imagem de certos futebolistas, principalmente os famosos, algumas igrejas têm ampliado as possibilidades de reconhecimento, empatia e identificação, sendo que muitas delas possuem concessões públicas de televionamento. Além disso, a associação feita entre futebolistas e sua fé religiosa com igrejas neopentecostais dá sentido a produção de certa maneira de se relacionar com o dinheiro, com a fama e a permanente visibilidade nos meios de comunicação. Assim, a ―teologia da prosperidade‖ atua mobilizando muitos ―discípulos‖ (ou ainda ―fiéis‖, segundo a categoria émica) para uma possível realização material que não está somente ―prometida‖ para um tempo ainda porvir. Dentre as camadas populares, o que mais teria visibilidade atualmente se não o futebol? Acompanhando um processo de ampliação das mobilidades

98 O Observatório do Futebol CIES (Rafaelle POLI, Loïc RAVENEL, Roger BESSON, 2015) divulgou um levantamento feito com as transferências de futebolistas homens entre 6135 clubes, distribuídos em 183 países, onde, de um total de 18660 futebolistas, 1784 ―brasileiros‖ encontravam-se na condição de ―estrangeiro‖ (com nacionalidade diferente do país de seus clubes), superando amplamente o segundo país que mais fomenta o mercado futebolístico exterior, a Argentina com 929 futebolistas que atuam fora do seu país de origem. 143 contemporâneas, sem desconsiderar as implicações relativas à classe social, étnicas e de gênero, algumas formas de religiosidade tem feito uso da imagem como forma de expansão de territórios. Neste processo de transnacionalização, atuam localmente distintos sujeitos, como no caso dos Países Baixos onde vários cultos são feitos em língua portuguesa em função da participação de futebolistas brasileiros. Por outro lado, a relação entre a ascensão social e o etos de um mérito futebolístico pautados no reconhecimento social e na prosperidade econômica encontra ressonância nas camadas populares, pois corresponde socialmente a um pertencimento de classe social de muitos futebolistas atualmente.

Cena 3: Das subjetividades na mediação entre o público e o privado Além de concessões públicas de canais de televisão, algumas formas de expressão da religiosidade têm transitado entre o privado e o público ao expor certos elementos que produzem identificações quanto às formas de pertencimento individual. Atuam como uma espécie de mediadora entre escolhas individuais e relações coletivas. Culturalmente produzem empatia e promovem a proliferação de ―guetos‖. Territórios (no sentido de espaços delimitados por normas tácitas de aceitação e rejeição de condutas) amplamente marcados por uma relação disciplinar orientada a partir do binômio mando-obediência centrada na figura de líderes espirituais. Estes últimos, mediadores da relação com o ―sagrado‖, buscam manter uma ordem de rebanho (figura nietzscheana) e são frequentemente interpelados pela política institucional no caso ―brasileiro‖ 99. Além da identificação da oferta de serviços nos comércios locais, a publicização das opções religiosas encontra-se visível em variadas instâncias onde as expressões de religiosidade procuram produzir empatia em um público consumidor, conjugando deste modo consumo, crenças religiosas e pertencimento cultural. Mesmo assim muitas escolhas individuais divergem do modo como algumas religiões vem justificando suas práticas. Como por exemplo, a autodenominação de ―cristãos‖ por parte futebolistas brasileiros de clubes situados nos Países Baixos os quais rechaçaram a vinculação institucional a igrejas e realizavam parte de suas práticas religiosas em

99 Foi durante a edição da Copa do Mundo de 2014 na sua versão praticada por homens que um dos pastores publicou um vídeo onde ―incentivava‖ ―os fiéis‖ a boicotarem as transmissões televisivas dos jogos. Neste vídeo propunha aquilo que chamou de ―jejum de informações‖, ou seja, durante os 40 dias de duração do evento os e as ―fiéis‖ deveriam desligar seus televisores. Coincidentemente, a empresa detentora dos direitos de transmissão do evento foi uma concorrente do canal de televisão pertencente à sua igreja. 144 reuniões privadas restritas a presença de futebolistas e seus familiares. Constantemente visibilizados pelas muitas horas diárias de exposição midiática, no contexto ―brasileiro‖ certos futebolistas ocupam muitas horas na programação diária das concessões públicas. Tal exposição é feita através da especialização de profissionais através dos quais tornam visíveis suas escolhas individuais. Mais amplamente os meios de comunicação cumprem este papel na mediação entre o que é público e o que é privado. Como um intermediário, seleciona conteúdos de sua programação semanal conferindo visibilidade a determinadas práticas culturais e tornando certas exposições socialmente aceitas, embora não isenta de conflitos e interesses. Se, conforme a leitura historiográfica, a constituição do esporte moderno foi composta por um jogo de interesses de uma aristocracia que concebia as práticas esportivas como atividades sem fim além de si mesmas, ao mesmo tempo, tais eventos promoviam uma sociabilidade onde o espetáculo esportivo foi tido como um meio para ampliar o ―capital social‖ baseado no reconhecimento de classes sociais privilegiadas economicamente (Pierre BOURDIEU, 1990; Leonardo PEREIRA, 2000). Aquilo que Pierre Bourdieu (1990) denomina como ―campo esportivo‖, assim torna-se composto pela articulação da especialização midiática e a ampliação do consumo material e imaterial relacionado ao esporte, por exemplo, através da produção em escala industrial de materiais esportivos, e mais contemporaneamente da multiplicação das imagens de futebolistas, seja ―dentro‖ ou ―fora de campo‖, incluídas aqui as exposições nas novas tecnologias das redes sociais. Todavia, nem mesmo esta permanente exposição de certas escolhas individuais determinam a apropriação feita pelos ―consumidores‖ do tele- espetáculo. Nos contextos locais tais práticas atuam invisibilizando tantas outras práticas culturais, nunca sem questionamentos cotidianos quanto a sua importância (Michel de Certeau, 1994). Ser ―fiel‖ a uma igreja, ou ainda, expressar certa religiosidade não assegura a identificação clubística em comum a um futebolista de mesmo pertencimento, o que ressalta certa autonomia quanto às escolhas religiosas, futebolistas e políticas. Entretanto, é através da exposição de referências religiosas onde se procura a fidelização de um público no que tange as escolhas individuais para encontratrar aceitação no ―campo esportivo‖, ou ainda, fora dele. O futebol tornou-se amplamente ―popular‖ ao longo do século XX, e como fenômeno cultural mobiliza diariamente um contigente considerável de sujeitos, deste modo foi apropriado de muitas maneiras, entre estas, atravessado pela religião e pela política. Isto não pressupõe a evocação de um caratér ―puro‖ ou mesmo ―saudosista‖ de um passado mais glorioso, ou ainda, menos ―mercadológico‖, mas sim que a partir de certas apropriações são 145 produzidos sentidos e modificam-se significados. Como forma de finalizar o capítulo, esboçamos algumas questões para dar forma aos modos de se relacionar com a produção de sujeitos. Entre elas estão: é desejável tolerar a diferença? Até que ponto é possível tolerá-la? Tolerar a diferença significa aceitar suas singularidades? Existem singularidades mais válidas do que outras? Como se dá a aceitação de uma diferença? Com elas não pretendemos dar por encerrado o processo de pensar a produção de futebolistas, mas sim identificar quais são os limites de nossa atuação, bem como suas potencialidades. Procuramos analisar as interseccionalidades ante as escolhas religiosas, futebolistícas e políticas, entre as quais é recorrente a tentativa de torná-las como territórios independentes e afastados uns dos outros principalmente por parte daqueles sujeitos mais envolvidos com práticas nestes campos. Apontamos o modo como a política, a religião e o futebol estabelecem regimes de aceitação e privilégios frente a uma sociedade civil cada vez mais centrada na produção imagética e, preferencialmente, mantida com baixa capacidade de organização e pouca participação política. A ―ordem do rebanho‖, conformada por formas de obediência e aceitação sem maiores questionamentos, tem constituído parte das políticas identitárias presentes no futebol, na política e na religião. Parte do pertencimento relativo a estes campos, ao mesmo tempo produtor de afetos, memórias e sociabilidades sempre compartilhados coletivamente, reitera as formas de discriminação baseadas em certas hierarquias nas relações de poder. Conservadoras como tem sido as instituições que fazem a política, o futebol e a religião, trata-se de evitar mudanças nas formas de pensar, e, portanto, atuar na produção de novas subjetividades desviantes daquilo que tentou estabelecer-se como aceito e desejável, mesmo que intolerável para certas existências.

146

147

5. PINGUINS, CENTROS DE UMA HISTÓRIA OUTRA 100

Una palabra no dice nada Y al mismo tiempo lo esconde todo Igual que el viento que esconde el agua Como las flores que esconde el lodo […] Una verdad no dice nada Y al mismo tiempo lo esconde todo Como una hoguera que no se apaga Como una piedra que nace polvo

100 Ao deixarem o exercício ―profissional‖ de modo temporário ou permanente, os interlocutores consideram unanimamente sua profissionalização como a efetivação de um ―sonho‖ e a construção de uma carreira em meio ao futebol, mesmo que tal condição seja atualizada em meio às condições de possibilidade do futebol de tele- espetáculo. Tal afastamento anuncia uma morte simbólica que muitos buscam evitar ou mesmo prolongar à medida que recorrem às histórias compartidas de suas experiências no futebol. A analogia com a figura do ―pinguim‖ para os futebolistas infames refere-se a este simbolismo trazido pelo documental ―Encounters at the end of the world‖ de Werner HERZOG (2007). Nele, o biólogo David Ainley comenta sobre a impossibilidade de sobrevivência de pinguins sem o acompanhamento do ―bando‖. Logo, pensamos sobre a desistência do futebol como uma forma de morte simbólica, mesmo que existam elementos biográficos compartidos que não consideram os futebolistas como ―ex- jogadores‖, mas sim recorram à memória e aos registros de suas carreiras. Sobre os pinguins na Antártida, descrevo a cena segundo Werner Herzog: ―Doutor Ainley, existe algo como a loucura entre os pinguins? Ainley: Eu tento evitar a definição de insanidade ou enlouquecimento. Eu não digo que um pinguim (ele ou ela) pensa que é Lenin ou Napoleão Bonaparte. [Herzog] Mas eles poderiam enlouquecer porque já tiveram o suficiente da sua colônia? [breve hesitação] Ainley: Bem, eu nunca vi um pinguim atacar ou golpear uma pedra. Eles ficam desorientados. Eles acabam em lugares que não deveriam, muito longe do oceano. Estes pinguins estão rumo às águas abertas à direita. [Narração]: Mas um deles captou nossa atenção, um que está ao centro. Ele não iria nem para os campos de alimentação na borda do gelo, nem retornaria para a colônia. Logo depois nós o veríamos indo direto para as montanhas, a uns 70 quilômetros de distância. O doutor Ainley explicou que mesmo que nós o tivessemos agarrado e colocado de volta a colônia, ele teria regressado imediatamente às montanhas. Mas por quê? Um desses pinguins desorientados ou enlouquecidos apareceram no acampamento de mergulho New Harbor a 80 quilômetros de onde ele deveria estar. As regras dos humanos são: não perturbe ou segure o pinguin. Fique parado e deixe que ele siga o seu caminho. E aqui [mostra imagem] ele está indo ao interior do vasto continente. Com 5000 quilômetros pela frente, ele está indo em direção a uma morte certa‖. ENCOUNTERS AT THE END OF THE WORLD. Direção: Werner Herzog. Discovery Films, 2007. DVD. 148

Lucas Secon, Waquas Qadri, Isam Bachiri, Roger Lenny Martinez, Omar Syed Shah, Carlos Varela, compositores e musicistas.

Haverá sempre a possibilidade de um animal qualquer, piolho, leopardo ou elefante, ser tratado como um animal familiar, meu bichinho. E, no outro extremo, também todo animal pode ser tratado ao modo da matilha e da proliferação, que convém a nós, feiticeiros. Até o gato, até o cachorro [...]

Gilles Deleuze e Félix Guatarri, filósofo e psicanálista, 1992

A consistência desse texto partiu da premissa de fazer questões para pensar a produção das diferenças a partir do esporte, mais particularmente do futebol, pois este tem mantido muitas implicações a constituição de sujeitos contemporaneamente, direta ou indiretamente. Em nosso caso a diferença é tomada não como algo que diverge dos acordos muitas vezes consensuais de uma identidade, sejam estes de afirmação e/ou negação, mas sim como uma singularidade criada a partir de uma relação com a/o outro/a e consigo mesma. Sobre a constituição das carreiras dos interlocutores abordadas no segundo e quarto capítulos, esta evidencia a atualização do ―sonho‖ de ―jogar futebol‖. Em meio a condições dissonantes das inicialmente imaginadas para a carreira, a possibilidade de efetivação do projeto de vida futebolístico é sustentada por um modelo de ―aposta familiar‖, ainda que mediado e intermediado por inúmeros sujeitos e dispositivos para a profissionalização e sua continuidade. As escolhas metodológicas que privilegiaram a interlocução com futebolistas em exercício profissional ou ―reconvertidos‖ profissionalmente, não consideraram aqueles futebolistas que ―abandonaram‖ a profissão ou mesmo não puderam concretizar o ―sonho‖ de ―jogar futebol‖, ao menos ―profissionalmente‖ e foram dedicar-se a outras atividades profissionais101. Diferentemente das imagens multiplicadas midiaticamente que passaram a associar a priori os futebolistas ao êxito esportivo, a fama e o

101 Como um ator que encontrei nos Países Baixos. Paradigmaticamente, em uma de suas peças de teatro, o autoreferido ―ex-jogador‖ encena sua relação com um futebolista brasileiro e atua de modo a expressar as diferenças culturais entre ―brasileiros‖ e ―holandeses‖. 149 entourage familiar dos futebolistas dos clubes-globais, entre os interlocutores acompanhados no processo da pesquisa apenas em um dos casos este entourage familiar era mais amplo do que a relação conjugal entre futebolistas, suas esposas e suas/seus filhas/os. Esta exceção ao contexto de um futebol menor se deveu à realização de um empréstimo por tempo determinado do futebolista de um ―clube-global‖ a um ―clube menor‖ situado nos Países Baixos. No contexto de algumas transformações dos projetos de vida dos interlocutores, se encontra ausente à visualização da participação da mulher. Se os futebolistas infames ambiguamente estão ao mesmo tempo à margem e ao centro, as mulheres foram pouco visualizadas como sujeitas válidas para a grande parte dos estudos acadêmicos atuais. Como argumentou uma das interlocutoras, o protagonismo das mulheres casadas com os futebolistas também enfrentam questionamentos diários:

Quando você fala que é jogador brasileiro as pessoas já têm um preconceito todo preparado na cabeça delas: ―ah, brasileiro é isso, brasileiro é aquilo‖. Então chegar para quebrar preconceito é complicado. […] da mulher brasileira é burra, é só bunda, carnaval, eu não sei explicar […] tem muitas situações, a própia mulher brasileira por ser brasileira já sofre um preconceito e você sofre de novo por ser mulher de jogador, então você tem que quebrar dois. Logo de cara, sou mulher de jogador, mas não é assim, eu não falo só de sapato na minha vida, essas coisas (Natália, entrevista, outubro 2013).

Esta lacuna quanto ao protagonismo da mulher vem sendo significamente alterado. No que refere à prática do futebol, esses profissionais são homens, mantém uma espécie de projeto coletivo-individual através de circulações constantemente potencializadas por suas famílias, no entanto encontramos alguns discursos dissidentes sobre a situação das mulheres no futebol. Como Mariane Pisani (2012) mostrou em sua etnografia que para as mulheres brasileiras jogadoras de futebol não só os contratos estão permanentemente em uma condição de risco, mas também as instituições que detém a possibilidade de concretar seus sonhos de jogar futebol e tentar sobreviver diariamente. No que se refere à prática do futebol, o discurso sobre a falta de interesse pelo futebol praticado por mulheres é evidente, sendo a sua imagem associada mais às características físicas do que ao desempenho esportivo. Fato que muitas vezes reproduz o consumo de imagens como a de top-models 150

– uma carreira não menos desejada e procurada por mulheres no Brasil102. Por sua vez, Caroline Soares (2012), discute a relação do uso de imagem das mulheres e de uma feminilidade hegemônica enfatizada por reportagens de revistas. Cabe também recordar os usos da imagem das jogadoras de futebol através de uma das campanhas midiáticas feitas por seu clube situado no Brasil no ano de 2012, onde se venderam fotos que reforçavam e incentivavam alguns atributos físicos com relação à constituição da ―beleza‖ para as mulheres que jogam futebol. Na interlocução estabelecida com as mulheres, esposas de futebolistas que pude tomar contato, três são os exemplos de seu envolvimento com o futebol menor: 1. embora em muitos casos ocorra uma redefinição conjugal pelo contexto de circulação dos futebolistas, uma das interlocutoras casou-se mas aguardou durante 3 anos a conclusão do Ensino Superior para poder ―circular‖; 2. a visualização da possibilidade de reconversão profissional de um dos futebolistas após o término de sua carreira foi feita a partir de uma indicação da cônjuge; 3. a coordenação de ―estudos bíblicos‖ nos Países Baixos era exercida por uma das esposas de um dos futebolistas, uma vez que no Brasil ela teve um forte protagonismo na participação com grupos de jovens cristãos. Homens e mulheres menores (com exceção dos Estados Unidos, as segundas, menores por sua condição de ―mulher‖ no contexto futebolístico), são colocados diante daquilo que estamos chamando de um projeto coletivo- individual e simultaneamente são constituídos por processos de ―individuação‖. Por exemplo, através do reconhecimento de suas ―origens‖ em ―comunidades‖ que são acessadas de tempos em tempos para a reconstrução das ―histórias de vida‖ de superação centradas nas imagens de futebolistas ―célebres‖ ou ―bem-sucedidos‖ oriundos de camadas populares. Através deste estudo, apesar de ressaltar a efetivação desse projeto coletivo-individual afirmamos que as singularidades de uma vida não são definidas exclusivamente a partir dele. Para contrapor as leituras individualistas e meritocráticas dos projetos de vida de futebolistas, mais recentemente, tais processos de ―individuação‖ foram institucionalizados através do Bom Senso Futebol Clube, onde alguns interesses coletivos foram pautados para reivindicar as demandas da

102 Mesmo a construção estética do capital corporal de modelos não se encontra exclusivamente baseada na produção imagética. Como demonstra Ashley Mears (2011), a comodificação da beleza é feita pelo entrecruzamento das categorias de gênero, geracionalidade, raça/etnicidade e classe social, tornando a produção de modelos associada aos atributos requeridos por contratantes e público-destinatário. 151 categoria103. Assim como, podemos citar, ainda na década de 1980, aquilo que ficou conhecido como a ―Democracia Corinthiana‖. Neste processo que articulou projetos individuais com interesses coletivos que extrapolavam os interesses de uma única unidade de filiação (clube), o futebolista Sócrates colocou em segundo plano a efetivação de sua transferência para um clube situado na Itália caso o regime político do país naquele momento fosse alterado104. Já no caso de Romário, seu capital de visibilidade foi utilizado no ano de 1999 através do uso de camisetas com mensagens mostradas a cada gol feito durante os jogos de seu time. Ato que foi rapidamente advertido e censurado pela CBF. As mensagens de cunho político expressadas através de frases estampadas nas camisetas que vestia abaixo da camiseta de seu clube combinavam a aceitação da visibilidade de alguns futebolistas, a notoriedade (transgressora) de Romário, o glamour, reconhecimento público favorável, e o renome, utilizado para a interação direta e recíproca. De todo modo, a conjunção do léxico não caracteriza um fenômeno novo da dimensão visual do fenômeno da visibilidade contemporânea. Como abordada no capítulo 3, a constituição desse capital de visibilidade coloca sujeitos em evidencia enquanto subjuga outros modos de existência. Nesse sentido, a produção de imagens dos futebolistas pode ser comparada aos ―fatos-ônibus‖ retratados por Pierre Bourdieu (1997, p.23),

103 O Bom Senso Futebol Clube foi um movimento auto-organizado de futebolistas entre 2013 e 2016 que reivindicou uma maior regularização da atuação profissional principalmente quanto às responsabilidades dos clubes contratantes e da CBF. Suas principais pautas foram: uma calendarização adequada para os futebolistas, através da definição de pré-temporada, férias e intervalo de dias entre as partidas; responsabilização dos clubes quanto às dívidas trabalhistas com os futebolistas.

104 No contexto do futebol de tele-espetáculo praticado nos Países Baixos citamos a criação de fundos de previdência privada para garantir uma pensão aos futebolistas quando deixam de exercer a profissão. Mesmo que dentro de uma lógica ecônomica e altamente financeirizada, o CFK – abreviação de Contractspelers Fonds KNVB, ou, Fundos para Futebolistas sob Contrato da KNVB – foi criado em 1972 com a finalidade de garantir uma pensão após o término da carreira aos futebolistas. Conforme relatou Maurício: ―Na minha época eu poderia escolher, hoje eu me arrependo de não ter o CFK, mas na época me ajudou demais. Passei um momento difícil porque na casa da minha mãe, onde eu nasci, estava com infiltração […] Sabia que tinha o CFK e lá tinha um dinheiro bom, eu abri mão do CFK, peguei o dinheiro comprei minha casa e ―fiz‖ [reformar] a casa da minha mãe. Mas hoje eu me arrependo porque se eu tivesse o CFK, era o meu trabalho e mais o meu dinheiro do Brasil, isso ajuda demais‖ (Maurício, Rotterdam, entrevista, outubro 2012). 152 estes ―são fatos que, como se diz não devem chocar ninguém, que não envolvem disputa, que não dividem, que formam consenso, que interessam a todo mundo, mas de um modo que tal que não tocam em nada de importante‖. Já não se pode dizer o mesmo sobre o pertencimento clubístico, pois é através da performance esportiva dos futebolistas que o processo civilizatório e o espaço de pulsão controlado por uma tensão ―agradável‖ (Eric DUNNING e Norbert ELIAS, 1986) é exercido e inventado cotidianamente ao ocupar o centro de muitas disputas comunicativas. Em todo caso cabe-se perguntar, afinal, o que se tornaram os futebolistas atualmente? Mercadorias? Produtos? Mão-de-obra? Pés-de-obra? Em uma conjugação que combina elementos de exploração capitalista, precarização das relações de trabalho, abuso do aparato público através da sonegação de impostos e a dedicação individual e exclusiva à concretização profissional, os futebolistas ao não ocuparem os lugares imaginados para a carreira reorganizam seus projetos de vida criando condições de possibilidade para o exercício profissional em um futebol menor. Tais condições são evidenciadas em contratos de curta duração para a maioria dos futebolistas contratados por clubes situados no Brasil e Portugal, o que diverge potencialmente das condições dadas nos Países Baixos, onde os contratos são ofertados com maior duração. Por sua vez, tal fato revela uma ambiguidade: no que se refere à permanência do futebolista, os futebolistas consideravam certa ―segurança‖ no momento de ter assegurado seu lugar no clube, por outro lado, isso os dificultava em uma imediata circulação a condições profissionais ―melhores‖ ou potencialmente ―desejadas‖. Além de estratégias individuais para a circulação, os futebolistas também são afetados por condições conjunturais dos mercados nacionais. O capital da visibilidade é atualizado segundo performances anteriores marcadas por discursos relacionados à nacionalidade, o que é acentuado em contextos transnacionais. No contexto de um futebol menor, estamos de acordo com o exercício de um capital de visibilidade através da categoria ―Kaká-noir‖ (Carmen RIAL, 2016, p. 83), na qual ―grande parte do carisma de jogadores como Heison [interlocutor de sua investigação], espalhando-se por pequenos clubes em todo o mundo, depende do sucesso dos jogadores brasileiros e das celebridades do mediascape como Kaká [futebolista-celebridade]‖ 105. Em relação às experiências vividas e os significados atribuídos as condições de (i)mobilidade social, as narrativas de futebolistas infames nos

105 Tradução de: ―much of the charisma of players like Heison, scattering among small clubs throughout the world, depends on the success of Brazilian players and mediascape-celebrities like Kaká‖. 153 oferecem leituras relevantes de uma ―aposta familiar‖ predominantemente de camadas populares, sobretudo de origem afro-brasileira, que afirmaram suas condições de existência ao ocupar posições em um futebol menor. Ao mesmo tempo, tais futebolistas foram parcialmente marcados por uma distinção social aceitável dentro de um projeto ―modernista‖ para a identidade nacional que associa a negritude à performance esportiva. Assim,

eles [Kaká-noir, categoria êmica equivalente aos futebolistas infames] são semelhantes aos ancestrais negros que atravessaram o Atlântico para trabalhar em condições precárias. No futebol de espetáculo, são os que trabalham por salários baixos, aqueles que vivem nas piores condições, os que permanecem desconhecidos para um público além dos locais onde atuam (RIAL, 2016, p.83) 106.

Com relação à etnicidade, o caso do ―peladão‖ de Manaus é um dos exemplos que nos ajudam a questionar como a construção de um capital corporal específico é utilizada para manter algumas relações históricas de ―dominação‖. A presença de muitos ―brancos‖ ou mais propriamente, alguns ―boleiros‖ que alternavam as condições de futebolistas e passaram a integrar certas equipes. Sem dúvida este é um exemplo muito tangencial sobre a constituição de um futebol menor, mas reproduz algumas das relações de dominação e opressão historicamente conformadas no Brasil. Além de ser uma negociação política e territorial, implica em um devir-índio que questiona uma regra majoritária, da ocupação de certos ―circuitos‖, no qual o peladão serve como paradigma (Rodrigo CHIQUETTO, 2014). Embora não esteja associada diretamente aos elementos nacionais ―brasileiros‖, a religiosidade foi outra das formas de aproximação entre os interlocutores. Principalmente em contextos transnacionais, como no caso dos futebolistas brasileiros com os quais mantive interlocução nos Países Baixos, estes mantinham laços de sociabilidade a partir da realização de cultos e ―estudos bíblicos‖ cristãos. Com a possibilidade da expansão territorial da religiosidade brasileira a partir de ―novos missionários‖ como se tornaram os futebolistas, pastores e igrejas passam a atender as demandas religiosas em

106 Tradução de: ―they are similar to their black ancestors who had traversed the Atlantic to labour in precarious conditions. In the football spectacle, they are the ones who work for low wages, those living in the worst conditions, those remain unknown to an audience beyond the places where they perform‖. 154 diversos contextos nacionais. O caso de do futebolista-celebridade ―Kaká‖ é paradigmático nesse sentido, uma vez que utiliza de seu capital de visibilidade para difundir sua associação a uma igreja neopentecostal brasileira. A partir de uma ―conversão violenta‖ (Linda van de KAMP, 2011), a ―disciplina‖ exigida pelos clubes e a ―Teologia da Prosperidade‖ própria do neopentecostalismo ―brasileiro‖ são combinadas de forma a reconfigurar à produção de imagens relacionadas aos futebolistas ―brasileiros‖. É também a partir dessa nova forma de sociabilidade que podemos pensar algumas posições ―conservadoras‖ no âmbito das práticas culturais, uma vez que há um enfrentamento diário com relação à sexualidade, desviantes ou não, heterossexuais ou não, dos futebolistas. Os capitais, corporais e de visibilidade, exercidos pelos futebolistas não determinam a priori quem ocupa certas posições privilegiadas de visibilidade, mesmo que momentaneamente. Ainda que em condições dissonantes daquelas imaginadas para a carreira se encontram avalados por um reconhecimento socialmente validado. Se a continuidade da carreira indica a possibilidade de experiências relacionadas ao ―jogar futebol‖, a impossibilidade ou mesmo a desistência do exercício profissional não significa necessariamente a morte simbólica dos pinguins que se afastam do ―bando‖, pois em última instância os recursos afetivos que apelam à memória são utilizados em suas ―resenhas‖ entre ―boleiros‖, recortes de ―jornais‖, DVD's produzidos ao longo da carreira, entre outros. Ainda assim, o afastamento dos futebolistas-pinguins pode ser comparado à morte antecipada através de reconversões profissionais ainda pouco conhecidas, com recomeços ora mais felizes, ora mais trágicos, mas também mais sinceros. Opções estas tomadas a partir de relações consigo e com os outros problematizadas a partir de referências epistemológicas, metodológicas e políticas que concebem o modo como nos relacionamos enquanto opções ético-estéticas (tornar as escolhas e a própria vida uma obra de arte, Michel Foucault, 2003, 2006c). 155

6. POST-SCRIPTUM: SOBRE AS VIDAS INFAMES

Não sou nada. Nunca serei nada. A parte disso tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Fernando Pessoa, escritor.

Em ―A vida dos homens infames‖, Michel Foucault (s/d), trabalha com a ideia de ―infâmia‖. Onde os ―infames‖ não têm nenhum tipo de glória, tampouco qualquer busca que os tornassem grandes. Vidas animadas por outros estados de existência. Como questiona Foucault (s/d, p. 125), ―se o herói existiu a lenda o cobre com tantos prodígios, o enriquece com tantos atributos impossíveis que é, ou quase é, como se não houvesse existido‖ 107. Ao descrever e analisar como foram as trajetórias de vida dos futebolistas infames, que pouco usufruem da fama de ser um grande ―astro da bola‖, aproximamo-nos daquilo que pode constituir um estilo de vida para a maioria dos futebolistas brasileiros, o que não significa falar em nome de alguém, ou que uma trajetória pode ser reproduzida para falar das demais:

Os invisíveis da história, no entanto, sempre estiveram lá, nas poucas inscrições em que foi registrada a rápida passagem de suas existências por alguém que muito apressadamente se ocupou deles [...] são infames não porque seus feitos foram abomináveis [...]. Se, ao contrário, as vidas infames estão fadadas ao anonimato e principalmente ao esquecimento, então o que faz ressurgir umas e não outras? (LOBO, 2008, p.17)

Com este provocativo questionamento utilizado por Lília Ferreira Lobo (2008), consideramos o mapeamento das condições que tornaram alguns sujeitos aceitos como menos importantes do que outros, vidas sem nenhum valor. Ao mesmo tempo, estas vidas são colocadas e colocam-se em formas ainda sem nome, embora muitas vezes sejam forçadas constantemente a seguir normas, padrões e códigos para serem reconhecidas108. Se a

107 Tradução de ―Si el héroe existió la leyenda lo recubre con tantos prodigios, lo enriquece de tantos atributos imposibles que es, o casi es, como si no hubiese vivido‖.

108 Durante os primeiros contatos no trabalho de campo fui ―confundido‖ com as funções de um jornalista, pois frequentei algumas ―coletivas de imprensa‖. Em outras situações, alguns jogadores alertaram-me para a importância de não parecer um ―empresário‖ em 156 emergência da noção de identificação não se limita a fixar a maneira com que nos percebemos e significamos nosso modo de agir no mundo, para além da pouca mobilidade deixada pela(s) identidade(s), a constituição de si está atravessada por deslocamentos, fragilidades e afirmações. Daqui em diante pretendemos delinear os conceitos de ―processo de subjetivação‖ e ―estilo de vida‖, entendendo que estes podem ser encontrados permeados por categorias que liberam os sujeitos do sedentarismo das identificações e também por isso dão forma a uma vida. Grandes e pequenos autores de sua própria vida, os estilos são como escolhas traçadas por relações possíveis, muitas vezes improváveis, que algum/alguém vai compondo.

E somos obrigados a assumir a singularidade de nossa própria posição com o máximo de consistência. Só que isso é frequentemente impossível de fazermos sozinhos, pois uma posição implica sempre um agenciamento coletivo. No entanto, a menor vacilação diante dessa exigência de referência, acaba-se caindo, automaticamente, numa espécie de buraco, que faz com que a gente comece a se indagar: "afinal das contas quem sou eu? Será que sou uma merda?" E como se nosso próprio direito de existência desabasse. E aí se pensa que a melhor coisa que se tem a fazer é calar e interiorizar esses valores. (GUATARRI; ROLNIK, 1996, p.41, grifos meus naquilo que se aproxima dos conceitos apropriados, tais como identidade, subjetivação e infâmia).

Os destaques dados a este trecho do livro, que reúne os vários encontros feitos pela passagem do psicanalista Félix Guatarri a convite da também psicanalista e professora Suely Rolnik durante a década de 1980 pelo Brasil, referem-se à permanência e imposição de uma necessidade de identificar-se e assumir uma condição que lhe é própria. Durante a primeira parte do livro subintitulado ―Cartografias do desejo‖, o conjunto Guatarri-Rolnik (1996, autor-autora) mapeia quais as condições que o desejo tem para ser inventado. Neste mapa composto por intensidades, fluxos e agenciamentos, nossas conversas pós-treino frente aos dirigentes. Um de nossos interlocutores questionou o porquê de eu não trabalhar com a preparação física dos clubes de futebol sabendo de minha formação em Educação Física. Talvez, os que não tomaram qualquer contato comigo, ainda tenham me identificado como um possível ―olheiro‖. Enfim, categorias que procuram colocar em funções já estabelecidas e aparentemente bem conhecidas. 157 dão destaque para a força daquilo que Guatarri denominou “subjetividade capitalística”, uma força que tenta evitar os processos de singularização permanentemente, paralisando mudanças profundas no plano macropolítico e no ínfimo, nas práticas sociais cotidianas. Como indicamos anteriormente, as análises da rede relações entre sujeitos decorrentes de um vetor de força – aqui chamado de ―poder‖ – feitas por Michel Foucault, atentaram justamente para as práticas cotidianas, não somente os enunciados e as práticas discursivas, mas também para aquelas condições de possibilidade que tornam possíveis aceitar e qualificar uma prática enquanto verdadeira. Gostaríamos de citar dois exemplos corriqueiros da atuação desse vetor para manutenção deste processo que controla o desejo e procura administrá-lo ou torná-lo norma. O primeiro deles encontra-se no próprio trabalho conjunto de Rolnik-Guatarri e surgiu por ocasião de uma matéria publicada no jornal Folha de São Paulo referente à passagem de Felix Guatarri pelo Brasil. Nessa matéria, substituiu-se o título de sua comunicação em uma das mesas- redondas, que originalmente era ―Cultura de massas e singularidade‖, tratada pelo jornal como ―Cultura de massas e individualidade‖. Essa substancial alteração evidencia um processo serializado de identificação, isolamento e classificação em nível populacional que podemos chamar de individualidade (isolamento) em meio à cultura, uma vez que por singularidade Guatarri-Rolnik (1996) concebem mecanismos inventivos para lidar com a norma. Singularização por uma relação com o desejo que modifica e momentaneamente interrompe com a produção de subjetividades mesmas, ou massificadas. As singularidades podem ainda serem recusadas a tornarem-se normas, mesmo que se pretendam para tal. O segundo exemplo trata de decompor um dos mecanismos que reforçam aquilo que se convencionou chamar de cultura ocidental, pois ao controlar o sistema de signos a subjetividade serializada procura neutralizar parte de práticas que poderíamos chamar de singulares. O exemplo é a recusa a incorporar signos que deslegitimem a boa moral e os bons costumes, como o sistema editor deste texto que não reconhece o signo ―merda‖ e recusa incorporá-lo em seu banco de dados109.

109 No prefácio do livro ―Escrita de si, escrita da história‖, Ângela de Castro Gomes (2004) analisa os processos de construção do eu a partir de seu trabalho com escrita de cartas, documentos biográficos e autobiográficos advertindo para a busca de uma unidade (identidade), e formas de organização específicas de determinada narrativa como a escrita epistolar. Neste processo de escrever experiências, uma releitura é feita colocando o sujeito em relação a si mesmo, assim como, sua relação com os outros (por exemplo, a quem está endereçada a escrita). Diante disso, Foucault (2006a, 158

Isto não significa atribuir um processo inverso de responsabilidade por essa produção uniforme e maquínica, isto é, centrada no sujeito (GUATARRI, 1996). Por conta de algumas instituições concretizadas por este modelo de produção subjetiva (subjetividade capitalística), o posicionamento adotado para isto que estamos chamando de produção de subjetividade é composto por um jogo no qual estão colocados vetores de desejo e de normalização. Ao contrário, significa afirmar que neste campo de intensidades vai se transformando por um conjunto de processos onde as instituições são apenas uma parte promotora de individualidades e singularizações. Ao examinar o argumento de responsabilizar (a palavra mais adequada seria culpabilizar) o indivíduo em um campo macro-político (futebolistas), nos proposemos analisar como são produzidas subjetividades através de relações que são suprimidas, silenciadas, estimuladas e ofertadas através de dois conceitos: o de processo de subjetivação, que atua na forma com que os sujeitos reconhecem, significam e exercitam formas e forças de suas práticas; e o de estilo de vida, pelo qual procuramos divergir daquelas posturas as quais identificam e fixam as subjetividades dissidentes, e transformar a noção de estilo em uma micropolítica combativa de singularização. Este último, ao mesmo tempo refuta a tomada do desejo por um encaixe ou enquadramento110. Entre os abalos e crises pelos quais procedeu o pensamento do filósofo Michel Foucault, uma das condições existenciais que o acompanhou ao longo de sua trajetória foi fazer da condição de pensar uma prática liberadora. ―Não deixar ser dominado demais‖ e ―fazer do pensamento um exercício de liberdade‖ funcionavam como chaves, e na melhor das hipóteses como ―pés- de-cabra‖ para abrir portas e explorar novos caminhos (proibidos?), colocar em jogo sua própria vida. Após problematizar como são constituídos os saberes

p.235) diz em certo momento de sua trajetória tratar das condições possíveis do saber para fazer com que se reconheça verdadeiro ou falso (―jogos de verdade‖), portanto as desconsiderações, proibições, permissividades têm efeitos na produção dessas verdades. Cabe aqui perguntar pela possibilidade de existir em devires-merdas, devires-putas e outros tantos modos de subjetivação, sem que incessantemente se seja convocado a prestar contas do lugar de que falamos ou de uma condição a ser assumida permanentemente. É possível realizar uma escrita de si que permita escapar das regulações que serializam as subjetivações? Aqui utilizamos estes dois devires por serem recusados neste editor de textos.

110 A noção de ―devir‖ pode ser aqui referenciada como um fluxo afetado por linhas de força, menos do que um estado. Uma condição para tornar-se algo, menos do que forma pronta. Junto com a noção de multiplicidade, devir pode ser encontrado em: Deleuze e Guatarri (1995). 159 aceitos como verdadeiros ou falsos, e contrapor as teses de propriedade e concentração do poder, Michel Foucault forjou uma terceira pista para permanecer sincero no seu exercício de pensar (sua vida), a qual chamou de “subjetivação”. Nesta brecha aberta entre saber e poder, a subjetivação seria um dispositivo para colocar-se a si em uma relação consigo e com os outros. Em meio às formas pelas quais são constituídos os saberes e ao emaranhado de forças que atuam nas relações de poder, a subjetivação é tratada como um processo pelo qual a partícula “si” flexiona-se a ponto de tornar-se outra, ela própria. Hypomnêmatas greco-romanos111, confessionário cristão, estes são dois dispositivos ou técnicas que Michel Foucault (1994, 2006a) utiliza para problematizar nossa relação contemporânea com a sexualidade. Com suas importâncias, é através de práticas ligadas à sexualidade, mais com suas transformações do que permanências, que o autor mostra como foram se constituindo verdades mais ou menos aceitas em certas épocas, seja sobre aquilo que hoje chamamos de sexualidade, seja sobre as formas de conduta corporal, sobre formas de pensamento, enfim, sobre técnicas formativas (de si) para pensar e agir. Este exercício feito por Foucault de visibilizar certas práticas que transformam códigos e condutas de diferentes épocas pode nos auxiliar na compreensão dos exames pelos quais os sujeitos são submetidos e submetem- se e na análise de como estas forças atuam de forma a dobrar a partícula si permanentemente. Incomodado por ter a necessidade de ser colocado em algum lugar e de assumir uma condição que lhe fosse própria, reiterando a não separação entre vida e ética, teoria e prática, Michel Foucault recusa assumir uma unidade de seu pensamento, pensar igualmente o que já pensava, paralisar seu devir criativo, e em certo momento propõe provocativamente um ano no qual não se teria autoria, mas sim apenas obras. Primeiro, ao negar a condição de ter de admitir uma continuidade entre autor e sua obra, e mais, a continuidade de um projeto supostamente homogêneo onde cada desvio é tomado como contradição ou como erro, o autor evita certa sujeição a um modo aceito como correto ou verdadeiro para se pensar, escrever, agir, viver112. Assim, a noção de

111 Foucault (1994, 2006a) problematiza a relação desta forma de escrita em diários na busca por um "conhecimento de si" quando vai optar por se ater ao ―cuidado de si‖, este último como uma opção ―ética‖.

112 Tais ―desvios‖ foram tomados por certos intérpretes de Foucault como significando um ―retorno ao sujeito‖. Deleuze (2005), crítica severamente tais interpretações no 160 modo ou processo de subjetivação se presta para determinar em que condições de uma determinada época (tempo e espaço) certos saberes combinam-se para serem aceitos (funcionar) como verdadeiros e falsos (―jogos de verdade‖). Em seu caso, como, quando e onde são colocados os sujeitos, ―o a priori histórico de uma experiência possível‖ (2006a, p.235). Dentro desse provocativo jogo de obra sem autor, Foucault (2006b) escreve um artigo para um dicionário de filósofos assinando o mesmo com o pseudônimo Maurice Florence. Parece querer aliados que não digam o que todos dizem de sua obra, aliados que encontrem passagens até então invisíveis, que o subvertam, menos como um mestre e mais como uma ―ferramenta‖, menos como totalidade e mais como disponibilidade113. Enfim, bifurcações e usos tomados de assalto permitindo experimentações e possibilidade de efetivarem e tornarem-se aquilo que se deseja na relação consigo e com os outros. Para a problematização de um modo ou processo de subjetivação, o autor recorre a dois momentos e a leituras distintas das forças que atuariam nos sujeitos a se reconhecerem como objetos de conhecimento. Em sua análise dos dois primeiros séculos do período greco-romano na antiguidade, Foucault traz à tona a ideia de um ―conhecimento de si‖ mais ligado a um exame das práticas de escrita na relação entre mestre e discípulo. Na lógica cristã, em uma busca pela verdade que se estabelece entre um e os outros, acontece um exercício de negação de si através de práticas confessionais, no qual a relação pastor e rebanho procura conduzir a um conhecimento único e verdadeiro, uma larga tradição carregada de Negativo, falta, culpa, etc. A partir da transição do modo como se chega a uma verdade e de que forma se está colocado em jogos de verdade, mais do que validar ou recusar a crença em valores e saberes humanos constituídos, trata-se de analisar as técnicas utilizadas para constituir estas verdades de tempos em tempos. Desta forma com a lógica do que se convencionou chamar de cristianismo o (re)conhecimento de si passou de um exercício privado de escrita, através de hypomnêmatas (diários) na antiguidade, para a verificação pastoral das condutas e pensamentos através da introdução fundamentalmente do princípio de confissão. Reconhecer a si significava para o cristianismo admitir a culpa frente à Verdade, saber distinguir o que é certo do que é errado e fazer parte de

último capítulo do livro ―Foucault‖. 113 Um pouco daquilo que Deleuze (1992) coloca como ―filosofia pop‖. Se existe uma função para filosofia, aquilo que seria fabricar conceitos, estes conceitos ―passam ou não passam‖ como uma música, pintura, etc. Conceitos transfigurados entre arte, política e ciência, entre eles podemos citar a noção de ―corpo-sem-órgãos‖, no terceiro volume de "Mil platôs: Capitalismo e Esquizofrênia" de Deleuze e Guatarri. 161 um rebanho. É evidente que não estamos comparando as opções ético-estéticas da vida de Michel Foucault, tampouco traçando paralelos entre as práticas na antiguidade, com as condições de existência e a maneira com que os futebolistas infames interpretam e resignificam suas práticas. Interessa-nos, destacar como foi possível chegar a isso que o autor chama de subjetivação e como isto pode nos ser útil para problematizar o pertencimento a grupos, com identidades, diferenças e singularidades mais ou menos fixas no sistema futebolístico. Contemporaneamente, seja sobre a reivindicação de um projeto de modernidade e/ou a reiteração de co-habitação em sociedade (marcos biopolíticos agrupando individualidades em termos de população), não é difícil verificar a continuação de um apelo pela identidade e unidade. Uma vez que as partículas si que não podem, não conseguem, não querem, não são partícipes dessa flexão, são transformadas em anômalos, ora confinadas nas instituições especializadas cabíveis, ora tornadas invisíveis dentro e fora das atividades cotidianas (algo próximo de um futebol menor?). Dobradura (nos termos de Deleuze, 1992) mais facilitada através de seu reconhecimento em pequenos núcleos passíveis de compreensão, apropriação e exploração (identidades, e como diria certa lógica consumista, não fazer parte de grupo algum já é fazer parte de um, não existe escapatória) 114. Entretanto, contrapondo uma identificação expressa por uma autoria e assinatura, Philippe Artières (2009) dá início a uma pequena ―história do anonimato voluntário‖ feita pela escrita e leitura de cartas anônimas. A ambigüidade da utilização de cartas sem autoria reside no duplo uso de ―resistência‖ e ―controle‖ para os quais são destinados estes artefatos. Ao realizar uma tentativa de retirar uma identificação ou pelo menos ―neutralizá-la‖ (2009, p. 307) como o autor coloca, as cartas de ameaça retiram um dos

114 Não afirmamos com isto a responsabilidade de uma tradição cristã em introduzir e manter um princípio de identidade e reconhecimento das relações entre humanos através de identidades. Certas práticas fizeram com que o desejo fosse recalcado (negação de si) e transformaram as condutas dos sujeitos mais aceitas, pelo menos publicamente. Para isso também foi necessário tornar dizível o que acontecia na vida cotidiana, os pensamentos, os comportamentos, neste caso através de práticas confessionais. Nomeando e reconhecendo os ―segredinhos sujos‖ para controlar as condutas e até certo ponto modificar leis. No entanto, somada a intervenção do Estado, certas leis passam a administrar a vida e permitem mobilizações em grupamentos mais ou menos homogêneos como forma de regularizar escolhas divergentes de ―poderes hegemônicos‖, como o surgimento das lutas de classe, gênero, geração, disputas étnicas, etc. 162 dispositivos utilizados para verificação e controle da ―ordem‖. Já as cartas de denúncia, também desprovidas de autoria, provocam a efetivação do controle das condutas cotidianas fazendo o endereçamento das identidades passíveis de penalização segundo esta mesma ―ordem‖. Além da imprecisão entre público/privado presente também na prática confessional, as intervenções feitas a partir das leituras de cartas anônimas intensificam a regulamentação das condutas cotidianas dos habitantes das cidades. Acima de tudo, fazer a sua própria identificação pelas condições de vida no social, comparando, hierarquizando e classificando, significa aceitar ser colocado em algum lugar. Retirar estas identidades que se dão através de relações de poder pode permitir com que se analisem os efeitos de tais relações menos do que quais foram seus autores. Ao serem contextualizadas, as cartas analisadas pelo autor estão inseridas dentro de um momento de nova organização e formas de relações sociais, justamente quando se trata de configurar e confinar estas relações em um perímetro mais ou menos demarcado com a criação de ―cidades‖. Este deslocamento da relação pastor/rebanho para um autogerenciamento de seus próprios habitantes faz com que as ―cartas de denúncia‖ funcionem como reguladoras das condutas públicas por meio de órgãos instituídos para gerir e controlar a vida nas cidades. A prática de escrita anônima usada para subverter a ―ordem‖ através de ―ameaças‖ feitas por anarquistas (uma matriz identitária) nas intervenções com explosões em Paris no final do século XIX diferia do anonimato daquela escrita empregada aos ―bons costumes‖, assim configurando um dispositivo de controle quanto aos seus efeitos. Reconhecer os efeitos, mais do que as intencionalidades, confere visibilidade aos atributos próprios para qualificar o pertencimento a certo grupo e não a outros possíveis. Assim, a leitura das cartas, passa a ser o que diferencia condutas, comportamentos e associações permitidas e até estimuladas, daquelas invisibilizadas. Esta mesma prática de leitura feita por aparatos policiais reconhecia o pertencimento das moralidades de certas instituições e associações expressadas pela prática de escrita. Conforme o exame de algumas ―técnicas de si‖ (FOUCAULT, 1994), não queremos atestar o início e fim de uma determinada ―subjetivação‖, dizendo: ―a partir daqui começa isto, vai até aqui, cessa para começar aquilo‖. As práticas de si contemporâneas carregam um pouco de cristianismo, de antiguidade, a relação de si/outro/si, e si/outro/outro, etc.115, e fazem com que nos

115 Esta transposição das linhas de poder feita a partir dos saberes constituídos, coloca a relação de si com um outro contido neste mesmo si, ao mesmo tempo em que compartilha a relação de si com um outro fora de si. 163 perguntemos, em que condições somos forçados a chegar onde estamos? Como chegamos até aqui? Sendo o histórico, o único a priori. Mais do que uma identificação, supomos que esta ausência de autoria projeta uma diferenciação. Também coloca no lugar de pertencimento um processo feito por associações, ―agenciamentos coletivos‖, condições de sua própria existência, e vai deslocando os sujeitos de lugar. A anonímia das cartas anarquistas e da obra sem autor de Foucault não está em uma realidade paralela onde não exista qualquer inteligibilidade. Ela compartilha de processos de reconhecimento (identificação) e, entretanto, não se situa em lugar algum, fica em suspenso, deslocando e ocupando zonas mistas. Quase inclassificável, inominável, o anonimato provoca um curto-circuito nesta configuração que procura identificar na busca por alguma unidade. Com esta tentativa de retirada de unidade da forma com que vivemos coletivamente, onde cada vez mais sujeitos ocupam diversos espaços e assumem identidades mistas, não estaríamos desprezando a historicidade com que se formaram? Esta ausência de identidade significaria a desmobilização das chamadas ―minorias sociais‖? Será que não estaríamos retirando o único a priori que elegemos para ―cartografar‖ às condições de existência? Diante de todo este quadro, no qual a reificação de identidade encontra ressonância tanto de ordem local quanto global, a escolha pela singularização, isto é pela diferença, não isola sujeitos em pequenos fragmentos à mercê de alianças pré- determinadas ou previstas, uma vez que, feita por agenciamentos coletivos, lida com acontecimentos e transformações no plano histórico para forjar uma subjetividade outra.

Nunca ―sobra‖ nada para o sujeito, pois, a cada vez, ele está por se fazer, como um foco de resistência, segundo a orientação das dobras que subjetivam o saber e recurvam o poder. A subjetividade moderna reencontraria o corpo e seus prazeres, contra um desejo tão submetido à Lei? E, no entanto, isso não é um retorno aos gregos, pois nunca há retorno. A luta por uma subjetividade moderna passa por uma resistência às duas formas atuais de sujeição, uma que consiste em nos individualizar de acordo com as exigências do poder, outra que consiste em ligar cada indivíduo a uma identidade sabida e conhecida, bem determinada de uma vez por todas. A luta pela subjetividade se apresenta então como direito à diferença e direito à variação, à metamorfose. (DELEUZE, 2005, p.113)

164

Por um lado, esta contestação de uma ―subjetividade moderna‖, que imobiliza e individualiza as identidades, sujeita à reafirmação dos pertencimentos locais como conjuntos fixos e constantes, inertes às transformações e diálogos ao mesmo tempo em que são explorados. Por outro, ela realiza a dissolução dessas mesmas identidades tornando-as produtos acabados e de livre escolha, sempre dentro da lógica consumista do ―poder de compra‖, as ―identidades prêt-à-porter‖ (Suely ROLNIK, 1997a). Sem pretender produzir uma meta-explicação dos sentidos nas práticas que poderiam identificar alguns futebolistas como infames, uma noção que merece especial é a de estilo. Em especial, quando passamos por aquilo que alguns trabalhos indicam como uma dissolução das identidades locais em meio a uma globalização, podemos retomar a distância entre individualização e singularização. A afirmação de Gilles Deleuze acima citada, no que se refere ao sujeito permanentemente inacabado e a negação de uma ―importação‖ da vida dos ―gregos‖, permite-nos realizar as aproximações e afastamentos necessários para pensar a noção de estilo de vida como uma possibilidade de experimentação daquilo que está por vir (um devir). Se nas morais antigas um ―estilo de liberdade‖ era exercido através de uma prática – aquilo que podemos chamar de ética –, este exercício foi ―um esforço para afirmar a sua liberdade e para dar à sua própria vida uma certa forma na qual era possível se reconhecer, ser reconhecido pelos outros e na qual a própria posteridade podia encontrar um exemplo.‖ (Foucault, 2006c, p. 290). Apesar disso, colocar autoria em uma existência chamada de ―ética‖ (Foucault), se tornou possível em meio a relações de subordinação entre ―livres‖ e ―escravos‖. A condição de seres ―livres‖ era construída em meio a um etos ―antigo‖, por isso não há retorno aos ―gregos‖ ou quem quer que seja, algo que afasta um modo de viver na antiguidade dos modos contemporâneos. A condição de anonimato, que também não foi a do filósofo Michel Foucault, e a afirmação da diferença por processos de singularização, oferecem à subjetivação mecanismos para evitar o que já está estabelecido e poderíamos reafirmar que isto passa pela subjetividade capitalística de Guatarri-Rolnik (1996). A noção de estilo então se presta a um duplo movimento. Referenciado por um modelo identitário, este estilo é utilizado para reiterar o que vinha sendo chamado de ―cultura‖. Nos moldes da produção industrial prêt-à-porter (pronta para vestir), as categorias de cultura de Guatarri e Rolnik (1996) são aplicáveis ao estilo: primeiro, demarcando uma subjetividade modelizada como consequência de determinadas práticas (cultura-valor); segundo, acessar bens como mercadorias de consumo pelas quais se tem posse e propriedade de 165 artefatos fabricados em certas épocas e locais (cultura-mercadoria), ou seja, ter posse sobre determinada mercadoria significa ser composto por um determinado ―estilo‖; e por último, capacidade exercida para reivindicar identidade, coloca em escalas subjetividades mais ou menos válidas. Deste modo, o estilo pode ser entendido como um conceito reacionário, da mesma forma como a cultura é pensada por Guatarri-Rolnik (1996). Assim, o estilo vem sendo utilizado para normalizar as condutas, tentando fabricar corpos dóceis e produtivos em um sistema que subjuga a vida. Podemos citar o exemplo de um ―estilo de vida saudável‖, no qual se pressupõe existir apenas uma ética que tem implicações nos mais diversos campos (alimentação, exercícios físicos, tecnologias, etc.). O duplo uso de estilo reside no fato de utilizá-lo também como forma de alterar as relações s de força com o poder. Um ―estilo de vida‖, como a fabricação de uma ética singular que se dá na relação com os acontecimentos, traça linhas de fuga para as forças de poder que se pretendem ―dominantes‖ e confunde os saberes constituídos. Ao mesmo tempo em que é gerado um mal-estar por essa des- identificação, um ―estilo de vida ético‖ (este último) cria maneiras de se relacionar com tudo aquilo que o agencia, sejam instituições, normas, desejos, etc. Recorremos novamente à noção de ―infames‖, no que diz respeito a vidas suficientemente singulares para desordenar linhas de força que se pretendem uniformes através do poder. Como já inferimos ao longo da problemática da subjetivação, a personificação e a recorrência do uso de identidades vêm tornando a vida projetada através de modelos de existência a serem seguidos. A infâmia de Foucault se apresenta em seres desprovidos de qualquer pretensão a ganhar visibilidade, ―seres insignificantes, obscuros e simples, que devem apenas a processos, relatórios policiais, o fato de aparecerem por um instante à luz‖ (Deleuze, 2005, p.103). Estes infames, ―animados por outros estados de existência‖, adquirem visibilidade nas malhas do poder, ao mesmo tempo em que passam a fazer parte de uma história menor. Se a relação consigo na antiguidade buscava servir para a posteridade, a infâmia, não projeta uma busca para se tornar maior, mas efetua seus combates afastando-se de um encantamento pelo poder. A infâmia, apesar de poder ser considerada um estilo de vida, através do exercício de uma prática dotada de anonimato, algo que apenas vem à superfície para depois imergir através do poder despersonificada, passa a exercer a invenção de possibilidades de existência diferenciadas. Um estilo de vida que não é individual, tampouco individualista, ao passo que afirma com um Sim a condição de existência de não se enamorar pelo poder. Sua difusa 166 nominação confunde quem sempre esteve acostumado aos encaixes das identidades, por mais voláteis que elas possam estar se tornando, colocando a vida como um princípio ético. Demos visibilidade ao longo do texto a recursos utilizados para tentar escapar do círculo vicioso da identidade e ao mesmo inventar possibilidades de não nomear aquilo que se desconhece de um futebol menor, evitando as representações (o futebol é isto, acontece de tal maneira, etc). Problematizamos parte de uma condição possível para pensar e viver, como entendemos que foi a subjetivação para Foucault. Ainda, recorremos à noção de infame do autor para demonstrar como o conceito de cultura foi transfigurado e surge muito mais fluído e disperso, classificado como um estilo. Evitando as vias reacionárias que um estilo pode encerrar em si, um estilo de vida no presente estudo esteve atento muito mais para as trajetórias, as escolhas e assim uma prática de si cercada por intensidades e afetos. Se um modo de subjetivação não é um sujeito, uma pessoa, mas um campo de intensidades, o estilo de vida é a resultante da interação entre as forças que o compõem. Seriam estes futebolistas a resitência sútil e resiliente da ordenação e da imposição de um modelo meritocrático e elitista centrado na figura do ídolo, do herói e do sobrenatural (não por acaso todas figuras associadas ao ―masculino‖)? 167

7. REFERÊNCIAS

AGEGAARD, Sine; TIESLER, Nina Clara (Orgas). Women, Soccer and Transnational Migration. London: Routledge, 2014. AGRESTA, Marisa Cury; BRANDÃO, Maria Regina Ferreira; NETO, Turíbio Leite de Barros. Causas e conseqüências físicas e emocionais do término da carreira esportiva. Revista Brasileira de Medicina do Esporte, São Paulo, vol. 14, n.6, p. 504-508, nov./dez. 2008. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. O descarado, a cara-metade, o rosto: Michel Foucault e a análise de discurso do movimento homossexual. Cadernos Discursivos, Catalão-GO, v. 1 n. 1, p. 1 - 20, 2014. ALMEIDA, Caroline Soares de. Boas de bola: um estudo sobre o ser jogadora de futebol no Esporte Clube Radar durante a década de 1980. 2013. 150f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social, Florianópolis, 2013. ALMEIDA, Caroline Soares de; PISANI, Mariane da Silva. labrys, études féministes/ estudos feministas, julho/dezembro 2015 - juillet/décembre 2015. Disponível em: . Acesso em: 26 dez. 2018. ALMEIDA, Caroline Soares de; PISANI, Mariane da Silva; JAHNECKA, Luciano. De apostas, promessas e sonhos: alguns projetos interrompidos e facilitados de futebolistas não-célebres. Espaço Plural, n. 29, p. 170-192, 2. Sem., 2013. ANTUNES, Fátima Martin Rodrigues Ferreira. Futebol de Fábrica em São Paulo. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1992. 190f. ARAÚJO, Sandra Gil. Fútbol y Migraciones: La Sentencia Bosman en el proceso de construcción de la Europa comunitaria (crónicas desde España). Migraciones Internacionales, México, v. 1, n. 3, p. 55 -78, jul./ dic. 2002. Disponível em: . Acesso em: 08 out. 2018. ARTIÈRE, Philippe. Tornar-se anônimo: escrever anonimamente. In: RAGO, 168

Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo (orgs.). Para uma vida não-fascista. pp. 305- 324. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 2010. BERNARDO, Adiléia. Efeito Tamburello: um estudo antropológico sobre as imagens de/em Ayrton Senna. 1998. 164f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 1998. BITENCOURT, Fernando Gonçalves. No reino do Quero-Quero: corpo e máquina, técnica e ciência em um centro de treinamento de futebol – uma etnografia ciborgue do mundo vivido. 2009. 314f. Tese de Doutorado. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social, 2009. BOLOGNESE, Chiara. Roberto Bolaño y sus comienzos literarios: el infrarrealismo entre realidad y ficción. Acta literaria, Concepción, n.39, p. 131- 140, 2. sem., 2009. BORGES, Jorge Luis. História Universal da Infâmia. Trad. Alexandre Eulálio. São Paulo: Globo, 1999. BOURDIEU, Pierre. Programa para uma sociologia do esporte. Em:______. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. pp. 207-220. ______. Sobre a televisão. Trad. Maria Lúcia Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. BRASIL. Lei n. 9.615, de 24 março 1998. Institui normas gerais sobre derporto e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, p.01, 25 março 2003. BRIGHENTI, Andrea. Visibility: a category for the Social Sciences. Current Sociology, vol. 55, n.3, p.323–342, mai. 2007. ______. Visibility in Social Theory and Social Research. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2010. CAILLOIS, Roger. Man, play and the games. Trad. Meyer Barash. New York: Free Press of Glencoe, 1961. CALDAS, Waldenyr. Aspectos sociopolítícos do futebol brasileiro. Revista USP, n. 22, 1994. 169

CARTER, Thomas. Re-Placing Sport Migrants: Moving beyond the Institutional Structures Informing International Sport Migration. International Review for the Sociology of Sport. 48: 66–82, 2011. CHAIDRON, Alexandre; ARNOULD, Cécile. Study on the representativeness of the social partner organizarions in the professional football player sector. Louvain: Université Catolique de Louvain, 2006. CHIQUETTO, Rodrigo Valentim. Entre índios e boleiros no peladão indígena. Ponto urbe [Online], n. 14, 2014. Disponível em: . Acesso em: 21 jan. 2015. CORREIA, Jones Mendes. Os vínculos clubísticos e as lógicas do jogo: um estudo sobre a emergência e o processo de (des) elitização do futebol na cidade de rio grande - rs (1900-1916). 2014. 82f. Dissertação (Mestrado em Educação Física), Universidade Federal de Pelotas, Programa de Pós- Graduação em Educação Física, Pelotas, 2014. CUNHA, Aline Nunes da. Futebol, memória e identidade operária: uma análise sobre a prática futebolística em Pelotas nas décadas de 1930 e 1960. 2008. 163f. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal de Pelotas, Programa de Pós-Graduação em Educação, Pelotas, 2008. DAMO, Arlei Sander. Do dom à profissão: uma etnografia do futebol de espetáculo a partir da formação de jogadores no Brasil e na França. 2005. 435f. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Porto Alegre, 2005. ______. O ethos capitalista e o espírito das Copas. In: GASTALDO, Édison Luis; GUEDES, Simoni Lahud (orgs.). Nações em Campo: Copa do Mundo e identidade nacional. Niterói: Intertexto, 2006. ______. The training of football players. Vibrant – Virtual Brazilian Anthropology, v.6, n.2, July to December, 2009. DARBY, Paul. Moving Players, Transversing Perspectives: Global Value Chains, Production Networks and Ghanaian Football Labour Migration. Geoforum 50: 43–53, 2013. de CAMARGO, Wagner Xavier. Corporalidades disruptivas? Considerações antropológicas sobre práticas esportivas específicas. In: 29ª Reunião Brasileira de Antropologia. Anais... Natal: ABA, 2014. pp. 1-18. 170 de CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano I: as artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992. ______. Empirismo e subjetividade: ensaio sobre a natureza humana segundo Hume. Trad. de Luiz B. L Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2001. ______. Foucault. Trad. Claudia Sant‘Anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 2005. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1977. ______. O que é a Filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Coleção Trans. São Paulo: Ed. 34, 1992. ______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrênia. Vol. 4. Trad. Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1997. DURAS, Marguerite. Os olhos verdes. Trad. Heloísa Jahn. Rio de Janeiro: Globo, 1988. ELIAS, Nobert; DUNNING, Eric. Quest for Excitement. Sport and Leisure in the Civilizing Process. Oxford: Blackwell, 1986. ENGH, Mari Haugaa; AGERGAARD, Sine. Producing Mobility through Locality and Visibility: Developing a Transnational Perspective on Sports Labour Migration. International Review for the Sociology of Sport. pp. 1–19 Published online, 18 November 2013. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2016. FAVERO, Paulo Miranda. Os donos do campo e os donos da bola: alguns aspectos da globalização do futebol. 2009. 117 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. FEITOSA, Charles. Pensar, migrar. In: LINS, Daniel; PELBART, Peter Pal. Nietzsche e Deleuze: bárbaros civilizados. São Paulo: Annablume, 2004. pp. 39-44. 171

FILHO, Mario. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. FOOTE-WHYTE, William. Treinando a observação participante. Trad. Claudia Menezes. In: ZALUAR, Alba. Desvendando máscaras sociais. 2.ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1980. pp. 77-86. FOUCAULT, Michel. La vida de los hombres infames. Trad. Julia Varela e Fernando Alvarez-Úria. La Plata: Altamira, s/d. ______. As técnicas de si. In: _____. Ditos e Escritos. Vol. IV. Trad. Wanderson Flor do Nascimento e Karla Neves. pp. 783-813. Paris: Gallimard, 1994. _____. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ______. A vida dos homens infames. Em: ______. Estratégia, poder-saber. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. pp.203-222. ______. A escrita de si. Em: ______. Ética, Sexualidade, Política. Ditos e Escritos. Vol. V. Trad. Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. 2.ed. pp.144-162. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006a. ______. Foucault. Em: ______. Ética, Sexualidade, Política. Ditos e Escritos. Vol. V. Trad. Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. 2.ed. pp.234-239. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006b. _____. Uma estética da existência. In: _____. Ética, Sexualidade, Política. Ditos e Escritos. Vol. V. Trad. Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. 2.ed. pp.288-293. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006c. _____. Segurança, território e população. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. FREITAS, Gustavo da Silva. “Espírito de Seleção”: um estudo dos discursos midiáticos a partir da Copa do Mundo de 2006. 2009. 129 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física), Universidade Federal de Pelotas, Programa de Pós-Graduação em Educação Física, Pelotas, 2009. GASTALDO, Édison Luis. ―Os Campeões do Século‖: notas sobre a definição da situação no futebol mediatizado. In: GASTALDO, Édison Luis; GUEDES, Simoni Lahud (orgs.). Nações em Campo: Copa do Mundo e identidade nacional. Niterói: Intertexto, 2006. GIULIANOTTI, Richard. Sociologia do Futebol – Dimensões Históricas e Socioculturais do Esporte das Multidões. São Paulo: Nova Alexandria, 2002. 172

GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da história: a título de prólogo. In:_____. Escrita de si, escrita da história. pp. 7-26. Rio de Janeiro: FGV, 2004. GUATARRI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografias do desejo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. GUEDES, Simoni Lahud, et al. Projetos sociais esportivos: notas de pesquisa. In: Encontro Regional de História, XII. Anais... Rio de Janeiro: ANPUH, 2006. p. 1-10. GUIMARÃES, Aline Rodrigues. De profissional a master: memórias de jogadores do Clube Esportivo de Futebol. 2012. 54f. Dissertação (Mestrado em Ciências do Movimento Humano). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Escola de Educação Física. Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano, Porto Alegre, 2012. GUIMARÃES, César. Imagens da memória: entre o legível e o visível. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Elogio da beleza atlética. Trad. Fernanda Ravagnani. São Paulo: Cia. Das Letras, 2007. HARAWAY, Donna J. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo- socialista no final do século XX. Em: SILVA, Tomaz T. (Org.). Antropologia do ciborgue: As vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. pp.34- 118. HEINICH, Nathalie. De la visibilité: excellence et singularité em régime médiatique. Paris: Éditions Gallimard, 2012. HUGHES, Everett. The Sociological Eye. Selected Papers. New Brunswick: Transaction Edition, 1993. HUIZINGA, Johan. Homo ludens : proeve eener bepaling van het spel-element der cultuur. 2ed. Haarlem: Tjeenk Willink, 1940. ______. Homo ludens. Buenos Aires: Ed. Alianza Emecé, 2007. JAHNECKA, Luciano. O jeito Xavante de torcer: formação de memórias em uma torcida de futebol. 2010. 74f. Dissertação de mestrado. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências: química da vida e saúde, 2010. JESUS, Gilmar Mascarenhas. O futebol da canela preta: o negro e a modernidade em Porto Alegre. Anos 90, Porto Alegre, n.11, p. 144-161, Jul., 173

1999. KUPER, Simon. Fútbol contra el enemigo. Barcelona: Contra Ediciones, 2012. LARROSA, Jorge. Sobre la experiencia. Aloma, Universidad de Barcelona, 2006, pp. 87-112. LINS, Daniel Soares. Ayrton Senna: a imolação de um deus vivo. Fortaleza: EUFC, 1995. LOBO, Lilia Ferreira. Os infames da História: pobres, escravos e deficientes no Brasil. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008. LOPES, José Sérgio Leite. Considerações em torno das transformações do profissionalismo no futebol a partir da observação da copa de 1998. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 13, n. 23, p. 175-191, 1999. MAC AULIFFE, Cecilia Garcia-Huidobro. Humor: goles y autogoles de Roberto Bolaño. Universum, Talca, n.27, v.01, 1. Sem., p. 223-228, 2012. MACHADO, Igor José de Renó. Cárcere Público: processos de exotização entre brasileiros no Porto. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2009. MARCUS, George E. Ethnography in/of the World System: The emergence of Multi-sited Ethnography. Annual Review of Anthropology, vol. 24, p.95-117, 1995. MARQUES, Maurício Pimenta. Análise da transição da carreira esportiva de atletas de futebol da fase amadora para a fase profissional. 2008. Dissertação de mestrado. Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Educação Física, 2008. MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo. In: ______. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 399-422. MAYOR, Sarah Teixeira Soutto. O futebol na cidade de Belo Horizonte: amadorismo e profissionalismo nas décadas de 1930 e 1940. 2017. 358f. Doutorado (Teses) – (Doutorado em Estudos do Lazer). Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017. MCARDLE, David. From Boot Money to Bosman: Football, Society and the Law. London: Cavendish, 2000. MEARS, Ashley. Pricing beauty: The making of a fashion model. Berkeley: University of California Press, 2011. 174

MINOIS, Georges. Historie de la célébrité: Les trompettes de la renommée. Paris: Perrin, 2012. MISKOLCI, Richard. Negociando visibilidades: segredo e desejo em relações homoeróticas masculinas criadas por mídias digitais. Bagoas - Estudos gays: gêneros e sexualidades, v. 8, n. 11, 11, pp. 51-78, jul.-dez. 2014. MORIN, Edgar. As estrelas: mito e sedução no cinema. Trad. Luciano Trigo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. NEVES, Claudia A. B. Pensando o contemporâneo no fio da navalha: entrelaces entre desejo e capital. Lugar comum – estudos de Mídia, Cultura e Democracia. Rio de Janeiro v.19/20, p.135-157, jan./jun. 2004. ORLANDI, Luiz B. L. O pensamento e seu devir criança. In: LINS, Daniel (Org.). O devir-criança do pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 67-77. ORTNER, Sherry B. Anthropology and Social Theory: Culture, Power, and the Acting Subject. Durham and London: Duke University Press, 2006. PELBART, Peter Pál. Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989. PELBART, Peter Pal. Anote aí: eu sou ninguém. 10 ago. 2013 Disponível em: Acesso em: 10 jan. 2014. PEREIRA, Leornardo Afonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro, 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. PISANI, Mariane da Silva. Poderosas do Foz: trajetórias, migrações e profissionalização de mulheres que praticam futebol. 2013. 166 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2013. PISCITELLI, Adriana. Trânsitos: Brasileiras nos mercados transnacionais do sexo. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2013. PRONI, Marcelo Weishaupt. Esporte-espetáculo e futebol-empresa. 1998. 262 f. Tese de Doutorado. Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998. RODRIGUES, Francisco Xavier Freire. O fim do passe e a modernização conservadora no futebol brasileiro (2001-2006). Tese de Doutorado. Porto 175

Alegre, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-Graduação em Sociologia, 2007. 346f. RODRIGUES FILHO, Mario. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. ROGÉRIO, Radamés Mesquita. No ―segundo tempo da vida‖: o jogador de futebol e a passagem para a pós-carreira. 2014. 270f. Tese (Doutorado em Sociologia), Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Departamento de Ciências Sociais, Programa Pós-Graduação em Sociologia, Fortaleza, 2014. ROSENFELD, Anatol. Negro, macumba e futebol. São Paulo: Perspectiva, 1993. RIAL, Carmen. Jogadores brasileiros na Espanha: emigrantes, porém… Antropologia em Primeira Mão. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, v.87, 2006. ______. Rodar: a circulação dos jogadores de futebol brasileiros no exterior. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v.14, n.30, p.21-65, jul./dez. 2008. ______. Fronteiras e zonas na circulação global dos jogadores brasileiros de futebol. Antropologia em Primeira Mão, Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, v.109, p.1-24, 2009. ______. Banal Religiosity: Brazilian Athletes as New Missionaries of the Neo- Pentecostal Diaspora. Vibrant 9(2), 2012. Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2015. ______. El invisible (y victorioso) fútbol practicado por mujeres em Brasil. Nueva Sociedad, Buenos Aires, n.248, p.114-126, nov./dez., 2013. ______. From Black Kaká to Gentrification: The new mobilities of expatriate brazilian football players. In: GLEDHILL, John (Ed.). World Anthropologies in Practice: Situated perspectives, Global Knowledge. London: Bloomsbury, 2016. pp. 77-91. RIBEIRO, Carlos Henrique de Vasconcellos. When success becomes a collective asset: social projects of former Brazilian soccer players. Soccer & society, London, 9:4, p. 491-496, 2008. RIGO, Luiz Carlos. Memórias de um futebol de fronteira. Vol.8. História e etnias de Pelotas. Pelotas: Ed. UFPel, 2004. 176

RIGO, Luiz Carlos; TORRANO, Conrad Vilanou. Identidades dos clubes de futebol: singularidades do FC Barcelona. Movimento, Porto Alegre, v. 19, n. 03, p. 191-210, jul./set., 2013. RIGO, Luiz Carlos; da SILVA, Daniel Vidinha; RIAL, Carmen Silvia de Moraes. Formação de jogadores em clubes de uma cidade do interior: circulação, escolarização e inserção no futebol profissional. Movimento, Porto Alegre, v. 24, n. 1., p. 263-274, jan./mar., 2018. ROLNIK, Suely. Toxicômanos de identidade: subjetividade em tempo de globalização. In: LINS, Daniel (Org.) Cultura e subjetividade: Saberes Nômades. Campinas: Papirus, 1997(a). pp.19-24. _____. Uma insólita viagem à subjetividade. In: LINS, Daniel (Org.). Cultura e subjetividade: Saberes Nômades. Campinas: Papirus, 1997(b). pp. 25-34. ______. Despachos no museu: sabe-se lá o que vai acontecer [...]. In: FONSECA, Tania Mara Galli; KIRST, Patrícia Gomes (orgs). Cartografias e Devires: a construção do presente. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. SALDANHA, Renato Machado. Placar e a produção de uma representação de futebol moderno. 2009. 100f. Dissertação (Mestrado em Ciências do Movimento Humano), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós- Graduação em Ciências do Movimento Humano, Porto Alegre, 2009. SCHUSTER, Mariano. Club Atlético Revolución: Sankt Pauli el equipo ―anti- capitalista‖. Nueva Sociedad, Buenos Aires, n. 248, p. 43-51, nov./dez., 2013. SCOTT, Joan W. A invisibilidade da experiência. Proj. História, São Paulo, n.16, p. 297-325, fev., 1998. SOARES, Antônio Jorge. Malandragem, futebol e identidade. Vitória: UFES- SPDC, 1994. SOUZA, Camilo Araújo Máximo de, et al. Difícil reconversão: futebol, projeto e destino em meninos brasileiros. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v.14, n.30, p.85-111, jul./dez. 2008. SOUZA, Priscilla Andreata Rosa de. A Prata da Casa: a ―mercadoria força de trabalho jogador de futebol‖ no Brasil pós Lei Pelé. 2008. 165f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Universidade Federal da Bahia, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Salvador, 2008. SPAGGIARI, Enrico. Tem que ter categoria: construção do saber futebolístico. 2009. 264f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Universidade de 177

São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, São Paulo, 2009. ______. Família joga bola: Constituição de jovens futebolistas na várzea paulistana. 2015. 470f. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, São Paulo, 2015. TOLEDO, Luiz Henrique de. Lógicas no futebol. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2002. ______. Torcedor, torcedores: memórias do jogo e do anti-jogo. Em: MARQUES, José Carlos; GOULART, Jefferson Oliveira. Futebol, comunicação e cultura. São Paulo: Intercom, 2012. van de KAMP, Linda. Violent conversion: Brazilian pentecostalism and the urban pioneering of women in Mozambique. Amsterdam: Wöhrmann Print Service, 2011. VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: Antropologia das sociedades complexas. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. VIGARELLO, Georges. Estádios: O espetáculo esportivo das arquibancadas às telas. Em: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do Corpo. Vol. 3 As Mutações do Olhar: O Século XX. Petrópolis: Vozes, 2008. pp. 445-480. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O nativo relativo. Maná, [online], vol.8, n.1, p.113-148, 2002. ______. Filiação intensiva e aliança demoníaca. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.77, pp.91-126 Mar. 2007 WACQUANT, Loïc. Proscritos da cidade: estigma e divisão social no gueto americano e na periferia urbana francesa. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 43, pp. 64-83, Nov., 1995. ______. Corpo e Alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Trad. Ângela Ramalho. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. WILLIAMS, Jean. A Beautiful Game: International Perspectives on Women's Football. Oxford and New York: Berg, 2007.

Fontes consultadas: 178

BEENEN, Bram. Bruno Andrade traint mee bij Willem II. OMROEP BRABANT, 16 junho 2013. Disponível em: . Acesso em: 13 jul. 2013. CADERNOS DE A BOLA. Lisboa: Sociedade Vicra Deportiva, 2013. CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE FUTEBOL. Disponível em: . Consultado em 31 de julho de 2010. DIÁRIO POPULAR, Giacomo Bertinetti, 6 de fevereiro de 2011. Operários da segundona. DIÁRIO POPULAR, Redação, 19 de fevereiro de 2012. Goleiro Bruno Hepp conquista espaço no Lobão. DIÁRIO POPULAR, Henrique Risse, 8 de maio de 2012. Eller chega hoje. p. 21 ENCOUNTERS AT THE END OF THE WORLD. Direção: Werner Herzog. Discovery Films, 2007. DVD. ESPORTE CLUBE PELOTAS. Nota oficial. 05 set. 2012. Disponível em: . Acesso em: 08 set. 2012. FERDMAN, Roberto A.; YANOFSKY, David. Latin America earns more from exporting soccer players than live animals. Disponível em: . Acesso em: 03 ago. 2013. FIFA. Regulations on the Status and Transfer of Players. 2007. Disponível em: . Acesso em: 16 maio 2018. FREITAS, Caetanno. Achei! Andarilho, Fabiano Eller vira ídolo em Pelotas e sonha com Série A. Globo Esporte. Porto Alegre, 17 out. 2012. Disponível em: . Acesso em: 3 nov. 2017. GRÊMIO ESPORTIVO BRASIL. Nota oficial. 06 de fev. 2016. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2018. OS REBELDES DO FUTEBOL. Direção: Gilles Perez, Gilles Rof. França. ARTE France, 13 Productions, 2012. DVD. REDE ESPORTIVA. Lobo irá lucrar com venda de Michel Bastos ao São Paulo. 179

Disponível em: . Acesso em: 13 jul. 2018. REVISTA DOS ESPORTES. n.29. Fev. 1951. Pelotas: Tipografia Arauto, 1951. REVISTA PLACAR. n. 969. Retrospectiva 88. São Paulo: Editora Abril, 1988. REVISTA PLACAR. n.1112. Fev. 1996. São Paulo: Editora Abril, 1996. SILVA, Jones Lopes da; GERMANO, Paulo. Investindo no futuro: Sonda dá R$ 400 mil a garoto de 14 anos. Zero Hora. Porto Alegre, 13 nov. 2012. Disponível em: . Acesso em: 13 nov. 2012. SPITS, Amsterdam, NL, 22 novembro 2013.