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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE LETRAS PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – ESTUDOS LITERÁRIOS

ALESSANDRA LEILA BORGES GOMES

INFINITAMENTE PESSOAL

MODULAÇÕES DO AMOR EM CAIO FERNANDO ABREU &

BELO HORIZONTE 2008

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ALESSANDRA LEILA BORGES GOMES

INFINITAMENTE PESSOAL

MODULAÇÕES DO AMOR EM CAIO FERNANDO ABREU & RENATO RUSSO

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários, da Faculdade de Letras da Universidade Fe- deral de Minas Gerais, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Doutor em Estudos Literários.

Orientador: Prof. Dr. Maurício Vasconcelos

BELO HORIZONTE 2008 Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Para aqueles que amam Caio Fernando Abreu; em especial, Arla Coqueiro, Ananda Amaral e Marisa Protásio.

Aos que amam a Legião Urbana; especialmente, Renato Pedrecal Jr., Francisco Gutemberg, Francisco Lima, Adriana Telles, Orlando Billy, Fabíolla Borges, Lima Trindade e Dionne Barreto.

E para João Filho, meu plâncton, minha superfície, meu cavalo marinho, minha vertigem, caco de vidro e modulação da vida inteira.

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AGRADECIMENTOS

A meus pais (seu Orlando e dona Nila), meus irmãos (Jacque, Júnior, Fabrício, Fabiano, Fabíolla e Rodrigo) e sobrinhos (Enzo e Lara), por não deixarem nunca secar o fluxo do amor e a doce alegria que toda boa família sabe ter.

À turminha Gallo & Pedrecal (Renato, Andréa, Hanna Clara e Arthur Micael), minha segunda família, pelo carinho com que sempre me recebe em Belo Horizonte.

Ao meu orientador Maurício Vasconcelos, uma cara interlocução, na academia, na escrita e na vida.

A Bruno Leal e Silvana Pessoa, pelas críticas e sugestões valiosas dadas na qualificação.

Aos amigos Ananda Amaral, Alex Simões, Marcus Vinícius Rodrigues, Viviane Freitas, Lima Trindade e Suênio Campos de Lucena, pelos empréstimos de livros e pelas conversas pacien- tes e produtivas.

A Adriana Telles (interlocução imprescindível) e Arla Coqueiro, pelo apoio emocional, práti- co, logístico e etílico.

A Cristiane Oliveira, por ter passado todo o ano de 2007 modulando uma cantiga “Állex, es- creva logo essa tese, Állex escreva logo essa tese, Állex, escreva logo essa tese, Állex, escre- va...” — ei-la, Cris!

A Renato Pedrecal Jr., pelo envio da trilha sonora de todas as tardes de pesquisa.

A Paula Góes e Seymour, pela gentileza no socorro de última hora aos problemas idiomáticos.

À literatura e à música, extensões dos olhos, dos ouvidos, da alma e do corpo.

Urbana Legio omnia vincit.. Força sempre.

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Londres é um deserto sem seus pés deliciosos e todas as casas de bo- tões se transformam em sementes: urtigas e cicuta são a única coisa para usar na sua ausência. Oscar Wilde, Carta a Bosie

Tenho trabalhado tanto, mas penso sempre em você. Mais de tardezi- nha que de manhã, mais naqueles dias que parecem poeira assentada aos poucos, e com mais força enquanto a noite avança. Não são pen- samentos escuros, embora noturnos. Tão transparentes que até pare- cem de vidro, vidro tão fino que, quando penso mais forte, parece que vai ficar assim clark! E quebrar em cacos, o pensamento que penso de você. Caio Fernando Abreu, Carta anônima

Tudo que levamos a sério torna-se amargo. Assim os jogos, a poesia, todos os pássaros, mais do que tudo: todo o amor.

De quando em quando faltaremos a algum compromisso na Terra, e atravessaremos os córregos cheios de areia, após as chuvas Alberto da Cunha Melo, Relógio de ponto

A subjetividade, o íntimo, o que a gente chama de subjetivo não se coloca na literatura. É como se eu estivesse brincando, jogando com essa tensão, com essa barreira. Eu queria me comunicar. Eu queria jogar minha intimidade, mas ela foge eternamente. Ela tem um ponto de fuga. Ana Cristina Cesar. Escritos no Rio

Vamos deixar as janelas abertas Deixar o equilíbrio ir embora Cair como um saxofone na calçada Amarrar um fio de cobre no pescoço Renato Russo, Depois do começo Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

RESUMO

Estudo sobre as particularidades da abordagem do mito do amor nos textos de Caio Fernando Abreu e Renato Russo, através de um recorte dos escritos que melhor explicitaram as relações poéticas entre trajetória pessoal, olhar crítico e sociabilidade dos afetos. As possibilidades de articulação das representações amorosas com as intervenções criativas da escrita e a compre- ensão das formas de elaboração ético-política das vivências afetivas não pretendem negar as certezas precárias a que se pode chegar num empreendimento íntimo. Assim, tomam-se como operadores de leitura os conceitos foucaultianos de microhistórias, dispositivo histórico- cultural e formas de vida, e incorpora-se o deslizamento de uma escrita deleuzeana, a fim de não fixar o jogo de encontros e perdas dos conceitos/saberes no espaço sempre outro do signo poético. A partir de comparações, leituras, análises de elementos poéticos e compreensão das conjunturas histórico-político-sociais que marcaram as gerações 60-70-80-90, chega-se à con- clusão de que a escrita inventiva ainda constitui um dos lugares mais privilegiados para se refletir sobre as problematizações dos afetos, a produtividade de um olhar crítico e as media- ções poéticas e culturais.

Palavras-chave: Caio Fernando Abreu; Renato Russo; Amor; Linguagem Poética; Represen- tação; Trajetória Pessoal.

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ABSTRACT

A study of the particularities of the approach to the myth of love in the texts of Caio Fernando Abreu and Renato Russo, through extracts from the authors that best explain the poetic rela- tionship between their personal trajectory, critical eye and sociability of affection. The possi- bilities of articulating representations of love through creative writing and the understanding of how ethical and political formulations of emotional experiences are not meant as denials of the precarious certainties feasible in an intimate venture. Foucaultian concepts of micro- histories, historical-cultural devices and life forms are taken as conceptual references, and Deleuzean writing intended not to fix the play between meeting and loss of the con- cepts/knowledge belonging to fields other than the poetic sign taken into consideration. From comparisons, readings, analysis of poetic elements and the understanding of historical- political-social contexts marking the generations of the 60s to 90s, it is possible to conclude that inventive writing remains one of the most privileged spaces for reflection on problems of affection, the productivity of a critical eye and cultural and poetic mediation.

Keywords: Caio Fernando Abreu; Renato Russo; Love; Poetic Language; personal enterprise, representations.

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SUMÁRIO

PREÂMBULO: OU UMA COREOGRAFIA, ASSIM, QUASE POSSÍVEL ...... 9

CAPÍTULO 1 PERAMBULAÇÕES DO AMOR NO TEMPO E NA ESCRITA ...... 17

1.1 QUANDO SE APRENDE A AMAR O MUNDO PASSA A SER SEU? ...... 38

1.2 PLÂNCTONS E LOBISOMENS ...... 47

1.3 O TEMPO DO AMOR HOJE: UMA COREOGRAFIA DESPEDAÇADA ...... 54

CAPÍTULO 2 CAIO FERNANDO ABREU: O ETERNO DANÇARINO DO AMOR ...... 71

2.1 DAS ESTRELAS CADENTES E DOS CACOS-DE-VIDRO ...... 84

2.2 FEITO DE CARNE, FLUXOS E FUNDURAS ...... 97

2.3 PLÂNCTON É UM BICHO QUE BRILHA QUANDO FAZ AMOR ...... 106

2.4 QUANDO NADA MAIS HOUVER, EU ME ERGUEREI CANTANDO ...... 114

2.5 ANA C. E CAIO F.: AS MARCAS DE UMA INTIMIDADE ...... 123

CAPÍTULO 3 RENATO RUSSO: O LOBISOMEM JUVENIL ...... 137

3.1 SOU MEU PRÓPRIO LÍDER, ANDO EM CÍRCULOS, ME EQUILIBRO ENTRE 142 DIAS E NOITES ......

3.2 CONSEGUI MEU EQUILÍBRIO CORTEJANDO A INSANIDADE ...... 164

3.3 SOU UM ANIMAL SENTIMENTAL, ME APEGO FACILMENTE AO QUE DESPERTA MEU DESEJO ...... 173

3.4 DAI-ME DE BEBER QUE TENHO UMA SEDE SEM FIM ...... 186

3.5 COM VOCÊ POR PERTO EU GOSTAVA MAIS DE MIM ...... 200

CAPÍTULO 4 SUPERFÍCIES REFLEXIVAS: AIDS, POESIA E VIDA ...... 205

4.1 SOMOS TODOS LAIKAS URRANDO PARA O INFINITO ...... 223

4.2 UM CACHORRO VIVO DENTRO DO ESTÔMAGO, QUERENDO SAIR ...... 250

IMPROVISAÇÕES FINAIS OU DE COMO CANTAR NAS PRÓXIMAS CRISES ...... 261

REFERÊNCIAS ...... 267

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PREÂMBULO:

OU UMA COREOGRAFIA, ASSIM, QUASE POSSÍVEL

há-de flutuar uma cidade no crepúscolo da vida pensava eu... como seriam felizes as mulheres à beira mar debruçadas para a luz caiada remendando o pano das velas espiando o mar e a longitude do amor embarcado

por vezes uma gaivota pousava nas águas outras era o sol que cegava e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar se espantasse com a minha solidão

[...] um dia houve que nunca mais avistei cidades crepusculares e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta inclino-me de novo para o pano deste século recomeço a bordar ou a dormir tanto faz sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade

Al Berto Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

isseram que se minha voz tivesse força igual à imensa dor que sinto, meu grito D acordaria não só a minha casa, mas a vizinha inteira... Isto que poderia ser uma dança começa de um ponto desconhecido, como num impulso que ainda não amanheceu. É preciso se deixar ficar, mas não permanecer, devagar, porém veloz, movimentando-se nesse escuro- luminoso. Não sei exatamente como de súbito eu soube que a dançaria por muito tempo. Localizo, quase sempre, o vibrar calmo-inquieto de certas perguntas, que vão comparecendo ao centro do palco, fazendo espatifar caminhos, ritmos, escolhas, que outrora eram certezas. Nesse espaço que se abre cada vez mais infinito e pessoal, percebo o mesmo que qualquer falante, poeta, escritor, ensaísta, filósofo, usuário, enfim, desse mecanismo complexo e fascinante que é a língua, que há uma escrita de si, não a ser revelada ou prestes a cair do céu, mas a ser tramada ou encenada. Desejar neste percurso entrelaçar minha micro-porém-não-tão-pequena-história de atrito e prazer com a linguagem às outras tantas microformas (contos, poemas, canções, vide- oclipes, romances, diários, cartas, bilhetes, desenhos esboçados, fotos amareladas, afetos ra- biscados como em vitrais que simulam luz e movimento) que vão modular esta escrita de mim é trazer “à folha branca”, “ao mundo convite”, aquela força de intervenção percebida nos tex- tos lidos, desdobrados, rasurados, que compõem o que chamamos, assim, descuidados, de a minha formação. É sonhar justamente o se-inscrever-enquanto-corpo-desejo, enquanto gesto- artefato, em vez de almejar tão somente um mero pretexto de escrita ou de cumprimento bu- rocrático de etapas. É claro que isto que se chama desejo pode ser apenas um delírio, um en- gano de mim posto assim “na contramão” de uma superfície; contudo, onde estaria a graça de qualquer empreendimento pessoal se não nos permitíssemos ao menos o sonho de sermos, “quase por um segundo”, uma outra palavra que desloca, um outro “jeito de corpo”? Se, como adverte Roland Barthes (1977), “a linguagem é uma legislação”, e “toda língua é uma reição generalizada”, ao menos aqui posso escolher do que falar, por onde ir, por que seguir e quem me faz companhia. Lembro dos primeiros encontros com a escrita de Caio Fernando Abreu, Ana Cristina Cesar, Morrissey, , Renato Russo. Daquilo que me foi marca, do que foi encantamento, despudor, alegria, tristeza, atalhos, possibilidades, embriaguez, doçura. Nas tantas entradas e saídas desses textos, minhas próprias “composições rodopiavam”, feito uma multidão que, depois de herdada, faz-se novamente noite e se faz minha. Creio que deve haver mesmo em toda afinidade eletiva aquele esfumaçar-se dentro do que é do outro, aquele se perder enquanto gente e bicho que subitamente se encontrou. Afinal, ao escolher falar de quem amamos, e não apenas do que pode compor a digamos assim lógica de um caminho, estamos nos posicionando com os objetos, num trabalho tantas vezes Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

prazeroso tantas vezes insano de intercambiamento disto que se chama poesia e se chama uma vida. E Caio Fernando Abreu completaria, convicto, que amar demais assim deve ser suficiente para resolver essa escrita de si ou esse investimento que se faz força. Devo confessar, então, que é dessa maneira apaixonada, meio démodé, quem sabe, e, sobretudo, viva, que isto-que-se-pensa-eu quis se inscrever junto a tudo aquilo que era deles, e agora restou nosso. Não quero dizer, entretanto, que nesta espécie de roteiro pessoal me ocupei apenas deste meu auto-retrato de leitora ou mesmo desta vontade de me reinscrever na pele dos afe- tos, mas que no incorporar de tantos amores lidos/vividos pretendo tornar o mais cristalino possível o que move este traçado, o que dá ritmo a esta materialidade, o que emparelha e faz dançar as questões que ora trago à pauta. A escolha por um percurso em que a prática de aná- lise dos objetos mostra os emaranhados do próprio ato de se autocompreender junto à paisa- gem não constitui necessariamente um operador de escrita inaugural, mas, antes, uma conso- nância com a mobilidade de papéis, de saberes e de discursos que configuram, na contempo- raneidade, a abertura e intercambiamento das novas articulações críticas. Uma das primeiras questões que me chamaram a atenção quando comecei a me interessar pelo tema das representações amorosas e, principalmente, homoeróticas, nos contos de Caio Fernando Abreu e nas letras de Renato Russo, foi em que nível ou plano estético- cultural os desenhos propostos por eles podiam rasurar o modelo de amor romântico construído pelo discurso ocidental — paradigma que sempre me inquietou. Tal inquietação vem de um desejo antigo, fruto de tantas entradas e saídas nas narrativas mais tradicionais, nas quais as representações do amor, ainda que fascinantes, deixavam-me com a sensação de que não eram escritas para mim, que eu não fazia parte delas, que se tratavam, na verdade, de um mundo paralelo ao meu, onde só era possível entrar com aquele clássico gesto de sobrancelhas arqueadas, praticando o velho papel de observador atento e distanciado. Em outras palavras, eu me perguntava, impunha, determinava a procura de uma alternativa para minha própria demanda de representação amorosa. Um desejo assim tão descuidado (diria Caio Fernando Abreu) não surge do acaso, e, ao me deixar ficar mais à vontade dentro dele, comecei a perceber em sua fluência uma estreita ligação com outro gosto de leitora: a preferência por histórias de amores entre homens; a tendência a achar que em André Gide ou Hubert Fichte, por exemplo, havia mais um pouco daquele sabor, um pouco daquela textura, um pouco daquele cheiro que me fazia tão bem. Evidentemente que não foi difícil situar esse gosto no plano do que chamamos idiossincrasias. Afinal, não constitui nenhum segredo que para nós, seres humanos, a dinâmica do sabor acontece justamente a partir do atrito/fluência Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

de nossa saliva com aquela natureza inapreensível dos alimentos. É por isso que o que chamamos tão naturalmente de paladar é tão somente a quebra de fronteira entre nossos fluidos e os do mundo — exatamente por isso, pessoal, infinito e intransferível. O encaminhamento “natural” desta inquietação seria a busca de inserção no debate acerca das representações homossexuais (ou gays ou homoafetivas ou homoeróticas ou que- er), que constituem, cada uma dentro dos limites de suas perspectivas histórico-político- culturais, um arcabouço teórico do qual um interessado no tema e em seus desdobramentos pode lançar mão. As diferenças entre os operadores de leitura e o campo de pesquisa de cada uma dessas linhas investigativas, bem como de suas implicações teóricas e práticas, já foram bastante exploradas e postas na superfície reflexiva da produção de conhecimento e circulação de leitura de objetos. O que se faz com esses estudos acerca das relações, comportamentos, identidades, práticas e desejos entre pessoas do mesmo sexo é assunto de debates desenvolvi- dos tanto nos encontros e congressos literários quanto nos cursos de pós-graduação brasilei- ros. Em Literatura e homoerotismo (2006), José Carlos Barcellos chamou a atenção para o cuidado que todo pesquisador deve ter com “as perspectivas teórico-metodológicas implica- das nas múltiplas práticas críticas que vêm se desenvolvendo entre nós” (2006, p.7). Seu aviso não representa apenas uma praxe, tomada por aqueles que consideram uma pesquisa acadêmi- ca um lugar de legitimação das trocas, dos conhecimentos (cujo rigor envolve sujeito, objeto e episteme escolhida, e que, como tal, deve ser cuidadosamente resguardada de meros modis- mos e investigações conduzidas tão somente pelas sincronicidades de seus praticantes), mas, sobretudo, um posicionamento claro acerca de um certo nó que se instala em qualquer campo de produção de teoria e prática de saberes. No caso dos estudos acerca das representações entre pessoas do mesmo sexo, o nó se define como os truncamentos — denominados por ele de “particularidades incontornáveis” — entre o desenvolvimento de pressupostos teóricos, por vezes até contraditórios, que contemplam orientações políticas e culturais, e a condução práti- ca desses operadores e paradigmas de leitura no plano do envolvimento pessoal e produtivo. Uma das dúvidas que seu texto aponta é sobre o deixar-se-conduzir ao foco do debate por considerar pertinente um engajamento, escolha ou orientação epistemológica em evidência, pois tal postura, movida pelo velho desejo de ser/estar antenado com o que vem se desenvolvendo “no sistema mundial de produção e circulação do conhecimento” (2006, p.9), não se constitui enquanto força criativa, já que seus sujeitos conseguem apenas se atualizar, lidando de alguma forma com essa “defasagem brasileira” ou entrada tardia em certos debates teóricos provocada pela nossa posição de País periférico. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Outro problema abordado por Barcellos é o tipo de inserção a ser procurada (nesse espaço de articulação de saberes) por aqueles que, antes de se definirem como pesquisadores interessados no debate dos estudos homoeróticos, são, sobretudo, amantes da linguagem poé- tica. Para esses, muitas vezes, os operadores de leitura oferecidos quer pelos estudos gays e lésbicos, quer pelos estudos homoeróticos, quer pela Teoria Queer, acabam catalisando ou se aproximando muito mais das discussões relacionadas com aquele olhar cultural e antropoló- gico posto em circulação pela emergência dos estudos culturais (que tendem a enxergar a lite- ratura como apenas uma linguagem entre as demais) do que de um investimento epistemoló- gico capaz de dar conta dos elementos fundamentais e orientadores dos trabalhos movidos, sobretudo, pela sedução da dança vertiginosa dos signos poéticos, por esse deslizar de uma superfície polissêmica a outra, por esse prazer de entrar e sair de lugares tanto legítimos quan- to clandestinos, visitando ora as representações hegemônicas ora as heterogêneas e habitando, por vezes o extremo, por vezes o incompleto, da escrita. Esse impasse debatido dentro dos próprios estudos homoeróticos, por textos como o de Barcellos, Foreaux e Chiara, talvez, para muitos, já tenha sido resolvido ou seja apenas extensão tardia de reflexões mais amplas propostas por Costa Lima ou Leyla Perrone-Moisés ou mesmo Silviano Santiago — que não se inscrevem, evidentemente, no debate a partir das mesmas angústias. No entanto, o que não se resolve é o retorno, para um interessado na lin- guagem poética, da sensação de estar apenas compondo rótulos para um perambular contem- porâneo — talvez até eficazes quando o que se pretende é, acima de tudo, uma inscrição na cena, mas não coerentes para quem almeja uma conexão mais pessoal entre intervenção e ori- entação teórica, e não somente reiterações de reiterações. Para esta pesquisa, o problema maior envolvia a escolha das teorias, uma vez que antes de qualquer análise era preciso conciliar o desejo de compreensão dos desenhos amoro- sos de Caio Fernando Abreu e Renato Russo — dois autores assumidamente gays, escolhidos como objetos desta leitura — com a minha prática “literária” de não exatamente eleger os objetos por causa das questões relativas aos modos específicos de compreensão do homoero- tismo, ou da prática amorosa entre parceiros do mesmo sexo. Antes de me preocupar com as formas de compreensão, valorização, teorização e intervenção das experiências homoeróticas desses autores, importava não perder a orientação espontânea da festa da linguagem promovi- da pelos signos poéticos. Embora para muitos possa parecer datado o problema de articulação entre estudos literários e campo cultural, como eterna estudante de Letras, profissional da palavra, professora de literatura, leitora que prefere quase sempre os desenhos amorosos literários Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

entre meninos, guardo uma permanente inquietação ou crise teórica, como numa espécie de febre que não passa. É realmente possível que essa propagada inserção da linguagem literária no plano da cultura, máxima que tem orientado uma multiplicidade de posicionamentos que, ao longe, parecem fascinantes e diversos, mas de perto, muitas vezes, mostram-se absurdamente normais, funcione como um lugar de conforto ou de intervenção crítica. Para mim, entretanto, todos os truncamentos e nós retornam a cada instante em que releio os textos poéticos e caminho em direção às teorias. Como tudo é móvel e tudo se desfaz ora caco ora purpurina na linguagem poética, escrever sobre poesia é, para mim, um lento desaprender de rumos. Não quero dizer com isso que acredito em operadores binários e hierarquizantes, já desconstruídos pelas tantas teorias que postularam a crise do sujeito, o perigo da fixação de identidades, a necessidade de refletir sobre a fragmentação e abalo dos quadros de referência que davam a ilusão de ancoragem estável ao mundo. Ao contrário, essas transformações, li- gadas às noções culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, permitiram a troca de uma pseudo-solidez por uma mobilidade dinâmica, são não apenas pe- dra de toque na linguagem poética, como indicativos de certos atalhos, mesmo indiretos, deste recorte.

Na dissertação de mestrado, Atritos e paisagens: um estudo sobre a loucura e a homossexualidade nos contos de Caio Fernando Abreu1, fiz um levantamento dos contos de Caio Fernando Abreu que mostravam um entrelaçamento do tema da loucura com o da homossexualidade. A idéia era mapear esses conflitos e os espaços de circulação, propostos pelas imagens, flutuações e direcionamentos dos textos, para colocar em discussão as relações entre esses dois temas. A partir de uma orientação foucaultiana, mas que se desenvolveu predominantemente deleuzeana, procurei seguir as linhas que distribuíam as diferentes concepções acerca da loucura e da homossexualidade, sempre privilegiando a multiplicidade e o caráter questionador presentes nas representações do autor. Percebi que, ao optar pelas configurações da loucura como um lugar de libertação e vivência dos desejos mais íntimos dos indivíduos, e da homossexualidade como uma paisagem diversa e multiforme para desejos, experiências e comportamentos sexuais, CFA apontava para espaços de questionamentos e singularizações dessas experiências, elegendo paisagens fragmentadas e

1 Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística, da Universidade Federal da Bahia. Salvador, em 2001. Documento disponível na Biblioteca da instituição. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

saídas precárias, momentâneas, para os conflitos entre os indivíduos e a ordem social. Suas intervenções, à maneira foucaultiana, terminam por não centralizar o debate, abrindo mão de noções fixas para as representações. Essa liberdade com cheiro, textura e paladar tão deliciosamente esquisito provocou o desejo de continuar a investigar outros aspectos de sua obra. Dentre esses, o que me chamou mais a atenção foi a abordagem e problematização do mito do amor. Como todo desejo, esse também foi se metamorfoseando, trazendo novos nomes, ou- tros rostos, sugerindo cenas. Assim, entre tantas afinidades possíveis, escolhi também a com- panhia de Renato Russo, suas formas de dizer o amor em narrativas polifomórficas, nas quais é possível flagrar conflitos de inserções e intervenções geracionais, mediados pela singulari- zação de seus jogos poéticos e discursivos, cujo pano de fundo, não raro, é a paisagem amoro- sa. Este empreendimento se deu, então, pela vontade de ampliar a discussão acerca do mito do amor, trazendo para a sua cena as montagens plurais de um dos mais representativos artistas contemporâneos que despontou no universo da cultura rock, num tempo de reelaboração dos discursos e representações sobre a experiência de ser jovem e sobre os problemas culturais e políticos que afetaram a minha geração. Os desdobramentos deste passeio, os passos disto que precisa ser uma dança, assim se estruturaram, como forma de melhor expressar meu deslocamento neste espaço cada vez mais infinito e pessoal:

Um primeiro capítulo, intitulado PERAMBULAÇÕES DO AMOR NO TEMPO E NA ESCRITA, no qual procuro expor os operadores mais importantes deste percurso. Nele interesso-me ain- da por inscrever isso que chamamos amor em sua própria zona de fuga e materialidade, evi- tando as prisões e reducionismos que as tentativas de definições e capturas dele enquanto i- manência trazem. Lançando-me nos pântanos e na multiplicidade de seus jogos representati- vos, oriento-me por um recorte do mito possibilitado por uma revisão e, sobretudo, abertura trazida pelos Estudos Literários contemporâneos acerca da capacidade de se trabalhar com o conceito de representação. Nesse sentido, incorporo os avanços das leituras sobre a pertinên- cia do operador representação na escrita contemporânea e nos espaços de liberdade trazidos pelas trocas entre as demais linguagens culturais. Como o mito do amor é construído a partir de um intercambiamento dinâmico entre a elaboração de subjetividades e as formas de captura e cooptação dos afetos, busquei uma compreensão desses espaços onde ora se singulariza ora se perde o fluxo do amor.

No capítulo dois, intitulado CAIO FERNANDO ABREU: O ETERNO DANÇARINO DO AMOR, interesso-me pelas metamorfoses de Eros, que ora unem poros masculinos ora ocupam-se de Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

contrários e quase sempre se põem à deriva de qualquer projeto definitivo de demarcação. Para acompanhar melhor a abordagem de Caio Fernando Abreu, que coloca na pauta a questão do mito do amor romântico e de suas possibilidades de funcionar como efeito de verdade (obtida a partir de investimentos subjetivos), mas, também, como pulsação de um engendramento doloroso (quando incorporados pelos sujeitos como uma verdade a ser desvelada), foram usados operadores de leitura acerca da paisagem cultural onde o autor se insere.

No terceiro capítulo, que chamei de RENATO RUSSO: O LOBISOMEM JUVENIL, procurei mapear o mito do amor nas letras de algumas das canções, como forma de pontuar as multi- formidades ou modulações que o compositor empresta às tantas faces do amor. Creio ser im- portante salientar que me interessou, neste percurso, menos um esquadrinhamento verticaliza- do dessas formas e mais a espacialização de suas elaborações estéticas. Entendo a visão de amor de Renato Russo como uma paisagem particular, ou como um universo singular, que se destaca através das suas maneiras de se expor como artista, de interpretar e se comportar no palco — maneiras distintas das dos demais de sua geração, e, paradoxalmente, conectadas a seu contexto.

O quarto e último capítulo, intitulado SUPERFÍCIES REFLEXIVAS: AIDS, POESIA E VIDA, formou-se a partir da percepção de que o advento da AIDS trouxe mudanças significativas para os anos 1980, intervindo na elaboração das subjetividades, nas relações socioafetivas e na própria estruturação das instâncias de poder. Ao comparar as visões e posturas dos dois autores diante dessa contextura, quis destacar as formas distintas com que ambos se inseriram naquele cenário conturbado pelo fantasma da epidemia, e, por conseguinte, procurei assinalar o papel que cada um assumiu no debate. Para tornar mais claras essas intenções, excluí desse capítulo operadores de leitura que capturassem as identidades sexuais dos dois autores, pois, mesmo lidando com autores assumidamente gays, interessava-me menos a fixidez e mais a mobilidade dos desejos (meus/deles). Dizem que depois do começo, o que vier pode começar a ser o fim. Nos passos propostos nesta dança, ensaiei excessos e persegui os trilhos oferecidos pela corporalidade dos textos, suas intervenções individuais e as possibilidades de suas espacializações coletivas. Através dessas janelas abertas, creio que se pode não deixar o equilíbrio ir embora, mas estar disposto a, de vez em quando, cantar certas canções que nos vêm em línguas e modos estranhos. Os movimentos impõem-se sempre renovados e sempre outros. Neste estar à vontade dentro dele, muito me vale se qualquer dessas palavras que ora grito puder acordar um pouco isto que chamamos paisagem. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

CAPÍTULO 1 PERAMBULAÇÕES DO AMOR NO TEMPO E NA ESCRITA

Este o nosso destino: amor sem conta, distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas, doação ilimitada a uma completa ingratidão, e na concha vazia do amor a procura medrosa, paciente, de mais e mais amor. Carlos Drummond de Andrade, Amar

Acreditei que se amasse de novo esqueceria outros pelo menos três ou quatro rostos que amei Num delírio de arquivística organizei a memória em alfabetos como quem conta carneiros e amansa no entanto flanco aberto não esqueço e amo em ti os outros rostos. Ana Cristina Cesar, Contagem regressiva Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

amor, assim como os sonhos, se desenvolve numa área indefinida, uma zona Overtiginosa de instabilidade e deslizamentos para onde somos, freqüentemente, tragados e expulsos, como nos jogos perversos de atração e repulsa. Qualquer tentativa de apreensão ou de captura dele nos lança nesse pântano, estranho e elástico, da imaterialidade do amor e, ao mesmo tempo, dos jogos múltiplos de suas representações. Quando me pergunto o que é o amor, imediatamente outra zona instável se abre; nela, vejo-me ainda mais perdida num emaranhado de conceitos e frases feitas, oriundos de lugares diversos do conhecimento humano. Nesse espaço híbrido, onde se misturam fragmentos de romances, contos, poemas, relatos históricos, letras de músicas, cenas de filmes, ensaios e teorias sobre o tema, existem ainda milhares de pontinhos luminosos que trazem outras tantas experiências amorosas, de pessoas amigas, conhecidas, minhas, nossas, lendas urbanas, modernas, antigas, que vão se agregando como pequenas memórias desse longo aprendizado que é o amor. Parafraseando Jorge Luis Borges num estudo sobre o Oriente — que por sua vez pa- rafraseava Santo Agostinho, em suas considerações acerca do tempo —, quero manter acesa, durante todo este percurso, uma lembrança: a de que ocorre com o amor tanto o que o poeta argentino percebeu ao tentar definir Oriente e Ocidente, quanto o que já proclamava o santo africano sobre o tempo: “o que é o amor? Se não me perguntam, eu sei. Se me perguntam, desconheço”2. Quero dizer com isso que desse eterno deslizar do amor não pretendo inventar estratégias acadêmicas para mascarar suas fugas, nem me deixar levar pela zona de conforto das falsas fixações. O que proponho a mim mesma, neste espaço de certezas instáveis, ima- gens metamorfoseantes e conceitos precários é a sincera disposição do viajante: ir em frente, sempre, sem desejos pragmáticos de chegadas que predeterminam as partidas, mas sem des- prezar, contudo, a curiosidade eterna pelos portos provisórios. O tema do amor costuma ser bastante trabalhado na criação artística e estudos literários. Suas representações, assim como os valores que assume, variam não apenas de uma época para outra, mas, também, dentro dos diversos gêneros artísticos e caminhos teóricos nos quais são construídas, retomadas, afirmadas, negadas. Se pudéssemos pensar na possibilidade de uma história dos temas mais constantes da literatura, da música, do cinema, da pintura, do

2 Borges cita a seguinte passagem de Santo Agostinho: “O que é o tempo? Se não me perguntam, eu sei. Se me perguntam, desconheço”, mostrando que o fato de algo nos parecer verdadeiro ou real – como os termos Oriente e Ocidente – não é garantia de que possamos encontrar uma definição que dê conta dos aspectos deslizantes desses termos: “O que são o Oriente e o ocidente? Se me perguntam, desconheço. Vamos procurar uma aproximação”. Cf. BORGES, 1980, p.71. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

teatro e demais artes, tal pesquisa provavelmente apresentaria o amor como um dos assuntos mais produtivos, quiçá o preferido de oito entre dez criadores. E essa recorrência não acontece apenas devido ao fascínio que tal tema exerce sobre os artistas e estudiosos da arte e da cultura, mas, principalmente, porque sua abordagem permite uma gama de reflexões sobre o próprio mundo onde vivemos. Ou seja, ao falar de amor e ao interpretar tais falas, muitos poetas e artistas, juntamente com seus críticos e leitores, podem estar falando não apenas da expressão de um sentimento particular, buscado pelos mais diferentes seres humanos nas mais diversas partes do mundo, mas, sobretudo, das mediações assumidas entre as subjetividades e a ordem objetiva na qual todo sujeito está inserido — abordar o amor é abordar os valores morais, políticos, sociais, religiosos e culturais que nos formam e com os quais formamos nossos discursos, nossas produções. Nesse sentido, as representações do amor servem tanto a projetos coletivos quanto a investimentos individuais, devido às suas implicações e significados múltiplos. Não quero dizer com isso que me guio exclusivamente pela busca da exposição des- sas formações discursivas, numa perspectiva multiculturalista ou mesmo sociológica dos tex- tos artísticos, que, nesse caso, seriam reduzidos a um documento ou testemunho social. En- tendo essas relações como algumas entre tantas que podem ser recortadas, conectadas a outras ou completamente isoladas numa análise. Mas creio que, para adentrar nessa zona movediça e fascinante das representações do mito do amor em Caio Fernando Abreu e Renato Russo, pre- ciso, antes, revisar as possibilidades de uso que o termo “representação” ainda permite, uma vez que, desde a Antigüidade, ele cobre uma intensa produção de definições e conceitos acer- ca da maneira como a literatura se apropria do real e o modifica. Quando falamos em representação, fatalmente algumas palavras aparecem como que a disputar o leme do barco e, queiramos ou não, temos de dar conta delas, sob pena de elas não darem conta daquilo que afirmamos que são. Dito de outro modo, entendo que falar em representação é repensar não apenas os sentidos adquiridos por tal palavra dentro dos Estudos Literários, mas, também, naquilo que ela inclui e exclui quando transformada num operador de leitura. Quando pronuncio “representação”, os outros principais signos que surgem — co- mo num círculo paradigmático que pode levar tanto a ordenações quanto ao caos — são: con- templação, imitação, cena, imagem, reflexo, realidade, mimesis, espelho, captura e, já num deslizamento barthesiano3 de pensamento, possibilidades e impossibilidades de produção de realidades.

3 Para Barthes, a mimesis constituía a segunda força da literatura (a primeira seria a mathesis e a terceira, a semiosis). Cf. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1980. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Representar, de modo geral, significa colocar uma coisa no lugar de outra que está ausente. Assim como na linguagem diária se representam, através dos signos, de forma simbólica, objetos, seres, lugares, sensações, pensamentos, presente, passado e futuro, os escritores e artistas também representam seus universos imaginários e suas subjetividades, em conflito ou em harmonia com a ordem objetiva. Há várias formas de se entender a representação, algumas delas levam à idéia de contemplação do real, outras à noção de reflexo ou imitação, outras ainda à desconstrução4 ou renovação de paradigmas. Numa tentativa de enumerar essas tantas maneiras de estudar a representação, é possível destacar pelo menos sete formas de pensá-la: 1) Refletindo sobre o uso especial da linguagem na literatura, seu mecanismo especí- fico de elaboração de sentidos, estabelecido a partir de uma tensão constante entre forma e conteúdo (que vai desaguar na velha questão do desvio literário ou na “literariedade” dos formalistas russos, hoje em baixa devido às constantes críticas e desconstruções sugeridas pelos Estudos Culturais); 2) Comparando, aristotelicamente, a maneira como as diferentes formas de criação trabalham com a imitação da realidade, como elas podem ser diferenciadas ou aparentadas a partir do ritmo, da linguagem e da harmonia que propõem (que vai desembocar num estudo a partir dos elementos significativos de cada gênero ou subgênero literário; uma especificação da mimesis em cada categoria textual); 3) Buscando a relação entre signo, coisa designada e idéia que os interligam (que conduzirá à concepção saussuriana de significante-significado, ou à relação triádica do signo, representamen-objeto-interpretante, tal como a concebe Peirce)5; 4) Analisando as maneiras de produção de saber possibilitadas por cada época, a partir da forma como cada uma lidou com os signos e as realidades por eles representadas (que levará, por exemplo, às formulações foucaultianas acerca da episteme da história do Ocidente)6;

4 O termo aqui é utilizado a partir da leitura do termo/gesto/posicionamento proposto por Jacques Derrida, para quem, “a desconstrução é um modo de pensar a filosofia, ou seja, a história da filosofia no sentido ocidental estrito, e, conseqüentemente, de analisar sua genealogia, seus conceitos, seus pressupostos, sua axiomática, além de naturalmente fazê-lo não apenas de maneira teórica, mas também levando em conta as instituições, as práticas sociais e políticas, a cultura política do Ocidente”. Disponível em: . Acesso em out. 2007. 5 Sobre as teorias do signo, ver: Ferdinand SAUSSURE. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix, 1969. Charles PEIRCE. Semiótica. São Paulo, Perspectiva, 1987; ou ainda Lúcia SANTAELLA. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983. 6 Sobre a relação entre representação e episteme, ver Michel FOUCAULT. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

5) Concebendo uma oposição entre forma e fundo, elegendo aquela como superior a este (o que leva a um abandono da investigação da mimesis e de suas conexões entre texto e mundo, em favor da semiosis, com seus estudos acerca das ordenações lingüísticas e dos entrelaçamentos que essas produzem no texto)7; 6) Considerando uma correspondência entre as artes, especialmente a literatura, e o mundo real, com o universo onírico dos indivíduos (o que produziria no texto literário uma estruturação simbólica em que tanto o elemento pragmático — diretamente ligado à realidade concreta — quanto as lacunas e mutações apresentadas pela mimesis têm a mesma importância; perspectiva que leva às investigações orientadas pela psicanálise); 7) Compreendendo que a linguagem é engendrada a partir das experiências dos sujei- tos, e funciona como um lugar de construção tanto da identidade quanto da condição sócio- político-cultural desses sujeitos (tais elementos estariam, assim, sempre presentes no ato de produção, marcando o texto de forma determinante e definindo a realidade que ele deixa en- trever; posição que leva às perspectivas dos Estudos Feministas e dos Estudos Culturais).

Alguns desses modos de se pensar a representação literária são excludentes (literari- edade e multiculturalismo, por exemplo), embora muitos deles possam se entrelaçar numa análise, complementando-se ou permitindo que se siga em frente, diante de algum impasse ou limite teórico. A maioria, entretanto, surgiu da necessidade de rever as noções platônicas a- cerca da mimesis. Para Platão, a ação de representar pessoas, sentimentos e objetos estava diretamente ligada a uma noção de correspondência entre o abstrato e o real. Tal processo, obtido a partir de uma contemplação, tinha por objetivo separar aquilo que era autêntico, ver- dadeiro, daquilo que conduzia ao erro, à dissimulação. Sua teoria se ergueu a partir da necessidade de distinguir o Mundo das Idéias (origem, matriz, modelo), do mundo das cópias (imperfeito, falso, refletido, dissimulado). Dentro dessa perspectiva, os artistas são vistos como imitadores de terceiro nível, uma vez que estão situados na última instância hierárquica da tríplice platônica: em primeiro lugar está o fundamento ou origem, no Mundo das Idéias, que fornece o princípio de derivação, seleção e discriminação das cópias; em segundo lugar está o artífice, materializando a idéia, no Mundo Sensível; em último, encontra-se o artista, imitando as coisas a partir das cópias desse Mundo Sensível. Assim, ao identificar a utilidade do poeta, ou do artista, e o efeito da sua arte

7 Consultar, a respeito, Terry EAGLETON. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Antoine COMPAGNON. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Trad. Cleonice Mourão. Belo Horizonte: EdUFMG, 2000. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

no público leitor, o filósofo vai afirmar que certas representações artísticas se afastam demasiadamente do modelo, conduzindo os cidadãos a um erro de percepção. Devido a essa capacidade “terrível” que a obra de arte teria de causar danos aos “homens de real valor”, é preciso impor aos poetas uma seleção rigorosa de sua entrada e saída na República:

[...] se viesse à nossa cidade algum indivíduo dotado de habilidade de assu- mir várias formas e de imitar todas as coisas, e se propusesse a fazer uma demonstração pessoal com seu poema, nós o reverenciaríamos como a um ser sagrado admirável e divertido, mas lhe diríamos que em nossa cidade não há ninguém como ele nem é conveniente haver; e, depois de ungir-lhe a ca- beça com mirra e de adorná-lo com fitas de lã, o poríamos no rumo de qual- quer outra cidade. Para nosso uso, teremos de recorrer a um poeta ou conta- dor de histórias mais austero e menos divertido, que corresponda aos nossos desígnios, só imite o estilo moderado e se restrinja na sua exposição a copiar os modelos que desde o início estabelecemos por lei, quando nos dispusemos a educar nossos soldados. (2000, p.154).

Restringir a liberdade de criação seria a forma encontrada para manter a ordem na polis ideal, pois, em geral, a concepção platônica pressupõe um efeito negativo da arte sobre o seu apreciador: a emoção causada pelo efeito estético prejudicaria o indivíduo no entendimen- to da verdade e no autocontrole. Por isso, ele discrimina o que as crianças e os indivíduos me- nos capazes de discernimento viriam a conhecer ou não. Em relação à capacidade de representação do real, Platão compreendia que na boa ar- te deveria existir a reprodução da similitude; ou seja, descreve-se algo que existe na realidade (Mundo Sensível) e que serve a um reconhecimento racional de seu fundamento (Mundo das Idéias). As imitações que rompem com a noção de semelhança são danosas aos indivíduos, por não se tratarem de reflexos dos objetos copiados; elas já são problemáticas por se consti- tuírem de uma visão espelhada da realidade, uma aparência ilusória, e, se nem dessa coisa espelhada são capazes de se aproximar, então, fatalmente, conduzirão os cidadãos à confusão e ao engano. O critério, portanto, para a comparação entre modelo e derivação, e sua conse- qüente hierarquização, é o da semelhança; o que leva a uma noção de construção da identida- de a partir do espelho ou da existência de um reflexo de uma coisa (original) na outra (cópia). As cópias deformadas são ruins, pois não trazem similaridade com o fundamento; as cópias boas são consideradas exemplares (moderadas) justamente por serem análogas ao modelo estabelecido. Aristóteles distancia-se da concepção platônica, identificando uma função na mimesis: a arte não seria apenas uma mera imitação da realidade (imitatio), mas uma imitação do imaginário, ou daquilo que poderia ser. Por isso, é útil tanto por seu caráter verossímil Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

quanto pela capacidade de purificar os sentidos (catarse). A verossimilhança é o resultado do processo artístico da mimesis e está ligada à realidade, mas à realidade ficcional. Para Aristóteles, a mimesis na obra de arte pode ocorrer tanto pela sua semelhança com o mundo real quanto pelo seu afastamento: “não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança ou necessidade” (1973, p.451). Dessa forma, se todos os gêneros poéticos elaboravam a arte da representação, a dife- rença estava na forma e na escolha dos objetos. Na tragédia, por exemplo, a representação de um drama envolve a ação do(s) ator(es) e do texto encenado, e gera uma reação no público espectador. O objeto artístico supõe uma interação entre autor e receptor, considerando que a obra só se realiza pelo efeito causado nesse último. Assim, Aristóteles parte para uma especi- ficação da representação em cada categoria ou gênero. Ao mostrar a diferença entre o histori- ador e o poeta, ele aponta para o fato de a história tradicional se caracterizar pelo discurso científico e objetivo (no qual se encontra documentada a realidade empírica), enquanto a obra de arte possui a equivalência da verdade: mesmo não sendo verdadeira, tem na sua verossimi- lhança a característica responsável pela possibilidade de algo vir a ser ou acontecer. O pensamento aristotélico traz para o conceito de representação do mundo a idéia de que a realidade na ficção é uma operação obtida a partir da imaginação de seu criador; não pode, portanto, ser submetida à verificação extratextual; no entanto, seu poder de causar ve- rossimilhança se dá a partir de uma relação significativa com o real, uma vez que a criação não parte de um vazio, e sim de algo referencial. As estruturas lingüísticas, sociais e ideológi- cas reais fornecem o material para que o artista crie o mundo imaginário, enquanto os gêneros fornecem os meios, os objetos e as formas de imitação, elementos que interferirão no ritmo e na harmonia de cada texto. A contribuição de Aristóteles levou, mais tarde, à criação do conceito de autonomia da mimesis literária, obtido a partir de uma idéia de que a realidade artística é construída por uma linguagem semanticamente autônoma em relação ao mundo em que vivemos; seus códigos, cenários, personagens, descrições, conflitos ideológicos etc. podem criar verdades a partir da representação de situações e seres irreais, como acontecimentos fantásticos, lugares inexistentes, animais humanizados, pessoas metamorfoseadas, amores impossíveis etc. Outra concepção derivada do texto de Aristóteles é a que leva a uma noção da diferença entre o discurso ficcional e o científico, sendo este uma instância que acreditava na reprodução fiel dos acontecimentos e na neutralidade do discurso (utopia científica), enquanto a ficção seria portadora de uma consciência permanente do real como “construção”. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Tais diferenças forneceram, durante algum tempo, operadores de leitura significati- vos, que distinguiam a representação literária da histórica, jornalística ou científica. Todavia, esses elementos não trazem mais uma conceituação segura, pois tanto a “neutralidade” do discurso científico cedeu lugar à consciência do jogo ambíguo entre o posicionamento do su- jeito que pesquisa frente ao objeto pesquisado, quanto a autonomia da arte foi confrontada a partir da exposição de seus vínculos ideológicos, capazes de lhe conferir força e prestígio nas instâncias políticas e intelectuais da sociedade e de, muitas vezes, perpetuar o discurso hege- mônico das classes dominantes. Interessado no mais baixo dos graus estabelecidos por Platão em sua escala hierár- quica, Gilles Deleuze8 propõe a reversão do platonismo — o que, precisamente, consistiria em afastar qualquer possibilidade de rever a teoria platônica a partir do rompimento promovido por Aristóteles. O autor compreende que a cisão aristotélica não vai ao ponto chave do pro- blema instaurado pelo mundo hierárquico de Platão. O problema para Deleuze não passa pela divisão de gêneros (especificação) trazida por Aristóteles, nem pelo acréscimo dado ao espaço da imaginação artística; afinal, o método platônico permanecerá inalterado se aristotelicamen- te o contestarmos: lá, trata-se de um método “de seleção de linhagens puras” (1988, p.67), de afastamento dessas das degredadas; cá, a preocupação se volta para uma divisão e funciona- mento próprio das espécies. A representação artística é compreendida então como um simulacro e não uma falsa cópia. E o simulacro constitui o desvio radical, visto de forma positiva e revolucionária pelo filósofo francês, que destaca nele uma potência, pois a falsa cópia é um xeque-mate do mode- lo, uma ironia que põe em questão a hierarquia; uma vez que é marcada pela dessemelhança, pelo desvio, pela diferença, deve ser pensada em si mesma e não em correspondência com um modelo (fundamento). O objetivo deleuzeano, segundo ele mesmo, se confundia com o de toda a filosofia contemporânea: reverter o platonismo. Para tanto, solicita a instauração de uma permanente recusa à idéia da superioridade do mundo original, que seria obtida a partir de uma exaltação do simulacro:

Quando a identidade das coisas é dissolvida, o ser se evade, atinge a univocidade e se põe a girar em torno do diferente. O que é ou retorna não tem qualquer identidade prévia e constituída: a coisa é reduzida à diferença que a esquarteja e a todas as diferenças implicadas nesta e pelas quais ela passa. É neste sentido que o simulacro é o próprio símbolo, isto é, o signo na medida em que ele interioriza as condições de sua própria repetição. O

8 A discussão aparece em Platão e o Simulacro. In: Lógica do Sentido, São Paulo: Perspectiva, 1982; e em Diferença e Repetição. : Graal, 1988. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

simulacro apreendeu uma disparidade constituinte na coisa que ele destitui do lugar de modelo. (1988, p. 70, grifo do autor).

Isso implicou pensar o texto artístico como um mundo onde se criam modelos pró- prios, um mundo de desierarquização e de afirmação da diferença, visto que as coisas são in- comparáveis, incomensuráveis, dada a sua singularidade. A posição deleuzeana foi a de bus- car um diálogo entre as formas estabelecidas e as não legitimadas de produção de saber, entre a filosofia e a não-filosofia, entre semelhança e diferença, criação e repetição, a fim de permi- tir zonas de fugas aos modelos fixados pelo pensamento clássico. Representação na arte, para Deleuze, não resulta em cópia ou imitação de coisa alguma, mas na própria idéia do ato de criar. Ele mostra que, assim como na matemática a idéia que orienta a criação leva à produção de funções, na filosofia leva à produção de conceitos; na arte a idéia produz blocos de sensa- ções, de percepção e de afetos, fazendo o mundo girar de maneira desordenada e diferente, não organizada e espelhada, como queria Platão. O resultado de toda essa reversão das idéias platônicas foi o posicionamento diante de uma teoria que aprisionava e ordenava o mundo, já conhecido e palmilhado pelos sentidos humanos, reduzindo a criação artística. Desautorizar esse operador de leitura, através de uma retomada do conceito nietzschiano de falso, foi uma forma de libertar a máquina de guerra produzida pela linguagem literária, que conduz ao desencadeamento de mundos diferentes, a tonalidades não conhecidas, à simultaneidade de contrários, às desordens, às estranhezas, aos desvios, às distorções. Por isso, o que para Platão seria uma degradação do modelo, para De- leuze é a potência de um investimento radical. A morte do autor e das grandes narrativas; a postura antiessencialista e relativista; a idéia de que o sujeito não representa uma unidade ou um centro, nem possui natureza; a ênfa- se na fragmentação e na multiplicidade; o combate ao universalismo; e a condenação de qual- quer tipo de busca ou estabelecimento de verdades absolutas têm constituído, a partir da déca- da de 1960, operadores de leitura significativos para se analisar as produções artísticas e cul- turais. Dentro desse contexto, não apenas o conceito de mimesis sofreu abalos significativos, como o lugar que ele ocupava na teoria passou também a ser questionado. Em sua concepção marxista de mundo e orientado pelo estruturalismo de Lévi- Strauss, Luiz Costa Lima, em Mimesis e modernidade (2003)9, investe num estudo cujo norte é a compreensão dos elementos ideológicos da mimesis, isto é, o projeto de mundo “visto” e “dito” engendrado por ela. Concentrando seu foco na análise dos valores e percepções

9 Lançado pela primeira vez em 1980. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

presentes na obra literária, Costa Lima analisa a mimesis literária a partir da reunião de dois vetores opostos: o de semelhança e o de diferença. Essa direção o coloca, em Sociedade e discurso ficcional (1986), contrário ao pensamento deleuzeano, que teria desdobrado de forma radical o embaraço trazido, antes, pelas vanguardas artísticas. Para o crítico, o pensamento deleuzeano e esse “embaraço” seriam os responsáveis por um banimento da discussão da mimesis. Costa Lima defende que a confusão instaurada, desde os vários usos feitos por Platão com o termo mimesis, merecia um estudo rigoroso e não uma proscrição. Levando em conta que Platão emprega a palavra para definir ora uma técnica de es- crita, ora a incorporação de um personagem pelo ator, ora o processo de ensino, em que o discípulo imita o mestre, e ainda para distanciar a poesia da episteme, destrinchar os caminhos ou estratégias da mimesis da representação e da mimesis da produção (COSTA LIMA, 2003) seria mais importante do que tomá-la unicamente pelo seu poder de dissimulação. O crítico parte do pressuposto de que a mimesis não é privilégio da obra de arte; ela faz parte da vida como um todo, e que os seus diferentes modos de elaboração carecem de análise aprofundada. Compreender, pois, os mecanismos de produção de semelhança e diferença (simulação e dis- simulação) da mimesis seria mais importante do que apenas negar que ela estivesse submetida a uma representação de uma natureza que a precede e que, portanto, está hierarquicamente acima. Para ele, a instituição da realidade na literatura como algo exclusivamente obtido pelos operadores da linguagem (uma ficção), sem qualquer contexto externo e antecedente — a festa da linguagem, diria Roland Barthes (1980) —, não resolve a necessidade de se pensar a “experiência intersubjetiva” (COSTA LIMA, 1986, p.359), pois é o fenômeno da representa- ção que leva o “real” ao “texto da mimesis”. Segundo David Wellbery, em “Mimesis e metafísica: sobre a estética de Schope- nhauer” (1999), o desenvolvimento do conceito mimesis em Costa Lima é tributário da “ten- são entre o registro antropológico e o metafísico” de Schopenhauer (1999, p.71), que, por sua vez, resolveu a distância ontológica entre original e cópia apontada por Platão. Essa resolu- ção, presente em O mundo como vontade de representação10, abole a dualidade entre aquilo que antecede a representação e a mimesis propriamente, pois concebe que há unidade nesse processo (devir) e não dualidade; há uma indistinção entre conhecimento e Vontade, sendo então a mimesis uma transformação que unifica sujeito e objeto numa Idéia emergente. Em Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental (1976), Erich Auerbach analisa a ruptura da cultura cristã com a tradição clássica, defendendo a linguagem literária (a obra, mais precisamente) como uma representação da realidade, embora essa

10 A obra data do séc. XIX (1818). A edição consultada é de 2001, cf. as referências bibliográficas. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

representação não seja de ordem imitativa e, sim, fruto de um contato entre história e estética; para ele, cada época é responsável pela introdução de uma visão (imagem) diferente de mundo, o que resulta em oposições, em confrontos de formas distintas de representação do real. A orientação de Auerbach é histórica, ainda que deixe em evidência os impasses que toda abordagem histórica traz — no caso da representação literária, o principal obstáculo é a multiplicidade de imagens e ações que precisam ser sistematizadas numa figura. Para o autor, mesmo diante de um emaranhado complexo de planos, ações e imagens que obra literária traz, há em sua linguagem, necessariamente, uma relação entre a estética e o real, isto é, toda forma traz uma percepção do real (conteúdo real) — no que é apoiado por Costa Lima. No capítulo “A cicatriz de Ulisses”, ele exemplifica esses confrontos, analisando dois modos diferentes de representação: o lendário, representado pelo episódio homérico em que Ulisses retorna a Ítaca, é confundido com um estrangeiro, e tem os pés lavados pela sua antiga criada; e o episódio bíblico, em que Deus pede a Abrão para sacrificar Isaac, no Antigo Testamento. No primeiro texto, o excesso de descrições e cortes que levam a outros detalhes e histórias dentro da mesma narrativa impedem a tensão, conduzindo a representação por um caminho linear; no segundo, a tensão se faz a partir da supressão da representação diante da frase-resposta de Abrão — Deus proverá — à pergunta de seu filho sobre onde estava o cordeiro a ser imolado. O excesso e a elipse são, assim, modos distintos de configuração do contato entre a forma e a identificação — entendendo essa identificação já como um fenômeno mimético, que aglutina semelhança e distância do real, fenômeno paradoxal, uma vez que é a partir desse atrito que se dá a possibilidade de aquilo que se representa ser visto, ouvido, tocado, saboreado, cheirado, compreendido, analisado, questionado. Auerbach e Costa Lima se assemelham na concepção de que se representa não por- que se deseja, mas porque se necessita: “Não representamos porque queremos e quando que- remos, mas o fazemos como maneira de nos tornarmos visíveis e ter o outro como visível”11. Por isso, ambos acreditam ser importante que, na discussão sobre a capacidade de criar e/ou espelhar realidades na arte e na literatura, haja um espaço para as diferenciações conceituais entre a mimesis oriunda dos gregos (que não é exatamente igual à tradução que fizemos dela), a noção de imitação (retomada pelos renascentistas) e a de representação (que contém também a auto-análise do próprio distanciamento daquilo que se representa). A criação de imagens e mundos possíveis através da linguagem poética pode seguir os mais diversos rumos, desde que se compreendeu o real como uma suposição, impossível de

11 Luiz Costa LIMA. Representação social e mimesis (versão on line). Disponível em: . Acesso em: 25 jul. 2007. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

ser capturado, e a literatura como um universo que tende a um jogo de desficcionalização e ficicionalização da realidade, através de cortes nos referentes, bifurcações de significados, encenações, multiplicações, performances, manipulações, e novas criações de referencialidades que resultam também em uma crítica do próprio desejo de representação. Segundo João Adolfo Hansen, em “Estranhando a semelhança”12, o mais interessante no conceito de mimesis é seu deslizamento: “Quando se fala em mímesis, sabe-se muito bem do que se trata, mas não o quê” (1999, p.184). Assim, dentro da representação literária é possível encontrar elementos que negam aquilo mesmo que ali se representa, numa brincadeira infinita de desmentir as certezas alcançadas, a fim de jamais perder o devir e o prazer de organizar e desorganizar o mundo através da vertigem da escrita. Esse prazer de construção também desconstrói, pois a escrita é irônica, uma vez que coloca em dúvida o que se “pré-concebia” como real. Escrever é manipular realidades possíveis, nem copiar nem espelhar, mas criar e jogar no espaço entre vida e cena (máscara), razão e dramaticidade (BARTHES, 1980). Jacques Derrida, em A escritura e a diferença (1971), aposta na idéia de différance, a fim de dar conta de tudo que antecede os sentidos do signo. Para ele, as fronteiras entre escritura e diferença (com “a”13) aglutinam, não separam, pois constituem um espaço de jogo entre “mesmo” e “outro”, entendidos não somente como elementos contrários, mas, sobretudo, su- plementares. O conceito de escritura está relacionado com o silêncio, com a demora, a prorro- gação, a crise, enquanto o de différance está ligado à síntese de um duplo movimento de ser diferente: todo signo é definido pelos sentidos diversos das palavras que usamos para estabele- cer seu significado (“tudo que ele é”) e pela oposição com outros signos (“tudo que ele não é”). Em As palavras e as coisas (1999), Michel Foucault analisa o quadro Las meninas, de Velásquez, mostrando que já há algum tempo a noção de representação como correspondência de algo ao qual ela se assemelha não é capaz de nos ensinar sobre um mundo em que as construções falam do ato de se construírem: “E livre, enfim, dessa relação que a acorrentava, a representação pode se dar como pura representação” (1999, p.21), o que implica uma compreensão de que o mero exercício de apontar semelhanças entre o que se cria

12 Artigo publicado em Hans Ulrich GUMBRECHT e João Cezar de Castro ROCHA (org.). Máscaras da mímesis. A obra de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Record, 1999. p.179-199. 13 Desde que a obra A escritura e a diferença foi traduzida para o Brasil, por Maria Beatriz Nizza da Silva, em 1971, muitas foram as tentativas de dar conta desse “neo-grafismo”, para usar a designação de Silviano Santiago (Glossário de Derrida. Francisco Alves, 1976, p.22-24). A tradutora optou pela grafia “diferencia”; leitores e tradutores de Derrida tentaram outras formas de grafar o termo, embora, no texto “Lettre à un ami japonais”, o próprio autor tenha aconselhado ao seu tradutor japonês criar um conceito/estratégia que, em sua língua, fosse equivalente ao jogo por ele proposto na língua francesa. Cf. Jacques DERRIDA. Lettre à un Ami Japonais. In: Psyché: Inventions de l’Autre. Paris: Gallimard, 1987. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

e os elementos que por ventura estejam na criação representados não leva mais a nenhum lugar — a representação se libertou da coisa representada. O percurso de Foucault é o de estudar a emergência e estruturação de certas ciências que têm por objeto o conhecimento do homem e de suas culturas, e que são, geralmente, agrupadas na grande área de Humanidades. Para ele, as Ciências Humanas se estruturaram a partir da idéia de similitude (mundo pré-clássico e mundo clássico) e representação (mundo moderno e contemporâneo). Seu ponto de partida é o questionamento da representação do signo operado pela época moderna, por isso, vai buscar num quadro de Velásquez elementos outros que permitam um novo olhar sobre o conceito de mimesis. Tal quadro lembra aquelas bonecas russas que trazem dentro delas uma cópia menor, que por sua vez se abre para revelar uma outra cópia ainda menor, e assim sucessivamente, até chegar à menor possibilidade de cópia dentro da cópia. Lembra também as histórias de As mil e umas noites, ou as peças de Shakespeare, ou, ainda, os filmes de Godard. Enfim, algo dentro de algo que abre uma janela para refletir sobre o jogo da representação. A sua descrição e análise do quadro se desdobram em várias páginas, mostrando que o jogo é complexo e não se esgota apenas no plano do visível (transparência), pois dentro do quadro há um quadro que está sendo pintado que não é visto (opacidade) e um espelho entre ambos (jogo, reflexão). Segundo Foucault, há uma inversão permanente de papéis entre espectador e modelo, isto é, eles estão a perguntar quem são os modelos, quem são os espectadores, quem é o pintor, quem ou o quê é representado, quem se auto-representa e quem reflete aquilo que não é a coisa representada, mas o jogo- confronto do visível-invisível, conforme mostra o espelho que está dentro do quadro. Ao estudar alguns aspectos que estão no quadro de Velásquez (pintura, representa- ção, quadro e luz), Foucault chama a atenção para a complexa rede de relações entre o fruidor (espectador, público, leitor), a criação, o objeto que ela representa e o próprio ato de represen- tar objetos, além de também refletir sobre os deslizamentos de outras dimensões que existem nas representações a partir do posicionamento de outros elementos (o espelho, a janela, a por- ta entreaberta que separa o espectador da cena etc.). Esses deslizamentos organizariam e de- sorganizariam, simultaneamente, possibilidades de leituras, remetendo os signos não apenas a seus significados, mas também aos significantes, aos atritos e paisagens, às reciprocidades e aos antagonismos. Os lugares das coisas, onde estão? E as coisas para onde foram/vão? Essas parecem ser perguntas mais possíveis na realidade contemporânea do que as antigas noções de fidelidade e semelhança, origem e cópia. A percepção do filósofo francês se amplia na análise do conflito encenado por Dom Quixote, um personagem emblemático para se entender a transição entre o antigo mundo, Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

onde os signos estavam ligados àquilo que espelhavam — isto é, baseavam-se numa exposição entre palavra e similitude — e o mundo moderno que se descortinava. Por isso, Foucault chama-o de “herói do Mesmo”, pois considera que todo o sofrimento do personagem advém de um desejo extremo de espelhar o mundo e ser espelhado por ele. É nesse movimento do Dom Quixote de busca de correspondência entre as palavras copiadas dos livros e a ordem concreta que Foucault flagra um deslizamento significativo: se ele precisa tanto encontrar essa correspondência e mergulhar nela, transformando-se no espelho daquilo que apreendeu, é porque ele já sabia, de antemão, que tal correspondência não mais existia no universo onde ele estava inserido. Assim, ele se torna “só linguagem, texto, folhas impressas, história já transcrita” (1999, p.62). A maior meta do Cavaleiro da Triste Figura é provar ao mundo que os signos nos livros estão certos, que a ordem dos livros é a verdadeira e não pequenos reflexos distantes de uma vaga semelhança. Por isso, “seu caminho todo é uma busca das similitudes: as menores analogias são solicitadas como signos adormecidos que cumprissem despertar para que se pusessem de novo a falar” (1999, p.65). Todavia, seu desejo esbarra na nova configuração de mundo onde “as semelhanças e os signos romperam sua antiga aliança”— resultando numa impossibilidade de a linguagem ser um desdobramento semelhante à coisa representada, e de a coisa representada ser um espelho da realidade presenciada. Nesse universo que se abre frente aos olhos do Engenhoso Fidalgo são as diferenças e as identidades que interessam, e não as semelhanças. A representação artística torna-se, então, um espaço em que se descobre nas diferenças algo parecido (mas não idêntico):

[...] o poeta é aquele que, por sob as diferenças nomeadas e cotidianamente previstas, reencontra os parentescos subterrâneos das coisas, suas similitudes dispersadas. Sob os signos estabelecidos e apesar deles, ouve um outro dis- curso, mais profundo, que lembra o tempo em que as palavras cintilavam na semelhança universal das coisas: a Soberania do Mesmo, tão difícil de enun- ciar, apaga na sua linhagem a distinção dos signos. (FOUCAULT, 1999, p.68).

A era da semelhança encerra-se, então, enquanto possibilidade de aprendizado (saber), e o personagem de Cervantes é o símbolo desse abismo que se descortina feito uma transição (indefinida) entre aquele período tradicional, quando era possível enxergar uma unidade encantatória entre a palavra e a coisa nomeada, e a moderna ordem do mundo, na qual são abundantes as metáforas, as diferenças, as exceções, os equívocos, as analogias. Foucault abandona a discussão desse tempo perdido, sem entrar no mérito da questão de ser esse tempo (em que o signo e a coisa representada integravam-se, como queria Rousseau) Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

algo possível de chegar a nós enquanto época concreta, e passa a analisar como o pensamento ocidental se desenvolveu a partir do instante em que deixou de contar com a idéia de similitude como uma maneira de conhecer os objetos. Segundo o filósofo, houve uma substituição dessa velha forma de saber pela orientação do uso da analogia entre as coisas (como um método para se conhecê-las), mas nesse movimento comparativo não se vê mais uma ordenação do universo e seus elementos, e, sim, uma análise que vai buscar a identidade e a diferença no semelhante. A palavra chave então é diferenciar e não igualar. No seu estudo acerca da representação na época moderna, o autor estabelece três re- lações: a) como não existem mais possibilidades de signos incógnitos, rompe-se com a con- cepção de que podemos ler os rastros deles no mundo divino; b) como o signo passa a refletir a dispersão e não a unificação das coisas, assume uma existência paradoxal, pois se aproxima daquilo que nomeia, dando-lhe sentido (significado), e, ao mesmo tempo, afasta-se dela (sig- nificante); c) como os signos são compreendidos a partir da idade moderna enquanto naturais (dados pela natureza) ou convencionais (construídos pelo homem), passam a indicar agora que ambos estão separados das coisas, sendo que os convencionais se prestam à fácil memori- zação, à divisão e composição infinita de seus elementos, enquanto os não-artificiais — que antes estavam conectados com os artificiais de forma igual — são compreendidos como algo impossível de ser capturado pela inteligência, pois está/estão afastados da coisa. Tudo, portan- to, do mundo natural ou convencional, leva à representação. Mostrando que se tornou impossível desvendar uma verdade fixa nas palavras, Fou- cault chama atenção para a arbitrariedade que faz parte da natureza do signo e não pode ser dele excluída, sendo a relação do significante com o significado fundada por uma idéia, o que resulta numa concepção do conhecimento como produtor de uma linguagem e não como um processo de busca dela. Representação e signo formam teias, mosaicos, universos, mas não inteiros, aos pedaços: “o homem compôs sua própria figura nos interstícios de uma linguagem em fragmentos” (1999, p.535). Não nos é dado mais perguntar no que signo e representação se assemelham e no que se diferem, e sim, como jogamos o jogo de imaginá-los, elegendo semelhanças entre coisas diferentes, e, ao mesmo tempo, sabendo que a nossa imaginação deriva delas. Pensar a representação e seu papel na produção de um discurso crítico, hoje, implica sempre conflito, ou, melhor, se descobrir não em crise mas como crise. A partir de quando a literariedade passou a ser compreendida como uma presença semelhante a dos dinossauros no mundo, e as discussões acerca da linguagem literária se distanciaram da possibilidade de se refletir sobre a diferença do discurso literário das demais produções discursivas; a Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

compreensão da mimesis enquanto “invenção” e “recriação” da linguagem banal, a percepção do signo literário como uma “instauração do instante de encantamento primário”, enfim, a polissemia dos jogos artísticos e seu estranhamento perderam poder conceituais numa análise acadêmica. Trazê-los de volta como um gesto puramente saudoso do tempo em que falar de literatura era encerrar o texto em determinados limites teóricos, como queriam Wellek e Warren14, não resolve a questão sobre a necessidade de um espaço próprio para a análise do texto literário, dissociado do relativismo institucionalizado e das teorias culturais de afirmações identitárias (precárias ou fixas, negativas ou positivas) e da crítica dos vínculos políticos e culturais (hegemônicos ou não). Será que desejar falar de literatura e apenas dela, isto é, da especificidade do texto literário, de seus elementos poéticos, implica necessariamente querer, anacronicamente, de volta o espaço de análise do estético pensando com “E” maiúsculo em detrimento do minúsculo, como resumiu Silviano Santiago?15 Quando a discussão acerca da representação passou a ser influenciada pela perspecti- va relativista e pela idéia da fragmentação do mundo, os espaços acadêmicos passaram a en- grossar o coro de um decreto que dava por mortas as grandes narrativas e instaurava a revisão do cânone ocidental e o debate acerca da alteridade, de como a literatura e a arte quase sempre reproduziam uma ideologia dominante, representando certos grupos quase sempre à margem de sua construção (ou silenciados ou como figurantes ou como antagonistas). Essa percepção tensionou a discussão sobre a representação literária, enfatizando outros pontos de debate so- bre a mimesis — por exemplo e novamente, a análise de como o texto literário reproduz a ideologia das classes dominantes. O deslocamento do eixo acadêmico da França para EUA e a consolidação de um espaço destinado aos Estudos Culturais, que empalideceu o prestígio da Teoria da Literatura (COMPAGNON, 1999), fizeram questões como “o que é literatura?”, “função e natureza dos objetos literários”, “valor da poesia”, “teoria dos gêneros”, “mimesis história e representação” e “polissemia do signo literário”, entre outros, ceder lugar para a problematização de “gênero”, “etnia”, “discurso” e “cultura”. Nesse sentido, tornaram-se ana- crônicos ou humanistas tardios os estudos sobre a ambigüidade e polissemia da linguagem poética, pois as análises do texto literário enveredaram pelo caminho da evidência das formas de entronização e disseminação do discurso opressor.

14 Cf. René WELLEK, Austin WARREN. Teoria da Literatura. 2. ed. Trad. José Palla e Carmo. Lisboa, Publicações Europa-América, 1976 (a primeira edição é de 1947). 15 Segundo Silviano SANTIAGO as categorias contemporâneas mostram que “assim como existiu uma Estética (com E maiúsculo) que confundia universalidade e falocentrismo, hoje existem várias estéticas com e minúsculo que são altamente afirmativas de identidades precárias que querem se afirmar no jogo de forças do campo artístico”. 1995, p.102. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Deleuze, assim como Lacan, Barthes, Foucault, Lyotard, Bourdieu, Guattari e Derrida, formaram o que Terry Eagleton chamou, em Depois da teoria (2005), de Idade do Ouro da Teoria Cultural, que compreende o período de 1960 a 1980, quando foram produzidos estudos pioneiros que modificaram o olhar acadêmico-cultural da nossa era contemporânea. A fecundidade desses posicionamentos surgiu, no entanto, a partir da Segunda Guerra Mundial, com a luta pela igualdade dos direitos civis, a revolução feminina, as organizações juvenis, as campanhas pela paz etc. Uma das maiores conquistas dessa nova forma de ler os objetos no mundo foi a ampliação da própria noção de objeto, que forçou uma abertura do pensamento teórico-acadêmico para enxergar a cultura popular e as questões cotidianas, antes ausentes da pauta da academia. A abertura da discussão acerca do que poderia ser estudado, analisado, levou em conta as transformações significativas dos novos modos de vida, o papel da mídia, os limites outros das cidades e países, os shoppings centers, o ciberespaço, o “fenômeno da globalização”, entre outros adventos que foram ganhando corpo num mundo cada vez mais capitalizado e onde o conceito de cultura ganhou maior contorno. A crítica oriunda desse posicionamento produziu uma desierarquização cultural, responsável por uma conscientização dos elementos políticos que originam e movem toda e qualquer teoria e fez surgir não uma, mas várias teorias da cultura. Embora essas teorias não representassem jamais uma unidade conceitual, foram, de certa forma, aglomeradas numa denominação de “agenda pós-moderna” ou “pensamento pós- moderno” ou, ainda, “olhar pós-moderno”, que, em muitos momentos, escamoteou as diver- gências e incoerências entre os autores ali elencados e as várias perspectivas políticas, filosó- ficas, culturais e estruturais existentes entre eles. Não tenho espaço e nem capacidade, aqui, para aprofundar essas diferenças, que foram expostas por Eagleton (2005) sob o pressuposto de que representam uma era já esgotada. Isso não significa pensar que o pós-moderno, com seus questionamentos e desconstruções do pensamento humanista, sua denúncia da falência do processo de evolução, emacipação e modernização do mundo, sua crítica da representação e da Razão, estava completamente errado, mas, antes, que retomar o debate sobre o papel da universalidade, da teoria e da prática, da linguagem e sua rede de significados, da História, da Literatura, da Educação, dos projetos políticos etc., agora se faz mais importante do que ape- nas reproduzir uma proposta sedutora que serve ao “novo tipo de sistema capitalista movido mais pelo consumo do que pela produção, mais pela imagem do que pela realidade, mais pela mídia do que pelos moinhos de algodão” (EAGLETON, 2003, p.38). O estudo da representação continua a mover as atenções no campo dos Estudos Literários e, muitas vezes, o foco das análises procura retomar as relações entre signo, Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

máscara e imagem, abrindo o debate para um aprofundamento do conceito que contemple, sobretudo, questões contemporâneas, como as relações entre memória e esquecimento, os clichês e os simulacros, a influência da tecnologia e da mídia na linguagem e no armazenamento de imagens e saberes, as trocas entre linguagem cinematográfica e literatura, a fragmentação do sujeito, a mimesis no hipertexto, o papel dos artistas da contemporaneidade etc. Esses elementos são amplamente discutidos na coletânea Forçando os limites do texto: estudos sobre representação (2002), organizada por Ana Cristina Chiara, que reflete sobre os imbricamentos dos conceitos de representação e imitação não apenas na escrita, mas, também, na pintura e no cinema. Os artigos mostram que, embora os estudos da representação sempre necessitem de fios de inclusão e exclusão conceituais, a crise da linguagem e a crise do pensamento, instauradas na história do século XX/XXI (2002, p.68), não podem mais se ausentar do debate acerca da mimesis. O conhecimento objetivo do mundo e o acesso a ele a partir dos deslizamentos e jogos da linguagem jamais deixaram de fazer parte do texto poético, estejamos antes, durante ou depois do desconstrucionismo pós-moderno. Ao lidar com as representações do amor em CFA e RR, não busquei em nenhum momento fugir de um entendimento claro de que sua linguagem é poética e, portanto, específica, polissêmica, ligada a uma visão estética e imaginativa do mundo, mas, também, referente, semelhante, cultural — o paradoxo de toda a representação. Não me interessei em reduzir seus elementos poéticos a uma ferramenta ou arma a serviço das classes dominantes, nem me deixei orientar pelo relativismo que mensura os elementos poéticos (outrora organizados no conceito de desvio da linguagem), com seu poder de sabotar a ordem concreta, a partir de uma quantidade (a ausência de mulheres, depois de índios, depois de negros, depois de homossexuais, depois de judeus, depois de muçulmanos etc. ou suas representações negativas na maioria dos textos literários) e não de uma qualidade; nem busquei entender a complexidade da representação artística como uma operação muito mais técnica (devido às revoluções estéticas trazidas pelas vanguardas e autores modernos que, em geral, explodem a relação do texto com os modelos realistas) do que política (o que colocaria Mallarmé, Joyce, entre outros, que instauraram o direito ao abandono da lógica e da cronologia, como produtores de questões relativas apenas às condições e efeitos da criação artística). Posicionei-me em relação às representações do amor sempre desejando seguir as possibilidades de construções múltiplas das experiências amorosas, que são potencializadas nos textos escolhidos pelos elementos criativos, únicos capazes de constituírem uma linguagem especial e específica, cuja estruturação polissêmica e mutante mistura e põe em circulação tanto as representações hegemônicas quanto as Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

heterogêneas, uma vez que espalham contradições, ambigüidades e paradoxos em suas construções. Acredito (de forma deleuzeana demais talvez) que são os elementos poéticos que di- ferenciam as produções, e esses elementos não habitam apenas espaços de equalização entre as formas repressivas e a universalização centralizadora dos olhares, mas, sobretudo, zonas de especificidades e vertigens, de multiplicação de jogos e máscaras que, superpostas, escrevem e apagam, simultaneamente, seus vínculos com a ordem objetiva e as instâncias de poder. Esses elementos criativos são múltiplos, são signos da própria condição humana, capazes de gerar, com sua natureza tragicômica, saberes recalcados, esotéricos, imediatos, conhecidos e desconhecidos, racionais e sensoriais (NIEZTSCHE, 1978). Todavia, não evito relacionar mimesis e alteridade, tomando também a representação estética do mundo pela sua capacidade de capturar as relações étnicas, históricas, políticas e socioculturais, sempre que isso se fizer necessário, isto é, a partir do processo dinâmico da leitura. Talvez reste aos amantes da poesia (como eu me defino) tão somente isto: deslizar entre pedaços de teorias ou perspectivas onde seja possível encontrar operadores de leitura que destaquem na representação literária e artística tanto sua proximidade com a percepção pragmática da condição humana, quanto outras vertentes dessa condição, como, por exemplo, o abismo entre como desejamos ser e como somos vistos, como nos iludimos que somos isso ou aquilo, como não somos isso nem aquilo, como ignoramos, por vezes, aquilo que eventu- almente somos etc. É dentro dessa perspectiva que o uso da palavra representação, neste tra- balho, para designar uma mimesis de afetos, buscas e experiências amorosas, pode se relacio- nar tanto com uma procura do reflexo da realidade objetiva nos textos, tanto com a captura dos vínculos entre texto e sistemas de opressão políticos, econômicos, sexuais ou sociais, ou, ainda, com uma compreensão da linguagem poética como produtora de espaços privilegiados, onde tanto a visibilidade quanto o deslizamento formados pelos atritos e paisagens das cons- truções das experiências amorosas e de sua procura se desvelam.

Outro detalhe que preciso expor é a minha percepção do gênero em relação aos textos de Renato Russo recortados para a análise. Ainda que considere as representações do amor a partir dos elementos poéticos presentes nesses textos, não tomo aqui letra de música como sinônimo de poema, subliteratura ou espécie literária; entendo-a em sua especificidade: elaborada a serviço de uma melodia e suplementada por uma harmonia musical — portanto, diferente do poema, que constrói sua melodia através de recursos verbais, e não através da relação entre silêncio e notas musicais. Porém, leio as representações do mito do amor em RR Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

como construções orientadas por uma compreensão poética de mundo. Essa compreensão produz os espaços multiformes de percepções e afetos, essa dança múltipla do amor, e podem ou não ser destacadas (conforme a proposta de pesquisa) enquanto regiões autônomas, isoladas de questões antigas oriundas de confrontos entre manifestações nacionais e populares e/ou manifestações tradicionais e de cultura de massa, bem como do debate acerca do redimensionamento que a contracultura deu a certas produções literárias e musicais — sua inscrição pop, por exemplo. Dizendo de outro modo, não são as semelhanças das letras de música com a poesia nem a ampliação da noção de estética que me permitem enxergar esses elementos como poéticos, mas a forma como as representações que trazem foram construídas: sob, dentro e sobre aquilo que chamamos de linguagem encantada, mítica, infinita. Em síntese, constituem uma linguagem poética. Não necessariamente o gênero poesia. Este trabalho se constrói a partir de um deslizamento por zonas de esclarecimento e obscuridade que certas palavras e expressões sugerem na contemporaneidade. Uma vez que elas implicam não apenas conceitos, mas posicionamentos, demarco aqui o uso que delas será feito neste recorte. São elas: “subjetividade”, “ordem objetiva”, “singularidade”, “singularização” e “fluxo do amor”. Segundo Sabrina Sedlmayer, em Quanto a mim, eu: a subjetividade literária em Pessoa e Borges (2001), a partir do momento em que a noção de sujeito foi desmontada na modernidade, os limites da representação também explodiram. O que se institui como “eu” (no texto, na fala) deixa, então, de ser compreendido apenas como uma questão de representação ou como “uma figuração momentânea de um eu [...] que se encena em um determinado tempo e espaço” (2001, p.40). As marcas do “eu”, seja através do pronome, seja através das desinências verbais, ou, ainda, da pseudo-ausência (de que fala, escreve, enuncia) passam a ser lidas como um “cruzamento” dinâmico entre as projeções do autor, do leitor, e da mobilidade, intercambiamento e multiplicidade da linguagem poética. Dessa forma, de “pleno”, “origem de todo o conhecimento”, “suporte de toda a experiência”, a noção de sujeito passa a apontar para a “emergência de formas heteróclitas do eu” (2001, p.43). Assim, quando esse “eu” perde a fixidez, quando ele é rasurado pelos tantos investimentos dos novos produtores de linguagem artística, as vozes do texto tornam-se muitas, outras — os próprios limites físicos do texto são quebrados e ele pode ser tomado também nas suas relações de interferências e trocas com outras tecnologias — até ir configurando uma obsessiva despersonalização do “eu” que traz para a pauta outra potência, que é a do múltiplo, mas, também, a negação do “eu”, ou o entendimento do “eu” como restrito a uma construção da linguagem (FOUCAULT, 1999). A noção de polifonia de Bakhtin (1988) — que compreende a voz emergente no romance como um cruzamento de Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

vozes sociais de um sujeito histórico e ideológico, que usa o plurilingüismo como “subterfúgio” para a formação do individual no texto — foi seguida, debatida, ampliada e revista por outras teorias que defendem a idéia da subjetividade como um agenciamento móvel, que pode ser individual num contexto e coletivo noutro (DELEUZE, 1992), e, portanto, se realizar como “modos de existência” (subjetivações) — que já implica modulação, deslocamento. A discussão sobre sujeito e subjetividade é interminável, e se produz num horizonte que vai desde a Grécia até os nossos dias, passando pelos momentos cruciais de construção, negação, investimento, morte e retomada desse sujeito, por teorias e recortes vários. Em Sujei- to, paixão e discurso (1996), José Augusto Mourão investiga o tipo de relação — que ele chama de aliança — entre “as instâncias de discurso (as operações lingüísticas) e os traveja- mentos antropológicos (a história da teorização da actividade noética e simbólica do ho- mem)”. Ele afirma que “a subjetividade é um princípio de organização que diz respeito, não a um ser vivo, mas a um sujeito dotado de competência modal” (1996, p.24). Massimo Cane- vacci (2005), por sua vez, fala em subjetividades eXtremas que passeiam pelas vitrines e arté- rias das metrópoles ostentando seu código de barras, incorporando, através de piercing, cortes de cabelo, tatuagens, estilos, a identificação, a padronização e o controle das “linhas pretas e verticais” usadas pela indústria para designar os seus produtos, mas mantendo, sobretudo, o prazer pelo jogo, pela brincadeira de inscrever “códigos nas peles-visores”, e, assim, comuni- cam valores distintos à sistematização da “biografia e até da biologia das novas mercadorias- visuais”. Aqui, trabalho com uma espécie de enxugamento — se é que isso é possível — dessas reflexões, definindo a subjetividade como uma série de expressões, marcas individuais, agenciamentos, saberes, sentimentos, sensações e impressões entre autor, leitor e objetos criados, instância que forma um espaço móvel no qual as projeções (minhas, deles, nossas) podem ser vistas, sentidas, tocadas. Chamo de sujeito as individualizações dessa subjetividade, e de singularidade o projeto estético-político-ético do criador, que é vivido, lido, sentido através da ritualização do desejo e da imaginação. A singularização é a prática desse projeto, sua negociação no plano textual e cultural. A ordem objetiva constitui um conjunto de subjetividades legitimado por instâncias institucionais, isto é, um aparelho social, uma instituição, uma associação, um grupo portador de sigla e registro formal, que pode ser percebido em todas as sociedades e épocas, e tende a constituir um espaço mais rígido, porém, jamais independente ou imune aos trânsitos subjetivos, conforme nos lembra Foucault em sua Microfísica do poder (1979). A ordem objetiva é representada na linguagem como uma força Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

externa, em geral opositiva à subjetividade, e, na literatura, pode ser tanto uma operação da imaginação (do autor, do personagem, do narrador, da interação do leitor, a partir dos mecanismos de construção poético-lingüística do texto) quanto dos referentes imediatos — elementos históricos, sociais, culturais, antropológicos etc., inseridos no texto. O fluxo do amor é uma expressão cunhada para dar conta dos mecanismos de fabri- cação de “verdades” e multiplicidade de representações acerca do mito do amor, apresentados pelos autores escolhidos. Parto do princípio que as experiências do amor, quando inscritas, encenadas, cantadas, performatizadas, compartilhadas pela mediação de um produto artístico, servem a problematizações de valores, símbolos, posicionamentos, e reflexões socioculturais. Como os autores escolhidos, cada qual à sua maneira, usam o amor como metáfora-guia para potencializar esse investimento estético e pessoal na cultura, busco entender essa “cartografia dos afetos” apresentada por eles como um modo próprio de fluir entre os espaços de aprisio- namento, banalização, libertação e/ou gozo trazidos pelo mito.

1.1 QUANDO SE APRENDE A AMAR O MUNDO PASSA A SER SEU?

Nesses espaços de intervenção criados pelos elementos artísticos, posso perceber, en- tão, uma série de transformações que as representações das experiências amorosas e da busca do amor sofrem, o que produz concepções capazes de abarcar desde o estágio em que o amor era compreendido como uma força sobrenatural, oriunda dos deuses, passando pela crença em seu componente biológico ou instintivo (o amor como uma estratégia da terrível vontade re- produtiva da natureza, como defende Schopenhauer), até a re-elaboração dele, em nossos dias, como um dos elementos necessários ao cotidiano das trocas e negociações exigidas pelos pac- tos amorosos feitos entre homens e mulheres, mulheres e mulheres, homens e homens (GIDDENS, 1992). Nessa busca, não pretendo adotar critérios de reconstrução e revisão his- tóricas, tecendo um panorama da evolução do amor no pensamento humano; em vez disso, disponho-me a acompanhar seus fluxos e mudanças em dois autores contemporâneos que o colocam em circulação. Nesse emaranhado de produções acerca do amor, não posso me esquecer da primeira das questões sinalizadas no início deste capítulo: o amor é um objeto cuja natureza ou caráter é por demais heterogêneo. Assim, por mais que catalogue suas representações e significados, jamais poderei ter como produto final um sentido, imagem ou interpretação homogênea dele. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

E isso ocorre devido à estreita relação entre as representações artísticas do amor e as transformações constantes às quais estão sujeitas as subjetividades humanas em cada época. Segundo Priore (2005), a concepção do amor não é a mesma nos diferentes períodos históricos pelos quais a humanidade passou. Suas formas e significados mudam a depender do contexto, como mostram os registros históricos, filosóficos ou artísticos que o abordam. Isto implica pensar que, ainda que nos tempos atuais a recorrência e mesmo a crítica ao amor de feições românticas (presente nos mais diferentes discursos modernos e contemporâneos) nos pareça um mito eterno, tal construção está relacionada com o romantismo e a modernidade, que a elegem através de uma concepção de amor em que a emoção predomina sobre a razão (amor romântico). Dessa forma, embora esteja claro que o caráter mutável das representações artísticas que tematizam as experiências amorosas prevaleça sobre qualquer retrato de época, sua contextualização e seus limites históricos de vez em quando precisam ser definidos para que não percamos de vista os aspectos culturais, morais, políticos e sociais que permeiam cada período; afinal, a experiência do amor tanto pode assumir várias faces, quanto estar em lugares diversos, legitimando laços, correndo pelas margens, integrando e/ou desintegrando sujeitos e sociedades. Embora saibamos, em princípio, que o que se entendia por amor na Grécia antiga ou na Idade Média fosse algo diferente do valor, imagem e significado que ele adquiriu na Mo- dernidade e mesmo na época contemporânea, algumas permanências e semelhanças poderão ser retomadas, quando solicitadas pelos textos escolhidos para esta análise. Com isso, não quero dizer que posso resgatar os sentidos que o amor possuía na era clássica ou medieval, mas, sim, que ao me contaminar com o emaranhado de fragmentos construídos pelas repre- sentações artísticas desejo acompanhar muito mais os pontos, ora luminosos, ora obscuros, trazidos por elas, do que traçar um panorama de época, obedecendo à lógica predominante que o sentimento adquiriu em cada tempo e lugar. Para este percurso, elegi a idéia do fluxo, a idéia de modulação e a de elaboração de formas de vida para nomear o processo de refletir e representar o mito do amor nos textos artísticos. Esses operadores são flagrados nas construções da microhistórias e nas explosões de imagens dos dois autores escolhidos para esta dança. A primeira imagem a me capturar foi a do plâncton, “o bicho que brilha quando faz amor” (1982, p.50), que no percurso inicial serviu como um dos principais guias desta leitura. Trata-se de uma metáfora-conceito, recortada do conto “Terça-feira gorda”, de Caio Fernando Abreu, que aponta para uma concepção das relações afetivas entre seres humanos como um acontecimento luminoso, porém efêmero, um brilho capaz de atrair atenção das pessoas ao redor, tragá-las feito um ímã, mas, também, ser Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

rapidamente desfeito pela violência de uma ordem repressiva, que, paradoxalmente, atuaria no sentido de destruir tal brilho; uma vez que ele coloca tais pessoas frente a frente com a complexidade de um desejo que é atração e, ao mesmo tempo, repulsão. Plâncton, portanto, é uma força paradoxal: é uma luz que provoca a unidade e é um caos que conduz à treva, oriundo do conflito com as diferenças. A luz ou luminosidade surge no mundo a partir do encontro de dois indivíduos, esses, ao conseguir a unidade, a fusão do um com o outro, promovem uma intensificação tamanha desse brilho que atrai e, ao mesmo tempo, ameaça a coletividade, despertando nela um desejo de caos, de destruição. Assim, a unidade conseguida pelos sujeitos não constrói coletivamente, não agrega ou gera nos outros membros da sociedade a vontade de encontrar também seus próprios focos de luz ou luminosidade; ao contrário, leva todos de volta ao caos, à escuridão. Dessa idéia de plâncton, surgem as outras metáforas-formas de compreensão do amor e de sua busca nos textos de CFA e RR, que serão usadas nos capítulos seguintes, como a noção do amor enquanto estrela cadente, caco de vidro, lobisomem juvenil etc. Todas elas trazem a perspectiva do amor como uma experiência capaz de jogar os su- jeitos por ela envolvidos numa espécie de lugar privilegiado — Caio Fernando diria: no cen- tro momentâneo de uma relação reluzente —, em que as relações amorosas são descritas co- mo portadoras de uma luz ou passaporte utilizado pelos sujeitos para ultrapassar os limites de uma realidade restritiva. De forma parecida, em Renato Russo, quem ama ou experiencia o amor está exposto à incompreensão e atitudes repressoras do meio em que vive, como se a vivência plena desse sentimento “ofendesse” a ordem objetiva da qual os sujeitos fazem parte e com qual não deveriam tentar romper. Ao escolher falar do amor nos textos de Caio Fernando Abreu e Renato Russo, não quero concentrar o foco apenas na análise das representações amorosas homossexuais mascu- linas e, excluir, assim, as experiências amorosas entre homens e mulheres que também apare- cem nas produções dos autores. Esta escolha é uma forma de não verticalizar os sentidos, i- magens e valores postos em circulação por esses universos discursivos. Ambiciono que o não- fechamento funcione como uma espécie de vigília, o mapa em aberto de que nos fala Deleuze e Guattari (1995), compreendido como uma consciência permanente de que sempre existem outras linhas, outros cruzamentos e pontos de fugas em qualquer discurso artístico, e que es- ses são espaços de liberdade e não de restrição ou aprisionamento por parte do leitor. Sei que analisar as experiências do amor nas produções artísticas de dois criadores contemporâneos é pensar, antes, no lugar de inserção deste tema na história das interpretações dos textos artístico-literários. Porém, não quero refazer percursos já estabelecidos num terreno Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

amplo, tradicionalmente palmilhado por diversos pesquisadores, críticos e estudiosos da literatura e áreas afins. O legado dessas leituras me alerta muito mais para a alternância de concepções acerca do amor do que para a predominância de uma única vertente. Com isso, não estou negando que, em determinadas épocas, exista a eleição de certos traços característicos das representações amorosas; apenas evito mascarar, aqui, a mobilidade que os discursos poéticos assumem. Assim, entendo que, mesmo na Grécia Antiga, quando a experiência do amor esteve relacionada a uma concepção clássica de mundo, cujo alicerce é o triunfo da razão sobre a emoção (conforme Platão, em O banquete), suas características ou elementos predominantes nos fornecem a perspectiva comum de tal período, aquela que se sobrepôs às demais, porém, não a única perspectiva, afinal, se assim pensássemos, estaríamos partindo do pressuposto de que na Antigüidade a paixão e o romantismo estavam completamente ausentes da experiência do amor e de suas representações artísticas, e que tais elementos surgiram apenas na Moder- nidade. Prefiro pensar que essas experiências foram contaminadas por valores e noções diver- sas, e o que nos chega através dos registros artísticos sofreram o impacto das negociações e particularidades de cada época e lugar. São essas negociações que me interessam neste recor- te; afinal, o lugar do amor nas falas e produções artísticas contemporâneas mostra justamente uma mistura de concepções, na qual é possível enxergar fragmentos díspares do entrecruza- mento de pelo menos três perspectivas: a clássica, em que o amor é o resultado da vitória da razão sobre a emoção; a romântica, em que o amor é compreendido como a emergência da emoção sobre a razão; e a barroca, que é uma perspectiva de fusão das duas, isto é, a idéia de que o amor é o resultado de um conflito entre a razão e a emoção. Um exemplo dessa mobilidade ou convivência de múltiplos sentidos, numa mesma época, nas representações acerca do amor pode ser visto em duas produções artísticas que, recentemente, arrebataram um segmento de consumidores afeitos a filmes considerados “cults”: Antes do amanhecer (1995) e Antes do pôr-do-sol (2004), de Richard Linklater. Ambos encenam o começo e a retomada de uma história romântica dentro do universo espatifado da contemporaneidade. Seus protagonistas são Jesse (Ethan Hawke) e Céline (Julie Delpy), sujeitos nômades que se encontram numa espécie de fronteira de si mesmos. Estão indo e/ou vindo para/de algum lugar. Eles se olham num trem, se atraem, se tocam, buscam se entender. E conversam. Conversam muito. Em vez de encenarem um amor impossível, preferem discutir a possibilidade do amor nos dias atuais; em vez de manifestarem uma paixão avassaladora, assumem e manipulam a atração que sentem um pelo outro, optando, não pelos suspiros ou cenas dramáticas, mas por conhecer o outro, provocando-o, ouvindo-o, Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

encantando-se, desencantando-se, e, o que é mais interessante, divertindo-se e sofrendo com a própria necessidade humana de encontrar o grande amor. Dessa forma, os personagens conseguem criar um espaço de re-elaboração da experiência amorosa, analisando-a de maneira leve, irônica e, em alguns momentos, ácida, de forma que alguns críticos chamaram ambos os filmes de romântico e realista, a um só tempo. Esse paradoxo, romântico e realista, ocorre justamente pela mistura de falas, tempos, perspectivas e delineamento dos sujeitos mostrados pelas duas obras que são, em verdade, uma só. No primeiro filme, Céline e Jesse são jovens que se encontram casualmente num trem europeu: ela é francesa, está retornando de uma visita familiar à sua avó e se dirige a sua cidade, Paris; ele é um turista norte-americano visitando a Europa, que vai parando de cidade em cidade, de acordo com sua vontade e curiosidade. Ao se conhecerem e experimentarem uma atração mútua, resolvem descer do trem em Viena para aproveitar o dia, negociando viverem um dia inteiro juntos, o único que têm livre, antes de retomarem seus destinos e afazeres. Nesse primeiro ímpeto, já percebemos que há uma suspensão da identidade dos sujeitos; é num rompante que decidem interromper a viagem e saltar numa estação de passagem. O trem os levaria ao destino previsível: ela a Paris, onde retomaria suas obrigações normais, ele ao fim das férias. Saltar, então, foi a forma que encontraram de deixar esse destino em suspenso, assim como seus nomes, profissões, compromissos afetivos e sociais, seus ideais de vida, suas ambições e sonhos. O trem é uma metáfora do destino ou sina cujos caminhos os personagens já conhecem, enquanto a cidade de Viena, onde escolhem saltar, com suas ruas, museus, jardins e atrações, é a possibilidade de desconstrução dessa sina, uma espécie de fuga mágica da realidade, com a qual eles procuram incrementar ou mesmo mudar o curso do destino previsível. Como nas narrativas antigas, nas lendas e contos mágicos, Viena é uma fada que aparece no caminho dos sujeitos. Segundo Cunha (1982, p.347), fada significa “deusa do destino”, e origina-se de “fata”, do latim, e de “fatum”, que significa “fado”, “destino”. É nesse salto que ocorre a primeira tentativa dos personagens de desconstrução do previsível. Os homens e mulheres contemporâneos podem até temer o destino, mas também jogam com ele, ao contrário do que acontecia na época clássica, quando o Destino era representado por uma tríade de deusas, as três Erínias ou Normas, que puniam os seres humanos pelos seus erros (VERNANT, 2000). No filme, os sujeitos se posicionam entre a previsibilidade de um destino e aquele atalho ou vereda que um acontecimento súbito pode trazer. Somos predestinados ou somos livres?, perguntam-se Jesse e Céline, ao descer do trem. Podemos jogar com nosso fado ou o jogo já está desde o princípio previsto, constituindo não um livre arbítrio, mas uma peça a mais da fatalidade? Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Quando falo de fatalidade e previsibilidade não quero fazer entender que eles vives- sem em conflito com suas sinas, ao contrário, parecem gostar do que possuem até aquele mo- mento, mas, embora gostem, analisam com um certo ceticismo a rotina da qual são sujeitos, bem como o caminho conseqüente a que ela os levará. Por isso, à medida que falam de si, de seus mundos, crenças e perspectivas, falam também de milhares de homens e mulheres de classe média que, em 1995, encontravam-se na faixa dos vinte e poucos anos, estavam saindo da casa dos pais, trabalhando, estudando e viajando em busca de algum sentido para a jornada que começavam a trilhar sozinhos. Típicos jovens urbanos, Jesse e Céline se mostram, a um só tempo, simplistas e complexos, românticos e céticos. O filme se constrói a partir dos diálo- gos e movimentos dos personagens que perambulam por uma Viena bela e solitária; em cada ponto, turístico ou não, abordam temas como morte, vida, reencarnação, amor, paixão, sexo, predestinação, acaso, livre arbítrio etc. Embora a história não nos prometa nenhum êxtase ou drama amoroso, podemos ser capturados justamente pela aparente naturalidade com que tudo acontece entre o casal. É um clichê romântico o encontro entre dois jovens belos, brancos, ocidentais, de classe média, cultos, numa cidade européia, mas o enlace não se realiza: eles partem ao amanhecer, cada qual em seu “trem”. Não sabemos se fizeram amor no parque, quando bebem e se beijam pela primeira vez. Não sabemos se irão se reencontrar, casar, ter filhos. Não trocam telefone nem endereço, não sabem o sobrenome um do outro — apenas marcam um encontro para seis meses depois, naquela mesma estação. Esse final, em aberto, funciona como uma ironia diante da expectativa construída ao longo das andanças dos enamorados. Mais do que deixar no ar a continuidade do enlace, o que está sendo perguntado é se ainda há a possibilidade do grande amor nos tempos atuais. Se é possível que duas pessoas no mundo contemporâneo — veloz, fragmentado, caótico, de relações líquidas, para usar uma expressão de Zygmunt Bauman (2003) — ainda cultivem a esperança de viver o grande amor. Outra pergunta que o filme nos permite formular é se esse amor, quando encontrado, pode ser mais de uma vez experienciado ou trata-se de uma vivên- cia, tal qual a morte, única e irreversível. É o amor uma questão de sorte, de encontrar no lu- gar certo a pessoa certa ou essa é mais uma visão idealista da experiência amorosa, pois, ao contrário, trata-se de um pacto móvel, consciente, um vínculo feito entre iguais, que adquire qualidades e defeitos a partir do que construímos diariamente na convivência com nossos pa- res? Jesse e Céline são protagonistas do esboço de um problema que se torna confuso até mesmo para ser estabelecido enquanto problema, ainda que continue interessando a todos no mundo atual: o problema de como construímos e como queremos construir nossos Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

relacionamentos — com o outro, conosco, com a humanidade — num tempo de relacionamentos frágeis e mutantes. O que os personagens sabem ou a riqueza que demonstram ter é a capacidade de duvidar de tudo que lhes foi apresentado até ali como correto. E essa perspectiva, a da dúvida, parece ser o legado da história desses dois, pois mesmo depois, quando retomam seus destinos e se despedem, combinando um encontro futuro, deixam no ar uma dúvida de que farão realmente aquilo que prometem ao outro. A reticência deixada pelo primeiro filme é retomada nove anos depois, quando sua continuação é materializada, deixando de ser um livre exercício mental de seus espectadores. Em Antes do pôr-do-sol, Jesse e Céline novamente se encontram numa cidade européia. Não são mais jovens estudantes de vinte e poucos anos, ela trabalha numa ONG, uma das siglas mais comuns dos nossos dias; ele se tornou um escritor profissional. Ela vive um relaciona- mento pós-moderno: é e não é casada com um fotógrafo, que por sua vez viaja muito, permi- tindo-lhe conviver com sua própria companhia, algo de que ela confessa gostar. Jesse, por sua vez, está casado com uma ex-colega de faculdade, com que tem um filho. Esse reencontro mostra que houve uma espécie de proteção de ambas as partes: não foram ao encontro marca- do nove anos atrás, casaram-se com outras pessoas por quem não nutriam grandes paixões, mas que eram convenientes, úteis a eles, e assim salvaram esse encantamento que sentiam e continuam a sentir pelo outro. Novas questões recomeçam a ser formuladas: então, o amor romântico seria isso, uma imaterialidade? Uma projeção que não pode encontrar ecos no pragmatismo diário de uma vida a dois sob pena de se espatifar e se desencantar completa- mente? Ou, ao contrário, é justamente por não terem mais a certeza do que é o amor — uma das características mais fortes das relações contemporâneas, vista por Bauman (2003) como uma prova de que aquilo que hoje denominamos de “amor”, é uma expansão de várias experi- ências do “aprendizado do amor” — que Jessé e Céline duvidaram da experiência que esta- vam principiando a ter e, receosos de seu engano e mesmo de sua diluição, protelaram o en- contro do eu com essa “verdade” trazida pelo outro? As escolhas que fizeram e as que deixaram por fazer são discutidas em Antes do pôr- do-sol, enquanto os personagens caminham por Paris. Mais uma vez, têm pouco tempo, ele vai pegar o avião de volta para casa. Mais uma vez, buscam prolongar a sensação de prazer que sentem por estarem na companhia do outro, lidando com o espectro de uma promessa de um passado fugidio. Há mágoas e conflitos entre eles, mas eles não as trazem à tona, em vez disso, tratam-se educadamente, procurando resguardar o prazer que sentem com a companhia do outro. Essa escolha em não entrar em conflito direto, não expondo as críticas e frustrações geradas pelo embate das duas subjetividades — que pode ser chamado no senso comum de Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

superficialidade das relações — é, segundo Bauman, outro traço característico das estratégias de negociação dos novos laços humanos:

[...] Amar significa manter a resposta pendente ou evitar fazer a pergunta. Transformar um outro num alguém definido significa tornar indefinido o fu- turo. Significa concordar com a indefinibilidade do futuro. Concordar com uma vida vivida, da concepção ao desaparecimento, no único local reservado aos seres humanos: aquela vaga extensão entre a finitude de seus feitos e a infinidade de seus objetivos e conseqüências. (2003, p. 36) [os itálicos são do texto original].

Em Antes do pôr-do-sol não estamos mais diante dos jovens de vinte e poucos anos, um tanto estáticos diante das milhares de possibilidades de inícios acenados pela vida, esta- mos diante de dois adultos cansados, críticos, desiludidos: ela com uma forte tendência à au- to-suficiência, ele resignado com o que o destino lhe trouxera até ali. No entanto, continuam tentando não optar pela consumação imediata da atração, pois essa poderia levá-los à finitude dessa experiência, algo que evitam viver. Também não decidem por um investimento pontual nesse prazer que a companhia do outro proporciona. Preferem deixar as possibilidades em suspenso. Preferem novamente andar pela cidade, retomando o diálogo sobre os velhos temas, já abordados no primeiro filme. Dessa forma, distanciam-se da urgência de consumar a rela- ção, pois tal ato poderia trazer a ambos uma vivência sólida, com a qual não querem lidar. Antes era a dúvida — se o amor existe, qual caminho tomar quando ele surge —, agora, é um distanciar analítico. Se no primeiro filme, os personagens se posicionam diante da paixão de forma a ques- tioná-la — sim, estamos apaixonados um pelo outro, mas e daí? Vamos mudar nossas vidas e matar essa paixão com a rotina de uma vida em comum? Ou vamos preservá-la na memória, líquida e deslizante que temos um do outro? —, no segundo, não trazem respostas prontas, mas, sim, uma disponibilidade para analisar o que era, o que foi a paixão, ou que poderia ter sido. Porém, é justamente essa análise que se espatifa rua a rua, jardim a jardim, por onde passeiam o casal maduro, pois por mais que queiram re-arrumar o vivido e o não-vivido, a imaterialidade da experiência lhes escapa: as falas soam às vezes contraditórias, às vezes piegas, opostas ao que tentam dizer, confusas, quando se queria eficazes. Deixam, novamente, no ar várias pergun- tas: era mesmo um grande amor o que não negociaram no passado? E se era, não o negociaram por medo ou por descrença? Medo de perder o encanto ou descrença no mito do grande amor? O encanto preservado é mais válido do que a tentativa de viver o amor? A fuga é uma prova de que o amor romântico só existe na distância, na não-convivência diária? Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Em vez de resolver as questões que foram jogadas no primeiro filme, esse segundo traz as mesmas questões e outras mais contemporâneas, como a desilusão das esquerdas (Céline é uma ex-esquerdista que se debate entre trabalhos comunitários e a paixão pelo consumo), a precariedade das relações amorosas nos nossos dias (Jesse sabe que não nutre nenhum sentimento especial por sua esposa, mas mantém o casamento por uma espécie de lealdade ao passado vivido com ela, a esposa), a escassez de recursos de países pobres versus o desperdício dos países ricos etc. O final é também aberto, como o outro, Jesse acaba indo ao apartamento de Céline, sentando e admirando-a, enquanto ela lhe oferece um chá, toca uma canção romântica de sua autoria e dança ao som de Nina Simone, lembrando-lhe, a cada momento, que ele precisa ir, pois está na hora de seu vôo. A tela escurece, e esse final aparentemente simples abre mais uma série de perguntas: enquanto evitaram se entregar um ao outro e vivenciarem a paixão, não estavam romanticamente vivendo o mito romântico de permanecer intocável na memória do outro? Existir na memória de alguém, preservado da ameaça de desencanto do dia-a-dia, das brigas, das concessões, das faltas, dos excessos de uma vida a dois, é a única possibilidade de amor romântico? Outra vez, o diretor não responde às perguntas, nem pode: ele construiu tudo em ci- ma de hipóteses e é com elas que fecha e abre suas cenas, assim, vamos sendo conduzidos a nos questionar: e se você encontrasse sua alma gêmea num trem e resolvessem passar uma noite inteira juntos seria motivo suficiente para abandonar tudo e viver com ela? E se fossem racionais e não abandonassem tudo, apenas marcassem um encontro seis meses depois, deve- riam ir ou não? E se não fossem ao encontro e continuassem a se desejarem dia após dia, ain- da que suas vidas seguissem outro curso, escolhido por vocês? E se nove anos depois se reen- contrassem e, nesse reencontro tivessem tempo somente para ver o pôr-do-sol juntos, conside- rariam mais uma vez isso como uma experiência amorosa? Apesar de estar falando de dois filmes cuja representação do amor está alicerçada nos impasses de uma atração entre um homem e uma mulher, enquanto nas produções de Caio e Renato sobram amores entre homens, considero tais produções como uma metáfora bastante produtiva e atual para pensarmos sobre o caráter fugidio, líquido, dos amores contemporâ- neos. Ao mesmo tempo, também é produtiva para pensamos nas razões que levam a uma elei- ção do amor como centro luminoso, em torno do qual giram os sujeitos de CFA e RR, bichos que brilham e espalham centelhas desse brilho por onde passam, formando também uma es- pécie de “espírito” ou mapa de época.

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1.2 PLÂNCTONS E LOBISOMENS

De tanto desejarem ser plâncton, o bicho que brilha quando faz amor, ou lobisomem, o bicho que uiva a própria fome, transformaram-se em homens e mulheres rodopiando em torno do centro luminoso daquela promessa. A promessa de que um dia, enfim, como dragões (CFA) ou cavalos-marinhos (RR) que eram, conheceriam o paraíso, onde tudo era calmo e nada feria. Afinal, o ser, o desejo, os objetos, a transcendência, a linguagem, o destino e mes- mo o outro não faziam parte, em última instância, daquilo que aprenderam e desaprenderam todos os minutos de suas vidas a chamar simplesmente “amor”? O amor pelo par perfeito, o amor pelos pais, pelos brothers and sisters, o amor pelos antepassados. O amor pela palavra, pela música, pelo cinema, pela dança; amor pela cidade, pelas janelas, pelos rostos urbanos e desconhecidos; pelo barulho e pelo silêncio; o amor pelos meninos e meninas; o amor pelas idéias. Pelo tempo perdido. Pelo tempo redescoberto. Pelas interioridades. E pelas exterioridades também. Pois todas as histórias de aventuras amorosas, antes de qualquer possibilidade de realização, são, sem dúvida, histórias sobre a própria busca do amor — estado de alma, delírio, ferramenta ou sentimento que, como no mito grego, seria capaz de integrar novamente, de forma sagrada e mágica, as duas metades de um mítico ser, realizando, assim, a aventura do retorno de/sobre/em si mesmo. Contudo, esse retorno, de fato, é possível? É possível acreditar na existência do amor como um retorno fechando o ciclo de espera e angústia, compensando, resolvendo, dissolven- do a falta, dolorosa e obscura, acumulada durante toda uma vida? Ou essa busca não passaria de movimentos em direção a um futuro cada vez mais futuro, um futuro que, feito pântano, apenas traga os movimentos, fazendo-os sempre repetidos, re-encenados ad infinitum, ora plânctons de tão cristalinos na instantaneidade do amor, ora lobisomens perdidos, afundando, sedentos em busca dele? Algumas histórias de Caio Fernando Abreu acreditaram, acreditam e querem continuar a crer que sim: a busca do verdadeiro amor deve levar, necessariamente, a um encontro senão definitivo pelo menos luminoso do eu com o outro, a fim de completar o ciclo Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

efêmero na terra, como duas metades que se fundem, unificando-se e gerando sentidos. Algumas letras de Renato Russo também investem nesse mergulho, sonhando colher cavalos- marinhos na palma da mão. Nessas pequenas narrativas, os autores elegem o mito do grande amor como o “sentido que virá depois”, sentido último: verdade, enfim, revelada. É por amor que seus personagens tateiam, entre luz e sombra, entre ventos e litorais, entre círculos de dias e noites, entre espaços de cimentos e canteiros de morangos ainda por nascer. No entanto, acreditar no amor não implica desfazer suas zonas de espanto, estranha- mento e incoerências. Por isso, vejo em ambos uma tentativa, ora feliz, ora fracassada, de imprimirem leveza, uma certa “dança sutil”, a esses movimentos dos sujeitos em torno da descoberta da experiência amorosa enquanto única ou talvez a mais produtiva possibilidade de conhecimento de si e do outro. Quero dizer com isso que, desde o princípio, os textos de CFA e RR que mais me interessaram analisar foram/são, justamente, aqueles/esses que apos- tam nas narrativas de experiências amorosas como um espaço de compreensão e de aprofun- damento da complexidade dos sujeitos, nos quais o amor é questionado, ironizado, negado e, também, relegado a uma das categorias da ilusão ou cegueira humana. Assim, é comum tais representações alternarem momentos de extrema leveza e ironia com passagens dolorosas e, por vezes, sem saídas. Os textos de CFA são constantemente povoados por imagens de muros, cavalos, dragões, borboletas, sereias, damas da noite, azaléias, margaridas, salgueiros, chorões, pedras, maçãs, ovos apunhalados, praias escondidas, morangos que passam do ponto, ameixas que sangram, pombos cinzentos que bicam os olhos dos personagens protegidos pelo vidro da janela, vultos que dançam de amarelo, infinitos telhados e janelas, janelas, janelas. Os de RR são habitados por dragões, raios, relâmpagos, trovões, ventos em litorais, abismos, florestas, diamantes feitos de pedaços de vidro, crianças, canivetes, laranjeiras verdes, cavalos marinhos, gigantes de mármore, leões, espelhos, serpentes, jardins, deuses, índios, fábricas, lugares distantes, barulhos, tropas de choque, urbanidades, meninos e meninas. Em ambos, as imagens são dotadas de cores, formas, cheiros, mas, também, de leveza e densidade. Os espaços de circulação dessas imagens são flutuantes. Independentemente da dor, quase sempre optam pela dança: do amor, do sexo, da busca. Funcionam como caleidoscópios repletos de entradas e saídas, que não buscam a divisão binária dos afetos em heterossexuais e homossexuais, mas, antes, querem fazer circular fragmentos de uma multiplicidade de afetos e desejos, performances e problemas, não restritos apenas ao mundo masculino, todavia, nutrindo-se, sobretudo dele. No entanto, trata- se de um masculino que evita cair no lugar comum da sexualidade masculina: a Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

promiscuidade, a objetividade e a efemeridade. Em vez disso, optam pelo que Ana Cristina Chiara chamou, em “Afinidades eletivas”, de “romantismo exaltado”:

Caio Fernando pertence à linhagem dos meninos delicados de nossa literatu- ra que se queimam num romantismo exaltado, mesmo quando superatuam de bad boys. É da turma dos românticos à Álvares de Azevedo: “A vida e só a vida! Mas a vida tumultuosa, férvida, anhelante, às vezes sangrenta – eis o drama”. Poderia também posar para uma foto ao lado de Cazuza (“Piedade pra essa gente careta e covarde”), ou do comovente e talvez último dos ro- mânticos exagerados, Renato Russo. Doem-se tanto e acabam por morrer por delicadeza (“par delicatesse j’ai perdu ma vie”, Rimbaud), envenenados na própria paixão (“Não posso fazer mal nenhum a não ser a mim.”). A palavra- chave é entrega. E essa confusão entre a vida e a arte. Essa vida de artista… mesmo quando não falam por si próprios, difícil saber quando não falam de si (Cazuza cantando Esse Cara e estamos entendidos!...). A palavra, para es- ses artistas, também pode ser sen-si-bi-li-da-de, assim escandindo as sílabas, como Drummond (esse, ao contrário, um mestre do disfarce e do controle da imagem – um tigre disfarçado.)16.

Os elementos biográficos manipulados por esses artistas não podem ser enquadrados naquela sistematização das diferenças e aproximações entre o romance biográfico e a autobi- ografia, feita por Lejeune (2003), que estuda as relações de identificação entre autor, narrador e personagem. Digo isso porque não vejo nesses autores citados por Chiara e, especialmente em CFA e RR, a preocupação — denominada por Lejeune de paradoxal — de instaurar uma verdade pessoal sob a forma de um discurso verídico e, ao mesmo tempo, literário, o que im- plica tensão entre transparência (fatos referenciais) e opacidade (elaboração estética). O cha- mado “pacto autobiográfico” que, segundo o crítico francês, estabelece a identidade entre o tripé autor-narrador-personagem, só pode ser visto em CFA e RR enquanto exploração do jogo de registrar a vida, através de uma exposição do cotidiano e da incorporação, na escrita, de dados biográficos. Esse jogo produz um eterno fazer-se e desfazer-se diante dos olhos do leitor, que, num primeiro momento, pensa estar diante de uma espécie de relato biográfico ou confissões, ou seja, uma narrativa que traz à tona vivências dos sujeitos empíricos e que se constrói mediante um contrato social, mas, num segundo momento, percebe a estruturação de personae inapreensíveis e, por vezes, tão fictícias quanto qualquer personagem de um conto, romance ou novela. Tanto em CFA quanto em RR há elementos íntimos que se fazem sinceros e confessionais, como ordenações de fatos históricos, políticos, experiências geracionais, referências a datas, nomes de pessoas, ruas, cidades, ídolos etc., mas que se desfazem em

16 Cf. Revista Ipotesi, v. 4, n. 2, jan./jun. 2001, p.10. (versão on line). Disponível em: . Acesso em: nov. 2007. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

silêncios, espaços vazios, máscaras, ironias, num brincar de esconde-esconde, qual uma aranha com sua teia, diante de qualquer tentativa de enquadramento de um “eu” biográfico que se abriria, desvelando-se, desrecalcando-se, através da exposição literal de suas experiências reais, cotidianas. O que se vê é uma manipulação de fatos concretos, vividos, mas não em prol de uma identidade ou unificação do “eu”, e, sim como forma de recriar esse material biográfico. Nesse jogo, já se sabe: muitas vezes os artistas não apenas se metamorfoseiam em personagens, ou criam narradores analíticos, capazes de se distanciarem do autor para melhor observá-lo, mas, sobretudo, deslizam para um lugar de estranhamento ou espanto com a maté- ria vivida, permitindo que dela nasçam outras vozes e outros olhares. Aliás, não é novidade alguma dentro dos estudos literários que, já algum tempo, a preocupação com a fidelidade dos fatos cedeu lugar à reelaboração literária desses, e a escrita do eu desaguou numa polifonia, uma vez que na ficção o “eu” se multiplica em muitos “outros”, e o que nos chega é uma pul- verização de “eus” simultâneos, formando a subjetividade de caleidoscópio, de que nos fala Julia Kristeva (1976). A proposta de traçar uma linhagem para alguns artistas e escritores brasileiros que tendem a misturar biografia com criação, estabelecendo isso que Chiara chama de delicada confusão entre vida e escrita, deságua em duas palavras que se destacam na citação acima: sen-si-bi-li-da-de e entrega, dois elementos originários do que, culturalmente, aprendemos a codificar como atributos femininos e que se ligam ao tema maior deste texto: a análise das representações do amor. Quero dizer com isso que ao ligar a predominância da busca pela realização amorosa nos textos desses autores com a tendência de problematizar os limites tê- nues entre vida e arte, estou enxergando neles uma prática daquilo que, normalmente, adjeti- vamos como “postura feminina”, traduzida por alguns teóricos (RIETH, 2000; ARAÚJO, 2003) como uma apreensão por parte das mulheres de que o amor deve fundamentar-se num híbrido de amizade, erotismo e alegria — ao que eu acrescentaria ainda uma certa “delicade- za” entre os parceiros e total “transparência” dos pactos firmados entre os dois —, uma vez que as mulheres costumam vincular a pessoa ideal com a experiência do amor e do sexo, en- quanto os homens tendem a dissociar experiência sexual de namoro, casamento ou relaciona- mento fixo. Quando digo “costumam” e “tendem” estou procurando não apenas mostrar que existem exceções em tais generalizações, mas, sobretudo, não ignorar que essas considerações baseiam-se em pesquisas (GIDDENS, 1992; RIETH, 2000; ARAÚJO 2003) frutos da escuta a sujeitos que expressam em seus discursos essa linha de orientação para suas experiências e Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

demandas. Não quero dizer, no entanto, que toda experiência feminina e/ou masculina seja orientada por tal prática ou valor, nem que sejam excludentes, isto é, que na orientação denominada de “postura feminina” não possa existir parte daquilo que codificamos como “postura masculina”, afinal, em ambos os casos, estamos falando de construções culturais e não de “natureza” ou “essência”. Em verdade, o que mais me chama atenção é um certo ponto em comum entre o que esses teóricos mostram como a necessidade de relacionar, desde o início, amor e sexo — per- cebida no discurso de mulheres entrevistadas — e a vontade de misturar vida e arte, analisada por Chiara como um elemento significativo que instaura uma linhagem de “meninos delica- dos” na literatura brasileira, compreendendo por “delicadeza”, não a ausência de vigor, mas a capacidade da “entrega”. Essa entrega, por sua vez, não implica “passividade”, e, sim, num jogo onde se apresentam peças de um quebra-cabeça que deverá ser armado pelo outro, pe- quenos fragmentos reluzentes de um mosaico elaborado a partir da vida:

Delicadeza que pode também estar ligada ao modo como as emoções encon- tram-se fortemente interiorizadas, e a esse turbilhão interior corresponde uma economia de gestos, típica dos exibicionistas tímidos. Se pouco aconte- ce em termos de peripécias narrativas, tudo é tenso e a tudo se fica atento. A atenção às coisas é, por conseguinte, o correlato da intensidade emocional posta, agora, no mundo exterior. Tudo parece estar subordinado a um desejo de projetar suas imagens em tudo que tocam. Essa pretensa confissão provo- ca o fascínio no leitor voyeurista que deseja perversamente compartilhar desse cenário composto para seduzi-lo. (CHIARA, Op. Cit., p.12).

O ato de jogar com a atenção do outro consiste numa espécie de brincadeira na qual os escritores e artistas vão dispondo peças de um emaranhado de pequenas coisas retiradas do cotidiano e revestidas de novas intensidades que formam essa zona íntima, onde os afetos, as emoções e as projeções não são negados nem simplesmente confessados, mas renegociados, através de um constante diálogo entre o que faz parte dos investimentos pessoais e o que pode seduzir, provocar, capturar o olhar, a atenção do outro. Acreditar e insistir no amor é então, para Caio Fernando Abreu e Renato Russo, um elemento chave para manter em permanente estado de abertura esse espaço sensível de construção, exposição e partilha, por isso, a busca e vivência do amor são tão importantes para suas escritas, pois funcionam como uma artilharia contra a vulgarização de tudo aquilo que representa sensibilidade, agudeza, diferenciação para eles: “Delicados, crêem no amor. E, se para o poeta romântico ça va de soi, o amor — essa idealidade improvável — para o escritor contemporâneo, significa estar na contracorrente da banalização dos afetos” [...] (CHIARA, Op cit., p.13). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

A “contracorrente” de que nos fala Chiara é outro emaranhado de relações estabelecidas entre as duas subjetividades desses artistas e as paisagens onde eles se inserem: Caio, na geração dos anos 60, que viveu a contracultura, flertou com a militância de esquerda nos anos 70, saiu às ruas em passeatas pelas Diretas-Já nos anos 80 e mostrou a cara da AIDS nos anos 90. Renato Russo faz parte dos jovens que experimentaram os frutos ou derivações da contracultura, mergulhando de cabeça no movimento punk de 75-76, empunhando suas guitarras no cenário da redemocratização dos anos 80, organizando toda uma indústria de shows num Brasil até então completamente amador em relação à indústria da cultura pop, ganhando dinheiro, saindo da casa dos pais, e, também, lutando contra as marcas da AIDS em seus corpos e produções, na difícil década de 90. Mas esse contexto em comum, da mesma forma que os aproxima, pode criar zonas de afastamentos que os diferenciam por completo. Ainda assim, é possível, num exercício imaginativo de aproximação de autores, falar aqui de uma vontade, presente em ambos, de fazer com que as construções do amor funcionassem não apenas como um espaço de rediscus- são e/ou de ativação de determinados aspectos do amor romântico, como “correspondência apaixonada”, “complementação”, “almas gêmeas”, “fusão amorosa entre dois seres”, “revela- ção”, “destino” etc., mas, sobretudo, como elementos de guerra: a sedução e a delicadeza con- tra o imediatismo e a banalização dos afetos em nossa época. Além disso, os esforços encenados nos contos de CFA e nas letras de RR que tratam da busca do grande amor mostram uma certa melancolia e uma constante solidão que, curio- samente, convivem lado a lado com uma leveza irônica e/ou uma alegria escandalosa, ligadas aos espaços móveis e velozes da contemporaneidade. Eu diria que há uma especificidade tra- gicômica em suas produções, como se o mundo fosse composto por pedacinhos de uma in- terminável música triste, sob a qual, no entanto, se quer dançar. Quando os leio ou ouço, é como se ambos estivessem me dizendo que tanto a música quanto a literatura são jogos, e que é preciso jogá-los sem amargura, com certa leveza, mas sem desprezar a dor e a angústia pró- prias do ato de jogar. Assim, compreendo a existência de poucos amores felizes, em ambos os autores, mas, sobretudo em CFA, como um espaço cuidadosamente inventado para tensionar essa tendência cultural, partilhada ainda hoje por homens e mulheres nos mais diversos países ocidentais, de construir toda uma trajetória de vida em torno da crença e procura do par perfeito com a melancolia e a solidão advindas das perdas sucessivas das possibilidades de amar e ser feliz. Essa paisagem é construída num terreno multifacetado e contraditório, irônico e, por vezes, escandaloso, a que, já algum tempo, nos acostumamos nomear de pós- Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

moderno ou contemporâneo, um universo que, por sua vez, começou a se delinear com a velocidade que ora conhecemos a partir das transformações sócio-político-culturais e midiáticas percebidas após a Segunda Grande Guerra e intensificadas pela contracultura. Dentro desse universo, há uma tensão entre força subjetiva e forças objetivas que é retomada por CFA a cada história. Tanto a literatura produzida por Caio Fernando Abreu quanto o rock da Legião Ur- bana são manifestações artísticas de origens pequeno-burguesas — segundo Sodré (2003) é de onde se originou a classe média no Brasil —, isto é, são formas de atuação na esfera artística e cultural de uma camada específica da população que tem acesso ao exterior (ou a partir de viagens ou de leituras e informações), que experimenta e traz para cá ritmos, valores estéticos e atitudes político-sociais, primeiro da contracultura, em 1960/70, e depois do rock inglês e norte-americano, que, em 1980, experimentou a difusão mundial trazida pelo movimento pós- punk, denominado de new-wave. Por isso, amplio aqui as informações e análises da estrutura- ção inicial dessa camada social, apresentadas por Sodré, para inserir e compreender o surgi- mento e impacto no mundo literário da escrita de CFA, e, uma década depois, a produção da Legião Urbana junto com o surgimento do rock nacional e sua expansão em diferentes cama- das da sociedade brasileira. É, justamente, a mobilidade da classe média brasileira, imprensa- da entre a elite e o povo, que está presente nesse processo de inserção, veiculação e trânsito dos valores da contracultura e do rock nacional, pois tanto CFA quanto RR (assim como a grande maioria dos integrantes das bandas dos anos 80 que fez sucesso no Brasil) são jovens filhos de funcionários públicos (tanto de repartições quanto de bancos federais), de professo- res de ensino médio ou universitário, ou de militares de média patente — muito embora, no caso do rock brasileiro, uma pequena parcela seja filha de diplomatas, embaixadores e gene- rais, ou seja, já não pertencia à pequena-burguesia. Traço essa linha comparativa entre o contexto da música de RR e o da literatura de CFA, não apenas por serem contemporâneos ou por trazerem elementos urbanos e midiáticos, mas também por assumirem uma perspectiva de crítica político-cultural dos valores tradicio- nais. Tais valores começaram a ser revistos, é preciso dizer, a partir do movimento da contra- cultura, contexto no qual se insere, de forma direta, a produção de Caio Fernando Abreu e, indireta, a de Renato Russo. A contracultura pode ser definida como o conjunto de movimentos ou organizações informais de jovens, na década de 60, em vários países do mundo ocidental, contra os valores da cultura estabelecida, que ganhou corpo no Brasil por volta de 1970. Dentro desses movimentos, enormes massas de moças e rapazes, de classes e origens diferentes, buscaram Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

formas das mais variadas para se expressarem contra o capitalismo e os modos de vida conservadores, forçando toda a sociedade a repensar as idéias de organização familiar e institucional, liberdade individual, casamento, relações sexuais, interferência na natureza, domínio e conhecimento do próprio corpo, transcendência, relação ideológica do sujeito com o Estado, com a arte e as linguagens em geral (HOLANDA, 1982). É nesse universo contestador que a música rock se solidifica, popularizando diversos fragmentos de idéias e cultura que passaram a ser reproduzidos à exaustão em jornais, revis- tas, rádio, cinema, TV aberta e fechada, Internet, ou em livros, história em quadrinhos, CDs (e, hoje em dia, MP3 e 4), entre outros recursos, formando esta paisagem que ora denomina- mos mundo contemporâneo, ora pós-moderno. Dentro dela, a escrita de CFA e a música de RR movem-se com seus universos de referências, suas famílias (linhagens) e afetos, suas a- propriações de textos tradicionais da nossa cultura, mas também de fotonovelas, quadrinhos, música popular, pop-rock, pop-arte, cinema etc., produzindo signos e imagens mutantes, in- quietos, desarmônicos, extraídos de diálogos e discursos sobre diversos temas que são funda- mentais para se pensar a condição limítrofe de homens e mulheres dos tempos atuais. Entre tais temas e em destaque, está a rediscussão acerca da busca do grande amor, qual seu papel hoje no nosso tempo despedaçado, a que forças de captura e liberdade ele serve, que outras vozes ele pode fazer falar, como, quando, onde, por quê e para quê a dança do amor precisa e/ou pode ser re-encenada. Ou seja, as representações afirmam e perguntam, ao mesmo tem- po: “quando se aprende a amar o mundo passa a ser seu”?

1.3 O TEMPO DO AMOR HOJE: UMA COREOGRAFIA DESPEDAÇADA

Os filmes Antes do amanhecer e Antes do pôr-do-sol, os textos de CFA e RR, assim como tantas outras produções artísticas contemporâneas, questionam a procura da alma gêmea, o culto do amor romântico, à medida que expõem seus pés de barro, mas não o negam completamente, em vez disso, re-encenam-o, trazendo para o palco a discussão em torno dos valores, mitos, crenças e clichês que fazem parte dele. Contudo, falar de amor, compreender suas formas de manifestação, estudar e manipular suas diferentes faces, movimentos e capturas nos discursos artísticos não é uma tarefa fácil, afinal, a própria definição da palavra “amor” mistura-se a uma infinidade de experiências, ações, contradições e paradoxos Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

humanos, que, há tempos, vem servindo de fonte para questionamentos, conceitos, comparações e estudos nas mais diferentes áreas do conhecimento. De modo geral, na tradição dos estudos e das representações acerca do amor no mundo ocidental, é possível diferenciarmos três tipos ou formas mais usuais que orientam sua delimitação: a forma Eros ou amor romântico, a forma Philia ou amor amigo, e a forma Ága- pe ou amor universal, também chamado de Caritas (SPONVILLE, 1995). A primeira maneira de amar está relacionada com o reconhecimento de uma falta, uma demanda sentida pelo(a) amante de que o outro possui a chave ou resposta para o seu problema, o remédio para sua ferida, a solução para o seu vazio. Trata-se de um sentimento que se orienta, sobretudo, pelo desejo daquilo que não se tem, pela vontade de complementa- ção, de encontrar alguém a quem se credita o poder de revelar o sentido maior da vida, é o que no senso comum chamamos de “crença do amor romântico”. Essa orientação pela procura da alma gêmea, do par perfeito que precisa ser conquistado, conhecido, encontrado pelos sujeitos em suas trajetórias é uma das marcas da experiência do amor romântico, assim, antes mesmo que os sujeitos vivenciem uma relação amorosa, já estão em contato com a representação dela e com os mecanismos que a viabilizariam, como rituais e lugares de procura, investimentos na aparência e no comportamento, formas de conquista e todo um arsenal de técnicas em prol de encontros que efetivem tal experiência. A preparação para o encontro com o grande amor é, desde a época clássica, um ele- mento importante na conquista amorosa, mas não o único, uma vez que a sorte e o destino tam- bém coexistem em tal concepção, embora se possa tirar proveito delas de maneira inteligente e racional, através de uma técnica, conforme ensina Ovídio, logo no início de sua A arte de amar:

É graças à arte que os barcos podem avançar rapidamente, impelidos pela vela e pelo remo, é graças à arte que pode avançar o carro veloz. Também o Amor deve ser governado pela arte.[...] Embora ele seja rude e muitas vezes me re- sista, é ainda criança [o Amor, Eros ou o Cupido], sua idade é tenra e deixa-se dirigir. [...] Antes de mais nada, trata de encontrares o objeto amado, tu que és um soldado que terças armas pela primeira vez; em seguida, dirige teus esfor- ços no sentido de conquistares a mulher preferida e, em terceiro lugar, procura fazer com que teu amor dure longo tempo. Tal é o método; dentro desses limi- tes, o nosso carro deixará marcado o sinal de suas rodas, a toda velocidade, pa- ra alcançar a meta. [...] Ela [a mulher preferida] não te cairá nas mãos trazida pelas auras; terás de procurá-la com teus olhos. (s/d, p. 23-25).

Trata-se de uma concepção de amor que inclui a crença nos deuses e heróis (Vênus, Automedonte, Tétis, Aquileu, entre tantos citados pelo poeta), mas também a idéia de que é a soma de um aprendizado: para saber gozar o amor, há de se adquirir um método antes (na Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

procura do ser amado), durante (no ato da conquista) e depois (no prolongamento do êxtase da conquista). O método é racional e controla a emoção. O canto de Ovídio é um manual de fórmulas e atitudes diante da experiência amorosa, o que mostra o amor, tanto no mundo dos deuses quanto no dos homens, como uma força maior ligada à embriaguez dos sentidos, ao acúmulo de aventuras, à disposição constante aos prazeres carnais, numa época tão em ruínas a ponto de Ovídio ser chamado tantas vezes de poeta da decadência romana — é a aproximação de Eros com Dionísio. Seu poema traça um mapa de todos os lugares onde o macho deveria ir encontrar a fêmea para o banquete do amor — o Pórtico de Pompeu, os teatros recurvados, as praças públicas, a corrida de cavalos no circo, as festas de Baco —, assim como a maneira com que os homens deveriam se vestir e se portar em público. O amor é representado como o maior dos prazeres, aquele que merece ser degustado à exaustão e de maneira livre, sem compromissos, sem limites, sem problemas de ordem moral ou existencial. O ato é racional mas leva ao espaço dionisíaco: trata-se do maior de todos os prazeres que o ser humano pode gozar no mundo, por isso, há de se aprender a usufruir desse banquete de forma variada e cada vez mais. Na cultura Greco-Romana, o deus Eros, também chamado de Cupido ou Criança, é sinônimo de amor, ele é a origem de tudo e é também temido tanto pelos humanos quanto pelos deuses, pois ninguém consegue escapar de sua ação sem experimentar dor, perturbação, angústia. Essa relação mitológica guarda um paradoxo, uma vez que Eros é, a um só tempo, o que se procura e o que se evita, seu mito engendra a impossibilidade do ser humano de con- trolar conscientemente essa força ou pulsão e, também, a necessidade de controlá-lo, sempre. O canto de Ovídio é, justamente, a tentativa de controle, de racionalização dessa força: “quan- to mais o Amor me fere, quanto maior é a violência com que investe, melhor poderei vingar- me das feridas que ele me fizer” (OVÍDIO, s/d, p.24). O método consiste então em enfraque- cer a flecha do Cupido, tornando-se em vez de vítima “um eterno caçador” de presas amoro- sas. É a crença de que estando o sujeito constantemente praticando os jogos amorosos (na arena do amor), dominando os mecanismos de conquista, ele evitará, assim, ser surpreendido pela captura do Amor. Aqui, o excesso é a cura, pois a única forma de dominar Eros é não evitá-lo mas transformar sua presença num banquete. Está ausente em Ovídio, portanto, a idéia do amor como aquilo que todos os homens e mulheres aprendem a buscar desde cedo e, ao mesmo tempo, como uma experiência dolorosa de perda de si mesmo, de reconhecimento de incompletude, de necessidade do outro, de medo da rejeição, de entrada no desconhecido. O amor de Ovídio nada tem a ver com a luz e a escuridão de que nos fala Dante, séculos depois, ao ver pela primeira vez Beatriz; nada Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

tem a ver com o desespero que só pode levar à morte, como ocorre com Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Abelardo e Heloísa, Paola e Francesco, entre tantos outros. Por sua natureza complexa e contraditória, Eros é descrito pelos estudiosos da cultura greco-latina como uma das divindades primordiais, devido a uma posição privilegiada no Pan- teão dos Deuses (D’ONOFFRIO, 2005; VERNANT, 2000), embora também seja classificado como um mito da natureza, assim como Orfeu, Arion, Narciso, Eco, Psiquê, entre outros (EVSLIN, 2004). Em Hesíodo (Teogonia), Eros vem depois de Caos, Gaia (Terra) e Tártaro, como “o mais belo dos deuses imortais” (1995, p. 116). Nas diferentes versões sobre sua ori- gem, ora o Cupido está relacionado com o princípio cósmico, ora é associado à beleza de sua mãe Vênus (Afrodite) — que, por sua vez, também tem pelo menos três versões originais17 — , ora é uma junção das qualidades e defeitos de Pênia (a pobreza) e Poros (Recurso, filho de Prudência), os verdadeiros progenitores de Eros, conforme o aprendizado acerca do amor a- presentado por Sócrates, a partir do discurso de Diotima, em o Banquete. Nesse livro, são destacados três aspectos fundamentais de Eros: primeiro, a separação do bom e mau Amor, presente no discurso de Pausânias; depois, seu caráter andrógino, recontado na fala de Aristó- fanes; e, por fim, esse lugar limítrofe do Amor, explicado a Sócrates por Diotima: sua eterna dança entre coisas de natureza opostas, sua carência que o faz nem mortal nem imortal, nem feio nem belo, nem bom nem mau, nem sábio nem tolo, mas uma ligação invisível entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses. Segundo Salvatore D’Onofrio (2005), Eros representa a força de “coesão interna do Cosmos”, seu mito “é a possibilidade de uma continuidade da vida na Terra”, mesmo dividida entre carne e espírito, matéria e divindade, sabedoria e ignorância (pobreza). D’Onofrio remete para a compreensão que Platão possuía desse mito: uma espécie de dáimon ou mediação entre o mundo celestial e o mundo humano. Tal mediação foi perdida diante da redução de Eros ao aspecto carnal, e sua confusão com o deus do sexo e da procriação (Priapo) fez nascer alguns usos para a palavra que já não remetem ao mito grego, como ocorre com o emprego cotidiano da palavra “erotismo”, por exemplo. Isso acontece devido à impossibilidade de junção entre corpo e alma trazida por muitas representações do amor romântico. Essas representações, muitas vezes, consideram contraditória a união do divino

17 Numa ela é filha de Zeus e de Dione; noutra ela teria nascido dos órgãos sexuais de Urano, que foram cortados por Cronos e, ao caírem nas águas salgadas do mar, deram origem à deusa do amor; numa outra versão, Vênus nasce da própria espuma do mar. De qualquer forma, a ela são atribuídos à capacidade humana de materializar o amor no ato sexual, a capacidade de reconhecer a beleza desse ato, a perspectiva de fertilidade oriunda dele, e o sentimento de vingança e de raiva ou irritação, de morte e destruição que também ocorrem no amor. Esses aspectos negativos advêm da origem complexa e do temperamento irritadiço de Vênus, que usava seu cinto mágico ou fita bordada (“kestós”, no grego) para inspirar o desejo carnal no belo (BRANDÃO, 1995; VERNANT, 2000; EVSLIN, 2004). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

com o carnal, isto é, a vivência íntegra de Eros (é o caso das representações de André Gide, por exemplo), seja porque desejam expor ora supremacia da matéria, ora a do espírito, seja porque a comunhão desses dois aspectos ao longo das histórias dos sujeitos foi perdendo a sua força de representação. Assim, em vez de mediação entre espírito e matéria, muitas vezes o que encontramos nas representações de Eros é a ênfase no amor contemplativo e idealizado — como no amor cortês e no ultra-romantismo — ou no amor sensual, como forma de destacar o aspecto corporal, a satisfação ou prazer carnal (à maneira de Ovídio). Essa oposição, no entanto, ainda que apareça de forma explícita em muitos textos, é constantemente renegociada nas produções contemporâneas, nas quais podemos ver tantos e diversos aspectos de como os seres humanos enxergaram, enxergam e desejam continuar enxergando o amor. No universo freudiano há o amor transferencial (na busca da verdade de si mesmo e na ignorância desse saber, o analisando ama o analista, e esse amor abre um espaço onde o paciente recria suas próprias possibilidades de existência) e o amor cotidiano (em que Eros é visto como uma pulsão de vida, o estímulo que tece uma rede de relações entre núcleos indi- viduais e organismos maiores, numa atividade vital incessante). O percurso de Freud foi o de uma compreensão da sexualidade humana, mas como esta caminha de braços dados com o amor, e vice-versa, ao inserir o sexual no registro do pulsional, ele inscreveu também em am- bos (amor e sexualidade) a impossibilidade de satisfação, isto é, a idéia de que o ser humano só consegue se satisfazer fora da realidade, no campo da fantasia. Assim, tanto o amor quanto o sexo são buscados o tempo inteiro na vida diária, nos discursos, nos gestos, nos corpos humanos. Eros é como que uma síntese de tudo que pode ser traduzido como amor, é energia (libido), que compreende o amor aos pais, a si mesmo, aos filhos, às pessoas em geral, ao conhecimento, às abstrações, às coisas. Nessa energia estão tanto as pulsões18 (de afeto), quanto o ciúme, a inveja e os desejos sexuais: “O amor é, assim, apresentado como uma ampliação do conceito de sexualidade e ao mesmo tempo ancorado na inadequação radical dos objetos à satisfação sexual, vinculada a um fator de desprazer ineren- te à sexualidade humana” (VALDIVIA, 1993, p.4).

18 Pulsão, segundo Freud, é “o representante psíquico de uma fonte endossomática de estimulação que flui continuamente, para diferenciá-la do ‘estímulo’, que é produzido por excitações isoladas vindas de fora”. E também é “um dos conceitos da delimitação entre o anímico e o físico. A hipótese mais simples e mais indicada sobre a natureza da pulsão seria que, em si mesma, ela não possui qualidade alguma, devendo apenas ser considerada como uma medida da exigência de trabalho feita à vida anímica. O que distingue as pulsões entre si e as dota de propriedades específicas é sua relação com suas fontes somáticas e seus alvos”. Cf. FREUD, v. VII, p. 102-3 (versão em CD-ROM). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

No universo freudiano então se destaca como aspecto principal dessa busca incessante de amor o desejo de ser amado (que, tal como o sexo, é impossível de ser satisfeito), explicitado pelos mais diferentes pacientes, e não o desejo de amar ou a vontade de correspondência. Uma das narrativas que tentam explicar essa busca incessante de amor (também citada por Freud em “Além do princípio do prazer”) é o mito do andrógino, contado por Aristófanes, no Banquete. Ele fala que antes de serem reduzidos a dois gêneros, os seres humanos se dividiam em três: masculino, feminino e andrógino. O andrógino possuía, ao mesmo tempo, as características de macho e fêmea, tinha uma enorme força e resistência, além de ser muito ambicioso. A ambição leva-o a exortar os outros para escalar os céus, conspirando contra os deuses. Ofendidos, os deuses decidem extinguir a espécie humana com um raio. Porém, voltam atrás ao perceber que junto com o homem iriam ser perdidos, também, os sacrifícios de devoção às divindades e as exaltações, típicos dos seres humanos. Assim, Zeus opta por partir o andrógino ao meio, não apenas enfraquecendo-o, tornando-o incompleto. Dessa divisão nasce o desejo humano eterno de encontrar a sua outra metade na terra. Em oposição a Eros está Thanatos, como uma força oposta à de vida, uma pulsão de morte. Quem é visitado por Thanatos fica congelado no tempo e no espaço. Trata-se de subje- tividades que caem numa imobilidade, numa inaptidão para o cotidiano, numa desintegração da individualidade, numa espécie de indiferenciação no Cosmos — o que leva à anulação de si mesmo, à autodestruição. No entanto, essas duas forças ou idéias, pulsão de vida e pulsão de morte, não se encontram tão dissociadas assim, pois há uma espécie de fronteira formada tanto pelos elementos comuns quanto pelo que há de diferente entre elas. Um aspecto que aproxima Eros de Thanatos é a inclinação para uma integração do Eu no Todo. Como pulsão de vida, Eros impele todos os organismos a repetir o movimento original (estado primevo) de busca de união/retorno à Totalidade, no entanto, na pulsão de vida cada elemento conserva sua individualidade, enquanto que na pulsão de morte os limites que diferenciam uma indivi- dualidade da outra desaparecem, ou seja, Eros leva à soma, Thanatos leva à dissolução. Essas noções antagônicas, trabalhadas por Freud em “Além do princípio do prazer”, revelam muito mais um jogo entre pulsão de vida e pulsão de morte do que uma exclusão ou mesmo a presença pura de uma delas no indivíduo. Ao contrário, enquanto a última alimenta o instinto de destruição, a outra incita a evolução pessoal. Dessa forma, ambas podem ser flagradas na esfera prática da vida humana, ora desenvolvendo a auto-estima, ora lançando o sujeito num mar de insatisfações. É bom lembrar que essa característica de ser uma força inquieta e insatisfeita sempre fez parte da natureza conflituosa de Eros, conforme apontam Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Platão (Banquete), Hesíodo (Teogonia) e Ovídio (As metamorfoses), e quando Freud tenta explicar essas duas forças como essenciais ao ser, deixa-se orientar pelo oposição ou contraste existente entre elas, uma vez que a ele interessa conhecer, definir e separar os instintos de autopreservação e preservação da espécie (Eros) daqueles de anulação e destruição (Thanatos). O que fica marcante nessa exploração freudiana é a idéia de Eros como uma eterna luta pelo prazer, e, se lembrarmos que o espaço ou mapeamento do amor feito por Freud vai se construindo em vários textos — está tanto na construção do Complexo de Édipo, quanto nas investigações da histeria, feminilidade e narcisismo —, percebemos que o modelo de a- mor originado de sua análise não nos auxilia na compreensão da busca do amor em nossos objetos de estudo, uma vez que não teria sentido reduzir todas as perambulações e emaranha- dos do amor em CFA e RR a uma única vertente e sentido: a da falta. Pois é sempre a falta que orienta o percurso freudiano, quer na compreensão do amor da mãe pelo filho, por exem- plo (tanto na fase pré-edipiana quanto na fase edipiana propriamente dita), quer na análise do modelo narcisístico (uma categoria onde só se ama o que se é, ou o que se foi, ou o que se gostaria de ser ou algo ou alguém que um dia fez parte de quem se é hoje). Assim, no universo freudiano a orientação gira em torno da idéia de uma fenda gera- da pela falta estrutural, que leva os sujeitos a procurar formas de preencher esse vazio. Tudo isso resulta num processo de compreensão do amor e de sua busca como uma forma de ali- mentar a ilusão da complementação, pois tanto o amor pelo ego quanto o amor objetal levam a uma constatação de que o que se ama (o objeto do desejo) é um vazio (objeto perdido), e isso forma uma paisagem em que todos os elementos são substitutos dessa falta (a eterna per- manência da falta), alimentando a repetição desse momento original em que se deparou com a perda. Para Lacan (1983), a definição do desejo está relacionada com um elemento que está “necessariamente em impasse”, “um elemento insatisfeito, impossível”, “não reconhecido”, o que leva à compreensão do amor como um espaço de ambivalência, pois ama-se aquilo que sempre nos recordará de sua existência faltante. Isso explica, por exemplo, a fronteira sutil entre sentimentos opostos como amor (Eros) e ódio (Neikós). Lacan entende o amor, diferente da paixão, no espaço do grande Outro barrado, isto é, do outro reconhecido em sua castração — a paixão seria o amar o outro acreditando que nele nada falta, é o Grande Outro ou Outro não barrado. Existe possibilidade de novos amores possíveis, uma vez que o amor é aquilo que suplementa a relação sexual. Ou seja, já que a satisfação sexual se dá no espaço da fantasia, fora do campo do real, haveria uma ilusão, oriunda de uma reversão simbólica, de Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

que o encontro com o outro através do sexo é possível, porém, ao perceber que tal encontro é efêmero, não possui durabilidade, o amor então surgiria, a partir de outra reversão imaginária. Ou seja, é novamente uma perambulação em torno da falta, porém, aqui se acredita no amor como uma possibilidade renovada (imaginada diante da insatisfação do encontro sexual), lá (em Freud), se acredita numa repetição orientada pelas impressões infantis. Numa análise sobre as concepções do amor em Freud e Lacan, Nadiá Ferreira (2004) também se preocupa com o espaço que ele ocupa nos discursos artísticos e amorosos. Para ela, o mito do amor é uma força cujo alicerce é uma eterna promessa de plenitude, e isso pode ser destacado nas narrativas de amor quando os personagens perseguem-no, com sua promes- sa de felicidade, como uma forma de fugir do real. Mas, além desse aspecto, ela também usa a arte para mostrar uma forma de amor baseada justamente na renúncia ao que se ama (objeto), como ocorre no amor cortês — denominado por Lacan de amor como recusa do dom. Ferreira faz um mapeamento dos pontos mais relevantes desenvolvidos pela psicaná- lise acerca do amor, mostrando que no universo freudiano o amor relaciona-se com a idealiza- ção, e no universo lacaniano ele se articula com a sublimação. Segundo ela, em Freud o lugar do amor é ao lado da pulsão sexual (narcisismo primário), sendo sexo e amor um prazer liga- do, inicialmente, à boca (amor-devoração), e, depois, com a ampliação da definição do fenô- meno do narcisismo, o amor aparece como fruto de uma escolha marcada pela divisão da libi- do entre o eu e o objeto, o que resulta numa valorização extrema do “eu” (identificação) ou do “objeto” (idealização), processos também chamados de escolha narcísica e escolha anaclítica — esses dois processos, entretanto, não devem ser visto como excludentes. Depois, ao estudar a dualidade de Eros, Freud junta, novamente, sexo e amor, estabelecendo-o como uma pulsão de vida. Já o lugar do amor em Lacan, que originou textos como “O amor e o significante” (1982), primeiro nasce de um reconhecimento da dificuldade que se tem de se dizer algo sustentável sobre a natureza do amor, assim, ele é uma “paixão imaginária” (derivada da teoria narcísica freudiana) ou um “processo simbólico”. Enquanto a paixão imaginária é a “alienação do desejo no objeto”, ou seja, o sujeito ama o espelho mas desconhece que esse ser amado também é portador de uma falta (permanecendo, portanto, na captura imaginária do objeto, do outro completo), o amor enquanto processo simbólico é consciente de que ama “aquilo que o objeto não tem” (ultrapassando a captura imaginária e entregando-se “na trama significante”). Ferreira destaca nessa teoria lacaniana a precariedade do esforço do sujeito de encarar a falta, e, também, mostra que para Lacan existia ainda o amor como recusa, relacionado com Thanatos — caso do amor cortês que opera pela negação. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Ferreira ainda aborda o amor transferencial, mostrando que a transferência é um con- ceito que se desenvolve a partir de um estranhamento explicitado por Freud de um elemento a que ele chamou de “perturbador” e “motor de cura”, presente na cena analítica — daí a idéia de um amor transferencial, conceito e processo necessário à psicanálise. Já a oposição entre pulsão de vida e pulsão de morte (Eros e Thanatos), estudado por Freud em “Além do princí- pio do prazer”, encontra desdobramento nos textos de Lacan. Por isso, a autora se preocupa tanto com as articulações entre o desejo sexual e o amor, quanto com suas diferenças ou a fronteira que há entre eles. Ela organiza uma certa estruturação do conceito do amor na psica- nálise em dois momentos: a) a partir da perda original, o amor é articulado à compensação pela castração, ao anseio pela completude, pois algo foi perdido e seu espaço vazio dói. La- can, no entanto, entende esse “algo” como uma falta em si (objeto faltoso), sendo essa falta de objeto justamente a condição primordial para a entrada do sujeito no mundo da linguagem. Assim, o amor é uma ilusão de completude perdida, e, paradoxalmente, o encontro com esse vazio, pois tal hiato não pode ser vencido nem por aquele que ama (sujeito) nem por quem é amado (objeto); b) a partir da fronteira sutil entre sexo e amor, articula-se que por amor en- tende-se tanto a vontade de ir ao outro, o movimento do sujeito em direção ao objeto, para além da obtenção de puro prazer (Freud), bem como a fantasia ou o jogo (Lacan) no qual se supõe que o Um é o Outro e, dessa forma, se suspende, momentaneamente, a eterna insatisfa- ção do desejo. A idéia de falta já estava no Banquete, quando Sócrates dá voz a Diotima, e proclama que o amor não é apenas belo, pois a pessoa ama o que ela gostaria de possuir (aquilo que lhe falta), sendo, portanto, Eros destituído de beleza. Em parte essa noção inicial de amor casa-se perfeitamente com o modelo narcisístico da teoria freudiana, uma vez que a pessoa narcisista escolhe amar aquilo que ela própria acha que fez parte dela ou o que ela gostaria de ser. Po- rém, Sócrates acrescenta que essa destituição de beleza inicial não faz o amor ser feio, mos- trando que em vez de uma oposição excludente o que temos é uma mediação: Eros como uma ponte, um intermediário entre os deuses e os seres humanos, e também entre beleza e feiúra, miséria e riqueza, luz e treva etc., pois, segundo o discurso de Diotima apreendido pelo filóso- fo, o objetivo do amor é a criação, uma criação que o leva à imortalidade. Criação, então, é a palavra que diferencia a concepção grega do amor da concepção psicanalítica — essa última opta pela repetição ou suplência como centro luminoso dessa busca incessante de amor. Minha tendência é aproveitar mais os conceitos gregos, seus reflexos e fragmentos nas representações contemporâneas do amor, do que as definições psicanalíticas, e digo isso não apenas devido à minha formação em Letras — donde posso localizar uma inclinação Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

maior para a poesia e cultura clássicas do que para a psicanálise —, mas, sobretudo, pela rejeição pessoal da idéia de que ao amarmos apenas encontramos um substituto precário para uma obsessão infantil de que se perdeu algo (objeto fundamental) anterior à barreira do incesto. Outro problema grave que vejo em lidar com o discurso psicanalítico é a sua tendência ao estabelecimento de uma verdade sobre o amor, algo que eu chamaria de “volta à interpretação verdadeira” ou, como queria Foucault, retorno à morte da interpretação19. Em vez de algumas abordagens acerca do papel do amor e seus significados nos textos de CFA e RR, eu estaria reduzindo-os a uma representação da fenda estrutural, perdendo, portanto, a possibilidade de localizá-lo também nos espaços onde se articulam noções de jogo, diferença, descentramento, aglutinação, multiplicidade, fluxo, descontinuidade etc. Por isso, não nego que os textos por mim analisados podem servir a uma proposta de afirmação da falta, no entanto, eu precisaria colocá-los num divã enquanto sujeitos e não emaranhados textuais, para que pudessem funcionar como na cadeia falada da atividade psicanalítica — processo do qual eu sairia, provavelmente, como aquela que sabe o caminho que conduz à profundidade do símbolo e tudo o mais que o desconstrutivismo já pôs em questão, quando nos chamou atenção para o abandono da idéia de origem em favor de uma inscrição consciente de que não existe uma verdade anterior ao signo, mas as remissões múltiplas dele a outros e outros signos. Por isso, optei por ler o amor e sua busca em CFA e RR dentro de um jogo infinito, em que há o veneno e a cura e a vontade de lidar com ambos, podendo haver também elemen- tos diversos que atuam no processo de fabricação do amor como veneno, negação ou desejo de cura etc., etc. Ou seja, é um processo que reconhece nos textos uma estrutura em movi- mento (DERRIDA, 1971), e não uma verdade submersa para se trazer à tona. Em alguns textos de CFA, a busca do amor mistura os aspectos divino e carnal, mostrando que é nessa junção que o sujeito alcançaria sua plenitude. Um conto que sintetiza muito bem a dança apaixonada de Eros, o seu movimentar-se incansável, denso e leve, senhor e mendigo, entre pobreza e excesso, é o conto “Além do ponto” (Morangos mofados, 1982), no qual a crença de encontrar o verdadeiro amor é o guia ou ímã atraindo e conduzindo o sujeito anônimo, pobre, sujo, por ruas de uma cidade anônima, hostil, uma cidade que ignora a riqueza latente dentro dele; ele que não tem dinheiro para consertar os dentes, ele que numa queda acaba perdendo sua única garrafa de conhaque; ele que não tem mais como comprar

19 “A morte da interpretação é o crer que há símbolos que existem primariamente, realmente como marcas coerentes, pertinentes e sistemáticas. A vida da interpretação, pelo contrário, é o crer que não há mais do que interpretações” (FOUCAULT, 1992, p.21). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

outra bebida para ir ao encontro do grande amor; ele que atravessa a chuva e as poças de lama com suas roupas precárias e sua carência tamanha em busca tão somente do amor; ele que sabia que nada disso importava, pois se tratava apenas da aparência das coisas; ele que possuía algo maior do que a ordem objetiva e distante das coisas; ele que possuía a certeza: era o escolhido pelo deus do Amor:

Era a mim que ele chamava, puxando o fio pelo meio da cidade, por dentro da chuva, era para mim que ele abria sua porta, chegando muito perto agora, cada vez mais, tão perto que um calor me subia para o rosto, como se eu ti- vesse bebido o conhaque inteiro, trocaria minha roupa molhada por outra mais seca e tomaria devagar minhas mãos entre as suas, acariciando-as lento para aquecê-las, ia escurecendo, era cedo ainda, mas ia escurecendo cedo, mais cedo que de costume, ele arrumaria uma cama larga, com muitos cober- tores, e foi então que escorreguei e caí [...] (ABREU, 1982, p.38).

Embora tanto o aspecto sensual quanto o divino do amor esteja sendo buscado nesse texto de CFA, diferentemente do que encontramos em Platão — o verdadeiro amor ou Eros bom como uma elevação em direção à beleza, através da contemplação de formas perfeitas —, o sujeito de “Além do ponto” é conduzido pelo chamado do amor dentro da escuridão e da es- cassez, da feiúra e da dor de uma falta, mas a sua concepção de amor é não apenas a da salvação de sua realidade precária — as roupas limpas e quentes que o livrariam das suas sujas e molha- das, o toque morno nas mãos que o esquentaria, a cama larga cheia de cobertores que o protege- ria do frio das ruas —, e, sim, a crença de que só o amor colocaria um fim naquele estado caóti- co e carente onde ele estava imerso. Não por acaso, em seu delírio há alguém que encarna o deus do amor, alguém que abrirá a porta e o convidará a entrar na plenitude. Dessa forma, a busca do amor em “Além do ponto” consiste numa procura de união daquilo que foi separado, segundo Erwin Panofsky (1995), pelo fenômeno de pseudometamorfose20 sofrido pelo mito de Eros na concepção cristã de amor. Tal processo atenderia às reivindicações da moral Cristã, que transforma toda a complexidade de Eros, mostrada em o Banquete, numa teoria da forma Ágape, isto é, o amor não-carnal, dessexualizado. Seria essa metamorfose a responsável, nos dias de hoje, pelo sig- nificado que o senso comum dá ao adjetivo platônico (e que não estava lá): um tipo de amor onde não há contato corporal sexual. Por outro lado, a concepção que restringe a experiência do amor ao seu aspecto puramente carnal — motivo pelo qual o conto de CFA foi também lido como uma história

20 Conceito que engloba as transformações pelas quais certos temas, imagens e motes passaram durante a Idade Média e o Renascimento. Muitas vezes as figuras e motes ganham sentidos e traços que apareciam “de passagem” na literatura, mas não estavam na sua origem clássica. (PANOFSKY, 1995). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

homoerótica, de um encontro entre dois homens —, irritava bastante o escritor, conforme depoimento dado no número 01, da extinta Revista Sui Generis, em que ele reclamava de uma crítica que reduzia “a busca de Deus” em “Além do ponto” a uma procura de sexo homoerótico. De fato, no conto a energia de Eros passeia por uma mistura de fragmentos cotidianos, precários e miseráveis (Pênia/Pobreza), mas também por uma riqueza de detalhes, limpos e elegantes (Poros/Recurso), que vão e vêm, mostrando a fragilidade da fronteira existente entre os opostos: ora se deseja transcender à realidade (amor divino), ora o passo trôpego conduz à queda e à constatação de que o amor é uma forma de fugir do frio e da sujeira do corpo, das roupas (amor material). O erotismo que realmente interessa a CFA, então, não implica separação entre carne e espírito, ao contrário, é a junção do aspecto sexual com o espiritual, numa perspectiva que situa, temporariamente, a experiência do amor enquanto uma revelação do sagrado (D’ONOFRIO, 2005). Essa mesma busca é explicitada nas letras de Renato Russo, tais como “Daniel na cova dos leões”, “Quase sem querer” (Dois, 1986), “Sete cidades” e “Se fiquei esperando meu amor passar” (Quatro estações, 1989), e em tantas outras produções contem- porâneas, como na poesia de e Ana Cristina Cesar, fontes de diálogos constantes de Caio Fernando Abreu. Nesse sentido, o enlace amoroso liga-se tanto a Eros quanto a Afrodite, sendo o pri- meiro uma interferência ou princípio cósmico que provoca a revelação do sentimento que está dentro dos seres, fazendo com que os amantes assumam esse desejo e partam em busca de uma realização amorosa, enquanto o segundo está relacionado com o estado de encantamento e a manifestação da ternura e do desejo sexual de um ser pelo outro. No entanto, nem na dan- ça de Eros nem no movimento encantado de Afrodite há garantias de que haverá retribuição ou reciprocidade para quem ama ou que haverá uma plenitude oriunda da realização amorosa. Eros e Afrodite são, na verdade, possibilidades implícitas de se falar da procura do amor, do seu encontro e de sua perda, assim como da não-correspondência, do congelamento dentro da espera etc. As várias possibilidades de representar o amor e sua busca nos textos artísticos, por vezes, podem parecer inconciliáveis e paradoxais. No entanto, elas são importantes por que nos lembram que é impossível encontrarmos uma resposta única que justifique a importância que o amor tem entre os seres humanos, como ele é, ainda hoje, desesperadamente buscado pela maioria, como é curiosamente ensinado como o sentido maior da vida humana, e, ao mesmo tempo, desconstruído, por leituras irônicas e céticas acerca de sua possibilidade de existência. Assim, por mais que nos distanciemos dos nossos dias em busca dos significados Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

de Eros, o que podemos encontrar no rastro dos nossos antepassados são concepções díspares acerca de como, em diferentes tempos e lugares, os homens e mulheres organizaram, interpretaram e vivenciaram suas relações amorosas, isto é, as muitas maneiras com que o amor foi concebido, tratado, experimentado. Muitos autores (PRIORE, 2005; LÁZARO, 1996; ÁRIES & BEJIN,1986) pontuam essa perspectiva móvel do amor nas histórias das relações humanas, desde o mais antigo limi- te possível traçado por um ocidental (o amor segundo os gregos), passando pelo entendimento cristão até às diferentes interpretações modernas e contemporâneas desse sentimento. Assim, sempre nos será necessário traçar uma linha, ainda que móvel e fugidia, que o contextualize, sob pena de, caso não o façamos, cairmos numa visão etnocêntrica que enxerga o amor não como uma construção e, sim, como uma essência ou valor essencial do ser humano. Neste caso, sou obrigada a não cair em tal armadilha tanto em função das perspectivas contemporâ- neas que trabalham muito mais em torno de valores, negociações e trocas culturais do que de signos imutáveis e inerentes — esses impossíveis de serem localizados, aqueles cada vez mais presentes nas nossas experiências cotidianas —, quanto devido ao fato de ser o amor de que nos fala Caio Fernando Abreu e Renato Russo representações de relações marginais, isto é, que fogem ao padrão comum das relações amorosas consideradas como modelos ou, melhor, como predominantes no universo mosaico da cultura ocidental. Dizer que CFA e RR falam de amores marginais não implica dizer que todo amor homossexual e todo amor heterossexual por eles abordados são marginais e se inscrevam, necessariamente, contra um modelo predominante. Segundo Lázaro (1996), ao tratarmos do tema do amor, devemos evitar o equívoco “modernoso” de pensarmos nas relações amorosas heterossexuais como eternamente portadoras de determinados traços românticos padronizado- res, assim como também não podemos, a partir disso, definirmos que tais traços, ora denomi- nados românticos, tenham sido construídos apenas na modernidade. Ao contrário dessa busca sem sentido do que confere à concepção do amor esses traços a que chamamos modernos, uma orientação que o pesquisador pode adotar é a compreensão, ou pelo menos a tentativa dela, de que a vivência de tal sentimento e suas representações foram adquirindo diferentes formas a partir justamente dos contornos que as experiências das relações amorosas tomavam, pois as definições do amor mudam de acordo com o status que lhe conferem cada época e cada sociedade. Nos textos de CFA e RR, a forma Eros é a mais perseguida pelos personagens, e não há nisso nenhuma novidade, pois já é sabido que dentre as três formas de amar definidas por Sponville, Eros é a que mais encontra representações na literatura e nas artes, sendo também Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

conceituada, estudada e debatida pela filosofia, psicologia, psicanálise, sociologia e estudos literários. Segundo Maria de Lourdes Borges (2004), tal ênfase acontece por ser essa a manifestação mais perturbadora do amor, isto é, aquela que não cessa de provocar inquietação, conceituações, definições e, sobretudo, desejo de criação/representação. Nos textos por mim escolhidos para esta análise a presença de Eros costura histórias circulares, em que a busca do grande amor gera angústia, isolamento e melancolia, num uni- verso de seres marginais, imersos num abismo criado pela tensão ou jogo de forças entre as subjetividades dos personagens e a ordem objetiva que os cerca. Às vezes, as conseqüências tanto da procura quanto da tensão são assumidas ironicamente através da produção de um discurso analítico, no qual os personagens dissecam sua própria postura e a do meio em que vivem, como ocorre na novela “Pela noite” (Triângulo das águas, 1983) e no conto “Dama da noite” (Os dragões não conhecem o paraíso, 1988), de Caio Fernando Abreu; às vezes, o su- jeito do discurso percebe apenas que foi criado para uma realidade impossível ou que a sorte de encontrar o par perfeito não é para todos, sobretudo, não é para ele, a exemplo das letras “Ainda é cedo” (Legião Urbana, 1985) e “Longe do meu lado” (A tempestade ou o livro dos dias, 1996), de Renato Russo, que, nesse caso, dialoga abertamente com Morrissey (Inglater- ra, 1959), vocalista da banda The Smiths (1983-1986), uma das maiores influências da Legião Urbana, que em muitas letras ironiza a busca cega e tão humana do par perfeito. Embora CFA e RR tratem de seres marginais ou, melhor ainda, de subjetividades i- mersas num conflito com o meio onde vivem que as colocam sempre à margem dos modelos predominantes, há diferenças significativas entre as representações da forma Eros propostas por eles e por aqueles com quem dialogam (sua linhagem de interlocutores), e eu volto a elas quan- do for tratar separadamente de cada um deles, quero, no entanto, lembrar que o amor, em am- bos, apresenta tantas faces que a eleição de alguns aspectos ou ângulos do amor romântico é feita, neste trabalho, a partir de um movimento de inquietação e fascínio que ora assumo como fio condutor de leitura. Não são as únicas formas, repito, mas as que mais me interessam. Quanto às outras duas maneiras de amar classificadas por Sponville — que compre- endem, respectivamente, o amor-amizade ou amor entre iguais e o amor universal —, estas comparecem muito timidamente nas produções dos dois autores, sendo que em CFA o amor Philia é responsável por uma ética dos sujeitos que desejam um mundo melhor, onde tratar o outro e ser tratado por ele amorosamente implica crescimento, uma evolução espiritual, en- quanto que em Renato Russo o amor Ágape mistura-se com o sentimento de amor à pátria. Segundo Sponville, a diferença entre essas duas formas está, justamente, na origem de cada uma: o amor Philia é fruto de uma convivência prazerosa entre duas pessoas que se Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

conhecem e se respeitam mutuamente, uma não se encontra em posição inferior à outra e ambas se querem bem, enquanto que o amor Ágape fundamenta-se numa atitude desinteressada de benevolência para com todos os seres vivos, é uma forma de amar orientada pelo segundo mandamento — “ama ao próximo como a ti mesmo” — e é cultivada, em geral, por todas as religiões. No nosso tempo, qualquer uma das formas demarcadas por Sponville apresenta ele- mentos que as aproxima e as distanciam, ao mesmo tempo, como num baile em que os agen- tes estejam ora lúcidos, ora bêbados, ou numa coreografia de corpos que ora levitam, ora se espatifam no chão. Nas artes em geral a ênfase recai na forma Eros, seja para retomá-la, seja para desconstruí-la ou, ainda, apenas para agregar elementos lúdicos em suas perambulações. Todavia, há também uma busca de pactos que identificam sujeitos que estão em pé de igual- dade um com o outro, que apostam na parceria e transparência dos jogos amorosos, o que gera modelos e perspectivas de vínculos afetivos possíveis de serem designados pelo antigo termo de amor entre iguais, Philia. Por outro lado, os movimentos sociais que reivindicaram visibili- dade, direito às diferenças e acesso a outras tantas instâncias de poder, trouxeram em seu ras- tro uma tendência ao cultivo da solidariedade (ou pelo menos a circulação de um discurso solidário), traduzida no engajamento do serviço voluntário e na opção por consumo de produ- tos oriundos de empresas que investem na chamada responsabilidade social. Esses movimen- tos são orientados pela forma de Ágape ou amor universal. As possibilidades de ligar essa dança multiforme do amor contemporâneo aos víncu- los familiares e afetivos é um dos assuntos tratados por Marlise Matos (2000), que repensa o lugar dos afetos nos nossos dias, a partir das novas configurações das famílias que, segundo ela, são produtos resultantes das transformações que determinados fatores, no processo de modernização tardia — entre eles “as mudanças operadas nas relações de gênero e as inter- venções criadas pelas alternativas culturais subjetivas de gênero” (2000, p.62) —, trouxeram. Matos estuda as novas cenas amorosas e os vínculos familiares através de um amplo debate acerca das identidades de gênero. Analisando essas práticas a partir de um enfoque feminista, ela revisa, questiona, lança questões e responde às algumas das lacunas e problemas trazidos pelos conceitos de cultura de Simmel (1986), pois, ao se apropriar das contribuições desse teórico para o debate acerca das relações de gênero, ela recupera a noção da predominância da cultura objetiva (masculina) sobre a cultura subjetiva (feminina), mostrando que, guardadas as interferências da cultura falocêntrica e patriarcal, com sua hierarquização entre os sexos, tais relações se deram sempre num território de conflito e de negociações. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

O percurso de Matos combina orientação sociológica e psicanalítica com análises de casos, produzindo uma complexa discussão das relações de parentesco, sociais, políticas e culturais na sociedade brasileira. Para tanto, elege alguns pressupostos teóricos que esquadri- nham a estruturação das instituições — sobretudo do casamento e da família — e de suas ra- mificações. Uma das questões importantes destacadas nessas novas configurações afetivas e familiares é a percepção de que a família não constitui apenas uma instância física, afetiva e consangüínea, mas um mapa da rede de relações e transformações ideológicas, políticas, eco- nômicas e culturais das comunidades, uma vez que as formas com que se desorganizam e se organizam novamente são fundamentais para se compreender as regras e mudanças que se estabelecem cotidianamente nos contextos histórico-sociais. Matos usa pesquisas de caso de Heilborn, que escutou tanto casais heteros quanto homossexuais no Rio de Janeiro, e interpreta os resultados da pesquisa cruzando-os com as contribuições conceituais de Judith Butler e Jurandir Freire Costa sobre as alternativas cultu- rais subjetivas de gênero. Dentro dessa orientação teórica, ela enxerga que muitas das novas formas de inversão, reversão e mudanças operadas pelos modelos conjugais contemporâneos advêm das práticas e tentativas de intervenção das parcerias homossexuais e da identidade homoerótica, que colocaram outras e diversas formas de estabilidade dos vínculos afetivos. Ou seja, são as constantes intervenções dessas parcerias homossexuais que acabaram trazendo possibilidade de uniões estáveis — outrora incomuns e até estigmatizadas —, como núcleos familiares cujo chefe é uma mulher ou duas, filhos adotivos de pais gays, casamentos infor- mais, contratos comerciais com extensões afetivas, parceiros que moram em casas separadas, mães solteiras, pais solteiros etc. Para Matos, esses vínculos se afirmaram e, pouco a pouco, foram minando os elementos patriarcais e padronizadores do núcleo burguês pai-mãe-filho, orientadores durante certo tempo das práticas conjugais nas sociedades ocidentais. Ela tam- bém aborda as transformações nesses vínculos no que diz respeito ao multissexualismo con- temporâneo, designado de um espaço de experiências alternativas de conjugalidade. As novas configurações foram se afirmando através das mudanças e ampliação e mesmo troca de papéis, que se iniciaram com a saída da mulher da esfera privada, pois esse rompimento influenciou sobremaneira para que as identidades de gênero fossem revistas. Obviamente nada disso ocorreu sem crise, porém, é justamente a crise que, segundo Matos, força os agentes a repensar os paradigmas tradicionais. As palavras que ela elegeu foram flexibilização e transperformance, as que eu uso são coreografia ou dança espatifada do amor. No entanto, creio que é a preocupação com a estabilidade das novas configurações amorosas que nos distancia: Matos não nega que há uma multiplicidade de maneiras de amar em Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

circulação no nosso tempo (bem como uma diversidade sexual também), todavia, dentro do emaranhado dessas práticas, ela segue os elementos transgressores a fim de mostrar que eles conduzem não à desordenação dos laços afetivos e familiares e, sim, a outros espaços de solidificação dos vínculos. É a segurança que ela procura. E encontra. Talvez por estar recortando a experiência do amor justamente naquele território a que chamamos realidade, ordem pragmática ou cotidiana. Eu, ao contrário, não encontro zonas estáveis para as representações das experiências amorosas e a busca do amor em CFA e RR, pois, ao seguir suas perambulações, acho-me constantemente diante de uma coreografia díspar e fragmentada, qual platéia trôpega a acompanhar os movimentos de um dançarino que se apresentasse num palco cujo fundo fosse um painel de pedacinhos de espelhos, coloridos e móveis, a multiplicar as seqüências dos movimentos e a recortar pedaços cambiantes deles. O que é o amor em CFA e RR? Se não me perguntam, eu acho que sei. Se me per- guntam, eu desconheço completamente. Todavia, nesse emaranhado de possibilidades de en- cenar o amor que os textos desses autores trazem, escolhi algumas combinações de passos, algumas séries de gestos, certas alternâncias e certos rituais dados pelos elementos poéticos dos textos. Sabendo, sempre, que os jogos se abrem para mais outras tantas combinações, no recorte e na disposição que faço deles, no segundo e terceiro capítulo, estão as que julguei determinantes para sair da platéia e, com eles, poder também dançar a dança do amor.

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CAPÍTULO 2 CAIO FERNANDO ABREU: O ETERNO DANÇARINO DO AMOR

Agora eu sou luz, agora eu posso voar; agora eu me vejo por trás de mim mesmo. Agora dançou um Deus em mim.

Nietzsche, Assim falou Zarathustra

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância. Antes, o cotidiano era um pensar alturas Buscando Aquele Outro decantado Surdo à minha humana ladradura. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Hilda Hilst, Do desejo

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s textos de Caio Fernando Abreu (1948-1996) vêm sendo fonte constante de leituras e O releituras, tanto na área acadêmica (com produções de artigos, dissertações e tese sobre suas obras) quanto na área artística (com adaptações de seus textos para o cinema e teatro, uso de citações e até pastiches de alguns contos feitos por outros escritores que, freqüentemente, o homenageiam). Essa visitação recorrente ao universo ficcional do autor mostra que sua produção ultrapassou as questões geracionais a que estava sujeita, se inscrevendo num entre-lugar bastante contemporâneo, lidando de maneira eficaz e poética com os temas da incomunicabilidade urbana, do preconceito, da solidão dos grandes centros urbanos, da busca de um diálogo crítico e uma reinterpretação da cultura pop, camp e de massa, da problematização das identidades sexuais, bem como da incorporação e rediscussão do mito do grande amor. Para este capítulo, recorto a obra do autor de Inventário do irremediável (1970) até Triângulo das águas (1983), dando-me o direito, no entanto, de fazer referências a outros li- vros dele, sempre que a análise solicitar tal inserção. O que me conduz é o desejo de entrar e sair desse desenho amoroso, dessa cartografia de afetos, guiando-me pelas solicitações de imagens, metáforas, reflexões de textos literários e não-literários, nos quais o mito do amor é inventado, riscado, refeito, posto em xeque, problematizado. Aqui, pretendo uma compreen- são dessas pequenas histórias que espacializam e politizam a percepção do amor dentro de uma elaboração estética. Para tanto, divido este capítulo a partir da predominância das metá- foras amorosas extraídas dos textos do autor, a fim de fazer a linguagem multiforme de CFA falar junto à minha paixão pelo que ele escreve, isto é, seguindo um fio teórico que também possa refletir, mesmo indiretamente, as surpresas, os choques, os encantamentos e o prazer com que li essas histórias de amor. Comparo, na última parte deste texto, a visão de CFA à de Ana Cristina Cesar, considerando que essa poeta era não apenas uma interlocutora fundamen- tal para o autor, mas, sobretudo, uma voz singular que conseguiu redimensionar, nos anos 80, o debate sobre escrita, amor, cultura, teoria e vida. Ainda que outros livros do autor apresen- tem desenhos com essa perspectiva polimorfa do mito de amor, meu recorte levou em conta que, embora exista muito o que se ler na multiformidade com que CFA pensa e representa os afetos, a partir de Os dragões não conhecem o paraíso a presença da AIDS introduz uma nova paisagem aos seus textos, e esse novo elemento merecia uma análise específica — com a qual se formou o quarto capítulo. A busca do grande amor e as representações das experiências amorosas podem ser chamadas de mito se lermos tal recorrência não apenas como uma obsessão temática de um Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

autor qualquer, mas como o que Ian Watt, em Mitos do individualismo moderno (1997), designou de narrativas que engendram propostas e, por vezes, respostas “às questões menos factuais ou racionais do ser humano” (1997, p.228). Ou, ainda, como “o significado simbólico de processos análogos da vida inconsciente, como identidade de um grupo e perpetuação do reforço dela” (1997, p. 232). Minha hipótese é que em CFA há um investimento estético que transforma esse efeito de verdade proporcionado pelo mito num fluxo cambiante, plural em seu espraiamento e em suas articulações com a cultura, com a reflexão sobre a escrita, com a hibridização interminável dos desejos e dos afetos. Em Mito e realidade (2006), Mircea Eliade propõe dois sentidos usuais para a pala- vra “mito”. Um diz respeito ao sentido que a linguagem contemporânea dá ao termo, o outro se relaciona com a vivência dos mitos pelos povos primitivos. Assim, o primeiro sentido, mais comumente difundido, implica uma compreensão do “estágio mental ou momento histórico em que o mito se tornou uma ficção”, e o segundo toma como guia a percepção, existente nas sociedades arcaicas, do mito “como um modelo vivo para a conduta humana” (2006, p.8). O objetivo de Eliade é o de entender a estruturação dos mitos nas sociedades arcaicas; por isso, sua preocupação inicial é diferenciar aquilo que em tais sociedades foi considerado verdadeiro e aquilo que foi dado como falso. Ele mostra que, para os povos primitivos, há uma distinção fundamental entre as narrativas “que tratam das origens do mundo”, dos heróis nacionais e dos curandeiros (verdadeiros para esses povos, porque trazem um conteúdo sagrado) e as nar- rativas que tratam de assuntos e figuras profanas. O autor nos lembra que as sociedades con- temporâneas se interessam indistintamente pelos mitos como uma “construção cultural”, en- quanto as sociedades arcaicas tomam-nos como “modelos vivos, verdades a serem seguidas”:

[...] o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmos, ou apenas um fragmen- to: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma institui- ção. É sempre, portanto, uma narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser [...] Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos “primórdios”. Os mitos revelam, portanto, sua ativi- dade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a “sobrenaturali- dade”) de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do “sobrenatural”) no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje. (2006, p. 11, grifos do autor).

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Em CFA, essas duas perspectivas (arcaica e contemporânea) se entrelaçam, pois a experiência amorosa, em alguns de seus textos, é a única saída para o caos individual e coletivo; é a verdade que une, de maneira mágica e luminosa, o eu no outro; é o sentido ou forma capaz de agregar novamente os fragmentos dispersos do ser, fornecendo uma resposta não-factual, ligada às expectativas individuais. No entanto, a textualização dessa resposta produz um discurso polifônico, que mostra a complexidade no tratamento dado ao mito do amor. Por um lado, falar do amor e trazer seu efeito de verdade para a pauta nasce de um impulso de toda uma geração pela liberdade, mesclado a uma confiança exagerada no indivíduo, adicionada de uma prática de oposição polêmica e não-violenta à cultura estabelecida, de uma vontade de união com o Todo, orientada pelas descobertas de conceitos, filosofias e religiões orientais, e pelo rechaço ao capitalismo, propriedade privada, instituições como o casamento etc., atitudes típicas da contracultura, conforme explica Mario Maffi, em La cultura underground (1972). Mas, por outro lado, o amor em CFA está ligado também à reflexão acerca da queda do sujeito num um espaço aprisionador de subjetividades, que ocorre quando esse efeito de verdade do mito traz sentenças castradoras, que capturam as singularidades, em vez de deixá-las fluir. Então, seus textos elaboram uma crítica à eterna busca e idealização do amor romântico, e essa crítica emerge como um discurso que procura desfazer, palmo a palmo, a fixação de uma verdade que afastaria as possibilidades de o sujeito fazer dessa prática “uma forma dinâmica de sociabilidade, que se hierarquiza[ria] com outras, a partir de seu próprio grau de autonomia” (MATOS, 2000, p.36). Nesse sentido, há um investimento na liberdade individual enquanto condição inerente à multiformidade do desenho amoroso, pois os modos de resistência do indivíduo às forças de captura e padronização do meio são trabalhados como energia vital para sua realização afetiva e sexual, como numa espécie de barreira à planificação árida da ordem objetiva — ainda que tal resistência leve os personagens de alguns contos ao isolamento, à loucura e até à exclusão das possibilidades de ações intercambiáveis e afirmativas de sua singularidade. Com esse desenho amoroso multiforme, os textos de CFA apontam quase sempre para uma perspectiva contemporânea, em que “as verdades internas” são compreendidas como resultantes de uma fabricação dos sujeitos, que, por sua vez, estão em constante processo de singularização, isto é, não estão prontos, não são unívocos, nem possuem essência ou substância passível de vir à tona. Assim, o amor, os gêneros, as identidades, as sexualidades e tudo mais que era naturalizado no discurso moderno são pensados a partir de uma corporeidade: trata-se de “fantasia(s) instituída(s) e inscrita(s) sobre a superfície dos Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

corpos [...] produzidos como efeitos da verdade de um discurso sobre uma identidade primária e estável” (BUTLER, 2003, p.195-6). A multiformidade desse desenho amoroso e os discursos que ela põe em circulação não explodem apenas das questões geracionais não resolvidas com a revolução cultural, mas, sobretudo, de um conflito — flagrado justamente nesse discurso polifônico do amor — entre o desejo de apostar numa cartografia dos afetos e da sexualidade e a constatação de que, na prática e com muita freqüência, a emergência dos afetos no plano das experienciações indivi- duais diluem-se numa estranha redução do erótico ao sexo e do sexo à mercadoria — movi- mento abominado pelo autor na literatura e nas entrevistas. Em “Sobre a redistribuição pós- moderna do sexo: a História da sexualidade de Foucault, revisitada”, Zygmunt Bauman mos- tra que todo o debate sócio-político-cultural que promoveu “profundas mudanças nos padrões sexuais” — iniciados a partir de uma revisão dos conceitos tradicionais de indivíduo e de i- dentidade social, antes fixados pela tradição, parentesco e localidade — não apenas deu à con- temporaneidade as condições necessárias para romper com os conceitos e as práticas centrali- zadores e preestabelecidos sobre sujeito, amor e sexo, mas, também, estão fornecendo cotidi- anamente “o isolamento do sexo”. O isolamento, nesse caso, advém de uma cristalização da moderna cisão entre amor e erotismo, e funciona como uma maneira eficaz de isolar “o sexo de outras formas e aspectos do relacionamento social e, acima de tudo, das relações maritais e com os pais”, o que, para Bauman, constitui “um poderoso instrumento, não exatamente a conseqüência, dos processos de privatização e mercantilização” das sociedades contemporâ- neas (1998, p.185). Através de uma ênfase nas potências e diversidade individuais, a cultura perdeu o viés universalista e passou a ser um lugar de celebração de identidades móveis, provisórias e múltiplas. O desvelamento dessa diversidade cultural ocorreu como desdobramento de um projeto moderno — denominado por tantos autores de “projeto reflexivo do eu” — em que as referências fixas e centralizadoras são trocadas por outras mais abertas, intercambiáveis e, principalmente, oriundas de escolhas e performances individuais. Para Jean-François Lyotard, em A condição pós-moderna (1998), a descrença na legitimidade do discurso científico, o questionamento das verdades originais que apontavam para uma noção de progresso e o fim das grandes narrativas totalizantes são marcas diferenciadoras da condição pós-moderna. Sem querer, nem poder, enveredar aqui por discussões acerca de uma problematização desse “pós- moderno” — “dominante cultural”, segundo Frederic Jameson (1996), feita de várias crises contemporâneas, que também já começou a ser reavaliada desde o final dos anos 90 —, quero sinalizar somente que, para a compreensão do desenho do amor em CFA, interessa muito um Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

dos traços fortes desse tempo: o uso estético da consciente recusa à totalidade e ao essencialismo, que proporcionou um investimento na história da cultura, das sociabilidades, dos objetos culturais, e de tudo o mais que era restrito ao plano do privado, do efêmero e do particular, e que passou a ser designado, por influência da perspectiva foucaultiana, de microhistórias. Segundo Sandra Pesavento, em História e história cultural (2004), quando a História deixou de ter o poder de “relatar a verdade dos fatos tal como ocorreram” — em virtude de uma mudança de perspectiva que não mais buscava a veracidade dos documentos ou provas como forma de instituir um sentido único para o passado, e, sim, expor as subjetividades, os métodos de análise, as imprecisões, o cotidiano, as dúvidas, e até mesmo as descontinuidades de seus enunciados —, o resgate desses fatos passados, feito dentro de uma ilusão de neutrali- dade no arquivamento e transmissão das verdades neles descobertas, perdeu a importância. Em seu lugar vimos surgir um desejo pela explicitação das “articulações” entre poder e histó- ria, interesses e invisibilidades, manipulações e exclusões. A autora afirma que tal processo ocorreu de forma lenta, mas fluida, desde que as leituras marxistas introduziram a noção de classe e com ela todo um questionamento de como funcionava o sujeito do discurso histórico produzido pela burguesia. Pesavento mostra que os desdobramentos desse processo foram auxiliados pela invocação de Gaston Bachelard (1957) que, nos anos 1940, trouxe a imaginação para a ciência, isto é, defendeu que no espaço científico e em sua produção de discursos acerca da verdade existia, sim, muita criatividade e imaginação, porém essas não eram assumidas, mas escamoteadas, cortadas, manipuladas, a fim de fazer funcionar um efeito de verdade absoluta. Esse gesto afirmativo da singularidade ganhou corpo dentro da área das Ciências Humanas e, particularmente no campo da História, fez emergir, nos anos 60-70, a História Social, cujo maior “postulado” foi o de defender a visibilidade da “ação do homem” em toda e qualquer narrativa histórica. Nesse horizonte amplo despontam, então, as histórias dos subalternos, dos marginais, do cotidiano, das experiências individuais, de grupos excluídos, das sexualidades reprimidas, dos encarceramentos etc. Essa forma diferente de historiografar as minorias (mulheres, homossexuais, negros, crianças, velhos) possibilitou não apenas o debate acerca da construção das identidades, mas, sobretudo, deu condições para se compreender a prática da “História como uma produção social, coletiva e popular”, feita de resgates cotidianos e de recuperações de experiências dos homens e mulheres comuns; em síntese, instalou-se o relativismo em detrimento das leituras universalistas. Ainda segundo Pesavento, a Nova História Cultural abrange justamente as investigações sobre o imaginário, assumindo o papel Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

da criação e da imaginação no agenciamento das representações, do tempo, da cultura e das realidades. Ainda que o momento presente configure uma reavaliação dessa abertura pós- moderna (ou moderna tardia, como prefere Giddens) de se pensar a história, os objetos e a cultura21, o discurso do amor nos textos de CFA e de Renato Russo emergiu justamente desse ambiente cultural em que as verdades absolutas cederam lugar a diferentes verdades. Pensar o mito do amor fora de uma concepção normalizadora e definitiva é, para ambos, fazê-lo dançar num cenário de verdades relativas, de conexões possíveis entre o ontem, o hoje e o depois. O deslocamento no tempo, esse ir e vir dinâmico proporcionado pela estrutura da linguagem poética, não apenas permite que se relativize a forma com que o mito do amor foi posto em circulação pela cultura moderna, mas, também, introduz possibilidades de um diálogo com épocas e percepções deixadas para trás pelos projetos moderno e pós-moderno. Ao analisar a lenda de Tristão, em História do amor no Ocidente (2002), Denis de Rougemont enumera três elementos que são definidores de um mito: a ausência de autor da narrativa em questão — principalmente quando ela nos chega através de versões que reinven- tam os arquétipos e as relações sócio-histórico-culturais da história; a presença do sagrado; e a obscuridade da narrativa, advinda não apenas do mistério de sua origem, mas, também, de sua simbologia de fatos vitais. Não basta, portanto, ser uma história popular e antiga, tampouco concentrar episódios e referências cuja veracidade histórica seja de difícil resgate ou confir- mação. É preciso que aquilo que é contado seja “uma fábula simbólica”, isto é, que permita “a identificação imediata de determinados tipos de relações constantes, destacando-os do emara- nhado das aparências cotidianas” (2002, p.28). Assim, para além desses aspectos que confe- rem a tantas narrativas tradicionais um caráter mágico, capaz de nos capturar com seus enre- dos maravilhosos, suas referências deformadas, sua atmosfera fantástica, o mito se define, sobretudo, por sua estreita ligação com “o elemento sagrado em torno do qual se constituiu o grupo” (2002, p.28). Rougemont destaca ainda que “o caráter mais profundo do mito é o poder que exerce sobre nós, geralmente à nossa revelia” (2002, p.29), ou seja, é de maneira independente que o mito atua no sujeito, só restando a este, despercebido, conscientizar-se de tal ação, muito embora, quando essa percepção realmente acontece, o sujeito se veja diante da contradição entre aquilo que é expresso pelo conteúdo do mito e aquilo que é escamoteado, disfarçado

21 Um exemplo desse movimento de reavaliação está na reflexão de Terry Eagleton, em Depois da teoria (Op. Cit.), quando põe freios na expansão e no lugar-comum do olhar relativista dogmático, lembrando que apesar de nem todas as verdades serem absolutas, existem verdades absolutas que precisam ser reconhecidas como tal. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

pela simbologia nele contida. No amor-paixão, o que não pode ser dito com clareza, o que precisa ser disfarçado com uma infinidade de ameaças e obstáculos é o desejo de morte dos apaixonados. O traço mais significativo da combinação entre amor e morte é, para o autor, a opção pela paixão idealizada, impossível de ser objetivada, o que explica, no “lirismo ocidental”, um gosto e uma exaltação não necessariamente dos prazeres, do sensorial, nem da união do amante com o ser amado, mas, sobretudo, da própria paixão, do ato de estar apaixonado: “é menos o amor realizado do que a paixão de amor” (2002, p.24). Dito de outro modo, o autor destaca que os apaixonados amam mais “a paixão por si mesma” do que “o objeto do amor”, e isso se desenvolveria desde “Santo Agostinho até o romantismo moderno” (2002, p.68). Lembremos que esse aspecto é realçado também por Lacan, para quem o amor pode “habitar o vazio e não o objeto”, conforme abordamos anteriormente no capítulo 1. O mito do amor romântico, denominado amor-paixão, segundo Rougemont, tem sua origem flagrada nos séculos XI e XII, a partir das relações estabelecidas entre a elite social, a sociedade cortês e a cultura de cavalaria. Segundo ele, há nos cronistas, nos sermões e sátiras do século XII provas significativas de que “houve uma primeira ‘crise do casamento’ ”, sendo assim, coube ao Romance de Tristão a missão de “ordenar a paixão num quadro em que ela pôde se exprimir através de satisfações simbólicas” (2002, p.33). O amor-paixão configura uma ameaça para a concepção cristã de união amorosa aqui na terra, pois se concentra numa fuga do cotidiano e num desejo de autodestruição do amante, que, antes mesmo de querer fundir-se ao ser amado — perdendo, nesse processo, sua individualidade —, almeja, em ver- dade, fundir-se à própria paixão de amor. O mito do amor-paixão é um fenômeno cultural e histórico, em que se misturam crenças e práticas religiosas, todo um misticismo pagão recalcado pela cultura cristã, a memó- ria e o gosto humano pela guerra, além da existência de um conflito entre a prática cotidiana do amor, quando realizado pelo casamento, e a promessa de encantamento e de fuga da reali- dade prometidos pela paixão. Para Rougemont, a história que melhor traduz essa hibridização de elementos é a de Tristão e Isolda; isso porque o amor-paixão ali se coloca enquanto um mal maior a que os amantes estão sujeitos, é uma doença da alma pela qual eles não podem responder, pois não depende da razão nem da vontade dos apaixonados: foi provocada por uma poção encantada. Nesse sentido, o amor-paixão torna-se uma fatalidade e, nesse aspecto, aproxima-se um pouco da noção grega de amor, que atribuía o poder de amar e ser amado a uma intervenção dos deuses, independentemente da vontade e ação humana. Em CFA, o mito do amor se desenvolve em vários fluxos sem necessariamente tomar um único arquétipo como orientação. Seus textos misturam alguns desses modelos, como Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

ocorre, por exemplo, nos contos “Os dragões não conhecem o paraíso” (ODCP, 1988), em que se reencena o mito de Eros e Psiquê, e em “Onírico” (ON, 1995), que é uma rescrita da história da Pequena Sereia, na versão de Andersen. De modo geral, há alguns movimentos que são constantemente encenados em seus textos, gerando pelo menos três discursos distintos, a saber: a) uma concepção do amor enquanto autoconhecimento, trazida por textos nos quais os personagens conseguem, através da experiência amorosa, acionar um saber ou conhecimento singular, construído a partir de sua própria condição marginal no mundo. Esse é um instante de luminosidade individual, como uma pequena epifania (título do livro de crônicas do autor) li- gando o sujeito ao Todo. Porém, como toda epifania, trata-se de uma celebração instantânea, que logo será atingida pelas forças de repressão e padronização externas, como ocorre nos con- tos “Uma história de borboletas” (OA, 1975), “Terça-feira gorda”, “Morangos mofados” (MM, 1982), ou no romance Onde andará Dulce Veiga? (1990), entre outros, nos quais o saber extra- ído da experiência amorosa é atacado, tal qual um plâncton, pela força das marés e de seres maiores, a fim de alimentar uma tendência do meio de destruir as diferenças individuais; b) uma concepção do amor como uma ilusão, que, no entanto, foi naturalizada pela cultura, impedindo que o sujeito menos crítico perceba o quanto vive uma idealização impossível, como numa espécie de prisão mental. Esses textos trazem personagens que se isolam e se cristalizam dentro de um círculo doloroso de procura e espera pelo grande encontro, tornando-se indivíduos totalmente desprovidos da idéia do geral — o que o filósofo romeno Constantin Noica chamou de “Catolite”22 — e, por isso mesmo, se apresentam como subjetividades que, feito estrelas cadentes, rasgam o céu com seu brilho efêmero, chamam a atenção por um instante, mas desaparecem repentinamente, dentro do mesmo mistério de onde surgiram, sem, contudo, permitir o intercambiamento social dessa pequena história íntima. Esse discurso sobre o mito do amor põe em circulação uma crítica à ausência de posicionamento reflexivo dos sujeitos, que se deixam capturar por símbolos prontos, por narrativas que reforçam comportamentos ora automatizados, ora angustiantes. É o caso de

22 Catolite é uma das seis doenças do espírito contemporâneo, oriundas de uma negação ou recusa voluntária de três aspectos que promoveriam a integração do ser (a generalidade, a individualidade e as determinações). Segundo Noica, a palavra vem do grego katholou, que significa em geral, mas ao ser empregada como substantivo nomeia o conjunto de anomalias provocadas, nas coisas e nos homens, pela carência do geral. O autor explica que esse mal afeta pessoas que não conseguem inserir na sua busca individual a noção do geral. Ele lê esse movimento como uma doença não apenas porque seu efeito é nocivo ao sujeito, mas, sobretudo, porque considera que “nada no mundo pode ser verdadeiramente desprovido de sentido geral: assim como toda a realidade presente, animada ou não, tem atrás de si alguns bilhões de anos, assim é ela a encruzilhada de inumeráveis sentidos gerais” (2007, p.55). Evidentemente, não tenho como desenvolver aqui a teoria de Noica que é complexa e envolve muitos elementos extraliterários com os quais não tenho familiaridade, mas registro seu conceito devido à presença recorrente de um conflito entre subjetividade e ordem objetiva nos textos de CFA que, freqüentemente, nasce dessa recusa do “eu” em procurar caminhos de integração ou mesmo de sociabilidade com o meio. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

contos como “Luz e sombra”, “Além do ponto” (MM, 1982), “Os dragões não conhecem o paraíso” (ODCP, 1988), entre outros. c) uma concepção do amor como espaço híbrido e analítico, de si e do mundo — um lugar de produção de discursos positivos e negativos, que une os pólos opostos da experiência em vez de separá-los —, trazida por textos nos quais os personagens desenvolvem uma autocrítica à sua própria demanda de amor, juntando o sonho pessoal e as sucessivas negações de sua realização ao cansaço sarcástico de não encontrar um sentido existencial que justifique o movimento diário de continuar a “girar na roda” do mundo. O maior encanto desse movimento viria da promessa de fuga concedida pela vivência do grande amor. Esse discurso é, na verdade, a confluência das duas perspectivas anteriores, e é flagrado em narrativas como “Os sobreviventes” (MM), “Pela noite” (TA) e “Dama da noite” (ODCP), nas quais o diálogo entre personagens ou mesmo o monólogo de um deles põe em xeque tanto a perspectiva mítica e naturalizada do amor como “a única verdade do sujeito”, quanto a desvalorização da experiência do amor romântico pelas tendências mais imediatistas, orientadas pelas novas tecnologias e pelas leis do consumo.

Embora sob o risco de generalizar, ao sintetizar dessa forma a variedade de histórias em que CFA trabalha os afetos, não posso deixar de assinalar, aqui, a recorrência desses três movimentos. Contudo, é preciso não esquecer que se trata de desenhos poéticos sobre o amor, e, como todo discurso que emerge de uma estrutura poética, são feitos de perspectivas fluidas e fragmentadas das vivências amorosas. Dito de outro modo, mesmo reconhecendo a predo- minância dessas três vertentes acima citadas, ainda é possível encontrar linhas de fugas e des- continuidades desse projeto tríplice de discussão acerca do amor. Como mito capaz de gerar narrativas que engendram pedaços de uma ferida, pedaços de subjetivações transformadas em verdades, o amor é, também, para CFA, uma construção cultural e um movimento ora consci- ente, ora inconsciente dos sujeitos; uma dança que leva à re-encenação das “variações sincré- ticas, multiculturais, neotradicionais, translocais e transnacionais” (MATOS, 2000, p.35). Assim, sua idéia de mito está diretamente relacionada a uma concepção de cultura enquanto lugar para se refletir acerca de nossa inserção no mundo, isto é, um espaço de organização da experiência e da ação humanas por meios simbólicos (SAHLINS, 1997). Nesse emaranhado discursivo, há uma vontade de redefinir os afetos dentro de uma percepção poética que se coloca como uma instância mítica, ela própria uma manifestação individual que refaz o gesto original da criação do mundo para inserir nele uma diferença irredutível entre a singularidade do sujeito e a ordem objetiva. Nessa perspectiva, não estamos Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

apenas diante de trechos poéticos de uma produção literária, elaborados a partir de experimentações, figuras de linguagem, ritmo ou harmonia da frase, e, sim, diante da metamorfose da experiência amorosa, que assume metáforas variadas — dragão invisível, borboletas azuis, cachorros loucos, pombos cinzentos, estrelas cadentes, morangos selvagens, ameixas sangrentas, plânctons, ondinas etc. —, e não pode mais ser compreendida apenas como parte poética de um texto que tematiza o amor, pois se presentifica como o próprio amor, isto é, uma síntese estética desse efeito de verdade que o discurso artístico pode fabricar (BUTLER, 2003). Segundo Nietzsche, ao trabalhar com o fantástico, o mítico, o incerto, o extremo, o sentido do simbólico, a superestima da pessoa, a crença no milagre do gênio, o artista está recusando abrir mão daquilo que mantém a linguagem de sua arte em permanente estado de abertura e em processo de continuidade, devir (2007, p.126). Em conseqüência disso, os criadores estão sempre indo e vindo entre passado e presente, pois retomam narrativas esquecidas ou enfraquecidas pela força das transformações do tempo, tecem “um laço em volta dos diferentes séculos, [fazendo] reaparecer os espíritos” e, nessa dança, presenteiam o mundo com mais leveza, uma vez que dão novas cores às representações “empalidecidas” (2007, p.126). Essa idéia nietzschiana acerca da mobilidade artística coloca os criadores como epígonos, porque enxerga nas construções poéticas um estabelecimento de elos entre os períodos antigos, as civilizações ultrapassadas e a época atual. O efeito disso é a capacidade que a arte possui de “amenizar a vida”, retificando e restabelecendo as insatisfações humanas; mas tudo isso, “só momentaneamente”, ou seja, o efeito da arte é provisório e seu tempo de duração não dura mais que um instante no qual as pessoas suspendem o profundo desagrado que têm com sua própria existência e sentem-se mais leves. O assombro da linguagem poética é, então, compreendida como uma ferramenta, capaz de compensar, ainda que momentaneamente, a feiúra da condição humana. Em CFA, a linguagem poética constrói um discurso amoroso que funciona como um labirinto mítico e produtor de elos entre ontem, hoje e amanhã, de que nos fala o filósofo. Em textos como “Dodecaedro” (TA) e “Os dragões não conhecem o paraíso” (ODCP), as metáforas criadas para fazer o mito falar transpõem sentidos arcaicos de figuras mágicas, extraídas de lendas e de todo um imaginário popular, para a epidemia do amor contemporâneo, com suas imprecisões, suas fobias cerceadoras e seu empalidecimento diante da banalização das relações afetivas. Quero ressaltar, no entanto, que em vez de fornecer compensações provisórias à condição descontente do leitor, o que vejo na linguagem com que CFA constrói as experiências amorosas e a busca do amor é, antes, um questionamento de como e por que deixamos, em determinados momentos da vida, de problematizar os aspectos Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

contraditórios, aprisionadores, conflituosos e, ao mesmo tempo, móveis e iluminadores do amor. Seu diálogo é com os limites desse saber inapreensível: o que perdemos quando nos negamos a “fabricar a verdade amorosa?” Seu investimento é nessa solidão que busca uma espécie de “força” ou “ação” no recriar da própria visão singularizada das experiências afetivas. No conjunto dos seus textos ressoa a dúvida: o amor romântico pode realmente conduzir o sujeito a algum tipo de conhecimento — de si, do outro, do mundo, da própria escrita — ou é apenas um dispositivo histórico e cultural, foucaultianamente falando, com o qual foi possível, justamente, o controle dos espaços de construção dos saberes singulares? É em função de responder essas questões que o labirinto de CFA se espacializa, e é por não encontrar nada além de respostas provisórias e precárias que o labirinto se rarefaz, transformando-se, muitas vezes, a vivência do mito em prisão. É preciso não perder do horizonte de análise que toda a discursividade acerca do mi- to do amor em CFA está inscrita dentro de uma condição específica não apenas de escritor, mas de brasileiro, gaúcho, branco, homossexual, pertencente a uma geração que provocou e vivenciou mudanças fundamentais no âmbito social, político, estético, cultural, histórico e sexual. Nos discursos acerca do amor há, portanto, toda uma incorporação de práticas, hábitos e modos de vidas coletivos, sociais, que já existiam antes da escrita do autor, mas que, tam- bém, sofreram o impacto das reivindicações e dos novos dispositivos culturais colocados em circulação pela contracultura. Como alguém que vivenciou esse tempo, CFA aciona um dese- jo por liberação de todos os entraves que controlam e restringem a sexualidade e os afetos. Sua sensibilidade homoerótica fundamenta-se num projeto aberto, alternativo — que incorpo- ra a negação contracultural de valores burgueses, como o casamento e o domínio do corpo e do desejo do outro —, porém, sem abrir mão de um pulsar romântico, de um investir de novo e sempre numa cultura do afeto — daí a denominação de “romântico exaltado”, dada por Ana Chiara (abordada no capítulo 1, deste trabalho). O investimento nos aspectos culturais constitutivos da época, que formam a esfera social e subjetiva da cultura, de que nos fala Simmel (1986), mostram que é pelas relações íntimas dessa estruturação de vivências cotidianas com a condensação da elaboração poética que podemos ultrapassar as questões mais imediatistas ou militantes, que reduziriam os discursos sobre o amor produzidos por CFA a meros testemunhos de uma crise já ultrapassada. Ao contrário, há um ir e vir em seu percurso que sugere não apenas a crise do amor nos anos 60-70, mas um desejo de abrir o debate, no hoje, no ontem, no depois, uma espécie de convite atemporal para pensarmos, enfim, quais as implicações de se cultivar o mito do amor? Para que serve o amor? A quem serve? Para onde nos leva? Ou somos nós que Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

o levamos? Talvez por isso, raramente encontramos as palavras “meio”, “sistema”, “opressão”, “padronização” em seus textos, mas, em vez disso, nos deparamos com marés que carregam plânctons, com ondinas que enfeitiçam o sujeito e o levam para o fundo mar, em janelas que se abrem para dentro, em morangos que mofam etc. A sua opção ao trabalhar a experiência do amor é pela não-uniformidade, o que não exclui, por vezes, o registro da incoerência do mito, de suas contradições, de seus enganos e alienações. Posso falar de recorrências de fragmentos de certas subjetivações que se agregam a outros fragmentos, metamorfoseando-se ou, por vezes, se subdividindo em novos pedaços de singularizações do amor; posso falar de abordagens que permitem mediações entre mundo subjetivo e mundo objetivo; reflexões que se transformam num mosaico dinâmico de possibi- lidades sugestivas acerca da experiência amorosa; posso falar ainda em metáforas que agluti- nam, em círculo, pequenas e grandes aventuras, cujo centro é a prática do amor, do desejo, da paixão, do sexo, do prazer. Todavia, mesmo destacando aqui algumas vertentes importantes nos seus textos, não posso falar de unicidade e uniformização, nem no universo simbólico e multiforme de sua escrita, nem nos instantes de cristalização da experiência do amor. Por isso, compreendo a procura do grande amor em CFA não apenas como um conteúdo e uma prática que funcionam, textualmente, como dispositivos individuais, continuamente re-organizados por uma esfera a que podemos chamar de sociabilidade (MATOS, 2000), mas, também, como uma forma poética na qual os pontos luminosos aglutinam certas perspectivas e atributos que transformam a busca do amor tanto em uma das formas possíveis de ação no mundo quanto numa não-ação, isto é, num congelamento do sujeito e na exposição, irônica, dessa inação — a exemplo dos contos “O príncipe sapo” (ON), “Luz e sombra”, “Além do ponto” (MM) e “O marinheiro” (TA). CFA nasceu na pequena cidade de Santiago do Boqueirão e, muito jovem, foi morar em , onde publicou, ainda adolescente, o conto “O príncipe sapo”, na Revista Cláudia (1966). Por ser, como ele mesmo definiu nas breves observações autorais que abrem os contos de Ovelhas negras, um escritor dado a guardar e organizar tudo, desde a menor anotação feita às pressas num guardanapo de bar, passando por inúmeros inícios de idéias abortadas, até às mais diferentes versões de uma mesma história, essa sua produção não foi destruída; encontra-se disponível no último livro que lançou em vida (ON), preservando uma ingenuidade típica de criações literárias iniciais. Embora não seja de fato o primeiro texto escrito pelo autor, pois quatro anos antes ele havia vencido um concurso ginasial com a novela “A maldição dos Saint-Marie”, “O príncipe sapo” registra uma abordagem irônica para a necessidade humana de viver um grande amor. Começo minha análise por ele porque já Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

existem ali elementos dessa aventura de fazer dançar o amor, ora entre cacos de vidro, ora no céu, entre astros e estrelas cadentes.

2.1 DAS ESTRELAS CADENTES E DOS CACOS-DE-VIDRO

O conto “O príncipe sapo” narra a história de Teresa, uma mulher de 40 anos, descri- ta pelo narrador como “não-bonita”, mas portadora de “uma graça especial”, que desabrocha- va “no jeito oblíquo de sorrir apertando os lábios, como se temesse revelar no sorriso todo o seu mundo interior” (1995, p.46). Oriunda de uma família numerosa, Teresa era uma das mais velhas dentre 11 mulheres, todas batizadas com “T”, e, ao contrário das irmãs, não conseguira se casar. Tal qual Cinderela, ela anseia pelo príncipe encantado para lhe tirar de uma rotina de tardes vazias a olhar as pessoas na rua. O conto se constrói através de uma linguagem coloquial, usando, de forma irônica, clichês com que se descrevem, ainda hoje, em cidades pequenas do Brasil, as mulheres que não se casam. Sem se apiedar da personagem, que incorpora as cobranças do meio em que vive e sonha desesperadamente encontrar um noivo, o narrador onisciente nos conduz por uma espécie de painel previsível da condição feminina em sociedades ainda presas a valores como casamento, família, honra, que restringiam a atuação da mulher à esfera privada: Teresa não trabalha, não estuda, sai apenas para a igreja e o cemitério. Os pais, ao morrerem, deixam- lhe bem amparada financeiramente, uma vez que é a única filha dentre as 11 que permaneceu solteira. Assim, o grande passatempo de Teresa é receber as visitas das irmãs casadas e olhar as pessoas pela janela, colocando-lhes apelidos de personagens de histórias infantis. O gosto por esse tipo de histórias não passa despercebido da própria autocrítica da personagem — ela sabe que não está se comportando como uma mulher madura, porém, encontra nesse hábito uma diversão e uma fuga para a sua condição de solteirona da cidadezinha. O conhecimento da psicologia da personagem nos é dado por um narrador sintético, ele mostra uma oposição conflituosa entre essa percepção autocrítica de Teresa, que chega mesmo a pensar em procurar um especialista para se tratar da fixação por histórias infantis, e o deleite com que abandona tal idéia e se entrega, diariamente, ao mundo dos sonhos, das aventuras, da magia, dos castelos e dos príncipes dos contos de fadas. A personagem não suporta pensar na existência de certos elementos concretos como pêlos, gordura, hálito de cerveja e cigarro, cheiro de pele masculina: Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Pensava vagamente em procurar um médico para curar a mania, ouvira falar de psicólogos, médicos de cabeça, que curam coisas assim. Mas não fazia nada. Fugia a toda hora para aquele mundo feito de casas de doce, castelos, fadas, maçãs mágicas. Sonhava com o príncipe Sapo. Negava o real, enoja- va-se da lembrança de Gonçalo [marido de uma de suas irmãs], braços cabe- ludos, peito cabeludo, suado, cheiro de homem, cigarro e cerveja, banhas in- cipientes como o casamento. Tinha nojo, sim. Comparava-o ao príncipe Sa- po – louro, delicado, perfumado, olhos azuis – não verdes, verdes não! –, to- cava piano com aquelas mãos tão alvas. (1995, p 49).

Sua idéia de amor não incluía o outro físico, real, pois o relacionamento a dois não era pensado nem desejado como um lugar de troca ou de entrega, mas somente aquilo que completaria o espaço na narrativa de um sonho que se revelava independente do objeto: ela era uma Cinderela em busca do brinquedo, e esse brinquedo, por acaso, chamava-se príncipe encantado, mas ele não tinha cheiro, defeitos, vontades; era tão somente um objeto perfeito e ela, o sujeito que dele precisava. Dentro do seu devaneio, Teresa estava envelhecendo sozinha, sem sexo, sem filhos, sem marido. Até que de Cinderela passa à narrativa do Príncipe Sapo, que, a despeito das tantas formas disponíveis no mercado editorial, aqui está mais próxima da versão contada pelos Irmãos Grimm. É uma releitura de contos de fadas para adultos23. Assim, quando finalmente a escolha de Teresa sai do sonho para a ação, seu interesse recai sobre um professor de piano, “pobre, baixinho, franzino, caminhando como se fosse aos saltos” (1995, p.50). Tal escolha se baseia no cansaço da personagem, marcado pelas sucessivas esperas de uma perfeição que jamais veio, um amadurecimento forçado pela necessidade, agora cada vez mais real, de uma companhia masculina concreta. Ela escolhe o professor feio, na esperança de que ele se transforme, na hora certa, de sapo em príncipe. A decepção ao comunicar sua escolha a ele advém de um elemento do real pelo qual Teresa não esperava: o seu príncipe sapo não é como na história infantil, um ser perfeito disfarçado de imperfeito. Ele é concreto, e possui sua própria narrativa — sofreu, no passado, um acidente que lhe deixou impossibilitado de ter relações sexuais. Ao ser informada disso, ela perde a última esperança de sair da realidade de solteirona, do papel de filha e irmã jamais escolhida, do corpo intocado de mais de 40 anos, da solidão de tardes na janela. Queima os livros com os sonhos e histórias de fada, mas permanece com tudo aquilo que não viveu sufocado, um grito por ser dado, incendiando, contido na garganta.

23 Em uma das notas presentes em cada abertura dos contos de Ovelhas negras, o autor revela que tinha um projeto inacabado: escrever um livro inteiro de releituras dos contos de fadas, adaptando-os à contemporaneidade e à vida adulta. Chamar-se-iam Malditas fadas. Ele não chegou a concluir tal projeto, mas dessa idéia brotaram “O príncipe sapo”, “Onírico” (Ovelhas negras) e “Sapatinhos vermelhos” (Os dragões não conhecem o paraíso). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

A desilusão de Teresa cristaliza um discurso importante acerca do amor romântico: CFA está retomando a ligação entre a feminilidade e o amor enquanto dispositivo de controle do desejo e da sexualidade da mulher. Segundo Judith Walkowitz, em “Sexualidades perigosas24” (1991), essa conexão foi criada a partir do século XIX, mas as mulheres não aderiram de forma submissa a esse projeto, pois houve também a negação dele em favor de um investimento em elementos opositivos, viris, que trouxe para a cena as chamadas “mulheres travestidas”: “construir uma identidade masculina podia implicar o desempenho de trabalhos especializados ou pesados ou ser o marinheiro mais valente num navio”. E ainda: “significava também fumar e beber com os companheiros da oficina do irmão e cortejar toda a moça bonita que lhe saísse ao caminho” (1991, p.430). Teresa não chega a investir na construção de uma identidade opositiva, pois ela fica congelada entre a dificuldade de desempenhar o papel feminino apontado pela família e o desejo de se entregar, isoladamente, aos seus próprios devaneios. A história é conduzida por um narrador que aborda tanto a exposição da condição feminina, em espaços ainda marcados por esse controle da sexualidade e do desejo da mulher, quanto a ironia à posição do sujeito que, mergulhado numa interioridade infantil, não consegue interferir de forma produtiva nesse aprisionamento e nessa redução da singularidade. Em “Amor, cuidado e intimidade: a inven- ção moderna do feminino25”, Danielly Passos chama a atenção para a transformação dessa conexão entre feminilidade e amor em tema e argumento “das produções literárias feitas por e para mulheres” (2006, p.146). Segundo ela, já no século XIX essa “aliança” passou a implicar “uma possibilidade perigosa”, pois não permitiu apenas o controle do desejo e sexualidade feminina, mas o seu inverso: a insubordinação e rebeldia de mulheres quando internalizavam o mito do amor romântico a ponto de não reconhecerem no marido ou no pretendente a mari- do escolhido pela família o seu verdadeiro par perfeito. Todavia, ao contrário de a negação (por parte da mulher) da submissão a esse papel funcionar como uma desconstrução da alian- ça entre amor e feminilidade, o que houve foi a conjugação de ambos os processos — submis- são e insubmissão — naquilo que se convencionou chamar “sensibilidade romântica”, ou seja, a cultura “naturalizou” esse gesto negativo como um traço característico do amor romântico:

Foram vários os processos que, conjugados, deram forma à sensibilidade romântica. Dentre eles, o dispositivo de controle da sexualidade, sobretudo do corpo feminino, que deveria se voltar completamente para o lar e para o cuidado com os filhos. O amor romântico compôs, assim, a forma moderna de

24 In: Michelle PERROT, Geneviève FRAISSE. História das mulheres no Ocidente - Século XIX. Lisboa: Afrontamento, 1991. 25 In: Alexandre Fleming C. VALE, Antonio C. S. PAIVA. Estilísticas da sexualidade. Campinas: Pontes, 2006. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

ligação afetiva entre um homem e uma mulher, delineado por códigos sociais que legitimavam diferentes interesses pessoais (o interesse do marido pela vida pública e o da mulher pela vida sentimental). (PASSOS, 2006, p. 147).

Para Giddens, a emergência do amor romântico está relacionada a “vários conjuntos de influências que afetaram as mulheres a partir do final do século XVIII”. Dentro desses fa- tores, ele destaca “a criação do lar, a modificação nas relações entre pais e filhos [e] a inven- ção da maternidade” (1992, p.52-3). Assim, “o amor romântico era necessariamente um amor feminilizado” e esse fenômeno ocorreu com o estabelecimento de uma divisão de papéis, uma dicotomia entre homens e mulheres. Esse discurso da “sensibilidade romântica na mulher” é problematizado por CFA em textos que vão desde uma configuração da personagem feminina como um sujeito que se move de maneira rarefeita, espremida entre o devaneio de alcançar o amor de estrelas cadentes e a dor de não poder concretizar esse sonho numa inserção social — não apenas o caso de Teresa, em “O príncipe Sapo”, mas também o da personagem do conto “Onírico” (ON) —, até histórias como “Os sapatinhos vermelhos” (ODCP) e “Noites de Santa Tereza” (ON), nas quais o discurso da “mulher sensível, que de tão romântica resta inapta para a vida”, é quebrado por imagens de um feminino que elege a volúpia e o prazer sexual como orientadores de seu percurso amoroso. Nesses dois últimos, a mulher aparece como fêmea fatal, que atrai e devora homens como quem troca de roupa, num misto de diva e Lilith, que usa a noite, a bebida, o fumo e a luxúria para personificar a imagem de deusa-vampiro, cujo apetite sexual simboliza a sua própria fome de vida e de liberdade. Nesse sentido, essas outras mulheres, desenhadas em “Os sapatinhos vermelhos” e “Noites de Santa Tereza”, são uma inversão desse aprisionamento mental visto em Teresa, e funcionam como uma positiva- ção da mulher demoníaca (Lilith) em oposição à santa. A exemplo de Emma (Flaubert) e Luísa (Eça de Queiroz), Teresa é deformada pelas entregas constantes ao universo grandiloqüente e fantasioso dos livros, mas, nesse caso, não se trata de uma investida de um estilo (realismo) contra outro (romantismo), mas de um alinhamento de CFA ao modelo de Cervantes: Teresa é o Dom Quixote que deseja incorporar os signos literários e repetir na vida real o prazer experenciado durante a leitura. Nela, mito e lenda se misturam, uma vez que CFA utiliza tanto o material dos contos de fada, considerado pelos especialistas como “um material consciente culturalmente muito menos específico”, e, justamente por isso, capaz de “oferecer uma imagem mais clara das estruturas psíquicas” (FRANZ, 1990, p.25), mas, também daquilo que Ian Watt analisa no romance Dom Quixote como traços fundamentais do individualismo moderno: a monomania e a capacidade apresentada por homens e mulheres modernos de estarem exclusivamente interessados em seus Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

próprios empreendimentos pessoais (WATT, 1997). Nesses empreendimentos não há espaço para pensar no geral, na ordem objetiva e muito menos em intercambiamento, em sociabilidade, no outro. O amor que Teresa sente, que Teresa sonha, que Teresa espera é um ideal indefinido, dia a dia alimentado pela disciplina com que ela volta aos contos de fadas mil vezes lidos, a fim de gozar um êxtase negado por seu cotidiano de solteirona. CFA mostra, assim, não ape- nas a angústia de uma mulher que almeja a transformação de uma fantasia em realidade, mas, sobretudo, o emblema de um fracasso, de uma contradição moderna: o amor é uma metáfora de uma resolução impossível entre a subjetividade humana e a ordem do mundo. Essa pers- pectiva aproxima Teresa, como tantos outros personagens de CFA, ao Cavaleiro da Triste Figura, de Cervantes: “a distância entre os desejos do indivíduo, de um lado, e a realidade, do outro, não é, de certo modo, uma exclusividade de Dom Quixote; a confusão dos desejos ro- mânticos com a verdade histórica é uma tendência universal” (WATT, 1997, p.76). Por isso mesmo, em vez de seguir a orientação dos contos de fadas, cuja divisão do mundo em Bem e Mal é fundamental para se entender as representações de monstros, dra- gões, figuras mágicas etc. — que, de forma encantada, se relacionam com a necessidade hu- mana de proteção e de amor, com o medo da rejeição e da morte —, o autor envereda por ou- tra paisagem, buscando a intertextualidade com Cervantes e evitando o final feliz, que seria indicativo da forma ou modelo de conduta “encontrado pela criança para construir um rela- cionamento satisfatório com as pessoas ao redor” (VILLELA, 2007, p.1). Nesse caso, no con- to ocorre o contrário do que se esperaria das lendas e mitos: em vez de as histórias lidas por Teresa funcionarem como uma espécie de transmissão de valores que ajudam a elaborar a própria vida através de situações conflitantes e fantásticas, em vez de a personagem re- elaborar sua própria narrativa através da percepção dos processos inconscientes expressos pelos contos de fadas (JUNG, 1991), ela desabilita a simbiose entre consciente e inconsciente e mergulha de forma literal nos signos absorvidos pela leitura. Feito Quixote, ela nega a or- dem concreta e, de maneira tragicômica, lê os signos dessa realidade como encarnações dos elementos mágicos das histórias encantadas com que se entretinha. Seu movimento em direção ao mundo dos castelos, dos seres mágicos, dos sapos que se transformam em príncipes, das gatas borralheiras que se transformam em princesas ou fadas que vencem bruxas, não significa uma busca de compreensão de uma totalidade psíquica obtida a partir dos valores e costumes identificados e incorporados pelo mergulho nas lendas e mitos. Trata-se, antes, de repetir na imaginação, dia após dia, o gozo desses dramas, projetando-se no papel daquela que, finalmente, encontra sua alma gêmea, seu par Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

perfeito, que a insere num mundo pleno de felicidade, para longe do vazio e da feiúra com que havia de lidar diariamente. Portanto, em vez de as leituras dos contos dar a Teresa força suficiente para escapar de suas mazelas individuais, elas a desnorteiam numa direção ainda mais solitária, desorientam-lhe com seu mundo caótico de seres encantados, levando-a ao congelamento, à inação no plano objetivo. Em vez de servirem como instrumento de reflexão através do vasto material simbólico que trazem em seu conteúdo, as histórias desvinculam Teresa de sua realidade concreta. No entanto, mesmo quando o narrador quer destacar a inutilidade dessas leituras, ressaltando que a personagem procura espelho, projeção, correspondência, e não processo e reflexão, é impossível não perceber, no consumo ávido dessa literatura, um investimento pessoal na esperança, numa espécie de recusa à aridez cotidiana (GIDDENS, 1992). Essa estruturação da busca do amor como uma ação que joga o sujeito na inadequa- ção, no isolamento, na loucura, na inação ou no alheamento do mundo objetivo origina-se, também, de uma visão crítica formulada a partir da idéia de que toda a preparação para a ex- periência do amor resulta numa desproporcionalidade entre os desejos individuais e os valores preestabelecidos pelo meio. Há aí uma retomada daquela subjetividade perigosa, de que nos fala Danielly Passos (2006), vivida pelas mulheres no século XIX, pois a internalização do mito do amor romântico cria um impasse insolúvel entre o desejo feminino e a ordem objeti- va. Além disso, há um sarcasmo na voz do narrador-onisciente, como se, por trás de todo esse conflito textualizado, ele estivesse a nos lembrar da ironia-abismo que existe entre essas duas instâncias. O feminino em Teresa consistia numa interiorização não-objetiva do papel da Cin- derela, mas o mundo externo solicitava a sociabilização dessa prática, sem a qual a persona- gem era considerada inapta, uma mulher pela metade. Ao mesmo tempo, o discurso que e- merge do conto ressalta a distância entre o amor de estrelas, de alturas impossíveis, de que nos falam as lendas e todo um imaginário coletivo, e a realidade diária, de cacos de vidro, ou, melhor, de sapos. É bom lembrar que essa dualidade entre o que se espera e se deseja do amor e o que se obtém a partir da prática ou do investimento pessoal no cultivo desse mito não se baseia na dualidade vista por Platão, em O banquete, como as duas faces ou aspectos de Eros: o vulgar, que incita o apetite, a paixão carnal, e o espiritual ou sublime, que incita a virtude, a sabedoria. Sabemos que, para o filósofo grego, o amor é uma força superior, que confere uma disposição aos seres para se elevarem em busca do eterno, do perfeito e do imutável, funcionando como um elo ou ponte entre o Mundo Absoluto e o relativo (SHOEPFLIN, 1999). No entanto, não é a carência dessa “ponte” ou mediação que joga Teresa no isolamento Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

do desejo e na desilusão pela impossibilidade de socializá-lo, pois o amor está sendo projetado enquanto demanda individual que entra em atrito com a expectativa coletiva. Em outras palavras, enquanto o meio espera do sujeito que ele assuma o papel de amante ou de amado, construindo vínculos amorosos possíveis de serem vistos na estruturação social, o sujeito investe num prolongamento de seu próprio devaneio acerca do que deve ser esse amor, quais elementos sensoriais e próximos de sua idealização ele deve trazer etc. Uma vez que a sociabilidade não ocorre, tal expectativa se volta contra o sujeito, em forma de cobrança, risos, ironias, piadas, reiterações. O texto de CFA, então, quer dar conta desses dois lugares onde a experiência da busca do amor está sendo nomeada, construída, imposta, encarnada, desviada. Há, portanto, muito mais a vontade de mostrar esse interjogo do amor entre força subjetiva e ordem objetiva, do que flagrar o sujeito mergulhado num Eros predominantemente material, responsável por levar o ser às baixezas da alma que, desagregada do Mundo das Idéias, encontra-se presa às trevas ou à escuridão das formas imperfeitas, conforme assinalou Platão. Dentro dessa mesma perspectiva de “O príncipe sapo”, os contos de Inventário do ir- remediável (1970) também trazem uma concepção do amor como interjogo, através de histó- rias curtas, cujo fluxo de consciência das personagens é o que mais se destaca. O livro é re- cheado de referências que se traduzem em diálogos e de retomadas tanto de temas quanto da técnica de construção de universos dramáticos dos escritores preferidos de CFA, como , Hilda Hilst, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade e Carlos Fuentes. Alguns desses contos trazem ainda um tom de “inacabado”, resultando numa supremacia do apuro da linguagem em relação àquilo que é contado. O isolamento, a loucura, a incomunica- bilidade, o exílio, a necessidade de amar e ser amado, a fragmentação do sujeito e o seu con- flito com o meio são os centros luminosos, em torno dos quais suas histórias giram e se con- densam. Em todas elas, há uma ordem impessoal que bloqueia os anseios mais íntimos dos personagens, desencadeando uma desestabilização de que se ocupa o tempo todo o narrador ou os narradores. Muros. Limites. Arames farpados. Pior, muros e chão de cacos de vidro. A forma geométrica que se destaca é o triângulo. A desestabilização que costura as histórias origina-se de uma espécie de triângulo de forças contrárias, cujas pontas travam um conflito irremediável. Num vértice, está o sujeito, que não representa, há muito, uma personalidade socialmente inserida numa realidade determinada, tampouco um “eu” indivisível e estruturado, mas um emaranhado de identificações temporárias, de percepções simultâneas, de desejos híbridos, de sentimentos múltiplos, tais como estrelas cadentes no céu das realidades diárias. No outro extremo, está a ordem geral das coisas, cuja principal Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

tendência é fixar e sociabilizar costumes, valores, papéis, distribuindo-os e organizando-os a partir de códigos que os conferem o atributo de normalidade, de vida real, de mundo objetivo; são os muros, os limites, os cacos de vidro, de que falamos acima. No terceiro e último vértice, está o amor, como uma mistura de projeção individual e coletiva, fruto de processos sucessivos de valorização e desvalorização, de preenchimentos e esvaziamentos, de determinações individuais e gerais, presentificando-se como uma realidade exuberantemente prometida e ausentando-se enquanto plenitude ou ápice aonde se chega. Um mito que se cristaliza como a verdade das verdades, a necessidade das necessidades e, ao mesmo tempo, move-se velozmente, metamorfoseando-se em luz e sombra, a mentira das mentiras, a grande ilusão, o tempo da vindima que jamais chega26, feito um pólo que, paradoxalmente, aglutina as diversas subjetivações dos indivíduos, todavia, também pulveriza-as, não permitindo nem ao sujeito nem à coletividade a fixação de um significado simbólico capaz de funcionar como uma resposta definitiva às inquietações, perguntas, carências e projeções humanas. Em Inventário do irremediável27, Caio Fernando Abreu trabalha com possibilidades de reinventar, através da escrita, a relação do sujeito consigo mesmo, com os outros, com a sua necessidade de amar. Todavia, nesse primeiro livro, o amor é um reflexo de fragmentos individuais que se isolam do meio, se desconectam do outro, e movimentam-se, sozinhos e urbanos, em ambientes fechados ou por ruas, parques, ônibus, bancas de revistas, margaridas, asfalto, esquinas, mamutes. Na verdade, o mundo externo, descrito como uma força contrária à liberdade individual, que encerra o sujeito num exílio interno, recebe como resposta a soli- dão, a descrença e abandono do indivíduo, que ignora a necessidade do geral e mergulha cada vez mais em si mesmo. O Brasil, em 1970, vivia um impulso modernizador, marcado pela produção de bens de consumo e investimentos industriais, mas, ao mesmo tempo, era um país que torturava quem se colocasse politicamente contrário ao poder estabelecido, um país que repreendia movimentos libertários, cassava os direitos dos cidadãos etc. Se nessas narrativas inventariadas pelo autor não existem registros diretos de grandes embates históricos, indiretamente, o clima de fechamento, perseguição e isolamento dos personagens pode

26 A espera pelo tempo da vindima é uma metáfora usada por CFA, conforme se pode ler neste trecho: “E olhei a parede do precipício e vi os cachos verdes de uvas e meu medo passou e eu não sentiria fome nem morreria porque logo viria a vindima, o tempo maduro das uvas. [...] o outro também se busca cego, o outro também e sempre é três [...] e assim mergulho, e assim mergulhas: a tontura de nossos três passos equilibra-se instável e precisa sobre o fio da navalha, à espera do tempo da vindima. Mas — sei, sabes, sabemos — as uvas talvez custem demais a amadurecer. E quase não temos tempo” (Eu, tu, eles. Morangos Mofados, 1987, p.55-9). 27 O livro Inventário do irremediável foi lançado em 1970, mas um pouco antes de morrer, em 1994, o autor o reescreveu, enxugando o texto, cortando adjetivos e advérbios, acrescentando novos detalhes, suprimindo outros, e colocando um hífen no título da obra, que passou a ser publicada como Inventário do ir-remediável. Para este trabalho, no entanto, usamos a primeira edição do livro. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

remeter a esse difícil período em que, no nosso país, os sonhos de liberdade democrática conviviam com uma impossibilidade real de vencer as limitações e controle trazidos pelo regime autoritário. O inventário é irremediável porque trata de oposições entre interiores que não correspondem a nenhum exterior e de exteriores que não correspondem a interior algum (NIETZSCHE, 2003). A modernização do país e a padronização de comportamentos são destaques nos dois trechos abaixo:

A cidade é um mar de lama e tédio. Nem isso. O asfalto cobre tudo, os operários rasgam o concreto com as vibrações das britadeiras, perfuram a terra, os metais corroendo as entranhas do que seria paz, as batidas secas violentam os ouvidos, e nascem avenidas, nascem viadutos, asfalto e asfalto gerados por mão e ferro. Calo porque você ameaça quebrar ao menor sopro. Não sente nada além dos membros pesados de contenção (1970, p.73).

É verdade, eu tinha qualquer coisa assim como andar de costas, quando todos andavam de frente. Eu tinha qualquer coisa como gritar quando todos calavam. Eu tinha qualquer coisa que ofendia os outros, qualquer coisa que não era a mesma dos outros e que fazia eles me olharem vermelhos com os dentes ras- gando coisas, e que doía neles como se eu fosse ácido, espinho. Então eles me trouxeram . Por isso eles me trouxeram (1970 p.38-39).

Estejam os sujeitos presos e isolados do meio, devido à ausência de identificação com os modelos exteriores (segundo trecho), estejam imersos e, ao mesmo tempo, isolados na vida urbana e barulhenta dos grandes centros (primeiro trecho), o mal-estar que os contamina é irremediável. É a fronteira interna, delineada a partir da constatação de que a modernização brasileira é feita de modernidades fragmentadas e heterogêneas (ORTIZ, 1988; LEAL, 2002). Esse primeiro livro é dividido em cinco partes, cada uma nomeada por subtítulos — “Inventário da morte”, “Inventário da solidão”, do amor, do espanto e do irremediável —; as quatro primeiras constam de oito contos, cada, com temáticas que acompanham seus subtítulos, e a última consta de um único texto, que dá nome ao livro. Em meio a influências literárias assumidas, o autor constrói uma linguagem já própria, alternando abordagens mais densas da condição humana, com personagens em situações de mergulho interior, perdidos e emaranhados no jogo solitário da vida. O desenho do amor alterna-se entre um discurso que engendra a busca de realização amorosa como forma de alcançar um autoconhecimento e a negação de que essa satisfação amorosa seja possível no mundo brutalizado, desvelado no livro. A concepção do amor está aliada à necessidade de liberdade individual, apontando para uma perspectiva que liga o desdobramento dos afetos, do prazer, da sociabilidade dos sujeitos ao debate acerca dos limites da liberdade do sujeito. É o que ocorre em contos como “A quem interessar possa”, “Morte segunda”, “Réquiem”, “O mar mais longe que vejo”, “Ponto de Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

fuga”, “Paixão segundo o entendimento”, “Domingo”, “Parede de vidro”, “Mamutes Margarida Madrugada”, “Meio silêncio”, “Invento e desinvento de amor e desamor”, “Diálogo”, “Amor e desamor”, e o último conto, que dá nome ao livro. Porém, há outras abordagens mais irônicas, que tendem a banalizar o drama individual por afeto e liberdade, e isso ocorre a partir de uma retomada de situações clichês entre personagem e meio, como ocorre em “Os cavalos brancos de Napoleão”, “O ovo”, “Metais alcalinos”, “Fuga”, “Verbo transitivo direto”, “Aniversário”, “Triângulo amoroso: variação sobre um tema”, “Apenas uma maçã”, “O rato” e “Madrugada”. No segundo livro, o romance Limite branco (1970), o amor continua a ser uma busca entre formas isoladas e vida social. O crescimento de Maurício, que, aos 17 anos, retoma uma infância pontilhada de espantos, perdas e descobertas — de si mesmo, dos pais, da morte, do outro — é marcado pelo desejo voraz de conhecer o mundo e, ao mesmo tempo, as contradi- ções desse desejo: sente-se atraído pelas pessoas, mas levanta mil barreiras para não ir ao en- contro delas, ora por medo de rejeição, ora por um certo narcisismo, ora por timidez e inércia:

Maria Lúcia me surpreende. Não digo que seja uma surpresa agradável. É uma surpresa sem adjetivos, porque ela simplesmente não corresponde ao que eu havia imaginado. Fica calada o tempo todo, lendo, enrolando nos de- dos as pontas dos cabelos, olhando pela janela. Quase não nos falamos, não sei como ela é. Fiquei arrependido de mentir que ia estudar latim para não precisar sair com ela. Deve ser mesmo chata, não tenho porque me preocu- par com ela. E, no entanto, me preocupo (1971, p.124).

Mas o Maurício de CFA não é apenas uma voz, pois se bifurca: há o diário, em pri- meira pessoa e em tempo presente, no qual quem fala é o menino, a partir de suas impressões, e há também, na terceira pessoa, uma reconstrução do que foi vivido pelo rapaz dos 12 aos 17 anos, como numa terapia ou tratamento psicanalítico em que uma narração retoma e clareia as lacunas da outra. Esse recurso narrativo se materializa de maneira alternada, ora mostrando ao leitor, de forma onisciente, o que o menino sentiu em certas passagens apenas sugeridas pelo diário, ora analisando a natureza do que Maurício afirmou anteriormente ter vivido. No final, ambas se fundem e percebemos que se trata de um duplo. O romance, então, é a junção do mundo mágico infantil com o estranhamento, a necessidade de contestação e aceitação dos modelos materno e paterno, a perda através do suicídio (da babá que contava histórias para Maurício) ou da transformação do indivíduo pelo meio (o primo mais velho, admirado pela postura revolucionária, vira um decepcionante pai de família). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

O jovem personagem se relaciona com a idéia de amor de maneira simbólica: infância, adolescência, primeiras atrações e repulsas, crescimento do próprio corpo e domínio das emoções são, também, signos de uma busca de sentido do personagem que perambula sozinho por uma Porto Alegre antiga, de bondes e de plátanos. Sua demanda por atenção e a dificuldade de compreender e assumir isso se traduz num mal-estar existencial (descentralizado, oriundo de um interior que não se liga a nenhum exterior), e traz elementos soltos, díspares, que mostram indícios da transformação cultural trazida pelos anos 1960. Por isso, quando o tom intimista da narrativa abre espaço ao externo, o que vemos é um sujeito que se sente congelado, no limite entre a antiga estrutura escolar (quando ainda era obrigatório estudar latim nos colégios), o cotidiano de uma família gaúcha de classe média (que viaja no verão para ver o mar e se informa do que está acontecendo no mundo através do rádio) e a possibilidade de romper com tudo isso através de uma transformação individual (simbolizada pela importância do primo rebelde, primeira conexão experimentada por Maurício com a ideologia hippie). O limite é branco porque implica numa suspensão de tempo, como num intervalo mental em que, para se fazer uma escolha, necessita-se analisar até onde e como se chegou ao que se é. O branco pode ser lido como um congelamento do indivíduo dentro do vazio que antecede a escolha, ou, ainda, como o abismo entre o sujeito e meio, naquele momento específico em que não havia possibilidade de partilharem o mesmo destino; é o impasse, o intervalo, a fronteira. A dupla revisão do passado — feita pelo menino, através do diário, e pela voz onisciente, através da recuperação da adolescência — é a forma de tomar consciência de si mesmo, uma espécie de acerto de contas para que a identidade do sujeito se construa, interna e externamente. Maurício se posiciona na fronteira: entre um mundo onde se habitava e um mundo em devir, no qual se pode vir a habitar. CFA não trabalha com o saudosismo diante do vivido, mas, antes, com uma intervenção semelhante a de um colador de imagens, fatos e palavras, a fim de delinear os dois universos. De qual deles escolher-se-á ser sujeito? Do velho, representado pelas figuras familiares e arquétipos do feminino e masculino (a mãe, o pai, a babá, a prima, o colega que rejeita a homossexualidade)? Do novo, metaforizado pela influência do primo com suas ligações com a contracultura (o enorme estranhamento do meio, o ser estrangeiro no seu próprio país, a certeza de uma orientação sexual diferente)? O limite capta o momento de imobilidade do ser humano dentro da atmosfera grave desse intervalo, mas mostra também que, independentemente do caminho escolhido, existem elementos já agregados ao universo do personagem, elementos com os quais é preciso aprender a conviver. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Por isso, o final sugere um estar em paz com o vivido, através da suspensão do conflito com velho mundo, e com seus modelos de masculino e feminino, estrutura familiar etc. Aceitar não significa seguir, imitar os modelos, trata-se, antes, de uma maturidade ad- quirida para que a personagem possa construir sua própria história. Nesse sentido, o amor não é apenas uma carência para Maurício, mas, sobretudo, um aprendizado, e passa, necessariamente, por uma vontade de forçar, diariamente, esse limite entre o interior e o exterior, para que algu- ma correspondência nasça daí, mesmo que se trate de um reflexo temporário, efêmero. A força positiva de Limite branco consiste em propor uma possibilidade de se enxer- gar por dentro, na intimidade do personagem, sua história de crescimento e demandas, e a sua tentativa, mesmo que precária, de encontrar equilíbrio. Uma passagem que reflete bem a suti- leza com que CFA nos mostra esse ser estrela cadente num céu de cacos de vidro é o longo passeio feito por Maurício no capítulo XVIII. O ir ao mundo começa pela saída do ambiente familiar, ele havia se negado a sair com a prima Maria Lúcia, mas não consegue se concentrar nos estudos, então sai, deixando para trás barulhos de conversas da tia, o primo dormindo com “as pálpebras fechadas escondendo o azul dos olhos” — o elo entre a rebeldia de ontem e a conformação dela no presente —, o elevador do prédio com sua porta cheia de nomes de pes- soas desconhecidas inscritos na madeira com canivete, e vai andar sem destino pelas ruas:

Seria bom ter uma irmã de olhos verdes chamada Virgínia? Um casal de na- morados cortou o pensamento. Eram feios e pobres, o vestido dela parecia desbotado, justo demais, os cabelos estavam duros de laquê e os dele empas- tados de brilhantina, penteados para trás, como um capacete. [...] Porque co- nhecia a maioria dos pensamentos existentes dentro de si e, embora o assus- tassem tanto às vezes nem sequer lhes dava nomes, era bom caminhar a sós com eles. [...] Mocinhas suburbanas passavam falando muito alto, em grupos aflitos. Havia também casais mais velhos, mais lentos. [...] Tentou ouvir o que as pessoas diziam, seria divertido caminhar assim, à toa, com um grava- dor.[...] Na Praça da Alfândega as árvores erguiam os grandes braços verdes para o céu. Pensou em parar, mas havia gente demais ali. [...] Duas prostitu- tas batiam com força na porta da casa que anunciava, em grandes letras ver- des: Comprasse e vendesse roupaz uzadaz. [...] As casas baixas de cores es- curas pareciam cães de rabo entre as pernas. [...] Entrou num bar, sentou, pe- diu um guaraná. [...] Multifacetado, seu rosto refletia-se ora sem olhos, sem boca, sem cabelos — vários pedaços de rosto que piscavam surpresos. [...] Além do bar vazio, a rua cheia de sol. (1994, 128-129 e 134).28

Fazer o personagem andar pelas ruas é um recurso valioso às narrativas do autor, pois

28 Citamos a segunda versão do romance Limite branco, que também foi reescrito pelo autor em 1993. Na versão original, de 1970, o erro de português visto pelo personagem é apenas de concordância verbal: compra-se e vende-se roupas usadas (165-166), em vez de compram-se e vendem-se roupas usadas. Na edição revisada, o autor acrescentou o erro ortográfico dos “ss” nas formas verbais e de “z” no adjetivo “usadas”, talvez para enfatizar que a dificuldade de domínio da norma culta no Brasil tem piorado nas últimas décadas. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

a rua é tomada como um espaço de fragmentação e recriação não apenas do sujeito, mas do próprio ato de escrevê-lo, e é, também, um lugar de continuidade e descontinuidade da busca do amor. É um walk writing (VASCONCELOS, 2000), no qual o fluxo do andar soma-se à produtividade de uma escrita que incorpora e é incorporada ao caos urbano. Nesse misturar- se, o lugar da literatura está sendo repensado, pois o texto literário passa a ser itinerário e itinerante, ao mesmo tempo em que se apropria do movimento físico para redimensionar a noção de espaço. O walk-writing não é apenas um recurso ou uma forma de usar os elementos mundanos capturados no percurso do andarilho para enriquecer a elaboração textual. Se assim o fosse, estaríamos falando tão somente do movimento inaugural de toda criação artística, em que sujeito empírico e sujeito autoral interagem e se expandem, complexificando o labor poético. Diferente disso, o escrever-andante ou escrita-andarilha incorpora o movimento espontâneo do corpo nas ruas, pelo mundo, e recria-o nas páginas, cortando, combinando e colando fatos, sensações, paisagens, ruídos, visualidades, músicas, ícones, hábitos, expressões, valores, desmontando e remontando itinerários e itinerantes. Assim, o conhecimento trazido por esses produtores abrange vários planos que vão da percepção sensorial à lógica, da ética à estética, da individualidade à coletividade; ou seja, a escrita é tomada pelos extremos da inquietude andante, transforma-se, portanto, numa atividade que envolve todos os lugares aonde os pés e a mente podem ir (VASCONCELOS, 2000). É nessa perspectiva que os sujeitos de CFA pensam suas questões mais caras e ínti- mas, mas, também, fragmentam-se, multifacetados nessa urbanidade perversa, caótica, bela, cosmopolita, fascinante. Andando na rua, apreendem, refletem, selecionam, rejeitam ou res- significam valores, hábitos e modelos, quer sejam seus, quer sejam do meio. Na verdade, a rua são várias, que vão dar em avenidas, becos, viadutos, praças, parques, boates, bares, prai- as; a rua é uma cidade; a cidade é uma região; a região é um país; o país é um mundo: cenário perfeito para se realizar a mescla entre a temática social e a intimista. É por isso que em textos como esse a busca do amor é uma complexa busca de si mesmo. O mito se transforma numa resposta a ser perseguida e encontrada na interioridade do sujeito, mas ele não tem mais as demarcações precisas dessa interioridade, ou finalmente se deu conta de que não é possível tê- las. Nesse sentido, o discurso assume uma tendência que enfraquece sua problematização, uma vez que propõe um desenho (ainda que sem contornos muito claros) do mito enquanto substância alojada no sujeito, que precisa ser descoberta, compreendida, esmiuçada na epidemia da vida. Há uma ampliação do urbano no intuito de aprofundar a análise da via psicológica do personagem de maneira universal; isto é, sua procura de Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

identidade é marcada por questões internas, individuais, que se colam a eventos externos, urbanos, próprios de uma atmosfera cosmopolita — com sua diversidade, suas contradições, sua rapidez, sua violência, sua miséria e sua melancolia. Maurício não é apenas um, mas vários jovens que nessa faixa de idade se debatem no interjogo do amor. Na escrita de CFA, esse percurso vira uma superfície dinâmica, semelhante à captura cinematográfica, na qual o leitor também passeia através do encadeamento de flashes, closes, cortes, explosão de jeitos, cores e sons, montagens de cenas onde o externo é fragmentado pelos questionamentos internos do sujeito, e esse ora se dilui, ora se isola da urbanidade caótica. No olhar do personagem que percebe todas as miudezas ao seu redor — desde a au- sência de domínio da norma culta da língua portuguesa até o sol forte a lhe acompanhar os passos — um casal de namorados passeia, mostrando tanto o brilho da experiência amorosa quanto a feiúra dos atores, filtrados pela câmera em movimento do jovem Maurício e suas subjetivações. O amor é uma possibilidade vaga, uma carência sem nome; ele o vê materiali- zado, exemplificado num casal e acha-o feio, desproporcional à expectativa interna. Esse de- senho da experiência amorosa alheia como despido de beleza ratifica a idéia de um amor- substância, semelhante a uma verdade interior que precisa emergir do sujeito, sem qualquer possibilidade de modelos externos. No entanto, essa perspectiva é logo misturada, nos livros seguintes de CFA, a outras menos previsíveis e essencialistas do mito do amor.

2.2 FEITO DE CARNE, FLUXOS E FUNDURAS

O investimento em personagens andantes, misturados à objetividade do mundo, é novamente visto nos livros de contos O ovo apunhalado (1975) e em Pedras de Calcutá (1977). Neles, pode-se ver também a inserção de uma outra maneira de interferir na mitifica- ção do amor e de sua busca: a configuração do afeto como uma prática que desestabiliza a ordem social. De seres que sofriam por causa de uma impossibilidade de equilibrar suas ten- dências mais subjetivas à ordem do mundo — o que os levava ao congelamento ou inação —, CFA passa para uma materialização de experiências amorosas que fogem ao modelo hetero- centrado, colocando em destaque, no entanto, o efeito trágico e, por vezes, caótico que o indi- víduo pode provocar à sua volta, uma vez que sua diferença não é aceita pelo meio, sobrevive numa posição marginal, à deriva. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

O ovo apunhalado é dividido em três partes — “Alfa”, “Beta” e “Gama” — e traz, em suas histórias recheadas de referências a experiências místicas, surreais e psicodélicas, um dos momentos em que a literatura de CFA mais captou a atmosfera da contracultura. Já Pe- dras de Calcutá é marcado por um clima de horror e isolamento. Neste, os personagens sen- tem, entre quatro paredes, o caos de fora, e se debatem na eterna busca do amor enquanto sen- tido, transcendência, libertação do mundo real. Às vezes, os personagens morrem grotesca e coletivamente, como em “Holocausto”; às vezes enlouquecem e são encarcerados em hospí- cios, como em “Uma história de borboletas”. Além disso, Pedras de Calcutá aponta para uma sedimentação do universo pop, através de experimentações com a linguagem — desenvolvi- das no conto “London, London ou Ajax, Brush and Rubbish”, em que há não apenas um mundo eminentemente pop, com incorporação de ícones, músicas, vestuário, comportamento, cenário londrino etc., mas também uma série de expressões híbridas criadas a partir da interfe- rência das línguas espanhola e inglesa na língua portuguesa. No conto “Eles” (OA), CFA explora elementos sensoriais e esotéricos típicos da at- mosfera da contracultura e coloca em conflito interioridades que já possuem sua própria for- ma de viver o encontro amoroso e não estão dispostas a abrir mão dessa diferença em prol de uma padronização oferecida pelo meio. Essa vivência não se estrutura enquanto “soma” no mundo externo; ao contrário, o que ela costura é uma narrativa de beleza e horror: um menino é atraído para o bosque e encontra três seres especiais que lhe ensinam a colocar fogo, através do olhar, nas casas da vila onde habitava. O conto é narrado por um terceiro personagem, tes- temunha simpatizante da “estranha causa” dos seres especiais e do menino iniciado. Apesar de simpatizar com os três estranhos, o narrador não consegue evitar que os moradores da vila, num gesto de fúria e vingança coletiva, queimem esses seres ao saber de sua influência sobre o menino e o incêndio na vila. A exploração ampla do olfato e a sua possibilidade de transformar um aroma numa espécie de poder, capaz de manipular o meio, levando os sujeitos a desrecalcar os desejos em público, numa catarse sexual coletiva, está no conto “Eles” — que antecipa em dez anos o que Patrick Süskind desenvolve em 1985, no romance O perfume, a história de um assassino. O olfato é, então, usado como uma arma contra o meio. Porém, a vertente utilizada por CFA não lida com elementos de psicopatia, como no romance alemão; na verdade, o centro da narrativa é ocupado pela experiência de descoberta do “eu”, orientada pelo misticismo, visionarismo e pelo que Mario Maffi chama no movimento hippie dos anos 70 de uma “vontade de abarcar Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

civilizações e culturas pré-capitalistas”, que, na visão dele, funcionou como uma maneira de fugir da responsabilidade política29. O conto “Eles” insere-se mais no terreno da magia, do místico, do sobrenatural. E quando os personagens conseguem fugir dessa atmosfera, a forma encontrada para a fuga se aproxima da clássica cena da Odisséia, quando Ulisses, orientado pela feiticeira Circe, vence a tentação do canto das sereias, ordenando aos marinheiros para lhe amarrarem ao mastro e não o soltarem de forma alguma. De maneira parecida, alguns dos moradores tapam as nari- nas e escapam ao poder embriagador do perfume exalado pelos três seres especiais:

Fiquei um instante sem saber o que fazer, procurei o menino no meio da pra- ça, dos escombros e da cinza, mas não consegui encontrá-lo. Saí então para a montanha, tentei chegar na frente do grupo, mas eles estavam enfurecidos, os olhos turvos, as bocas cheias de espuma, ódio, incompreensão e noite. E- les estavam os três na entrada do bosque, como se esperassem. Exatamente como se esperassem. Não reagiram quando as pessoas caíram sobre eles, es- pancando-os até que uma substância clara e perfumada começasse a escorrer das feridas. Ao espirarem essa substância as pessoas caíam ao chão, os olhos desmesurados, os movimentos descontrolados, fazendo e dizendo coisas sem nexo, como se tivessem tomado alguma droga. Pareciam embriagadas, lou- cas e felizes com o sangue dos três seres alucinando suas mentes. Não teria conseguido subjugá-los se alguns dos habitantes não tivessem arrancado as camisas para taparem as narinas, evitando aspirar aquele perfume enlouque- cedor. [...] Os homens com os narizes tapados pelas camisas, amarraram e amordaçaram os três seres, depois carregaram-nos a pontapés pela montanha abaixo (1975, p.70).

Na seqüência, os três são queimados vivos, enquanto as pessoas jogam pedras neles. Mas ao serem queimados, os personagens abrem os pulsos e liberam um líquido claro em meio ao sangue, fazendo brotar os instintos sexuais reprimidos de toda a comunidade, que se entrega a orgias coletivas, não apenas entre homens e mulheres, mas entre pais e filhos, ho- mens e homens, mulheres e mulheres, e, além do território do humano, fazem amor com cava- los, cães, touro, terra, palha, numa devoração lasciva e sem medidas. Ou seja, os moradores da vila mataram os seres especiais, disseram não à proposta de liberdade trazida por eles, ta- param as narinas para não serem contaminados pelo aroma que os confundia, mas nada disso adianta: o contato com o oculto é uma marca que os diferencia. Houve um “eu” libertado nes- se encontro e esse “eu”, rejeitado conscientemente, agora só consegue ser ativado a partir de um mergulho radical na coletividade.

29 No original: A lo largo de la experiencia hippie, precisamente este abandono ao misticismo e al visionarismo y la vonluntad de abarcar civilizaciones y culturas precapitalistas, se tranformaron a menudo – como ya hemos visto – en una fuga, en una vía para evitar el compromiso, la responsabilidad política en primera persona, y también en el abandono (dropping-out) de la sociedad. (MAFFI, 1972, p. 67) Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Tal qual Ulisses, amarrado ao mastro do navio para não ceder à sedução do canto das sereias, mandando os marinheiros tapar os ouvidos e mantendo os dele abertos, os moradores da vila também experimentam da própria loucura através do perigo que tentaram evitar. Feito Odisseu, que retorna para Ítaca como o único homem na terra a conhecer o canto das sereias, os habitantes da vila conhecem a loucura despertada pela substância que aqueles estranhos liberaram na hora da morte. No entanto, diferente de Ulisses, que se resguardou fisicamente da tentação, os habitantes têm o corpo marcado pela experiência, por isso, paralisam-se dentro desse conhecimento: experimentam a magia do oculto, mas “não sabem o que fazer do desconhecido — do imensamente permitido — revelado. E não podem voltar atrás” (1975, p.73). Isso mostra que mesmo no espaço místico está resguardada a heterogeneidade das experiências: os moradores não se tornam, imediatamente, diferentes e especiais, como os seres queimados na fogueira eram, como o menino iniciado, como o personagem que narra. Essa história estetiza a capacidade que alguns seres diferentes e estranhos (geralmen- te dotados de uma beleza perturbadora) têm de despertar numa comunidade o princípio do prazer sem culpa. Há a retomada de um valor pré-capitalista: a orgia sexual como aprendizado coletivo, mas, no conto, ela deveria servir também para a diluição de uma moral que, naquele momento, era apenas superfície entre os habitantes da vila. Todavia, o conto mostra que quando uma comunidade se entrega à satisfação sexual sem medidas e depois não consegue aprender com essa experiência — gerando uma nova configuração de papéis na estruturação das relações sociais — o caos orgíaco por si só não é capaz de originar um mundo melhor e uma irmandade cúmplice. Assim, a experiência que seria libertadora resulta num novo recal- que, como na narrativa desenvolvida por Pasolini (Teorema, 1968). Nela, a aparente harmonia de uma família burguesa é quebrada pela chegada de um hóspede angelical e irresistível. A presença do rapaz desperta as animosidades, desejos reprimidos e as verdadeiras personalida- des de cada um dos membros da família, que estavam mascaradas por uma série de acordos tácitos, construídos através da resignação e do vazio interior deles. O belo e perturbador hóspede lê o poeta Arthur Rimbaud e se comunica muito pouco, mas desencadeia um novelo de conseqüências imprevisíveis assim que chega à mansão da família. Sua presença é revolucionária, pois divide a história da família em “antes dele” e “depois dele”. No entanto, a transformação que traz não é feita por nenhuma ação específica ou discurso proferido; ela já está prevista na própria natureza asfixiante e tediosa que organiza tal família: é resultado direto de sua decadência, dos papéis forçados por uma convenção e não por laços afetivos, da aparência baseada em bens, dinheiro e luxo, da comunicação inexistente, dos desejos ocultados. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Esse modelo de narrativa, em que um personagem é o elo entre o místico e o racio- nal, o primitivo e o moderno, o desejo e o recalque, não é incomum. Está em Pasolini — que se interessa em trazer à tona os aspectos críticos de uma família em decadência, cujo núcleo entra em processo de autodestruição após a chegada do estranho rapaz —, mas também em Roberto Freire (que opta pela perspectiva de libertação das amarras burguesas através do con- tato das pessoas com um estranho, para quem a liberdade individual é o valor maior). Em O coiote (1988), assim como CFA, Freire também busca ideologicamente expor a hipocrisia das relações sociais e desrepresar os sujeitos através de suas vivências sexuais e amorosas. Nesse caso, não interessa a CFA e a Freire apenas a exposição e destruição da decadência da ordem burguesa (como ocorre em Pasolini), e, sim, as possibilidades de acesso ao oculto, ao místico, ativadas pelos personagens a partir do contato com os estranhos. Em “A criação e anulação dos estranhos” (1998), Bauman ressalta a principal amea- ça trazida pelas pessoas consideradas outsiders: “sua tendência a obscurecer e eclipsar as li- nhas de fronteira que devem ser claramente vistas”. (p.37). A análise do autor aprofunda a tese freudiana de que o estranho é algo da ordem do familiar, isto é, uma categoria não-alheia à mente, que se alienou dela através do processo de repressão” (FREUD, 1976, p.301). Ao tomar essa categoria em virtude de sua presença não no inconsciente individual, mas no cole- tivo, sobretudo nas sociedades modernas, Bauman afirma que, no processo de estabelecimen- to de “fronteiras e de mapas cognitivos, estéticos e morais”, cada sociedade cria seus próprios estranhos, “mas cada espécie de sociedade produz sua própria espécie de estranhos e os pro- duz de sua própria maneira, inimitável.” (1998, p.27). Dessa forma, é possível inferir que o elemento recalcado na literatura de Pasolini pode ter aproximações com o que o que é sugerido na escrita de CFA ou de Roberto Freire; todavia, não é da mesma espécie de estranhos que os três autores estão falando, pois para Pasolini o elemento a ser desrecalcado e trazido à tona tem necessariamente a ver com a dissolução da família, uma estrutura importante da economia burguesa, atacada pelo olhar do escritor-cineasta que elabora, assim, uma perspectiva estética da crise do mundo capitalista europeu, sobretudo na Itália. Por isso, ele trabalha com a presença de um estranho que se torna mediador na explosão dessa crise, desvelando não apenas valores conservadores, mas o vazio existencial dos membros daquela família, antes escamoteado por uma série de protocolos sociais. O estranho de Pasolini é anunciador de um caos que deve exatamente encerrar, dissolver, explodir essa estrutura familiar — e, por conseguinte, todas as outras semelhantes a ela. Nessa crítica à ordem burguesa, a sexualidade é encenada como aquilo que se perdeu em função de uma modernização, aquilo que se reprimiu; ou seja, o desejo é visto Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

como um elemento subversivo do sujeito que, num momento do caos catalisado pela presença do estranho, vem à tona, mostrando uma interioridade mascarada, negada pela representação dos papéis sociais. Os estranhos em CFA, e em menor grau também em Roberto Freire, não são apenas emblemas de uma tragédia burguesa, provocada pelo elemento recalcado que retorna produzin- do uma dissolução. São isso, porém, mais do que isso: são anunciadores de uma outra ordem, esotérica, mística. Esses estranhos, em vez de provocarem nos outros personagens o caos de um vazio, eles os direcionam para o abandono dos modos de vida calcados numa ótica burguesa e capitalista, que deveriam ser substituídos por orientações de cunho místico, esotérico, oriental e/ ou primitivo (trazidas pela contracultura) que funcionariam como uma forma de resistência aos já estabelecidos. Além disso, a luta de classes apresentada pela perspectiva de Pasolini é esmae- cida em CFA pelo investimento no mito do amor e sua materialização em pequenas histórias cotidianas, pois para o autor o amor: “é(s) o único que sabe(s) da absoluta inutilidade de todas as coisas e sabe(s) dessa vontade incontida de ser maior que todas essas coisas sabe(s) dessa vontade amarga no peito de cada um e esquecida durante a trivialidade sabe(s) de tudo e por saber(es) é que te escolhi” (1975, p. 94). A linguagem múltipla da experiência afetiva está alinhada à busca de uma forma de singularização, que se encontra em confronto com as forças repressivas do meio, mas que não se dobra à captura, à banalização. O amor é um guarda-chuva onde cabe a conquista da liber- dade individual, o direito à vivência de uma sexualidade homoerótica, a negação do enqua- dramento e ascensão social, bem como a incorporação de ícones e referências do mundo pop e dos valores da contracultura, na época ainda em processo de espacialização no Brasil. Encon- trar um lugar para a libertação dessa singularidade implica romper com as coerções políticas, sociais e culturais. O mito do amor vai, então, perdendo a idéia de substância alojada dentro de uma interioridade que precisa vir à tona e passa a ser encenado como um processo, um devir em que o próprio sujeito é construído, a partir de suas escolhas, suas referências, sua radicalização performática: “Vejo minha casca clara partir-se inteira em cacos brilhantes que ficam cintilando pelo chão do banheiro. O sangue escorre e eu, agora, também estou no céu com os diamantes30 (1975, p.172). Em Pedras de Calcutá (1977), o autor abandona a atmosfera hippie de bosques, praças, parques, vilas e espaços próximos à natureza — trabalhada em O ovo apunhalado — e retorna à clausura e solidão dos grandes centros, já vistas em Inventário do irremediável. O livro abre com

30 Estar no céu com os diamantes é uma referência direta à música dos Beatles, “Lucy on the Sky with Diamonds”, num texto que combina a influência de Clarice Lispector com os elementos contraculturais. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

uma citação de Mário Quintana sobre um acordar encantado com uma pedra de uma rua em Calcutá onde ele jamais estivera. Essa metáfora, que traz uma melancolia irremediável — saudade do que jamais existiu mas que poderia ter existido e como tal já devora feito ferida e prazer —, também pode ser lida como uma configuração da experiência do amor, pois combina a alegria espontânea e a aura de mistério de quando se acorda apaixonado e, ao mesmo tempo, a pulsação oriunda de um certo vazio que persiste nesse estado. Em entrevista a Sui Generis (1995), Caio sintetiza esse estado ligando-o à própria natureza da condição humana: “Somos todos Laikas, um país de Laikas, aquela cachorrinha que os russos mandaram pro espaço nos anos 50 e não conseguiram trazer de volta. Eu sempre imagino que ela caiu num buraco negro e foi dar num planeta cheio de Laikas. A condição humana é Laika, a gente urrando pro infinito” (p.23). Esse latejar de uma condição que é um eterno devir condensa histórias como “Mergulho I”, “Mergulho II”, “Recuerdos de Ipacaray”, “London, London ou Ajax, brush and rubish”, “Uma história de borboletas” e “Pedras de Calcutá”. As narrativas não implicam em experiências amorosas felizes, mas, antes, num painel de pequenas ações e conseqüências desencadeadas pelo instante em que os personagens se dão conta de sua existência:

[...] ergueu a cabeça com sede, como o último impulso de um afogado, e antes da massa branca de um avião cobrir seus olhos ainda pôde ver a longa esteira branca de um avião a jato cortando o céu. O cheiro era insuportável mas, com as narinas apertadas, sem saber porquê, com alívio, teve certeza absoluta de que aquele avião estava indo para Calcutá. (ABREU, 1977, p. 124).

Erguer a cabeça, reter o instante em que a vida é asfixia. Arrancar, nesse movimento, uma imagem efêmera, alada, que, superposta ao sufoco e ao meio, funciona como uma esperança ou fuga. Ao olhar para o avião, o personagem olha para a possibilidade do vôo, do rompimento com a sua própria condição de afogado. O elemento água, que remete à emoção, é o espaço onde não se consegue respirar, e é descrito como um lugar de sujeira e limites (latas vazias de cervejas, pregos enferrujados, cercas e placas avisando “é proibido ultrapassar”), enquanto o elemento ar, símbolo da racionalidade, oferece imagens velozes e esfumaçentas de objetos que voam. A luta é por um instante de frágil beleza: daquele objeto que rasga o céu, pesado e leve ao mesmo tempo, da fumaça que ele deixa em seu rastro, o olhar do personagem extrai a esperança, renovando a crença nas epifanias: o avião só pode estar indo para Calcutá. Essa palavra sonora e vaga, misto de alegria e tristeza, que dá nome a uma cidade-símbolo da busca de elevação espiritual humana (e um dos lugares mais miseráveis do mundo), é na narrativa uma alusão ao milagre da vida, à percepção de um sagrado instante. O próprio narrador fornece uma sentença que define de maneira precisa a condição existencial do Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

personagem — e de tantos outros de CFA —, uma citação em inglês, retirado do Sri Caitanya- Caritamrta, que não era de todo compreendida pelo personagem, mas reverberava por todos os cantos por onde ele se movia: “Ele está sempre intoxicado com a loucura do amor estático” (1977, p.123). Há, então, um jogo com a instantaneidade e a asfixia. Os sentidos procuram a beleza na efemeridade e improvisam, assim, um espaço onde encontrar alimento para a alma. O alimento é o amor, porém, esse opera o milagre momentâneo pelo envenenamento, visto que é loucura e, por isso, intoxica. A intoxicação leva-o ao estado de sufocamento, e, novamente, dentro dele, o sujeito buscará uma imagem alada como salvação. Instaura-se o círculo fechado em torno do cultivo do mito do amor, pois ao mesmo tempo em que ele é buscado como resposta às questões existenciais do sujeito, sua materialidade é fluida, não se fixa, e por não saber conviver com essa dimensão móvel do amor, o buscador se “afoga”. Em “Uma história de borboletas”, a idéia do amor como uma experiência de perda da razão e entrada num mundo de onirismo, beleza e tragicidade está relacionada com o homoe- rotismo. Através de uma rescrita do conto “Carta a uma senhorita em Paris”, de Julio Cortazar (1970), CFA propõe a possibilidade de se pensar na relação amorosa entre dois homens como uma ação desestabilizadora do meio. Nesse conto, os parceiros vão perdendo a razão lenta- mente (primeiro André, depois o narrador), à medida que investem em seus delírios: ambos têm o poder de gerar borboletas no centro da cabeça. A cabeça representa o mundo racional, que se abre, rompendo a estruturação lógica que podia ligar o indivíduo ao meio. Dessa fenda, nascem borboletas, símbolo da subjetividade, da leveza, da sexualidade e também da trans- formação individual. Essa metamorfose, no entanto, leva os sujeitos para dentro do casulo, ou seja, eles se transformaram em indivíduos que se desconectaram completamente do mundo ao redor, e, uma vez encerrados em sua interioridade, desconhecem um ao outro, se acusam, se estranham, provocando barulhos e despertando a atenção repressora dos vizinhos. A parceria é interrompida pelos entraves da experiência trágica da loucura, que não permite cumplicida- de. O mundo, ao ser desestabilizado pela diferença daquela união, volta-se hostil e costura uma solução para se livrar deles, internando-os. Todavia, eles invertem essa situação, pois é no hospício, fora das regras que determinam a sociabilidade racional, que os parceiros voltam a se irmanarem. Ao se verem novamente juntos, vítimas agora dos funcionários do hospício que estranham o hábito de ambos tirarem borboletas da cabeça, reconhecem-se vinculados um ao outro e estreitam os laços, voltando a falar a mesma linguagem e dividindo marca da dife- rença (transformada em delírio), que os isola dos demais. O mito do amor, então, está relacionado com a vivência homoerótica. No entanto, numa sociedade em que não apenas os afetos são mecanizados, mas, sobretudo, a diferença está sempre Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

espremida entre a captura e a coerção, o casal não consegue se impor frente ao meio nem como entidade autônoma nem como parceria amorosa, resultando daí uma desintegração temporária da dupla, que só retoma a intensificação dos laços afetivos quando ultrapassa a razão estabelecida. Assim, a partir de um desenho do amor como produtor de um saber singular, resultante do embate entre subjetividade e forças repressivas, a desestrutura do casal se faz, como que rearfirmando a impossibilidade de dois homens se amarem e viverem juntos no contexto dos anos 1970 — a não à margem da sociedade. Nesse ponto, CFA constrói uma história que pode ser a mesma de tantos homossexuais anônimos que, no Brasil dos anos 70, eram forçados a ou esconder seus parceiros ou abdicar da vivência dessa relação. Como todo o processo de emergência da diferença individual, inclusive entre os próprios parceiros, é provocado pela singularização da experiência do amor homossexual, pode-se inferir que o saber metafísico ali produzido recusa o ambiente homogeneizado e permanece à margem da perspectiva de sociabilidade. Dessa forma, CFA entrelaça a luta dos indivíduos pelo direito à diferença com a desrazão, colocando essa como um investimento radical na interioridade, o que desliga os sujeitos do meio. De todo modo, a loucura aí é trabalhada como uma construção, um processo de busca, de seleção, de perdas e de retornos do sujeito; não mais como uma essência ou substância que se acessa — como era compreendida a desrazão, por exemplo, na Idade Média, conforme expôs Foucault, em História da loucura na Idade Clássica (1978). Entretanto, o movimento não é só em torno de entrelaçar a experiência do amor marginal à da loucura, reinventando formas de produzir outros valores e saberes expulsos do território do- minado pela padronização sexual e pela razão estabelecida. Há, também, uma perspectiva de tra- balhar isolamento e incomunicabilidade como um lugar de emergência da subjetividade, o que dá à representação da relação homoerótica um traço contraditório, pois aquilo que funcionaria como sua verdade interior (efeito produzido pela força da singularização dos sujeitos) fica, assim, empa- lidecida pela linguagem do delírio, metafórica e escorregadia, mesmo para seus pares. Segundo Denílson Lopes, em “Notas para uma história de homotextualidades na literatura brasileira” (2001), em muitos momentos da construção de histórias homoeróticas, há um conflito entre a afirmação da identidade homossexual, calcada numa experiência de vida e do desejo, e a visibilidade da intimidade fora do gueto ou dos espaços onde a militância atua, e onde pode permitir com sua ação um direito à exposição pública dessas relações. Nesse sentido, os textos artísticos que investem na singularização da vivência do desejo gay e/ou de sua efetivação, sem necessariamente abrir mão das zonas de sombra e alteridade que o desligam dos movimentos instituídos, representam um “fato extremamente relevante na medida em que movimentos gays querem atuar no conjunto da esfera pública, sem apagar suas especificidades, Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

e querem discutir a importância de suas problemáticas fora de espaços guetizados” (2001, p. 32). Por isso, em “Uma história de borboletas” a produção de uma verdade individual não pode acontecer sem oferecer, também, os elementos contraditórios de tal experiência, que mostram, a um só tempo, o amor entre dois homens como uma força capaz de se ramificar, produzir símbolos metamórficos (as borboletas), esconder-se, isolar-se, sofrer repressões do meio e, depois, explodir nas cercanias de uma instituição psiquiátrica. A saída é aos poucos e pelas margens, e a expansão da afetividade dos sujeitos não constitui um modelo para as lutas dos direitos gays. No entanto, diante do peso repressor da ordem objetiva, CFA usa a metáfo- ra da borboleta para evidenciar essa singularização múltipla do amor: apenas ele é capaz de construir um espaço de leveza, inscrevendo a experiência homoerótica no território trágico da loucura, mas fazendo esse afeto ressoar como uma possibilidade de troca, de amor entre dois homens. Trata-se, portanto, de uma junção de Eros e Philia que desestabiliza o mundo, uma vez que os amantes se tornam cúmplices, ambos produtores de um código amoroso específico e passam se comunicar através desse código simbólico, ao qual ninguém mais tem acesso. A loucura é o escudo desse amor que não pode se autonomizar, como outras relações normalmente legitimadas pelo âmbito social. A cena final com os personagens desse conto tirando borboletas dos cabelos um do outro, felizes mesmo dentro da camisa de força, parece antecipar a forma emblemática de resistência usada em Bent, filme de Sean Mathias (1997), que recupera a perseguição dos nazistas aos homossexuais durante a Segunda Guerra Mundi- al: os dois personagens, Max e Horst, estão trabalhando no campo de concentração e são proi- bidos de se comunicarem, mas encontram uma maneira de vivenciar o afeto e a sexualidade, fazendo amor em silêncio, através dos gestos e dos olhares, enquanto levam pedras de um lado ao outro, debaixo da forte vigilância dos soldados nazistas. Esse universo simbólico é ampliado em Morangos mofados (1982), acrescido de uma postura ácida com que os personagens de CFA passam a medir os meios de comunicação de massa e seus modismos, a democratização política e cultural no Brasil, os produtos artísticos, a necessidade de consumo (sua e dos outros) e as lacunas entre o desejo de transformar o mundo e a consciência de que o sonho acabou. Os personagens, então, ou paralisam-se ou constroem maneiras outras de lidar com o lado trágico da experiência amorosa, seus avanços e retrocessos, a ausência de diálogo entre o enigmático presente e os sonhos de outrora, o paradoxal silêncio dos centros urbanos — porque feito de diversos ruídos e de ensurdecimento à fala do outro —, e a angústia de estar isolado num mundo insensível às diferenças (o que os leva à marginalidade e ao desejo de transgressão). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

2.3 PLÂNCTON É UM BICHO QUE BRILHA QUANDO FAZ AMOR

Em “Hoje não é dia de rock I”, Heloisa Buarque de Holanda31 fala das relações inter- textuais entre a canção dos Beatles, “Strawberry fields forever” (do álbum Magical mistery tour, 1967) e o livro Morangos mofados, mostrando que ambos são atores de um tempo pas- sado e de uma viagem geracional. Não se pode esquecer a frase-sentença de John Lennon ao declarar que o sonho havia acabado, ela é o elo entre canção e livro, pois existe um hiato de concepção e de espaços entre os morangos selvagens cultivados e mastigados pelos persona- gens de CFA — que alimentavam seus sonhos de transformação social e de crescimento espi- ritual através das verdades reveladas pela experiência do amor — e a interrupção abrupta des- se projeto, metaforizada pela frase de Lennon — daí o mofo dos morangos, analisado por Vic- tor Adler Pereira, em “Marcas no corpo, no texto e na cena de Caio Fernando32” (1999), como “um travo na garganta [...] proveniente do resquício dessas esperanças [nos modos de vida alternativos] que envelheceram, estragaram-se” (p.12). O hiato pode ser compreendido a partir das diferenças entre o que o escritor está ma- terializando enquanto sonho acabado ou interrompido e a dimensão complexa de todo o terre- no da contracultura. Dizendo de outro modo, como o termo contracultura abrange não apenas aquilo que CFA re-elabora esteticamente em seu livro, mas também áreas maiores de experi- ências diversas e contraditórias, observadas entre as décadas de 60 e 70, no Brasil e no mun- do, há uma fronteira não nomeada, uma separação não-dita entre o que dói e brilha nos perso- nagens do autor e aquilo que lhes provoca riso, descaso, ironia. O investimento do autor nes- ses elementos de época se distancia dos relatos de guerrilheiros, de cunho crítico pedagógico e/ou didático, bem como de uma postura revisionista dos caminhos ou opções que deveriam ou foram tomados por sua geração. A proposta de uma história cultural em CFA passa, primeiro, pela emergência do plano dos afetos, depois, pela desierarquização dos valores, modelos e referências — que já é, por si, um outro conceito de cultura — e, por fim, pela delicadeza com que aborda a relação entre amor e sexualidade. Esses elementos estruturam e organizam em seus textos toda uma

31 Artigo originalmente publicado no Jornal do Brasil, em 24/10/1982. Também disponível em: . Acesso em: 21 dez. 2006. 32 Ensaio apresentado no I Encontro de Pesquisadores de Literatura e Homoerotismo, realizado na Universidade Federal Fluminense, em 1999. A cópia aqui utilizada foi disponibilizada pelo autor. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

discursividade acerca da compreensão das representações das experiências amorosas. Ao eleger o discurso poético para revisitar esse passado perdido, o autor está selecionando uma possibilidade de acesso ambígua, estética e, sobretudo, ética do vivido — e não apenas histórica e/ou política. Colocar o amor em dúvida, indagar sobre seus sentidos, questionar sua centralidade, expor suas discrepâncias, mas, ainda assim, não se deixar sucumbir ao reducionismo contem- porâneo que iguala o amor ao hedonismo — o que, segundo Bauman, consiste numa trans- formação do amor romântico, a partir de uma espécie de diluição que o faz passar à mera per- formance e excluir a tensão com a morte de seu desenho (1997) — constitui o princípio ético dos discursos amorosos de CFA. Essa ética é formada por uma série de representações do mito do amor que vão montando uma bricolagem, na qual se inscrevem desde a crítica à feli- cidade negada (que o amor-paixão paradoxalmente almeja e impossibilita) até os discursos originados de perspectivas mais engajadas sobre o amor, a exemplo dos textos “Transforma- ções” e “Aqueles dois”. Como objeto artístico-cultural dotado de uma linguagem específica, o discurso poético é capaz de descentralizar as experiências amorosas, porque sua dimensão é transgressora e se oferece menos à captura do que as outras linguagens. A abordagem do mito do amor, então, é assumida como um estilo de vida, isto é, como um empreendimento pessoal que explora ele- mentos históricos, culturais, sociais e sexuais. Há em Morangos mofados tanto a vontade de distanciamento da experiência amorosa (presente, por exemplo, na acidez crítica dos contos “Os sobreviventes”, “Os companheiros” e “Fotografias”), quanto uma busca poética de saídas para a angústia desse gosto mofado, advindo da falência do sonho ou promessa de felicidade (é o caso de “O dia que Urano entrou em Escorpião”, “Pela passagem de uma grande dor”, “Eu, tu, eles”, “Transformações”, “Natureza viva”, “Aqueles dois” e o último conto, “Morangos mofados”). No meio dessas duas vertentes, há o que Holanda chamou de perplexidade de ver o sonho abor- tado, que resulta em momentos em que os personagens imobilizam-se dentro de uma névoa ou sombra, congelam-se, sem poder ultrapassar os impasses da experiência (a exemplo de “Além do ponto”, “Luz e sombra”, “Pêra, uva ou maçã” e “Caixinha de música”) e adotam uma pers- pectiva questionadora dos limites internos e externos do mito. Os contos se estruturam como se ecoassem uns nos outros, porém, em vez de uma impressão de unidade, o que formam é uma multiplicidade de olhares, de ações, fragmentada pela disposição embaralhada e, por vezes, obscuras das histórias. Há uma atmosfera agressiva, na qual sujeitos e meio se engolem e se vomitam, mutuamente, provocando uma sensação de território perdido, devastado pela dor da falta de caminho, de orientação. No entanto, em meio Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

a essa terra-de-ninguém existem brechas oferecidas pela possibilidade ou crença do amor, como na união homoerótica de “Terça-feira gorda”, quando, de uma aventura de carnaval, extrai-se um brilho que é ampliado e permanece no ar, como símbolo de uma felicidade alcançada, ainda que momentânea, porque logo reprimida pela violência oriunda de uma ordem social que não aceita a diferença:

Tiramos as roupas um do outro, depois rolamos na areia. Não vou perguntar teu nome, nem tua idade, teu telefone, teu signo ou endereço, ele disse. O mamilo duro dele na minha boca, a cabeça dura do meu pau dentro da mão dele. O que você mentir eu acredito, eu disse, que nem na marcha antiga de Carnaval. A gente foi rolando até onde as ondas quebravam para que a água lavasse e levasse o suor e a areia e a purpurina dos nossos corpos. A gente se apertou um contra o outro. A gente queria ficar apertado assim porque nos completávamos desse jeito, o corpo de um sendo a metade perdida do corpo do outro. Tão simples, tão clássico. A gente se afastou um pouco, só para ver melhor como eram bonitos nossos corpos nus de homens estendidos um ao lado do outro, iluminados pela fosforescência das ondas do mar. Plâncton, ele disse, é um bicho que brilha quando faz amor. E brilhamos (1982, p.50).

A seqüência traz uma agressão: um grupo de pessoas cerca o casal na areia, um deles (o narrador) foge por um instante e consegue ver, de relance, quando o outro é esmagado pela fúria dos que não compreendem, não aceitam a realização amorosa alheia. Eles faziam amor e eram felizes, mas eram rapazes e, por isso, representavam uma possibilidade de afeto intole- rável para os demais. O instante em que sexualmente se completam produz brilho, que é com- parado com aquele emitido pelo plâncton. Assim, uma vez que o erotismo do carnaval é resul- tado de uma separação moderna entre amor e sexualidade, o seu imperativo imediatista, resu- mido no bordão “ninguém é de ninguém”, é quebrado pelo discurso afetivo que emerge do encontro dos dois rapazes. A punição do meio origina-se do preconceito pela manifestação pública de desejo entre dois homens e, também, de uma concepção tipicamente machista de que manifestações públicas de afeto não são viris, pois, dentro dessa visão heteronormativa, a entrega é feminina, e aloja-se no pólo extremo da construção cultural da masculinidade. Em grego, plâncton significa “errante” (de planktos) e na biologia esses organismos são conhecidos pela sua baixa capacidade de se locomoverem, por isso, são facilmente leva- dos pela correnteza. É o que vemos acontecer no conto: as pessoas que agridem os rapazes na praia, primeiro os chamam de “veados”, estranhando a mútua atração que demonstram um pelo outro ainda na fase da paquera, quando dançam juntos no meio de todos, depois, perse- guem-nos praia afora até encontrá-los para concluir a agressão. Como são muitos, e, portanto, maiores, a repressão iniciada via linguagem termina no plano físico:

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[...] O pontapé nas costas fez com que me levantasse. Ele ficou no chão. Estavam todos em volta. Ai-ai, gritavam, olha as loucas. Olhando para baixo, vi os olhos dele muito abertos e sem nenhuma culpa entre as outras caras dos homens. A boca molhada afundando no meio duma massa escura, o brilho de um dente caído na areia. Quis tomá-lo pela mão, protegê-lo com meu corpo, mas sem querer estava sozinho e nu correndo pela areia molhada, os outros todos em volta, muito próxi- mos. [...] Fechando os olhos então, como um filme contra as pálpebras, eu conse- guia ver três imagens se sobrepondo. Primeiro o corpo suado dele, sambando, vin- do em minha direção. Depois as Plêiades, feito uma raquete de tênis suspensa no céu lá em cima. E finalmente a queda lenta de um figo muito maduro, até esborra- char-se contra o chão em mil pedaços sangrentos (1982, p.50).

O figo (que segundo um dos personagens é uma flor, e não um fruto) esborrachando- se em mil pedaços sangrentos é uma imagem-símbolo do conflito entre a experiência amorosa e a barbárie do grupo Dentro desse contexto, os dois rapazes são os organismos menores, que desejam e ousam enfrentar a censura externa em prol desse querer mútuo. Eles assumem a fome que um tem do corpo do outro, investindo, vivenciando a sexualidade, porém, o brilho gerado pelo encontro dos dois é uma afronta à ordem social. Assim, a junção é interrompida por organismos maiores, violentos, que os engolem, tal qual na cadeia alimentar em que os plânctons alimentam outros seres marinhos. Os agressores tragam a luminosidade daquele encontro homoerótico, mas o fazem de maneira negativa: negando ao outro e a si mesmos a possibilidade de vivenciarem tal experiência, num misto de atração e repulsa já explorados por CFA, no conto “Eles”, (OA). Em ambos encontraremos os mesmos elementos: a luz (“importante é a luz, mesmo quando consome”), simbolizando a força de liberdade interior do sujeito; a morte (“a cinza é mais digna que a matéria intacta”), indicando coragem e renova- ção; e a esperança (“a salvação pertence apenas àqueles que aceitarem a loucura escorrendo em suas veias”), representada pela perspectiva do desrecalque, da vivência plena dos desejos (1975, p. 65). Mas o cenário e a perspectiva homoerótica explícita de “Terça-feira gorda” afasta-o de seu anterior, pois, em “Eles”, os aspectos homossexuais são empalidecidos pela tonaliza- ção forte da experiência de retorno do primitivo e do esoterismo, além de a história se passar numa vila, situada mais perto da floresta do que da cidade, enquanto que em “Terça-feira gor- da” CFA vai buscar a problematização do amor gay dentro do cenário do carnaval brasileiro e num espaço urbano. Esse cenário que deveria ser favorável às múltiplas formas de desrepres- são do desejo é, ao contrário, o lugar da explosão violenta de forças de controle da alteridade. É numa terça-feira de carnaval que os rapazes se encontram e se entregam ao prazer. Na esfera pública — na praia — e ao alcance de todos os olhos da sociedade. A utilização do carnaval no conto aponta claramente para um elemento forte de identificação de nossa nacionalidade: Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

O brasileiro miscigenado, híbrido particular formado pelas relações “cordi- ais” entre índios, brancos e negros, compõe com as misturas entre as contri- buições trazidas por esses distintos elementos tornados um, a singularidade da nação, construto identitário presente no imaginário nacional desde 1930. A exaltação se refere a essa singularidade ligada a características como ale- gria, “jeitinho” para lidar com as adversidades, o talento para a musicalidade e a “vocação” para a festa. O Carnaval e o futebol ajudam a formar de ma- neira especial as marcas dessa nacionalidade brasileira no cenário mundial e são oferecidas ao mundo, em tempos de globalização, como fortes atrativos para que o Brasil conquiste espaços nos campos econômico e simbólico (COQUEIRO, 2006, p.27-28).

No entanto, o carnaval brasileiro de que nos fala o conto e que territorializa a experi- ência do encontro dos dois rapazes não é uma representação do palco homogêneo que permite a toda comunidade uma experiência democrática, como quer a grande maioria dos estudiosos desse fenômeno brasileiro. Segundo Roberto da Matta (1981), nessa vivência efêmera da festa democrática, o sujeito saboreia uma espécie de compensação dos antagonismos e desigualda- des enfrentados no dia-a-dia da nação, vive uma democracia, ainda que temporária. Ou seja, para Matta, o carnaval desierarquiza as relações sociais habituais, porque é uma festa sem dono e porque promove uma interação social não visível no resto do ano (p.116). Essa com- pensação, conseguida através da vivência de fantasias não permitidas em tempos normais, é negada aos rapazes no conto de CFA: quando eles se amam, são interrompidos e agredidos pelos representantes da ordem social. O texto mostra um outro carnaval no qual os instintos repressores estão ainda mais aguçados, e, em vez de festa democrática, onde todas as camadas da população poderiam interagir e se liberarem, o que vemos é uma cena de barbárie, na qual apenas os agressores estão a liberar seus instintos. Democracia negada, hierarquia mantida: aos rapazes-plânctons, que investiram na fantasia do encontro amoroso e carnal, são distribuídos murros e pontapés; aos que estranham e não toleram a diferença, é dada a vitória de extravasar primitivamente os instintos. Nesse sentido, podemos afirmar que o texto literário vai além do olhar sociológico, mostrando que a homogeneização de direitos, mesmo no carnaval, não é possível num país tão culturalmente heterogêneo e tão socialmente desigual. Um exemplo disso são as cenas já comuns no carnaval da Bahia, onde vemos cordeiros empurrando, agredindo, física e verbalmente, os foliões que estão na pipoca33. De forma parecida, em “Terça-feira gorda”

33 Cordeiros são seguranças particulares contratados pelos blocos carnavalescos e cadastrados pela Prefeitura de Salvador. Eles funcionam como uma barreira humana, e, à medida que o bloco avança, abrem espaço na avenida para os associados dos blocos brincarem separadamente do povão, dentro de uma corda ue é estendida em forma de círculo, com o trio elétrico do bloco no seu centro. Os associados do bloco, para terem acesso a essa área Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

prevalece a idéia de uma separação antagônica e incontornável entre sujeitos e meio, o que faz o título do conto soar tragicamente irônico: é gorda para os personagens que se entregaram rapidamente a uma aventura carnal ou é gorda para o grupo que transforma o casal numa pasta de sangue? Tanto o adjetivo — “gorda” — quanto a imagem do grupo cercando e agredindo os rapazes nos remete ao famoso pão e circo de Roma, quando eram travadas batalhas sangrentas em estádios como o Coliseu, por ocasião dos festejos de conquistas guerreiras ou por determinação da política Panis et Circense — criada pelo Império Romano para conter possíveis revoltas ocasionadas pelo crescimento urbano da cidade, oriundo da migração de desempregados (escravos e camponeses) que viam em Roma uma promessa de emprego e melhores condições de vida. Nas lutas romanas, havia a diversão e a distribuição de alimentos, o que funcionava como uma contenção das massas. Segundo Gilson de Azevedo (2006), esse costume romano só se encerra em 400 d.C., no episódio em que o eremita Telêmaco protesta contra a barbárie da arena romana, é morto pelos gladiadores, mas, em compensação, seu sacrifício resulta na proibição, pelo Imperador Honório, de tais práticas34. Dessa forma, parece-me pertinente inferir que os rapazes agredidos pelo grupo são os Telêmacos de CFA, sacrificados pela fúria coletiva para expor ao mundo, através da catarse da representação, a que nível de barbárie podem chegar o preconceito e a intolerância de alguns para com as manifestações de afeto e atração sexual que lhes são diferentes. “Terça-feira gorda” aponta para relações conflituosas que aproximam o carnaval brasileiro ao “Panis et Circense” romano, inscrevendo no nosso espaço (tão celebrado pelo suposto caráter democrático) as zonas obscuras que normalmente não são vistas na cobertura oficial feita pelos meios de comunicação. Nessas zonas postas em circulação pelo conto de CFA, há fragmentos de uma violência não prevista, de uma repressão súbita, de uma barbárie até então escamoteada, que explodem junto com a dança dos rapazes, com o encontro de seus corpos nus, suados, seus olhares famintos, seus gestos cadenciados, seus movimentos sensuais e encenadores de uma coreografia luminosa do desejo correspondido. É nesse Brasil da purpurina e do lixo que vemos o fruto do encontro entre os dois rapazes ser, ao um só tempo, brilho e pasta de sangue.

privada dentro do espaço público, devem estar obrigatoriamente usando o abadá do bloco. Já pipoca é um termo usado pelo soteropolitano para identificar quem não sai em bloco, mas brinca no circuito carnavalesco, sem abadá e sem segurança. 34 XAVIER, Gilson. Disponível em: . Acesso em: 30 jan. 2007. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Ao trabalhar com Morangos mofados, Antônio Moreira da Silva (1997), em sua dissertação de mestrado35, defende a idéia de uma intertextualidade dentro do próprio livro, de conto para conto, de personagem para personagem, todavia, sem intenção de unidade, uma vez que há muito mais “amálgama entre eles” do que a linearidade ou univocidade comuns às grandes narrativas. Ele enfatiza as relações do sujeito com o meio através de uma leitura que compreende os conflitos dos personagens como um “enfrentamento de estigmas”. Essa seria a razão principal para a constante tensão apresentada no livro. Tal enfrentamento é visto de maneira transparente em “Terça-feira gorda”, pois, desde o início, a voz do narrador, em primeira pessoa, mostra uma tensão entre os prazeres experimentados a partir da visão do corpo do outro rapaz, seminu, dançando a sua frente, e os olhares de censura e fragmentos de piadas maldosas ouvidas no ambiente. Essa tensão vai se acentuando durante toda a história, e, mesmo quando os dois alcançam a praia, deixando os olhares e comentários sarcásticos para trás, ainda é possível sentir um clima de suspense na narrativa, como que nos preparando para o embate que ocorrerá. Uma imagem que captura bem essa tensão é a ilustração escolhida para a capa da oi- tava edição do livro, em 1987 (Brasiliense, série Cantadas Literárias)36. A capa vermelho-azul adquiriu uma variação que inseriu a figura de uma mulher nua, de ponta-cabeça, caindo das estrelas por entre o vácuo dos edifícios iluminados de uma cidade que a acolherá em latas de lixo cheias de morangos sumarentos. O desenho de Alex Vallauri corresponde à síntese da tensão entre a dor existencial e o caos urbano, abordada em todo o livro. Estão ali as cores fortes e intensas do mundo dos ícones, a linguagem irônica com que nos habituamos a mensu- rar os objetos contemporâneos, o efêmero e o trágico da vida urbana, mas, também, a necessi- dade que o artista tem de dominar e explorar os mecanismos de compreensão e expressão da emotividade, a necessidade de mergulhar de corpo e alma nos extremos da condição humana e a eterna busca de uma saída desses processos, através da reinvenção, na escrita, de uma possi- bilidade de leveza. Alguma leveza, mesmo que passageira, pois somente a dança pode inven- tar um brilho, uma luminosidade para esse corpo que viaja das estrelas ao chão, onde lhe a- guardam o brilho sangrento da carne dos morangos e o marrom-cinzento das latas de lixo. Escolher a reinvenção da experiência do amor para ser razão e cenário dessa dança, produzindo trajetórias sinuosas e caóticas dos sujeitos, traz aos textos de CFA uma alternância entre momentos de extrema leveza e ironia e outros de descobertas dolorosas e angustiantes,

35 Dissertação intitulada Prazeres proibidos nos campos de Morangos, defendida no Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora, em 1997. Disponível na biblioteca da instituição. 36 Da primeira até a 7ª edição, apenas o desenho “Carimbos” compunha a capa do livro. Na 8ª edição, além dessa base, acrescentou-se o desenho “Acrobatas”, do mesmo artista. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

que paralisam os sujeitos exatamente na arena, isto é, no espaço onde seria travada a luta entre subjetividade e ordem objetiva. No entanto, as relações amorosas e a procura desesperada delas, em MM, são constantemente acompanhadas pelas tentativas de interferir na concepção e no valor que damos ao amor. Por isso, o que pode ser visto no livro é um falar da experiência amorosa como forma de ação, seja para reatualizar os arquétipos de amor já mapeados pela evolução das histórias humanas, seja para questioná-los e possibilitar que essas vozes, mais do que fragmentos de perfis psicológicos, de pedaços de ideologias em atrito ou de ecos de realidades capturadas, funcionem como uma maneira de expor a face crítica e a poética dessas experiências, conforme se pode ler em “Além do ponto”, “Eu, tu, ele”, “Transformações”, “Sargento Garcia”, “Natureza viva”, “Caixinha de música” e “O dia que Júpiter encontrou Saturno”. Antônio Moreira da Silva (1997) segue uma orientação psicanalítica na sua análise acer- ca de Morangos Mofados; para ele é o atrito entre o Id (“princípio do prazer”) e a censura (“prin- cípio da realidade”) que gera a incomunicabilidade, a fragmentação, a angústia, o conflito e o iso- lamento dos personagens. No entanto, ele afirma que, paradoxalmente, na efetivação desses uni- versos pela escrita de CFA, estariam o diálogo, a junção ou reunificação, a saída e a possibilidade de encontro, ou seja, tudo funcionaria como uma forma de reinvenção das experiências. Reinven- tadas, elas adquirem novos poderes, novas vozes que impõem e deslocam tais estigmas. Esse seri- a, então, o jeito ou modo de CFA de criar a sedução dentro da dor, do conflito. A sedução é uma arma que persiste de história a história, é um fragmento que se move, modifica-se e retorna, repre- senta universos aqui, desvia realidades ali, reelaborando a voz ou estilo do autor. Há, dessa forma, uma positivação da voz em MM, simbolizada pela busca do personagem, no último conto, por um lugar fértil, um canteiro, seja no apartamento, seja na rua, na cidade ou no país, onde poderia plantar morangos vermelhos e sumarentos. Aqui, a fruta vermelha, polpuda e ácida está diretamente ligada à maneira como o individual pode se conectar, outra vez, ao coletivo. Noutro texto, ainda acerca de MM, Moreira da Silva (2001)37 compreende a recorrência da imagem de positivação da dor como um mecanismo encontrado por CFA para nos lembrar, o tempo inteiro, que o “sonho acabou, mas retorna de uma nova forma em uma outra utopia. Atualizada no presente e no ato, uma vez que a literatura de Caio Fernando é uma ação, um movimento, uma saída de um lugar banalizado” (2001, p.2). Plantar novamente morangos gordos e sumarentos é, afinal, resgatar o sonho, mas não resgatá-lo por

37 Cf. “O lugar incomum no livro Morangos mofados de Caio Fernando Abreu”, publicado nas Atas do IV Congresso Internacional da Associação Portuguesa de Estudos Literários/ Estudos Culturais, realizado em maio de 2001, na Universidade de Évora e disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2007. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

saudosismo ou vontade de reter o vivido, mas por desejo de continuar investindo, de forma insistente e sempre renovada, na experiência do amor enquanto saída, um deslocamento do presente.

2.4 QUANDO NADA MAIS HOUVER, EU ME ERGUEREI CANTANDO

Em Triângulo das águas (1983) as experiências amorosas e a busca do amor irrom- pem nos textos a partir de vários cruzamentos de subjetividades que se encontram de maneira superposta, formando camadas densas, como nos antigos telhados de barro cozido. A imagem dos telhados, aliás, aparece em algumas histórias de Caio Fernando, como em “Luz e som- bra”, “Sargento Garcia” (MM) e “O marinheiro” (TA) e, além de fixar um cenário urbano, remete, sobretudo, à idéia de vozes entrecortadas, de universos palimpsestos que vão apare- cendo à medida que nossos olhos de leitores conseguem ir dançando nessas paisagens raspa- das pelo atrito de várias subjetividades que se alternam. Em TA, o autor escolheu o gênero novela, que permite uma maior espacialização desses aspectos, ao contrário do que ocorre no conto, em que a necessidade de densidade tende a impor uma economia que limita episódios e núcleo dramático, condensando as vozes dissonantes. Triângulo das águas aprofunda as intenções simbólicas de Morangos mofados, pois re- toma o debate acerca da diluição de alguns aspectos fundamentais trazidos pela contracultura, como a luta pela liberdade individual e o atrito entre desejo pessoal e ordem objetiva. Além disso, é um dos livros do autor em que a vontade de rediscussão do mito do amor mais se expli- cita, uma vez que é o tema central de todas as narrativas, o problema íntimo e coletivo com o qual os sujeitos têm de aprender a lidar. Em vez de muitas histórias, CFA opta por três narrati- vas marcadas pelo arquétipo do elemento Água — ao qual pertencem os signos de Câncer, Es- corpião e Peixes. Sua intenção manifesta38 era a de construir um livro pra cada elemento, ou seja, haveria depois o Triângulo do fogo (Áries, Leão e Sagitário), o Triângulo do ar (Gêmeos, Libra e Aquário) e o Triângulo da terra (Touro, Virgem e Capricórnio), formando um ciclo de narrativas guiadas pelos arquétipos zodiacais. Embora não tenha conseguido realizar tal projeto, o autor construiu em TA três possibilidades de extravasamento e vivências de paixões.

38 Caio Fernando ABREU. Revista Autores Gaúchos, n° 6. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1988.

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O livro cruza o medo da morte e da loucura com a necessidade individual de mensurar e questionar os limites impostos pelo meio; cruza a consciência do desamparo e a necessidade de amar com a autocrítica dos personagens; o isolamento e as dores existenciais com a exposição dos equívocos de uma padronização coletiva. Trata-se de uma tentativa de dominar os mecanismos de compreensão e expressão da emotividade, e de sugerir uma saída através da leveza: a dança amorosa (coletiva, individual e a dois), que é buscada como uma maneira de intervenção nesse estado de coisas, pontiagudas e áridas, que contornam as subjetividades. Triângulo das águas abre com “Dodecaedro”, uma narrativa em pedaços, composta através de 13 vozes: 12 personagens contam pedaços de uma experiência em comum, e a bi- furcação de uma dessas vozes forma o fragmento da décima terceira voz, também disposta em camadas, mas inserida num tempo pós-acontecimento, o que lhe dá a perspectiva de uma re- flexão acerca do próprio ato de narrar o ocorrido. Mas não se trata apenas de uma reflexão metalingüística; esses fragmentos da décima terceira voz propõem uma interferência no jogo da escrita, à maneira de Ana Cristina Cesar, problematizam “o tom da escrita-diálogo” — quem fala? Quem interrompe aquele(a) que fala? Como se fala e por quê? —, registrando pedaços daquilo que é lembrado, mas também do que é esquecido e daquilo que não sabe o que vem a ser quando se escreve e/ou se vive um acontecimento. Esse descentramento de vozes forma camadas de subjetividades, como flashes super- postos. Os 12 personagens estavam numa casa afastada da cidade, no período do carnaval, veraneando, quando um deles descobre o inesperado: alguém soltou os cachorros loucos lá fora e, a partir de então, eles ficam impedidos de sair. Circunscritos à casa de veraneio, preci- sam lidar com as relações que construíram até o momento, como num filme de Bünuel. Dedicada a Jacqueline Cantore e a Ana Cristina Cesar — que se matou no mesmo fim de semana em que CFA lançava TA, em Porto Alegre —, essa novela, segundo o autor em nota de abertura, foi uma tentativa de coreografar através de palavras o álbum Köln Concert, de Keith Jarret (1975). Além dessa dedicatória, há também um poema-epígrafe, de Henrique do Valle (1960-1981), outro poeta suicida, conhecido nos pequenos círculos cariocas e gaúchos, onde lançou dois livros em edição própria39. Assim, a morte em TA está sempre presente e, aliada ao elemento Água, constitui um processo de purificação através das perdas, para que, após a catarse, surja uma nova forma de lidar com as emoções. Cada um dos

39 Caio Fernando já havia usado citações de Henrique do Valle como epígrafe para Morangos mofados, e no conto “O dia que Júpiter encontrou Saturno”. O mofo, a fumaça, os morangos e os cachorros loucos são metáforas recorrentes na poesia de Henrique do Valle, que foram incorporadas por Caio. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

personagens reescreve o vivido, repensando na sua maneira de lidar com o amor, enquanto a décima terceira voz retoma o que se conta, ora esclarecendo, ora obscurecendo os elementos narrativos. A incorporação dos arquétipos astrológicos é feita através das características mais fortes (clichês), identificadoras de cada um dos 12 signos. A narração é plurívoca, composta de vários fragmentos a partir dos quais cada personagem conta um pouco da história e de sua percepção sobre ela. Apesar de reunir esses arquétipos e encerrá-los num único espaço, CFA não busca a simplificação, mas o deslocamento e o estranhamento dos personagens. Isolados numa casa de onde não podiam sair devido à ameaça dos cachorros raivosos, eles se vêem diante de questões íntimas que foram mascaradas com a sociabilidade: “Para manter eterno o verão atrás da janela, eu cantaria até o amanhecer” (1983, p.32), diz uma das personagens, desejosa de parar o tempo e sua ameaça de ruína, de corrosão. Todavia, o tempo não pode ser suspenso; ele precisa ser dançado a partir da conquis- ta de um ritmo capaz de conjugar o movimento de dentro com o de fora. Apostando no resul- tado dessa reunião de dançarinos, CFA volta a colocar em circulação as idéias de sexo livre e coletivo como forma de desrepresamento das emoções e da libido. Mas o sexo praticado pelos 12 personagens não resolve as diferenças e as questões não-ditas entre eles. Há ódios e censu- ras sutis, assim como desejos e afetos que os aproximam e, ao mesmo tempo, os afastam, nu- ma dança amorosa e complexa, cuja coreografia depende de um ritmo que passa, necessaria- mente, pela aceitação de si e do outro. É através da reunião de todos esses aspectos, negativos e positivos, através da possibilidade de espaço em comum para vivenciar suas subjetividades que todos eles se movem. Esse espatifamento de interiores se condensa em “O Marinheiro”, história que se segue a “Dodecaedro”, cujo principal núcleo traz um homem enclausurado, que, ao ser visitado por um marinheiro, liberta-se da vã espera na qual estava imerso. Enquanto reconstrói a visão e as palavras desse marinheiro — que é o próprio personagem fragmentado pelo delírio — respon- sável por lhe revelar sentidos e sensações antes desconhecidas, ele se refugia nas suas próprias pinturas, que vão sendo dispostas nas janelas, portas e paredes do antigo sobrado onde mora. Na sua loucura, o personagem se debate com a perspectiva de uma morada cheia de objetos e frag- mentos de lembranças, símbolos de um doloroso abandono, de uma dor cuja causa não pode mais ser organizada na memória, mas que ainda lateja, exigindo dele a destruição definitiva através do fogo. Dentro da proposta de trabalhar o elemento Água como símbolo de uma problematização das emoções, sobretudo da forma como se lida com o mito do amor e sua Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

promessa impossível de felicidade em nossa sociedade, “O Marinheiro” condensa explicitamente a influência do signo de Escorpião, cujo arquétipo aponta para uma fusão do “eu” com o “outro” como única maneira de resolução para os conflitos pessoais. Essa fusão deve passar obrigatoriamente por um ritual de purificação, em que a morte, as cinzas, o caos e o vazio são etapas que reconduzem ao renascimento, à transformação. Enxergando-se como alguém que precisa se autocomplementar através de uma travessia para o desconhecido (metaforizado pelo mar), o personagem funde-se ao seu duplo, dispondo de sua loucura e das imagens trazidas por ela para compreender e tomar posse desse outro, dissolvendo aquilo que lhe assombra através da consciência de sua familiaridade. Essa travessia de posse de si mesmo é vivida pelo personagem num híbrido de delírio e lucidez, em que imagens díspares se encontram sem delinear a fronteira de si e do outro:

— De onde você veio? — perguntei ainda, a mão na porta me separando de- le. — Vim da tua visão anterior — ele afastou as tiras coloridas que pendiam da porta. Gentilmente, mas seguro, afastou também meu braço, não como se pedisse licença para entrar num lugar que não lhe pertencia, mas ocupando o espaço que lhe era destinado. E repetiu: — Venho de tua visão imediatamen- te anterior a esta de agora, embora eu não seja uma visão. — Quando... eu descia as escadas? Fechei a porta às suas costas. — Quando você descia as escadas. Daquele navio atracado na baía. Essa, de a- reias brancas ofuscantes, a praia daquela baía, naquela ilha. Você não viu que daquela praia partia uma estrada, subindo pelas rochas até o farol. (1983, p.78).

Esse texto é uma das muitas variações da produção de CFA em torno da busca do amor e da clausura da experiência amorosa, e assemelha-se às versões anteriores de contos como “Além do ponto”, “Luz e sombra” e “Caixinha de música” (MM), nos quais os personagens também se confrontam com uma vivência do mito do amor, colocado no terreno de uma desrazão. Nesse caso, a loucura é marcada não apenas pelo atrito e tentativa de controle e/ou exclusão da diferença individual pelas forças externas ao sujeito, mas pelos próprios conflitos subjetivos que jogam os personagens num círculo irremediável: tentam apossar-se de um saber adquirido durante o delírio que, invariavelmente, cessa de significar ante a qualquer esforço de leitura organizada, condensando-se, enigmático, em forma de um pânico por telhados, escadas, cobras, pombos cinzentos ou imagens claustrofóbicas de mãos que apertam o pescoço de uma ave, tirando-lhe o oxigênio. Contudo, diferentemente dos textos anteriores, em “O Marinheiro” há uma proposta de saída desse universo espatifado: o sujeito extravasaria todas as dores, medos e fantasmas, através de um mergulho radical na Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

subjetividade, aprendendo, assim, a ultrapassar as fronteiras de si mesmo, a partir de uma fusão do “eu” com a “sombra”. “Pela noite” é a novela mais extensa de Triângulo das águas e aquela escolhida para encerrar o livro. Ela se inicia com uma citação de Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes e também orienta-se, como “Dodecaedro” e “O Marinheiro”, a partir de uma narrativa construída para ser dançada, dramatizada, agora sob o arquétipo do signo de Câncer. O problema da emotividade e de como lidar com a demanda de amor continua; a ele são a- crescidas questões mais complexas sobre cultura, identidade, gueto e diferença. Nesse texto, os questionamentos acerca do mito do amor saem da esfera mais subjetiva dos personagens, isto é, de suas indagações interiores, e são transformados num diálogo tenso entre dois perso- nagens muito diferentes entre si. Pérsio e Santiago são dois homossexuais oriundos da mesma cidade pequena40, que se reencontram, anos mais tarde, numa sauna. Após a surpresa inicial, os conterrâneos conversam e marcam um encontro, dias depois, na casa de um deles. A partir desse novo encontro, eles passam a encenar papéis um para o outro, tomando de empréstimo nomes retirados de romances (o de Pérsio foi extraído de Julio Cortázar, o de Santiago, de Gabriel García Márquez), e iniciando um complicado jogo de sedução, repleto de avanços e recuos, mascaramentos e confusões de desejo. Em “Pela noite”, a maior incapacidade de pensar o amor fora dos mecanismos do artifício e da encenação advém de Pérsio. Ele circula em volta de Santiago com amargura e uma excessiva tendência à crítica e, em muitas passagens, parece vampirizar o outro, forçando-o abrir mão de suas crenças, seu otimismo e, principalmente, de sua disposição de apostar ainda no amor. Pérsio tenta seduzir Santiago, mas não ambiciona nada além de uma aventura, uma maneira prazerosa de passar outra noite; afinal, ele sequer acredita na possibilidade de um envolvimento real com outro homem: “nunca consegui ficar mais do que um mês transando a mesma pessoa. Sempre me dá uma. Uma coisa, já conheço aquele corpo, aquele cheiro, aquele gosto. Aí vou à luta” (1983, p.161). Santiago move-se dentro de uma névoa de isolamento e luto pela perda de um companheiro com quem foi casado cerca de 10 anos; ainda assim, nutre esperanças pela vida, pelo outro e por si mesmo. O confronto entre os dois é enriquecedor, não apenas pelo contexto pós-militar dos anos 80 no Brasil, em que as proibições e perseguições políticas deram lugar a uma diluição das tentativas de transformações sócio-político-culturais, mas, sobretudo, por trazer à tona questões cruciais à

40 Trata-se de uma cidade imaginária, Passo da Guanxuma, criada pelo autor, que retorna em Os dragões não conhecem o paraíso e em Onde andará Dulce Veiga?, tal qual a Macondo, de Gabriel García Márquez, e a Santa Maria, de Juan Carlos Onetti. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

contemporaneidade, como as de exclusão e inclusão, as limitações da identidade sexual e a mobilidade da sexualidade humana, o politicamente correto e as novas formas de controle dos comportamentos e do desejo, e, ainda, por materializar em escrita a luta de Eros (Santiago) contra Thanatos (Pérsio). Por abarcar tantos pontos fundamentais para se pensar as questões contemporâneas com que hoje temos de lidar, a história de amor de Pérsio e Santiago tornou-se uma narrativa da errância dos sujeitos pós-revolução cultural, quando o desbunde já havia sido ultrapassado, a AIDS já modificava as relações sociais e afetivas e o gosto do vazio impregnava quase to- dos os textos que tinham como cenário os grandes centros urbanos. Além disso, é em “Pela noite” que a escrita de CFA encontra uma forma eficiente de promover o atrito entre dois dis- cursos, o gay e o antigay, como já apontava o próprio autor em entrevista:

Refletindo sobre “Pela Noite” cheguei à conclusão de que ela é uma história antigay. Pérsio odeia gay, tem um discurso antigay fantástico. Mas dei uma entrevista enorme para Revista Sui Generis onde falo nisso. Acho que litera- tura é literatura. Ela não é masculina, feminina ou gay. Eu não acredito nis- so, acho que existe sexualidade: cada um é sexuado ou assexuado. Se você é sexuado, tem mil maneiras de exercer a sua sexualidade com mulher, ho- mem, vaca, criancinha, velhinho, com buraco de fechadura. E se nós formos compartimentalizar essas coisas, acho que dilui, pois fica uma editora gay, numa livraria gay, que vai ser lido apenas por gays. (ABREU apud Marcelo Secron BESSA, 1995, p.12).

A preocupação do autor com o rótulo e a conseqüente restrição que a sua produção literária pode vir a sofrer no mercado, ao ser enquadrada como literatura gay, se sobrepõe à definição de novela antigay que inicia sua fala; porém, sua reflexão abortada sobre a posição do personagem de “Pela noite” tem bastante procedência quando analisamos o discurso de Pérsio. Movimentando-se como alguém que vive intensamente uma crise de subjetividade, mas acabou desenvolvendo mecanismos eficazes de proteção à exposição dessa dor, o personagem posiciona-se diante do mundo, das pessoas e até de suas necessidades afetivas como quem assiste a um espetáculo artístico. Ele mantém um distanciamento suficiente para, na hora em que julgar conveniente, desfiar uma série de comentários ácidos, interferindo na cena, roubando os holofotes para si, como numa espécie de feedback inteligente, porém, sem qualquer desejo de sair completamente dessa posição de espectador privilegiado para enfrentar a nudez do palco — nesse sentido, não é à toa que Pérsio ganhe a vida como crítico de teatro. Sua tese acerca do amor e da dinâmica do desejo entre dois homens aponta para uma descrença completa de qualquer coisa que não seja o prazer efêmero e cheio de culpas: “Amor entre homens tem sempre cheiro de merda. Por isso, eu não agüento. Um mês, dois. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Você mascara, disfarça, põe uma vaselina aqui, um sabonete ali. Mas o cheiro de merda continua grudado na tua pele. Eu não consigo aceitar que amor seja sinônimo de cu, de cheiro de merda (1983, p.165). Pérsio confessa jamais ter vivido uma relação diferente dessa por ele descrita, na qual a funcionalidade e fisiologia dos corpos não diluíssem a atração e o desejo de um corpo pelo e no outro. Segundo Marcelo Secron Bessa, em Histórias positivas: a literatura (des) construindo a aids (1997), o nó na história de Pérsio não se concentra apenas na “impossibilidade de su- blimar seu desejo ou a de renunciar a ele”, embora isso ocorra e seja como um flanco aberto, latejando; “o que mais incomoda, porém, é essa promessa [de amor, de felicidade, de vida a dois) não cumprida, uma história prometida que ou lhe foi negada ou que ele negou a si pró- prio” (1997, p.63). Assim, Bessa enxerga na insistência do personagem em fixar um papel para si e para o outro a consciência do veto que lhe é imposto, isto é, a certeza de que o acesso a esse ideal amoroso não lhe pertence, devido à sua incapacidade de praticar a linguagem do amor, da troca amorosa que, para o próprio personagem, não pertence às relações homossexu- ais. Ao confrontar esse Pérsio conformado a uma realidade de papéis definidos com um Santi- ago romântico, para quem o cheiro do corpo do outro é agradável e necessário à relação, um Santiago que conhece, mas prefere ignorar as máscaras e artifícios da paquera entre homens nos bares e boates gays, um Santiago que viveu 10 anos com outro homem e que, mesmo so- frendo a perda do companheiro, continua a acreditar no amor, CFA constrói um espaço para a problematização não apenas do mito do amor romântico, mas, principalmente, da fixação de papéis sociais e sexuais. Mais do que um jogo entre dois modelos distintos de homossexuais que se opõem, “Pela noite” expõe um jogo em que duas forças subjetivas precisam se colocar em guerra, mas os personagens não deixam de manifestar o desejo e a atração que sentem um pelo outro: Pérsio, com seu discurso antigay, mas permeado de expressões, gírias e trejeitos típicos de uma cena gay, com sua pulsão de morte, sua negatividade contra si mesmo, quer, acima de tudo, que o outro o vença e o liberte de sua fixação pelas máscaras, pelo simulacro sexual; Santiago, com seu discurso otimista, sua aposta na amizade e no amor, sua pulsão de vida, seu afastamento da cena e de modos de vida mais escrachadamente gays, seu passado de acertos e realizações, deseja ser correspondido pelo outro e recuperar a alegria concreta de estar vivo, entregando-se ao parceiro, sem máscaras, sem dissimulações. Não como no conto de fadas no qual se encontra o príncipe perfeito e se vive feliz para sempre, mas com respeito, afeto, amizade e desejo, partilhando um dia-a-dia com o outro, como no passado conseguiu viver com outro homem. A resposta franca formulada por Santiago à amargura e ironia com que Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Pérsio mede tudo ao redor é um exemplo de como seu papel na narrativa foi pensado para funcionar como uma fala desconcertante e opositiva:

E se tudo isso que você acha nojento for exatamente o que chamam de a- mor? Quando você chega no mais íntimo. No tão íntimo, mas tão íntimo que de repente a palavra nojo não tem mais sentido. Você também tem cheiros. As pessoas têm cheiros, é natural. Os animais cheiram uns aos outros. No rabo. O que é que você queria? Rendas brancas imaculadas? Será que amor não começa quando nojo, higiene ou qualquer outra dessas palavrinhas, des- culpe, você vai rir, qualquer uma dessas palavrinhas burguesas e cristãs não tiver mais nenhum sentido? Se tudo isso, se tocar no outro, se não só tolerar e aceitar a merda do outro, mas não dar importância a ela ou até gostar, por- que de repente você pode até gostar, sem que isso seja necessariamente uma perversão, se tudo isso for o que chamam de amor. Amor no sentido de inti- midade, de conhecimento muito, muito fundo. Da pobreza e também da no- breza do corpo que é igual, talvez tragicamente igual. O amor só acontece quando uma pessoa aceita que também é bicho. Se amor for a coragem de ser bicho. Se amor for a coragem da própria merda. E depois, um instante mais tarde, isso sequer ser coragem nenhuma, porque deixou de ter impor- tância. O que vale é ter conhecido o corpo de outra pessoa tão intimamente como você só conhece o seu próprio corpo. Porque então você se ama tam- bém. (1983, p.168).

Os fragmentos da história possível vivida por Santiago estão ali, feito marcas em seu corpo, em seus movimentos, suas palavras. Eles constituem uma espécie de arma que o impe- de de sucumbir à acidez do outro, e, como numa senha, distingue-no da massa amorfa que freqüenta as saunas, as boates, os bares. Essa diferença de Santiago fere o outro, que, para reaprender a apostar de novo numa possibilidade de relacionamento a dois, precisa desmontar o personagem construído minuciosamente como forma de sobreviver ao meio hostil. Por isso, após passarem a noite conversando e se estranhando, se estranhando e con- versando, Santiago e Pérsio optam por se desnudarem um para o outro, abrindo mão da ence- nação e dos nomes falsos, e se redescobrindo no “colo um do outro”. O colo simboliza o ar- quétipo canceriano do acolhimento, da Grande Mãe que ameniza os sofrimentos, que arrefece a rigidez da alma. Depois de passarem uma noite inteira à deriva, num itinerário confuso por pizzarias, bares, boates, numa verborragia que abarcava desde as primeiras impressões sobre o amor, passando por lembranças da cidade onde nasceram, até momentos de vazio existencia- lista e de questionamentos acerca da homossexualidade e do sexo, eles retornam ao aparta- mento de Pérsio, onde tudo havia começado. Mas agora não são mais dois conterrâneos que ignoram os pensamentos um do outro. Ousaram ultrapassar a fronteira de si mesmos, e, jun- tos, passaram a investir numa maneira mais saudável de lidar com a afetividade, com o dese- jo, com a emoção. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Triângulo das águas, com suas encenações que reelaboram as tantas realidades visíveis e invisíveis do amor, fica “sobrando” dentro do espaço veloz e fragmentado da cultura contemporânea, na qual as representações do amor tendem, por vezes, a ser mais líquidas, conforme atesta Bauman (2003), do que pontiagudas e, às vezes, até mesmo possíveis, como mostra CFA nesse livro. TA começou a ser escrito em São Paulo, mas foi finalizado no Rio de Janeiro, para onde o escritor havia se mudado temporariamente em 1983, por causa do estado depressivo de Ana C., que muito lhe preocupava, segundo depoimento do próprio escritor ao Caderno Cultura, do Jornal O Estado de S. Paulo, em 29/07/1995. De certa forma, é uma resposta do autor à morte de uma interlocutora que lhe era cara e que deixou uma lacuna difícil de ser preenchida no panorama da poesia brasileira contemporânea.

2.5 ANA C. E CAIO F.: AS MARCAS DE UMA INTIMIDADE41

Nas cartas de Caio F., editadas em 2002, o autor fala de encontros travados com Ana C. nesse período em que se mudou para o Rio a fim de ficar mais perto da poeta. Fala também de discussões acerca do amor: Ana C. estava em depressão, enquanto Caio F. queria arranjar um namorado. Uma das cartas é destinada à amiga Jacqueline Cantore e data de 20 de maio de 1983. Reproduzo abaixo apenas os trechos em que há menções diretas a um encontro entre o autor e a poeta42, uma vez que a carta é bastante longa:

41 Tanto Caio Fernando Abreu quanto Ana Cristina Cesar costumavam assinar apenas com o primeiro nome e o segundo abreviado. Ana porque desejava com essa assinatura questionar o estatuto da autoria, retomando a idéia da ostentação não de um nome célebre que precede ao texto, mas de uma máscara anônima, que se presentifica no corpo da escrita; Caio porque gostava de brincar com a idéia de uma marginalidade oriunda de suas vivências hippies, de experiências com drogas e em grupos alternativos dos anos 60/70. Em algumas cartas aos amigos ele acrescentava no final: “Caio F., primo de Cristiane F.”, numa alusão ao livro Eu, Cristiane F., 13 anos, drogada, prostituída..., de Kai Hermann e Horst Rieck (1981), que ganhou no mesmo ano uma versão cinematográfica dirigida por Ulrich Edel. 42 Os itálicos e cortes em negrito são da edição original. Os cortes feitos por mim estão em fonte normal. Excluí as notas de rodapé do editor das cartas de CFA que explicavam, entre outras coisas, quem é Jacqueline Cantore, que o poema Contagem regressiva de Ana Cesar foi lido pela poeta em público, que o livro citado pela poeta, O amor e o Ocidente, em conversa com CFA, seria uma organização de Georges Duby, editado em 1982, pela Brasiliense. Entretanto, tal informação acerca do livro parece se tratar de um equívoco, pois entre os diversos livros publicados por Georges Duby não há nenhum com tal título e tal edição. Existe um livro desse autor que trata do amor na Idade Média, intitulado: Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios (São Paulo: Companhia das Letras, 1989). Há, todavia, algumas edições de História do amor no Ocidente, de Denis de Rougemont, que foram publicadas como O amor e o Ocidente — por exemplo, em 1965, pela editora Lisboa (Portugal), e 1988, pela editora Guanabara (Brasil) —, essa, aliás, é a tradução ao pé da letra do título original em francês. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

[...] Batidas na porta (não tem campainha, claro). Débeis. Abro. Ana C. MAL. Põe mal nisso. Magra, consumida, trêmula, chorosa. Não sei contar direito. Nunca vi ninguém tão frágil. Com toda minha gripe, eu era um poço de saúde ao lado dela. Imagina uma alface (ela) ao lado de uma costela gorda (eu). E lúcida. Parou de ir trabalhar, vai pedir licença. [...] O mais estranho: o caso de amor continua, e ótimo. Ana C. está sofrendo de medo de amor. Não sabe bem. Medo de amor? Culpa do prazer? Não escre- veu mais nada depois do Contagem regressiva, não consegue dormir, as mãos tremem, são incapazes de datilografar ou segurar uma caneca. Está com Júpiter e Urano em oposição ao Sol/ Mercúrio/ Vênus radicais, justifica, perguntaram? Deixei-a numa sessão de bioenergética, ia a um acupuntor ho- je. Me convidou para irmos, com a namorada e maybe GM, para um sítio de- la em Petrópolis, hoje à noite ou amanhã. Parece a Isabelle Adjani em Nosfe- ratu, depois que começa a ser sugada. Linda, naturalmente, mas troppo mor- bo. [...] (2002, p. 46).

É possível notar não apenas a crise existencial na qual Ana C. imergia, mas, sobretudo, a diferença sutil com que cada um deles enxergava a si mesmo, seus referenciais e o mundo ao redor. Ambos conheciam e acreditavam na influência da posição dos astros, assim como em terapias alternativas, que estavam em acordo com os valores postos em circulação pela contracultura, tempos atrás. No entanto, diante do estado depressivo da poeta, Caio F. questiona com ironia esses aspectos, revelando que a justificativa de Ana C. em relação à força dos elementos astrais não seriam suficientes para explicar tamanha depressão. Ao grifar a razão pela qual ela estaria sofrendo — medo de amor —, ele questiona de forma incrédula: medo de amor? Culpa do prazer?, como a ressaltar sua própria insatisfação com essa causa. A continuação da carta mostra mais de um encontro no mesmo dia entre os dois e a permanência do estado depressivo de Ana C.:

Pausa. Telefone. Ana C. Maaaaaaaaaalllllllllllllllllllllllllllllll. A voz, um fio. Está a mesma. A bioenergética não adiantou. Se continuo a fim do sítio, nos encontraríamos às 17 h. na casa de GM. Continuo (com medo). Vou. Nos encontramos. Ana C. está excessivamente débil, excessivamente yin, auto- complacente na própria fragilidade. Continuo a ser pela terapia. Fala Grosso Veado. S’as que descobri que a fraqueza me deixa impaciente, dever ser Marte em I. [...] O céu tá cinza e, ainda assim, vejo o horizonte. Montanhas. O mundo é maior daqui do que da rua Camiranga. Vou ter que amamentar Ana C. Lua e Vênus em Câncer não dão uma capacidade fantástica de ali- mentar bebês? E dê-lhe Malzebier. [...] Quero porque quero um namorado. Lendo William Burroughs no Leia ontem descobri que, em árabe, não existe a palavra amor. Não existe nenhuma palavra para explicar uma relação entre pessoas que exclua tesão, a atração física. Donde lembrei Pérsio: amor é invenção ocidental. Ana C. cita um livro, O amor e o Ocidente, sobre isso. O amor puro, ocidental, não dá certo porque não existe. Amizade, companheirismo, sim. Agora, Amor? God. Quero porque quero um namorado sexuado, não um bandido, um eletricista, uma transinha — um corpo com um cérebro e emoções. Que trepe e ache ou Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

não coisas de, por exemplo, Robert Altman. Mas em primeiro lugar: que trepe. Existe?, perguntaram. É tão simples, responderam. Mas onde está?, insistiram. Não desista, responderam. Então tá, concordaram. (ABREU, 2002, p. 46-51)

Esse encontro é oportuno não apenas para se confrontar dois dos mais produtivos es- critores dos anos 70-80 no Brasil, mas, também, para percebermos como a forma de compre- ender e lidar com o amor mistura-se com a própria noção de individualidade, de desejo e de projeto estético, isto é, o modo específico com que cada um singularizou os afetos. Enquanto a vivência do amor em Ana C. implica inquietação, como se a prática de tal sentimento lhe trouxesse algum perigo ou ameaça, em Caio F. a noção de amor está relacionada com uma demanda por sexo e companhia, sendo a sua busca orientada pela consciência de que no coti- diano o mito do amor-paixão — que ele chama de amor puro — deve ser substituído por “a- mizade, companheirismo”, mas, principalmente, pela realização sexual: “Quero porque quero um namorado sexuado”. Embora o escritor invoque na carta um personagem seu (Pérsio) para contestar a existência do mito do amor ocidental, não fica totalmente claro se dentro de sua contestação o que é rejeitado é a idéia do amor sem a realização carnal ou a “paixão de amor”, de que nos fala Rougemont. Nas cartas, principalmente quando escreve para Jacqueline Can- tore, ele inventa um coro com quem dialoga, atribuindo a essas “vozes” tanto algumas falas irônicas, numa espécie de autocrítica, quanto a complementação de informações, comentários, expressões e gírias típicas dos guetos homossexuais, bem como o realce de pensamentos que vão sendo formulados ao longo da escrita, numa narrativa polifônica — a censura que faz, por exemplo, ao comportamento de Ana C. é explicitada através desse diálogo com o coro. O coro remete à Grécia Antiga, quando um grupo de jovens, ensinados a cantar e a dançar, completava as apresentações teatrais. Esse coro podia comentar as ações no palco desenvolvidas, emitir compaixão, torcer (em forma de preces), lamentar ou censurar o com- portamento e a sorte dos personagens (BRANDÃO, 1995). Com o tempo, sua presença foi sendo enfraquecida no teatro, muitas vezes se resumindo às montagens clássicas. Lembremos aqui que existem muitos elementos biográficos em Caio F. que apontam para um cultivo do teatro, não apenas como freqüentador, mas, também como ator e dramaturgo — autor de vá- rias peças, reunidas após a sua morte no livro Teatro completo (1997), cujo prefácio, de Luiz Arthur Nunes, resume essa vivência teatral:

Caio sempre adorou teatro, via tudo, conhecia todo mundo da classe teatral. No entanto, foi mais do que espectador aficcionado: tornou-se um homem de teatro. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Não de imediato, porém. Nos fins da década de 60 era apenas o amigo querido da nova geração de atores e diretores de Porto Alegre [...] estava sempre junto, nas salas de ensaio, nas salas de espetáculo, nas mesas de bar onde o assunto era teatro, teatro, teatro. Naquela época, cursávamos o CAD, o Curso de Arte Dramática da Faculdade de Filosofia da UFRGS. [...] Ele excursionou vários meses pelo atuando na montagem do Serafim-fim-fim, de Carlos Meceni [...] embora bissexto, Caio foi autor, conheceu o palco por dentro. E bom ator. A última vez que comprovei esse fato foi quando da leitura que ele fez de sua peça recém-concluída: O homem e a Mancha, na casa do ator Carlos Moreno, para quem a escrevera de encomenda. (1997, p.8-9).

O coro nas cartas é uma incorporação cotidiana desse gosto pelo teatro, pelo drama, pela encenação. Esse recurso cênico constrói mais do que uma dualidade entre ego e alter-ego; implica descentramento de vozes — e, portanto, de poder —, além de um desejo pela perfor- mance, diabolizando, enfatizando, retomando, comentando, inserindo rubricas no texto. Esse coro é platéia que interage, vozes que analisam, demônios que escarnecem, receptores que pe- dem explicação. Suas nomeações, seus modos de narrar a história são, assim, problematizados pelo coro, desvelando uma crise de narrador e de narrativa. Não é à toa que em “Dodecaedro” ouvimos 12 vozes e mais o fragmento de uma delas a cercar, engolir e vomitar pequenos acon- tecimentos. Tanto nas cartas quanto em Triângulo das águas e ainda em algumas crônicas de Pequenas epifanias (1997), Caio F. se aproxima muito da escrita de Ana C. e de Hilda Hilst, ao criar essas vozes que interferem na maneira como se conta, explicitando as falhas, mostrando os nós, politizando o que é dito/contado, apostando num feminino que está relacionado com o im- perativo, no texto, do tom íntimo de que nos fala Ana C., tão bem e precisa, no ensaio ainda hoje atualíssimo, intitulado “Riocorrente, depois de Eva e Adão...”, publicado na Folha de S. Paulo, em 12 de setembro de 1982, e inserido em Escritos do Rio (1993). É interessante notar que tanto Caio F. quanto Ana C. estão exercendo, cada qual à sua maneira, um certo controle estético da idéia e da ação do amor dentro do espaço da individualidade. Eles se mostram em processo de construção, mas atentam, tanto para os conceitos quanto para as possíveis práticas amorosas, o que pode ser comprovado pelo diálogo que tiveram acerca da construção do mito do amor no Ocidente. Esse autoconhecer-se e esse conhecer o mundo ao redor, através não apenas da vivência amorosa, mas, também, a partir de um questionamento do estatuto do amor e de seu efeito de verdade, bem como de sua possibilidade ou não de existência, lembra a afirmação de André Lázaro, em O amor: do mito ao mercado (1996), que enfatiza justamente essa capacidade que a experiência amorosa tem de realizar um movimento de dentro para fora e, depois, de fora para dentro, fazendo o sujeito pensar em si mesmo, na sua relação consigo e com os outros, na ameaça da morte, no Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

abandono, na separação e nas “forças estranhamente similares que parecem atuar na aparente desordem do universo” (1996, p.11). Nesse sentido, o espaço da cena amorosa se constrói não apenas na objetivação coti- diana do sentimento, pois essa dança, de que nos fala Octávio Paz, em A dupla chama: amor e erotismo (1994), não traz uma perspectiva rígida, isto é, não é possível fixar seus elementos, seus jogos, suas regras, uma vez que os movimentos do amor e sua lubricidade, seus valores e conceitos podem mudar conforme os traços psicofisiológicos do sujeito, seus estados de hu- mor, seu imaginário criativo, e a influência da geografia, do clima, da herança histórica e cul- tural daquela sociedade em que ele vive. Assim, ainda que a opção de Ana C. seja a de buscar na lucidez o esforço para organizar essa “dupla chama” em sua vida, a sua reação emocional ao amor (ou ao medo dele, como questiona Caio F.) ultrapassa as forças de autocontrole, mar- cando o corpo (“magra, consumida, trêmula, chorosa”) com elementos que denunciam uma fragilidade e uma desorganização diante da intensidade do amor. Pesquisar e refletir sobre o tema do amor é também aprofundar o interesse por elementos histórico-sócio-culturais que foram capazes de interferir, modificar ou mesmo de originar o mito do amor romântico. Para todos os estudiosos do assunto, o marco para a compreensão desse mito está no século XI e XII, naquilo que se chama “extrato da lírica provençal”, e, depois, no amor cortês, que é responsável pela visão conflituosa do amor: algo impossível de ser realizado em vida e, ao mesmo tempo, um encantamento do qual não se pode fugir, pois ultrapassa a vontade e a lucidez dos apaixonados. Esse ponto, que volta em todos os autores, desde Rougemont a Le Goff (1985), passando por Lázaro (1996), Matos (2000) e Priori (2005), é uma tentativa de retornar à baixa Idade Média, a fim de fornecer um marco identificador possível para a cultura e conceituação do amor no mundo ocidental, e isso se deve ao fato de nenhum desses autores ignorarem a importância da descoberta do amor no Ocidente, que, longe de ser uma experiência individual restrita à esfera privada, é, antes, uma prática que impele o sujeito a repensar seu lugar no mundo. Do coletivo ao individual, do individual ao coletivo. Ad infinutum. Conseqüentemente, o resultado dessa reflexão, de um modo ou de outro, quase sempre implica sociabilização da experiência. E com Ana C. e Caio F. não foi diferente. Em muitas produções poéticas e teóricas, assim em muitas cartas, a poeta, demonstra uma intensa atividade mental e prática em torno de questões importantes para a criação artística, como a necessidade de repensar as relações entre literatura e vida, a questão da tradição e o esforço por uma dicção própria, o lugar do feminino no texto, a incorporação e reciclagem de elementos considerados não-literários (como cartas, diários, letras de música, Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

trechos de filmes, cartões-postais etc.), entre outros assuntos, colocados lado a lado com o fluxo do amor:

imagino como seria te amar teria o gosto estranho das palavras que brincamos e a seriedade de quando esquecemos quais palavras

imagino como seria te amar: desisto da idéia numa verbal volúpia e recomeço a escrever poemas. (ANA C. 1998, p. 90)

Fazer o amor fluir dentro da imaginação é fazê-lo também fluir na montagem do tex- to, interpondo comentários filosóficos — “Mônadas, entende? Separadas umas das outras[...] As casas, as pessoas cada uma delas. Os animais, as plantas, tudo. Cada um, uma mônada. Fechada” (CAIO F., 1982, p.82) — dentro de seqüências cotidianas, quebradas pelo desliza- mento intimista — “O chá abria, mas eu queria uma quiromancia, um olho clínico mundano, viajado, uma resposta aguda, uma pancada no miolo” (ANA C., 1998, p.82) —, por informa- ções sobre o contexto — “onde sento para ler Rosemberg e penso na década de 80 que não é mais 70, quando andávamos mais aflitos mas também mais articulados, identidade ou impres- são de identidade em projetos de grupo” (ANA C., 1998, p. 129) — ou endereços-referenciais — “De repente um policial me segurou pelo capuz e perguntou por que eu estava correndo. Respondi agressivo: Just because I like it!” (CAIO F., 1995, p.121)43 —, é uma constante em ambos os autores. Porém, o mais importante em toda essa elaboração estética é a multiformi- dade que o desenho do amor vai assumindo, sem jamais estancar numa concepção definitiva, uma vez que se utilizam e se reutilizam signos provisórios para falar dos afetos. Dessa forma, Caio F. e Ana C. propõem uma política amorosa, no plano individual, na intimidade desse sujeito que é vários e, às vezes, até a negação do preenchimento, isto é, a não-voz, o espaço branco da página, como tão bem registrou a poeta:

Tenho uma folha branca e limpa à minha espera: mudo convite

43 Just because I like it! é citação dos versos dos Rolling Stones: “That’s only rock in roll/ but I like it!” Inclusive, na seqüência dessa história-sonho, inserida nos fragmentos do diário do autor escrito em Londres, quando ele esteve exilado em 1974, volta-se a mencionar Mick Jagger, cantando Angie, uma música ícone da contracultura, que além de trazer imagens de uma ambigüidade sexual, é performatizada pelo gestual, na época, ambíguo de Jagger. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

tenho uma cama branca e limpa à minha espera: mudo convite

tenho uma vida branca e limpa à minha espera: (ANA C., 1998, p. 48).

Em “A máquina da escrita de Ana Cristina Cesar: afirmação da fissura nas bordas da produção de sentido44”, Fátima Maria de Oliveira defende a idéia de que o suicídio de Ana C. pode ser lido como uma ação radical, porém afirmativa do fluxo entre vida e literatura; isso se compreendermos “como quer Deleuze, que o escritor não é doente, mas antes médico de si próprio e do mundo, podemos aceitar a obra de Ana como um empreendimento de saúde” (p.5). Para Oliveira, a escolha da poeta faz parte do “devir do escritor: Ana sai da vida, mas deixa o texto — divisão do corpo em heterônimos — possibilidade de afirmação da vida” (p.5). Ela cita Ítalo Moriconi, com Ana Cristina Cesar: o sangue de uma poeta (1996), para ressaltar a estreita relação entre a vida, a morte e a escrita de Ana C., e provar que, para a poe- ta, viver e escrever constituíam um processo de mão única, um aperfeiçoava o outro, o que já revela a vitalidade de sua escrita, à medida que, como vemos no poema acima, o ato de ima- ginar o amor é transformado rapidamente numa “volúpia verbal”, e essa materialização em palavra do jogo amoroso funciona como a última demão do processo iniciado com a imagina- ção criativa. De fato, essa intensificação da vida na escrita e da escrita na vida é testemunhada por Ítalo Moriconi. Para ele e para outras pessoas, que com ela conviveram nos últimos anos, a impressão mais forte guardada de Ana C. foi, justamente, seu “sentido de urgência, uma ofegância de quem estava querendo sugar tudo. De quem não tinha tempo a perder” (1996, p.128). Nesse mesmo livro, Moriconi analisa um bilhete e quatro cartas de Ana C. para Caio F., datados de 82/83, mostrando o quanto a depressão da poeta podia dar lugar a uma “jovialidade”, percebida na alegria com que elaborava, lúcida, a expansão de sua carreira literária em São Paulo. Tal atmosfera só desapareceu na última carta, designada por Moriconi de “carta do vendaval”, em que Ana C., às vésperas de lançar A teus pés, relatava a Caio F. os conflitos amorosos pelos quais estava passando, em meio à expectativa de lançamento nacional do seu livro. Para Moriconi, no entanto, o impasse amoroso — a poeta estava vivendo uma relação homossexual — é menos importante do que “a estrutura de impasse na

44 Disponível em: . Acesso em: 20 ago.2007. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

qual Ana se enredara” (1996, p.141), pois o que chama a atenção dele no relato da crise é menos o caso de amor e mais a exposição de um certo estar “vivendo no espaço da premonição, da sondagem do Destino”, perceptível na “mania por astrologias e horóscopos”, esboçada na carta pela poeta. Embora cultivasse o interesse pela astrologia tanto quanto Ana C., Caio F. guardava, na sua prática cotidiana, algum distanciamento dessa orientação, conforme mostram seus co- mentários irônicos, no trecho da carta acima, sobre o fato de a poeta justificar a crise depres- siva a partir da interferência, no seu mapa astral, da oposição entre planetas. Isso não impede, todavia, que Caio F. use todos os elementos astrais e os 12 arquétipos zodiacais para compor o seu Triângulo das águas, assim como não impede que, na mesma carta, ele declare, entre irônico e preocupado, sua inclinação para “amamentar” Ana C., devido à posição ocupada por Vênus e pela Lua que se encontravam no signo de Câncer, em seu mapa astral. Não quero entrar aqui na questão de ser ou não o conflito amoroso vivido por Ana C. a razão de seu suicídio — algo que estaria melhor abordado numa biografia sobre a poeta —, tampouco me interessa valorizar o seu ato de tirar a própria vida como “uma afirmação radical de seu devir”, como defende Oliveira, a partir da orientação do Deleuze de Mil Platôs e da Lógica do sentido. Antes disso, interessa-me tecer algumas considerações acerca da diferença com que Ana C. e Caio F. incorporam a experiência amorosa em seus textos, partindo do pressuposto de que o encontro relatado por Caio F. em carta é sugestivo para tal análise. O que pode ser lido nessa carta é a maneira conflituosa como o fluxo do amor era vi- vido por Ana C., e, também, como a expectativa de Caio F. por um namorado estava próxima da demanda amorosa explicitada pelos personagens de Triângulo das águas. Pode-se inferir que, enquanto para a poeta a experiência amorosa implicava não na posse do outro, mas na posse de si mesma e na transformação disso em sintaxe — fluxo aqui é sinônimo de sucessão, de hibridização de signos, cortes e retomadas de ritmos, pausas, vozes —, para Caio F. a ne- cessidade de um companheiro passava obrigatoriamente pela garantia do prazer sexual que, se aliado a uma troca cultural, representaria o ápice da parceria desejada. O escritor separava, cuidadosamente, a sua expectativa de um amor objetivado na prática, isto é, num cotidiano compartilhado, daquilo que constitui, em seus textos, a cegueira do mito do amor romântico, buscado por alguns de seus personagens, cujo comportamento acrítico é revertido pela ironia do narrador. Já Ana C., no percurso de apoderar-se de um Eros-excesso, um Eros-agudizante, saqueava tudo aquilo que poderia ser digno de uma invenção sintática, de uma estetização, portando-se, assim, como uma investigadora da criação da emoção na escrita. Não quero dizer Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

com isso que ela manipulava escombros — como Adorno acusa o vizinho que assobiava Brahms no metrô (1974) — ou afetos em ruínas, mas que sua concepção de escrita passa pela idéia de uma experiência político-analítica dos afetos. Os símbolos em Ana C. se hibridizam e, cada vez mais, a poeta quer se comunicar, tocar o outro, não pela obviedade da mensagem, dos enunciados prontos, dirigidos, mas por essa contemporaneidade dos signos fluidos, que escorrem de uma possibilidade de sentido para o outro, sem se prestar a leituras detetivescas ou prontas, mas solícitos a correntes, à superabundância:

Discurso fluente como ato de amor incompatível com a tirania do segredo como visitar o túmulo da pessoa amada a literatura como clé, forma cifrada de falar da paixão que não pode ser nomeada (como uma carta fluente e “objetiva”). a chave, a origem da literatura o “inconfessável” toma forma, deseja tomar forma, vira forma mas acontece que este é também o meu sintoma, “não conseguir falar” = não ter posição marcada, idéias, opiniões, fala desvairada. Só de não-ditos ou de delicadezas se faz minha conversa, e para não ficar louca e inteiramente solta neste pântano, marco para mim o limite da paixão, e me tensiono na beira: tenho de meu (discurso) este resíduo. Não tenho idéias, só o contorno de uma sintaxe (= ritmo). (ANA C., 1998, p.128).

Uma forma de percebermos a diferença entre isso que designo de fluxo do amor em Ana C. e em Caio F. é refletindo sobre a maneira como ambos encaram, por exemplo, o amor- acabado, isto é, o fim de um vínculo amoroso. Para o escritor, esse término é visto como uma morte dos sujeitos que precisam mergulhar nessa dor do vínculo partido, do encontro desfeito, sepultando nesse gesto todos os escombros do relacionamento — mágoas, venenos não digeridos, impasses, perdas, diluições etc. —, como numa espécie de purgação. Só então, o sujeito está pronto para a reinvenção, a retomada do contínuo do amor em outros corpos, com outros valores, outras possibilidades de entrega e trocas. É o que se pode ver em “Caixinha de música” (MM), quando o personagem descobre que só pode se libertar dos escombros daquele vínculo matando a parceira que extraiu dele todas as “flores roxas e amarelas”, vampirizando sua energia sexual, sua criatividade, seus sonhos, ele um salgueiro com sede, ela, a primavera que explora, que manipula, que suga. Ou então nos contos “Os sapatinhos vermelhos” e “Sem Ana, blues” (ODNP), em que o fim do relacionamento configura uma reconstrução do sujeito, incluindo em seu horizonte uma abertura para a experimentação de outras sexualidades. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Terminar é cortar o deflúvio e ir buscá-lo em outras instâncias, reelaborando-se enquanto sujeito e permitindo que esse efeito de verdade, proporcionado pelo mito do amor, reapareça. Para Ana C., no entanto, a corrente não precisa ser cortada, pois o próprio término é uma questão de linguagem, e como ocorre em tudo aquilo em que a poeta manipula, pode ser estetizado, aberto à dúvida, e, assim, permanecer líquido. Por isso, um vínculo acabado serve ao desenho de um quadro, uma espécie de esquete: “ela quis/ queria me matar/ quererá ainda, querida?” (1998, p. 61). O jogo com os tempos verbais — “quis, queria, quererá” — e o parti- cípio passado que também adjetiva — “querida” — flagra o desejo assassino de uma(um) parceira(o) pela(o) outra(o), e, ao mesmo tempo, não permite que ele permaneça imóvel na memória, pois a ironia da dúvida faz esse desejo assassino vibrar no presente: “quererá ainda, querida?” A fluidez do querer perpassa os tempos, pois se a resposta à pergunta irônica for “sim”, o querer já não é o mesmo, afinal, matar hoje aquela(e) a quem se desejou matar no ontem não é igual a ter matado naquele instante inaugural do desejo; algo com certeza alterou essa vontade, pois houve uma maturação do sentimento/querer, porque tudo que é preservado precisa de ações, transformações, que sobrevivam à passagem do tempo. Por outro lado, se a resposta for “não”, se não se quer mais matar a(o) outra(o) é, também, porque a corrente fluiu, metamorfoseou-se, virou outra coisa. Num trecho de um dos seus poemas mais belos — “Contagem regressiva”, de Inéditos e dispersos —, a poeta retoma essa fluidez do amor, ela- borando uma reflexão bastante contundente sobre a presença de um vínculo no outro, enten- dendo os afetos como um labirinto onde se perdem e se encontram elementos (rostos, marcas, identidades) de um amor terminado no outro que o sobrepôs:

[...] Acreditei que se amasse de novo esqueceria outros pelo menos três ou quatro rostos que amei Num delírio de arquivística organizei a memória em alfabetos como quem conta carneiros e amansa no entanto flanco aberto não esqueço e amo em ti os outros rostos (ANA C., 1998, p.163)

O amor não se enquadra numa cartografia estanque, numa memória organizada, de espectros. Ele é caos de referências, palimpsesto de rostos e sensações, “flanco aberto”. As histórias que se podem elaborar com seu efeito de verdade não são horizontais nem verticais, mas sensoriais: numa imagem de hoje, encontram-se visões de ontem, pedaços de pessoas que foram caras e que, por isso, não servem a coleções ou arquivamentos, mas à renovação do prazer de se ver o outro: “e amo em ti os outros rostos”. Assim, penso que a imagem adequada Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

para o amor em Caio F. seria a daquela parte da cachoeira interceptada por pedras, cortada por entrâncias, contornos por onde fluxos da água precisam inventar resistências para seguir, chegando, às vezes, a formar piscinas. Ou seja, há cortes e retomadas do fluxo. Já a imagem de Ana C. se assemelha mais à queda d’água propriamente dita, à corredeira brusca e contínua. Não quero dizer com isso que a diferença no modo de vivenciar e compreender o amor desses dois autores tenha impedido uma amizade sincera e uma tentativa de interlocução entre eles, mas desejo ressaltar que a declaração de Ana C. acerca de seu “medo de amor”, seguido de um “não saber bem”, pode ser compreendida dentro dessa idéia compulsiva de escrita, na qual os afetos são fluxos intermináveis. Dito de outro modo, ela estaria reescreven- do, ao vivo e diante desse caro interlocutor, os contornos e resíduos da experiência amorosa que, expostos na própria superfície de seu corpo, de sua pele, mostravam a sua “tensão na borda: Limiar da paixão pelas letras nas quais se processa toda a lógica do sentido de sua pro- dução literária” (OLIVEIRA, p.14). Dizer que pode estar sofrendo de medo de amor e, em seguida, voltar, como quem rasura o já-dito, e afirmar um “não saber bem” mostra não somente o recuo de uma declara- ção, mas, sobretudo, um desejo de dispersar a fixidez do que se declarou. O “não saber bem” é retomada do jogo, é itinerário aberto, é deixar o signo continuar fluindo, não estancar num único viés. A escolha de Ana C. é, então, pelo percurso, e não pela mera confissão. Nesse percurso, ela opta pelo jogo, pelas poses, pela rasura, abrindo mão de uma identidade fixa, de uma referencialidade segura, desfazendo a possibilidade de enquadramento da poeta nascida em 1952, tradutora, bolsista e pesquisadora com formação na Inglaterra, ensaísta, carioca, mulher, urbana, brasileira, bissexual, e encenando uma maneira efêmera de lidar com a dor ou o medo do amor no “agora”. Sua opção pelo impreciso se faz no instante em que o diálogo com Caio F. apontava para uma perspectiva sólida. Optar pelo vago “não sei bem” é permitir que essa Ana C. “excessivamente débil, excessivamente yin, autocomplacente na própria fra- gilidade” possa também ser lúcida, e, assim, outra, em visita ao amigo escritor. Essa escolha pelo não aprisionamento traz uma mobilidade significativa a sua poesia, e funciona como uma espécie de força-síntese da troca consciente do clássico “quem eu sou?” pelo “o que eu faço com o que sou?” e “onde habito quando eu não sou?”:

Poesia

jardins inabitados pensamentos pretensas palavras em pedaços jardins ausenta-se Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

a lua figura de uma falta contemplada jardins extremos dessa ausência de jardins anteriores que recuam ausência freqüentada sem mistério céu que recua sem pergunta (ANA C., 1998, p.97)

Sua dicção poética liga-se ao que Flora Süssekind, em Até segunda ordem não me risque nada, chamou de “constante exílio voluntário em métodos alheios [...] e tantas reescri- turas de um mesmo, e às vezes mínimo, texto seu” (1995, p.9). Nesses “jardins inabitados” onde a linguagem intenta riscar um conteúdo (“pretensas palavras em/ pedaços”), o que mais chama a atenção é o deslizamento de um espaço novamente esvaziado (“ausência freqüentada sem mistério”) e o quanto tal espaço, ilimitado, indefinido, retorna desabitado de palavra (“céu que recua/ sem pergunta”). Esse debate entre preenchimento e esvaziamento da página, da pauta, da poesia e do horizonte faz parte do projeto da poeta, e, devido à força dessa conversação incessante, sua escrita foi tomada como um lugar de interlocução por Caio F. No posfácio escrito pelo autor para o lançamento de A teus pés, pela editora Brasiliense, em 1982, percebe-se seu fascínio pela incorporação que Ana C. faz de elementos não-literários, considerados gêneros menores (como cartas, confissões, diários, postais, fotografias, trechos de canções populares etc), con- forme mencionado anteriormente. Esse ritmo próximo da fala, que preenche e, ao mesmo tempo, assume os vazios de uma ausência de “conforto”, da não “permanência de um endere- ço literário no todo reconhecível”, conforme analisa Maurício Vasconcelos45, é o responsável pelo tom dramático e coloquial da poesia de Ana C., e resulta numa teatralização da escrita em prol de uma sugestão de intimidade com o outro, além de um convívio constante tanto com a idéia da morte quanto da extensão da discursividade desse “eu-você” problematizados pelo seu texto: “Tenho medo de perder este silêncio./ Vamos sair? Vamos andar no jardim? Por que você me trouxe aqui para dentro deste quarto?/ Quando você morrer os caderninhos vão todos para a vitrine da exposição póstuma./ Relíquias” (ANA C., 1998, p.125). Para Caio F., também a vibração desse discurso íntimo e dramático poderia funcionar como uma maneira de dispersar, não diluindo, mas descentrando, a densidade e o irremediável de certos temas por ele abordados. Daí a busca consciente e explícita, em seus

45 Maurício VASCONCELOS. Poesia e tempo: fragmentos de uma crítica cultural. In: Maria Antonieta PEREIRA, Eliana Lourenço REIS. Literatura e estudos culturais. Belo Horizonte: FALE/UFMG, p.229-239. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

textos, de um diálogo com Ana C., que pode ocorrer através de citações diretas — Os dragões não conhecem o paraíso termina com versos de Ana C. retirados do livro póstumo Inéditos e dispersos: “Chamem os bombeiros, gritou Zelda. / Alegria! Algoz inesperado” —, de retomadas e mesmo de respostas às imagens propostas pela poeta. Segundo depoimento de Caio F., sua escrita é produto de um entrelaçamento entre suas experiências íntimas e o domínio de uma linguagem voluntariamente poética, ficcional, que almeja, cada vez mais, “a fusão de Eros e Thanatos”. Ela deseja “intervir na epidemia da vida”, não somente para retratá-la, mas, sobretudo, “para descer e subir nas camadas profundas da alma humana”46. Assim, a sua linhagem liga-se à escrita vertiginosa de Clarice Lispector, ao experimentalismo de Hilda Hilst, ao desejo de incorporação do prazer do corpo-no-texto, texto- no-corpo de Roland Barthes e Ana C., e à possibilidade paradoxal de condensar em narrativas curtas (como o conto) o exato e o aleatório, como fazia Julio Cortázar. A sua idéia de literatura é, como definiu Luiz Costa Lima, “um encontro com a verdade à medida que (se) questiona as práticas da verdade” (1991, p.51). Por isso, muitas vezes, o jogo ficcional de organização e des- vio das experiências do amor e de sua busca instaura a persona ou o sujeito textual, fazendo sua escrita ser mais uma “biografia das emoções47” do que uma tradução literal do vivido. Em Culturas eXtremas: mutações juvenis nos corpos das metrópoles (2005), Massi- mo Canevacci aborda as culturas juvenis contemporâneas, a partir de uma constatação de que elas são fluidas, não passíveis de rótulos, e se colocam de forma espontânea “pelos poros da metrópole”. Orientado por uma paixão pelos objetos e seguindo a antifilosofia deleuzeana, ele declara estar na “contramão” do método e do discurso científico, se entendermos por científi- co uma orientação monológica. Ao recortar seus objetos — rave, piercing, techno, tatuagem, bodyscape, cut-up, ciberespaço, fanzine, videoarte —, ele afirma que não há mais como falar em contracultura depois de 80, nem em subculturas, nem em “política conjugada dos movi- mentos depois de 77”. Esse não-poder-falar implica não usar esses conceitos como fórmulas de explicar o que ocorre hoje nas metrópoles. Todavia, sua visão de “culturas líquidas”, in- termináveis, pode ser aplicada não apenas a partir dos anos 90, mas já nesse momento em que flagramos a conversa de Caio F. e Ana C., pois o posicionamento deles e as produções textu- ais aí mesmo já desconfiguram a idéia de uma história calcada em distanciamento e neutrali- dade, de uma tradição cristalizada, acabada, de um discurso unívoco.

46 CAIO F., em entrevista a Marcelo Secron Bessa, 1995, p.8. 47 Expressão usada por Lygia Fagundes Telles, em prefácio à edição do livro O ovo apunhalado (1975), para explicar a capacidade sutil de Caio F. de combinar ficção e realidade em seu texto. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Victor Adler Pereira (1999) nos lembra que as obras de Caio F., de maneira geral, estão sempre retomando uma “pergunta insistente sobre as possibilidades de felicidades, quando os sonhos comunitários entram em crise no fim dos anos 70”. Para o ensaísta, há no discurso de Caio F. um reconhecimento de que “a posição marginal” é o que resta àqueles “que se consideravam a vanguarda da construção de um novo mundo” (p.1). Entretanto, essa margem que resta não é um lugar fixo, resultante de um castigo pela busca de modos alternativos à estrutura burguesa-capitalista, mas, antes, um espaço conquistado, fruto de sucessivos investimentos na deriva, na fluidez. Tais investimentos insinuam prazer, embora não escamoteiem a dor. Se pensarmos nessa imagem de objetos frutos de uma vertente cultural que escorre pe- los desvãos das cidades, criando microhistórias que se comunicam com um presente líquido, dentro do qual as referências de toda uma tradição não funcionam como amarras, mas como libertação, os textos de Caio F. e de Ana C. podem servir à visualização de uma abertura ao jogo, a um desmantelamento produtivo das prisões de uma tradição: “Posso ouvir a minha voz feminina: estou cansada de ser homem” (1998, p.102), avisa Ana C., como quem ameaça antes de romper os grilhões. O debate com a tradição precisa ser corporificado, misturado no suor e no gozo do corpo que responde à sua problematização: “com uma das mãos ele ligava o rádio libertando uma onda desgrenhada de violinos, Wagner, supôs, que tinha sua cultura, sua leitura, valquírias, nazismos, dachaus, judeus, e com a outra acariciava o pau começando a vibrar esti- mulado talvez pelos violinos, judeus, davis” (CAIO F., 1982, p.148). Diante desse fluxo contí- nuo dos afetos, da relação com a escrita, da liberdade pessoal, das formas possíveis de singula- rização amorosa e sexual, a percepção de que não há mais contra nem subculturas já estava, anos antes, na corporeidade do texto de Caio F. e Ana C., através do gesto/escrita que positiva a vontade de fazer do mito do amor histórias de políticas intermináveis.

Iniciei este capítulo propondo uma análise do mito do amor em CFA, num recorte que foi de o Inventário do irremediável até o Triângulo das águas, livros anteriores à emergência da AIDS na obra do autor. Entretanto, não me restringi apenas a eles, pois busquei, antes, combinar o meu próprio prazer de leitora com a dinâmica de um discurso amoroso que flui através de uma compreensão do labirinto literário como um espaço possível para uma política dos afetos, construída a partir da problematização de microhistórias artisticamente elaboradas para deixar a multiformidade do mito do amor falar. Dentro dessa orientação da fala como uma superfície que pode permitir deslizamentos, rediscutindo a distância entre quem escreve e como se escreve histórias afetivas, tentei redimensionar, nos anos 80, o debate sobre escrita, amor, cultura, teoria e Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

vida, não apenas nas representações de CFA, mas, em menor grau, também nas de Ana Cristina Cesar, escolhidas para dialogar com o autor, nesses últimos passos desta seção. Creio ter sido possível acompanhar a fluidez do discurso amoroso em CFA que, em alguns momentos, assemelha-se às metáforas líquidas da luz ou da cintilância do desejo pre- sentes nas epígrafes de Nietzsche e de Hilda Hilst, que serviram de mote para este capítulo. De todo modo, vejo no fluxo de amor em CFA a união desse Deus que dança com sua huma- na ladradura, possibilitada pela fosforescência do desejo. Trata-se de um mito, lembremos, que ultrapassa uma mera obsessão temática autoral e engendra uma proposta de verdade não- factual para o indivíduo. Essa verdade, simbolicamente obtida a partir de um investimento estético que transforma a experiência amorosa em fluxo plural e cambiante, proporciona arti- culações com a cultura, através da hibridização interminável dos desejos e dos afetos. Assim, CFA entrelaça discursos ora contrários, ora favoráveis ao mito do amor. Em qualquer das hipóteses, sempre busca um desenho multiforme e, por isso mesmo, em conso- nância com a perspectiva contemporânea. Tal desenho configura um gesto afirmativo da sin- gularidade, isto é, um investimento na esfera social e subjetiva da cultura, na qual é possível estruturar, ainda que provisoriamente, relações íntimas e vivências cotidianas através de uma elaboração poética do mundo, dos amores, das sensações.

CAPÍTULO 3 Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

RENATO RUSSO: O LOBISOMEM JUVENIL

I've seen love go by my door It's never been this close before Never been so easy or so slow Been shooting in the dark too long When somethin's not right it's wrong Yer gonna make me lonesome when you go

Situations have ended sad Relationships have all been bad Mine've been like Verlaine's and Rimbaud But there's no way I can compare All those scenes to this affair Yer gonna make me lonesome when you go. […]

I've seen love go by my door It's never been this close before, Bob Dylan

Quem quer dizer o que sente Não sabe o que há de dizer. Fala: parece que mente Cala: parece esquecer [...] Mas se isto puder contar-lhe O que não lhe ouso contar, Já não terei que falar-lhe Porque lhe estou a falar...

O amor quando se revela, Fernando Pessoa Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

enato Russo48 é o pseudônimo autoral de Renato Manfredini Júnior (1960-1996), um R dos músicos, compositores, vocalistas e letristas que mais se destacaram no cenário da música e da cultura rock nas décadas de 80 e 90, do século passado, no Brasil. Sua produção artística liga-se às mudanças ocorridas nas artes e nos paradigmas da cena cultural contemporânea, e à reformulação dos novos papéis ou mediações que ela adquire. Tais mudanças afetaram a definição de cultura, que cada vez mais foi perdendo a possibilidade de ser conceituada a partir de fatores polarizantes e hierárquicos, com os quais um dia foi tratada. As transformações da arte contemporânea — e aqui “arte” está sendo usada para a- barcar todas as manifestações artísticas produzidas pelas culturas conhecidas — ocorreram a partir de uma desintegração desse projeto unificador. Um processo intenso de dissolução das fronteiras entre gêneros, camadas sociais, territórios, economias e culturas obrigou o mundo contemporâneo a se adequar às realidades dinâmicas da transnacionalização das economias e da globalização dos mercados, conforme explica Frederic Jameson, em Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio (1996), que analisa essas alterações relacionando-as com a emergência do que ele denomina de nova fase do capitalismo avançado, multinacional e de consumo. Dentro desse cenário outro, os projetos modernos de nacionalidade e identidade, nos quais a arte e a literatura tinham um claro papel pedagógico e formativo, sofrem mudan- ças irreversíveis. A circulação de fragmentos de narrativas — antes ligadas a uma absorção que implicava uma leitura hermenêutica e verticalizadora de seu conteúdo e forma — ocorre muitas vezes a partir de rasuras operadas por novos olhares que deslocam o pseudo-sujeito- unificado do centro das histórias, e a essas rasuras juntam-se letras de músicas, melodias, i- magens, fotogramas, histórias em quadrinhos, slogans publicitários, chips, performances, uma gama, enfim, de objetos heterogêneos, que circulam caosmoticamente (GUATTARI, 1992)49 e, embora não sejam produzidos nem consumidos de forma única para todos os segmentos da sociedade civil mundial, paira sobre eles essa atmosfera de equivalência. A música de RR desponta ainda quando o cenário está em ebulição, em 1985; ela se insere no meio dessas transformações sócio-político-econômica-culturais que empurravam os objetos artísticos para a diluição de fronteiras entre alta e baixa cultura, mas, paradoxalmente, fazia-os conviver com as classificações um tanto quanto esquizofrênicas da mídia e de certos

48 Renato Russo é uma hibridização aportuguesada de três autores — Jacques Rousseau, Henri Rousseau (o pintor) e Bertrand Russel (o filósofo), lidos pelo músico no período em que ele vivia em Brasília, na época que precedeu a formação de sua segunda banda, a Legião Urbana. 49 Félix GUATTARI desenvolve o conceito de caosmose para dar conta de uma circulação vista por ele como paradoxal, pois compreende um novo paradigma estético em que a diluição de fronteiras faz fragmentos de tudo circular rápida e intensamente, e, ao mesmo tempo, nos dá a impressão de que “tudo parece petrificar-se, permanecer no lugar, tanto as diferenças se esbatem entre as coisas, entre os homens e os estados de coisas. No seio de espaços padronizados, tudo se tornou intercambiável, equivalente” (1992, p.169). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

nichos mercadológicos que continuavam a desenvolver uma tendência anacrônica de hierarquizar algumas manifestações artísticas, entre elas, o rock produzido no Brasil, popularizado e consumido durante toda a década de 80 e, ao mesmo tempo, criticado e desvalorizado por não ser uma manifestação artística genuinamente brasileira. Assim, nas matérias, entrevistas e coberturas jornalísticas da época e em muitos depoimentos e debates de músicos brasileiros não é raro encontrarmos o maniqueísmo que opõe a cultura erudita à popular — e que condiciona também um olhar de viés para a existência da cultura de massa no nosso País —, acompanhado de todos os preconceitos e equívocos envolvidos nessa polarização dos objetos artísticos. Já foi demais dito que no interior da cultura rock há também divisões e sub-divisões que hierarquizam bandas, artistas, estilos, subgêneros e épocas, numa reprodução clonada do jogo de forças que existe entre alta e baixa cultura. O universo heterogêneo da música rock cria, então, armadilhas para diferenciar sub-estilos e tendências, multiplicando ao infinito o caráter gregário e tribal do próprio gênero musical, conforme explica Lawrence Grossberg, em Dancing in Spite of myself: essays on popular culture:

Rock and roll não é caracterizado somente pela heterogeneidade musical e estilística: seus fãs diferem radicalmente entre si apesar de ouvirem o mesmo tipo de música. Diferentes fãs parecem usar a música com diferentes propó- sitos e de diferentes modos, eles possuem fronteiras diferenciadas para defi- nir não só o que ouvem, mas também o que é incluído dentro da categoria de rock and roll. (GROSSBERG, 1997, p. 29)

A própria utilização do termo rock and roll por Grossberg já revela um descuido ou no mínimo uma conceituação diferente do geral, pois, a rigor, esse termo designa exclusivamente bandas e artistas que praticam um estilo mais básico, conectado com a musicalidade original de 1950, isto é, com os primeiros compassos de Chuck Berry, lá nos primórdios do rock. Sendo, assim, rock and roll é uma vertente, um estilo de época, dentro da abrangência maior da música rock — onde caberiam também o psicodelismo, o progressivo, o acid rock, o glam rock, o heavy metal, o hard rock, o trash metal, o punk rock, o rock industrial, a new wave, o pop rock, o grunge e ainda as delimitações de época (rock dos anos 60, rock dos anos 80 etc.) e até demarcações da cidade ou país de origem das bandas (a textura do rock londrino, por exemplo, difere da textura do nova iorquino, assim como em geral a irreverência do rock carioca destoa do paulista). Todavia, mesmo com essas nuances todas que formam vertentes e subgêneros — e com eles fronteiras, ainda que tênues, entre um público e outro, uma banda e outra, um nicho mercadológico e outro —, a cultura rock Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

compreende a formação de práticas sociais e estéticas que possibilitaram e ainda possibilitam identidades, objetos artísticos e comportamentos cuja dimensão ultrapassa os seus limites sonoros, isto é, os limites de seus produtos musicais concretos, pois se inscrevem numa zona mais ampla de dispositivos histórico-político-sociais das culturas urbanas juvenis. Atualmente, com a ampla produção científica de análises em torno do conceito de cultura, suas formulações e reformulações no campo das Ciências Humanas e das Letras ad- quirem contornos que ora a generalizam ou especificam, ora a restringem ou ampliam, a de- pender do recorte que esteja sendo privilegiado. Falar de qualquer objeto cultural, hoje em dia, invariavelmente implica em falar de um complexo emaranhado de relações entre o ho- mem e o meio; as sociedades e seu tempo histórico-evolutivo; os sistemas políticos e seus cidadãos; produtores, mercado, mídia e público; formas de divulgação, registro, mediações e conservação de produtos artísticos; além das relações de dependência, assimilação e resistên- cia presentes em países que nasceram a partir dos processos de colonização, como é o caso do Brasil. Renato Russo faz parte de uma geração de músicos e letristas dos anos 80, que se in- sere no cenário cultural brasileiro como aquela que se profissionalizou junto com a indústria musical nacional e usou a efervescência do punk britânico e norte-americano para produzir e viabilizar suas criações. Ele estreou com o álbum que levava o nome da própria banda, Legião Urbana, em 1985; depois veio o lançamento de Dois (1986), Que país é esse? (1987), Quatro estações (1989), V (1991), O descobrimento do Brasil (1993) e A tempestade ou o Livro dos dias (1994). Como intérprete, ainda lançou dois álbuns, um em inglês — Stonewall in Concert (1994) — e outro em italiano — Equilíbrio distante (1995). Foram lançados após a sua morte um álbum da banda com canções inéditas — Uma outra estação (1997) —, três com registros de shows, incluindo um acústico gravado na MTV, e mais O último solo (1997), reunindo sobras de interpretações dos trabalhos em inglês e italiano, e Presente (2003), uma compila- ção de duetos, gravações caseiras e trechos de entrevistas. Para este capítulo, fiz uma seleção das letras do vocalista que mais explicitam o mito do amor, fazendo um corte que vai do primeiro álbum até O descobrimento do Brasil. Excetuei as letras de A tempestade ou o Livro dos dias e Uma outra estação devido ao mesmo motivo que me orientou no capítulo dedicado a Caio Fernando Abreu: novamente, a presença da Aids apontou uma espacialização diferente da percepção do amor e de sua elaboração estética, exigindo um capítulo à parte. Os álbuns em que o músico se inscreve apenas como intérprete não são trabalhados nesta tese devido à complexidade das letras dos repertórios estabelecidos por RR — com autorias variadas que vão de Leonard Cohen a Laura Pausini. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Entretanto, ao abordar a experiência homoerótica e a epidemia da Aids, no quarto capítulo, faço rápidas menções a Stonewall in Concert e a Equilíbrio Distante, que foram gravados no período em que a doença já estava explicitamente instalada no corpo e na vida do músico. Os trabalhos lançados com os títulos de O último solo e Presente são ignorados intencionalmente nesta tese devido a um crivo pessoal: como apreciadora do trabalho da Legião Urbana e de Renato Russo não sou capaz de extrair desses dois álbuns póstumos uma concepção estética que viabilize uma análise produtiva. Trata-se de compilações póstumas feitas sem qualquer rigor que possa aproximá-los do projeto estético do músico e de seu conceito de álbum. Por fim, a exemplo do que ocorreu com CFA, ultrapassei, em certos momentos, os limites das produções artísticas e me dei a liberdade de examinar também os discursos de RR, através de um recorte em entrevistas e depoimentos que problematizam o mito do amor. Ao trabalhar com o mito do amor nas letras e no discurso do músico busco recortar as particularidades que dizem respeito à forma como ele refletia sobre a vivência, expressão e politização dos afetos. Ressalto sua tendência à melancolia e a uma espécie de “trovado- rismo moderno”, cuja inserção no universo da música rock — sobretudo com produções que faziam referências à cena punk inglesa, que era totalmente avessa a canções de amor — fez um número considerável de moças e rapazes refletirem sobre ética, política, sexismo, ho- moerotismo, relações amorosas e de amizade, dentro daquele novo cenário de redemocrati- zação sócio-político-cultural e sexual do Brasil. Pensar a inserção da letra de música e seu alcance cognitivo no universo cultural brasileiro dos anos 80 e 90 abre um leque de considerações sobre os avanços e recuos do rock, suas redes, práticas mercadológicas, políticas e sociais. Contextualizo esses elementos neste capítulo por considerar de fundamental importância refletir também sobre a paisagem que acompanha as letras de RR, afinal, se trata de um entorno histórico que marca a inser- ção de uma nova geração de músicos, letristas, produtores e mediadores culturais. Além disso, comparo também a visão e a forma com que o roqueiro trabalha o mito do amor com a abordagem do tema feita por Morrissey, vocalista e letrista da banda The Smiths, uma das influências mais festejadas da Legião Urbana e, sobretudo, de Renato Russo, que estabele- ceu um diálogo produtivo não apenas com as letras de Morrissey, mas com sua performance e visão de mundo.

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3.1 SOU MEU PRÓPRIO LÍDER, ANDO EM CÍRCULOS, ME EQUILIBRO ENTRE DIAS E NOITES

A produção musical dos anos 1980 renova culturalmente o Brasil, trazendo para a já estabelecida e conceituada música nacional conexões outras com um público novo, portador de outras necessidades e valores distintos daqueles trabalhados pelos artistas consagrados da Música Popular Brasileira. Nesse sentido, a produção da década de 80 não se insere sem con- flitos no cenário cultural brasileiro. Juntamente com outras dezenas de grupos, a banda de Renato Russo funcionou como uma catalisadora de anseios e pontos de vistas geracionais. Essa outra geração, embora fosse consumidora de MPB em menor grau, não se sentia repre- sentada, naquele momento específico, pelas manifestações musicais produzidas aqui no Brasil e, sim, com manifestações estrangeiras, cuja zona de inserção vai da música negra norte- americana dos anos 50-60, passando pela canção de protesto e folk, a la Bob Dylan e Joni Mitchell, pela irreverência dos Rolling Stones, pelo psicodelismo do The Doors e Velvet Un- derground, pela anarquia dos punks britânicos de 76 e sua posterior reconfiguração melódica através das bandas da new wave inglesa. Conforme já assinalado no primeiro capítulo desta tese, a literatura de Caio Fernando Abreu e o rock de Renato Russo são produções que têm endereço: a esfera discursiva da pe- quena burguesia brasileira. Ainda que por vezes essas produções artísticas rasurem as frontei- ras dessa esfera — e, no caso de RR, alcancem uma popularidade insuspeitável naquele mo- mento para o próprio rock nacional — suas formas de elaborações emergem desse “local de cultura” (para usar aqui a expressão de Homi Bhabha). Compreender a complexidade desse contexto, no qual CFA e RR estão inseridos, exige tanto uma leitura do painel efervescente e múltiplo da contracultura quanto o entendimento do processo de derivação no Brasil, da in- dustrialização do rock norte-americano e inglês, cuja popularização e posterior sedimentação aqui se deu a partir da década de 80. Renato Russo vem de uma família de origens italiana, mas nasceu na Ilha do Governador (RJ), em 1960, década que começou com a eleição de Jânio Quadros e terminou com o Brasil mergulhado na ditadura militar. Seu pai era economista do Banco do Brasil e a mãe, professora. Sua família se estabeleceu em Brasília por volta de 1970, depois de ter vivido por dois anos nos Estados Unidos — onde o músico, dos 7 aos 9 anos, aprendeu a Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

falar e a redigir em inglês. Essa passagem durante a infância pelos Estados Unidos, num período significativo em que já estava acontecendo o movimento de contracultura (1967-69), fez com que, ao retornar, RR experimentasse um choque diante do abismo entre a realidade escolar experimentada lá e a nossa. Em algumas entrevistas, ele fala desse choque, enfatizando a perda da qualidade de ensino; noutras, ele ressalta que o isolamento experimentado pela família no exterior também foi responsável por uma aproximação maior entre seus membros, o que fortaleceu o núcleo pai, mãe e filhos mas dificultou, na volta ao Brasil, a compreensão das desigualdades sociais daqui, uma vez que ele fora criado numa perspectiva de sonho:

[...] nós voltamos para o Brasil. Mas o estilo de vida que tínhamos não mu- dou. Sempre fomos uma família de sair junto, de passear no fim de semana, de ir atrás das coisas. Eu acho que éramos uma família de sonho. É claro que um dia levamos um choque, porque acabamos descobrindo que nem todas eram ou são assim. Era um mundo diferente em que as pessoas não guarda- vam esqueletos no armário ou, se guardavam (pensando bem toda família tem o seu esqueleto escondido no armário), eles não eram horrorosos assim [...]. (RUSSO, 1987, p.197).

Paralelamente a essa perspectiva idílica dada pelo modelo familiar, há a predisposi- ção do músico para a melancolia e a fantasia de ser um artista maldito, um outsider, ora expli- citadas nas letras mais confessionais, ora declaradas em entrevistas. Uma dessas declarações ocorreu no Programa Jô Soares Onze e Meia, em dezembro de 1992, quando o músico assu- miu-se como dependente químico, confessando ter passado por uma fase de culto à depressão, por acreditar que tal estado o faria escrever melhor, uma vez que essa idéia de criatividade ligada à tristeza vinha de pessoas a quem ele admirava, como Baudelaire, Rimbaud, Janis Jo- plin, Jim Morrison, Allen Ginsberg, Ian Curtis (vocalista do Joy Division que se suicidou por enforcamento), entre outros. A idéia do artista ou criador marginal advém de uma vontade não apenas de produzir de forma subversiva, mas de se posicionar subversivamente frente a um poder estabelecido — mainstream, establishment, established. A pressuposição dessa ordem vigente a quem se deve contrariar é que determina os processos de desconstrução e deslocamento das leis (expressas formalmente ou internalizadas via ideologia dominante) dos estatutos, técnicas de produção, hábitos, linguagens, linhagens. Trata-se de uma condição de borda, que, no entanto, ambicio- na chacoalhar o centro, pois parte do pressuposto de que a vida nele é definida por um forma- to repressor e restritivo. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Ser outsider é rejeitar as estruturas culturais oficiais estabelecidas; é buscar formas alternativas de circulação para sua criação; é não se conformar aos modelos e linhagens canonizadores. Baudelaire, Lautrèamont, Rimbaud, Burroughs, os poetas beats, entre outros, são nomes que surgem ao se pensar numa poesia de borda, de deriva, no mundo ocidental. No entanto, nesse termo ainda cabe muito mais, se levarmos em conta que toda a busca de uma musicalidade transgressora, de uma valorização de imagens incomuns, de uma tentativa de tornar a poesia cotidiana, falada, acessível e pública, assim como a perda de fronteiras entre os gêneros, entre as representações artísticas e o seu conceito de “real”, remetem para uma estirpe de artistas marginais ou irracionais, que desejavam articular a noção de sociedade e indivíduo com a idéia da criação transgressora — que escandaliza, dialoga e suplementa a vida. Mas também é possível pensar em outsider seguindo a linha de pensamento tomada por Colin Wilson em Outsider: o drama moderno da alienação e da criação (1985). O livro problematiza a sensação de marginalidade manifestada pelos escritores e artistas românticos, a partir de um culto ao estado melancólico. Para ele, o criador outsider é uma espécie de indi- víduo que prediz o futuro, mas não tem total consciência desse poder mental; ou seja, é um profeta ainda inconsciente de seu papel e poder. Sua inadequação e sofrimento transbordam, pois ele precisa salvar-se através do encontro (revelação) com essa “missão”; no entanto, ele só sabe de maneira indireta ou parcial sobre seu destino, e, ao mesmo tempo, intui sobre ele e dele necessita para realizar o seu projeto de epígono — que é seu verdadeiro objetivo na terra. Abraçar uma manifestação artística é parte desse caminho, porém, não é o caminho, e sim um meio para a realização de profeta. Wilson mostra que a inadequação dos outsiders é um princípio básico de sua condição, mas diferentemente de uma inadequação oriunda de uma consciência crítica ao meio, ela surge de uma espécie de dor, compreendida como inerente ao pária. Constantemente, um sentimento de irrealidade acerca de si mesmo e do mundo ao seu redor os acompanha. Sua existência é marcada pela experiência de momentos de interiorização profunda, donde emergiria o desejo de mudar o mundo ao redor. Esse desejo pode levar ao desenvolvimento de uma imaginação fértil, dada a visões de planos superiores, que, por não serem facilmente alcançados, resultam em tristeza e imobilidade. Suas crenças místicas são flutuantes e a concepção de sociabilidade confunde-se com o pavor e desprezo pelos condicionamentos sociais. Produzir seria uma forma de acessar esse mundo interno, não estar alheio a ele, pois a criação os conectaria com uma sensação de serenidade interior, que, utópica ou não, os animaria a buscar um espaço para viabilização do destino intuitivo — percebido vagamente por eles desde a infância. A criação não é praticada sem que se Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

experimente um forte sentimento de insatisfação e melancolia, tanto com o que se cria, quanto com os regulamentos ou técnicas necessários ao processo criativo. Assim, o prazer de criar ou a epifania ocasionalmente sentida no ato de criação não os impediria de cometer certos desastres com a própria existência — suicidarem-se, por exemplo, ou abandonarem a arte devido a um profundo desgosto com seus frutos —, afinal, um dos componentes dessa índole outsider é sua tendência ao tormento, às sombras, à autodestruição. Renato Russo se move tanto nesses espaços de penumbra, a que chamaríamos me- lancolia, quanto nos espaços de luminosidade, onde exercita sua potência ou vontade de afir- mação da vida: “Sou meu próprio líder: ando em círculos/ Me equilibro entre dias e noites/ Minha vida toda espera algo de mim/ Meio-sorriso, meia-lua, toda tarde”50. A oscilação entre um certo culto à melancolia e o desejo de realização através da vivência afirmativa dos afetos é uma das particularidades de sua escrita. Ela privilegia a expressão de imagens e sentimentos românticos, pondo em circulação a idéia do roqueiro sensível e pária, inclinado a viver à mar- gem da sociedade devido a um defeito de fabricação ou a um excesso de sensibilidade num mundo onde a expressão de sentimentos é, por vezes, vista como sinal de fraqueza. Contudo, em sua percepção de outsider há espaço para a exaltação da alegria de estar vivo, e, às vezes, isso ocorre na mesma letra:

O que há de errado comigo? Não consigo encontrar abrigo Meu país é campo inimigo E você finge que vê, mas não vê [...]

Celebro todo dia Minha vida e meus amigos Eu acredito em mim E continuo limpo”51.

A exaltação diária da segunda estrofe mostrada oferece um contraponto à idéia de errância, conflito e desabrigo da estrofe anterior, complexificando o temperamento melancólico e a sensação de deriva. O peso do questionamento “o que há de errado comigo?” torna-se criativo então, pois a ele se soma a imagem de um eu associado à alegria de ter amigos e à vontade de celebração. Tal celebração imprime um movimento à condição melancólica, como se ela pudesse “dançar” e, com isso, deslocar a penumbra. Embora saibamos que Nietzsche era contrário ao culto da melancolia — por esse levar o pensamento e

50 A montanha mágica. Álbum V. EMI, 1992 (faixa 4). 51 A fonte. O descobrimento do Brasil. EMI, 1993. (faixa2). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

a arte européia ao niilismo — é impossível não lembrar de imediato da alegria de viver defendida por ele em A Gaia Ciência (2001)52, que consiste justamente nesse estado de bem- aventurança, em que criar é, sobretudo, um eterno estado de recriação de si e do mundo, uma dança de celebração da consciência de que estamos sozinhos, e nessa solidão onde somos nossos próprios senhores, viver é um labor ao mesmo tempo ético e estético. Pensar sobre as letras e depoimentos de Renato Russo envolve a percepção dessa ne- cessidade forte do músico de resolver os impasses existentes entre a tendência outsider (que o leva ao isolamento) e a utopia mística de celebração e reunião de tribos da música rock (que o leva à sociabilização). Essa utopia pode ser lida como um mosaico de tendências construído de cacos das idéias de Herbert Marcuse, que, em Eros e Civilização (1968), defende a idéia de que o homem civilizado é o produto de um conflito entre o que Freud chamou de Princípio do Prazer e Princípio de Realidade. A utopia roqueira se ergue em cima desse desejo de vencer os bloqueios sócio-histórico-culturais que impedem “as tribos” o acesso à felicidade. Entre o culto à melancolia e o projeto estético e ideológico compartilhado por toda a geração 80 que, no Brasil, apostava todas as suas fichas na indústria de entretenimento; entre a continuidade do clima de desbunde contracultural dos anos 60/70 — de quem os anos 80 são herdeiros di- retos — e a brusca realidade do advento da AIDS, se posiciona a produção de Renato Russo, cuja singularidade e expansão ofuscou, em muitos momentos, a maioria das bandas contem- porâneas da Legião Urbana. Dentro dessas particularidades que definiam a atmosfera em torno da Legião, podemos invocar também a dança “estranha” de RR, obtida a partir de uma mistura das performances de Jim Morrison (1943-1971, The Doors), Ian Curtis (1956-1980, Joy Division) e Morrissey (1959, The Smiths). A dança híbrida do vocalista suplementava suas músicas e letras, numa celebração da atmosfera de aldeia da música rock53; reafirmava a festa dos modelos de vida alternativos; positivava o corpo; gritava um “não” aos recalques e demais formas de repressão; retomava Narciso e Orfeu, e mais Dionísio, com quem desejava ritualizar essa saída do “Império da Razão”, da frustração, e da obrigação de ser força- produtiva-através-do-trabalho (MARCUSE, 1968). Não se resignando ao modelo tecnocrata das sociedades industriais — modelo oficialmente imposto aos jovens de praticamente todo o mundo ocidental —, a cultura rock procura a liberação do prazer pelo acesso ao inconsciente

52 O livro foi escrito em 1882 e ampliado em 1887, a data acima se refere à edição consultada, c. Referências finais da tese. 53 Por “atmosfera de aldeia” entende-se o processo de mundialização das práticas discursivas da música rock, capaz de reunir em seu ritual orgíaco indivíduos oriundos de diferentes centros e periferias, etnias distintas, orientação sexual e ideologias diversas. Para maior aprofundamento desse aspecto, ver GROSSBERG, Lawrence. Dancing in Spite of myself: essays on popular culture. Londres: Duke Universsity Press, 1997. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

coletivo e ao misticismo oriental, donde estariam os impulsos estéticos considerados primitivos, isto é, privados da cooptação e manipulação pelas forças repressivas da sociedade tecnocrata. Tal acesso, nos anos 60/70, esteve ligado tanto às práticas de resistência e de questionamento dos valores estabelecidos, quanto aos rituais tribais, ao sexo livre, ao uso de drogas psicodélicas, de terapias alternativas — psicodrama, biodança, somaterapia etc. Além de todo esse processo complexo no qual se insere a produção de RR, há, tam- bém, a sua condição de homossexual (ou pansexual, como ele mesmo se autodenominou em entrevista a Revista IstoÉ, de 27/04/1994), que, como se sabe, não consegue facilmente um direito à sociabilidade nessa cartografia da música rock que é, paradoxalmente, um lugar de busca de liberdade individual e de demarcações heteronormativas, originárias da intensa libe- ração da energia yang ou pólo masculino que, no Ocidente, se configura a partir de uma noção hegemônica do macho, branco, heterossexual. Essa cartografia, no entanto, não é estanque, pois desde os primórdios do rock podemos ouvir vozes e ler corporalidades capazes de ins- crever em sua superfície as diferenças. O “jeito de corpo” (para usar uma expressão populari- zada por Caetano Veloso, no álbum Outras palavras, de 1981) de Little Richard (1932), por exemplo, com seu visual andrógino e sua dança sexualizada, quebrou desde início os padrões comportamentais polarizadores, chocando a classe média branca norte-americana da época — para quem a demarcação entre masculino e feminino era bastante rígida. A performance per- formance pioneira de Little Richard é motivo para uma amarga homenagem que Morrissey lhe presta em “Little man, what now?” (do álbum Viva Hate, 1988), quando questiona o que teria ocorrido após a passagem fulgurante do roqueiro. A letra registra os jogos perversos do mainstream, que podem se nutrir de qualquer energia sexual, inclusive da andrógina, sem necessariamente permitirem a expansão livre dessa libido: “Velho demais para ser uma crian- ça prodígio/ Muito jovem para os papéis principais/ Quatro temporadas/ e eles te cortaram/ Nervosamente jovem/ (não vá sorrir!)/ O que aconteceu com você?/ Aquele eclipse repentino te torturou?”54 O projeto estético de Renato Russo está diretamente ligado às relações orgânicas entre os movimentos juvenis e o estilo de música a que denominamos rock. As desilusões do cenário do pós-guerra fundam essas práticas histórico-discursivas da cultura rock e, até hoje, na contemporaneidade, tal dispositivo pode funcionar como catalisador dos anseios e vigor juvenis, e da rebeldia adolescente, determinando e/ ou viabilizando o tipo de relação que seu

54 Little man, what now?. MORRISSEY e Stephen STREET. Viva Hate. EMI. 1988. (faixa 02). No original: Too old to be a child star/ too young to take leads/ four seasons passed/ and they AXED you/ nervously juvenile/ (WON'T SMILE!)/ What became of you?/ did that swift eclipse torture you? Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

público produtor e consumidor terá com os organismos sociais — a família, a escola, a religião, o governo, o mercado de trabalho etc. Ao passar assim de gênero musical a dispositivo histórico-cultural, a música rock inventa e desinventa identidades, aglutinando valores dispersos pela sucessão de épocas, gerações e manifestações juvenis urbanas. No espaço dessa cultura, porém, paira sempre a idéia de uma atitude contestatória, uma postura de eterna desconfiança daquilo que fala por vias oficiais, além de uma forte necessidade de afirmação pessoal. No entanto, a forma de expressar tais elementos, com o passar dos anos e o desgaste acumulado de geração para geração, freqüentemente envelhece, o que provoca, de quando em quando, as famosas declarações de que o rock morreu. Em geral, essas declarações surgem diante do impasse tenso observado pelos próprios roqueiros — e eventualmente pelo seu público — entre a atmosfera de eterna juventude e espírito revolucionário exigida pela música rock e as outras etapas da vida adulta que, cedo ou tarde, chegam para todos. Nesse sentido, a cultura rock, para não estacionar, precisa sempre se reciclar, não apenas através de fusões com outros gêneros, mas, sobretudo, aglutinando projetos estéticos mais amplos, de bandas e artistas que contemplem também os valores estéticos da linguagem poética, das artes plásticas, do cinema, do teatro, das HQs, da ficção científica etc. Todos esses elementos fazem partem do contexto de formação, desenvolvimento e circulação sócio-político-cultural das músicas da Legião Urbana55, assim como também se relaciona com ela o desenvolvimento de uma noção de cultura e indústria do rock no Brasil. É preciso mencionar que, como um dos produtos mais consumidos da indústria cultural, o rock, desde sua origem, tem sido analisado, para o bem e para o mal, a partir de sua inserção no segmento jovem da sociedade. No entanto, qualquer análise que tenha essa manifestação artística em seu horizonte de discussão não poderá prescindir de seu papel não apenas no funcionamento econômico e social da maioria dos países ocidentais, mas, sobretudo, na ampliação cultural que se faz cada vez mais descentralizada, fragmentária e múltipla nos grandes centros urbanos. Tal ampliação pode ser melhor pensada a partir das considerações de

55 A Legião Urbana é a segunda banda criada por Renato Russo — antes, de 1978 a 1980, ele fez parte do Aborto Elétrico. A LU foi fundada em 1983, tendo em sua formação original Renato Russo (baixo e vocais), Marcelo Bonfá (bateria) e Eduardo Paraná (guitarra e vocais). Mas Eduardo Paraná abandonou a banda por divergências musicais: ele tinha formação em música clássica e nos ensaios entrava em conflito com os outros por querer passar muito tempo solando, enquanto a orientação punk-rock é justamente oposta aos solos longos que marcam o rock progressivo, subgênero rocker ao qual o movimento punk se opôs com veemência. No lugar de Paraná entrou Ico Ouro Preto, que permaneceu por poucos meses e saiu devido a uma fobia manifestada pela proximidade da primeira apresentação ao vivo da banda. Ainda participaram da Legião mais dois músicos até a entrada de Dado Villa-Lobos. A ele se somou Renato Rocha, que substituiu RR no baixo, quando esse, a partir de uma tentativa infeliz de suicídio, ficou impossibilitado de tocar este instrumento. Renato Rocha saiu da Legião Urbana na fase de gravação do quarto álbum, As quatro estações. Os outros músicos permaneceram na LU até a sua dissolução, ocorrida com a morte de Renato Russo, em 1996. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Nestor García Canclini, em Consumidores e cidadãos (2001); ele elabora o conceito de montagem, para ler a especificidade da fragmentação que os objetos culturais adquirem quando retirados de seu lugar de origem e fabricados noutro: “A cultura é um processo de montagem multinacional, uma articulação flexível de partes, uma colagem de traços que qualquer cidadão de qualquer país, religião e ideologia pode ler e utilizar” (2001, p. 41). A noção de cultura como uma montagem permite pensar não apenas no fim da “unidade imaginada”, representada pelas narrativas universais, mas, sobretudo, numa ação ativa dos sujeitos envolvidos na fabricação, mediação e circulação de valores e artefatos culturais. Esse operador faz desaparecer qualquer resíduo ou preocupação com a demarcação de manifestações artísticas genuinamente brasileiras, por exemplo — o que é produtivo se levarmos em conta que esse tipo de limite foi muito usado para desvalorizar a música produzida pelas bandas de rock nacional. A partir do momento em que os sujeitos já não são vistos como indivíduos submetidos a uma estrutura fixa de identidade e nomeação, ou a um sistema de pensamentos, idéias, valores e atitudes com tendências homogeneizadoras, cuja prática deve ser pedagogicamente inscrita em seu imaginário, as subjetividades passam a ser vistas dentro de uma operação dinâmica de reunião, seleção e deslocamento de dispositivos, peças e mecanismos complexos que fazem funcionar a cultura. A noção de montagem, então, aponta para um processo em que peças de artefatos de diversas naturezas se cruzam, desvelam encadeamentos heterogêneos de discursos, distribuem idéias, sentimentos, sensações, tecnologias e representações. Montagem implica cortar, selecionar, colar, formar novas imagens e narrativas, e, na cultura, o que chama a atenção desde algum tempo são produtos híbridos, que podem conter tanto experiências, estratégias, valores e gêneros da tradição artístico-literária ocidental, quanto elementos da indústria do entretenimento, da cultura oriental e de outros discursos tantos. Nesse cenário, a música rock despontou como um espaço de intercambiamento entre discursos, tendências e valores da tradição (literatura, arte, filosofia, religião) com as designadas “realidades secundárias”: ícones da cultura de massa, clichês midiáticos, marcas publicitárias, tecnologias, produções cinematográficas, histórias em quadrinhos etc. O rock, de modo geral, fez valer a máxima de que “tudo lá fora” passa, antes, pelo indivíduo. O valor individual a ser cultivado é sempre o da criatividade, que, por sua vez, se inscreve no corpo e na cena, numa performance capaz de abranger o sensorial e o político, tornando-se não apenas uma característica tribal, mas uma carnadura urbana. A própria “natureza” do estilo musical a que convencionamos chamar de música rock é, na verdade, uma hibridização de estilos, pois, desde sua origem, entre 1954-55, já abarcava vários ritmos Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

da música negra norte-americana, como o blues, o gospel, o country e a canção popular, entre outros. Assim, desde que Bill Haley e The Comets lançaram “Rock Around the Clock”, em 1955, até os nossos dias, quando por diversas vezes se proclama o fim desse estilo musical, é o ir e vir pelas fronteiras de outros gêneros, são as constantes apropriações de elementos variados e de origens tantas, bem como a supremacia das questões individuais, que, de fato, constituem o universo da cultura rock. A reinvenção da experiência de ser “jovem” e “contra” os sistemas estabelecidos de poder — Estado, família, propriedade, capital — foi catalisada pela música rock a partir de uma mescla de fragmentos de diversas teorias, desde as marxistas que expunham os meca- nismos da divisão de classes, passando por abordagens libertárias da sexualidade e do corpo, até o cultivo de valores de sociedades primitivas. Nesse processo de montagem, no entanto, o rolo compressor das reivindicações e dos artefatos culturais, por vezes, não permite a visibili- dade agonizante de certas contradições entre as perspectivas ali mescladas. No interior da cultura rock, a recusa por toda e qualquer organização cujos elementos ideológicos estejam expostos (através de partidos políticos, por exemplo) solicita uma depreciação radical das investigações ou pesquisas que privilegiem tanto os conflitos de classes quanto de gêneros e identidades; porém, ao mesmo tempo, a performance libertária intenta, justamente, uma revol- ta contra a legitimação, pela cultura dominante, das hierarquias entre as classes sociais e de- mais instâncias da cultura. Assim, muitas vezes, as letras de rock que se mostram engajadas socialmente — defendendo o operariado ou os índios, por exemplo — soam superficiais den- tro de um contexto que deprecia o investimento engajado em solução de conflitos sociais. É o que Canevacci (2005) chama de “estranho jogo de cruzamento ao longo de hectares de territó- rio temporário, onde se misturam as experiências” (2005, p.15). Mesmo assim, essa teia con- traditória da cultura rock se expandiu e continua a se expandir, principalmente nos grandes centros urbanos, colocando ainda em movimento códigos culturais que, nos anos 60-70, for- maram um campo discursivo para os embates com a cultura dominante. Dessa forma, a música rock foi a trilha melódica e sensorial da contracultura, e tal aliança representou uma celebração do caos, do erótico, da corporeidade e dos ícones urbanos. O produto rock é obtido a partir da captura de ruídos urbanos, que são condensados em formato musical — conforme explica José Miguel Wisnik, em O som e o sentido (1989) — e tem repercussões diversas no dia-a-dia de todo um segmento jovem que passa a produzir e a conviver muito de perto e intensamente com essas manifestações artísticas. Seu surgimento está diretamente ligado à emergência e consolidação da indústria cultural, e a compreensão de seu alcance necessita, sem dúvidas, de um abandono de certas estruturas viciantes do Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

pensamento tradicional que opõem produção, crítica e fruição de uma obra de arte à industrialização dos objetos artísticos e seu conseqüente embotamento da capacidade de discernimento das massas (BENJAMIN, 1983). Essa música é produto e produz uma cultura específica em torno de si, num movimento de retroalimentação contínuo. Uma definição possível da especificidade da música rock foi dada por Antônio Souza, em Cultura rock e arte de massa56:

A cultura rock seria tanto uma modulação do ouvido, que estaria aberto a di- versas sonoridades da nova música comercial, como um modo de vestir a camisa, uma maneira relaxada de jogar o corpo na rua, de passear no meio da multidão, ainda que tenha à mão uma pasta carregada de promissórias pa- ra pagar no banco, no caso dos jovens roqueiros trabalhadores. Evidente que todas essas pequenas manifestações são sinais do sistema cultural que o rock vem construindo ao longo destes anos. [...] Uma mobilização a princípio mu- sical, que deixa marcas nas representações, na percepção e no entendimento que o jovem tem de si próprio e do funcionamento do próprio mundo. [...] um sistema que inicia o adolescente na sociedade e pode desde modular suas pequenas atitudes até orientar sua compreensão e postura política no mundo (1995, p.28-29).

A palavra “modulação”, enfatizada na definição acima, é fundamental para se com- preender a estrutura do rock, pois o mecanismo de modulação está presente tanto na captura material da música (modulação do ouvido) quanto na organização dela no cotidiano de seu consumidor (modulação de atitudes). A preferência em usar “modular” e não “modelizar” mostra um cuidado do autor para não cair no jogo improdutivo das teorias que postulam uma massificação do rock, operada pela indústria do entretenimento (perceptível, justamente, na estereotipação mundial de seu público), e, sobretudo, implica não deixar escapar um elemento importante no universo cultural da música rock: sua busca por um lugar de singularidade, de liberdade individual, quer para o artista, quer para o público. Isso que aqui se chama de “um lugar de liberdade individual” comporta um paradoxo decorrente do fato de a música rock ser um produto midiático (e, portanto, destinar-se ao grande público), porém, ter se conectado desde o início às necessidades de um segmento es- pecífico do mercado: indivíduos jovens, consumidores dos mesmos produtos audiovisuais e padrão de vestuário e alimentação, mas de países, culturas, etnias e orientações sexuais diver- sas. Tal paradoxo é sintetizado por Antônio Souza quando levanta as forças de avanço e retro- cesso presentes na música rock, que é um dos produtos mais polêmicos da indústria cultural:

56 Tese de doutorado defendida em 1994, na Faculdade de Filosofia de Campinas, e publicada em 1995, pela Editora Diadorim (Cf. referências bibliográficas). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

[...] muitos querem fazer uma música que se proponha libertadora, mas fazem uma série de jogos discursivos, de encenações e performances que só correspondem aos interesses puramente econômicos do sistema da indústria cultural. Nesse sentido não dá para acreditar totalmente nas palavras de um cantor de rock, pois tudo pode ser apenas encenação, pose. Mas é dessa encenação, é dessa pose que saem muitas elaborações musicais dignas de atenção, pois carregam um poder de crítica à opressão do capitalismo, de negação do Estado, do terror, da violência e do preconceito. (1995, p. 29).

Na metade dos anos 70, as estratégias artísticas, culturais e discursivas colocadas em circulação pela contracultura e pela música rock começaram a ser mensuradas justamente por essa fraqueza de seus jogos discursivos e performances e, sobretudo, pelo flanco exposto a partir da captura de sua potência de reversão pelos aparelhos institucionais, indústria de con- sumo e meios de comunicação. A cooptação das forças de rebeldia e contestação juvenis ge- rou uma padronização das atitudes insubordinadas, o que transformou todo aquele cenário revolucionário num espaço do “mesmo”. É da não-aceitação de tal cenário perdido que emer- ge o movimento punk, desejoso de radicalizar essa crítica às instituições e ao sistema capita- lista, através da construção de um discurso de fim de mundo, de descrença em qualquer tipo de transformação social. De modo geral, o termo punk remete a um conjunto de atitudes, modos de expressão, vestuário e maneira de fazer música que se opõe diretamente ao esvaziamento e decadência da sofisticação e dos grandes aparatos que cercavam as bandas e artistas de rock em evidência por volta de 1975. Diante da não-identificação com tais artistas, que já gozavam de prestígio na mídia e no meio musical, rejeitaram-se todos os produtos veiculados como rock pelos meios de comunicação naquele momento, procurando substituí-los pelo seu inverso: um mundo despido de glamour, uma música enxuta, baseada no uso criativo de três acordes, acrescida de dissonân- cia, amplificadores baratos, agressividade e utilização do lixo e da miséria como fatores de iden- tificação; ou seja, todo um estilo e visão de mundo que separavam radicalmente o mundo dos artistas e bandas estabelecidos e o mundo caótico e sem futuro dos punks. No Brasil, entretanto, não havia ainda uma tradição de bandas e artistas ligados ao universo rock; por isso, a atuação agressiva dos punks se voltou contra os artistas da Música Popular Brasileira, sinônimo de pres- tígio no meio musical, na mídia e na sociedade. Os artistas da MPB57, no entanto, não eram exatamente os “alienados burgueses”, “cooptados pelo sistema”, a quem se podia atribuir a pecha de “classe alienada”. Não

57 Segundo Carlos Sandroni, em artigo acerca da emergência dessa sigla, o primeiro registro de abreviação de Música Popular Brasileira para a sigla MPB data de 1960. O sociólogo mostra como a percepção de música popular brasileira evoluiu de uma manifestação de escravos e ex-escravos (quando não se usava sequer a palavra música para nomear tais produtos artísticos, uma vez que esse termo estava reservado para àquela praticada e Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

andavam de limusine e nem produzindo shows milionários e glamourizados. Ao contrário, há toda uma tradição de artistas nacionais cujas carreiras e produções se colocam justamente a partir de seus trânsitos com o social e o político. Para Wisnik58, a relação do povo brasileiro com os artistas da MPB é especial, à medida que parte sempre de uma percepção muito íntima entre público e criadores, sendo a música no País transformada, não raro, em uma espécie de extensão de nosso habitat, de nós mesmos. De maneira geral, o brasileiro entende a música popular muito mais do que uma trilha sonora para momentos de lazer, muito mais do que uma fruição intelectualizada de um objeto de arte (ADORNO, 1983), muito mais do que uma companhia para a solidão. Wisnik analisa, em vários textos, a importância do fenômeno da MPB para a compreensão da complexa cultura brasileira. Entre os mais importantes com esse tema, estão Anos 70/Música (1979), em parceria com Ana Maria Bahiana e Margarida Autran, “A Gaia-ciência – Literatura e Música Popular no Brasil59, além de O nacional e o popular na cultura brasileira/Música. Esses trabalhos mostram os modos de produção da música popular e as forças de atração e repulsa, oriundas de uma sociedade heterogênea como a nossa, existentes no cenário rítmico brasileiro. O autor também mantém no site ARTE E CULTURA, de maneira didática, alguns tópicos e informações sobre a origem da nossa música, a exemplo da orientação-síntese abaixo:

A música no Brasil desenvolve-se claramente em duas frentes distintas: a tradição escrita (transposta da música européia), também chamada “erudita” ou “de concerto”, e a tradição não-escrita (resultante das misturas entre mú- sicas européias, indígenas e africanas), correspondendo às múltiplas formas da música popular. Ambas apresentam desenvolvimentos próprios e, como também acontece em muitos outros países, cruzam-se em certos momentos. No Brasil esses encontros entre o popular e o erudito têm, no entanto, uma importância específica, pois neles está, sem dúvida, uma das marcas singula- res da produção musical brasileira.60

usufruída pela aristocracia), passando pela designação mais folclorista dada por Mário de Andrade, depois pelo seu divórcio do terreno rural e seu definitivo contorno urbano a partir de 1920-40, com Carmem Miranda e o rádio, até o início dos anos 60, com o grupo MPB-4 e todo o agregamento político-cultural-mercadológico que abrange nomes, posturas, discursos e produções artísticas de um Chico Buarque, um Caetano Veloso, um Gilberto Gil, um Alceu Valença, um Tom Zé, entre outros, mas também envolve novos nomes como os de Marisa Monte, Adriana Calcanhoto, Marcelo D2, Racionais MC’s etc. Assim, MPB, num sentido amplo, pode ser uma sigla usada para nomear tudo que se produz no Brasil com origens e/ ou remissões a ritmos populares (como samba, baião, forró, maracatu, frevo, brega, bossa nova, música caipira, sertanejo, axé music, funk e pagode), mas, em sentido restrito, é usada para nomear a produção pós-bossa-novista, surgida nos grandes festivais universitários de 1960. Cf. Revista Cult, número 105, agosto/ 2006. 58 Cf. Enio SQUEFF, José Miguel WISNIK. O nacional e o popular na cultura brasileira/ Música. São Paulo: Brasiliense, 1982. 59 In: MATOS, C. N., MEDEIROS, F.T e TRAVASSOS, E. (org.). Ao encontro da palavra cantada. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001a. p.183-199. 60 Cf. José Miguel WISNIK. Arte e Cultura. Disponível em: . Acesso em: 17 jan. 2006. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Esse intercambiamento entre popular e erudito confere um trânsito original à MPB, um lugar de destaque no qual não apenas aquilo que é produzido em seu nome (seus produtos artísticos) ganha, rapidamente, notoriedade social, como, também, os discursos de seus artistas adquirem, freqüentemente, um “prestígio intelectual” bastante representativo para diferentes camadas de nossa população. Não é raro assistir no Brasil à busca imediata da mídia pela opinião dos nossos artistas diante de um acontecimento cotidiano — seja político, cultural, econômico ou de outra natureza qualquer. Tal status é, no mínimo, invejável para outros setores de nossa cultura, uma vez que a MPB é, simultaneamente, “o veículo de diferentes representações sócio-político-culturais brasileiras e a confluência do mundo popular com o mundo erudito” (SANTIAGO, 1998, p.21). Nesse sentido, ela legitima as diversas camadas da população, que a consome de maneira ávida, e é também por ela legitimada, como sua porta-voz, diariamente. Muitas vezes, a MPB se coloca como um elemento indispensável para qualquer análise que se pretenda acerca das relações entre cultura e identidade nacional, como muito bem esclarecem Renato Ortiz, em Cultura brasileira e identidade nacional (2003), e Hermano Vianna, em O mistério do samba (1995). É tão forte em nossa cultura a idéia da MPB como um espaço onde se aloja a verdadeira riqueza de nossas manifestações culturais e a identidade híbrida de nosso povo que, até hoje, a legitimação de qualquer artista, banda ou movimento estético-musical necessita de um aval direto dos artistas já consagrados, público consumidor, mercado fonográfico e mídia. É preciso que se reconheça, neste ou naquele novo cantor/compositor/banda, uma relação direta com a tradição, um elo explícito e assumido com tudo aquilo que já foi feito em nome da Música Popular Brasileira. Esse consenso todo em torno da MPB dificultou a translação da polaridade punks X maistream pretendida pelos roqueiros dos anos 80, ainda que já exista, hoje, um levantamento de fatores que apontem para uma espécie de queda num espaço de pasteurização e esvaziamento criativo, justamente, nos anos de 79 a 81, período proposto por Silviano Santiago, em “Democratização no Brasil – 1979-1981 (Cultura versus Arte)”61, como um marco na abertura democrática e renovação sócio-político-cultural no País. Nesse período histórico em que a MPB deveria representar os anseios e demandas de seu povo, há um esvaziamento no discurso das produções, o que implicou distanciamento entre artistas e público — excetuando, é claro, os momentos anteriores à abertura política, antes da era Sarney, quando muitos dos compositores e intérpretes da MPB estavam aliados às esquerdas, em palanques e passeatas em prol da

61 Artigo publicado em ANTELO, Raul et. al. Declínio da arte/Ascensão da cultura. Florianópolis: Letras Contemporâneas/ABRALIC, 1998. p.11-23. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Anistia e das eleições diretas para presidente, governadores e representantes legislativos. Porém, o fosso que se segue após a Campanha das Diretas-Já não registra produções significativas provenientes da MPB que, de maneira substancial, esteja conectada àquela época de esperança e intensas transformações de paradigmas sócio-político-culturais. O dinamismo que move as construções musicais populares em direção ao povo e ele em direção a elas é suspenso e, então, nessa brecha, é o rock nacional que se faz trilha sonora da redemocratização do Brasil. Dessa forma, é na suspensão temporária dessa correspondência entre público e MPB, nessa “falha” ou ponto de cristalização criativa (de época, de geração) que se localiza, hoje, o espaço tomado e preenchido pelos artistas e bandas dos anos 80, conforme apontam Antônio Souza (1995) e Jeder Janotti Jr. (2003)62. A contribuição dos roqueiros nacionais, porém, somente de alguns anos para cá vem sendo percebida e reavaliada, embora muitos ainda considerem a geração de Renato Russo, Cazuza e Arnaldo Antunes menos fértil, menos produtiva e original do que a pós-bossa-novista. É o que mostra, por exemplo, o artigo publicado na Revista Cult, intitulado “MPBC: tendência ou movimento”63, de Antônio Carlos Miguel, que se propõe a analisar a nova geração de compositores, bandas e intérpretes brasileiros que, de 1990 para cá, vem investindo em releituras e produções que utilizam elementos eletrônicos, mas dialogam com a boa e velha MPB, reatualizando-a. Essa vertente seria nomeada de Música Popular Brasileira Contemporânea ou MPBC. Numa passagem, no mínimo descuidada, o jornalista admite que, de fato, a MPB, na década da redemocratização no País, estava pasteurizada e esgotada em termos de criatividade, pois “é a época de deslumbradas produções nos estúdios de Los Angeles e Londres, muitas vezes com instrumentistas e arranjadores estrangeiros, que nada acrescentavam à música brasileira” (2006, p.51). Ele destaca a criatividade do álbum Native dancer, de Milton Nascimento, desse período, mas descredencia Simone, Fagner, Roberto Carlos, Gal Costa, Tim Maia, entre outros tantos, que se encontravam “estagnados”. Para o jornalista, o que de melhor se fez nessa época veio assinado por nomes nascidos nas apresentações do Lira Paulistana, os chamados vanguardistas, como Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção e Grupo Rumo. Dentro do que chama de “febre roqueira dos anos 80”, o crítico afirma que o legado estético é próximo do zero. Não é realmente zero porque o jornalista resolve salvar a pele de Marina Lima e

62 Janotti Jr. defende esse espaço conquistado pelo rock nacional como uma virada rápida da cultura juvenil que tardiamente se sedimentou no Brasil. Para melhor aprofundamento desses aspectos, ver tese de doutorado do autor, intitulada Aumenta que isso aí é rock and roll, defendida na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, em 2002, e publicada em livro em 2003. (Cf. referências). 63 Texto que é parte integrante do Dossiê Cult MPB em discussão, edição 105, ano 9, agosto de 2006, p. 50-53. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Eduardo Dusek, pois mantinham elos com a MPB, embora tivessem sido catalogados nessa praia roqueira. Tamanha má vontade com o rock nacional não permite ao jornalista (que se autodenomina um especializado em música) perceber o furo deixado em sua análise, quando mostra a renovação ocorrida nos anos 1990, soprada pelos ventos de Recife, com uma outra geração, dessa vez muito bem representada por Chico Science e o seu manguebeat. Passa despercebido ao crítico que o diálogo com a MPB não foi estabelecido pela geração 90, pois ele já existia, de maneira explícita, na ponte construída pelos Paralamas do Sucesso em seu terceiro álbum, Selvagem? (1986)64; em todos os trabalhos do Fellini (que mesclava jazz, samba, chorinho, bossa nova, rock, baião e frevo); no álbum O Rock Errou, de Lobão (1986), que leva Elza Soares e a bateria da Mangueira para o estúdio; e, um pouco mais tarde, em Õ Blésq Blom, dos Titãs (1989). Não faltam informações na própria mídia acerca dessa “abrasileirada” que o rock sofreu a partir do meio da década de 80 em diante, como mostra a edição especial da Revista Bizz (quatro meses antes da edição da Cult) dedicada a discutir, justamente, a importância do trabalho dos Paralamas como estopim dessa alavancada do rock nacional. Clássico, segundo a Bizz, exatamente porque conseguiu mesclar Bahia, Jamaica e África — na época as três matrizes mais significativas da música negra do Terceiro Mundo, conforme explica Jamari França, na biografia oficial do grupo, Vamo batê lata (2003) — à linguagem pós-punk britânica, antes a maior orientação sonora presente nos trabalhos das bandas nacionais. A cegueira ou desconhecimento da importância desses trabalhos anteriores à época em que a música “jovem” voltou a “soar” como brasileira, é parte, ainda, de um preconceito e resistência que se estabeleceu entre artistas brasileiros e alguns setores da imprensa, no início dos anos 80. Tal postura inviabiliza a percepção produtiva do que foi construído nesse período, quando a tendência era separar completamente o rock da MPB — na época, essa postura excluidora era indicada e aplaudida pela mídia, que destacava na aproximação com as bandas inglesas o único caminho possível para quem quisesse soar como rock no Brasil. Ao contrário de seguir tal orientação, os trabalhos acima mencionados aproximam-se das experimentações trazidas por Gilberto Gil, em Refazenda (1975), Refavela (1977) e Realce (1979), e Alceu Valença em Cavalo de pau (1982), retomando, portanto, de onde Raul Seixas, Novos Baianos e A Cor do Som haviam parado, o que resultou, segundo Pedro Só, “num

64 A “ponte” entre MPB e o rock, inventada pelos Paralamas, é mencionada nos discursos de todas as bandas que vêm depois da geração 80, como Skank, Pato Fu, Chico Science & Nação Zumbi, Mestre Ambrósio, Mundo Livre S/A etc. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

registro histórico de um momento em que o pop nacional perdeu a vergonha de ser mulato” (2006, p.30). Essa perda de vergonha mencionada pelo jornalista, na matéria-homenagem da revista quando o álbum Selvagem? completou 20 anos de lançamento, remete diretamente ao panorama musical de 1982-86, quando ser roqueiro no Brasil estava ligado a uma apropriação e reprodução de tudo que formava o glamouroso cenário pop britânico. Inicialmente, a contradição entre “a vontade de ser inglês das bandas nacionais” — que se refletia na linguagem musical, nos temas a serem trabalhados, tipo de roupa, modo de vestir, corte de cabelo, comportamento, pose nas fotos, performance nos palcos, postura junto à imprensa, público e meio musical e até nos nomes dos grupos — e o desejo de pôr em circulação o legado desconstrutor do movimento punk não deixava perceber com clareza a complexidade cultural com que o rock nacional começava a lidar. Todavia, cerca de cinco anos após a explosão do rock brasileiro, muitas bandas já buscavam registrar em seus trabalhos essa consciência de que não vivia na Inglaterra pós-punk, e, sim, num país de periferia, nascido do cruzamento da cultura européia com a indígena e a africana. Esse realinhamento de fuga ou reorientação é fundamental para se compreender co- mo algumas bandas dos anos 80 conseguiram amadurecer, refletindo e rompendo com a mas- sificação dos modelos postos em circulação pela cena pós-punk ou new wave inglesa e se in- serindo no “trânsito original” fundado pela MPB entre alta e baixa cultura. Assim como os Paralamas, a Legião Urbana também faz parte, de forma ativa, desse clima de redemocratiza- ção estética e sócio-político-cultural vivida na década de 80 no Brasil. No entanto, a captura desse cenário em ebulição não é feita pela Legião através de uma sonoridade híbrida, pois a banda de Renato Russo é uma das poucas no Brasil que começou e terminou com a mesma textura: folk e guitarra anos 80, acrescidos da agressividade dos três acordes a la Ramones. Na verdade, é pelo apuro da palavra que RR procurou atingir seu público brasileiro. Sua capaci- dade de expressão faz suas letras serem usadas até hoje, por exemplo, em passeatas e mobili- zações coletivas que reivindicam mudanças sociais, culturais e/ou legislativas. Além disso, elas põem em pauta questões específicas de toda uma geração que não mais se via representa- da pelas canções oriundas de artistas da Música Popular Brasileira daquele período. Silviano Santiago circunscreve o momento histórico da transição do século XX “para seu fim”, no Brasil, “ali pelos anos de 1979 a 1981”, quando, segundo ele, “é exigido do crítico um rigor para lidar com os problemas e desafios oriundos de uma mudança no paradigma das artes, quando caem as muralhas que separavam o erudito do popular e do pop” (1988, p.11). Dito de outro modo, esse período assinala um momento específico em que não Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

foi mais possível ignorar as explosões e fragmentos de uma cultura heterogênea e a força de suas representações artísticas, não geradas dentro dos paradigmas de uma tradição livresca, mas no dia-a-dia das ruas, através dos mecanismos de mediação cultural existentes em seus objetos artísticos, que, a partir de então, passam a estruturar uma metodologia de leitura, pesquisa e análise. De lá para cá, muitos trabalhos foram postos em circulação com esse novo olhar e essas novas possibilidades de método científico-acadêmico — a consolidação dos Estudos Culturais nos cursos de pós-graduação em Letras de todo o País é um resultado direto disso. Longe de discutir as conseqüências (complexas e carentes de melhor análise) de “se esvaziar o discurso poético de sua especificidade”, as conseqüências de apreender o poema no que ele “apresenta de mais efêmero, ou seja, na sua transitividade, na sua comunicabilidade com o próximo que o deseja para torná-lo seu” (1988, p.14) — talvez uma das razões pelas quais temos, hoje, um dos períodos de maior empobrecimento do ensino de literatura no Bra- sil —, quero utilizar a análise do ensaio acima mencionado para aproximar o surgimento do rock brasileiro dos anos 80 a essa época de abertura nacional, quando, segundo Santiago, for- ma-se e se consolida aquilo a que Guy Debord chamou de sociedade do espetáculo (1995), ou, ainda, quando “a cultura brasileira se veste com as roupas transparentes e festivas da de- mocratização” (SANTIAGO, 1998, p.11). Assim, os anos de 1981 e 82, que são lembrados como um período em que o Brasil enfrentava uma inflação econômica quase impossível de ser vencida, são, também, mencionados como uma época de abertura sócio-política e cultural; como um período de renovação de costumes e modos de vida; uma época em que já se perce- biam os rumores das transformações trazidas e consolidadas pelos anos seguintes, com a re- democratização pacífica (anunciada anteriormente pela Anistia, assinada em 1979 pelo então presidente João Baptista Figueiredo) e sua ampliação, anos depois, através da Constituição de 1988; um tempo de descentralização de mercados; uma explosão de manifestações públicas contra o autoritarismo e a censura; um período de vitória de greves históricas etc. Geralmente, se estabelece no panorama histórico-político-econômico desse tempo uma relação direta com a crise mundial do petróleo, de 1973, que obrigou países submetidos a regimes ditatoriais a buscarem uma reestruturação das relações entre Estado e sociedade, Estado e mercado, Estado e contexto global. O Brasil entra na década de 80 ainda sofrendo os efeitos da política-nacionalista do presidente Médici, e, portanto, em descompasso com os movimentos globalizantes anunciados pelos rumos do capitalismo em todo o mundo e simbolizados pelo fim da Guerra Fria e unificação das Alemanhas Oriental e Ocidental. Tal descompasso resulta numa luta ideológica, protagonizada principalmente dentro e pela Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

imprensa nacional, em defesa do livre fluxo de capitais contra quaisquer propostas de políticas de cunho estatais ou nacionalistas. Estava definido, assim, um campo de forças que ainda hoje persiste no nosso horizonte político: os defensores de uma liberalização da economia e descentralização do mercado versus os defensores de políticas socialistas e do maior controle estatal. Nesse cenário, a geração 80 era aquela que, por qualquer motivo, ia para a rua realizar passeatas e atos de protestos, mas, ao mesmo tempo, era a fiel consumidora dos enlatados norte-americanos (a exemplo de séries como Casal 20, Os gatões, A gata e o rato, A ilha da fantasia, Jeanne é um gênio, O incrível Hulk, Manimal, As panteras, Profissão perigo), produções que mostravam situações e personagens completamente distantes da realidade aqui vivida. Trata-se de uma geração que é herdeira, na prática, da perspectiva aberta por Walter Benjamin (1983) — para quem a perda da sacralidade da obra de arte é recompensada, através da reprodução técnica, pelo favorecimento de uma relação mais próxima entre obra, artistas e público —, além de ser beneficiada pela visibilidade do processo sociocultural presente na produção dos objetos artísticos e pela emergência das microhistórias — nascidas de uma nova concepção de que toda e qualquer história passa, antes, pelo indivíduo, sendo o discurso acerca do cotidiano dos homens e mulheres mais valorizado do que o das grandes narrativas. Hoje, na farta literatura produzida acerca da década de 80 no Brasil, um pesquisador pode encontrar de tudo: grandes reportagens, publicadas em etapas a partir dos anos 90, a exemplo da série da Revista Bizz sobre as bandas de maior impacto mercadológico e geracional (Titãs, Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Engenheiros do Havaí e Ira!), em que os próprios músicos repassam a história de suas carreiras; biografias coletivas (Vamo batê lata, de Jamari França, sobre Os Paralamas do Sucesso; A vida até parece uma festa, de Hérica Marmo, sobre Os Titãs) e individuais (Só as mães são felizes, de Lucinha Araújo e Regina Echeverría, sobre Cazuza); livros de entrevistas (Conversações com Renato Russo, Renato Russo de A a Z, da Letra Livre; O diário da turma 1976-1986: a história do rock de Brasília, de Paulo Marchetti; Letra, música e outras conversas, de Leoni); edições apenas com partituras de músicas; artigos acadêmicos (“Rastros de memórias, histórias de uma geração: a exposição Renato Russo Manfredini Jr.”, de Georgete Medley Rodrigues e Angélica Alves da Cunhas Marques); dissertações de mestrado (Depois do fim, de Angélica Castilho e Erica Schlude, uma análise crítico-literária das letras da Legião Urbana; Cultura rock e arte de massa, de Antônio Marcus Alves de Souza, análise do rock nacional como arte e entretenimentos, De lugar nenhum a Bora Bora: identidades e fronteiras simbólicas, de Júlio Naves Ribeiro); ensaios jornalísticos (BRock – o rock brasileiro dos anos 80, de Arthur Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Dapieve; Dias de luta, de Ricardo Alexandre; Quem tem um sonho não dança: Cultura Jovem Brasileira nos Anos 80, de Guilherme Bryan); enciclopédias e almanaques (ABZ do rock brasileiro, de Marcelo Dolabela, Almanaque anos 80, de Luiz André Alzer e Mariana Claudino). Além de toda essa produção escrita, existem sites e eventuais programas de rádio e TV que disponibilizam informações, músicas, galeria de fotos, entrevistas e depoimentos dos mais diferentes artistas e bandas que fizeram parte desse período. De modo que não se fala, aqui, de uma época artístico-cultural carente de registros históricos, mas de um período que já possui uma presença consolidada no panorama das produções artísticas nacionais. Retrospectivas, debates, comparações, álbuns, diários, fanzines, reportagens, revistas, jornais, galerias de fotos, blogs, depoimentos, ensaios, biografias, perfis e documentários são algumas entre tantas maneiras de se registrar um tempo, um fragmento da cultura, e essa necessidade, desde o início, esteve presente tanto no imaginário das bandas do período em questão quanto na de seu público, conforme explicitado abaixo por Renato Russo:

O Estado: – Qual é a maior contribuição do rock enquanto fenômeno de massa no Brasil? RR: – Um resgate da memória nacional. O Estado: – Memória do quê? RR: – Memória do que está sendo feito. Por exemplo, se você pegar a carrei- ra da Rita Lee, verá que ela é muito melhor documentada do que a do Capi- nam, e eles eram contemporâneos. O rock é uma arte bastarda que está liga- da ao mecanismo de massa, à informação, documentação. Não é como Heri- velto Martins, Noel ou Pixinguinha, sendo que os dois últimos morreram e a gente não sabe mais nada. Se você quiser saber o que foi a Bossa Nova, que foi um movimento muito mais importante, não vai ter informação. Eu já vi retrospectiva do Legião Urbana na televisão, quer dizer, são informações de arquivo e a gente tem apenas 3 anos de carreira. A geração rock coleciona muito, preza muito a informação, é o maníaco de histórias em quadrinhos. [...] (RUSSO, 1988).

A quantidade, evidentemente, não revela qualidade, mas um gosto pelo registro, pela coleção, pelo arquivo, e uma constante facilidade de utilização das diversas ferramentas que a tecnologia proporciona para preservar o experienciado, o vivido. É a emergência das microhistórias, de que nos fala Sandra Pesavento (2004), que une os artistas dos anos 80, suas gravadoras, o público e a mídia em torno de um desejo de produzir, eles mesmos, as narrativas desse tempo, que se alimentava de crescentes inovações tecnológicas. Nesse sentido, essa geração lançou mão de todos os recursos disponíveis para conquistar, ampliar o alcance de suas produções (caso dos artistas, das bandas e gravadoras), conhecer, consumir, colecionar (caso do público), buscar e lançar informações, registrar, legitimar e pôr em circulação (caso da mídia). Essa relação direta com a tecnologia é uma das marcas desse Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

tempo em que se vivia a abertura política, moral, cultural e sexual65 da sociedade brasileira. Assim, o surgimento e solidificação da indústria do espetáculo, a disseminação do rock, do punk, do heavy metal, do reggae, entre outros estilos mais presentes na década de 80 no País, modificaram o conceito de urbanidade nas grandes cidades. Evidentemente, o Brasil já conhecia, sonora e esteticamente, o que se chama de música rock — através de bandas e artistas como The Fevers, Renato e Seus Blue Caps, Os Incríveis, Jovem Guarda (1962-65), Raul Seixas (1964), Mutantes (1968), Secos & Molhados (1971-74), Vímana (1974), e da carreira solo de Rita Lee com Roberto de Carvalho (1972) —, mas esses nomes não formavam uma geração ou projeto estético geracional, pois se inseriram isoladamente no cenário brasileiro. É nos anos 80 que surge de maneira coesa e explosiva um universo cultural com bandas e estilos variados, um mercado fonográfico voltado para o público jovem consumidor de rock, programas de TV e rádio, revistas, filmes e uma moda e linguagem próprias. Além de fartamente documentado, esse período de efervescência cultural é visto tan- to de maneira positiva, pelos que viveram a época (como produtores, jornalistas e/ou consu- midores), quanto de maneira negativa, por uma pequena parcela que se colocou contra o cha- mado rock brazuca ou rock tupiniquim — adjetivos que por si só já denotam um olhar pejora- tivo, como se o que se produzisse no País fosse desconectado e, portanto, inferior ao que se produzia no resto do mundo. Assim, os anos 80 são o período de emergência e profusão da música rock, mas, contraditoriamente, é também a década em que os roqueiros nacionais re- cebem mais críticas e achaques da mídia especializada — que, curiosamente, no Brasil, só pôde existir concretamente devido à cena promovida pelas bandas nacionais —, do público mais velho (normalmente consumidor de rock estrangeiro, principalmente dos anos 60 e pro- gressivo) e até de seus próprios pares (a exemplo das brigas e bate-bocas que, nessa época, percorriam as revistas e jornais do País, como Os Paralamas do Sucesso versus Lobão, Capital Inicial versus Legião Urbana, Legião Urbana versus Titãs, Legião Urbana versus os remanes- centes dos anos 80, como Uns e Outros, Inimigos do Rei e Nenhum de Nós). No trecho da entrevista de Renato Russo, anteriormente citado, está presente, também, o processo de inserção conflituoso de sua geração e seus produtos artísticos no âmbito da cultura nacional, dominada por estilos musicais populares, como a MPB e a Bossa Nova, que sempre gozaram de prestígio na sociedade brasileira. Ao responder à pergunta do jornalista — que pode ser resumida na velha expressão latina ad quid venist? — o cantor acena

65 Os impasses que a AIDS trouxe a essa abertura moral e sexual servirão de pano de fundo para o quarto capítulo e, por isso, não são problematizados aqui. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

para uma funcionalidade do rock, desde já, posto como gênero menor, pois menos importante que a Bossa Nova, nas palavras do próprio roqueiro. A perspectiva do compositor não contempla a crença em adquirir, com o gênero musical escolhido para suas produções, “a legitimidade emocional profunda”, de que nos fala Benedict Anderson, em Nação e consciência nacional (1989), e assim tornar seu produto representativo da cultura brasileira, tal como são os outros dois estilos musicais brasileiros mencionados. Na verdade, RR não responde diretamente à pergunta essencialista do repórter, como se previsse o embate ou o terreno para onde ele levaria. Ele desloca a questão e, em vez de oferecer definições às dúvidas que pairam sobre a cena rocker, prefere jogar com as necessidades típicas de sua geração (colecionar, arquivar, prezar a informação) e a falta de organização das gerações anteriores em torno de suas próprias carreiras e contribuições para a memória cultural brasileira. Seu raciocínio mostra que colecionar tem um papel importante no novo panorama dessa sociedade, pois não adianta ser rica em estilos musicais (Herivelto Martins, Noel Rosa, Pixinguinha, Bossa Nova, Capinam), e pobre na dinâmica de sua preservação e circulação. Nesse jogo de não responder diretamente, formula-se uma resposta que, mesmo ausente na superfície do discurso, está ali, metamorfoseando-se em riso silencioso, passando, simultaneamente, de resposta à indagação às gerações anteriores: de onde vêm as certezas de que tudo que vocês fazem é nacional se nem registram o que fazem para a nossa memória? Se nem preservam às novas gerações os seus legados, como eles funcionarão, futuramente, como representativos de valores culturalmente nacionais? Como e onde pesquisar se quisermos entender a gênese disso que sempre nomeamos de música nacional? A memória, então, como reduto onde se aloja a “riqueza” dessa música nacional é falha, desorganizada, frágil. Na continuidade dessa mesma entrevista e em outras, podemos compreender melhor o atrito que existiu entre a geração musical já estabelecida, denominada de MPB, e a dos anos 80. Trata-se de duas forças culturais que se colocam de maneira antagônica apenas para demarcar seus lugares na mídia e no mercado. Alguns anos mais tarde, esse atrito se diluiu e ambas já se tornavam parceiras, uma herdeira do legado da outra, o que fez com que o mercado nacional roqueiro, já consolidado a partir de 1988, visse sem espanto os artistas consagrados da MPB gravarem músicas de bandas nacionais, como Ney Matogrosso, Zizi Possi e Gal Costa gravando Paralamas e Cazuza; Roberto Carlos com os Titãs; João Gilberto gravando Lobão; Erasmo Carlos gravando Legião Urbana; o programa Chico & Caetano, da Rede Globo, convidando bandas de rock para suas edições nas noites de sexta-feira; e roqueiros como Paula Toller (Kid Abelha) e Roger Moreira (Ultraje a Rigor) gravando ao lado de Elza Soares, Beth Carvalho, Martinho da Vila, Tom Jobim, Nara Leão, entre outros Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

155 nomes consagrados da música brasileira que integraram o projeto Nordeste Já, uma versão nacional do We are the world – USA for África, em prol das vítimas da seca nordestina de 1985. Além disso, houve um número considerável de duetos entre roqueiros e emepebistas por ocasião da febre de Songsbooks que tomou conta do mercado fonográfico brasileiro, no final dos anos 80. O atrito inicial entre as duas gerações diferentes foi, então, dissipado, por um dinamismo de parcerias e intercambiamento próprios de qualquer universo artístico, mas praticado de forma muito mais constante no mundo fluido da música. A fala de RR, no entanto, traça uma síntese desse panorama, dessa briga por espaços e por reconhecimento público, mostrando, na prática, como a cultura rock se efetivava enquanto dispositivo utilizado por toda uma geração:

RR: – Outra contribuição é a possibilidade do jovem brasileiro se conhecer e perceber que, mesmo dentro da igualdade de um protótipo – todos eles usam je- ans e vão ao shopping center –, existem as diferenças regionais. De repente, tem um conjunto que fala daquilo que você sente e é o mesmo que as pessoas sen- tem. E descobre que não está mais sozinho. O Estado: – Por que esta juventude está tão paralisada? RR: – Quem não tem uma rede embaixo, não vai tentar um triplo mortal. O movimento das esquerdas nos anos 60 não deu em nada. Agora tem que tentar um novo caminho sem ter nenhuma saída: o povo está sem educação, sem ali- mentação e a estrutura política está totalmente sem base ética, então fica muito difícil. Não tem modelo, nem referencial, nem mentores que indiquem o cami- nho. Porque as gerações anteriores, além de estarem totalmente desiludidas, jo- gam toda essa desilusão em cima dos próprios jovens. Um cara como Ferreira Gullar dizer que a gente é uma geração sem caráter, é de perder a confiança. O Baden Powell também falou isso. E eram pessoas que eu respeitava. Então, em quem é possível confiar? Em Caetano Veloso, mas ele também está fora disso. O máximo que você pode fazer é tentar se interiorizar, buscar algo mais tribal, de sobrevivência mesmo, tanto a nível psíquico-emocional como intelectual, in- formativo, social, político, sexual, tudo. A questão sexual tem a Aids. E a Aids coloca toda e qualquer ação humana sobre outro prisma. (RUSSO, 1988).

A Legião Urbana começa seus ensaios e composições em 1983, porém, só aparece para o Brasil em 1985, com o álbum de estréia que leva o próprio nome da banda e traz músicas que fizeram muito sucesso no País inteiro, como “Será”, “Ainda é cedo”, “Geração Coca-cola” e “Soldados”. A entrevista citada é de 88, portanto, a banda estava no seu terceiro álbum e caminhava paro quarto. A sedimentação do rock nacional acontecia tanto através do desenvolvimento de uma industrialização de sua cultura (mercado fonográfico, empresas, mega-shows, público consumidor etc.), quanto da incorporação, por parte dos novos artistas, de elementos sonoros típicos da música brasileira (movimento iniciado com os Paralamas do Sucesso, no seu terceiro álbum Selvagem?, de 1986, conforme abordagem anterior). Ainda Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

assim, a legitimação e o reconhecimento da cultura rock no cenário brasileiro foram ruidosos e solicitaram articulações discursivas, e não apenas produções de álbuns, shows e conquista de mercados. Percebe-se que, ao ser acusado de pertencer a uma geração sem caráter, o músico mobiliza seu repertório de informações acerca dos fatos que marcaram as gerações anteriores (a luta das esquerdas, por exemplo), devolvendo o ataque com uma nova acusação: a culpa das desilusões das gerações anteriores é somente delas, pois foram elas que fracassaram, embora seu fracasso atinja os jovens que se encontram sem caminhos e sem referenciais para construir saídas. A postura é típica da cultura rock, que se firmou, justamente, num terreno em que as questões individuais são muito mais importantes do que as coletivas. Dito de outro modo, o rock, desde o seu início, sempre buscou construir um universo individual, em que não desapa- recem as noções de fronteiras formadas pelas diferenças de classes, gênero, etnias, nacionali- dade, orientação sexual etc., mas se destacam, sobretudo, visões subjetivas acerca de temas que interessam a maioria dos jovens em quase todo o mundo. Questões como crescimento e comunicação pessoal, relacionamentos afetivos e familiares, independência financeira, liber- dade individual, descoberta do sexo, uso de drogas, formação escolar-acadêmica e inserção no mercado de trabalho, entre outros, são muito mais urgentes do que a demarcação de naciona- lidade, por exemplo, ou a postura política mediada pela por ideologias partidárias.

3.2 CONSEGUI MEU EQUILÍBRIO CORTEJANDO A INSANIDADE

Dentro desse cenário, Renato Russo se insere de forma contraditória, pois traz essa vertente roqueira oriunda do movimento punk, que o sincroniza com o seu tempo, mas tam- bém busca um diálogo com a tradição dos trovadores medievais, performatizando um modelo anacrônico, que, em muitos momentos, provocava o estranhamento de seu público. Além des- se atrito entre cultura rock e trovadorismo, o músico por vezes investia numa postura de out- sider, mesmo quando entre os seus próprios pares, o que lhe rendeu a imagem de inacessível e distante, dois dos adjetivos mais presentes nos depoimentos dos outros roqueiros que com ele conviveu — incluindo aí os membros da banda. Sabemos que, no amor cortês, o objeto de desejo era a mulher distante e inacessível. Segundo a maioria dos estudiosos e historiadores acerca do fenômeno do amor romântico, sua emergência no mundo ocidental constitui uma derivação da prática da estética provençal, e a Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

mudança sutil do amor cortês para o romântico se dá a partir da transformação do objeto erótico (a mulher) em sujeito do desejo. Dessa forma, é a emancipação feminina, lenta e gradual, que vai conduzindo o discurso sobre o amor para o plano da exterioridade, revolucionando os papéis sociais e apostando na manifestação do afeto como um ato de liberdade, de transgressão dos limites impostos pela cultura falocêntrica, na qual o amor estava restrito à obediência dos pactos entre famílias, através do casamento de contrato (PIORE, 2005). Um dos elementos mais fortes que compõem a discursividade do amor romântico é a atraente e ilusória idéia de que ele não é construído; que se trata de um sentimento totalmente involuntário. Amar um país, uma profissão, uma comida, um estilo musical e até mesmo o próximo (como reza a tradição cristã) são atitudes que podem ser desenvolvidas e, com a prática, tornarem-se cada vez mais fortalecidas, aperfeiçoadas; já o amor-paixão é fundado em cima de uma crença de que não pode ser cultivado, pois ele irrompe em nossas vidas, restando-nos tão somente transformá-lo em uma união voluntária ou não. Assim, o castigo ou dádiva de estar apaixonado só admite livre arbítrio após a captura, pois sua ação seria instantânea e inevitável. A despeito dessa utopia acerca da natureza involuntária de Eros, sabemos que, em termos práticos, cada época produz seu conceito de amor, mas cada indivíduo participa dessa produção de maneira ativa e singular. Nesse sentido, nenhum discurso amoroso pode prescindir da discussão da liberdade individual, sob pena de o amor resultar então como uma força coerciva, imposta ao sujeito. No nosso tempo, por exemplo, quando a demanda de amor é maior do que a oferta, a negociação se dá a partir de um deslocamento dessa demanda no plano da totalidade do afeto a ser ganho/gozado, para o plano hedonista da obtenção do maior número de fragmentos desse amor. Ou seja, para não se perder o controle sobre o próprio desejo, os indivíduos liquefazem os encontros amorosos, numa reedição dos conselhos clássicos de Ovídio, que ensinava os homens livres de Roma a evitar a prisão e a dor advindas dos jogos amorosos, através de uma exploração racional e erótica desses jogos. Todavia, não é a aderência a esses antigos conselhos do poeta clássico que marcam as práticas amorosas em nossos dias, mas o medo da dor e o desejo de permanecer alheio à presença da morte que, segundo Bauman (2006), orientam em geral a maneira contemporânea de lidar com o amor- paixão, transformando-o, por vezes, no maior fantasma a ser evitado por homens e mulheres na administração de suas práticas afetivas. O autor mostra que as fronteiras dessa negociação onde o amor-paixão é evitado em sua pulsão-Thanatos, reduzido à satisfação sexual ou obtenção de “prazer puro”, não podem ser vistas em sua clareza de limites, mesmo no mundo Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

contemporâneo, pois assim cairia a própria máscara de “natural” do amor romântico e ele seria compreendido também não como um mal a ser evitado, mas como uma construção. A maneira contemporânea de lidar com a ameaça do amor-romântico, assemelha-se, por vezes, a uma derivação do sentimento de recusa catalisado pelo mito do Don Juan — um dos quatro mitos do individualismo moderno, trabalhados por Watt (1996) —, que opta por despertar a paixão no maior número de mulheres possíveis, evitando, assim, dedicar-se ao cultivo da relação amorosa com uma delas. Dessa forma, ele não se entrega ao amor, e pode falar dele à exaustão, objetivando somente enredar suas presas através do discurso amoroso. Em Don Juan, falar do amor equivale a não amar; e a inconstância o protege de ser vencido pela especificidade de um amor único. Ele utiliza, então, um dos códigos amorosos, o falar o amor, o dizer dele, por ele e para ele, justamente para escapar ao seu laço e assim não agoni- zar almejando uma felicidade que pode ser negada ou finita, a depender do desenvolvimento dessa paixão. Quando o amor é separado da satisfação sexual, cria-se a polaridade entre corpo e alma, estetizada, por exemplo, por André Gide, em romances como A porta estreita (1908), e Isabelle (1909): o interditado fascina e congela o objeto amado dentro da impossibilidade do sexo; assim, é preciso amar o que não se pode tocar, e fazer amor (sexo) com quem não se ama. A dor então é cristalizada como condição “essencial” do amor-romântico, enquanto o prazer é vinculado ao espaço onde a paixão não habita. O imediatismo apontado por Bauman hoje advém não de um abandono dessa polaridade, mas de uma opção pela satisfação, pelo hedonismo, que faz o amor ser performance, não dor, muito menos morte. Todavia, mesmo recalcada, a parceria estreita do amor com a dor permanece, não a- penas nos jogos de rima da poesia ruim, mas sempre que buscarmos uma origem para sua emergência entre homens e mulheres. Segundo João Barrento, em “Receituário da dor para uso pós-moderno” (2001), na modernidade se assiste não apenas ao processo de empobreci- mento da experiência humana, incapaz de ser narrada ao outro — conforme analisa Walter Benjamin, em “O narrador” (1983) —, mas, sobretudo, o começo da travestização pós- moderna de toda a experiência afetiva em espetáculo ou jogo sem compromisso. Esse proces- so de travestização inicia-se desde o século XIX, quando há o divórcio entre o amor e a pai- xão: esta passa a ser vista como uma patologia e aquele como um projeto a dois, cuja organi- zação carecia de racionalização e moderação, conforme os ensinamentos cristãos. Em “O mal estar na civilização”, Freud avisa que sempre se perde alguma coisa quando se ganha outra. Devemos lembrar que na Modernidade os valores a serem cultivados pelas civilizações eram a beleza, a limpeza e a ordem. A ordem regulamenta a maneira de se Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

fazer as coisas; a beleza é o valor da forma a ser reconhecido pela civilização, o prazer harmônico; a limpeza indica o grau de civilização, pois ser sujo é incompatível com ser civilizado. Para Freud, nesses três pilares modernos estava criada uma regra: “o princípio de prazer está aí reduzido à medida do princípio de realidade e as normas compreendem essa realidade que é a medida do realista” (1976, p.8). Freud alertava para o fato de que a civilização moderna precisava se “familiarizar” com a idéia de que há dificuldades inerentes e impossíveis de serem ordenadas nesse projeto (que ele chamou “natureza”) de civilização. No entanto, no entendimento de Bauman (1997) essa análise freudiana foi invertida e o mundo contemporâneo não opera mais com a rejeição ao instinto:

[...] Dentro da estrutura de uma civilização [a moderna] concentrada na se- gurança, mais liberdade significa menos mal-estar. Dentro da estrutura de uma civilização [a contemporânea] que escolheu limitar a liberdade em no- me da segurança, mais ordem significa mais mal-estar. Nossa hora, contudo, é a da desregulamentação. O princípio de realidade, hoje, tem de se defender no tribunal de justiça onde o princípio de prazer é o juiz que a está presidindo. ‘A idéia de que há dificuldades inerentes à nature- za da civilização que não se submeterão a qualquer tentativa de reforma’ pa- rece ter perdido sua prístina obviedade. A compulsão e a renúncia forçada, em vez de exasperante necessidade, converteram-se numa injustificada in- vestida desfechada contra a liberdade individual. Passados sessenta e cinco anos que O mal-estar na civilização foi escrito e publicado, a liberdade individual reina soberana: é o valor pelo qual todos os outros valores vieram a ser avaliados [...]. (1997, p.9)

Percebe-se que há um processo gradativo em que se associa o amor à escravidão, no século XII, emergindo daí o modelo de amor cortês que, mais tarde, servirá de cimento para o amor-romântico na Modernidade. No entanto, a partir do momento em que a mulher se libera do papel de objeto amoroso e passa a ser sujeito, positivando, assim, a reciprocidade e ligando a prática amorosa ao desejo e não ao contrato social, surge uma forte tendência na sociedade a dissociar Eros de Dionísio, separando o sexo/prazer do amor-paixão. Essa interdição não é estanque, pois assim como o discurso do amor faz girar a questão do poder, da liberdade individual e dos pactos firmados por livre consentimento entre os sujeitos, também faz deslizar a crença de que a paixão é patológica, de que o sexo sem amor é mais prazeroso, de que é impossível unir Eros e Dionísio. Na discursividade amorosa que circula na Modernidade entram, então, o paradoxo entre destino e liberdade individual; a exclusividade dos parceiros (mediada pela reciprocidade e pelo desejo de uma vida a dois); a utopia da fusão entre o corpo e a alma; o novo sentido dado à transgressão (que, na baixa Idade Média servia para superar os obstáculos entre o cavaleiro e a donzela, e na Modernidade serve para Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

ultrapassar os limites sociais, étnicos e culturais que separam e dificultam a sociabilidade de uma parceria); o difícil jogo de submissão e domínio entre os apaixonados que precisam equacionar a operação em que dois tendem a ser um. O “dois em um” do amor-romântico é um dos elementos mais agonizados nas letras de Renato Russo, que não pode se enquadrar no modelo heteronormativo ocidental do amor- romântico e também não deseja investir no modelo dissociado entre amor e sexo, de André Gide, por exemplo. Por isso, se a fusão já era um problema para o projeto amoroso heterosse- xual moderno, conforme explica Rougemount (2002), torna-se inviável na prática homoeróti- ca. Nesse sentido, podemos perceber que tanto na literatura de CFA quanto na música de RR há uma tentativa de dar conta dessa disjunção moderna entre amor e sexo, não se colocando como seguidores de Ovídio — que veria nessa disjunção uma forma de neutralizar as conse- qüências dolorosas do amor-paixão, investindo no sexo como uma arma eficaz para evitar a dor —, mas problematizando essa interdição, exaltando e investindo no mito do amor român- tico como forma de extrair dele saberes móveis, capazes de deslocar os lugares fixos por onde os discursos do senso comum tendem a levar a experiência do amor. Talvez CFA e RR sou- bessem que essa interdição é, justamente, o que o faz o amor se levantar enquanto signo não- capturável — os cacos de vidro, o dragão invisível, o plâncton que brilha, como tão bem defi- niu Caio Fernando Abreu —, retornar como fantasma que assombra e não cessa de comunicar o seu centro vazio, o seu mistério temido. A linguagem poética sabe bem desse mistério e está sempre procurando maneiras de traduzi-lo. Tal mistério (que em CFA se desvela como fluên- cia capaz de inventar e desinventar sentidos, imagens, possibilidades outras) é articulado por Renato Russo ora como o verdadeiro sentido da existência — “Enquanto a vida vai e vem /Você procura achar alguém/ Que um dia possa lhe dizer/ – Quero ficar só com você”66 —, ora como graça não concedida a todos, sobretudo não concedida a ele, que, à deriva, insiste em conhecer esse eterno devir do amor: “Pois naci nunca vi Amor/ e ouço d’el sempre falar/ Pero sei que me quer matar/ mais rogarei a mia senhor/ que me mostr’aquel matador/ ou que m’ampare d’el melhor67”. Dessa forma, podemos compreender o desejo de RR de dialogar com a tradição dos trovadores medievais como mais uma rasura do que propriamente uma atualização do modelo de amor cortês — cujo maior alvo era a transformação do amor não correspondido em tema fecundo para as produções poéticas. Ao mesmo tempo, esse diálogo pode ser visto como uma

66 Antes das seis. Uma outra estação, EMI, 1997. (faixa 67 Cantiga de Amor. Nuno Fernandes TORNEOL, século XIII, musicada por Renato RUSSO. Álbum V, Op. Cit. A canção foi escolhida como abertura tanto desse álbum quanto dos shows da turnê de 1992-93. Foi mantida a escrita original do poema. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

dissonância da suposta promiscuidade e rápida diluição das relações amorosas e sexuais, geralmente associadas aos modos de vida dos homossexuais masculinos. Investindo no jogo das construções do amor-paixão, à moda trovadoresca, RR perambula fora dos lugares guetizados que o senso comum destinou às demonstrações de afeto entre pessoas do mesmo sexo. A imagem fixa do homossexual como um caçador de novos parceiros é, então, abandonada em favor de um discurso de exaltação do amor romântico, para o vocalista, o único modelo capaz de unir a satisfação sexual e a fantasia da completude entre os parceiros. Assim, o compositor nega a estereotipificação das práticas homoeróticas, impossibilitando a codificação de suas experiências como resultantes de uma avidez doentia ou fútil, conforme reza o imaginário redutor sociocultural acerca das relações gays. A essa expectativa do senso comum, ele contrapõe discursos densos e ardentes de amor, carentes e isolados, irônicos e desesperados, problematizando sua própria condição de artista gay ou pansexual que afirma as afetividades, sem, contudo, negar o isolamento, as contradições e a dor a que estão sujeitas, ainda hoje, as redefinições das práticas homoeróticas em nossa sociedade. Suas letras se inserem, então, como ramificações de um projeto político e ético particular, que é assumido pelo cantor a partir da entrevista dada a Revista Bizz, em junho de 1990, quando afirma para o público sua preferência por homens — até então, qualquer pergunta mais íntima acerca de sua intimidade recebia do cantor respostas evasivas, como ocorre na já mencionada entrevista “Que roqueiro é esse” (Revista Manchete, 1987), em que, ao ser interrogado pela vida amorosa, ele responde que estava apaixonado por quatro pessoas no momento, mas como era muito tímido, preferia não falar no assunto. Agenciar uma ética e uma política de afetos no universo da cultura rock é inscrever um diálogo crítico, via linguagem poética, nessa vertente artística. Renato Russo, porém, não admite estar à vontade nesse espaço, uma vez que sua condição gay o afasta do estereótipo viril comumente incorporado pela maioria dos roqueiros. Nas letras e em entrevistas, ele a- borda essa dificuldade de diálogo no mundo rocker, explicitando não apenas a solidão e a incomunicabilidade como conseqüências diretas de sua escolha, mas, sobretudo, o quanto de aridez havia nesse cenário onde seus próprios ídolos não podem funcionar como estímulos imediatos para um agenciamento mais livre da sexualidade. Alguns versos da canção “Meni- nos e meninas”68 sintetizam bem esse percurso conflituoso escolhido pelo músico:

Quero me encontrar, mas não sei onde estou Vem comigo procurar algum lugar mais calmo Longe dessa confusão e dessa gente que não se respeita

68 Álbum As Quatro estações. EMI, 1989 (faixa 9). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Tenho quase certeza que eu não sou daqui

Acho que gosto de São Paulo Gosto de São João Gosto de São Francisco e de São Sebastião E eu gosto de meninos e meninas

Vai ver que é assim mesmo e vai ser assim pra sempre Vai ficando complicado e ao mesmo tempo diferente Estou cansado de bater e ninguém abrir Você me deixou sentindo tanto frio Não sei mais o que dizer [...] (RUSSO, 1989)

O que move o deslizamento do sujeito é uma “quase certeza” de não-pertencimento; é ela que atualiza a busca de “algum lugar mais calmo” fora do centro, que remete à idéia da melancolia e do outsider. A opção pelo advérbio “quase” torna ambígua a não-pertença abor- dada, afinal, ter uma quase certeza de não ser de um determinado lugar não equivale a afir- mar o não-pertencimento — é, antes uma problematização em aberto do que uma fixação da diferença. Ao mesmo tempo, percebe-se uma consciência de que o caminho escolhido é de difícil partilha, mas essa condição não é lamentada e, sim, assumida: “Vai ficando complicado e ao mesmo tempo diferente”. Embora existam muitas canções também dedicadas a mulheres e um registro de uma bissexualidade experenciada, como em “Ainda é cedo” (LU) e “Meninos e meninas” (AQE), sua escolha em cantar o amor entre homens, buscando inscrevê-lo na epidemia do discurso do amor romântico, ocorre num contexto complexo em que a cultura jovem no Brasil passou a ser ligada direta e imediatamente à indústria cultural69. Essa opção, por vezes, traz uma at- mosfera de estranheza à sua linguagem, uma vez que o que se discutia naquele momento eram questões mais ligadas à identidade da cultura juvenil, como o direito à liberdade individual ou os problemas com as autoridades e organismos sociais considerados opressores à expansão dos movimentos derivados do punk britânico. Essa estranheza talvez explique os confrontos envolvendo a banda e o público, que se materializaram, em alguns shows, numa sucessão de violências e atitudes questionáveis, a exemplo do incidente ocorrido em 18 de junho 1988, no Estádio Mané Garrincha, em Brasília,

69 O desenvolvimento dos meios de produção e consumo já era observado desde as políticas de abertura ao capital estrangeiro promovidas por Juscelino Kubitschek (de 1956 a 1961). No entanto, como se sabe, para que ocorra o desenvolvimento pleno dos produtos da indústria de massa é preciso que exista, na sociedade, o monopólio ou capitalismo de organização, pois é ele que permite a transmissão ampla de mensagens de alto poder de alcance, com seus fragmentos de idéias e cultura reproduzidos à exaustão em jornais, revistas, rádio, cinema, TV aberta e fechada, internet, ou em livros, história em quadrinhos, CDs, MP3 e 4, entre outros recursos mais contemporâneos — e isso se dá com maior alcance no País a partir dos anos 70. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

que resultou em cerca de 385 feridos, 60 pessoas presas e 64 ônibus depredados. As versões sobre esse conflito são várias, muitas desencontradas, sendo inexato até o número de pessoas presentes no estádio, pois as informações variam de 50 a 80 mil espectadores. As razões para essa espécie de tragédia no cenário de apresentações do rock nacional também variam: há versões (de fãs, da Revista Veja, da Rede Globo, da produtora do evento) que culpam o vocalista Renato Russo por ter proferido um discurso agressivo contra a platéia, com frases do tipo: “Quando vão atingir a maioridade? Eu me dei bem, estou aqui, ó, consegui chegar aonde eu queria. E vocês?”; outras (de fãs, do Jornal Correio Braziliense, da própria banda) que culpam a euforia do público e sua predisposição à violência. Antes do início do show, foram registradas depredações de vários ônibus vindos de cidades satélites; os portões foram arrebentados uma hora antes do espetáculo; a polícia, a cavalo, invadiu as filas e jogou seus cães contra a multidão; o público atirou bombinhas no palco, sandália nos músicos, quebrando um violão e provocando a série de discursos agressivos do vocalista; um fã subiu ao palco e agarrou Renato Russo pelo pescoço como se fosse estrangulá-lo, o que o fez se defender com golpes de microfone na cabeça do rapaz. Há, ainda, outras versões que culpam a produção do evento pela pouca segurança, palco baixo demais, número de ingressos à venda superior à capacidade do estádio, idéia infeliz de liberar as catracas quando havia 50 mil pessoas pagantes do lado de fora70. A esse episódio se somou um anterior, de dezembro de 1986, no ginásio Nilson Nelson, também em Brasília, que terminou com a morte de uma moça — a jovem foi empurrada por cinco rapazes num fosso que separava o palco da platéia, quebrou o pescoço e morreu na hora; isso ocorreu, por uma ironia trágica da vida, enquanto RR cantava “A dança”, uma canção contrária ao sexismo — e mais 20 pessoas feridas. Depois disso, a banda se recusou a tocar outra vez em Brasília, e manteve tal decisão até o seu final, em 1996. Esses confrontos não desfazem em absoluto a sintonia entre as músicas da Legião Urbana e seu público, nem contradiz a afirmação anterior de que a banda, na maioria das vezes, catalisou os anseios jovens, traduzindo-os em letras que se tornaram “hinos” de toda uma geração, tais como “Será”, “Geração Coca-Cola”, “Ainda é cedo”, (LU), “Tempo perdido”, “Fábrica”, “Quase sem querer” (Dois), “Que país é esse?”, “Mais do mesmo”, “Tédio com um T bem grande pra você” (QPE?) e “Pais e Filhos” (AQE), que, entre outras tantas, são exemplos significativos da articulação da banda entre contexto social e expansão da cultura juvenil. No entanto, ao contrário da espécie de integração presente nas reportagens, depoimentos e registros biográficos sobre o músico e o desenvolvimento de sua carreira

70 Para mais detalhes sobre esses tumultos entre banda e platéia, ver Revista Bizz, de agosto de 1988, edição 037, e também Arthur DAPIEVE. BRock: o rock brasileiro dos anos 80. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. p.129-139. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

artística junto ao público jovem, compreendo o surgimento e consolidação de RR no espaço da cultura rock como resultantes de um longo processo de criação e aprimoramento de um projeto estético-político minuciosamente elaborado anos antes de o País tomar conhecimento de suas músicas. É evidente que esse projeto ambicioso não poderia se inscrever em outro lugar que não fosse o universo multifacetado do rock, pois, além das condições facilitadoras do contexto dos anos 80 no Brasil, foi em Brasília, a capital do rock nacional, o lugar onde o cantor cresceu e acumulou suas maiores referências culturais, desenvolvendo um gosto por “turmas”, por “organização de tribos”, a ponto de sua figura ser considerada por todos que com ele conviveram como uma catalisadora cultural, alguém que estava sempre a juntar pessoas de tendências diferentes, a propor programas e atividades em conjunto, e, sobretudo, a colher e registrar pedaços expressos dessas subjetividades com as quais ele convivia, conforme se pode ler nos depoimentos de O diário da turma – A história do rock de Brasília (1976-1986), de Paulo Marchetti:

Loro — O Renato era um cara bastante espontâneo, fazia as coisas numa boa, tranqüilo... mas ele tinha uma coisa de querer ser manipulador da situa- ção. Adriane — O Renato tinha uma mania esquisita de gravar as conversas com as pessoas que iam na casa dele. Uma vez eu fui lá [...] e o Renato começou a fazer umas perguntas filosóficas. Parecia que ele estava manipulando a conversa. [...] O dia em que eu flagrei ele gravando nossa conversa, ele se explicou, pediu desculpas e desgravou a fita na minha frente. Eu fiquei sem reação porque estávamos conversando sobre coisas íntimas tipo infância, problemas e outras coisas desse tipo. Babu — Tente perceber uma coisa nas letras do Renato: ele fala o que as pessoas querem escutar, e pra ter essa percepção, tem de se informar com as pessoas em sua volta. Então, eu acho que ele fazia uma espécie de laborató- rio com essas gravações. Helena — O Renato dava uma importância muito grande pra esse negócio de ter uma Turma. Ele sempre gostou de preservar as amizades. Tinha vez que eu aparecia na casa dele às duas da manhã e ele me atendia numa boa. Jovan — Ele sempre perguntava sobre signos de horóscopo e nós o chamá- vamos de bicha. [...] Na verdade eu sempre o achei um pouco estranho. Ele me parecia ser bem mais velho do que os outros. Ele sempre foi diferente. (MARCHETTI, 2001, p.75-76).71

O lirismo e agressividade usados nas elaborações das músicas e em performances ao vivo utilizam cacos dessas pesquisas, desenvolvidas desde cedo pelo compositor, para causar empatia e reação no público jovem; no entanto, esse processo não foi feito sem confrontos

71 Loro (Jones) foi um dos guitarristas da banda Capital Inicial, que também se formou em Brasília, junto com a Legião Urbana; Adriane, Babu, Helena e Jovan fizeram parte da turma de Renato Russo, entre 1976 e 1984, em Brasília, antes de a Legião Urbana fazer sucesso nacionalmente. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

dolorosos, que terminaram por provocar no músico uma reserva em relação ao seu público — presentes em desabafos do tipo: “eles deram um empurrão numa menininha enquanto eu cantava ‘A dança’, meu!”; “eu não sou obrigado a agüentar moleque mal resolvido que vai pra show de rock tacar sandália na gente”72 — e a sua conhecida aversão a apresentações ao vivo. Na pauta de sua criação, estão talvez ambições muito maiores do que aquelas possíveis de serem desenvolvidas no universo rocker, como a necessidade de inserir o desejo e experiência homoeróticas na discursividade do amor romântico; o mergulho na melancolia e na visão de outsider como forma de viabilizar o processo de criação; o uso consciente da rebeldia punk como mecanismo estratégico para construção de uma carreira vitoriosa na indústria cultural; a reflexividade acerca de como ainda se podia criar um espaço próprio dentro desse universo fragmentado da cultura rock, com tendência à massificação e diluição veloz de seus próprios produtos.

3.3 SOU UM ANIMAL SENTIMENTAL, ME APEGO FACILMENTE AO QUE DESPERTA MEU DESEJO

Renato Russo buscou nas letras de suas músicas um espaço para refletir sobre o lugar do desejo e da vivência homoeróticas na discursividade do amor romântico, transformando as relações afetivas em pequenas histórias, fragmentadas e fluidas, dessa busca desesperada de compreensão do mito do amor. Desesperada porque deixava perceber na materialidade de sua expressão o entrecruzamento de aspectos diversos e antagônicos de conceituações do mito amoroso enquanto fenômeno universal, dádiva concedida, e, ao mesmo tempo, invenção escravizante de onde não se escapa sem sofrimento. “Será” (LU), a primeira música da Legião Urbana a fazer sucesso no País, encena uma história de resistência ao jogo de domínio e submissão do amor: “Tire suas mãos de mim / Eu não pertenço a você/ Não é me dominando assim/ Que você vai me entender”. Nela, sobressai o desejo de permanecer independente, manter-se “um”, contrariando a tendência do mito romântico que não pressupõe o corte entre os parceiros, mas sua fusão. A continuidade da letra mostra a intenção da voz de desenvolver essa dissonância, problematizando o próprio conceito de amor que seria oferecido dentro dessa relação de domínio e submissão: “Eu posso estar sozinho/ Mas eu sei muito bem onde estou/ Você pode até duvidar/ Acho que isso não é amor”. O verbo “achar”, escolhido para

72 Frases extraídas do programa MTV Entrevista, em 23 de março de 1993, conduzido por Zeca Camargo, que entrevistou o músico em sua residência, no Rio de Janeiro. Essa entrevista encontra-se disponível no DVD Renato Russo Entrevistas MTV, lançado em 2006, pela EMI do Brasil. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

desconstruir aquilo que se oferta como amor, se insere como uma opinião deslizante, pois não se tem certeza, apenas se “acha” que tal modelo não atende à concepção e demanda de afeto do sujeito. A partir desse não-entendimento, os laços podem ser quebrados ou reiventados:

Será só imaginação? Será que nada vai acontecer? Será que é tudo isso em vão? Será que vamos conseguir vencer?

Nos perderemos entre monstros Da nossa própria criação Serão noites inteiras Talvez por medo da escuridão Ficaremos acordados Imaginando alguma solução Pra que esse nosso egoísmo Não destrua nosso coração.

Será só imaginação? Será que nada vai acontecer? Será que é tudo isso em vão? Será que vamos conseguir vencer?

Brigar pra quê? Se é sem querer Quem é que vai Nos proteger? Será que vamos ter Que responder Pelos erros a mais Eu e você? (RUSSO, 1985)

O refrão questiona as práticas conflituosas do amor, colocando na cena palavras como “imaginação” (que insere o sentimento no plano da vontade individual e da criatividade); “acontecimento” (que aponta para o “fora da relação”, o algo externo que pode vir a transformar esse conflito); e “vitória” (que sedimenta a idéia de embate trazida pelos versos iniciais). Apesar da agressividade da letra, complementada pela performance do músico que, ao executá-la ao vivo, se debatia entre lado esquerdo e direito, representando o embate de forças opostas com o próprio corpo, “Será” é uma música de amor, mas de um amor que se desespera em busca de um amparo (“Quem é que vai/ nos proteger?”) e de outras formas de interação entre os parceiros que não resultem em reprodução automática de atitudes contrárias ao próprio desejo (“Brigar pra quê?/ Se é sem querer?”). Percebe-se que desde o início é a procura de uma ética, uma outra forma de lidar com as forças contraditórias da relação amorosa, que orienta a escrita de RR; a voz que ressoa em sua música fala de uma Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

necessidade de investir numa conduta “limpa”, que coloque os amantes de frente com o “egoísmo” e com “os monstros de sua própria criação” e os faça refletir sobre tudo isso. Nesse mesmo álbum, estão “Ainda é cedo”, “Perdidos no espaço”, “Soldados”, “Teorema” e “Por enquanto”, todas abordando o mito do amor enquanto destino, orientação sexual ou invenção oriunda da vontade do indivíduo. A mais complexa delas, entretanto, é “Ainda é cedo”, que se transformou nas apresentações ao vivo no momento máximo da performance do vocalista, que se entregava a um ritual catártico, pulando, sacudindo os braços um contra o outro, como se estes não fossem parte do mesmo corpo, jogando-se ao chão, alternando gritos e sussurros, auto-acariciando-se e andando de um lado ao outro do palco, enquanto enrolava-se no fio do microfone, cantando os versos da música e enxertando no meio deles trechos de “Gimme Shelter”, “(I Can’t Get No) Satisfaction”, “Jumpin’Jack Flash” (Rolling Stones), “My girl” (The Temptations), “Pretty Vacant” (Sex Pistols), “Like a Prayer” (Madonna) e “Bigmouth strikes again” (The Smiths), compondo, assim, uma das danças mais agressivas e desesperadas do cenário do rock nacional. A trilha dessa pequena história de amor mostra uma errância que começa desde a dor da confissão de um importante laço afetivo que é desfeito (“Uma menina me ensinou/ quase tudo que eu sei/ era quase escravidão/ mas ela me tratava como um rei”), passando pelo im- passe da descoberta de uma orientação sexual diferente (“Sei que ela terminou/ O que eu não comecei/ E o que ela descobriu/ Eu aprendi também, eu sei”), até a consciência dos limites entre o que pode ser comunicado ao outro sem que isso implique um caminho sem volta (“Ela falou: – Você tem medo/ Aí eu disse: – Quem tem medo é você/ Falamos o que não devia/ Nunca ser dito por ninguém”). Sobre todos esses elementos, paira a certeza de um “eu” que narra os cacos de uma impossibilidade: naquele tempo, era cedo demais para ele assumir o desejo e a identidade “escondida” por aquela relação heterossexual. O reconhecimento dessa impossibilidade, que no passado teria representado um conflito doloroso com a pessoa amada, soa ora como um lamento, ora como um pedido de desculpas73, mas, acima de tudo, funciona como um acerto de contas com esse “eu” perdido, capaz de se abandonar numa relação de “quase escravidão” apenas porque lhe era conveniente, porque era “tratado como um rei”. Novamente, o recontar as microhistórias incide numa busca de ética, numa consciência de que é preciso se reinventar enquanto sujeito de seu próprio tempo, de seu desejo e de sua prática.

73 Em alguns shows, como os de 10 e 11 de agosto de 1990, postumamente lançados no álbum duplo As quatro estações ao vivo (2004), o vocalista declara que todas as músicas ali enxertadas eram parte do gosto musical “dela”, da menina, e passa a falar diretamente com esse “ela”, dedicando-lhe a execução de “Ainda é cedo” e pedindo desculpas, onde quer que “ela estivesse”, naquele momento. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Outro elemento importante nas letras de Renato Russo é a convergência de várias visões de mundo, algumas opositivas e conflitantes, que vão costurando um painel polifônico de posicionamentos acerca dos afetos. No texto presente no encarte da caixa Por enquanto (lançada em 1995), que reuniu os seis primeiros CDs da banda, Hermano Vianna Jr. destaca essa pluralidade nas letras da banda que, segundo ele, se materializam tanto na mixagem dos vocais74, quanto na maneira de imprimir as letras no encarte, com aspas e travessões que indicavam passagens de uma voz a outra Mas não são apenas esses dois recursos técnicos que indicam a pluralidade das micronarrativas, pois as letras de RR trabalham com pequenos universos espedaçados de “eus” que se entrecruzam — novamente, a imagem correta para a exploração dessas subjetividades seria a de camadas de tijolos ou de escamas de peixes. É sempre importante lembrar que o cruzamento de fragmentos subjetivos e o seu registro na linguagem, no mundo da narrativa, foi uma conquista do romance. Segundo Auerbach (1976), trata-se de um gênero que trabalha com a necessidade de abarcar a maior quantidade de conteúdos possíveis existentes. É uma tendência denominada de caráter enciclopédico da narrativa moderna, que tem em obras como A montanha mágica (1924), de Thomas Mann — que deflagra uma Europa dividida por duas ideologias — ou O vermelho e o negro (1830), de Sthendal — que explora duas classes distintas e em processo de transformação, a aristocracia e a burguesia — clássicos exemplos de macronarrativas, em que a idéia de relato foi ampliada para dar conta de diversas formas discursivas (o diário, a carta, as memórias, o ensaio), capazes de materializar a complexidade das forças subjetivas de um sujeito que viaja, que rememora, que confessa, que é analisado e se auto-analisa, e se desloca em várias direções, registrando a multiplicidade de extratos lingüísticos, culturais e sociais ao seu redor. Esse caráter enciclopédico do romance amplia a história de um indivíduo e sua perspectiva de mundo, aprofundando questões de ordem ética, política, cultural, econômica, social e estética, a fim de conter a totalidade desse sujeito em construção. No entanto, a pretensão pelo profundo e pela vasta natureza humana fez a narrativa caminhar por caminhos tão múltiplos, que a problematização do homem e de seu meio teve de ser repensada a partir de uma consciência de que esse perambular, há muito desorientado, não podia mais ser representado por uma macroforma — ainda que estivéssemos falando de uma categoria como

74É típico dos álbuns da Legião Urbana arranjos vocais que se sobrepõem à voz guia, de forma a dar a impressão de que mal uma terminaria de entoar um verso, outra já começaria o próximo, e assim sucessivamente, até o fim da canção. No entanto, ao contrário de uma gravação que misturaria diferentes backing-vocais à voz do cantor principal — como ocorre no trabalho dos Beatles, Birds e REM, por exemplo, nos quais vários integrantes da banda participam dos vocais —, a sobreposição de vozes percebida na Legião Urbana, na maioria das vezes, é feita pelo próprio Renato Russo, só sendo registrado vocais dos outros membros da banda a partir do sexto disco da banda, O descobrimento do Brasil. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

o romance, que emerge do diverso e do inacabado e que, por vezes, assemelha-se às Babuskas, aquelas bonecas típicas do artesanato russo, coloridas, que são ocas por dentro e se encaixam umas dentro das outras; imagem que também pode ser aproximada à sobreposição de “eus” das canções de Renato Russo. Se pensarmos na análise de Auerbach para o gênero romance, que toma um trecho dos Ensaios, de Montaigne, como modelo, veremos que ali estão contidas duas noções também importantes para a explosão das micronarrativas na contemporaneidade. Trata-se do conceito de individualismo — quando se compreende que o romance não fala de todos os homens, mas de um indivíduo e de sua complexidade — e da desorientação — quando se percebe que o homem está desgarrado, sem possibilidade de ler nas estrelas do céu o mapa das pegadas de seu destino, como diria Lukács (2000). Isso leva à ênfase da autocontemplação, tão bem trabalhada por Montaigne, típica das narrativas modernas, mas também conduz à idéia de uma subjetividade mutável, em ebulição, fragmentada, sem lugar nem valores fixos, conforme se percebe nas microformas atuais, tão parecidas com a definição de Montaigne sobre o sujeito, presente na análise de Auerbach: “é um relatório de acidentes diversos e mutáveis, de imagens indefinidas e, às vezes, contrárias” (p.246). Além do conceito de Montaigne apontar para o diverso, o indefinível, o contrário e o mutável da condição humana contemporânea, ainda traz palavras caras às micronarrativas, como “relatório”, que remete à ordenação de pequenos fatos, entrecortados por dias, horas, ou outros elementos capazes de aglutinar o detalhamento dos fatos; e “acidentes”, que implica acontecimento, imprevisibilidade, irregularidade, abertura para o fortuito e o desdobrável, desmontando as noções de “essência”, “origem”, “totalidade”, “unidade”. As microhistórias trabalham muito com a consciência trazida por Foucault de uma mobilidade dos micropoderes e com uma vontade de interferir na epidemia dos discursos. Em Uma história íntima da humanidade (1994), Theodore Zeldin aborda o longo processo pelo qual homens e mulheres, no mundo ocidental, passaram até explorar o diálogo não apenas como forma de aquisição de conhecimento, mas com a interação social e expansão da interioridade. Segundo o autor, a invenção da democracia na Grécia Antiga forçou as pessoas a se expressarem em reuniões e assembléias públicas, e, assim, “não tardou para que a retórica se tornasse a suprema habilidade do mundo helênico e a mais importante parte da educação” (1994, p.36). Zeldin registra no desenvolvimento desse processo a impaciência na esfera da população que não dominava as técnicas da retórica esboçadas nos discursos dos grandes oradores, que podiam passar de um assunto a outro, com desenvoltura, demonstrando domínio perfeito da fala e familiaridade com todos os ramos do conhecimento. Essa impaciência se Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

desvelou como uma insatisfação para com os limites individuais e forçou a população a “inventar curtos atalhos no rumo do êxito: o seu roteiro foi reduzido a mero treino em disputa, ou seja, a técnica de falar sobre qualquer assunto, mesmo que o ignorassem por completo” (p.36). Esse lado performático que não está ligado à profundidade e domínio daquilo que se comunica fez a persuasão virar um “jogo intelectual”, com o qual se passava do político e do jurídico da discursividade grega para a liberdade e o espaço deslizante do lúdico, o que, segundo o autor, transforma a Grécia num palco de oradores a disputar o título de melhor orador como se fossem atletas. Todavia, esse espetáculo performático da fala só pode ser compreendido como liber- dade de expressão oral quando o mundo grego é introduzido no espaço de conversação, de Só- crates. A introdução do diálogo socrático numa pedagogia de construção do conhecimento e do reconhecimento social dele passa a ser o modelo, e o monólogo performático cai em desuso. Zeldin cita uma das máximas socráticas: a vida não vale a pena ser vivida se não se interroga nela e acerca dela. Dessa forma, Sócrates teria inventado o ato de questionar, instaurando a mo- bilidade das pessoas na fala — antes restrita à concepção de que só o homem sábio ou de de- sempenho acima da média falava, enquanto o restante o escutava. O legado socrático não en- volve, no entanto, a necessidade das respostas do receptor para que o emissor desenvolva suas interrogações, uma vez que o centro de sua pedagogia é a elaboração de dúvidas, de questões, o que remete para a idéia de dois indivíduos envolvidos no diálogo a fim de chegar à verdade, podendo ser a presença de um deles mero pretexto para esse objetivo. A “outra metade” do processo dinâmico da conversação, em que até mesmo os objetivos iniciais do diálogo são móveis, vagos e lúdicos, seria inventado pelas mulheres, na Renascença, quando emerge o modelo da cortesã e dos salões, catalisado por Madame Rambouillet que, segundo Zeldin, trouxe um refinamento para as conversas sociais, através de um investimento não na riqueza ou beleza dos envolvidos no diálogo, mas, sobretudo, da “polidez, sutileza, tato e cultura”, que passaram a reger a sociabilidade dos salões. Esse modelo é denominado pelo autor de “orquestra de câmara da conversação” (1994, p.38), e remete para um período onde os salões viraram mediadores no processo de conversação; neles já estava instalada “a presença de mulheres inteligentes, às quais se queria agradar”. (p. 39). Dessa forma, os freqüentadores dos salões procuravam estar antenados com tudo o que acontecia no plano da literatura, das artes, das ciências, da política e das boas maneiras, todavia, isso não fazia das mulheres ali presentes especialistas em qualquer desses assuntos, indicava tão somente que elas eram as novas mediadoras, pois abriam espaço para que os saberes, dúvidas e fatos extraídos de áreas diversas do conhecimento pudessem ser compartilhados sem obrigação de uma disputa Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

verbal — como ocorria antes. Dito de outro modo, o que Zeldin está narrando é a transformação operada pelas mulheres no desenho da intimidade humana, quando: “elas impregnaram a prosa do século XVIII de claridade, elegância, universalidade, filtrando idéias através de outras mentes, encorajando a seriedade a ser também despreocupada, a razão a lembrar-se da emoção, a polidez a se juntar à sinceridade” (1994, p.39). Esse ambiente franco, com o passar dos anos e os acontecimentos histórico-político-culturais seguintes, vai encontrar seus nós, exemplificados pelas disputas de grupos no interior desses salões, até chegar a se enfraquecer, perdendo sua diversidade e sendo substituídos pelas cartas que, passam a articular, segundo Foucault, em “A escrita de si” (1992), apropriações fragmentadas do diálogo, do exame de consciência, do livro imaginário da memória, dos acontecimentos do corpo, da alma e do cotidiano. A orquestração das falas de si e do mundo é um processo que remete mais ao caos do que à unificação pretendida nas macro-narrativas. A imagem da câmara de conversação é in- teressante porque aponta para uma espontaneidade e um coloquialismo muito valorizados pela escrita contemporânea. Melhor do que “câmara” ou “salão” — que implica uma sociabilidade esperada, convidada, organizada — seria a de “antecâmara” ou “ante-sala” (muito trabalhada por Ana Cristina Cesar, em suas montagens de correspondências), porque pressupõe ainda mais soltura e liberdade para esses pequenos pedaços de vozes que não estariam no foco da sala principal, e poderiam ressoar pelo espaço sem a orientação de um anfitrião ou mote, a falar de impressões, amores, desejos, acontecimentos, visões de mundo, medos, paixões, ó- dios etc. Trata-se de narrativas sem comando, sem visão privilegiada, sem objetivo de futuro, inscritas na superfície do provisório, do instantâneo, do líquido. O gosto por narrativas cultivado por Renato Russo apresentava duas vertentes: a das histórias animadas por personagens com perfis populares, exercitada em canções como “Edu- ardo e Mônica”, “Faroeste Caboclo”, “O descobrimento do Brasil” e “Dezesseis”; e a da bri- colagem de subjetividades, que está em quase todas as suas letras, encenando fragmentos de narrativas esgarçadas, em que circulam diálogos, por vezes incoerentes, sensações, gostos, emoções, afetos, informações retiradas de noticiários, fusões de lendas do imaginário coletivo etc. No entanto, essas duas perspectivas não são excludentes, pois podemos encontrar instan- tes de bricolagem nas narrativas mais “arrumadinhas” dele (RR chamava de “resolvidas” quando as letras conseguiam estabelecer começo, meio e fim para suas histórias), como ocorre em alguns trechos de “Faroeste Caboclo”. Mistura de toada e repente nordestino com rock, “Faroeste Caboclo” é um panorama cinematográfico de um drama individual, muito comum nas zonas mais pobres do País. Em certos aspectos, lembra as histórias do cangaço, quando, diante da falência das instituições Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

oficiais, um grupo liderado por um messias ou tirano, idealizador de uma ética e justiça muito próprias, resolve sair pelas cidades e lugarejos da região aplicando leis cuja estrutura somente eles conhecem, uma vez que o benefício delas recai apenas sobre seu grupo. Todavia, a natureza solitária de João de Santo Cristo, o personagem principal da canção, não permitiu que em torno dele houvesse um séqüito de seguidores, capazes de morrerem pela mesma causa do seu líder que, em última instância, se revelou ser uma causa amorosa, e não política como faz parecer o narrador. Outro contexto relacionado à narrativa da música é o desenvolvimento de uma cultura produtora de filmes de faroeste no planalto central, estimulado pela luminosidade e céu azul de Brasília que, naturalmente, seria favorável ao gênero western. Essa letra mostra uma forte conexão entre microhistória e imaginário coletivo, abor- dada por Marcos Carvalho Lopes em “Faroeste Caboclo épico da (re) democratização do pa- ís” (2006)75, que analisa a necessidade de heróis observada em certas sociedades e a perspec- tiva utópica dessa prática. Ele compara João de Santo Cristo com Tiradentes, devido à nature- za da valorização popular e mitificação que a figura do inconfidente mineiro representa na instauração da República. A comparação se dá partir dos elementos messiânicos da figura de Tiradentes e sua relação imediata com Jesus Cristo, não só pela semelhança de sua represen- tação gráfica, mas, sobretudo, pelo tipo de morte através de uma via crucis, onde o ideal mai- or (de salvador da humanidade, no caso de Jesus Cristo; salvador da pátria, no caso de Tira- dentes, e denunciador da miséria de seu povo, no caso do personagem da música da Legião) se sobrepõe aos anseios e temores individuais. Assim, para Lopes, a narrativa de RR se insere numa tradição brasileira de heróis e anti-heróis, como Lampião, Antonio Conselheiro etc., e “essa seria uma herança portuguesa, um sebastianismo de nossa cultura, responsável pelo cul- tivo e popularização de sagas messiânicas” (2006, p.08). “Faroeste caboclo” é uma canção trágica de nove minutos que se tornou em 1987 a música mais executada do Oiapoque ao Chuí, o que obrigou as rádios brasileiras a mudarem suas programações centradas no tempo das canções pop de 3 minutos, e fez a Rede Globo alterar a duração de sua novela das oito, quando a preferência nacional elegeu, em primeiro lugar, na parada do Globo de Ouro, o épico da Legião Urbana. Os seus 159 versos rimados abordam crescimento pessoal, violência, racismo, espetacularização da mídia e da sociedade da condição miserável de alguns, além de explorar a natureza contraditória de certos heróis

75 Trabalho apresentado no II Encontro Nacional do GT “Pragmatismo e Filosofia Americana”, realizado no Rio de Janeiro, em Junho de 2006. Disponível em: . Acesso em: 11 jan. 2007. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

brasileiros (mocinhos e bandidos ao mesmo tempo). No entanto, o maior tema explorado na canção é a tragicidade de um amor correspondido, mas que não conseguiu vingar. A história mostra um conflito entre Bem e Mal, a partir de um personagem que não consegue se enquadrar numa sociabilidade e, assim, merecer o amor de Maria Lúcia, a mocinha. Devido a algumas falhas de percurso do herói, a mocinha acaba sendo conquistada pelo vilão. Embora a narrativa não indique o motivo pelo qual Maria Lúcia escolheu ficar com Jeremias, uma vez que ela amava João de Santo Cristo, deixa entender que do “herói” eram esperadas certas atitudes em prol desse amor romântico, que não aconteceram devido a um flerte de Santo Cristo com o Mal — todavia, esse desvio já estava previsto pela própria tragicidade da formação do rapaz. Impedido, então, de participar da ordem social, Santo Cristo viveu uma sucessão de acontecimentos trágicos: perde o pai muito cedo, que é assassinado pela polícia (uma das pri- meiras instituições a que João de Santo Cristo aprende odiar); na seqüência, perde a inocência e acaba cercado pelo terror e miséria do lugar onde nasceu, cenário que o leva a se relacionar de forma sexista com as mulheres; em seguida, é vítima de reformatórios onde a discrimina- ção à sua cor e classe social impera; depois, é vítima da propaganda enganosa da indústria cultural, que lhe faz acreditar na possibilidade de encontrar em Brasília o paraíso onde poderá ser famoso e feliz. O rapaz avança e recua dentro de sua condição de marginal, ora encarnan- do o fora-da-lei, o traficante, ora buscando se enquadrar como ajudante de carpinteiro, apai- xonando-se por Maria Lúcia e desejando ter com ela um filho, mas se descobrindo, em segui- da, traído. Parece haver uma lei fatal sobre a cabeça do personagem, empurrando-o para o perigo, embora, na narrativa, existam pequenos indícios de uma espécie de lei do livre arbí- trio, pois, afinal, ele faz escolhas. Mas, se João de Santo Cristo erra, a letra mostra que o de- senho amoroso pode ser uma errância passível de rendição pela morte: assim como Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Santo Cristo e Maria Lúcia se reencontram na morte, dissolvendo os motivos, não muito claros na narrativa, que os separavam em vida. A predominância da bricolagem como recurso para elaboração de microhistórias parece ser o espaço onde RR melhor de desenvolve. Sua facilidade para manipular falas entrecortadas e múltiplas encontra-se na letra e na gravação de “Teorema” — que funciona como uma colagem de frases e pensamentos que são ditos entre duas pessoas num encontro amoroso: “Não vá embora/ Fique um pouco mais/ Ninguém sabe fazer/ O que você me faz/ É exagero/ E pode até não ser/ O que você consegue/ Ninguém sabe fazer”. Mas também está em “Por enquanto”, que fecha o primeiro álbum da Legião Urbana respondendo, de forma simbólica, aos questionamentos agressivos de “Será”: “Mudaram as estações /E nada mudou/ Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Mas eu sei/ Que alguma coisa aconteceu/ Está tudo assim tão diferente.” Essa música abre para uma perspectiva dos relacionamentos inacabados, em suspenso, de afetos que deslizam numa memória de parênteses, de travessões e reticências, que será constantemente retomada por RR: “Mas nada vai/ Conseguir mudar o que ficou/ Quando penso em alguém/ Só penso em você/ E aí então estamos bem.../ Mesmo com tantos motivos/ Pra deixar tudo como está/ Nem desistir nem tentar/ Agora tanto faz/ Estamos indo de volta pra casa...” Uma das poucas músicas da banda que não investe no arranjo polifônico é “Solda- dos” (LU), pois se trata de uma narração que já está na primeira pessoa do plural (“Nossas meninas estão longe daqui/ Não temos com quem chorar e nem pra onde ir/ Se lembra quando era só brincadeira/ Fingir ser soldado a tarde inteira?”) e, por isso mesmo, explora o “nós” como um lugar de reunião dessas subjetividades que acabam de tomar consciência do desejo e dos limites do desejo: “Tenho medo de lhe dizer o que eu quero tanto/ Tenho medo e eu sei porquê:/ Estamos esperando/ Quem é o inimigo?/ Quem é você?/ Nos defendemos tanto tanto sem saber/ Porque lutar”. A vontade manifestada é de transgredir os limites de uma dissimu- lação que já não faz mais sentido, ainda que se encontre interiorizada. A canção aborda a des- coberta da homossexualidade, situando o conflito metaforicamente no espaço da guerra, sendo que é a ausência de “meninas” e de uma sociabilidade organizada que coloca os “meninos” de frente com seus impulsos mais eróticos e sexuais, angustiados dentro de uma “noite” que se estende, que pode ser lida como a própria fronteira entre as primeiras percepções de uma se- xualidade diferenciada das demais e o momento no qual se encontra coragem para agir em prol da vivência desse desejo. Em algumas apresentações ao vivo, Renato Russo enxertava em “Soldados” um trecho de “Blues da Piedade”, de Cazuza e Frejat (para destacar o preconceito social e cultural dos “caretas e covardes” que discriminam os homossexuais quando esses escolhem assumir sua orientação sexual); outro trecho de “Faz parte do meu show”, também de Cazuza (para enfatizar a prática homoerótica não apenas como uma identidade, mas como uma espetacularização do corpo e do desejo, ou seja, um show particular que pode, no entanto, vir a ser publicizado através da afirmação positiva dessa prática); e outro trecho de “Nascente”, de Flávio Venturini e Murilo Antunes, com o qual retornava para o final de “Soldados”, deixando claro que os sujeitos da canção conseguiram ultrapassar o impasse dessa “noite de espera”, assumiram o desejo e se entregaram a ele na claridade da “manhã”. Esse álbum, segundo o próprio músico, em depoimento à MTV, no programa Presente, Passado, Futuro (que foi ao ar no dia da morte do cantor, em 11/10/1996), trabalha com a idéia da descoberta e da afirmação da subjetividade, costurando as dissonâncias entre a perda da inocência e o Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

confronto com a própria rebeldia num mundo que se complexificou. Nesse sentido, todas as músicas tocam na questão do autoconhecimento, mostrando que essas microhistórias são resultados de um estar jovem numa transição entre o sair da proteção da casa dos pais e a procura de uma integridade que articule os novos caminhos com as crenças mais íntimas. A preocupação de RR com o conceito de seus trabalhos aparece explicitamente no álbum Dois, que abre com uma colagem de ruídos sonoros, mostrando, ao longe, em meio a chiados e pedaços da “Internacional Comunista”, os versos do refrão de “Será”, a primeira música do primeiro álbum, como se capturados pelo giro do dial de uma das tantas rádios: “Brigar pra quê / Se é sem querer”. Em seguida vem o corte e se inicia com uma música de título extraído de um episódio bíblico, “Daniel na cova dos Leões”. A autocitação remetendo para o hit anterior mostra que na visão da própria banda aquele trabalho, embora vitorioso, já estava encerrado, ainda que pudesse retornar na forma de cacos remissivos, flagrando o pro- cesso de transição entre a estréia da banda e o passo seguinte, de sedimentação. Os acordes de “Daniel na cova dos Leões” calam a remissão ao passado e, novamente, torna-se claro que a maior preocupação de RR eram os conflitos individuais, a busca de identidades possíveis mas não excludentes, e a ética pessoal que deveria passar, obrigatoriamente, por uma cartografia dos afetos. “Daniel...” juntamente com “Soldados” (LU), “Meninos e meninas”, “Feedback Song for a Dying Friend”, “Eu era um lobisomem juvenil”, “Maurício” (AQE), “O mundo anda tão complicado” (V) e “Leila” (ATLD), forma a série de músicas homoeroticamente ex- plícitas do compositor. E se em “Soldados” a tensão da linha baixo-bateria marca a exposição de uma história sobre a dificuldade de lidar com a dissimulação do desejo quando o objeto do prazer está no plano do proibido, do ilegal, “Daniel...” já é a realização do desejo, desse inves- timento no plano do erótico, numa exaltação do êxtase da posse e da entrega: “Aquele gosto amargo do seu corpo/ ficou na minha boca por mais tempo/ De amargo e então salgado ficou doce/ Assim que o teu cheiro forte e intenso/ Fez saber que ainda era muito e muito pouco”. A sedimentação das reflexões acerca das experiências da adolescência marca o segundo álbum e o coloca como o início de uma entrada na idade adulta. Dentro dessa perspectiva de crescimento, ser jovem se mistura com a necessidade íntima de inventar outras formas de sociabilidade, de inserção da subjetividade num mundo cheio de ruídos e interferências de televisão, violência, censura, consumo, transição da ditadura militar para a democracia, desumanidade, isolamento, burocracia etc. As historinhas de amor movem-se não como numa curva plana ou em torno de um ponto fixo, mas feito enchente, em várias direções. Há espaço para uma infinidade de desenhos amorosos, desde a corporalidade do gozo homoerótico, descrito na cena de sexo oral explícita de “Daniel na cova dos Leões”, Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

passando pela a metamorfose do sujeito-criança no sujeito-jovem que se descobre através do choro do ser amado (“Quase sem querer”), pelo drama de uma perda amorosa que de tão intraduzível precisa ser ficcionalizada (“Acrilic on Canvas”), pela clássica história de amor entre duas personalidades opostas e complementares (“Eduardo e Mônica”), até uma conceituação mais abstrata do afeto, que de tão castanho lembra a tempestade lá fora, e se move como a passagem angustiante do tempo nos nossos corpos e sonhos, numa fase em que perigosamente se cultiva a ilusão de que o tempo é eterno (“Tempo perdido”). Os desenhos mais complexos do amor, no entanto, estão em “Acrilic on Canvas” e “Andrea Doria”. “Acrilic on canvas” é uma narrativa que toma como ponto de partida a confissão de uma saudade e usa referências da pintura e das artes plásticas não para reconstruir o laço des- feito, mas para desconstruir as razões do desenlace, num jogo de hipóteses que ficcionalizam os motivos que levariam ao fim do relacionamento: “E mais uma vez/ De você fiz o desenho mais perfeito que se fez/ Os traços copiei do que não aconteceu/ As cores que escolhi entre as tintas que inventei/ Misturei com a promessa que nós dois nunca fizemos/ De um dia sermos três/ Trabalhei você em luz e sombra”. A perda amorosa foi tão dolorosa e permanece tão caótica na memória de quem narra que dela só se pode falar inventando outras dores, outras cenas, outras cores, outros cheiros e texturas, a fim de lidar com a confusão do presente mar- cada pela saudade na mente do protagonista: “Às vezes é difícil esquecer: – Sinto muito, ela não mora mais aqui”. Contudo, as marcas desse jogo de representar uma história dentro de outra história que, afinal, não é recontada, mas apenas sugerida enquanto se rascunha a perda, acabam por desvelar um processo de montagem do amor, que lembra a afirmação de Theodo- re Zeldin sobre as muitas formas com que o ser humano argamassou, ao longo dos séculos, os pontos aglutinantes e díspares da paixão, introduzindo a cada nova época outros significados e se colocando estranhamente surpreso diante das dimensões que o desenho ia tomando, “como quem acabou de transformar trigo em pão, pudins de frutas e mil-folhas” (1994, p. 74). “Andrea Doria” é o nome de um navio italiano, naufragado em 26/07/1956, e foi escolhido para nomear uma canção que fala da perplexidade de uma errância que acabou afundando temporariamente a relação amorosa: “Às vezes parecia que era só improvisar/ E o mundo então seria um livro aberto/ Até chegar o dia em que tentamos ter demais/ Vendendo fácil o que não tinha preço”. A letra flagra o instante em que as utopias da juventude chocam- se com o pragmatismo do mundo adulto, mas chama atenção também para o perigo de, no longo processo de desembarace das ilusões, restarmos acossados entre a saudade daquilo de que abrimos mão — e que nos era caro — e a saturação do vazio do que foi perdido. Numa linha melódica triste e lenta, o arranjo polifônico de Renato Russo vai tecendo o diálogo entre Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

as subjetividades angustiadas e carentes de referenciais, que chegaram a um ponto doloroso em que só podem contar consigo mesmas: “Nada mais vai me ferir/ É que eu já me acostumei/ Com a estrada errada que eu segui/ E com a minha própria lei/ Tenho o que ficou/ E tenho sorte até demais/ Como sei que tens também”. Em entrevista a Leoni, no livro Letra, música e outras conversas (1995), RR fala sobre o processo de criação dessa música, atribuindo à idéia inicial a uma conversa que ele tivera numa boate com Luciana Ribeiro (mãe do baixista Bi Ribeiro, dos Paralamas do Sucesso) e Tetê Tillet (amiga e letrista). Nesse depoimento, ele assume tanto a montagem de imagens e palavras, quanto a escuta do outro como fio condutor de seu processo criativo:

Eu me lembro que “Andrea Doria” é um navio que afundou, a idéia era para ser: naufrágio. E no caso “Andrea Doria” é uma menina. O que ligou a mú- sica toda foi uma conversa que eu tive com Luciana, mãe do Bi e com a Tetê no Crepúsculo de Cubatão. As duas estavam reclamando da vida ser muito difícil e a Tetê estava meio deprimida. Fiquei pensando: “Que coisa chata”. Porque eram coisas que eu sentia também. Nem sempre adianta ser bom, ser honesto. Peguei essa situação inicial e fiz a música que um diálogo entre uma menina que era cheia de vida, alegria e planos e que sempre me deu força e que nesse instante é quem está derrubada. Aí então sou eu falando para ela. Tem coisas que ela fala pra mim e tem coisas que falo pra ela [...] É aquela coisa dos planos, o mundo está horrível mas nós vamos conseguir [...] Quando você entra no mundo adulto se não tomar cuidado deixa entrar o ci- nismo, fica “jaded”. [...] Uma das grandes temáticas das letras é exatamente essa, só que são sempre pequenas situações, colocadas de um certo jeito que a pessoa interpreta de outra maneira. Sempre tem uma historinha, uma mito- logia. (RUSSO, 1995, p. 66-7).

As duas letras mostram que a arte de amar é impossível de ser dominada numa perspectiva totalizante, e aquela tão esperada transformação radical do amor para a qual a maioria de nós se prepara a vida inteira depende, na verdade, de um investimento diário numa conduta ética, através de um processo constante de auto-reflexão e de avaliação dos próprios valores e atitudes. O gosto por “aspear” ou colocar travessões indicam o desejo de multiplicar essa perspectiva, abrindo a representação aos outros, aos tantos, aos vários, da condição humana. O desenho da multidão subjetiva não só está de acordo com o nome da banda escolhido por Renato Russo, como abrange também o contexto urbano dessas falas dissonantes. Não é um traço específico de sua escrita, pois, na cultura rock, boa parte dos letristas optam por trabalhar com “vozes múltiplas”, inscrevendo o anônimo, o urbano e o polifônico em suas microhistórias. Um dos letristas preferidos de Renato Russo que usa tal expediente para compor narrativas onde dificilmente se sabe quem está falando e onde os diálogos não expressam necessariamente o pensamento do compositor, é Morrissey — Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

vocalista e letrista da banda The Smiths; grupo responsável pela invenção de uma linha melódica de baixo e bateria que marcou sonoramente o rock dos anos 1980, à qual, muitas vezes, a Legião Urbana foi acusada de ter plagiado.

3.4 DAI-ME DE BEBER QUE TENHO UMA SEDE SEM FIM

Stephen Patrick Morrissey nasceu em 1959, na cidade de Manchester, na região norte da Inglaterra, descendendo de uma família de origens irlandesas. Segundo o biógrafo Johnny Rogan, em Morrissey & Marr: The Severed Alliance (1992), ele cresceu num ambiente de muita repressão católica e escassas provas de afeto, por isso, teve uma adolescência solitária, alicerçada por leituras de escritores clássicos e revistas de música, além de saídas pontuais para assistir a shows de rock de ídolos como David Bowie e New York Dolls. Essas referên- cias biográficas são exploradas pelo letrista à exaustão, e compõem toda uma mitologia em torno de uma ausência de relacionamentos amorosos em sua vida, um isolamento do mundo e até uma abstinência sexual, destacada por ele em quase todas as entrevistas, quando aproveita para jogar com a persona construída pela mídia e fãs, estabelecendo um limite claro entre sua carreira e sua intimidade, rigorosamente preservada. A ambigüidade presente em suas letras, a qualidade de seu trabalho e a sua performance no palco foram elementos importantes para RR, que desde o início buscou uma sintonia com o universo smithiano, onde flores nos bolsos detrás das calças jeans, camisas de mangas compridas deixando entrever a nudez pálida dos ombros, capas cheias de fotos e referências a ícones cinematográficos e literários, versos que abordavam de forma muito particular a solidão, o sofrimento, a crise de identidade e até as dificuldades de adaptação escolar, colocando, também, questões relacionadas ao afeto e à sexualidade de um jeito tão franco que conseguia atingir tanto a homens quanto a mulheres que estavam naquele momento enfrentando a transição entre adolescência e vida adulta, repercutiram tão fortemente no cenário do rock britânico dos anos 80, que obrigaram o mercado a abrir espaço para uma certa “sensibilidade gay”, trabalhada posteriormente por tantas outras bandas que surgiram após os Smiths. A figura de Morrissey representou para RR, durante algum tempo, a possibilidade de uma referência mais próxima de suas idiossincrasias, uma vez que, dentro da sua maneira temperamental de ver o mundo externo, a sensibilidade manifestada de um Bob Dylan, de um Jim Morrison ou de um Ian Curtis, eram mais passíveis de serem pulverizadas Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

pela espacialização da cultura rock, e não contemplava temas específicos sobre diferença sexual, liberdade de expressão e psíquica, que tanto interessavam ao roqueiro brasileiro. Além disso, Morrissey encenava a imagem perfeita do outsider, melancólico e diferente, que criara um mundo à parte dentro do cenário do rock mundial. Quando Renato Russo descobriu, tempos depois, que essa performance morrisseriana era uma construção e não uma extensão natural de sua personalidade, confessou estar decepcionado, pois havia descoberto, entre outras coisas, que Morrissey jogava basquete76 e, portanto, não podia ser um cara que sofria de depressão. Assim, a ligação de RR com Morrissey se dá não apenas a partir da condição sexual de ambos, mas, sobretudo, da sensação de outsider e do cultivo da melancolia, tanto no processo criativo quanto no desenvolvimento de suas temáticas. Em português, o termo grego melan é traduzido por “negro” e “escuro”, enquanto colia resulta em “líquido” e “bílis”. A associação com o órgão “baço” foi feita a partir do conhecimento ocidental dos estudos de Hipócrates, no século V a.C., que atribuíram a doença a um mau funcionamento desse órgão, sendo tal disfunção responsável pela amargura e o mau-humor do melancólico. Em “Luto e melancolia” (1976), Freud definiu esse estado como um penoso mergulho no desalento, que revela um profundo desinteresse pela vida exterior, acompanhado de baixa auto-estima e desejo mórbido de punição. O desequilíbrio da melancolia, embora tenha semelhanças com a dor do luto, se difere dessa pela ausência do “objeto”, ou seja, a falta de motivação para a queda nesse estado. Tal “queda” é, ao mesmo tempo, um perambular entre as sombras e as luminosidades, e sempre foi estudada como uma tendência para as artes e o cultivo dos pensamentos superiores — o que mostra a ambigüidade com que a doença é tratada na nossa cultura, pois ao mesmo tempo em que possibilita à criação artística e o desenvolvimento de idéias, também pode levar ao suicídio e à inação. Através de uma historicização do conceito de “melancolia”, Walter Benjamin, em Origem do drama barroco alemão (1984), defende a tese de que tal sentimento ou estado da alma teria enobrecido as artes e a literatura, uma vez que os criadores do período estético conhecido como barroco souberam transformar a melancolia em algo produtivo. Para tanto, o autor elabora uma espécie de percurso do sentimento dentro de fatos históricos que marcaram a humanidade e fizeram valores e conceitos serem repensados, como ocorre com aqueles oriundos do Luteranismo, do Calvinismo e da Contra-reforma. Desde a epígrafe escolhida para iniciar sua análise, Benjamin já demonstra ser favorável à inquietude que a melancolia

76Informação fornecida por Arthur DAPIEVE. O trovador solitário. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. (Série Perfis do Rio). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

traz, pois o trecho recortado e citado, de Andréas Tscherning, concebe o pensamento como um terreno de conflito, onde há ebulição e onde se pode encontrar todo o material necessário à contemplação criativa: “em nenhum lugar encontro paz/ estou sempre em conflito comigo/ sento-me/ deito-me/ tudo está em meus pensamentos”. Uma vez que a “paz” não é possível de ser alcançada, porque o sujeito está em conflito consigo mesmo, os pensamentos tornam-se, então, o manancial, o centro da busca, tudo está neles, eles têm tudo; ou seja, de um sentimento aparentemente negativo (a ausência de paz, o conflito), surge uma atitude positiva (a autopercepção). Tal perspectiva está em harmonia com o pensamento benjaminiano:

a teoria do luto, que emergiu inequivocadamente como uma contrapartida da teoria da tragédia, só pode em conseqüência ser desenvolvida por meio da descrição do mundo que se abre ao olhar do melancólico. Pois os sentimen- tos, por mais vagos que eles pareçam na ótica da autopercepção, reagem, como num reflexo motor, à constituição objetiva do mundo (1984, p.163).

Dessa forma, Benjamin concorda que os sentimentos vivem num abismo oriundo da au- sência de união entre as forças do sujeito (suas subjetividades) e a ordem objetiva, isto é, o mundo externo. A contemplação, a capacidade de se autoperceber nesse abismo, nesse vazio, é resultante de uma postura melancólica. O que se faz, o que se produz com essa postura, é que é assunto de interesse para Benjamin — ao contrário de Freud, por exemplo, que não vê produtividade no me- lancólico e, sim, desligamento do mundo, autocomiseração, luto sem objeto, sem justificativa. Essa maneira benjaminiana de enxergar a produtividade num sentimento visto como negativo não impede que o autor enverede por outras definições de “melancolia”, nesse texto que é um tratado sobre a presença desse sentimento/ estado na arte e na literatura num período específico. De maneira complexa — porque tenta penetrar em diversos terrenos onde a melan- colia foi estudada, vista, pensada, traduzida —, seu olhar sobre o tema agrupa fragmentos de obras e outros discursos, como o de Aristóteles, Pascal, Albertinus, Shakespeare, Dürer etc. Um dos momentos mais interessantes do ensaio é a confluência entre o pensamento antigo (que a- brange astronomia, mitologia, ciências médicas e literatura) e o barroco, que irrompe na página 169 e segue até a 174. Nessa passagem, Benjamin apresenta e interpreta pontos da mitologia grega acerca de Cronos, o senhor do tempo e antigo senhor do mundo, destronado por Júpiter (Zeus). Ele relaciona tais pontos mitológicos com a concepção do planeta Saturno e sua conse- qüente simbologia, tão trabalhada pelos astrônomos e astrólogos. É curioso notar que entre a posição antiga atribuída a Saturno (planeta que rege o melancólico, senhor da Idade do Ouro, planeta pesado, seco, frio, produz homens presos à vida material, mas, também, homens alheios a qualquer vida terrena, contemplativos etc.) e Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

as concepções que orientam a astrologia nos dias de hoje há poucas diferenças, pois Saturno continua a ser o calcanhar de Aquiles do mapa astral de qualquer sujeito na Terra. Hoje em dia há livros apenas sobre as posições de Saturno e suas implicações num mapa astral, e, na astrologia contemporânea, compreende-se que o bom astrólogo, ao interpretar a posição de cada corpo celeste num mapa, deve verificar se há uma harmonia entre Saturno e Vênus, sendo o primeiro lido como o dever, a medida, a temperança, e o segundo, como o desejo do ser humano pela felicidade, pelo belo, pelo amor. Ou seja, Vênus rege tudo aquilo que o sujeito deseja, precisa alcançar para ser feliz, enquanto a posição de Saturno simboliza a natureza dos obstáculos, do muro a ser ultrapassado para se conseguir a materialização dos sonhos. Não por acaso, a melancolia, no mundo astral, atualmente, é atribuída a essa incapacidade de conciliar querer e dever, e é notada com mais ênfase, justamente, nos capricornianos, signo regido por Saturno, que é considerado o mais pesado dos signos e o mais ligado a Terra. Tal visão, portanto, está de acordo com as concepções capturadas e interpretadas por Benjamin, nas quais Saturno é visto, sempre, como o senhor da melancolia e da contemplação. A atmosfera melancólica presente nas letras de Morrissey funcionava como um contraponto para a guitarra festiva, dionisíaca de Johnny Marr (seu parceiro em todas as composições dos Smiths) e sofreu uma modificação substancial em sua carreira solo — iniciada após o rompimento com a banda, em 1987 —, quando foi minimizada por uma ênfase maior numa performance inspirada mais no Elvis Presley de “My Way”, e numa sonoridade que retorna ao Rockabilly77 e abandona o universo conflituoso das experiências juvenis para um distanciamento mais crítico e conceitual das relações afetivas. Assim como Morrissey, Renato Russo também se posicionava como quem enxerga nessa captura de experiências e visões de mundo não uma, mas diversas “juventudes”, cujos conflitos comportamentais resultam, muitas vezes, numa guerra entre os jovens e a cultura estabelecida. Contudo, os letristas registram tal guerra de forma plurívoca, e Morrissey se beneficia da possibilidade de indefinição de gênero, facilitada pela estrutura da língua inglesa, na qual é possível se dirigir a

77 Designação tanto para o rock de raiz de Jerry Lee Lewis, Johnny Cash, Roy Orbison, Chuck Berry, Eddie Cochran, Buddy Holly e Gene Vincent, quanto os próprios ídolos do Rock and Roll. Atualmente, existem algumas bandas que tocam rockabilly e misturam elementos do punk (Cramps) ou do rock progressivo, ou mesmo da new wave (Morrissey). Sonoramente, o estilo é definido por batidas percussivas que ora se destacam das linhas das guitarras e dos contrabaixos acústicos, ora se fundem com a técnica slap-back (cordas batidas em vez de puxadas individualmente). Considera-se que o rockabilly nasceu da mistura da música country dos anos 1940 com o rythm & blues e o western, popularizando-se através de Elvis Presley. Para outras referências sobre os subgêneros do rock consultar: Enciclopédia do Rock (Editora Somtrês, s/a, s/d); Leopoldo REY Gilles PHILIPE. Livro Negro do Rock (Ed.Somtrês, s/d); Roberto MUGGIATI. História do Rock (Ed.Somtrês, s/d), Marcelo DOLABELA. ABZ do Rock Brasileiro, 1987, e o Portal do Rock: . Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

um you que não precisa ser marcado, enquanto RR buscava na primeira pessoa do plural o índice de indeterminação quando queria jogar com a ambigüidade:

Em inglês você pode estar cantando para uma menina ou um menino, tanto faz, coloca o pronome se quiser. Em português não, vai ter que ter a concordância! [...] Às vezes eu tenho que dar a maior volta para não deixar claro se estou cantando para um menino ou uma menina. E o que eu acho bacana na música pop é justamente isso, você ouve David Bowie e não tem noção de para quem ele está falando. [...] certas coisas que eu colocava nas letras eram mensagens cifradas em código. Para não ter problema eu não era muito claro. Tem algumas músicas que sou eu cantando para um cara mesmo. Mas escrevi de tal maneira que uma menina ouvindo pode achar que é um cara cantando para ela. [...] quando é disfarce, eu não falo [o gênero], coloco no plural [...] Mas eu acho importante pensar no público. A não ser que eu tenha um statement muito sério que eu queira que seja aquilo, prefiro dar a maior abertura possível. (RUSSO apud LEONI, 1995, p. 77-78).

As microhistórias são então inseridas em montagens melódicas que exploram as pro- liferações entre palavras e imagens, num fluxo de fragmentos esgarçados, cuja seqüência de- pende do desdobramento entre signo, ritmo, performance e interação artista-público, sem o qual os problemas sociais e culturais desse cotidiano jovem não alcançariam o movimento dinâmico de interiorização e exteriorização percebido nos trabalhos dos dois artistas. O pres- tígio que esses letristas gozam, ainda hoje, junto ao seu público — que cresce e se modifica a cada ano — advém dessa articulação entre capacidade expressiva e autocrítica, que resulta num enquadramento lírico das questões abordadas, de modo a quebrar uma espécie de banali- zação muito comum no universo massificado da cultura rock. Dessa forma, Morrissey e Renato Russo compreendem o mito do amor como um lu- gar onde as forças trágicas e cômicas se encontram e onde é preciso manter uma eterna dispo- sição para o jogo. Essa disposição funciona como um mecanismo de liberação da criatividade, que se deixa envolver pelo fascínio com os elementos revolucionários e inconclusos do amor: a promessa de felicidade eterna, a igualdade entre os parceiros, a junção do prazer e do afeto, a idéia de transcendência etc. Raramente a reflexão sobre as mudanças que vêm ocorrendo com o amor em nossos dias — resultantes de um processo longo de transformações do concei- to de sexualidade e casamento — não é abordada diretamente nas letras dos dois roqueiros, que, nessas horas, localizam o problema do amor ou na sua hipervalorização ou no não- merecimento do sujeito dessa dádiva, conforme canta Morrissey:

Oh Mother, I can feel the soil falling over my head And as I climb into an empty bed Oh well. Enough said. I know it's over – still I cling Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

I don't know where else I can go […] I know it's over And it never really began But in my heart it was so real And you even spoke to me, and said : “If you're so funny Then why are you on your own tonight? And if you're so clever Then why are you on your own tonight? If you're so very entertaining Then why are you on your own tonight? If you're so very good-looking Why do you sleep alone tonight? I know ... Cause tonight is just like any other night That's why you're on your own tonight With your triumphs and your charms While they're in each other's arms...” It's so easy to laugh It's so easy to hate It takes strength to be gentle and kind It takes guts to be gentle and kind Love is Natural and Real But not for you, my love Not tonight, my love Love is Natural and Real But not for such as you and I, my love78 (MORRISSEY, 1986)

A canção destaca a desvalorização sofrida pelos indivíduos que não conseguem manter o relacionamento amoroso no centro de suas vidas. O diálogo entre a “mãe” que põe o dedo na ferida e a “voz” que enuncia a desilusão é irônico e não deixa claro se o não- merecimento do amor é um resultado direto do fracasso do laço desfeito ou de uma espécie de diferença que estruturaria os sujeitos no mundo. Cantar que “o Amor é Natural e Real”, grafando o substantivo e suas qualidades com letra inicial maiúscula para torná-los conceitos, “entidades abstratas” — e não sentimentos ou estados passíveis de serem experenciados — e, em seguida, admitir a existência de sujeitos que não se enquadram nessa “natureza” e nessa “realidade” aponta não apenas para uma crítica à idealização do vínculo amoroso como o sentido maior da existência humana, mas para sua transformação num dispositivo

78 MORRISSEY e Jonhhy MARR. I know it’s over. The queen is dead, 1986. Tradução livre: Oh Mãe, posso sentir o chão caindo sobre minha cabeça/ E enquanto deito em uma cama vazia/ Bem, tudo está dito/ Eu sei que acabou, ainda assim me agarro/ Não sei mais aonde eu posso ir/ Eu sei que acabou/ E na verdade nunca começou/ Mas no meu coração era tão real/ Você até falou comigo e disse: / “Se você é tão engraçado/ Por que então está sozinho esta noite?/ Se você é tão inteligente/ Por que então está sozinho esta noite?/ Se você é tão divertido/ Por que então está sozinho esta noite?/ Se você é tão atraente assim/ Por que dorme sozinho à noite?/ Eu sei.../ Por que esta noite é igual a qualquer outra noite/ É por isso que você está sozinho/ Com seus triunfos e encantos/ Enquanto eles estão nos braços um do outro”.../ É tão fácil rir/ É tão fácil odiar /É preciso força para ser gentil e carinhoso/ É preciso ter culhões para ser gentil e carinhoso/ O Amor é Natural e Real/ Mas não para você, meu amor/ Não esta noite, meu amor/ O Amor é Natural e Real/ Mas não para pessoas como você e eu, meu amor. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

sociocultural que exclui a diferença. Assim, a historinha de Morrissey mostra o desgaste emocional que a naturalização do amor traz à cultura, uma vez que ele pode circular através de uma disseminação política que o normatiza, transformando em párias aqueles que não se encaixam nesse modelo. O mesmo sentimento de isolamento em função de uma diferença pode ser percebido nas canções “Maurício” e “Meninos e meninas” (AQE), de RR, que também fazem circular literalmente (e não de forma irônica como em Morrissey) a crença de que a capacidade de manter o relacionamento amoroso alinha os sujeitos numa esfera superior da vida, uma espé- cie de país distante onde se pode ser feliz: “Até pensei que era mais por não saber/ que ainda sou capaz de acreditar/ me sinto tão só/ e dizem que a solidão até que me cai bem/ Às vezes faço planos/ Ás vezes quero ir/ pra algum país distante e/ voltar a ser feliz”. O “voltar a ser feliz” aqui remete para uma idéia essencialista do amor, como se ele estivesse alojado em algum tempo ou lugar perdido para onde o sujeito poderia se deslocar. No entanto, a idéia de outsider fornecida pelo registro “me sinto tão só/ e dizem que a solidão até que me cai bem” leva outra vez à questão da melancolia como uma experiência de borda, que inclusive impos- sibilita o retorno idílico mencionando nos versos anteriores. A configuração da melancolia como um dispositivo de leitura e posicionamento no mundo traz às letras tanto de Morrissey quanto de Renato Russo metáforas e imagens das mais belas produzidas na cultura rock, seguindo, assim, toda uma tradição que teria início com as narrativas de Joni Mitchell e Bob Dylan, sendo desenvolvidas e ampliadas pelas singularidades de John Lennon, Jim Morrison, Lou Reed, Patti Smith, Leonard Cohen, entre outros. Morrissey e Renato Russo têm uma história em comum de anos de reclusão — no caso de RR, colaboraram para isso os dois anos em que passou numa cadeira de rodas, vitimado por uma doença que ataca os ossos das articulações (epifisiólise) — devorando livros de filosofia, mitologia, ciências em geral, e, sobretudo, ficção e poesia; os dois são declaradamente leitores de Shakespeare e Fernando Pessoa; Morrissey, inclusive confessou recentemente ter retomado a leitura de O livro do desassossego, pelo qual tinha enorme admiração, apesar de perturbar-se com ele79. Também em entrevista, RR comentou sobre a presença da melancolia em seu processo criativo, mencionando a herança portuguesa como fator determinante dessa conexão:

RR: – Eu tenho esse lado melancólico, existe até um termo clínico para isso. Eu não tenho motivos para ficar angustiado, preocupado, deprimido. O meu

79 Declaração feita a Revista Q, por ocasião do lançamento de You Are The Quarry, em novembro de 2006. Reproduzida em todos os fanzines e sites da Net dedicados ao cantor. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

filho é superjóia. A minha família é superlegal. A banda está superlegal, a gente se entende superbem. Zilhões de pessoas gostam da gente. Fiquei três meses em Nova York, trouxe zilhões de livros, zilhões de discos, tudo que eu queria. Revista Bizz – Você não tem a impressão de que, quando está melancólico assim, escreve melhor? RR: – Claro! Revista Bizz: – Então você precisa disso... RR: – Aí é que está. Não que eu escreva melhor, mas eu encontro sobre o que escrever. Mesmo que seja uma música positiva, como “Quase Sem Que- rer” que eu acho super “pra cima”, sempre vem da necessidade de resolver alguma coisa que não está resolvida. A vida é difícil. O homem ocidental, principalmente no século vinte, não tem contato com a morte. A morte virou anti-séptica. Não há contato com o ciclo natural de nascimento, vida e morte. Basta ver o que estamos fazendo com a natureza. Depois de Sartre e Kierke- gaard, já estava na hora... Todo mundo nasce, todo mundo morre. Eu tenho pavor de morrer... (RUSSO apud José Augusto Lemos, 1990).

Na fala do músico, há uma disposição em relacionar a melancolia a uma espécie de acesso a uma interioridade que reaproximaria esse ser humano asséptico à reflexão acerca da morte e da dor. Ao afirmar que no plano da sociabilidade não haveria motivos para angústias, ele destaca o papel da melancolia dentro de um projeto movido por uma idéia romântica de que o aprofundamento dessas questões vitais ao homem — nascimento, crescimento, sofri- mento, envelhecimento, morte, relação com a natureza etc. — depende não apenas de seu enfrentamento racional, mas de uma investigação que combine emoção e linguagem, afinal, para criar é preciso não estar bem, pois se escreve para resolver alguma coisa que não está resolvida. Essa perspectiva remete ao ensaio “Receituário da dor para uso pós-moderno” (2001), de João Barrento, que analisa justamente a ausência de sentido que existe hoje ao se falar da dor e da morte num tempo onde se vive, coletivamente, uma expurgação da dor, evitando-se pensar no papel crucial que o sofrimento tem na formação da cultura e desenvolvimento de todas as civilizações. Essa expurgação consiste não apenas em negar ou não falar da dor, mas no anestesiamento dessa dor, que, exilada do plano cotidiano da cultura, torna-se um fantasma, uma virtualidade, a ser experimentada apenas enquanto performance, catástrofe, horror — os exemplos mais claros disso seriam o culto a filmes como Jogos mortais (2004, Darren L. Boursman) e O albergue (2005, Eli Roth), que não trabalham com a antiga idéia de catarse ou mesmo de sublimação da dor (como nas tragédias, por exemplo), mas com a transformação da morte e do sofrimento em espetáculos do absurdo, que fascinam exatamente pela sua estranheza e distanciamento. É dessa maneira, explica Barrento, que Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

podemos, na contemporaneidade, desconhecer horrores tão reais e tão próximos de nós, como a fome, a violência, a miséria, a guerra, já transformados em nosso entertainment, incluindo, aí, a publicização massificada dos aspectos privados da vida, também explorados na mídia como espetáculo. A melancolia em Renato Russo e Morrissey, então, denuncia angústias, perdas, do- res, e, principalmente, o desamparo da condição humana, ligando esse incontornável da vida à estética que, assim politizada, imprime uma marca ética e afetiva aos objetos artísticos. Em “Last night I dreamt that somebody loved me”80, Morrissey trabalha o amor como uma ferida situada dentro da corporalidade melancólica de uma espera, localizando toda a mitologia amo- rosa no espaço da fantasia, que só precisa de um movimento brusco do sujeito (cair da cama, por exemplo) para se esfarelar, mostrando a realidade de um vazio repetitivo: “Last night I dreamt that somebody loved me/ No hope, no harm – just another false alarm/ Last night I felt real arms around me/ No hope, no harm – just another false alarm/ So, tell me how long befo- re the last one?/ And tell me how long before the right one?/ The story is old – I know but it goes on and goes on”81. A auto-ironia do sujeito se constrói à medida que emerge de seus gestos uma consciência de estar vivendo na expectativa do sonho impossível do amor român- tico. Assim, sua história é como uma velha ferida que retorna, lembrando, contudo, que o mi- to do amor, quando restrito à repetição de modelos de realidade já vividas e consumadas, ape- nas cristaliza uma expectativa ingênua de que um par perfeito surja a fim de suprir todas as carências do indivíduo. Tal expectativa é mostrada por Morrissey de forma sombria em tantas outras canções, como “(I'm) The end of the family line” (Kill uncle, 1991), “I know it's gonna happen someday” (Your arsenal, 1992) e “I have forgiven Jesus” (You are the quarry, 2004), que invertem a idéia de que na idealização amorosa pode estar um tipo de resposta encontrada por homens e mulheres (a resposta quixotesca, diria Zeldin, 1994) à efemeridade dos afetos, bem como a concepção de que só o amor romântico é capaz de significar a vida. Em muitas letras de Morrissey, portanto, pode-se ler essa consciência de que para ser um bom jogador no amor é preciso estar cada vez menos à mercê da cristalização de seu mito, evitando cair no cárcere circular da crença e da expectativa do par perfeito; em Renato Russo, por vezes, a consciência desses jogos também pode conduzir a uma perspectiva amarga do mito. Sua abordagem registra uma variação entre a exaltação do amor, como em “Monte

80 Álbum Strangeways, here we come. EMI Odeon, 1987 (faixa 6). 81 “Noite passada eu sonhei/ que alguém me amava/ Nenhuma esperança, nenhum dano – apenas outro alarme falso/ Noite passada eu senti/ braços reais ao redor de mim/ Nenhuma esperança, nenhum dano – apenas outro alarme falso/ Então, me diga quanto tempo falta/ antes da última pessoa?/ E me diga quanto tempo falta/ antes da pessoa certa?/ A história é velha – eu sei/ mas ela continua e continua”. MORRISSEY, Johnny MARR. Last Night I dreamt that somebody loved me (tradução livre). Strangeways, here we come. Op. Cit. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

castelo” — livre adaptação que funde o soneto de Camões e trechos bíblicos de “Coríntios, I”, e declara que “é só o amor que conhece o que é verdade” —, “Sete cidades” e “Se fiquei esperando meu amor passar” (AQE); registra ainda a negação desse amor, como em “Longe do meu lado” (ATLD), que esquadrinha as ilusões mais recorrentes do amor-paixão, afirmando não ser ele o “bálsamo” hipervalorizado pelo imaginário coletivo, mas um dispositivo cultural que “quer sangue e corações arruinados”, enfatizando, assim, o aspecto trágico da paixão, definido por Rougemont como um segredo romântico que o mundo ocidental jamais tolerou, pois implica “desejo daquilo que nos fere e nos aniquila pelo seu triunfo” (2002, p.69). Em As quatro estações (1989), RR reuniu uma série de referências ecumênicas, juntando a Camões passagens bíblicas, Lao Tse, Doutrina de Buda, entre outros elementos místicos, para ampliar o seu projeto estético cuja idéia de fusão amorosa como única arma capaz de vencer a solidão humana se sobressai. Apesar de o primeiro verso da primeira faixa ser “Parece cocaína, mas é só tristeza”, houve um cuidado de encerrar o trabalho com uma oração: “Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo, dai-nos a paz”. Não por acaso, esse álbum marca três momentos importantes na carreira do músico e da banda: 1) o rompimento definitivo com qualquer resquício do “no future” dos punks ingleses82; 2) a época em RR assumiu, numa entrevista à Revista Bizz, sua orientação sexual; 3) a presença explícita de uma religiosidade, no sentido mais amplo da palavra, como uma forma de ética pessoal. Mas esses signos místicos não são manipulados como doutrinamento ou mesmo saída para as crises do mundo. A idéia de usar a religiosidade em As quatro estações está mais próxima da concepção oriental de salvação individual do Budismo, em que o sujeito precisa reduzir o ego gradativamente, através de contemplação e meditações diárias, para alcançar o vazio do Nirvana, onde residiria o amor absoluto. O maior obstáculo, no entanto, é a melancolia, que sobressai de tal modo que torna o projeto confuso, a ponto de público e mídia o considerarem o trabalho mais “místico” da banda — e o vocalista, em diversas entrevistas, irritado com a acusação de uma linha mais claramente messiânica nesse disco, declarar que se tratava apenas de um disco sobre sexo83.

82 De certa forma, essa postura já estava clara em Dois, mas foi novamente embaraçada pelos registros de Que país é esse? (1987), que abarcavam tanto o período em que RR tinha o Aborto Elétrico – cuja sonoridade ficava entre Ramones, Gang of Four e PIL —, com gravações como “Que país é esse?”, “Conexão amazônica”, “Química” e “Tédio com um T bem grande pra você”, como a fase de Trovador Solitário de RR, que passou o período de 1981-2 (antes de fundar a Legião), apresentando-se com um banquinho e um violão, à la Bob Dylan, cantando músicas como “Faroeste Caboclo”, “Eduardo e Mônica” e “Dado viciado”. 83 A declaração pode ser conferida no Legião Ao Vivo na Rádio Cidade, que foi ao ar em abril de 1990; Legião Urbana no Estúdio Transamérica, em maio de 1990; Entrevista a MTV, Presente, Passado, Futuro, exibido na íntegra em 1996. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

As letras do álbum mostram uma concepção de ética que engloba a vivência plena da (homo)sexualidade, antes dissimulada, e o investimento em rituais de fé e cultivo das virtudes cristãs, a fim de amenizar o desespero pessoal84. O amor, então, é representado como a maior das virtudes, simbolizando o ápice do aprendizado humano e uma espécie de libertação individual, sintetizada nos versos da última faixa, “Se eu fiquei esperando meu amor passar”:

Se fiquei esperando meu amor passar Já me basta que então eu não sabia Amar e me via perdido e vivendo em erro Sem querer me machucar de novo Por culpa do amor Mas você e eu podemos namorar E era simples: ficamos fortes Quando se aprende a amar O mundo passa a ser seu [...] (RUSSO, 1989)

O aspecto que mais se destaca em As quatro estações é a abordagem da experiência amorosa homoerótica, presente de forma explícita em “Meninos e meninas”, “Feedback song for a dying friend”, “Eu era um lobisomem juvenil” e “Maurício”. Trata-se de um olhar dife- rente da tônica das explorações de vivências homoeróticas já conhecidas pela cultura rock, como o desbunde da contracultura ou a época de androginia da glam ou glitter rock85 dos anos 1970. Mais próximo de Morrissey, que recusa tanto os modelos identitários festejados pelo mainstream da cultura rock, quanto os heteronormativos da cultura estabelecida, Renato Rus- so articula sua idéia de homossexualidade associando-a às encenações culturais nas quais os sujeitos se confrontam com inclinações e desejos múltiplos, que ampliam suas histórias pes- soais e socioculturais. Podemos pensar então em subjetividades com contornos políticos, e não em identidade fixa. Sua opção é pelo abandono da oposição das relações binárias, e pela inscrição no campo da ética e da exacerbação dos afetos. Nessa esfera produtiva de subjetividades, assumem-se os afetos, os desejos, as vivências e as emoções como fluxos por onde circulam também saberes, informações, comportamentos, gostos, visões de mundo, habilidades, fantasias, sentimentos, livres de fronteiras, como numa

84 Nessa ocasião, Russo veio a público dizer que era dependente químico e “psicótico maníaco depressivo”. Cf. Arthur DAPIEVE. O trovador solitário, 2001. 85 Movimento estético que despontou no mundo britânico, e teve expansão em vários países (inclusive no Brasil, com o grupo Secos & Molhados). A principal tendência era o culto à aparência andrógina, o uso de roupas unissex, performances exageradas e glamourizadas pelo uso de brilhos, paetês, pintura e exploração de cores berrantes no vestuário e cenários dos shows. Na linguagem, isso se traduzia na utilização de expressões e pronomes que levassem a uma ambigüidade de gênero. Bandas e artistas tipicamente “glam” são New York Dolls, David Bowie na fase Ziggy Stardust (1970-73), Lou Reed, na época de Transformer (1970), T-Rex e Iggy Pop, depois que sai dos Stooges. O filme Velvet Goldmine (1998), de Todd Hynes, recupera esse período através de uma fusão em dois personagens das figuras de Iggy Pop, Lou Reed, Marc Bolan e David Bowie. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

bricolagem mutante, conforme mostra RR em “1965, Duas tribos”(AQE): “Mataram um menino/ Tinha arma de verdade/ Tinha arma nenhuma/ Tinha arma de brinquedo/ Eu tenho autorama/ Eu tenho Hanna Barbera/ Eu tenho pêra, uva e maçã/ Eu tenho Guanabara/ E os modelos Revell/ O Brasil é o país do futuro”. De um fato recortado do noticiário, com a informação do assassinato de um menino, desliza-se para a ternura da infância quando havia “arma de brinquedo”; então, um novo campo semântico puxa as imagens perdidas de uma posse lúdica, que fazem vir à tona a marca de uma multinacional, o período político em que se construiu a máxima de que “O Brasil é o país do futuro”. Ou seja, é tudo aquilo íntimo, singular ou obtido a partir de nosso cruzamento com outras subjetividades que nos solicita uma comunicação, política e poética, que Peter Pál Pelbart, em A vertigem por um fio: políticas da subjetividade contemporânea (2000) designou de formas de vida, registrando, assim, esse sentido dinâmico das produções artísticas e culturais no plano da sociabilidade das ações humanas. As formas de vida podem ser pensadas não apenas no plano da sociabilidade e da ar- te, mas como uma atuação criativa no campo da sexualidade, o que liberaria as práticas sexu- ais de uma concepção naturalista que as liga à identidade essencialista, reivindicadora de um conteúdo “secreto” e “inerente” à sexualidade humana, que precisaria ser assumido. Essa pos- tura, designada por muitos de “militante”, é vista por Foucault em suas Histórias da sexuali- dade como restritiva ou mesmo falsa, porque incapaz de compreender os movimentos de construção do dispositivo da sexualidade, a que o filósofo chama de “uma arte de vida”86. A produção dessa arte não lida com uma definição estanque ou bem demarcada da sexualidade, nem com um movimento de resgate do desejo alojado no interior do ser, mas com possibili- dades capazes não de modelizar, mas de modular. Na modulação estaria resguardado o direito de reconstruir, planejar, ajustar-se a novas proporções, formar e desformar unidades autôno- mas, subverter as unidades, preservar a alteridade etc. É dessa liberdade, cara e necessária, que fala a teoria Queer, através das análises de Judith Butler (1990) ou de reatualizações do pensamento de Foucault feitas por Shirley Talburt (2005). Através de uma combinação entre teorias pós-estruturalistas, pós-modernas e pós- feministas, a teoria Queer se coloca como questionadora da polaridade identitária e das

86 “O que eu gostaria de dizer é que, em minha opinião, o movimento homossexual tem mais necessidade hoje de uma arte de viver do que de uma ciência ou um conhecimento científico (ou pseudocientífico) do que é a sexualidade. A sexualidade faz parte de nossa conduta. Ela faz parte da liberdade em nosso usufruto deste mundo. A sexualidade é algo que nós mesmos criamos – ela é nossa própria criação, ou melhor, ela não é a descoberta de um aspecto secreto de nosso desejo. Nós devemos compreender que, com nossos desejos, através deles, se instauram novas formas de relações, novas formas de amor e novas formas de criação. O sexo não é uma fatalidade; ele é uma possibilidade de aceder a uma vida criativa”. Cf. FOUCAULT. “Sex, Power and the Politics of Identity”. Entrevista concedida a B. GALLAGHER e A. WILSON (Toronto, junho de 1982). Trad. Wanderson do Nascimento. The Advocate. n. 400, em 07/08/1984, p. 26-30 e 58. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

políticas de conformação das subjetividades dentro de um conceito comunitário que uniformiza, retirando a autonomia individual e o direito à multiplicidade dos sujeitos. Movendo-se nessa linha de pensamento e objetivando a retomada de uma liberdade para as práticas sexuais e culturais, Talburt afirma a manutenção desse aspecto livre do desejo, uma vez que está falando de um campo construído pelas forças de singularização do indivíduo e não pré-existente a ele: “sexualidade não possui significados a priori, mas significados relacionais que se constroem, se imitam e são imitados” (TALBURT, 2005, p.25). Um dos primeiros deslocamentos que a teoria faz é do uso da palavra queer, reapropriada para dar conta de uma positivação do “estranho”, do “bizarro”, do “esquisito” que antes o vocábulo denominava de forma pejorativa. A disseminação dessa postura no meio acadêmico, no entanto, é posterior a certas performances que já dinamizavam a cultura, afirmando diferentes orientações e dispositivos sexuais. Numa canção como “Piccadilly Palare”, por exemplo, Morrissey já brincava com a circunscrição dos guetos londrinos destinados aos homossexuais, invertendo a conotação negativa que o lugar tem na cultura dominante inglesa e enfatizando que o lado livre de encenação do desejo só possível àqueles que sabem se colocar “fora dos trilhos”:

Off the rails I was and Off the rails I was happy to stay Get out of my way

On the rack I was Easy meat, and a reasonably good buy A reasonably good buy

The Piccadilly Palare Was just silly slang Between me and the boys in my gang “so bona to vada, oh you, Your lovely eek and Your lovely riah”

We plied an ancient trade Where we threw all life’s Instructions away Exchanging lies and digs (my way) (MORRISSEY, 1990)87

87 Fora dos trilhos eu estava/ E fora dos trilhos eu estava feliz em estar/ Saia do meu caminho/ Na prateleira eu estava/ “carne fácil”/ Mas uma compra razoavelmente boa/ Uma compra razoavelmente boa/ O Piccadilly Palare/ Era só gíria boba entre mim e os caras da minha gangue/ “tão bom de ver, ah, você/ Seu rosto adorável e seu adorável cabelo”/ Nós exercíamos um antigo comércio/ Onde jogávamos todas as regras da vida fora/ Trocando mentiras e cotoveladas (a meu modo). Piccadilly é uma praça e uma rua do bairro Soho, em Londres. “Piccadilly Palare”. Stephen STREET, MORRISSEY. Álbum Bona Drag. EMI, 1990 (faixa 1). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Em entrevista, na época de divulgação desse disco, Morrissey comentou sobre a intenção de retomar a atmosfera de liberdade que o lugar representou nos anos 1970, em Londres — quando o Piccadilly era um reduto de prostituição masculina —, positivando a idéia de liberdade e poder que o exercício da sexualidade pode proporcionar. No entanto, quando o jornalista aproveita para restringir a questão à homossexualidade do cantor, sua reação é de recusa ao rótulo, destacando o lado restritivo que ele traz:

Revista Face: Você escreve bastante sobre a experiência homossexual... Morrissey: Bem... não muito. Revista Face: OK, você escreve bastante sobre o “desejo” homossexual. Morrissey: Eu sempre disse que deixo tudo em aberto e canto sobre as pes- soas em geral. Sem limitações. E não acho que isso faça de mim um homos- sexual. Revista Face: Você sempre fica ofendido com essa palavra. Morrissey: Porque ela é tão limitadora e restritiva. Revista Face: Você se sente mais capacitado para se projetar sexualmente, agora? Morrissey: Sim, eu sinto. Durante toda a carreira dos Smiths, eu estava completamente aleijado. Estava preso a uma cadeira de rodas, não tenho dú- vidas. Um dia, de repente, acordei e senti: “Meu Deus!”. Isso ocorreu recen- temente, pouco mais de um ano atrás. Quer dizer, suponho que a “masculini- dade adulta” eventualmente chegue para todos (explode em gargalhadas). Talvez eu esteja sendo excessivamente otimista. Revista Face: E relacionamentos... sexuais? Morrissey: Não tenho nenhum. Estão fora de questão. Revista Face: Por quê? Morrissey: Em parte porque sempre me senti atraído por homens e mulheres que nunca se sentiram atraídos por mim. E nunca me senti atraído por homens ou mulheres que se sentiram atraídos por mim. Aí está o problema. Nunca en- contrei a pessoa certa. (MORRISSEY apud Nick KENT, 1990, p. 40-41).

Atento ao jogo de captura e manipulação da subjetividade pela mídia e mercado, o cantor desautoriza a facilitação que a palavra “homossexual” daria às manifestações eróticas trabalhadas nas canções; em seguida, aproveita para vetar o acesso a sua intimidade, declarando a ausência de relacionamentos sexuais, de acordo com a persona construída desde a época dos Smiths. Assim, ele demonstra manipular as estratégias discursivas e poéticas que viabilizam a produção de subjetividades, assumindo o controle do íntimo, do privado. Nessa seleção, ele se permite à circulação de uma singularidade cuidadosamente construída, que antes mesmo de ser comunicada em entrevistas, já foi conhecida pelos fãs através da linguagem poética de suas canções, que sempre trabalharam de forma aberta e irônica com o desejo hetero, homo, bissexual e até mesmo com uma ausência de desejo, isto é, uma assexualidade — essa diversidade abrange canções como “This charming man”, “Pretty girls make graves” (do álbum Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

The Smiths, 1983), “Handsome devil” (Hatful of hollow, 1984) e “Half a person” (The lourder bombs, 1986), que encenam essas diferentes sexualidades, sem restringi-las a uma identidade. Dentro desse projeto de dinamizar as subjetividades, comunicando-as política e poe- ticamente, Renato Russo também refletiu sobre o princípio da uniformidade, que é capaz de converter todo o desejo em rótulo, ponto fixo, norma, a serviço de um macropoder. Por isso, ao escolher compartilhar sua orientação sexual, utilizou frases e expressões que pudessem abarcar seu “gosto por meninos e meninas”, desvelando o fluxo incessante dos afetos. Essa postura, no entanto, foi minimizada pela mídia e parte de seu público, que viram na frase “eu gosto de meninos e meninas” apenas um expediente discursivo para a publicização de sua homossexualidade. Se buscarmos a entrevista em que tal assunto é abordado pela primeira vez, veremos que a ênfase recai na bissexualidade, senda essa, inclusive, posteriormente re- tomada em outros depoimentos (quando ele assume o relacionamento com a atriz Denise Bandeira, por exemplo) e canções (“Marianne” e “Flores do mal”, de ATLD são dedicadas a ex-namoradas), nos quais pluralizava os afetos, indicando a perda de fronteira dos desejos e dos jogos amorosos. Tais apropriações de frases, expressões, declarações, gestos e imagens de uma persona pública pela mídia e público funcionam como o que Eneida Maria de Souza, em Crítica Cult (2007), chama de componentes ritualísticos de consagração do artista, que pressupõem não apenas uma redução dos elementos biográficos, mas uma maneira de apropriação e seleção dos aspectos que indicam o presente glorioso da figura pública, e possibilitam sua entrada num espaço destina- do à consagração, à mitologia. Isso implica, a um só mesmo tempo, uma proliferação de biografi- as e uma manipulação condensada das imagens de um ídolo, uniformizando a fragmentação das aparições públicas, as performances, os discursos, as contradições e os paradoxos da condição humana. Dessa forma, podemos entender essa lógica cultural de público e mídia como um empre- endimento coletivo para obtenção de um perfil que “pareça” unívoco, inscrito como “a verdade” sobre aquele mito popular — e não como mais uma entre tantas interpretações, como de fato é.

3.5 COM VOCÊ POR PERTO EU GOSTAVA MAIS DE MIM

Uma das contradições que circulam nos textos de Renato Russo é a tendência, assumida a partir de As quatro estações, ao uso da junção de amor e sexo em prol de uma transcendência. Nesse sentido, a sexualidade, que era assumida nas entrevistas e em tantas Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

outras canções como móvel e aberta, reduz-se à idéia da unidade original, ou seja, seria uma forma de se retornar ao conforto do útero materno ou ao paraíso perdido. Essa linha de fuga de um projeto mais amplo de produção de formas de vida (que, nesta análise, é visto como muito mais predominante e produtivo) encontra sua cristalização em letras como “Há tempos”, que parece defender uma essência perdida, “enferrujada” por modos de vida caóticos, céticos e urbanos, e em “Quando o sol bater na janela do seu quarto”, que faz circular uma crença de que a saída é única e compreende a recuperação de uma virtude perdida. Todavia, na adaptação que faz dos “Coríntios, I”, o vocalista volta à abertura de sentido, cantando que “sem amor” não se é nada, pois “só o amor conhece o que é verdade” (“Monte Castelo”). A opção pelo registro “conhece o que é verdade” e não “a verdade” aponta para uma idéia de que essa verdade que o amor faz conhecer não está posta no mundo, isto é, não pode ser buscada como um processo externo, uma vez que ela é resultante da prática amorosa do sujeito, de um empreendimento individual que o habilite a se auto- significar a partir dos afetos — daí a ênfase que o roqueiro dava, nos shows, ao verso “sem amor eu nada seria”. Essa mesma ampliação de sentido pode ser percebida em “Pais e Filhos”, uma letra feita a partir de colagens de frases nas quais se perde a todo instante quem enuncia e quem narra, uma vez que o jogo entre pedaços de histórias (“ela se jogou da janela do quinto an- dar”), descrições (“Estátuas e cofres e paredes pintadas”) e impressões (“nada é fácil de en- tender”) convive com afirmações metafóricas (“sou uma gota d’ água/ sou um grão de areia”) e trechos de diálogos embaralhados (“Posso dormir aqui com vocês?”; “Vou fugir de casa”; “Eu moro com meus pais”). Não há necessidade de demarcar quem fala, mas de ressaltar o deslizamento dos afetos, que são costurados por um determinante “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã/ porque se você parar pra pensar/ Na verdade não há”. Assim, o descentramento das vozes abre espaço apenas para a centralização do amor, que seria como um fio condutor entre todos esses discursos móveis. Depois de tanto cantar a importância e o poder de construção de verdades do amor, em V (1991), RR adapta um poema de Nuno Fernandes Torneol para novamente encerrar o fantasma do trabalho anterior, negando aquilo que nele mais se destaca: o amor. O álbum então se inicia afirmando ser o amor um dispositivo de que se ouve falar, mas o qual jamais se viu; em seguida, mergulha numa canção de 11 minutos, cheia de elementos medievais (castelo, espada, princesa, dragão, metal, outro, brasão, tesouro), que narra uma jornada mística, na qual fé, desejo e verdade estão relativizados pela inconstância do percurso e posicionamento do “herói”. Aproveitando a foto de Renato Russo no encarte do álbum, Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

vestindo uma camiseta da banda Jesus and Mary Chain, Hermano Vianna Jr. (1995) define o V como “uma apologia da serenidade que se tem quando se descobre a beleza no barulho da realidade”; uma definição que pode explicar a existência de canções como “Sereníssima” (em que o amor é representado como um lugar móvel, de guerra e concessões entre os parceiros) e “O mundo anda tão complicado” (que celebra o casamento homoerótico, dentro do modelo que Giddens chamou de “amor confluente”, uma relação baseada na reciprocidade do desejo) ao lado de outras tão conflituosas e amargas como “Vento no litoral” (uma das abordagens mais líricas e desesperançadas da perda amorosa) e “A montanha mágica” (que tematiza a experiência com a heroína). O mais importante em V, entretanto, é a idéia da instabilidade, do precário, que e- merge dos afetos, como nos versos que fecham a jornada de “Metal contra as nuvens” — “Tudo passa, tudo passará/ E nossa estória não estará pelo avesso/ Assim, sem final feliz/ Te- remos coisas bonitas para contar/ E, até lá, vamos viver/ Temos muito ainda por fazer/ Não olhe para trás/ Apenas começamos”88 — ou nas sentenças complexas de “Sereníssima” — “Consegui meu equilíbrio cortejando a insanidade/ Tudo está perdido mas existem possibili- dades”. Essa precariedade impõe um ritmo às pequenas histórias que vão se esgarçando con- forme “o caos segue em frente/ com toda a calma do mundo”89. O medievalismo não é só uma atmosfera suscitada por palavras soltas, mas um conceito estético que se cristaliza em faixas como a instrumental “A ordem dos templários”, ou pelos símbolos dispostos na capa e encar- te, pela predominância do branco e do dourado, pela escolha da fonte para impressão das le- tras, ou em frases dispostas no interior do álbum, como a saudação “Bem-vindos aos anos 70”, que relaciona o período de produção do rock progressivo à Idade Média. O descobrimento do Brasil (1993) funciona sonoramente como uma revisão de todos os trabalhos da banda, e, por isso mesmo, utiliza imagens que ficaram pelo caminho (como o uso estético de flores que remetia aos Smiths, e de personagens com perfis populares) para retomar as explorações do início da carreira e encerrar simbolicamente um ciclo. Nele, são novamente exploradas microhistórias adolescentes (como na oitava faixa, “Vamos fazer um filme”), desenhos amorosos homoeróticos (“La nuova gioventú”, faixa 13) e clichês (“Do espírito”, faixa 3), assim como histórias que unem personagens de perfis populares, na mesma linha de “Eduardo e Mônica” e “Faroeste Caboclo” (do álbum Dois, 1986), como é o caso da canção-narrativa que dá título ao disco. A idéia não é de registro histórico do passado brasileiro, mas de uma celebração afetiva das tantas províncias que compõem o Brasil, como

88 Álbum V. Op. Cit. (faixa 2) 89 Álbum V, Op. Cit. (faixa 6). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

mostra a letra de “Perfeição”, que reúne todos os erros, problemas e vergonhas nacionais (roubo, corrupção, desonestidade, situação precária das estradas, desperdício de riquezas, miséria, fome, violência etc.), para, ao final, eleger o amor como um empreendimento individual que pode retornar e se inscrever, em forma de ação positiva, ao/no coletivo: “Venha, meu coração está com pressa/ Quando a esperança está dispersa/ Só a verdade me liberta/ chega de maldade e ilusão/ Venha, o amor tem sempre a porta aberta/ E vem chegando a primavera/ Nosso futuro recomeça:/ Venha, que o que vem é perfeição”90. A alegria desse “achado” amoroso predomina mesmo em momentos mais difíceis, como na abordagem da perda de amores e amigos de “Love in the afternoon” (faixa 12) e na superação de uma dependência química, como em “Só por hoje” (faixa 14), ou, ainda, quando se flagra a metamorfose do amor, desenhando rompimentos e recomeços, como em “Giz”: “Lá vem, lá vem, lá vem de novo/ acho que estou gostando de alguém/ e é de ti que não me esquecerei”91. Essa positivação só é quebrada quando o deslizamento conduz a uma história amarga, como em “Os barcos”, cuja montagem de frases configura um final amoroso em que as duas forças ainda estão em conflito: “Você diz que tudo terminou/ Você não quer mais o meu querer/ Estamos medindo forças desiguais/ Qualquer um pode ver/ Que só terminou pra você”92. No entanto, mesmo nessa pequena história, cujo ressentimento transborda, a concep- ção de amor se mostra a partir de signos móveis, indicativos de uma fluência e de uma cons- trução consciente do sujeito: “São só palavras: teço ensaio e cena/ a cada ato enceno a dife- rença/ do que é amor ficou o seu retrato/ a peça que interpreto/ um improviso insensato”. As- sim, a própria dor manifestada é compreendida como uma teatralização capaz de fazer circu- lar elementos díspares, mas caros à subjetividade — o caminho dos barcos (uma metáfora da união entre os parceiros), a saudade, o retrato, o desejo de refazer o caso desfeito, comparado a um entulho, voltar a funcionar positivamente, não como lixo, mas como virtude.

Todas as experiências amorosas podem ser lidas como uma ampliação dinâmica do projeto estético do músico, através de recortes que problematizam o mito do amor, tanto através da colagem de falas e universos subjetivos das canções, quanto na busca de um discurso que refletisse sobre a vivência, expressão e politização dos afetos. O uso da melancolia e de fragmentos complexos do amor, retomados do trovadorismo e da tradição das

90 Álbum O descobrimento do Brasil. EMI, 1993 (faixa 4). 91 Ibid., faixa 11. 92 Ibid., faixa 7. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

narrativas ocidentais, permitiram a Renato Russo uma abordagem na qual a compreensão e a comunicação poética dos afetos não prescindem de uma ética que deve permear as relações amorosas e de amizade, assim como o posicionamento artístico e sócio-político-cultural. A inserção do músico dentro do universo da cultura rock dos anos 1980 e 1990 no Brasil permite pensar essa manifestação cultural como uma rede híbrida, que ultrapassa as fronteiras de gênero musical, abrindo para um leque de considerações acerca de práticas mercadológicas, polí- ticas, estéticas e sociais. Desejei aqui também contextualizar esses elementos, devido à produtivi- dade que tais relações permitem, uma vez que, enquanto paisagem, todos esses aspectos históri- cos, políticos, sociais e culturais permitem a visualização de um plano mais dinâmico e fluente dos objetos. Da mesma forma, aproveitei as relações intertextuais entre Morrissey e Renato Rus- so, como forma de destacar não apenas uma influência assumida pelo vocalista da Legião Urbana, mas particularidades, aproximações e distanciamentos entre dois letristas que estão inscritos na cultura rock exatamente pela capacidade de elaboração de subjetividade múltiplas, que mobilizam todo um repertório de aventuras individuais e coletivas, no qual o mito do amor é muito mais um dispositivo descentralizador de saberes, informações, falas, histórias, lendas, sensações, texturas e emoções, do que um elemento uniformizador dessas construções.

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CAPÍTULO 4 SUPERFÍCIES REFLEXIVAS: AIDS, POESIA E VIDA

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colo- cou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, a- gradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.

Caio Fernando Abreu. Pequenas Epifanias

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Existem marés e existe a lua. Alguns erros são de propósito, outros não. Kyrie Eleison. Christie Eleison. Pie Jesu, qui tollis peccat a mundi dona eis requiem. Existem canções. É devagar que se vai ao longe.

Renato Russo. As quatro estações

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m 26 de fevereiro de 1996, aos 47 anos, Caio Fernando Abreu falecia em Porto Alegre, E ao lado da família e de alguns amigos íntimos. Na madrugada de 11 de outubro do mesmo ano, Renato Russo também encerrava seus 36 anos, no Rio de Janeiro, ao lado do pai e de uma enfermeira. Ambos morriam em decorrência de doenças oportunistas causadas pela AIDS. Não foram os únicos. A lista de “meninos e meninas” que morreram durante os anos 1980/90 em decorrência da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida é extensa; abrange o mundo da música, do cinema, da literatura, das artes, do teatro, da televisão, da filosofia, da moda, da publicidade, e do pequeno-gigante mundo do anonimato. Numa conferência apresentada no Seminário Literatura da Urgência, em setembro de 200693, Ítalo Moriconi acentuou o quanto esse fenômeno extremo da Aids se tornou uma condição “inseparável das transformações tecnológicas, ideológicas, existenciais ocorridas ao longo dos anos 90 e na virada de século”. A própria expansão da AIDS foi vertiginosa, assim como o seu impacto no contexto histórico-social, nas microhistórias (individuais e coletivas) e nas microformas subjetivas traçadas pela literatura, teatro, cinema, televisão e música na década de 80. No início dessa década, não havia números que pudessem formar uma estatística, mas casos isolados de homossexuais, usuários de drogas injetáveis e hemofílicos, que apre- sentavam um quadro clínico parecido. Esse número aumentou a partir do diagnóstico comum entre as vítimas de um estado grave de imunodeficiência, presença de Sarcoma de Kaposi e de pneumonia. Em 1983, o cientista Barré-Sinousi e sua equipe sugeriram que doença fosse cau- sada por um retrovírus — denominado inicialmente como “Lymphoadenopathia Associated Virus”. Três anos mais tarde, o nome Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) foi unificado para nomear o agente causador da AIDS e, em 1987, classificado e associado a infecções com longos períodos de latência clínica. Muito em função dos passos lentos da ciência e dos go- vernos, a década de 80 entrou para história, então, como a “época da epidemia”. Caio Fernando Abreu já era um escritor razoavelmente conhecido nessa época; sua literatura simbolizava a inserção de uma geração que buscou na palavra (poesia, ficção, ensaio e jornalismo) um meio eficaz de atuação na esfera pública, não apenas se expressando, mas discutindo questões sérias como cultura, política, liberdade individual, sexualidade, o papel dos intelectuais, das instituições, as relações com o poder, a relação entre poesia e cotidiano, e a transformação do papel da arte na contemporaneidade. Sua geração contou com nomes como os de Ana Cristina Cesar, Torquato Neto, Paulo Leminski, Chico Alvim, Cacaso,

93 O Seminário Literatura da Urgência aconteceu no SESC do Rio de Janeiro, nos dias 11, 12 e 13 de setembro de 2006. O texto apresentado por Moriconi foi publicado na revista virtual Cronópios. Disponível em: . Acesso em: 22 nov. 2007. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Márcia Denser, Glauco Matoso, Sérgio Sant’Anna, Chacal, Wally Salomão, João Silvério Trevisan, João Gilberto Noll, entre tantos outros que aprofundaram o grande debate acerca das condições de emancipação da sociedade e da cultura brasileiras. Renato Russo simboliza uma geração que buscou na música, sobretudo no rock, seu mais forte meio de interferência na sociabilização de valores e visões de mundo. Sua geração trouxe para o universo musical brasileiro nomes de letristas como os de Júlio Barroso, Cazu- za, Arnaldo Antunes, Dulce Quental, Herbert Vianna, Paula Toller, Leoni, Lobão, Edgard Scandurra, Cadão Volpato, Alvin L., Arnaldo Brandão, entre outros, que tentaram, a sua ma- neira, traduzir, no momento da redemocratização, o “faça-você-mesmo” da estética e postura punk britânica de 1976, procurando uma forma saudável de lidar com o funcionamento da indústria musical, com o crescimento pessoal, a perda da inocência, a relação sujeito-poder, poder-sociedade, criação e tecnologia, a aposta na amizade, na ética, e a busca da realização amorosa. O exercício de aproximar autores é absolutamente imaginativo. Tenham eles ou não semelhanças de estilo, nada mais decisivo do que o olhar de quem os costura numa rede de relações que pode ser facilmente esgarçada, e, ao exame de outra lupa, exposta a partir de pontos distantes, incoerentes e opostos daquilo que parecia tecido. Aproximar gerações, então, é mais do que exercício de sonhador, pode ser um fatal equívoco; afinal, como se acomodari- am tantas subjetividades num único rótulo ou grupo de características? O próprio vocábulo “geração” implica generalizações e, não raro, elas interferem justamente naquilo que singula- riza cada autor ou produção. Aprendemos com a sociologia a considerar “geração” um grupo de indivíduos nascidos num mesmo contexto cultural, que tenha partilhado os mesmos acontecimentos sociais durante o seu crescimento, a sua formação. Dessa experiência histórica, são extraídas linguagens e maneiras de atuação na vida coletiva, bem como valores e visões de mundo. Trata-se de uma espécie de consciência em comum que permanece nesses sujeitos, ainda que cada um trilhe destinos distintos de seus pares. Essa consciência em comum é um elemento distintivo quando transformado em dispositivo histórico-cultural por aqueles que compartilham tal experiência. Tal dispositivo pode ser compreendido como um gerador de diferenças estruturais entre uma geração e outra, quer estejamos falando de grupos mais novos ou mais velhos do que aquele enfocado. Essas diferenças resultam em conflitos ou tensões que são imprescindíveis para a renovação intelectual da sociedade, pois, mesmo separadas por vivências específicas, as gerações se atraem dentro da ordem social, se repelem e interagem Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

entre si, conforme explica Mannheim, em Ideologia e utopia: introducción a la sociologia del conocimiento (1993). Todavia, onde quer que o conceito de geração possa ser cunhado, sempre nos parece- rá enganoso, isto é, sempre apresentará os pontos de fuga de que nos fala Deleuze e Guattari, em Mil Platôs (1995), uma vez que se torna impossível a tradução de tantas subjetividades numa definição generalista. Neste capítulo, levo em conta que a fluidez e os intercambiamen- tos dessas subjetividades transbordam pelos limites farpados das abordagens que fixam os indivíduos em causas e questões coletivas. Busco, no entanto, as espontaneidades com que essas subjetividades deslizam para o coletivo, formando os emaranhados fluidos e cambiantes de que nos fala Canevacci, em Culturas eXtremas (2005). Assim, trabalho com a idéia de ge- ração até certo ponto, isto é, até não perder de vista as conexões vitais com que os discursos de CFA e RR, inseridos naquele contexto histórico-político da década da epidemia, participa- ram dessa crise discursiva e estética dos anos 80. Pretendo confrontar aqui as visões que CFA e RR tinham de seu papel junto ao pú- blico e do papel da doença, numa década em que a AIDS modificou o fluxo comunicacional entre artistas, produções, mídia e público. Para tanto, considero toda a vertigem cultural dos anos 80, com suas zonas limítrofes, seus signos específicos, suas paisagens polifônicas e ur- banas, e busco levantar algumas reflexões em cima dos fragmentos remanescentes dessa épo- ca que, como “resíduos culturais”, permitiram, neste recorte, a visibilidade de duas posturas distintas, tanto em relação à epidemia quanto ao discurso sobre ela. Opto, também, por não me cercar de leituras que procuram esquadrinhar as identidades sexuais fixas desses dois auto- res, pois quero, antes, os espaços móveis nos quais as produções artísticas e os discursos do dois autores fizeram a vivência homoerótica e experiência da AIDS circularem.

Segundo Moriconi (2006), toda produção artística que emerge diante da urgência de uma circunstância singular e extrema não tem apenas uma história ou acontecimento para usar como pano de fundo de suas imagens, melodias, cenas ou narrativas; mais que isso, certas circunstâncias extremas colocam-se como uma interface dessas produções, ligando-se, também, “às teorias e estudos do testemunho, da memória do holocausto, e do trauma em geral, nas suas dimensões individuais tanto quanto coletivas”. Para Moriconi, os objetos artísticos elaborados em momentos quando a humanidade lida com fenômenos extremos podem ser lidos como gêneros mesmo, e, nesse caso, a AIDS está na articulação desses discursos individuais e coletivos como marca real, não apenas metáfora, mas fissura na superfície dos corpos em processos de definição e construção do desejo. Isso porque a AIDS Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

é, acima de tudo, uma doença ligada à sexualidade, mais precisamente à liberação da sexualidade e, por conta dessa especificidade, a estruturação de sua vivência absorve todo um entorno de brutalidade, repressão, desamparo e resistência de um período em que os anseios de liberdade individual foram sufocados — não por um poder estabelecido, mas por um pânico geral de se tornar mais uma vítima. Assim, na reavaliação que hoje se faz daqueles anos de domínio e expansão da AIDS, o operador mais comum tende a enxergar a doença como um impasse que obrigou todo um legado de “um certo querer mais”, iniciado na década de 60, a ser repensado justamente pelo seu avesso, por aquilo que ele não pretendia significar, sendo a epidemia tomada pelos significados construídos a partir da sua forma de contágio e de sua facilidade de dissemina- ção. O perigo de se ler uma enfermidade a partir de sua causa e extensão é o valor metafórico que se dá a ela, ou seja, a troca da análise de sua estruturação fisiológica nos corpos pela cris- talização simbólica de seus efeitos nas mentalidades. Em A doença como metáfora (2002)94, Susan Sontag discorre sobre os valores atribu- ídos, pela literatura, sociedade e medicina, à tuberculose e ao câncer. Ela deseja interferir na conceituação dessas doenças, compreendidas como “maldição”, a fim de retificar a natureza horrível que as cercam, questionando a utilização delas como metáfora, que, na sua análise, leva ao preconceito e à discriminação. Suas reflexões partem da não-aceitação de uma consta- tação bastante comum tanto à tuberculose quanto ao câncer: o fato de se considerarem não apenas as doenças como físicas, mas como “males espirituais”. Ou seja, a leitura comumente mistifica e isola, instaurando uma aura especulativa e até punitiva no espaço da privacidade do enfermo, ali onde todo ser humano teria o direito de estar em paz e livre de julgamento para se dedicar ao tratamento da enfermidade. Na continuação dessa pesquisa sobre como se lêem as doenças no nosso mundo, Sontag escreveu AIDS e suas metáforas (1989), abordando o estigma de peste que as doenças sexualmente transmissíveis têm e como elas passam por uma transformação na “pré-modernidade”, adquirindo a pecha de castigo e de vergonha, tanto para o seu portador quanto para seus familiares e amigos. A idéia de que uma enfermidade possa conter uma mensagem secreta através de seus sintomas, de suas marcas, deixando entrever a má conduta de seu portador, expondo uma falha de caráter, desnudando um extravio de alma, não é privilégio da AIDS; no entanto, o que Sontag mostra é o deslocamento que a concepção de uma doença como castigo divino sofreu a partir do século XV. Segundo a escritora, tal mudança se inicia com a sífilis, quando a noção de castigo vem se somar à de punição. A vergonha que envolve o enfermo, a família e

94 Creio ser importante dizer que a primeira publicação da obra data de 1979. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

toda a coletividade cria uma atmosfera de ameaça e repulsão, e, sobretudo, transforma a AIDS no mal do “outro”, aquele que a merece por ostentar uma vida libertina, promíscua. Nesse caso, o castigo recaiu sobre os homossexuais, uma vez que a doença foi denominada no seu período inicial de “praga gay”. Marcelo Secron Bessa, em Os perigosos: Autobiografias & Aids (2002), acrescenta a essa percepção de “doença do outro” a idéia do entranho, que faz parte da epidemia dos dis- cursos sobre a AIDS, uma vez que o vírus HIV sempre foi ligado ao deslocamento de estran- geiros para lugares considerados exóticos pelo mundo ocidental — a exemplo do comissário de vôo Gaetan Dugas, morto em 1984, que se transformou no famoso “Paciente Zero” ou no “homem que trouxe a AIDS para a América”. O cerne dessa maneira peculiar de ver a epide- mia estava na associação dela com hábitos de vida sujos e, por conseguinte, ameaçadores da higiene, da civilidade, da harmonia social. Afinal, como afirma Bauman, “o estranho despe- daça a rocha sobre a qual repousa a segurança da vida diária. [...] Ele ‘tem de’ cometer esse ato perigoso e deplorável porque não tem nenhum status” (1997, p.19). A construção da AIDS como uma doença “punitiva” para grupos que apresentavam uma conduta sexual considerada inadequada impossibilitou, durante as décadas de 80 e 90 do século passado, que seus portadores pudessem ser vistos apenas como pessoas vitimadas por um vírus, que precisavam de cuidados e de investimentos em pesquisas. Dentro desse cenário, os grupos se viram obrigados a inventar formas de lidar não apenas com a epidemia e a escas- sez de métodos eficazes quanto ao seu controle, mas, principalmente, com os discursos — jornalístico, médico e do senso comum — sobre a enfermidade. Em Homossexualidade: uma história (1995), Colin Spencer recupera a coragem com que a comunidade gay enfrentou a AIDS, saindo de primeiro grupo mais atingido, no final da década de 80, para um dos mais estáveis em meados da década de 90, quando o pânico da doença obrigou a maior parte dos homossexuais masculinos a adotar o uso de preservativos, práticas sexuais mais seguras (co- mo sexo virtual) e a reduzirem o número de parceiros. Ele lembra que, a partir de um certo período da década de 90, as relações heterossexuais passaram a representar a maior forma de contágio do HIV. Paralelamente à expansão da AIDS e do rótulo que ela ganhou de “síndrome” ou “peste gay”, há nos anos 80 outros fenômenos culturais que inserem essa década numa das mais “esquisitas” de todos os tempos — “esquisita”, aliás, é uma denominação usada à exaustão durante a própria década, pelos artistas, público e mídia, que, provavelmente, a queriam melhor do que a enxergavam. A música, o cinema, os vídeos e programas de TV que Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

beiravam o trash95, a moda e cortes de cabelo new wave, os resíduos do psicodelismo dos anos 60 e 70, a invenção do jeito yuppie, a cultura pop, o culto aos mega-espetáculos, a queda do socialismo no leste europeu, a estética MTV, entre outros elementos que marcaram essa década são, em geral, mencionados como prova de um certo “estar perdido” que se tornou uma tônica nos revivais desse período. Sabemos que a formação de uma geração ocorre a partir de um longo processo, tenso e descontínuo, em que se vão assentando as bases referenciais, culturais e ideológicas de jo- vens nascidos na mesma época. Há fatos de ordem histórica, política, social, cultural, sexual e até tecnológica que permitem reunir, às vezes de maneira simbólica, práticas sociais e estilos de vida que, em comum, poderiam ter apenas a faixa etária. No entanto, para que isso tenha alguma “substância” ou “resíduo”, é preciso que tal processo não cesse em determinado mo- mento, isto é, que os indivíduos não estejam ali agrupados apenas por pertencerem a uma fai- xa etária mais ou menos comum, mas que possam guardar variáveis sociais que permitam uma análise de atitudes próximas e de experiências compartilhadas — quer em escolas, quer em estilo de vida; em guerras enfrentadas conjuntamente; em gostos musicais, literários e artísticos divididos; em revoluções, movimentos políticos, organizações econômicas, referên- cias ideológicas e sentimentos em comum. Assim, dentro da complexidade de se trabalhar com um referente tão amplo, o termo “geração” acaba implicando diversidade e não identida- de nas sociedades contemporâneas. Todavia, esse termo pode ser produtivo e pertinente se estivermos falando de pessoas livres que, mesmo “de longe”, mantêm suas singularidades, porém guardam pontos em co- mum quando analisamos as estratégias desenvolvidas por elas para produzir, organizar e pôr seus produtos em circulação. Ou seja, são indivíduos que têm um projeto estético e de inser- ção na cultura aparentados, que podem ser cruzados numa pesquisa. Num debate acerca do assunto, entre Flávio Carneiro e Ítalo Moriconi, este último resumiu assim tais estratégias:

95 De maneira geral, denomina-se de trash produções artísticas que não conseguem atingir um padrão de qualidade dentro daquilo que era considerado “tradicionalmente qualidade” na época. Os erros aparecem de forma “tosca” e provocam riso no público que reconhece o quanto estão distantes do padrão que se desejava atingir. Essas produções se diferenciam das que usam intencionalmente a estética do “tosco”, do “malfeito”, porque não almejam uma recepção que as classifique como “lixo”, ainda que tal classificação seja feita sob uma orientação política. De forma indireta, Susan Sontag acaba abordando essas designações ao tentar definir o Camp em “Contra a interpretação”. Porto Alegre: L&PM, 1987. Em Reciclando o “lixo cultural”: uma análise sobre o consumo trash entre os jovens, Mayka Castellano define o trash como fruto de amadorismo, “considerado ‘horrível’ [...] por um julgamento estético pessoal. Normalmente, são associados a termos como ‘tosco’, ‘brega’, ou tornam-se engraçados através de uma peculiaridade, amiúde associada à má-qualidade técnica ou à discrepância das normas do bom gosto. A questão fundamental é que o consumo não corresponda à fruição feita pelo público mainstream”. Disponível em PDF: . Acesso em: out. 2007. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Todo escritor de verdade é espírito livre, autônomo, independente, indomável. Por outro lado, uma geração artística e literária é sobretudo um grupo ou vários grupos que desenvolvem estratégias comuns de inserção nos circuitos da literatura e da arte. Os modernistas fizeram isso através das técnicas de choque da vanguarda e depois pela cooptação pelo Estado, a geração 70 através do diálogo com a universidade e a política, a geração 90 através de técnicas publicitárias e a geração 00 (assim como já também a 90) através de técnicas de visibilização na rede. Portanto, cada nova geração cria seus próprios circuitos de consagração. Não se trata de criticar, trata-se de entender como a coisa funciona e como varia historicamente. O importante é que funcione96.

Apesar de sintetizar as estratégias dos modernistas, da geração 70, 90 e 00, Moriconi não se lembrou dos anos 80, talvez porque as estratégias a que podemos chamar de “geracio- nais” nessa década estivessem mais visivelmente relacionadas ao rock nacional do que à lite- ratura (que era o foco de sua fala), sendo os escritores relevantes e em evidência ali oriundos da década anterior, que em 80 apenas sedimentavam seu prestígio iniciado anos atrás. Não quero dizer com isso que a literatura inexistisse nesse período, mas que as estratégias de pro- dução e de inserção da música, sobretudo do rock nacional, se sobrepõem às das outras mani- festações artísticas no Brasil da redemocratização política e cultural. Nesse contexto, outra paisagem se mostra, delineada pelos contrastes sociais cada vez mais acentuados e o aprofundamento das diferenças econômicas, já capturados pela literatura dos anos 1970, mas que retornam de outra maneira no rock dos anos 80. Segundo, Renato Ortiz (2001), a moderna tradição cultural brasileira foi marcada por duas perspectivas distintas; uma ele denominou de “nacional-popular”; a outra de “internacional-popular”. A primeira implica um culto às raízes da cultura tradicional, definido por uma procura dos elementos distintivos, que possam ser enquadrados como tipicamente brasileiros; a segunda origina-se de uma perspectiva mais ampla, trazida pelo desenvolvimento de uma indústria cultural no País, que deslocou completamente a idéia de Brasil “puro”, permitindo o crescimento, o fortalecimento e a hibridização de todos os elementos culturais. Ortiz lembra que, especialmente nos anos 70, todo o processo de implantação da indústria cultural no Brasil atendia às ambições da ditadura militar, que viu nas redes de televisão um meio estratégico de alcançar e controlar todo o País, com pouco esforço, através de imagens e veiculação de valores, frases de efeito e “verdades”. Por isso, a “dobradinha” dos militares com o capital internacional satisfez a ambos os anseios: o dos militares, de expansão de seu controle ideológico-cultural, e o das indústrias estrangeiras, que puderam trazer para cá uma

96 O debate foi publicado originalmente no Jornal do Brasil de 27/11/2004. Disponível em: . Acesso em: 28 jun. 2005. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

gama enorme de produtos culturais prontos para o consumo massivo. Assim, as décadas de 60 e 70 representam uma época de “modernização da cultura brasileira”, funcionando como um cimento para as transformações que vieram ocorrer nas décadas futuras. O derrame de produtos culturais estrangeiros provocou uma internacionalização da cultura brasileira, e colaborou para o apagamento das fronteiras entre o nacional e o não- nacional. Contudo, a presença dos elementos da cultura de massa não fez desaparecer total- mente os projetos nacionalistas, pois, ainda segundo Ortiz, a modernização brasileira, de mo- do geral, implicou limitação, e não conseguiu resolveu as diferenças culturais, sociais e eco- nômicas, criando as chamadas “fronteiras internas”. A existência dessas fronteiras é que o faz denominar a modernização do Brasil de modernidades incompletas, e, por vezes, excludentes. Dentro desse processo de modernização, as gerações 60-70 foram, especialmente, culturas jovens de poetas e escritores com tendências claramente de esquerda, e foi com tal orientação que refletiram sobre as novas relações culturais que estavam em ebulição nesse período. Muitos, já integrados nessa modernização, registravam a transição histórica, incorpo- rando ícones e fragmentos da cultura de massa, fossem letras de canções, trechos de filmes, referências televisivas, literatura de bolso, ou ainda estereótipos culturais, transformando-os num mosaico multicolorido dessa outra paisagem cultural fervilhante. Nesse cenário, a poesia dos anos 70 recolocou questões subjetivas na pauta, abrindo espaço para o coloquialismo e uso ostensivo da primeira pessoa. Nas universidades, o espaço aberto levava ao debate e estu- dos das questões das minorias. Os movimentos de libertação feminista e homossexual assumi- ram uma combatividade e, junto com a literatura, a música, o teatro e as artes, inscreveram-se como discursos de resistência não à modernização, mas à manipulação político-ideológica que se fazia em nome dela. De modo geral, a cultura jovem dos anos 60-70 não se deixava influenciar por restrições de rótulo ou mercado, e, mesmo diante dos contrastes e das diferenças, das “modernidades incompletas” do País, criou formas de publicação alternativas e carnavalizou os rótulos, vivenciando, no plano coletivo e individual, uma ética fraternalista e uma diversidade cultural. Escreveu microhistórias que circularam não como grandes narrativas- painéis ou documentos oficiais, mas como microformas, fragmentos híbridos e subjetivos, feitos de intercruzamentos de gêneros e modelos tradicionais (o conto, a novela, o poema) com as manifestações entendidas como “menores” (a carta, o diário, a fotonovela, o poema imediato, as anotações de viagem, os croquis, os rabiscos, as receitas, as histórias em quadrinhos, a letra de música). Nesse percurso, estava colocando em ação as perguntas foucaultianas da Microfísica, sobre que tipo de experiência emocional se pode estabelecer Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

com as formas institucionalizadas de poder, sobre que tipo de poder social, legal, sexual, político e cultural se pode desenvolver com os organismos vivos, bem como para onde o poder desliza e como lidar com suas sempre outras formas de cooptação. Assim, os poetas, escritores, ensaístas e artistas catalisaram o debate cultural, num tempo em que a literatura ainda conseguia exercer, com certa clareza, esse papel de mediadora dos processos histórico- sociais. Foi esse posicionamento, em certo sentido estratégico, das gerações 60-70 que possi- bilitou a profusão de pequenas histórias que, ainda quando lidas hoje, sugerem um jogo de forças tenso entre aqueles que estavam nas ruas, praças, bares, universidades, vivendo as transformações culturais num cotidiano veloz, e os que ambicionavam conduzir a história do País através de uma modernização econômica, tecnicista, burocrática e, sobretudo, impositiva. O controle dos movimentos sociais e culturais, dos meios de comunicação e da educação com a prática da censura e de estabelecimento de caminhos prontos encontrou resistências, e esse colocar-se dentro da situação, vendo-se capaz numa luta com o poder, ainda que entendendo tal luta como assimétrica, é, por si só, uma estratégia de rediscussão das relações de poder, uma vez que se sai da zona de conforto da eterna vítima e se repensa o poder não apenas nos lugares onde ele sempre esteve historicamente, mas, principalmente, nos seus deslocamentos, nos seus prolongamentos — com o outro que está próximo de nós, com nós mesmos, com a linguagem, com a técnica, com o público, com a criação etc. Tal movimento pode ser perce- bido na escrita de Ana Cristina Cesar e de Caio Fernando Abreu, como de tantos outros que produziam nesse tempo. Uma vez que a rediscussão do poder passa pela revisão do papel histórico dos sujeitos sociais, as microformas artísticas experimentam na própria carnadura do texto e da vivência textual a máxima foucaultiana, segundo a qual “não podemos nos colocar fora do poder, pois em nenhum lugar estamos livres de toda relação de poder”97. Por isso, as microhistórias fazem perambular os discursos e as questões culturais, sociais, políticas e sexuais, mas essas ganham tonalidades, cheiros, sabores, nomes, texturas, diferenciando-se de formas objetivas, militantes ou persuasivas de busca de poder. Assim, o artista, o poeta, o

97 Michel Foucault trabalhou ao longo de sua obra — sobretudo na Arqueologia do saber, nas Histórias da sexualidade I, II e III, na História da loucura na Idade Clássica e na Microfísica do poder — a idéia de microhistórias como dispositivos históricos que podiam fazer circular desejos, valores, saberes, cenários, discursos individuais e coletivos mas de forma não totalizante, articulada, porém descontínua e que isso constituíam uma forma de poder, ainda que não tivesse simetria com os discursos e ações estabelecidos pelas instituições oficiais. (Cf. Referências desta tese para indicação completa dos livros). A declaração entre aspas foi retirada da entrevista “Michel Foucault, an Interview: Sex, Power and the Politics of Identity”, by B. Gallagher e A. Wilson, Toronto, junho de 1982. The Advocate, n. 400, 7 de agosto de 1984, pp. 26-30 e 58. Trad. Wanderson do Nascimento. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

escritor se coloca como um agente da metrópole, da língua, dos aparelhos, dos corpos; sua criação não aceita ser adorno para as forças normativas, pois se coloca como um entretenimento que pergunta, um artefato que articula, uma palavra que desloca, um “jeito de corpo” que desafia. Herdando essa perambulação do corpo urbano, caótico e fragmentado da cidade desenvolvida pelas gerações de poetas, escritores, ensaístas e artistas dos anos 60-70, a geração 80 diferencia-se por uma ausência de orientação político-ideológico que possa ser imediatamente conectada a um partido ou causa social. O cinema, a fotografia, a TV, a HQ, a música rock, o rap, o reggae e as artes em geral assumem também seus papéis no debate sobre a cena cultural, e a literatura experimenta uma diluição em seu poder de mediadora. As razões pelas quais o discurso literário tenha sido quase inaudível nos anos 80 ainda não foram devidamente esclarecidas98, contudo, atribui-se freqüentemente o fato de a palavra impressa ter deixado, gradativamente, de ser a única tecnologia eficaz de comunicação à distância, perdendo, também, seu poder pedagógico de atuação na formação das identidades no Brasil. Essa descentralização que levou à sobreposição da palavra pela imagem também não é consenso absoluto, pois a chamada “crise da cultura escrita” é bem mais complexa, uma vez que, pedagogicamente falando, não assistimos a um deslocamento total da escrita a ponto de a imagem ser centralizadora na educação e na cena cultural, e nem abdicamos do poder da escrita que permanece enquanto separadora de Brasis imiscíveis e desiguais. Discute-se que, especialmente em nosso País, as transformações globais decorrentes da pós-modernidade tenham nos levado de forma abrupta para a era audiovisual, sobretudo televisiva, sem que necessariamente tenhamos tido uma sedimentação da cultura escrita ou uma canonização popular da literatura, conforme ocorreu nas outras “modernidades ocidentais”. Mas o problema dessa análise é que, em geral, ela se origina, fundamentalmente, das estatísticas entre os números da alfabetização fonética, os números da educação fundamental e média e do contingente de indivíduos já integrados à era digital; não há, entretanto, estudos que contemplem diretamente a diluição do discurso literário e de seu poder de mediação, nos anos 80, pois sempre que se levanta tal questão, sua própria formulação soa

98 Em “Democratização no Brasil – 1979-1981 (Cultura versus Arte)”, Silviano Santiago faz um diagnóstico do período compreendido entre 1979 e 1981, denominado por ele como a “transição do século XX para o seu fim”. Para o crítico, a mudança na postura dos intelectuais, um olhar mais “cultural e antropológico” em vez de “literário e sociológico”, e a emergência de objetos culturais considerados até então menores, a exemplo da canção popular, como temas do debate acadêmico, seriam indicativos do “declínio da arte/ascensão da cultura”, título do volume em que se encontra o artigo (Cf. ANTELO, Raul et. al. Declínio da arte/Ascensão da cultura. Florianópolis: Letras Contemporâneas/ABRALIC, 1998. p.11-23). Esse texto, entretanto, não explica (talvez por ter outros alvos), porque a literatura perdeu seu espaço de mediadora do debate cultural, sobretudo nos livros didáticos e outras formas de expressão do discurso pedagógico. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

como uma tentativa anacrônica de trazer de volta a utopia iluminista de educar as massas através da literatura — como se formular maneiras de estudar o problema implicasse necessariamente desejo de reversão. É de conhecimento geral que qualquer atividade humana precisa ser mediada por ferramentas, e, em geral, a escrita e o livro representam uma tecnologia relativamente acessível e de manutenção barata no mercado quando comparada às outras. O letramento, que inclui o código escrito — e já passou pelo papiro, códice, livro, lápis, caneta, papel, caderno, mimeógrafo, máquina de escrever, chegando há algum tempo ao vídeo e ao computador — continua a ser elementar na era audiovisual e digital. Ainda que o denominemos agora de letramento eletrônico, por incluir computador e internet, ele permanece ligado às velhas práticas com o material impresso, que incluem leitura, redação, pesquisa e análise. Mesmo reconhecendo que não é objetivo deste trabalho refletir sobre as transformações tecnológicas na questão da pedagogia e da permanência dos modelos tradicionais, arrisco dizer que a questão não está no fato de o Brasil ter passado abruptamente ou não de um plano a outro (mesmo porque isso nos leva a uma falsa saída, pois não há como retornar na história e sedimentar uma etapa não-vivida), mas em compreender por quais mecanismos de exclusão e a serviço de quem a literatura, enquanto ferramenta, tecnologia e mediadora do real, está cada vez mais ausente desse processo dinâmico de catalisação da cena cultural, e por que a letra de música (que também é uma ferramenta do mundo impresso) nos anos 80 passou a ocupar o lugar da literatura nas salas de aula e nos livros didáticos, sem que isso representasse barreiras a essa passagem abrupta da sociedade audiovisual à digital. Em “A literatura ainda vale? (literatura e prosa ficcional brasileira: estados da arte – notas de trabalho)”99, Ítalo Moriconi (2002) afirma que um dos mecanismos que explicam a substituição do texto literário pela letra de música no Brasil está na opção feita pelo Sistema Educacional Primário e Médio que adotou a Comunicação, como disciplina e mediadora pe- dagógica, em lugar do ensino sistemático de Literatura. Assim, dentro dessa concepção, ensi- nar a ler os signos pode estar desconectado da leitura alfabética — fundamental para as pro- duções textuais literárias — e de sua exigência de “paráfrase, análise textual, treinamento re- tórico e hermenêutico voltado para instrumentalizar indivíduos e grupos à intervenção pública ou, como se diz no jargão contemporâneo, para o exercício de ações de cidadania”. Para ele, essa outra sistematização pedagógica trazida pela eleição da Comunicação pode prescindir da palavra literária:

99 Cf. Mediações. Anais do VIII Congresso Internacional ABRALIC (CD-ROM). Belo Horizonte, 2002. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Ao contrário dessa pedagogia literária tradicional, vemos que a letra de música, as histórias em quadrinhos, as crônicas ligeiras de jornal constituem hoje materiais privilegiados nas aulas de “linguagem” de nossas crianças e adolescentes. Aquilo que em outros países talvez ainda seja visto como ousadia de professores muito revolucionários, ou complemento das atividades principais, tornou-se banal no dia-a-dia nas escolas brasileiras. Por outro lado, paradoxalmente, por falta de equipamentos e por despreparo dos professores em matéria de metodologia didática, permanecem sub- utilizadas as possibilidades pedagógicas da própria televisão, do vídeo e do computador pessoal. Se observarmos a carga horária nos anos finais do nível médio (o antigo 2o. grau), verificaremos que a aula de “literatura”, quando existe com alguma autonomia em relação às aulas de gramática, ocupa no máximo dois ou mesmo apenas um tempo por semana, limitando se, na maioria absoluta dos casos, a fazer com que alunos e alunas mecanicamente identifiquem caracte- rísticas do barroco, do romantismo, do parnasianismo e do modernismo em fragmentos de textos. A leitura de livros literários completos está pratica- mente banida da vida dos adolescentes na maioria das escolas brasileiras. Quando existe essa exigência, privilegia-se a indicação de livros de literatura infanto-juvenil. (2002).

O ensaísta segue considerando nesse processo uma clara tendência de infantilização do leitor literário (“aquele que lê porque gosta de ler”), e isso também afetaria o mercado editorial e o próprio conceito de literatura, que estaria cada vez mais “espraiando-se” para o mundo universitário. No entanto, nesse debate, fatalmente entraríamos na questão de como anda o conceito de literatura dentro das universidades, com o relativismo cultural e a descentralização do modelo humanista, trazida pelas tantas pós-graduações dos cursos de Letras no Brasil. Prevendo tal emaranhado, Moriconi retoma a questão da validade da literatura, lembrando o surgimento da expressão “vítima da nova configuração”, que era muito usada pela geração 70, para falar do mito da “opacidade” do texto literário, criado tanto pelo mercado quanto pelas pedagogias emergentes que desculpavam, assim, com essa “exigência da transparência, da clareza, e da capacidade de o escritor se comunicar com um número grande de pessoas”, o não-uso da literatura em sala de aula, devido a sua incapacidade de trabalhar “uma sabedoria prêt-à-porter sobre fatos da vida e exoterismos espiritualistas”, em princípio solicitada pelos novos públicos. Para exemplificar de forma prática essa mudança de perspectiva do literário no cenário mercadológico e cultural brasileiro dos anos 80-90, o ensaísta confronta os livros mais vendidos em meados dos anos 70 e meados dos anos 90, mostrando que o crescimento do mercado editorial no País não representou uma circulação maior da literatura “strictu sensu”, mas, sim, dessa linha definida anteriormente de “exotérica” e “transparente”. De qualquer forma, o que fica latente em todo o texto é o sumiço Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

da literatura do cenário cultural brasileiro desse período, seu empalidecimento enquanto mediadora de questões concernentes às transformações políticas, tecnológicas e sociais. Obviamente, tal empalidecimento não aconteceu da noite para o dia, mas a partir de uma gradual substituição de valores e dispositivos culturais que orientam uma geração. Em “Depois do poemão”100, Heloisa Buarque de Holanda aborda o mal-estar vivido pelo grupo de poetas marginais dos anos 70, oriundo de uma “urgência de se experimentar a poesia no dia-a- dia”. Segundo ela, esses sinais de crise são completamente distintos do clima de euforia da década anterior, e se evidenciavam, justamente, pelo desejo de equacionar a poesia do cotidi- ano — misturando-a a todas as marcas “sujas” da vida — com o exercício crítico da conjuntu- ra social e política brasileira e a dicção de uma produção lírica que não se perdesse na hora de sintetizar, rápida e vigorosa, o momento presente. Ela mostra que, para essa geração, poesia e vida não se separavam, e, mais ainda, que tal casamento deveria representar a prática de se buscar não a pacificidade, mas respostas significativas para o presente difícil que era atraves- sado. Dessas tentativas de viabilização do debate entre poesia e vida surgiram “poetas, pú- blico e formas independentes de produção, distribuição e veiculação para a literatura”, que deslocaram “o eixo da crítica social que passava a se atualizar na experiência individual, no sentimento, na subjetividade”. Tal mudança de perspectiva é vista por Holanda sobretudo como uma intervenção política de uma geração que quer problematizar linguagem, instituição, afetos, formas de expressar o afeto, e ainda questões políticas, sociais, culturais e sexuais. O resultado desse amplo debate acerca do poder revolucionário ou não da arte, da literatura e do conhecimento trouxe a dúvida e a descrença dos programas de militância estabelecida, mas também trouxe alternativas ou brechas para o diálogo, mais tarde, com as universidades. O texto mostra que a chamada produção marginal se inscreveu como uma das microhistórias que, embora enfraquecidas durante a industrialização da cultura rock no Brasil dos anos 80, têm uma potência de discurso ainda possível de ser retomada. Isso ocorre pelo gesto geracional de colocar em pauta um modo de fazer literatura e crítica social mais ligado ao cotidiano e à individualidade, eixo cultural que até hoje desperta interesse investigativo e reflexivo. No entanto, as idéias daí derivadas — de produção em grupo, poetas de comunidade, associações de bairro, de periferia etc. —, cujo maior objetivo seria popularizar a poesia, não encontraram derivação nos anos 80. O “poemão coletivo” a que se referia

100 Artigo publicado em 13/12/1980, no Caderno B do Jornal do Brasil. Disponível em: . O título é uma referência à declaração de Cacaso, nos anos 70, de que estavam “todos escrevendo o mesmo poema, um poema único, um poemão”. Acesso em 26 nov.2007. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Cacaso transformou-se em pequenas peças musicais, executadas de forma isolada, por grupos de rock, no momento em que se deslocava o papel mediador da literatura, e fizeram da música um espaço de debate sobre a realidade, a conjuntura sócio-política, as mudanças culturais e sexuais da época. Essa geração, acusada de ser um fruto irresponsável da revolução militar, faz a sua “virada cultural” no Circo Voador, no Rio de Janeiro, no verão de 1982, quando, aliada a muitos remanescentes dos anos 60-70, inicia uma intensa elaboração de subjetividades e de modos outros de lidar com a indústria, o público, a mídia e os acontecimentos globais. Para melhor demarcação dessa época, é preciso separar, dentro da amplitude a que cha- mamos geração 80, a juventude consumidora (naquele tempo com idade entre 12 a 23 anos e, portanto, nascida a partir de 1970) e a juventude produtora desses objetos artísticos (que nasceu em 1960, atravessou toda a ditadura militar e começou a produzir mais ou menos em 1981-3, com idade entre 21 a 23 anos). Faço essa demarcação não apenas pela diferença de papéis exercidos por cada uma delas na cadeia musical, mas, principalmente, pelas diferenças culturais e certos conflitos que se revelaram, mais tarde, entre uma e outra, no momento de expansão e fruição do rock nacional. Os dois fragmentos de gerações partilham o mesmo espírito de época que povoa a década de 80 no Brasil, traduzido como um culto a ícones da cultura pop e de massa, como uma preferência declarada pelas publicações de bolso da editora Brasiliense (John Fante, Charles Bu- kowski, Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, Caio Fernando Abreu, Ana Cristi- na Cesar, Marcelo Rubens Paiva, entre outros), o uso de uma linguagem mais direta, criadora de um constante diálogo aberto entre emissor e receptor e a incorporação dos aspectos visuais e fragmentários dos quadrinhos, grafites, TV, videoclipes, cinema e slogans publicitários, além, é claro, de uma relação íntima com a música, mediada a partir de então por uma indústria nacional profissionalizada, e por uma gama maior de recursos tecnológicos disponíveis ao consumidor. A relação íntima com a música não é, evidentemente, uma invenção dos anos 80; no entanto, a popularização da música enquanto dispositivo sócio-político-cultural e geracional, em que há uma mobilidade dinâmica de papéis e aquele que habitualmente se colocaria como “fã” passa a ocupar o palco, ocorre no Brasil de forma decisiva nessa década. Segundo Messias Bandeira, em Construindo a audiosfera: as tecnologias da informação e da comunicação e a nova arquitetura da cadeia de produção musical (2004)101, os desdobramentos existentes nas relações que nós, seres humanos, podemos estabelecer com a música são incontáveis: “idéias, comportamentos, consumo, moda, políticas, atitudes e, à

101 Tese de doutorado apresentada à Faculdade de Comunicação da UFBA. Salvador, 2004. Disponível na biblioteca da instituição. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

maneira da Comunicação: produção de sentido” (2004, p.31). Ele explica que, a partir deste conjunto de vínculos e desdobramentos, “há uma espécie de necessidade humana pela música, onde cada um é sensibilizado de forma específica: uns desejam criá-la; outros, executá-la ou ouvi-la” (2004, p.31). No caso da música rock, essa necessidade humana quase sempre se traduz em uma imensa vontade manifestada por seus ouvintes de produzir com seus próprios meios a música que irão consumir, colocando na materialidade da vida o do-it-yourself popularizado pelo punk-rock. Com o desenvolvimento tecnológico e as facilidades de acesso às formas de produção de música, as relações entre artista, indústria fonográfica, mídia e público começaram a ser re- configuradas, no Brasil, a partir dos anos 80, e continua hoje de maneira tão veloz que já não se conseguem separar, tradicionalmente, os papéis de cada um na cadeia de construção, gravação, finalização, veiculação e recepção de um trabalho musical102. Todavia, no nosso panorama ini- cial dos anos 80 ainda não contávamos com tamanha interação na cadeia de produção, veicula- ção e consumo musical como vamos perceber a partir dos anos 90; ali o que despontava eram os fragmentos da ordem máxima disseminada pelos ventos da efervescência punk, originada na metade dos anos 70, na Inglaterra, que foi transformada numa orientação para bandas, artistas, fãs-clubes, jornalistas, produtores e demais profissionais ligados à cultura. Nesse período de efervescência cultural e de novos caminhos a serem experimentados, a AIDS paira como uma ameaça concreta, visibilizada cada vez mais pelos discursos da mídia e da ciência, e pela sua dolorosa instalação e expansão nos corpos das vítimas. A espécie de “ponto de basta”, vindo de não se sabe onde e dirigido a não se sabe quem, que ela representou é, ainda hoje, difícil de ser mensurado, uma vez que a epidemia estabelece uma relação indiscutível com a vivência da sexualidade, fenômeno humano que por si só já é de complexa compreensão. No mundo do rock, foi a figura esquálida de Cazuza — antes da doença, uma das performances mais erotizadas do rock nacional — quem trouxe,

102 Evidentemente, sintetizo aqui de forma grosseira as transformações decorrentes dos avanços tecnológicos e sua atuação nos processos de produção, comercialização e fruição de objetos artísticos, porém, o estudo pormenorizado de tais mecanismos escapa ao objetivo deste trabalho, uma vez que se trata de uma complexa rede de relações, iniciada com a própria formação da indústria cultural, consolidada no período de domínio e expansão dos meios televisivos e reconfigurada com o surgimento e impacto irreversível do cd e da Internet, que descentralizam e re-dinamizam o circuito emissor-canal-receptor, colocando em xeque os mediadores tradicionais e permitindo tanto que outros realizem tal papel quanto ampliando a consciência da mobilidade desse. Para uma análise efetiva da crise do mediador tradicional e uma compreensão ampla da forma com que ele é desestruturado pela interação promovida por esses novos avanços tecnológicos, ver a tese acima citada, que parte do pressuposto de que “o campo da emissão, anteriormente exclusivista e centralizador, viu emergir um sistema onde a unilateralidade da comunicação é superada por modelos descentralizadores, rizomáticos, nos quais todos os pontos (nós) são, simultaneamente, emissores e receptores. Cada nó da rede é um lugar de passagem e de distribuição, e o fluxo comunicacional se dá de muitos para muitos, ainda que boa parte das experiências ocorra de maneira individual” (2004, p.103). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

simbolicamente, a epidemia para o coração dos jovens dos anos 80. Sua atitude corajosa de assumir a enfermidade num momento em que o silêncio e a exclusão pairavam sobre a morte de vários artistas globais infectados (como Lauro Corona e Sandra Bréa, por exemplo) repercutiu de forma positiva no País, embora tenha sido também utilizada como troféu sensacionalista da Revista Veja. A concepção de arte de Cazuza pressupunha a elaboração de canções e performances como um espaço de reflexão do desejo e do afeto, numa apreensão também política e poética das vivências que o possibilitava “um estar” na cena, manipulando as formas de acesso ao mercado e ao público, e erotizando sua própria inserção e circulação nesse segmento jovem da cultura. Sua atitude em relação à vida e ao seu trabalho, conforme mostra a biografia póstuma, organizada por sua mãe103, era de eleição da leveza como um valor desviante — de acordo com a sugestão de Ítalo Calvino, em suas Seis propostas para um novo milênio (1990) —, capaz de minimizar o “peso de ser gente”, não cultuando o superficial e o leviano, mas carna- valizando a necessidade de separação entre o que seria da ordem do frívolo e o que seria da ordem do sério, do profundo. Essa sua estratégia o colocou como um dos artistas mais ensola- rados da cultura rock, a despeito das visões angustiantes, de verdadeiros dramas existenciais que muitas de suas letras abordam. Ser portador e, logo em seguida, vítima da epidemia da AIDS; ter seu corpo jovem, outrora cultuado como símbolo sexual, fragilizado e marcado pela doença; enfrentar em pú- blico a dor da iminência da morte foi, em certo sentido, um desenvolvimento coerente de seu projeto artístico, que previa, justamente, esse poder rir do “peso da vida”, esse saber dançar com e na dor. Dessa forma, ele pôs na prática da cena contemporânea a máxima de Nietzsche de que não se pode acreditar num deus que não sabe dançar. Em Cazuza, o verbo “dançar” funciona como uma extensão de um “sim” dado pelo letrista antes, desde o início de sua car- reira, quando sua escrita já flagrava os pequenos conflitos entre “amar e desamar”, cair e le- vantar, achar-se e se perder, assim, em carne viva e em público. Ele escolheu explorar no seu projeto estético esse espaço onde é possível dizer tudo, do mais íntimo ao mais exterior, desde que mediados por uma linguagem poética que recoloca os “dizeres” no plano da elaboração e não da mera confissão. Por isso, o “sim”, acoplado ao ato de se desnudar perante o público, não foi ofuscado pelo sensacionalismo que tentaram dar a sua dor, uma vez que seu gesto continuou a ser visto por toda uma geração como uma positivação do estar vivo, numa época onde a espacialização

103 Lucinha ARAÚJO. Só as mães são felizes. Rio de Janeiro: Globo, 1997 (Biografia mediada pela jornalista Regina Echeverria). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

da doença nos inseria num campo sombrio de dúvidas, medos e inquietações. Ao remontar, hoje, suas aparições públicas de lencinho na cabeça, calças jeans desbotadas, camiseta branca e o velho all star sem meias nos pés, a sensação é de que presenciamos esse “sim” se reconstruindo, novamente, aos tropeços, num contínuo esforço de gritar a fome de vida que a doença não conseguiu dissipar. Nem na atitude de Cazuza nem na de Caio Fernando Abreu, que posteriormente agiu de forma parecida ao assumir em três crônicas que estava com AIDS, podemos dizer que houvesse ingenuidade ou desconhecimento de que gestos, palavras, ações, emoções e mesmo fragilidades pudessem ser reconfigurados no jogo dinâmico do mercado e da mídia — nem sempre com orientação ética para distinguir o joio do trigo. Isso não quer dizer que os dois autores não tivessem sofrido — Caio até menos do que Cazuza — quando a atenção pública e midática se desviou de suas obras para o interesse, por vezes mórbido, na sobrevivência deles à epidemia. Ao contrário, ambos mostraram que na elaboração de subjetividades só é possível lidar com a perda de fronteiras entre o privado e o público assumindo riscos, aceitando a ten- são entre intimidade e exterioridade não como oposição, mas como um jogo. Na tensão dessa intimidade que se superficializa (no sentido do “se colocar na área do visível” e não do “pouco profundo”) na carnadura da escrita, do canto, da performance, confrontam-se marcas explícitas de um vir à tona que se pulveriza, assumindo estratégias de permanência ativa na cena contemporânea. Os gestos, as escolhas, os discursos reverberam no conjunto das ações possíveis a serem tomadas num tempo de quase imobilidade diante da epidemia. A escolha infeliz de Cazuza no momento de selecionar a Veja como o veículo que registraria seu testemunho de vítima104, serve, anos depois, de orientação a Caio Fernando Abreu, que definiu minuciosamente onde sua imagem e depoimento poderiam funcionar mais produtivamente — Revista Sui Generis, Programa Jô Soares Onze e Meia, Marília Gabriela etc. Assim, o equívoco sensacionalista que tanto desgosto trouxe ao músico foi usado de ma- neira positiva por outras personalidades que vieram depois a lidar com a epidemia em público. Não podemos dizer de forma fatalista e ressentida que a AIDS tenha feito desmoronar toda uma geração de artistas, escritores e produtores culturais, mas é inegável seu impacto nos retratos fraturados da memória íntima e pública dos anos 80. No perambular pelos cenários de ontem, da música à literatura, do teatro à dança, da TV ao cinema, da publicidade ao mundo da moda, onde quer que se procure, no mundo todo, centenas de

104 Embora Cazuza não tenha se assumido soropositivo pela primeira na Revista Veja (e sim na Folha de S. Paulo, numa entrevista a Zeca Camargo, em 12/02/1989), a matéria de capa da Veja, de 26/04/1989, explorou sua imagem, trabalho e fragilidade de forma a não deixar dúvidas sobre a “vitória” da doença na vida do artista, chegando a levantar hipóteses no mínimo levianas sobre a validade de sua obra após a consumação de sua morte. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

pessoas criativas, de personalidades inquietantes, de subjetividades híbridas, de elaborações performáticas e deslizantes, de seres queridos e raros foram varridos de nosso convívio em decorrência da epidemia. Para muitos, as produções poéticas feitas no período da emergência e expansão do vírus constituem a melhor elaboração narrativa, sem o peso improdutivo do discurso científico e os reducionismos da mídia, das muitas formas com que a AIDS entrou na vida das pessoas, diluiu e reconfigurou afetos, moralizou e redimensionou as sexualidades, dilacerou relações e projetos existenciais e artísticos. Nesse sentido, as microhistórias escritas sob o signo da doença são lidas ora como um gênero literário à parte (posição tomada por Ítalo Moriconi, em “Urgência, orgia, escrita da Aids”, 2006), ora como narrativas híbridas que se apropriam de vários outros gêneros (conforme analisa Marcelo Secron Bessa, em Os perigosos: autobiografias & Aids, 2002).

4.1 SOMOS TODOS LAIKAS URRANDO PARA O INFINITO

Em “Conte-me sua vida ou a autobiografia como mediação crítica” (2002), Denílson Lopes discorre sobre o processo de trabalhar a autobiografia como uma intervenção crítica e, sobretudo, criativa, que possibilite uma mediação efetiva “entre o literário e uma sociedade marcada pelo falar de si, pela espetacularização do sujeito”105. Ele parte do princípio de que, mesmo com todas as transformações ocorridas no campo das artes e na academia, ainda res- tam certos gêneros, formas de produção de saber ou mesmo tendências que continuam à deri- va — o espaço autobiográfico seria um deles. As barreiras ou razões objetivas pelas quais a autobiografia seria compreendida como não-produtiva para o percurso teórico viriam de uma tradição ensaística da crítica brasileira, não inclinada teorizar sobre a própria experiência do olhar para objetos particulares, ou sobre a intervenção metamórfica que abala as fronteiras entre sujeitos, objetos, subjetividades, criatividades, saber. Antes dessa reflexão, contudo, Lopes já vinha de um processo de ativação desse método e da materialização dessa forma de intervenção, que tem em O homem que amava rapazes (2002) um dos seus pontos mais altos, uma vez que autor e coisa criada estão postos enquanto conhecimento e enquanto vida, não apenas na hibridização performática de teoria e biografia, mas na coragem de não disfarçar a voz que rasura, que deseja, que ama, e, ao mesmo tempo, pesquisa, classifica, elabora, elege, ata e desata saberes.

105 Cf. Mediações. Anais do VIII Congresso Internacional ABRALIC (CD-ROM). Belo Horizonte, 2002. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Esse posicionamento crítico, que teria um dos seus registros inaugurais mais contundentes nos Ensaios, de Montaigne, com seu dispositivo experiência-articulação-idéias- conhecimento, não prescinde de rigor, mas usa os métodos todos de forma estrategicamente incluidora, permitindo a presença do afeto na elaboração de uma crítica. Trata-se de uma ação que reflete sobre a própria prática da escrita teórica, biográfica e poética, não mais interessada em seus limites estruturais e, sim, nas trocas possíveis entre elas. A busca é de diálogo, e não apenas da quebra de gêneros gratuita ou radical. Tal gesto é importante porque torna possível rememorar outros gestos inaugurais de questionamento de saberes fechados, de sistemas binários, de contenção do plural. Se a construção de uma teoria crítica pode ser pensada então — e os textos de Flora Süssekind, Ítalo Moriconi, Denílson Lopes, entre outros, provam que sim —, a um só tempo, como um posicionamento científico e uma intervenção íntima, as narrativas sobre o período extremo da AIDS, juntamente com os discursos dos autores que dela se ocuparam, também podem ser vistas não apenas como ficção, mas como dispositivos de saberes que articulam trajetórias, valores, teorias, contexto e dramas, ou, como definiu Moriconi, “na cena da teoria, está em pauta a relação entre vida e escrita. Na cena de um campo delimitado de questões, está a escrita como registro, gráfico, sintoma, estilização, encenação, dramatização de uma experiência extrema”106. Nesse sentido, as “aventuras” (para usar um termo de CFA em carta a uma amiga sobre a experiência da AIDS) dessa autobiografia cultural e crítica trazem não apenas fatos de uma epidemia vivida, mas, também, os processos de invenções e de sobrevi- vência da linguagem poética, naquele tempo tão tensionada pelo limites da autodefesa, da precariedade de informações, do desvelamento de dores e preconceitos, do equilibrar-se, en- fim, no extremo das estratégias textuais. Segundo Marcelo Bessa (2002), as melhores produções acerca da experiência da AIDS vêm da pena literária de autores já conhecidos, como Caio Fernando Abreu e Cyrill Collard, por exemplo. Uma das forças do texto de CFA é a estratégia elíptica da sigla, já ras- treada por Bessa, que mostra nessa invenção uma desconfiança de Caio em se atirar em con- fissões, descrições cruas e apelos emocionais sobre a doença. Ele opta por uma abordagem artística que é costurada por um fio histórico-autobiográfico, tomando para si, com muita de- licadeza, a tarefa de mostrar ao olhar de pânico do outro que vivia naquele período de extre- midade o quanto ainda era possível positivar o amor, a escrita e, sobretudo, a vida, mesmo em tempos sombrios.

106 Cf. “Urgência, orgia, escrita da Aids”. Artigo publicado em 13/09/2006. Disponível em: . Acesso em: 22 nov. 2007. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Em entrevista a Revista Sui Generis (1994), Caio Fernando Abreu deu sua definição da condição humana: uma mistura entre inocência e carência, semelhante à situação da cadela russa que foi enviada para o espaço e jamais voltou. O autor confessa imaginá-la urrando no escuro-infinito do Cosmos, totalmente ignorante de um sentido ou justificativa para se encon- trar ali, solta, perdida, naquela imensidão. Esse mesmo desenho que mostra desamparo e des- conhecimento do ser humano sobre sua própria condição no mundo encontra-se nos contos de Os dragões não conhecem o paraíso (1988), misturado com outros mitos, antigos e contem- porâneos, que encenam a busca do amor e suas materializações através da escrita. Os dragões não conhecem o paraíso não dá continuidade à ampliação positiva do amor, nem à sua vinculação aos arquétipos emotivos de Peixes, Câncer e Escorpião, trabalha- dos anteriormente em Triângulo das águas. Ao contrário, nesse livro CFA retoma as extremi- dades do pólo sujeito versus meio, utilizando a metáfora do dragão que engendra tragédia e riso, numa estetização da dor, que volta, em alguns momentos, a dar às suas histórias o con- torno do irremediável já percebido em suas primeiras produções. Em nota de abertura, o autor avisa que tanto se pode ler o livro como 13 histórias independentes, girando sempre em torno de mesmo tema — o amor — quanto se pode lê-lo como uma “espécie de romance-móbile. Um romance desmontável, onde essas 13 peças talvez possam completar-se, esclarecer-se, ampliar-se ou remeter-se de muitas maneira umas às outras, para formarem uma espécie de todo”. Novamente dedicado à memória de Ana Cristina Cesar e mais a de 16 amigos que se foram, ODCP desliza entre o gosto de ressaca dos longínquos Morangos Mofados e a certeza de que a vida é agora, que ultrapassa a nós próprios, que é fome e urgência e sua crueza inde- pende de nossa disposição em alimentar ou não esperanças. Não é à toa que, embaixo de sua dedicatória aos amigos mortos, há um arremate que pode ser lido como a síntese de todo o livro: “À vida, anyway”. Virando a página, há uma epígrafe de Adélia Prado ressaltando a capacidade que um simples beijo tem de fazer a “engrenagem” da vida funcionar. As concepções acerca do amor, presentes no livro, refletem a idéia de deriva que permeia toda a obra do autor. Os personagens vagam pelo mundo, corporificando esse centro vazio, no qual os escombros, em vez de oferecerem a possibilidade de enxergar nas ruínas o desenho de uma harmonia outrora perdida, mostram tão somente as peças soltas de um quebra-cabeça cheio de variações, que pode ser montado ad infinitum. Ou mais que isso: não somente um quebra-cabeças, mas um mosaico, uma bricolagem, um labirinto. Essa não- fixação de papéis, identidades e concepções do amor implica um sentir-se sempre provisório em qualquer tempo e lugar, uma imersão na própria instabilidade, que se traduz em clausura e impossibilidade de comunicar ao outro a natureza dessa deriva. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

O livro abre com “Linda, uma história horrível”, que traz um encontro definitivo en- tre um filho há muito distante, que se sabe vítima da AIDS e resolve visitar sua cidade natal — novamente, a cidade imaginária de CFA, Passo da Guanxuma — e a mãe, velha, cansada, com sua cadela cega, chamada Linda. Através de um diálogo cheio de silêncios e pequenas manifestações de afeto, expõe-se para o leitor a relação morno-distante entre os dois persona- gens. À medida que o filho vai retomando as senhas e deixas para um acesso ao lar materno, ressignificando os gestos e falas daquela mulher sozinha, habituada à ausência dos seus, o olhar maternal também vai se dando conta da presença real do filho, passeando pelos sinais e marcas de seu corpo, reconhecendo as mudanças inexoráveis — está mais velho, calvo, can- sado — e as outras, não-ditas, que trazem notícias daquela doença não nomeada por ambos. O cruzamento de olhares, entre o filho que percebe a mãe e a cachorra cega, a mãe que percebe o filho, e o espelho que percebe os três, produz um jogo de esconde-esconde nu- ma narrativa em que a AIDS, omitida, está o tempo todo presente, impondo uma retomada dos afetos deixados para trás, aqueles que ainda importam ser retomados. Segundo Bessa (1997), o conto se constrói de forma delicada, uma vez que os elementos e fatos a serem nar- rados habitam o olhar do filho, mas são desviados porque ele concentra seu foco na mãe e no animal; no entanto, a velha desvia de si a atenção, fazendo-a recair sobre o próprio filho que dela se esquivava:

Se o leitor e narrador seguem a visão e a percepção do protagonista, é natural que estas se desviem dele próprio, pois seu olhar se dirige à mãe e a Linda. Mas, como num verso de Ana Cristina Cesar citado no conto (‘é agora, nesta contra- mão’, de A teus pés), é a posição contrária da mãe que lhe permite perceber o fi- lho. O ponto de vista centrado na mãe dá ao leitor as pistas para montar o moti- vo da inesperada visita. É ela quem observa que ele está mais magro, que per- deu cabelos e tem uma “tosse de cachorro” [...]. O que o protagonista desvia de si próprio ou omite, a mãe, em sua privilegiada posição contrária, aponta e sub- linha. (BESSA, 1997, p. 102).

A menção ao verso de Ana C. — do poema “Mocidade independente” — é uma ressonância dessa escrita dramática também cultivada por CFA, e mostra um sufoco pela palavra-ação, uma urgência de avançar os extremos daquela condição. O verso da poeta interrompe a narração um breve segundo como que para “aspear” a forma como a história vinha sendo contada e, ao mesmo tempo, aproximar o leitor do narrador e do protagonista, intervindo, solicitando, deixando no ar a pergunta: como ele pode contar à mãe, ao animal, que está doente, se o que realmente lhe acontece por dentro e por fora é incomunicável, sendo a doença apenas um sintoma dessa falta? A referência a Ana C. vem no exato instante de se Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

problematizar vida e escrita, uma vez que a poeta é conhecida por seu produtivo processo de refletir sobre “a história que não pode ser contada”, aquela outra história-secreta-que-se- mostra-não-história-mas-palavra-corpo-textura, “a história de nossa intimidade, a nossa história pessoal” (CESAR, 1993, p.198) que ao se fazer literatura deixa de ser nossa:

Ao produzir literatura, eu não faço rasgos de verdade, eu tenho uma opção pela construção, ou melhor, não consigo transmitir para você uma verdade acerca da minha subjetividade. É uma impossibilidade até. Já que é uma impossibilidade, eu opto pelo literário e essa opção tem que ter uma certa alegria. Ela é engraça- da. Não é uma perda como parece. Ela tem renúncia inicial, mas, no final, não é uma perda não. A gente tem que falar, a gente tem mais é que falar. Falar nunca é a verdade exatamente, mas a gente tem que falar [...] (1993, p. 209).

Ao citar Ana C., num instante em que o personagem precisava justamente desse e- xercício de falar, “súbito e na contramão”, não para expor uma verdade — que de resto seria inapreensível, inexistente —, mas para lembrar que nesse instante em que a “biofala” tornar- se-ia específica na composição da história, nesse instante em que o leitor poderia aproximar a lupa e pensar: olha, é o Caio se confessando soropositivo!, nesse momento de impor os “ras- gos da verdade”, a insistente variação de um “eu” que se sabe em exílio, mas que teatraliza essa ausência, exigindo do leitor uma escuta dialógica, retorna; ou, antes, sempre estivera ali, de sobrancelha arqueada. E nesse espaço de retornos, diálogos e silêncios, uma outra idéia de amor surge no texto de CFA: a idéia do amor entre mãe e filho como um lugar onde se reen- contra a intuição, o cuidado e a benevolência de um Eros sublimado, recodificado pela som- bra da epidemia. As histórias de Os dragões não conhecem o paraíso se estruturam assim, na hibridi- zação dos desencantos, das perdas, dos vazios e desesperanças do final dos anos 80, mas com uma alegria teimosa e uma esperança espiralada, insistente, que volta, ensaia novos passos, some, retorna, e, assim, termina habitando tanto os elementos das narrativas — é um comen- tário jocoso ali, um gesto irônico e clichê lá; uma fala inusitada aqui, pequenos prazeres revi- sitados acolá — quanto “os de fora”, o contexto, presente nas citações de poesias, músicas, filmes, quadros, novelas e propagandas, dispostos pelo autor nas epígrafes que abrem cada parte do livro, na boca dos personagens e na voz dos narradores, mostrando esse tempo vivo. Nesse espaço de idas e vindas e no mosaico de referências montado em ODCP, o amor é uma superfície reflexiva, em que a vontade de viver perambula, colhe lembranças, rasura-as, estabelece etapas, antes da AIDS, naquele tempo “em que amor não matava” (p.50), e depois da AIDS, quando “já haviam matado a ilusão” (p.94). As “quase histórias”, como o próprio CFA as define, pertencem ora ao tempo quando a epidemia não se espalhara, ora ao Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

tempo em que ela prevalece; no entanto, essa marca cultural funciona mais como uma intervenção crítica, mediada por uma espécie de “dêitico” que é mais do que remissão — é, também, análise teórica sobre como lidar com a epidemia. Nesse processo desenvolvido por CFA, de transformar a ausência da sigla num dêiti- co, em que a referência imediata não recai apenas nos participantes ou sujeitos do enunciado ou no assunto em comum, mas no contorno e no recheio desse acontecimento biológico, his- tórico e cultural, está a sua crítica da cultura, sua avaliação do acontecimento, que é, em sínte- se, uma recusa ao pânico, uma resposta ao preconceito, um “não” ao determinismo, e tudo mais que contorna a epidemia, além de uma tentativa de lidar com a desesperança e o massa- cre (físico, mental e espiritual) que recheiam a doença. Quando digo “contorno” e “recheio” como referidos pela elipse, compreendo mais do que um contexto social sendo ativado pelo poder de referencialidade da língua, pois na aventura ou saga de se escrever sobre a AIDS não temos somente uma época a servir como pano de fundo ou índice remissivo. A esse contexto se junta uma reflexividade autoral, colocada na superfície do texto, nas manchas dos persona- gens, nos cabelos que caem, nos resfriados que não vão embora, nas febres noturnas, nas im- pressões sobre o difícil tempo a se atravessar sozinho, na fome de continuar a crer no amor. Essa crítica da cultura é dada, então, a partir do paradoxo contemplado acima pela fala de Ana C., em que a história de uma intimidade com a doença, de um saber mais e na própria pele o que é essa doença e o desejo impossível de comunicar esse saber consegue porém não conse- gue, ao um só tempo, chegar ao outro. Se o amor é uma experiência multiforme, que se constrói não a partir de uma descoberta e apoderamento de sua essência, mas de uma consciência constante do sujeito de que tanto o conceito quanto a prática amorosa se constituem enquanto “dispositivos históricos” (FOUCAULT, 1979), ao ser tocado pela epidemia, ele morre e não morre, pois precisa se refazer cotidianamente, assim como a sexualidade, que em Os dragões não conhecem o paraíso é, também, uma superfície na qual os corpos deslizam, se conhecem e se estranham, performatizando esse simulacro e esse vazio sem nome que a doença evidenciou. Em “Os sapatinhos vermelhos” e “Sem Ana, blues”, o fim de um caso de amor é a deixa para os personagens se liberarem a uma busca sem tréguas de aventuras sexuais noites afora, a fim de preencher a lacuna daquilo que, a sua maneira, era um “todo” e foi despedaçado no término do relacionamento. Já em “Dama da noite”, é a pujança dessa falta que leva a personagem a experimentar todos os simulacros amorosos enquanto aguarda, esperançosa, pelo verdadeiro amor. Ironicamente, essa expectativa é quebrada pela própria fala da personagem que reconhece a escassez do amor num tempo ameaçado pelo vírus, pelas Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

relações rápidas, plastificadas, pelo tecnicismo e incomunicabilidade humana: “Pra ele, me guardo. Ria de mim, mas estou aqui parada, bêbada, pateta e ridícula, só porque no meio desse lixo todo procuro O Verdadeiro Amor. Cuidado comigo: um dia encontro” (1988, p.98). O aviso aí posto é sério. Era preciso estar atento àqueles que não se rendiam, que não aceitavam abrir mão daquilo que lhes era mais caro: os afetos, os quereres, os sonhos, o encantamento por si, pelo outro, pela vida. A autobiografia se coloca, então, não através de uma correspondência entre o nome da capa, o nome biográfico e a vida/personagem que se narra, conforme definiu Lejeune (2003), mas enquanto uma visão da cultura e da própria trajetória pessoal mediada pelo estéti- co, como um roteiro que leva à reflexividade. Sua história funciona menos como exposição e mais como intervenção, vinculação. E, nesse aspecto, CFA consegue realizações incomuns. Ana Cristina Chiara, em “Afinidades eletivas”, já chamava a atenção para a maneira como a pessoalidade do autor se materializa no texto, num esforço delicado para combinar leveza e politização, que ela resumiu como “uma força de resistência (‘still alive’) e uma força de in- dignação contra os abusos, inclusive os do destino (‘ainda não!’)”107. Essa confluência de e- nergias diferentes possibilita que a projeção ficcional e o discurso autobiográfico se embara- lhem em prol de um olhar crítico, mais apurado e mais capaz de compartilhamento dos afetos, dos sintomas da epidemia e dos acontecimentos histórico-sociais. Em todas as histórias de ODCP as metáforas para nomear o amor são móveis e inapreensíveis: lago, oceano, peixes num aquário, luz, manhãs, dragões. “A outra voz” traz um momento de emersão de um sujeito que possui apenas um fio de ligação com o mundo externo: a voz de alguém que liga para ele, invariavelmente, às 17:15 da tarde. A cada telefonema, ele palmilha os fragmentos de uma memória de afetos, de perdas e mágoas, como quem monta a narrativa de uma dor cuja face ou causa já se perdera, há muito. Dedicado a um amigo e entrecortado por referências a textos e experiências de outros amigos já mortos — mais uma vez e novamente Ana Cristina Cesar, que é citação e nome de personagem —, “A outra voz” é o único desses contos de clausura em que o sujeito escolhe, ao final e com total lucidez, sair da dimensão “escura” em que se encontra, seguir a orientação da voz que o ligava ao real, e encontrar a luz (clareza) que sentia vir dela: “Porque queria — e queria — a luz da outra voz, não a escuridão deles: escolheu (p.123)”. Ao contrário dele, em outros textos, o amor já está marcado irremediavelmente pelo signo da epidemia, tornando-se não apenas uma promessa impossível, mas uma distorção que paralisa os sujeitos, ou dentro de um monólogo imanente (“À beira do mar aberto”) ou cristalizados dentro da perda

107 Cf. Revista Ipotesi (versão on line). Op. Cit. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

(“Saudades de Audrey Hepburn”) ou, ainda, buscando esquecer o instante em que, por medo, assassinara aquele que seria o seu grande amor (“Uma praiazinha de areia bem clara, ali, na beira da sanga”). Em todos eles, é possível escutar os uivos dessa condição de Laikas, ganindo na escuridão de um tempo, a fim de transformá-lo em palavra, em saber. Os personagens não têm verdades, mas trajetórias que podem funcionar com o efeito de verdade, a partir da modulação plural das vozes, como em “O destino desfolhou” e “Sem Ana, blues”, que tratam de descaminhos e novos caminhos para os afetos perdidos, ou como a maldição irônica de “Os sapatinhos vermelhos” ou o monólogo de “Dama da noite”, que usam o feminino e o transgênero para abordar a dor e a delícia de se encontrar preso numa fantasia instituída pela própria inadaptação do sujeito, pela sua força de recusa em jogar o jogo das relações previsíveis, estruturadas para dar certo a partir de uma conformação aos limites do que é racional, do que é masculino, do que é saudável e o que não pode transbordar, pois vira doentio, feminino, delirante aos olhos alheios. As verdades íntimas das personagens estão dispostas de maneira dispersa e tocam aquelas outras verdades obtidas a partir do intercambiamento das pequenas histórias, da lin- guagem metafórica de CFA e das referências escolhidas para dialogar com a superfície do que está sendo posto. Assim, tais verdades são feitas de uma carnadura obtida a partir do atrito entre escrita, biografia e vazio: “É preciso que não exista o que procura, caso contrário o ro- teiro teria que ser refeito para introduzir Tui, a Alegria. E a alegria é o lago, não o aquário turvo, névoa, palavras baças: Netuno, sinastrias” (1988, p.66). A metáfora do aquário, inclusi- ve, é usada em mais de um conto: em “O rapaz mais triste do mundo”, ela nomeia o cenário disforme, caótico, em ebulição, onde a AIDS já perambula, como um mal-estar pós-big-bang, onde os personagens e a própria narrativa precisam ensaiar o tempo inteiro uma espécie de nascimento; já em “Sem Ana, blues”, o aquário é o objeto que captura o congelamento da personagem, no exato instante em que se toma conhecimento de que o abandono é irreversí- vel, pois, assim como a AIDS, irá dividir sua vida em antes e depois da separação. O conto que dá título ao livro é uma rescrita do mito de Eros e Psiquê. CFA pula as partes mais gerais da história, como a da beleza sem par de Psiquê e do ciúme de Afrodite e seu conseqüente gesto de vingança para com a moça, bem como as razões porque Eros não podia se mostrar para a amada. Ele retoma o mito exatamente no momento em que, já casada com Eros, Psiquê, mesmo feliz, deseja por tudo ver o rosto do marido. No conto de CFA, Psi- quê é um “eu” sozinho, uma voz que narra a sua difícil e cíclica história de amor:

Tenho um dragão que mora comigo. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Não, isso não é verdade. Não tenho nenhum dragão. E, ainda que tivesse, ele não moraria comigo nem com ninguém. Para os dragões, nada mais inconcebível que dividir seu espaço — seja com outro dragão, seja com uma pessoa banal feito eu. Ou invulgar, co- mo imagino que os outros devam ser. Eles são solitários, os dragões. Quase tão solitários quanto eu me encontrei, sozinho neste apartamento, depois de sua par- tida. Digo quase porque, durante aquele tempo em que ele esteve comigo, ali- mentei a ilusão de que meu isolamento para sempre tinha acabado. E digo ilusão porque, outro dia, numa dessas manhãs áridas da ausência dele, felizmente cada vez menos freqüentes (a aridez, não a ausência), pensei assim: Os homens pre- cisam da ilusão do amor da mesma forma que precisam da ilusão de Deus. Da ilusão do amor para não afundarem no poço horrível da solidão absoluta; da ilusão de Deus, para não se perderem no caos da desordem sem nexo. (1988, p. 147-8, grifos do autor].

Ao contrário do que ocorre na lenda grega, em que as irmãs de Psiquê a pressionam para armar uma cilada ao marido, a fim de contemplar seu rosto ao menos uma vez, o narra- dor de “Os dragões não conhecem o paraíso” sente-se pressionado pelas diferenças abismais entre ele e o ser amado: “Ninguém é capaz de compreender um dragão. Eles jamais revelam o que sentem” (p.150). Além do delineamento das fronteiras incontornáveis entre dois seres, há a questão da invisibilidade daquilo a que se ama: “Além de tudo: eu não o via. Os dragões são invisíveis, você sabe. Sabe? Eu não sabia. Isso é tão lento, tão delicado de contar — você ain- da tem paciência?” (p.150). Não poder ver a face daqui(e)lo(e) a que(m) se ama dói, impossi- bilita a continuidade de uma vida lado a lado. Visão e clareza tornam-se imprescindíveis para a continuidade do amor. Todavia, a própria condição cíclica dessa dor é sem saídas: sofre-se porque não se pode ver nem tocar quem se ama, porém, só é possível amar, justamente, aquilo a que não se pode ver nem tocar. Assim, entre a delicadeza de se contar uma história intangí- vel e o inventário dessa falta, há um amanhecer agudo, uma falta aguda que desestabiliza o personagem. Seu canto solitário e repetido em busca de resquícios daquela tão esperada feli- cidade, daquele platô que deveria vir e não veio, é uma metáfora para a própria condição hu- mana de desejante. Apaixonar-se pelo dragão é uma espécie de catalisação fracassada da energia amorosa. Fracassada no sentido que Rougemont (2002) dá ao amor-paixão, que inviabiliza o casamento enquanto parceria entre iguais, pois assim como Tristão e Isolda, o personagem fica preso ao “ato” e não pode passar ao “objeto”. O dragão é o próprio Eros, não um objeto, um outro ser humano, mas a junção dos aspectos contraditórios de Eros numa figura mitológica, não-humana. Desde a sua sedução, que traz inicialmente a vitalidade e a alegria (“Nos dias que antecediam a sua chegada, eu acordava no meio da noite, o coração disparado”. p.152), até a sua nocividade, que leva à ruína, à morte (“Tudo apodrecia mais e Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

mais, sem que eu percebesse, doído do impossível que era tê-lo”. p.154), estamos diante de um texto que pressiona o seu próprio tecer-se, enquanto escritura, para mostrar a construção de um valor que, de absolutamente vazio, não consegue se conformar ao projeto de entrega e correspondência que a estruturação burguesa lhe dá. O amor enquanto lugar de construção da subjetividade, única dádiva capaz de dar sentido à existência humana, não veio, não existe, não “tem”. Por isso, o texto é o tempo todo interrompido, recomeçado, intervalado, negociado, como numa conversa íntima. Essa conversa traz um segredo: a história de uma prática infértil, de uma aposta perdida, de uma ilusão sem corpo nem voz. Entretanto, não se quer perder esse jogo, não se quer deixar escapar de vez a esperança. Assim como o amor é inefável e se repete em círculos concêntricos, a história que se conta também o é, e também o é seu narrador-velho no colo dele-mesmo-menino, retomando sempre o fio narrativo antes que venha o amanhã. Em acordo com a concepção romântica, o personagem desenvolve o cultivo do amor e se prepara para que ele se presentifique, reorganizando, com seu código, todos os outros aspectos de vida. Mas, tal qual Psiquê, ele não consegue ignorar uma brecha nesse código e concentra-se em torno daquilo que falta: a capacidade de ver, a falta de clareza do amor. De todos os sentidos, a visão — em seu sentido mais racional — é aquele que menos comparece no amor, pois se trata de um projeto que nasce de uma visão inconsciente, coletiva, não indi- vidual e singular. Todavia, o não-enxergar não é a ruína do projeto amoroso; é justamente a vontade de enxergar do personagem se sobrepondo à própria presença/sentir do amor. O per- sonagem deseja ver mesmo sabendo que o amor está ali, “com seus reflexos esverdeados pe- los cantos, seu perfume de ervas pelo ar, suas fumaças coloridas ou formas como serpentes espreitando pelas frestas de portas entreabertas” (ABREU, 1988, p.255). Não poder ver leva-o à exasperação, impossibilita a consumação do projeto, põe tudo a perder. Como Orfeu, que estava tão perto de Eurídice, mas duvidou e precisou olhar para trás, perdendo-a para sempre nos domínios de Tártaro, ou como São Tomé que precisava sentir as chagas de Jesus para acreditar na ressurreição, o personagem questiona essa autonomia do amor, não se contentan- do com sua inscrição no espaço “puro” da emoção e da fé. Podemos dizer que seu desejo de “ver” é a própria desconstrução do projeto amoroso, pois investe numa racionalidade acima do sensorial que lhe está sendo oferecido. O dragão está presente na história mítica de diversos povos, representando, às vezes, forças do mal ou sobrenaturais; às vezes, uma sabedoria que precisa ser conquistada; às vezes, sorte e prosperidade. Em muitas lendas, ele é o obstáculo que o herói precisa vencer antes de merecer a mão da donzela. A sua figura imaginária no Ocidente combina a forma de réptil Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

com a de pássaro, o que dá a esse ser mítico o poder de voar, mesmo sendo bastante pesado, e o de colocar fogo pela boca — em geral, seu atributo mais perigoso. Esse ser complexo, híbrido de ave e serpente, habita, desde a Antigüidade, tanto o imaginário do Oriente quanto o do Ocidente, simbolizando o caos, o confronto entre luz e trevas, a impossibilidade de deter as forças sobrenaturais, e o inconsciente, além de também servir como símbolo das forças negativas femininas e como sinônimo de sexo108. Em CFA, dar a Eros a forma do dragão é fazer o amor ressoar no texto com todos os elementos socioculturais a que ele sempre esteve ligado, mas que, em muitos momentos, foram mascarados no intuito de parecer uma força natural e não um valor construído. O conto trata de um inevitável estado de desencanto e prostração advindos de quando a subjetividade, ao buscar uma conformação no projeto do amor romântico, encontra o vazio e não a felicidade prometida. Se Eros corresponde ao dragão e Psiquê à alma do personagem, o que está sendo proposto por CFA é a disjunção entre quem ama (personagem/alma) e a “enti- dade amor” que o visita. Diante dessa disjunção, só resta à alma costurar sua história amorosa a cada novo dia, como uma voz saída de As mil e uma noites, que precisa enganar a ameaça da morte, da escuridão. Um texto que traz essa impossibilidade de conformação no plano do real ao projeto de amor romântico é “Onírico” (Ovelhas Negras, 1995), no qual uma mulher tem, subitamen- te, um sonho tão perfeito com seu par amoroso que passa a organizar sua vida em torno da hora de ir dormir para tentar ter de volta aquela harmonia experimentada. Dessa vez, o mito de viver o grande amor é não apenas uma ilusão, mas uma resposta às diluições redutoras do cotidiano, pois a personagem projeta nessa busca o desejo de sobreviver à mesmice dos dias vazios e inúteis a que está circunscrita. É sua forma de singularizar a sua história íntima, pois o que importa a ela não é alcançar esse empreendimento, uma vez que o sonho, mesmo repe- tido, é inefável, se esvai, mas a ação de buscá-lo a cada dia é um sentido móvel e passível de preenchimentos. Tanto em “Onírico” quanto em “Os dragões não conhecem o paraíso” não se fala em AIDS, mas se toca numa desesperança que ronda os personagens, que ameaça a so- brevivência de uma afetividade responsável pela “graça” de suas vidas. A escrita de CFA é, então, uma defesa dessa graça, uma força de resistência, como definiu Chiara, um grito de “ainda não”. Outro livro em que o autor aposta na concepção do amor como uma forma de singularização de várias subjetividades entrecruzadas feito escamas e onde a presença da

108 Cf. Johnni LANGER. O mito do dragão na Escandinávia. Parte I e II. Revista Brathair, 3 (1), 2003, p.42-64. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2007. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

AIDS é um motivo ainda mais forte para se pôr em prática a capacidade pessoal de se encantar com a vida é o romance Onde andará Dulce Veiga? – um romance b (1992). Trata- se de uma mistura de história policial e crônica urbana da decadência e modos de sobrevivência de uma época, uma cidade, uma geração, um país. O personagem principal é também o narrador, com a missão de investigar o paradeiro de uma cantora de rádio desaparecida. Em muitos momentos, ele é o alter-ego do autor, assumindo uma enorme proximidade com a biografia e o cotidiano do Caio Fernando Abreu escritor, jornalista, místico, morador de uma São Paulo caótica, movido por afetos, soropositivo. A narrativa é um ir e vir numa cidade cosmopolita e arcaica: ora nos é traçado um painel de uma metrópole veloz, neurótica, moderna, ora nos deparamos com “micro-são-paulos”, onde todos se conhecem, as ruas são de chão batido e o ritmo é de vida interiorana. O romance também alterna passagens poéticas — como quando o narrador é aban- donado por Pedro, seu namorado, e descobre na carta de despedida que estavam ambos com AIDS — com outras predominantemente objetivas, típicas de um texto policial. Há um apro- fundamento de certas subjetividades (o narrador, Pedro, Márcia Felácio, Dulce Veiga) e uma clicherização de outras (os colegas de trabalho do narrador, o chefe, o empresário de Dulce Veiga, fãs da banda de Márcia Felácio etc.). Dentro desse contexto, a narrativa é uma câmera que enquadra, aproxima e investiga minuciosamente certas passagens, mas também afasta, amplia, opta pelo panorama ou por meros flashes em outras. Segundo Renato Cordeiro Gomes109, as narrativas urbanas na década de 80 vão privilegiar o “presente turbulento” das grandes cidades, abandonando tanto a luta de classes quanto o registro de costumes, para se inscrever num agora precário a ser substituído por outro agora igualmente precário. Isso ocorre porque o espaço urbano é tomado como palco para infinitas possibilidades de encenações de conflitos culturais — o que enfraquece a linha naturalista e/ou memorialista dos romances brasileiros, a fim de que a cidade não mais figure como um cenário fixo de acontecimentos históricos ou uma crônica de costumes, mas, sobretudo, como uma metáfora do Brasil (2000, p. 68). Nesse sentido, a procura do paradeiro de Dulce Veiga é, simultaneamente, a procura por novas formas de sobrevivência do próprio narrador, que deseja uma conexão, ainda que precária, com aqueles ventos da contracultura, quando “a pseudotolerância conquistada pelos movimentos de liberação sexual” ainda não

109 Renato Cordeiro GOMES. Representações da cidade na narrativa brasileira pós-moderna: esgotamento da cena moderna? Revista Alceu, vol. I, jul/dez de 2000, p.64-74. Disponível também em pdf: . Acesso em 20 dez. 2006. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

havia desabado; esse mundo de ontem, “que ia dar certo” e “o mundo de zumbis”110 do presente, na verdade, se sobrepõem, feito camadas. A cantora simboliza um tempo de abertura eternizado na cabeça do narrador, e é através desse fio, muito mais afetivo-cultural do que histórico-objetivo, que ele reconstrói o que está na corda bamba, prestes a ser interrompido:

Não lembro de quase mais nada, depois. Dentro do elevador, ou na saída do prédio, ouvi os homens dando socos e pontapés na porta do apartamento. Na rua, as pessoas falavam em voz baixa, passavam apressadas, olhando para o chão, fingindo não ver o carro do DOPS estacionado sobre a calçada, com homens armados em volta. Lá embaixo, na avenida São João, bem em frente àquele prédio onde, há vinte anos, antes de sumir no mundo, morou um dia Dulce Veiga (ABREU, 1992, p.153).

Um pouco antes deste parágrafo é possível ver a reconstrução da segunda vez em que o narrador viu a cantora, suas impressões sobre a sala, a poltrona, as pessoas que ali viviam, ela se drogando, o bebê chorando num berço. Em seguida, pedem que ele vá embora devido ao perigo de a polícia chegar a qualquer momento. Ao sair, o narrador-personagem descreve a presença do DOPS e como as pessoas, em geral, disfarçavam tal incômodo naquela época. Em poucas linhas, ele situa a lembrança num tempo específico: o Brasil da ditadura militar. Assim, ainda que as recordações do tempo em que iniciava sua carreira de repórter, quando lhe foi encomendado um perfil da cantora Dulce Veiga, sejam vagas, ao tentar ordená-las, imediatamente, aparece toda uma paisagem de avanços e retrocessos do País. Esses elementos juntam-se a uma saudade de alguma coisa perdida ou interceptada, cuja natureza o personagem desconhece, mas intui, tem a ver com esperança, com sentido, e, sendo assim, é preciso procurar e procurar. É a busca de sentidos que o move. Cada aparição de Dulce Veiga acenando para ele representa um chamado para recompor esse tempo perdido e o que há de vir: a cantora é o moinho de vento do narrador, convidando-o para entrar no mapa desse delírio de querer ordenar os signos móveis e fragmentados do pretérito. O mundo oferece pequenas pistas; nelas, ele vai colando aquilo que ficou em sua mente, guardado, à espera. À medida que os pedaços de lembranças vão surgindo, as sensações e experiências do

110 As aspas se referem a trechos de uma crônica de 1987, denominada de “A mais justa das saias”, que aborda a presença da AIDS. Nesse texto, CFA se volta contra “as vozes” que decretavam ser a epidemia uma peste gay; ele declara que “homossexualidade não existe, nunca existiu. Existe sexualidade – voltada para um objeto qualquer de desejo”. Também afirmava que era necessário as pessoas entenderem “que um homossexual não é um contaminado em potencial, feito bomba-relógio prestes a explodir”, e termina dizendo que temia mais a AIDS psicológica do que a física, pois a segunda, tomados os devidos cuidados, poderia ainda ser evitada, enquanto a primeira destruía “suas emoções, seu gosto de viver, seu sorriso, sua capacidade encantar-se”. E perguntava: “Você gostaria de viver num mundo de zumbis? Eu, decididamente não. Então pela nossa própria sobrevivência afetiva – com carinho, com cuidado, com um sentimento de dignidade – ô gente, vamos continuar namorando. Era tão bom, não era?” (1996, p.48-50). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

personagem vão ganhando forma e as marcas do passado são resgatadas e confrontado com as do presente. Em depoimento publicado na Revista Ficções111, CFA falou do processo criativo desse romance, admitindo ser seu livro mais autobiográfico. Também declarou que a inspiração para o livro veio a partir do filme A estrela sobe (1974), de Bruno Barreto. Segundo CFA, ele o assistiu num período em que estava retornando ao Brasil de uma viagem à Europa e a representação de Odete Lara suscitou nele um misto de curiosidade pelo paradeiro da atriz. Veio, então, uma excitação para reescrever aquela história de outra maneira, do seu jeito. Para ele, Odete Lara “havia sido a maior estrela de cinema deste país” (1998, p.78), o que já demonstra o grau de correspondência entre procurar Dulce Veiga/Odete Lara e procurar o Brasil deixado para trás, para onde o autor, então, regressava. Porém, o narrador também tenta lembrar/entender, esquecer/libertar-se de sua história de amor abortada pelo vírus da AIDS. Feito Dom Quixote, o personagem lê todas as matérias jornalísticas sobre a cantora, visita arquivos, faz entrevistas, persegue pistas e quer relacionar os signos das aparições com aquilo que ficou retido em sua memória, a fim de estabelecer a correspondência. Desse acú- mulo, espera escrever a matéria definitiva sobre a vida de Dulce Veiga, com as verdades que seu público ignora. No entanto, como ele poderia reunir os fragmentos de uma história alheia se nem a dele mesmo é compreensível, organizável, reconstruível? Se em sua memória há, como que latejando, a lembrança vaga de um amor vivido, num tempo em que se foi estrela cadente, agora, esborrachando-se em seu corpo em forma de marcas, manchas, resfriados, e outras tantas dores resultantes da transformação abrupta do astro em caco de vidro pela mate- rialidade da epidemia? Esquecer e lembrar são gestos que configuram sua relação não apenas com o passado, mas com as suas identidades, com os talentos desaparecidos, com o amor perdido, com a precariedade dos arquivos, com a preservação, com a liberdade. O narrador também não se lembra direito das coisas, as pessoas que ele encontra não se lembram ou escondem por motivos pessoais, é toda uma memória esgarçada que vai pingando, como tinta num papel, aqui, ali, formando fragmentos, nunca uma unidade. Com essa disposição irregular, entretanto, ele vai modulando um ritmo, desenhando um mapa, estendendo sua busca. A simples menção do nome da cantora é uma espécie de orientação particular de seu próprio destino. Cada ação que ele toma desencadeia vários fios dessa memória perdida, mas,

111 Cf. Caio Fernando ABREU. Sobre o manuscrito. Depoimento publicado na Revista Ficções. Rio de Janeiro, n. 2, 1998. p.77-88. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

também, do futuro, do que está por vir: ele escreve uma crônica lembrando o desaparecimento incompreensível da cantora, justamente quando ela estava às vésperas de realizar um show importante em sua carreira; o chefe gosta tanto da crônica que encomenda uma matéria completa, exatamente quando o personagem mais precisava de um projeto, um sentido em sua vida; para escrever a matéria, o narrador inicia uma investigação sobre o paradeiro da cantora, mas na investigação ele conhece a filha de Dulce Veiga, aquela que era um bebê choroso quando ele fazia o perfil da mãe, anos atrás; a filha é roqueira e está com AIDS; ao ver as marcas da doença na jovem, o narrador liberta suas lembranças sobre o amor perdido, que estavam escondidas, e conscientiza-se de que também está com AIDS, como estava com AIDS o seu namorado que fugiu. Sonhos, recordações, desejos, identidades, reencontros, espelhos, contrários, definições, indefinições espocam numa São Paulo ruidosa, opressiva, mística, noir e labiríntica. Um retrato não, um thriller do País nos anos 90. A visão fugidia da cantora em vários pontos da cidade é como um entrefechar de consciência para a condição atormentada do sujeito. E ele nos fala dessa condição a partir de coisas simples: afetos, músicas, cenas, fatos cotidianos que poderiam passar despercebidos, mas que são colhidos e expostos pelo narrador. Em Onde andará Dulce Veiga? tudo é contado em sete capítulos que correspondem a uma semana de investigação. Há uma intenção de trabalhar com o misticismo que envolve o número 7. CFA era astrólogo e estudou Cabala, sabia das implicações esotéricas que envolvem esse número. Provavelmente, se o perguntássemos por que 7, ele responderia irônico porque em sete dias Deus fez o mundo; sete são as palavras usadas por Moisés para falar da criação; sete são as cores do arco-íris; são sete as maravilhas do mundo antigo; as notas musicais; os anões de Branca de Neve; e, poderia acrescentar ainda, sete vezes pronunciamos o nome do Brasil no Hino Nacional. Sete Brasis em sete tempos, ele nos mostra nesse romance, assim: 1. O Brasil-violência-flash, em que um bêbado persegue uma prostituta enquanto um policial passa, à paisana; 2. O País dos escritores de fins de semana que precisam ganhar o pão de cada dia nas redações dos jornais baratos; 3. O Brasil dos jovens- adolescentes em estúdios de gravação, formando bandas de rock e sonhando com o sucesso; 4. O País dos que disseram “não” e fugiram para lugares menores, abandonando identidade, profissão, vizinhos, amigos; 5. O Brasil urbano da solidão, do vazio e da incomunicabilidade noturna, com seus prédios infinitos e suas luzes de néon; 6. O País histórico, do tempo da repressão e da censura, em que homens do DOPS arrombavam portas de lares atrás de pessoas; 7. O Brasil das seitas, dos fanáticos religiosos, sempre a vender curas milagrosas através de interpretações radicais do juízo final bíblico. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

A história termina num domingo, numa estrada, no meio do nada, onde o narrador foi parar com sua busca. Nas mãos, ele tem um cachorro que acabara de nascer, cujo nome é Ca- zuza e lhe foi presenteado pela própria Dulce Veiga; à frente, o horizonte; atrás, a cantora, enfim, encontrada, que acena para ele com o mesmo gesto que vinha fazendo anteriormente, de forma fugidia, nas miragens dele. Mas agora o aceno simboliza uma etapa vencida. Ele está de volta ao vazio de si mesmo, achou uma paz temporária, uma verdade precária, e é com os resquícios dela que escolhe seguir em frente. O amor se reapresenta como um espaço em que uma fogueira foi apagada; no entanto, ele não lamenta mais as suas cinzas, quer apenas mantê-las vivas como se guarda o momento sagrado, luminoso, de uma pequena epifania. Para onde ele vai não sabemos, nem ele sabe. Apenas e tão somente há uma vida e a estrada bifurcada que pode se multiplicar no próximo atalho, e no outro adiante, e no outro novamen- te, ad infinitum. Ele está nessa estrada, numa pequena vila, dentro de uma pequena cidade, dentro de um domingo silencioso e cinza. Sempre que leio esse final, não consigo deixar de pensar o quão silenciosos e cinzen- tos são também os domingos cantados por Morrissey, em “Everyday is like Sunday”, canção que faz parte do álbum Viva Hate (1987), uma das preferências musicais declaradas de Caio Fernando Abreu, que chegou a resenhar um álbum dos Smiths para a Revista IstoÉ. O refrão da canção traz a mesma idéia presente no final do romance de CFA: o domingo como o início de um novo tempo, uma nova perspectiva de vida, por isso, cinza e silencioso, como a lem- brar a quietude do nada, aquela efervescência calma e desabitada do caos que fundamenta toda a criação: “Everyday is like Sunday/ Everyday is silent and grey”112. Há, no final, uma solução para a mistura de nostalgia e o desejo de encontrar um sentido para a vida, uma saída precária: basta o personagem se manter atento na corda bamba que se estende entre passado e futuro, ontem e hoje, saúde e doença, amor e solidão, memória e esquecimento. Essa reconci- liação do narrador consigo mesmo é, também, a reconciliação do sujeito com a possibilidade de voltar a amar, pois a fronteira que parecia intransponível entre ele e o passado já foi resol- vida, não com um retorno do recalcado, mas como um aprendizado que reconcilia os signos da dor com os da epifania vivida. O romance também lembra o que ocorre em “Lixo e purpurina” (Ovelhas Negras, 1995), espécie de reunião de fragmentos de um diário que o autor escreveu em 1974, quando viveu em Londres. Nele, em meio a vivências em comunidades alternativas, CFA pensa e repensa as relações afetivas, a pátria distante, a perspectiva de retorno e seu significado diante

112 No original, “Todos os dias são como domingo/todos os dias são silenciosos e cinza”. Stephen STREET, MORRISSEY. Viva Hate, EMI-Odeon, 1988 (faixa 3). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

da crueza do exílio numa terra estrangeira, onde não podia contar com nenhum tipo de alicerce, a não ser a amizade do grupo, e a perspectiva do amor. “Lixo e purpurina” é lírico e coloquial, cheio de cruzamentos com autores que CFA lia no exílio, com a canalização da sexualidade e da experimentação de drogas para as descobertas interiores — atitude tomada por vários de sua geração. No texto, há uma imbricação de fatos reais, sonhos e imaginação; o privado se superpondo às marcas do que foi vivido em comunidades alternativas, os delírios e as anotações diárias aparecendo aqui e ali, como escamas de peixe que, ao serem retiradas, vão mostrando pedaços de brilhos de uma sexualidade ambiguamente vivida, de encontros furtivos, de amores tornados amigos, de amizades erotizadas. Subjetividades imbricadas, realidade refeita e desfeita. Em Estranhos estrangeiros (1996), um projeto inacabado, CFA ambicionava reunir nesse título histórias ligadas ao tema do exílio, tanto real, com narrativas encenadas fora do Brasil, quanto imaginário, através de representações em que os personagens encontram-se em seu próprio país, mas se sentem interiormente exilados. O livro apresenta dois textos inéditos na ocasião do lançamento: “Bem longe de Marienbad”, publicado, primeiramente, dois anos antes, na França, e “Ao simulacro da imagerie”. Além desses, foram incorporados dois antigos: “London, London ou Ajax, Brush and Rubbish”, originalmente de Pedras de Calcutá (1977), e a novela “Pela noite”, publicada em Triângulo das águas (1983). Há duas epígrafes que dizem muito sobre o mal-estar dos personagens: a de Miguel Torga (“Pareço uma dessas árvores que se transplantam, que têm má saúde no país novo, mas que morrem se voltam à terra natal”) e a de Camille Claudel (“Il y a toujours quelque chose d’absent qui me tourmente”)113. A inadaptação presente nas duas citações ultrapassa a idéia de um simples estar fora de sua terra, falando outra língua, vivendo costumes que não são os de sua gente; trata-se de um mal-estar entranhado no sujeito, um não-pertencimento que independe do lugar onde ele esteja vivendo. Estar estrangeiro em qualquer lugar é um tema antigo, que remonta à própria formação dos Estados Europeus modernos, mas esse tema vem sendo retomado na contemporaneidade, a partir das novas discussões acerca do conceito de identidade e de cultura. Em uma canção popular, Caetano Veloso definiu a sensação de “estrangeiridade” como a consciência de nos saber “menos estrangeiro no lugar que no momento”114. Isso implica uma mudança da reflexão acerca da noção de “estrangeiridade”, que deixa de ser relacionada ao espaço (estar ou não estar em seu lugar de origem) e passa a se relacionar com

113 “Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta”. Apud Caio Fernando ABREU, 1996. 114 Caetano VELOSO. “O Estrangeiro”. Estrangeiro. Polygram, 1989 (Faixa 1). Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

o circunstancial, o contexto, a experiência momentânea. Nesse caso, eliminaríamos de seu conceito a questão do território-espaço, o que ligaria as noções de “pertencimento” e “identidade” não mais a um lugar, e, sim, a um “tempo” ou às “situações temporárias”. São duas perspectivas diferentes: esta última elege as circunstâncias, os conflitos vividos a cada instante pelos sujeitos como elementos fundadores de um sentir-se “fora”, excluído, quer em seu próprio país, quer noutro; já a primeira elege o espaço como elemento fundador da “estrangeiridade”, razão pela qual as identidades culturais são migrantes, isto é, acompanham o movimento dos sujeitos e se negociam a partir de uma zona fronteiriça entre o local e o estrangeiro. Aqui, é uma questão de perceber uma região móvel, uma fenda, onde se dá a chamada negociação cultural, tão cara ao pensamento de Homi Bhabha, por exemplo; lá, é uma subjetividade que não depende dos laços territoriais e que se faz a partir de um conflito com o contexto. Caio Fernando Abreu é um escritor nascido geograficamente na fronteira, acostuma- do a lidar diariamente com o clima frio, a paisagem, as culturas européias e com a interferên- cia de outros idiomas, devido à predominância de grupos de imigrantes alemães, italianos e holandeses que se estabeleceram em sua região. Dessa forma, o seu contexto familiar já traz uma certa “estrangeiridade”, uma espécie de ser-gaúcho-antes-de-brasileiro, definido assim por ele, em entrevista à Revista Autores Gaúchos:

CFA: – Eu nasci na fronteira da Argentina. Na minha cidade as pessoas e- ram todas alfabetizadas. Não tinha isso de palmeira e rumba, coisa de país esquizofrênico, superdividido. Não sinto nada em comum com Pernambuco, não tenho nada a ver com a Amazônia. Tenho muito mais a ver com a Ar- gentina. AG: – Quer dizer que o nordestino te toca emocionalmente, mas não te toca 115 literariamente? CFA: – Não, só quando leio A hora da estrela de Clarice Lispector. Aquela Macabéia é o Brasil. Aliás, a nossa literatura tem um casal: Macunaíma e Macabéia, dois arquétipos de brasileiros muito bem delineados. Mas meu caminho já é outro, corre por fora. É o viajante de Horacio Quiroga, envene- nado pela cobra, descendo o rio. (ABREU, 1995, p.7).

Três questões saltam no depoimento do autor: a consciência de ser um sujeito da fronteira; o estranhamento com o lado mais subdesenvolvido do Brasil, que não fazia parte de sua realidade no Rio Grande do Sul; a identificação com o viajante “à deriva”, de Quiroga. Tais questões sugerem uma inadaptação que ultrapassa o simples trabalho temático, ligando o

115 Antes, havia sido perguntado ao escritor se a convivência dele com nordestinos, em São Paulo, despertava nele alguma vontade de escrever sobre tal realidade. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

estar à margem de seus personagens à sua condição de homem, brasileiro, cidadão, escritor, gay. A palavra “estrangeiro” povoa, direta ou indiretamente, todos os estudos que trabalham com as noções de cultura e alteridade, uma vez que os países periféricos e os pós- coloniais têm sua(s) história(s) inscrita(s) quase sempre a partir de um olhar de fora, um pensar de fora, uma língua de fora. Em O local da cultura (1998), Bhabha pensa questões relativas à identidade, cultura, teoria e ação política, tendo em vista todo um sistema de formação e condicionamento do discurso colonial, cuja estrutura ou estruturação ele esquadrinha para melhor entender. Esses ensaios ainda são importantes para se discutir a pertinência ou não de noções acerca da hegemonia cultural e política, o multiculturalismo, a negociação cultural, a questão da identidade, o hibridismo e o conceito de nação. Um dos primeiros lembretes que o pensador indo-britânico fez ecoar feito fantasma durante sua análise sobre a condição pós-colonial foi a assertiva de que na história dos países europeus já havia, desde o início, a marca de grupos exilados, de situações de diáspora, de refúgio em guetos, reuniões em cafés e bares dos centros das grandes cidades. Dessa forma, a condição de estrangeiro sempre foi vivida de maneira constante pelos europeus que, com as grandes navegações, passam a ser os estrangeiros dos novos mundos, aqueles que chegaram com costumes, valores e, principalmente, com o poder de uma cultura transplantada. Essa noção, bastante óbvia, de um poder que vem do exterior, inteiro, identificado, com língua e armas próprias, e se estabelece entre os nativos, subjugando-os, está presente nas discussões acerca da alteridade e identidade cultural e, muitas vezes, constitui seu principal foco de análise. Entretanto, o que Bhabha quer destacar é que o sentir-se diferente, sentir-se estrangeiro já era uma marca inscrita na pele do próprio colonizador enquanto habitante de uma nação móvel, que pode “ser levada” a outros limites territoriais. Isso reforça que, desde o princípio, o lugar do europeu se inscreve na provisoriedade dos limites não apenas geográficos, mas, sobretudo, político-culturais de cada país, com suas crises imanentes. E isso explica porque nos discursos fundadores das nações modernas ou da “maneira de ser moderno” o provisório, o instável e o ilegível são como fantasmas a serem rejeitados, a exemplo de A montanha mágica (1924), de Thomas Mann, em que o personagem Hans Castorp, mesmo já se sabendo curado da tuberculose, tem grande dificuldade em deixar o local para onde foi em busca de cura, pois os caminhos do mundo lá fora se tornaram, novamente e sempre, impossíveis de serem previstos, traçados, solidificados. Uma prova disso é o contexto histórico do romance: a Primeira Guerra Mundial, que estava se formando dia a dia, atingindo os países de origem dos personagens, enquanto eles, os europeus Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

enfermos, os Hans Castorps da Europa tentavam se re-equilibrar num terreno neutro, numa estação de repouso nas montanhas. A estação de repouso passa a ser um lugar familiar, seguro, por isso, mágico. Vê-se, aí, uma fusão entre “estranho” e “estrangeiro”, uma vez que na estação havia estrangeiros de vários países europeus (mas principalmente dos quatro pilares modernos: Alemanha, Itália, França e Inglaterra), e a essa condição foi acrescentada a de “estranho”, obtida a partir do temor que sentiam do mundo de onde vieram, da vida distante que um dia possuíram e tiveram de abandonar, da doença desconhecida que os subjugava. Assim, guardados os graus de variações subjetivas que decorrem dos usos da palavra “estranho”, que vão desde a noção freudiana (1987) de categoria do assustador que remete ao que é conhecido, familiar, até uma mitificação do “estranho/estrangeiro” que povoou um certo período a literatura — a exemplo dos já comentados romances Teorema, de Pier Paolo Pasoli- ni, ou O coiote, de Roberto Freire, ou o conto “Eles”, de CFA, que se baseiam no impacto trazido por um ser culturalmente “estranho” num espaço fechado às diferenças, ao de fora —, retorna-se ao entendimento de Homi Bhabha (tomado de empréstimo de Eric Hobsbawm) de que a própria história da nação ocidental moderna é construída sob a perspectiva da margem da nação e do exílio de migrantes. Ou seja, é “antigo” e “estrutural” sentir-se “outro”, sentir- se “diferente”. Ou, como diria Julia Kristeva, “o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta da nossa identidade, o espaço que arruína a nossa morada, o tempo em que se afundam o en- tendimento e a simpatia” (1998, p. 9). Essa noção é importante para se perceber as contradições existentes nas produções artísticas e discursivas daqueles que já nasceram sob o signo da mistura, do múltiplo, da confusão, como ocorre nas histórias “Ao simulacro da imagerie” e “Bem longe de Marienbad”, de Estranhos estrangeiros. No primeiro, à maneira dos planos cinematográficos, um narrador em terceira pessoa nos fala de um reencontro num supermercado entre uma mulher e um homem que ela havia desejado, há muito tempo. Na verdade, não chega a ser propriamente um encontro, pois ela o reconhece, silenciosamente, na fila do caixa, mas não o aborda, não se falam, ele não a vê. Todo o conto se passa nesse instante em que ela o reconhece e relembra de antes, de quando ele não era esse urbanóide naquele supermercado, mas tão somente um jovem recém-chegado de anos de exílio político no Chile, Argélia, “depois a pós-graduação em Paris, em algum assunto que ela não lembrava direito” (1996, p.13). Aos poucos, vamos sabendo do sentimento de estrangeiridade desse jovem, visto pelos olhos dela, “que o amava assim estrangeiro no próprio país” (p.13). Eles não chegam a ter um envolvimento amoroso, embora ela espere dele uma atitude em sua direção; uma ação que Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

transforme as delicadezas e elogios em uma possibilidade de amor. Todavia, a consumação desse enlace amoroso não acontece, e, de amiga que fornece telefones, dicas e todo um ambiente acolhedor ao ex-exilado, ela vira uma mulher raivosa, inconsolável por perceber, enfim, que o rapaz provavelmente era homossexual e não lhe corresponderia nunca. Não se fala nunca em AIDS nos contos do autor, mas se remete quase sempre a um tempo antes e depois desse adquirido jeito de “zumbi”, que provocou certa desvalorização do afeto, certo desaprender do cuidado, da delicadeza para com o outro. Esse personagem que veio de fora nada tem de estrangeiro, suas ações e palavras são parte de um processo de re- entrada na cena de seu próprio país, re-encaixar-se na vida e no projeto sociocultural da na- ção, por isso usa a mulher para se apropriar da rede de amigos e conhecidos dela e, assim, conseguir uma ascensão social. Quem se sente “estrangeira” ou pelo menos “estranha” é a mulher, imersa numa rotina escravizante de traduções, tarefas domésticas e preparação de refeições, sozinha e carente, à espera de que as delicadezas e elogios daquele homem se con- cretizem alguma noite. É a solidão que a estrangeiriza, colocando-a numa posição vulnerável ao seu objeto de desejo. Para o exilado, a demanda dessa mulher não é uma questão com a qual ele teria de lidar, pois ele se serve dela para se ambientar novamente no Brasil, mas evita a concretização desse código amoroso na intimidade, preferindo desfilar com ela pelos ambi- entes e grupos sociais onde desejava penetrar. Ele poderia, com sua experiência de exílio, reconhecer nela a marca de um sentir-se estrangeiro em seu próprio espaço, mas, em vez dis- so, ele a toma como uma representante de um bem-viver por ele buscado, como um passapor- te para essa acomodação de que ele precisa, e joga o jogo das aparências, colocando-a num pedestal quando estão a sós, mas insinuando um “algo mais” diante dos amigos dela, forçando um clima de mistério e suspense entre eles. O conhecimento do outro, conceito amplamente difundido nos Estudos Culturais e de Literatura Comparada, é outra das preocupações de Bhabha ao tratar do tema do estrangeiro. Esse “outro”, essa alteridade, tão discutida por aqueles que trabalham com produções de qualquer que seja a minoria social, é ainda associada às histórias de resistência dos grupos minoritários. A partir de 1960, convencionou-se ler a experiência da dor e da exclusão como uma configuração do “outro”, do “diferente”. Historicamente, sabe-se que as histórias de vencidos e vencedores são tão interpenetradas que “eles” somos “nós” e vice-versa. Assim, Bhabha chama a atenção para o hibridismo cultural, lembrando que apenas insistir numa “devolução do poder” (ou da voz) a sujeitos que foram violentados num determinado tempo e espaço não é suficiente para fazer perceber os diferentes graus de absorção e/ou introjeção na cultura do discurso-opressor. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

É o que vemos ocorrer com o ex-exilado em relação à mulher que o acolhe, re- introduzindo-o na teia social do País. CFA desloca os papéis do masculino e feminino histori- camente construídos, ao colocar o exilado como aquele que necessita de uma legitimação, através de um projeto amoroso, socialmente reconhecido, e a mulher como a que tem o poder de promover a ascensão desse homem, dando-lhe a visibilidade social que, sozinho, ele não conseguiria. Segundo Mary Del Priore, em História do amor no Brasil (2005), o casamento aqui, no período colonial, era concebido como um contrato, um pacto que não passava pelos interesses sexuais ou afetivos, mas, sim, por um planejamento do futuro dos envolvidos, cui- dadosamente estabelecido pelas famílias — tema bastante explorado por José de Alencar em Senhora (1875), “que investiu contra a concepção de que no casamento o amor-paixão era inimigo” (PRIORE, 2005, p.28) — e por uma necessidade sócio-religiosa de controle da se- xualidade, sobretudo da sexualidade feminina. Priore usa as mesmas informações já forneci- das por Rougemount (2002) — o cultivo do amor cortês e a poesia trovadoresca — para res- saltar que foi a partir dos séculos XI e XII que o amor passou a ser valorizado no mundo oci- dental. No conto de CFA, esse aspecto histórico do casamento como um negócio com vistas a um futuro social, que visibilizasse e garantisse a segurança dos cônjuges, retorna a partir do jogo de aparências entre o ex-exilado e a mulher. Embora não tenha ocorrido um casamento entre eles, a encenação amorosa a que se submetem frente aos amigos é suficiente para confe- rir a legitimação e o status tão buscado pelo rapaz. Assim, ele é o feminino e se feminiliza cultivando a ambigüidade, a esperança, a fragilidade, o afeto, as aparências; enquanto ela é o masculino a oferecer segurança, legitimação, trânsito social, espaço público e acadêmico. A homossexualidade dele, no entanto, barra a concretização desse pacto na intimidade do casal, inviabilizando a troca, e a mulher é quem sai perdendo na negociação. O constrangimento do ex-exilado quando em situação de intimidade com a mulher e a posterior revolta dela ao lembrar o papel por que passou, cega por uma demanda de afeto que não veio, colocam na pauta a questão da autonomia do amor e sua “intimização”, ocorrida a partir do século XX, em virtude das transformações sócio-político-culturais dos anos 60, conforme lembra Priore. Tais transformações influenciam o conceito de amor, que passa a conter a idéia de uma entidade autônoma, que não depende da ação dos sujeitos envolvidos no seu pacto; “só depende de si mesmo” para acontecer e não mais de contratos, encenações, trocas, favores. Fosse Aurélia, de Alencar, naquela fase de transição entre a instalação da cultura burguesa no Brasil e os arraigados costumes coloniais, teria sido compensada com a correspondência apaixonada do rapaz, ao final de tantos sacrifícios, em vez de esbarrar na diferença irredutível da tendência sexual dele. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Em “Bem longe de Marienbad”, CFA traça um painel bastante complexo acerca do exílio, mais precisamente do percurso de um viajante em busca de seu amado, num país es- trangeiro. O título é inspirado no filme de Alain Resnais, O ano passado em Marienbad (1961) e traz a história de um sujeito à procura de um enigmático personagem chamado “K”. Ele chega no exterior, encontra pistas do outro, abandona cidades, perambula por ambientes esquisitos, sabe horários de trens, parte para outro destino, sempre só, sempre em busca de vestígios de “K”. Sendo ele mesmo um estrangeiro em busca de outro estrangeiro, sua identi- dade habita uma espécie de fronteira que, há muito, para ele mesmo, encontra-se esgarçada, na neblina. Os lugares por onde anda são incapazes de integrá-lo a um sentimento de perten- ça; antes, funcionam como estímulos para novas modulações de ritmos, num eterno seguir em frente. O conto se constrói, mais uma vez, dentro do walk writing (VASCONCELOS, 2000); é a perambulação de novo, a deriva que leva na bagagem nomes de poetas, canções, filmes, ícones, fragmentos de uma identidade móvel, que se dissolve na imensidão do mundo e no ritmo dos passos. A busca de sentido se desconecta, nesse caso, de uma paisagem formada pelos conflitos da relação do sujeito com a ordem objetiva, pois o sentido se especificou: está no encontro amoroso com esse “K”, esse alguém de quem só é preciso descobrir o paradeiro, ou, talvez, está em si mesmo, nesse outro que é também um duplo do narrador e/ou (por que não?) do próprio escritor — se lembrarmos que a letra “K” é a representação do fonema inicial de seu prenome, assim como o “K” de Kafka. Talvez, esse seja o conto de CFA mais carregado de referências intertextuais, de uma trajetória pessoal e de uma intensa metaforização que, como mostra Maria Pereira Lins116, investem “numa personificação de sensações, sentimentos e de seres inanimados, revelando experiências referentes a entidades não-humanos que passam a ser vistas como humanas”. Curiosamente, a procura do outro ou de seu duplo tende a ser positiva; o narrador- viajante realmente acredita poder encontrar a felicidade e se não a encontra logo, isso não o esmorece, pois o ir adiante se tornou a própria razão de sua existência. Segundo Denílson Lopes117, em meio a esse jogo de procura, reconhecimento e embaralhamento de pistas do outro, “Bem longe de Marienbad” consegue criar “um espaço onde tudo parece improvável, possível, uma vez que é a delicadeza, a hipersensibilidade que orienta o viajante, causando mal-estar e possibilidade de felicidade” (p. 45). Esse mal-estar pode ser percebido na

116 Cf. Metáfora instaurada na linguagem de Caio Fernando Abreu. Disponível em: . Acesso em: 2 jan. 2007. 117 Denílson LOPES. O entre-lugar das homoafetividades. Revista Ipotesis, vol. 5, número I, p.37-48 (versão on line). Disponível em pdf: . Acesso em: 25 jan.2007. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

paisagem, na neblina, nas pistas fugidias de “K”; na incomunicabilidade ou economia de diálogos do viajante com as pessoas do lugar; na estranheza da cidade estrangeira onde se chega anonimamente e de onde se sai de igual forma; e, sobretudo, na concepção do amor não mais como um ponto de chegada, e, sim, como um processo, uma abertura para seguir em frente, uma modulação do próprio caminhar, um devir. Dentro da intensa solidão por onde se move, uma intimidade muito especial, que pode ser traduzida como a enorme delicadeza com que o viajante enfrenta seu destino, jorra em seus passos, em seu olhar, em sua relação com os objetos e sinais do outro encontrados pelo cami- nho. Qualquer cheiro, cor, ruído ou sensação despertam um labirinto de citações, lembranças e novos mapas na mente do andarilho. Despertam um prazer único: o de amar pelo prazer de a- mar, simplesmente. O final nos mostra como o sujeito está pleno em seu percurso, como se tor- nou consciente de que viver, amar, modular e viajar são verbos da mesma natureza:

Lá fora, o vôo de um grande pássaro quase totalmente branco, talvez uma gaivota, corta minha imagem refletida na vidraça.Desvio o rosto, não devo me deter tempo demais em meus próprios olhos. Aumento o som da canção, olho para fora enquanto o trem dispara sobre os trilhos. Preciso ficar sempre atento. Ainda não anoiteceu, e alguns dizem que há castelos pelo caminho (ABREU, 1996, p. 42).

Há alguma correspondência entre o que se deseja, o mundo de fora e a disposição in- terna do sujeito. Melhor do que correspondência: há um fluxo. O pássaro grande, quase bran- co, é o símbolo de um desejo de liberdade interior, o espaço da criação, da inventividade. Ao fitá-lo rapidamente, vendo-o, sabendo de seu vôo lá fora, mas absorvendo-o de maneira fugaz, o personagem está optando pela perspectiva de sorver o de fora aos goles, aos pedaços, não mais desejando a inteireza das coisas, da paisagem, do outro, mas interessado em fragmentos disto: uma superfície na qual se pode de vez em quando cometer certas rasuras, intervir. A perspectiva torna-se micro, mas não no sentido de menor, e sim de palpável, de possível; como a textura de uma paisagem a que se aprecia, porém, sem ânsia de retenção, sem permitir que o olhar nela se fixe; afinal, melhor que o pássaro cortando a imagem do sujeito na vidraça serão os castelos que estão pelo caminho. Ele se sente, assim, perfeitamente à vontade dentro de sua deriva. O abismo se esgarçou. Se o pássaro, que pode ser uma gaivota — um elemento muito comum na paisagem praieira do Brasil — é capaz de entreter o olhar do viajante por um segundo e, de modo igual, ficar para trás, parece-nos que os futuros castelos — elementos típicos de uma cultura européia — também terão seu momento de apreensão, fruição e abandono. Estar e ser estrangeiro são agora um ponto de equilíbrio entre Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

as tendências mais íntimas do sujeito e o mundo objetivo. Não implicam mais conflito, e, sim, uma orientação. A busca do amor funde-se a essa condição do reconhecer-se sempre estrangeiro — no lugar e no momento —, vira uma força subjetiva, não mais um problema. Como força, é capaz de abrir mapas variados, percursos infinitos, rompendo a oposição entre subjetividade e ordem objetiva, pois o de dentro é tão móvel, fronteiriço e múltiplo quanto o de fora. Ganha o mundo, com a delicadeza do rastro desse viajante que ora segue, à esquerda, sempre à gauche. Em “Lá em Brokeback Mountain, ou: dez anos sem Caio Fernando Abreu”118, Moriconi discorre sobre os aspectos sempre jovens ou pop da literatura de CFA. O crítico lembra um questionamento muito comum a respeito das razões de uma imensa empatia causada em públicos jovens por essa literatura. Tais públicos, que são não apenas diversos como se renovam a cada ano, praticam um culto bastante produtivo em torno da obra do autor, fruindo-a como quem abre janelas para os fios emaranhados de todas as manhãs. Ele recupera um tempo em que os livros de CFA eram difíceis de ser encontrados no mercado, restringindo-se a sebos e à generosidade dos empréstimos; um tempo quando “emprestar um livro de Caio a um amigo ou amiga virou senha de cumplicidade existencial. Era como o baseado circulando pela rodinha de jovens. Ou as pílulas de êxtase distribuídas em meio ao todo-vapor de um pancadão techno” — tudo isso se localiza num período antes de a Editora Agir reeditar suas obras, recolocando-o, a partir de 2005119, no cotidiano das livrarias. Para Moriconi, a empatia, afinal, se explica pelo potencial da própria linguagem do autor, “sua persona estilística, sua voz narrativa, ou seja, o ponto de vista que articula seu texto é o do jovem dos anos 70, que o escritor no entanto logra transformar num jovem universal, transtemporal”. Essa percepção aponta para uma confluência entre o processo de estilização da trajetória pessoal do autor com o sentimento de transitoriedade, por vezes doloroso, que esses públicos jovens sentem ao passar de uma etapa juvenil para uma fase mais adulta da vida. Os

118 Disponível em: . Acesso em 25 nov. 2007 (originalmente publicado em 02/03/2006). 119 Como leitora assídua de Caio e dona de sebo, não posso deixar de registrar que mesmo hoje, em 2008, quando a obra do autor está disponível no mercado, as edições anteriores de seus livros ainda causam um “frisson” quando aparecem no acervo da minha loja. Primeiro, há uma lista de clientes à espera de uma “edição bem antiga, se possível a primeira” de Inventário do irremediável, a fim de checar os cortes que o autor fizera, ou então clientes que não querem a edição da Companhia das Letras para Morangos mofados e vêm ao sebo a fim de trocá-la pela da Brasiliense, pois preferem “aquela capa dos morangos de Alex Vallauri, sabe?”; segundo, há outra lista de leitores que leram Caio através de amigos mais velhos, e acham que as edições da Agir não são fiéis ao espírito da obra (porque a editora escolheu juntar numa mesma edição mais de um livro do autor); terceiro, há uma pequena lista de quem acha as edições que estão no mercado caras e aguardam pacientemente comprá-las de segunda mão. O mais interessante é que quando ligamos para avisar a um cliente que “chegou” no sebo um dos títulos de CFA procurados por ele, a primeira reação sempre é de estranhamento: “mas quem foi que apareceu aí vendendo o Caio?”, num misto de alegria, por estar conseguindo o produto, e, ao mesmo tempo, ofensa, porque alguém em algum lugar está descartando Caio Fernando Abreu. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

tropeços e as porradas, bem como as lutas em prol daquilo que nos é mais caro, são materializados por uma escrita que consegue dizer o seu tempo e o tempo do outro de forma metafórica, numa combinação que Moriconi definiu como “junção entre o ponto de vista juvenil e esse encadeamento textual sustentado por imagens poéticas — todas sempre muito simples, porém eficazes”, que permitem à literatura de CFA permanecer ou se ressignificar junto ao seu público, sem deixar de interessar aos novos que estão chegando. O ensaísta também aborda o rótulo de “literatura gay” com o qual CFA teve de lidar — e que o apavorava —, considerando que tal estigma é um desdobramento lógico de uma abordagem em que as relações homoeróticas sempre ganharam maior destaque, embora não excluam as outras sexualidades. A explosão de artigos, ensaios, monografias, dissertações, teses, palestras, mesas-redondas e comunicações acerca da literatura de CFA, justamente quando se expandiam, no Brasil, os estudos gays e lésbicos, mostra que o texto do autor cap- turou de forma definitiva, como poucos escritores brasileiros, a atenção e o desejo desse tar- get acadêmico. Para Moriconi, além do medo de ser guetizado, manifestado pelo autor em vida, há também o “caráter paradoxal” presente na fala de seus novos leitores que não dese- jam circunscrever o texto de Caio à redoma das obras ditas homossexuais. Esse desejo parece um disparate, porque é justamente o olhar de uma condição de borda, de margem, trazida pelo escritor-homem-branco-brasileiro-gaúcho-gay que tornou possível transformar em literatura uma história íntima, que, ao ser mediada pela linguagem poética, ultrapassa seus próprios limites de trajetória pessoal e se instala como espaço de encontro e encantamento das histórias do outro, de qualquer um(a). Habitando as margens ou, como queria CFA, “um centro talvez escuro” onde se pode tentar agarrar-se, suas modulações amorosas são o único sentido possível que resta no labirin- to de ruínas, de memórias esgarçadas ora do desbunde ora da epidemia, que doem feito farpas, que dilaceram, que impõem derivas. Mas esse sentido não está pronto, não está no outro nem em nós mesmos, não está dentro nem fora; não é o néctar que está para ser derramado na ân- fora das deusas — “Não havia ânforas, não havia deusas” (1988, p.56) —, não está no sexo nem na imaginação, não habita o visível nem o invisível. Esse sentido é uma dança, um convi- te, um eterno vir-a-ser, que lampeja como se fosse uma convicção inominável, capaz de justi- ficar, dia a dia, esse viver a la Sísifo, de subir a montanha para rolar uma pedra que amanhã estará, novamente, no pé da montanha, à espera de ser outra vez carregada. Todavia, é preciso sempre lembrar que o trajeto não aponta para uma escravidão, não conduz ao círculo, mas à dança, pois é, antes de tudo, o sopro de uma doce e ensolarada alegria:

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Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim, que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo; repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba res- ponder. Tudo é tão vago como se fosse nada. (ABREU, 1988, p.148).

Pode-se afirmar, assim, que a experiência da AIDS foi trabalhada por CFA como um processo no qual poesia, biografia e discurso crítico habitam o mesmo espaço, constituindo uma arte de viver (FOUCAULT, 1984), ou uma forma de vida (PÁL PELBART, 2000). E isso afasta seu texto da maioria das narrativas que gravaram a epidemia de forma meramente descritiva ou confessional, pois, com o passar dos anos, e a mudança da AIDS de peste gay e vírus mortal para uma doença crônica, controlada por remédios, disciplina e qualidade de vi- da, a escrita que flagrava a doença através de um discurso redutor, militante, expositivo ou referencial tende a não dizer mais grande coisa, ou pelo menos não dizer do que ainda é im- pacto em qualquer retrospectiva: a condição de “acontecimento cultural maior” que a doença teve nos anos 80, “por colocar em xeque os valores e contra-valores que tinham norteado tan- to os comportamentos permissivos de boa parte da geração 70 quanto as reações causadas nos outros por tais comportamentos”120.

4.2 UM CACHORRO VIVO DENTRO DO ESTÔMAGO, QUERENDO SAIR

Se a AIDS pode ser vista como esse advento capaz de marcar e ressignificar tanto a geração de CFA, quanto a de Renato Russo, a maneira encontrada por cada um deles para lidar com esse acontecimento singular não foi a mesma. A cristalinidade assumida por CFA, simbolizada pelas crônicas intituladas “Cartas para além dos muros”, publicadas no Jornal O Estado de S. Paulo, em que assume estar com AIDS e dá notícias sobre suas internações e seu estado de saúde121, se distingue da reclusão e recusa em falar do assunto, que marcam a postu- ra de Renato Russo. Nele, a AIDS provocou um movimento inverso, de “fechamento”, tanto para com o público, quanto para a materialidade dessa epidemia, que em suas letras passa diretamente a significar morte, tempestade, destruição.

120 Cf. MORICONI. Lá em Brokeback Mountain, ou: dez anos sem Caio Fernando Abreu. Op. Cit. 121 Essas cartas-crônicas foram publicadas depois no livro póstumo. Cf. Caio Fernando ABREU. Pequenas epifanias. Org. e sel. Gil VELOSO. Porto Alegre: Sulinas, 1996. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Após o falecimento de RR, duas frases atribuídas a ele circularam insistentemente nos jornais, revistas e nos encartes especiais com fotos gigantes destinados ao seu enorme fã- clube; uma foi dita no Jornal Nacional (Rede Globo), por dona Carmem Manfredini, mãe do cantor, e consistia numa síntese do desabafo do filho que, alguns dias antes de morrer, teria confessado só ter sido realmente feliz na infância; a outra, supostamente dita por amigos, apa- receu nas revistas Veja, IstoÉ e numa edição especial da Manchete, entre aspas, e consistia numa declaração do músico acerca de sua impossibilidade de se submeter aos tratamentos disponíveis na época (o coquetel de AZT), pois esses lhe deixavam com um mal-estar tama- nho, como se estivesse com um “cachorro vivo dentro do estômago, querendo sair”. Também circulou nesse período uma versão de suicídio, logo desmentida pela família e membros da banda. Tal versão tem origem nas informações truncadas que iam surgindo sobre esse mal- estar do artista em relação à medicação: ora se registrava que ele havia se trancado no quarto, recusando-se a ser medicado e a comer — o que teria levado-o à morte —, ora se dizia que ele tentara o suicídio, foi salvo pelo pai, mas teria ficado muito fragilizado. Renato Russo jamais admitiu publicamente estar com AIDS, e o espanto com que sua mãe reagiu, em cadeia nacional, quando lhe perguntaram se o filho era soropositivo — ela respondeu que a causa da morte dele era uma anorexia nervosa, que o impedia de se alimentar direito —, mostra o quanto a doença não implicou essa tradutibilidade ou essa elaboração percebida no discurso e na escrita de CFA. O cantor não apenas escondeu a doença do público e da mídia — e até de amigos, que sabiam pelos sinais, mas não por declarações dele —, co- mo confundiu as possibilidades de que ela fosse flagrada em seu discurso, conforme mostra este trecho da entrevista concedida a Maria Helena Passos, da Revista Marie Claire:

Revista Marie Claire: — Você chegou a fazer teste de Aids? RR: — Não falo sobre isso. Dá medo, é uma coisa terrível. Faço parte de uma geração que foi pega no meio do caminho. Tive que erotizar o uso da camisinha. Senão, na hora de procurar por ela você já broxou. Para não usá- la, o pessoal começou a fazer sexo sem penetração, achando que não pega Aids. Virou tudo filme de gay, sabe? Aquela coisa de gozar fora. Mas eu não preciso dessa coisa de teste e quando eu fiz foi... Revista Marie Claire: — Um alívio? RR: — Foi horrível esperar o resultado. Faço check-up todo ano e descobri que estava com hepatite B. Os médicos me pediram para fazer o teste de Aids. Fiz três exames até ter certeza do resultado, que deu positivo no primeiro exame e foi um horror... Você tem que falar com seus amigos e todos tiveram que fazer teste de Aids. Aí fiz o outro (Western Blot, exame mais caro e mais preciso). Repeti mais uma vez. E esses dois deram resultado negativo. O médico disse que até segunda ordem sou soronegativo. Mas ajo como se fosse soropositivo. Sexo seguro total... Já passei por tanta Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

coisa... E sempre maltratei muito meu organismo. Você sabe, não é legal falar isso, mas quem é realmente saudável tem menos possibilidade de contrair Aids. [...] (1995, p. 25, grifos da edição).

A entrevista foi publicada pouco mais de um ano antes da morte de RR, e nela é pos- sível flagrar uma oscilação tensa entre dizer e não dizer que está com AIDS — o que soa es- tranho numa mesma entrevista em que o cantor conta detalhes bastante íntimos sobre sua ini- ciação sexual com um primo quatro anos mais velho122; sobre as dúvidas que estava tendo a respeito da prática de sexo oral; sobre a relação com o filho. Outro ponto interessante em seu discurso sobre a epidemia é a insistência com que ele, durante os shows e em apresentações na Tv, dá conselhos para o público, colocando-se como um irmão mais velho e afirmando: “crianças, não se esqueçam, sexo sempre com camisinha, pode fazer tudo, desde que seja com camisinha”123. No último álbum, A tempestade ou O livro dos dias, em agosto 1996, pouco tempo antes da morte de Renato Russo, a experiência da AIDS impõem um contorno amargo e um pessimismo que impede qualquer possibilidade de se enxergar um futuro, uma saída, tanto para si quanto para os “meninos e meninas” do Brasil. Sem a perspectiva móvel e em constan- te elaboração dos outros trabalhos, o disco se inicia com um convite ao público:

Vamos falar de pesticidas e de tragédias radioativas de doenças incuráveis vamos falar de sua vida124 [...]

Trata-se de uma delegação irônica e, ao mesmo tempo, angustiada dessa tarefa de es- crever uma canção que ainda consiga representar a crença “num novo dia/na nossa grande geração perdida/ nos meninos e meninas/ nos trevos de quatro folhas”. A paisagem “cinza” se estende da melodia à letra, da letra à harmonia, da harmonia à voz; uma textura estática, sim- bolizada pelo tom monocórdio assumido pelo seu canto e o arranjo instrumental que começa e termina sem variações. “Natália” finaliza com um fio de esperança: “quem sabe um dia/ eu escrevo uma canção pra você”. Esse “quem sabe” pode ser lido pelo seu referente direto, sua confissão imediata da impossibilidade de transformar a trajetória da AIDS em um objeto artístico, mas, também,

122 Esse primo seria, segundo RR, o personagem da canção Dado viciado, de 1984, mas jamais lançada em vida pelo compositor. Uma outra estação. EMI BRASIL, 1997 (faixa 10). 123 Cf. Acústico MTV. EMI, 1999 (final da faixa 3). 124 Cf. Natália. A tempestade ou O livro dos dias. EMI, 1996 (faixa 1). Nas análises seguintes, de canções desse mesmo álbum, a informação do número da faixa aparecerá no corpo do texto. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

pode ser compreendido como uma intervenção crítica, uma vez que a hipótese, agora irônica, mostra um posicionamento sobre o próprio gesto de buscar inventividade nesse território devastado, onde escrita, biografia e linguagem poética nada têm a oferecer ao outro — por isso, a proposta-provocação: “vamos falar de sua vida”. Aqui o limite entre palavra, saber e vida é posto na fundura do texto, afogando-lhe os sentidos: num tempo em que se vive os pesticidas e as doenças incuráveis, falar é um exercício não súbito, não espontâneo, não criativo; trata-se de um abismo, circular e monorcódio, que, em vez de expor aquela “biofala”, encontrada em CFA, mergulha os fragmentos de história em um só sentido: o vertical. Depois de “Natália”, vem uma das canções mais tristes da Legião Urbana, cujo títu- lo, “L’Avventura”, foi tomado de empréstimo de um filme de Antonioni, de 1960 — um dos cineastas preferidos de Renato Russo. A letra tematiza uma pequena história de perda, de des- ventura, através de frases-sentenças que generalizam mais do que explicam, tais como:

Nada é fácil, nada é certo Não façamos do amor algo desonesto [...] Não é desejo, nem é saudade Sinceramente nem é verdade (faixa 2).

Antes de funcionar como uma canção de desespero pelo fim de um caso amoroso, a letra assume uma bifurcação, explorando, além do término, uma conversa íntima do narrador consigo mesmo, retomando os temas mais constantes das letras da Legião Urbana e ressaltan- do o quanto o advento da AIDS calara essa veia inventiva: “Seu olhar não conta mais estórias/ Não brota o fruto e nem a flor/ E nem o céu é belo e prateado/ E o que eu era eu não sou mais/ E não tenho nada pr’a lembrar”. As referências às tantas estórias já contadas (RR faz questão de sempre grafar história com “e”, mantendo a velha distinção entre “criação” e “fato com- provado”) aparecem após a manifestação de um desejo de constância e sinceridade (“Quero ser constante e sempre tentar ser sincero”) que se coloca paralelo à linha da criatividade, na qual se flagra a perda da capacidade de desvio do material bruto, íntimo, que seria lapidado. Outro simbolismo que leva à compreensão de “L’Avventura” não como uma “ligação amoro- sa e passageira”, mas como a própria experiência de risco do autor, que nesse empreendimen- to narrativo encontra-se por um fio, devido às circunstâncias da epidemia, é a menção simbó- lica ao céu que, nas histórias da banda, sempre foi motivo de destaque e metaforização, e, nesse momento, se divide em “quem sabe duas manhãs”. Renato Russo trabalha no sentido da “anti-aventura” — já trabalhada na tela por Antonioni, quando a situação de desaparecimento é a própria história, que não se constrói a Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

partir de uma sucessão encadeada de fatos, mas tão somente do mote da fuga, seqüestro, mergulho, sumiço ou assassinato, não se sabe bem, de alguém. A frase de Anna, a personagem desaparecida do filme (“Somos incapazes de nos compreendermos”), paira sobre toda a canção de RR, embora jamais seja evocada. A desventura aqui se coloca no plano da própria escrita: “as (h)estórias são desnecessárias, pois criam enganos”125 — e, aqui, é do acaso, sorte, fortuna, destino, sina do próprio narrador que se está falando. Em “A via Láctea”, quinta canção do álbum, a AIDS surge na superfície do texto; é “uma tristeza” que “não é passageira”, é “um anjo triste” que de repente se aproxima, é uma febre que permanece “a tarde inteira”, e é uma visão de mundo posta como a razão não dita para “tudo estar perdido”. A menção à galáxia onde estamos inseridos leva a pelo menos três sentidos: ao espaço íntimo de dor e pranto, exposto pelos versos “e quando chegar a noite/ cada estrela parecerá uma lágrima”; à condição de solidão vasta e intransponível de cada um de nós; a iminência da partida individual para o infinito, para a morte, para o outro lado des- conhecido por todo ser humano. A doença é indiretamente mencionada pela “conversa” que articula uma escrita de si fragmentada, um diálogo do livro imaginário da memória, dos acon- tecimentos fisiológicos, mentais e espirituais — do corpo, da alma, da vida:

Queria ser como os outros E rir das desgraças da vida Ou fingir estar sempre bem Ver a leveza das coisas com humor Mas não me diga isso É só hoje e isso passa Só me deixe aqui quieto Isso passa Amanhã é um outro dia não é

Também é em “A via Láctea”, música escolhida para ser carro-chefe do álbum, que a voz de RR se mostra afetada pela doença, não chegando ao registro dolorido de Cazuza em Burguesia (1989), mas falhando numa frase mais aguda e erguendo-se na seguinte, quando é solicitado do cantor um tom mais grave — região onde sempre demonstrou sentir-se mais confortável. É nessa zona de gravidade, inclusive, que a voz se despede do interlocutor, pedindo-lhe que evite as consolações comuns: “Não me diga isso/ Não me dê atenção/ E obrigado por pensar em mim”. De resto, tais consolações não teriam mais poder de

125 Cf. Michelangelo ANTONIONI (direção e roteiro), Elio BARTOLINI, Tonino GUERRA (roteiro). L’Avventura. 1960. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

reverberação, já que nessa galáxia íntima “a luz” ou “caminho” que por ventura possa existir é apenas uma hipótese vaga, solitária, incompartilhada. Aquela orquestração das falas de si e do mundo, trabalhada de maneira singular por Renato Russo, se transforma em trechos desconexos de uma longa despedida, dispostos em meio a construções herméticas, como na letra de “O livro dos dias” (faixa 15); ou então incor- poram um distanciamento poético capaz de ainda investir positivamente numa série de valores e ações individuais, que formam uma cantiga anti-pessimismo, anti-fim, como em “Sou Parsi- fal” (faixa 8), que saúda as coisas boas da vida (preces, saudades, flores, jardim, erva-cidreira, anjos, irmã) e declara, afinal: “ninguém vai me dizer o que sentir/ e eu vou cantar uma canção p’ra mim”. A espontaneidade agora se faz a partir de uma tensão AIDS-escrita-reflexividade; no entanto, diferentemente de CFA, o compositor não vislumbra o outro enquanto modulação ou força de correspondência nesse processo de criar caminhos possíveis de sociabilização inventiva da experiência. O “outro” aqui é a própria AIDS/morte e seus desdobramentos. O mundo se fecha em torno da tentativa ora de expurgar essa dor ora de recapitular os valores cultivados na trajetória pessoal, destacando-se a necessidade de parecer/ser sincero, como em “Esperando por mim”:

Acho que você não percebeu Que meu sorriso era sincero Sou tão cínico às vezes O tempo todo Estou tentando me defender Diga o que disserem O mal do século é a solidão Cada um de nós imerso em sua própria arrogância Esperando por um pouco de afeição (faixa 13)

As montagens pressupõem a desventura íntima, que fecha e abre o foco, flagrando um desespero com o qual não se quer/pode lidar. Inscrevem-se memórias, desejos e impressões numa superfície que tende a se afundar a partir desse naufrágio de “eus” entrecortados e explicitamente cansados de buscar as trocas, as correspondências, mais afeitos a assumir a verticalidade da fala do que a dança das palavras, a espacialidade dos discursos. O velho gosto por narrativas aparece numa canção como “Dezesseis”, nona faixa do disco, uma (h)estória trágica cujo personagem principal é João Roberto, um rapaz de 16 anos que morre fazendo “pega” com sua turma. A letra contém todos os ingredientes de um filme hollywoodiano: o jovem herói, um amor impossível, a turma colegial, o desejo de aventura e de transgressão e a instituição, representada pelo diretor da escola. Ironicamente, o narrador- Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

onisciente nos informa detalhes como o apelido de João Roberto no grupo (Johnny, símbolo de uma interferência da cultura norte-americana na nossa); registro da classe privilegiada a que o rapaz pertencia (“Ele tinha um Opala metálico azul/ era o rei dos pegas na Asa Sul”); a naturalidade com que toda uma juventude põe a própria vida e a de outros cidadãos em risco; e o discurso previsível e ineficaz das instituições oficiais (“No dia seguinte falou o diretor:/ — O aluno João Roberto não está mais entre nós/ Ele só tinha dezesseis/ Que isso sirva de aviso p’ra vocês”). Curiosamente este é um Brasil que pouco aparece de forma explícita nas letras do rock nacional: um País formado por meninos e meninas bem nascidos, bem criados, mas que só conseguem se divertir se estiverem testando os seus próprios limites. O cenário da narrativa só pode ser Brasília, uma vez que o “racha” de carros ou “pega” é algo muito praticado no Distrito Federal, e o narrador nos dá todos os endereços onde isso acontece: CASEB, Lago Norte, UnB, Curva do Diabo, em Sobradinho etc. Apesar de ser um crime, os seus praticantes contam com a impunidade e ausência de controle dos órgãos responsáveis pela ordem no trân- sito — no entanto, na canção Johnny é punido com a morte. A música da Legião Urbana registra os momentos de excitação da gangue de jovens, que enxergam em tal prática um sentido para suas vidas esvaziadas de ética e orientadas pelo desprezo ou indiferença às leis. Mesmo diante da morte trágica do rapaz de 16 anos, e da ad- vertência do diretor, seus colegas não questionam a prática do “racha”; preferem investigar a razão pela qual João Roberto, considerado “o rei dos pegas da Asa Sul”, “se deixou morrer”. Eles lembram que o amigo estava estranho nos últimos dias, relacionam tal estado à perda de um amor, e concluem que sua morte ocorreu por causa de “um coração partido”, afinal, “Johnny era fera demais pra vacilar assim”. O amor aqui, compreendido como uma interven- ção abstrata, é colocado como única forma ou poder capaz de estancar o impulso juvenil para o perigo, a autodestruição. Na saída da escola, os colegas homenageiam o amigo cantando “Strawberry fields forever”. Nesse trecho, a melodia da Legião chega a mudar para acompa- nhar a citação à histórica canção dos Beatles, finalizando com um ambíguo “bye, bye, bye, Johnny” (ao personagem ou ao impulso juvenil?). Embora distante no tempo da geração representada nos contos de Caio Fernando Abreu, que cantava a mesma canção dos Beatles, nos tempos em que os “morangos selvagens” simbolizavam um verdadeiro convite ao abandono da realidade e à entrada de corpo e alma no espaço do onírico, da liberdade individual; que um dia quis mudar o mundo e chegou a flertar com as fronteiras entre vida e morte; a de João Roberto também se deixa levar pela embriaguez dos morangos, quer abandonar a realidade, e numa outra espécie de Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

recusa, prefere saudar o suicídio do rapaz de 16 anos, sem repensar a prática perigosa, que vai contra as leis da ordem objetiva e, ao fim e ao cabo, contra a própria vida. A turma de Johnny é uma geração sem rumo, semelhante à do filme Kids (Larry Clark, 1995) ou à do mais recente Alpha Dog (Nick Cassavetes, 2006). Apresentam um tipo de mentalidade parecida com a da personagem da música “Clarisse”, do CD póstumo Uma outra estação126, feito a partir das sobras do anterior. Na verdade, os discos foram pensados como um álbum duplo, mas como Renato Russo já estava bastante debilitado pela AIDS, a gravadora vetou o projeto, contrariando a vontade manifesta do cantor127, e se desentendendo também com os integrantes da banda, devido às diferenças de visões acerca do conceito desse trabalho — provavelmente, a gravadora o percebia como mais rentável se desmembrado, uma vez que, após a morte do artista, ambos venderiam o dobro. Vítima de dependência química, Clarisse vive se cortando no banheiro, tentando, através da automutilação, desviar a dor do vazio e da realidade injusta e violenta que a cerca. Ela tem apenas 14 anos, mas já está enfren- tando sozinha sua depressão. Embora seja a história de muitas meninas de rua e/ou vítimas de uma entrada sem volta no mundo das drogas, em muitos momentos a voz do narrador e a de Clarisse se fundem num só grito de desespero e busca de sentido para a vida. Essa fusão ocor- re não apenas pela contundência do canto de RR, mas também pela remissão a um aconteci- mento biográfico, de 1984, quando ele cortou de fato os pulsos e foi hospitalizado128. Tal in- corporação inclusive fez o guitarrista da Legião comentar em entrevista à MTV — quando lhe perguntam se ele, como pai, não temia a devastação que as drogas são capazes de fazer na vida de um adolescente, conforme é abordada em “Clarisse” — que ele não se preocupava com a presença das drogas na vida dos seus dois filhos, pois nisso ele poderia intervir, aconse- lhar, orientar; o que mais lhe chamava a atenção na letra era a relação direta Clarisse-Renato, pois essa já não poderia ser modificada. “Dezesseis”, “Clarisse” e “La Maison Dieu” (essa também do CD Uma outra esta- ção) assumem a atmosfera negativa de perda de possibilidade de criar saídas para o desespero, adicionando ainda o fantasma da tortura e da repressão militar de 1964 ao pessimismo e des- crença no futuro. Em “La Maison Dieu”, o sujeito se duplica e encarna a figura da morte, que vem visitar a ele mesmo, remexendo num passado de sangue e terror:

[...] Eu sou a pátria que lhe esqueceu O carrasco que lhe torturou

126 Cf. Uma outra estação. Op. Cit. 127 Cf. Renato RUSSO. Entrevista concedida a Marcelo FRÓES e Marcos PETRILLO. International Magazine, ano VI, nº 28, p.2-6, 1996. 128 Cf. Arthur DAPIEVE. Renato Russo: o trovador solitário, 2001, p. 61-62. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

O general que lhe arrancou os olhos O sangue inocente De todos os desaparecidos Os choque elétrico e os gritos – Parem, por favor, isto dói. Eu sou a tua morte E vim lhe visitar como amigo. Devemos flertar com o perigo Seguir nossos instintos primitivos Quem sabe não serão estes Nossos últimos momentos divertidos? [...] (faixa 4)

O tema da tortura no período da ditadura militar, nunca antes abordado diretamente pelo cantor, agora adquire espaço em sua produção, ressaltado por um tom apocalíptico e a- margo, que remete ao advento da AIDS. O desejo de autodestruição lembra ao País que não devemos “perdoar” nem “esquecer” o passado. O desprezo pelo golpe aparece nos xingamen- tos a seus generais e seu exército, que deveriam ser punidos, conforme grita o verso: “eu não anistiei ninguém”. Entretanto, nota-se que a vontade é de repassar uma história aparentada, uma outra história de terror, destruição, dor e desespero, que, embora com nome e cheiro dife- rentes, continuava entre nós, naquele momento, “só mudou de nome e de uniforme”. O mais inquietante é a condição de voz-que-ameaça-se-desmontar-no-próximo-minuto, que sequer parece suportar esse entrelaçamento entre história oficial da nação e destino individual. Há, no entanto, em ambos os discos, canções mais afeitas à atmosfera de ante-sala da Legião, como “Música de trabalho” e “Leila” (faixas 3 e 11 de ATLD), que investem em a- chados ditos a partir de “um espírito de luta diária”, quando a elaboração das subjetividades está ligada ao trabalho, ao amor, à família, aos amigos e à positivação da (homo)sexualidade, criando espaços individuais para se vencer as dificuldades e seguir em frente, ou em “Comé- dia romântica” (faixa 9 de UOE), cujo diálogo representa uma forma leve de problematização e aproveitamento dos insights acerca da “natureza humana” que, justamente, a conversação com o outro é capaz de proporcionar. São canções contornadas por uma paisagem urbana, onde se aprende a conciliar deveres e prazeres, dores e delícias de ir se automodulando, sendo o que se quer e construindo redes para uma sobrevivência positiva das relações com o País, as certezas, as dúvidas, as identidades e apoio dos afetos. Renato Russo lançou, em vida, dois trabalhos individuais em que se coloca como intérprete e instrumentista: Stonewall in Concert (1994), com canções em inglês, e Equilíbrio Distante (1995), em italiano. O primeiro, além de homenagear o conflito travado entre homossexuais, travestis e policiais, ocorrido na noite de 28 de junho de 1969, no bar Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Stonewall Inn, na Cristopher Street, em Nova Iorque — conhecido mundialmente por ser um marco da luta dos homossexuais pelo respeito e reconhecimento de sua diferença sexual e direitos civis, posteriormente transformado em Dia Mundial do Orgulho Gay —, foi assumido pelo autor como uma compilações das músicas preferidas dele e de seu namorado Scott. São pequenas histórias contadas por outros narradores, que se ligam à trajetória do casal por afinidade e por servirem de trilha para esse amor. O segundo é a volta de RR às suas origens de filho de imigrantes italianos, que trouxeram para o Brasil seus sonhos, suas culturas, suas intervenções. De maneira singela, o encarte de Equilíbrio Distante traz um desenho infantil do filho do cantor (na época com apenas 6 anos de idade) fundindo símbolos nacionais e estrangeiros — como o Maracanã, o Pão de açúcar, o Coliseu etc. — num fundo amarelo que lembra uma das cores de bandeira brasileira. O músico se assume como intérprete tanto de sua história homoerótica quanto da fa- miliar, festejando a primeira de acordo com uma orientação política e militante — lembremos que 50% dos direitos de Stonewall foram doados à campanha do antropólogo Herbert de Sou- za, o Betinho, em prol da erradicação da fome, e outros 25% à causa gay, mediada pelo Grupo Arco-Íris, do Rio de Janeiro; e a segunda, em concordância com a estabilidade afetiva, emo- cional, porém, distante, que a formação familiar lhe proporcionou. Essa segunda articulação é tão simbólica quanto a escolha do desenho de seu próprio filho para a capa do álbum, num sinal de otimismo do artista, de aposta nessa permuta entre subjetividades diferentes, afinal, o filho é o sujeito hetero, que gosta de futebol, que está crescendo no país onde seus avós esco- lheram viver, e que, principalmente, pode catalisar, numa superfície sua, num traço singular, esse equilíbrio distante do pai, como num passe de bola entre jogadores a caminho de uma possível finalização. Os encartes de ambos os discos trazem listas de ONGs e instituições de apoio a minorias, o que evidencia a vontade de não deixar morrer uma consciência de cidadania, do respeito pelo outro, desenvolvida ao longo da carreira do músico — em A tempestade ou o livros dos dias e em Uma outra estação também há listas desse tipo no final dos encartes. Tais listas remetem a um investimento na ação individual e coletiva, lembrando também, indiretamente, o controle da epidemia e melhoria da qualidade de vida das vítimas da AIDS, que começavam a acontecer em meados dos anos 90, mas que não chegaram a beneficiar o músico. Há também uma epígrafe de Oswald de Andrade, escolhida para abrir o álbum ATLD, que define o Brasil como “uma república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus”. A incorporação oswaldiana aponta tanto para a história individual e breve do próprio músico, que logo depois faleceria, quanto para os destinos trágicos dos personagens de suas músicas Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

— João de Santo Cristo, Natália, João Roberto, Clarisse, Andrea Doria. Além disso, a escolha da epígrafe representa o desejo de refletir sobre a cena na qual o músico estava inserido, numa hibridização do presente com toda uma tradição de cortes, epidemias e perdas que já fazem parte tanto da macro quanto das microhistórias brasileiras. No entanto, em vez do gesto crítico que, como em CFA, nos tomaria pela mão, desfazendo as fronteiras entre teoria, biografia e construção poética, instaurando uma superfície reflexiva onde podem ser moduladas a história íntima, a posição ético-política e a poesia, Renato Russo prefere o distanciamento de dizer através de recortes da fala “do outro” o quanto doloroso era viver aquele acontecimento cultural.

Ao chegar ao fim desse exercício de aproximação entre CFA e RR, assumido muito mais enquanto desejo pessoal de quem escreve do que como evidência ou verdade que se des- cobre, percebo que certos pontos distantes (quiçá incoerentes e opostos do que se teceu) não precisam, necessariamente, ser mascarados, a fim de permitir a acomodação das múltiplas subjetividades. A palavra “geração”, que por si só aponta para abstrações e panoramas, tam- bém permite essa perambulação por vezes contraditória que opta pelas superfícies reflexivas dos discursos, objetivando tirar deles os pontos de ligação filtrados pelas singularidades dos sujeitos que se posicionaram diante dos acontecimentos socioculturais. Vimos que as experiências históricas se inscrevem a partir não só de diferenças pes- soais, mas de maneiras distintas de elaboração da arte de viver. Se Caio Fernando Abreu bus- ca uma modulação da consciência em comum acerca da AIDS e seus desdobramentos socio- culturais, Renato Russo opta por trilhar um caminho que ora se distancia da própria trajetória — buscando falar indiretamente da epidemia a partir de episódios passados e alheios — ora funde o advento da AIDS à presença cada vez mais real da morte em sua vida. Todavia, nem um nem outro registra a sigla em suas produções, preferindo operar com remissões, compara- ções, elipses, dêiticos. A ausência do nome da doença faz com que as narrativas e abordagens das experiências de soropositivos sejam plurais, diversas, e, como elaborações subjetivas, ultrapassem estruturações descritivas, militantes, reducionistas ou expositivas. Assim, essas subjetividades podem deslizar para o coletivo, emaranhando-se de forma fluida, cambiante, sem deixarem de se inserir num contexto histórico-político-social em que a AIDS foi advento e, ao mesmo tempo, matéria dolorosa, que modulou uma crise não apenas sobre saúde, mas, Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

sobretudo, sobre avanços e recuos dessa liberdade individual, tão cara à história das mentalidades de ambas as gerações aqui analisadas.

IMPROVISAÇÕES FINAIS OU DE COMO CANTAR NAS PRÓXIMAS CRISES

E aqui estou, cantando.

Um poeta é sempre irmão do vento e da água: deixa seu ritmo por onde passa.

Venho de longe e vou para longe: Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes andaram.

Também procurei no céu a indicação de uma trajetória, mas houve sempre muitas nuvens. E suicidaram-se os operários de Babel.

Pois aqui estou, cantando.

Se eu nem sei onde estou, como posso esperar que algum ouvido me escute?

Ah! Se eu nem sei quem sou, como posso esperar que venha alguém gostar de mim?

Cecília Meireles, Discurso omecei este trabalho propondo estabelecer relações possíveis e móveis entre C pessoalidade, teoria e afetos escolhidos. Busquei aliar a vontade de trabalhar com o mito do amor nos textos de Caio Fernando Abreu e Renato Russo à paixão pela linguagem poética, assim como a uma percepção inicial de que os modos de articulação das representações amorosas desses dois artistas contemporâneos constituíam uma intervenção que não abolia a leveza e a multiplicidade vertiginosa das vivências afetivas. Sem negar os espaços de instabilidade que se colocam entre empreendimentos íntimos, necessidade de cortes e orientações teóricas, quis trazer para a carnadura da linguagem a espontaneidade com que li/ouvi, pela primeira vez, esses dois autores. Num jogo de perdas e encontros com conceitos e saberes, embaralhei, às vezes por descompasso, às vezes propositadamente, pedaços de contos, letras de músicas, depoimentos, discursos, declarações, poses, relatos, questões históricas e culturais, trechos de filmes, teorias, ensaios a este-sempre-tão-outro mas que-se-sabe-tão-velho deslizar do amor. Sem querer mascarar minha inquietação (de mulher-escritora-nordestina-um- tantinho-assim-branca-e-atualmente-casada-com-um-homem) que se deixava encantar não apenas pelos jogos infinitos da linguagem, mas também pela constante abertura das representações amorosas desses dois autores, tensionei um pouco meu próprio olhar crítico para dar conta de um dos principais problemas encontrados entre o prazer de ler/produzir literatura e o de pensar sobre o lido/escrito: a ameaça de perder aquela espontaneidade inaugural que envolve os primeiros passos junto à poesia dos objetos. Fantasma a neurotizar cada palavra jogada na tela do computador ou anotada, às pressas, no bloco de notas, o medo de perder a espontaneidade desconcerta, envelhece, e, pior, infantiliza. E quando digo medo Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

de perder a espontaneidade não estava me referindo, como creio ter esclarecido, ao retorno de um olhar impressionista, que dicotomizaria rigor e paixão. Mais que isso, referia-me ao que Massimo Canevacci, chamou de “espontaneidade metodológica polifônica [...] minha metodologia é o gozo da diferença” (2005, p.8). Tal operador serviu o tempo todo como uma das condições dessa escrita minha-deles, quiçá, de outros. O agenciamento de Canevacci foi um valor importante inscrito no “convite mudo” deste trabalho. Com ele, procurei não estabelecer tipologias e taxonomias de rótulos que tornassem planos os objetos, como em enquadramentos monológicos. Ao contrário disso, segui os movimentos dessa espontaneidade metodológica polifônica, os elementos sensoriais e cognitivos que foram montando o quebra-cabeça de uma perspectiva na qual pudesse caber tanto o sociocultural quanto o poético-afetivo. É esse quebra-cabeça das minhas impressões de leitora, dos meus encantamentos, não apenas os primeiros, mas os seguintes, os últimos e os que podem vir amanhã em alguma releitura, que eu tencionei montar aqui. Li as narrativas, os saberes, as músicas, as emoções, os discursos, as imagens, não como um corpus de pesquisa, mas como aquilo que restam líquidos e animam os fragmentos de paixões, os atritos e as percepções teóricas que se cruzam e se afastam. Sei que tomei, inclusive, certas liberdades não cabíveis num formato acadêmico: a introdução, por exemplo, foi esgarçada para funcionar como um improviso inicial — aqueles primeiros passos esboçados ainda quando estamos na coxia. O método, então, foi o de acentuação fluida daquilo que mais capturava a atenção na superfície reflexiva dos objetos, a fim de tomá-los naquilo que são mais potentes: a sua singularidade. Comparações, incorporações, deslocamentos, conexões, esboços de sínteses, e mesmo eleições não serviram, aqui, para acomodar as diferenças, diluindo-as. Todas as vezes que comparei, sintetizei e estabeleci conexões, tive consciência — e procurei expressá-la na borda da escrita — do quanto tal procedimento poderia ameaçar o impacto das imagens e palavras, o impacto desse caos de ramificações e cortes que a poesia propõe. Contudo, em meio a essa recusa fascinante de qualquer expediente mais rigoroso — digo, que possa ordenar uma pesquisa acerca de um objeto —, aprendi a lidar também com a desconfiança: não será, afinal, todo esse jogo de palavras uma desculpa para a incompetência do crítico-estudioso-leitor em organizar um raciocínio teórico construtivo? Recoloco essas questões não apenas porque as considero fundamental em todo o trabalho, mas porque elas modificam o nosso atrito com a eterna busca de uma inserção possível. Desde as primeiras inscrições na área de Letras, a escolha hedonista dos objetos precisou ser relativizada por um exercício de viabilização objetiva dos trabalhos acadêmicos. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Foi assim desde as primeiras pesquisas feitas na graduação, financiadas pelo PIBIC, depois nas de Aperfeiçoamento do CNPq, até chegar aos cursos de mestrado e de doutorado. Guiar- me inicialmente pelo prazer da leitura não implicou, em nenhum momento, a gratuidade do caos, mas tão somente o reconhecer que as paixões cognitivas nos levam mais adiante quando nos dispomos a acompanhar seu desejo pessoal e infinito de liberdade. Ou, pelo menos, não nos levam apenas onde, antecipadamente, já queríamos chegar com nossas ambições pragmáticas. Houve, em todo o processo, um método de leitura, comparação, exercício imaginativo, conferência e articulações do encantamento com as formas de intervenções do plano objetivo da linguagem e da teoria, aquele que nos indica, irredutível, quando a reunião dos elementos simbólicos mais significativos — quero dizer, sedutores — não consegue extrair um desenho ou fio produtivo. Nesses momentos, sobretudo para não se perder na multiplicidade radical da linguagem poética e restar como poeira inapreensível, pedi auxílio de pensadores aparentados com a liberdade dos objetos, tais como Foucault, e, por extensão, Pesavento e Pál Perbart, que forneceram os conceitos de microhistórias, microformas, dispositivos e formas de vida, bastante explorados nas leituras contemporâneas; Deleuze e Guatarri, que possibilitaram a prática desta escrita deslizante; e Rougemont, Bauman e Giddens, que indicaram as pistas de entradas e saídas no emaranhado das representações amorosas. Além dessas companhias para os momentos-âncora da tese, foi necessário, por vezes, contextualizações socioculturais para tornar visíveis tanto as diferenças quanto as aproximações entre a geração de Caio Fernando Abreu e a de Renato Russo, que usam as problematizações do amor, entre pessoas do mesmo sexo e com o sexo oposto, a fim de elaborar metáforas-guia para a singularização de seus modos de ler e viver os afetos. Algumas questões importantes, mas que foram aqui postas muito mais no plano da lateralidade do que no centro, foram a tendência à melancolia e o microdiálogo com o trovadorismo percebidos nas performances e nos discursos de Renato Russo, bem como sua incorporação de elementos da cena punk inglesa. Isso ocorreu devido à supremacia de uma concepção pessoal de que, embora importantes — e exatamente por isso sempre mencionados — o demorar-se-um-pouco-mais nessas zonas movediças levariam à perda de espaço para a exploração das representações amorosas, que foram assumidas aqui como tema e fio condutor de todo o debate, e não apenas pretexto para outras discussões. Com esse mesmo cuidado, descartei reflexões diretamente ligadas a construções éticas, a posicionamentos políticos, a problematizações da identidade gay, a levantamento de questões homoeróticas e incorporações da teoria Queer, usando os referenciais trazidos pelos elementos poéticos e, por Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

vezes, pelos discursos dos dois autores analisados apenas para pontuar a complexidade dessas relações. Ao pensar na inserção de Renato Russo numa tese que, inicialmente, tinha como objeto de pesquisa os textos literários de Caio Fernando Abreu, ampliei a compreensão do panorama geracional brasileiro dos anos 1980 e 90 — no qual ambos se inserem — para incorporar a multiplicidade das práticas políticas e sociais da cultura rock, trazendo à pauta também as particularidades da visão e da forma de elaborações subjetivas do músico. Para dialogar no mesmo plano com a pluralidade das produções desses autores, abri janelas para instantes de conversações espontâneas entre Caio Fernando Abreu e Ana Cristina Cesar, Renato Russo e Morrissey. Os elementos significativos cunhados nessas biofalas foram, além das concepções móveis do amor, a compreensão de uma pertinência e produtividade ainda possíveis de serem exploradas nessas pequenas histórias que, assim, redimensionam melhor as fronteiras entre vida, olhar crítico e corporalidade da escrita. Esses desenhos polimorfos, proporcionados pelos diversos usos das experiências amorosas como um lugar de criação de saberes, instalaram a multiformidade de outros temas também importantes, como o papel do produtor de linguagens na modulação da cena contemporânea, na qual certos adventos culturais, como o da AIDS, ontem tão catalisantes, hoje pairam apenas como fantasmas de uma época regida por inquietações e valores outros. (Ao pensar nesse período contraditório, em que o impacto AIDS impôs um fechamento a uma época que seria o “desdobramento natural” das aberturas — política, sexual, cultural — das duas décadas anteriores, não pude deixar de pensar, ainda que brevemente, no papel ativo que Cazuza exerceu nessas modulações da cena contemporânea, uma vez que ele representa a materialização desse paradoxo que foi a década de 80, promessa de pós-desbunde e retorno a discursos e posturas moralizantes/punitivos, que pensávamos para sempre sepultados pela guitarra de Jimmy Hendrix, pela poesia de Bob Dylan, pela dança dionisíaca de Jim Morrison, pela força da voz de Janis Joplin). Também me orientaram, indiretamente, nas discussões acerca das representações amorosas contemporâneas, certos fios propostos por Giddens, e retomados por Marlise Matos, que não estiveram no centro deste trabalho, ou seja, não foram aprofundados diretamente, mas apenas mencionados ora ali ora aqui. Isso ocorreu devido à impossibilidade de estabelecer reflexões objetivas sobre esses fios, uma vez que as pistas de seu explorar poético não foram percebidas por mim nos desenhos propostos por Caio Fernando Abreu ou por Renato Russo. Atualmente, discutem-se as três configurações de amor analisadas por Giddens em sua História da intimidade: o amor confluente, a sexualidade plástica e o relacionamento puro. A Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

idéia de amor confluente está relacionada a uma concepção de relacionamento igual; trata-se de uma espécie de tradução contemporânea do amor-philia, desenvolvida pelas incorporações dos ideais de igualdade das sociedades modernas. O amor confluente se move, sobretudo, pela convergência de projetos em comum, igualdade de direitos entre os parceiros e ausência de projeções e fantasias. Segundo Giddens, é uma parceria que inseriu nas relações conjugais a ars erótica, através de uma vivência de reciprocidade que funciona como o principal operador dessa prática. Essa face do amor pode ser vista em parcerias não-monogâmicas e não se inscreve somente no plano das relações heterossexuais. Já a sexualidade plástica é um desenvolvimento direto das práticas de controle de reprodução. A partir do abandono do modelo de família burguesa pai-mãe-filho, ocorre uma descentralização da vivência sexual dos parceiros, que ficam mais livres para experimentarem o prazer mútuo sem orientações e/ou preocupações com a reprodução e planejamento familiar. A vivência plena da sexualidade plástica influencia o surgimento do relacionamento puro, que por sua vez, se ergue a partir do cultivo de valores como intimidade, respeito e confiança entre os amantes. Para o autor, esse desenho amoroso se difere daquele fornecido pelo casamento por não naturalizar a conjugalidade e não investir numa promessa de amor eterno — o que não implica dizer que no interior do relacionamento puro não possa haver uma aposta dos parceiros na durabilidade do empreendimento a dois. O elemento fundamental desse tipo de relacionamento é a satisfação dos partners, com uma espécie de modulação objetiva do amor romântico. Embora fragmentos dessas formas de amor tenham sido percebidos e analisados a partir das expectativas de correspondência e desejo de encontrar o par perfeito, presentes tanto em certas letras de Renato Russo quanto em alguns textos de Caio Fernando Abreu, compreendi que os autores não estavam interessados em discutir diretamente esses vínculos emocionais. Os desenhos do amor aqui analisados evitam, quase sempre, abordar o casamento, a questão da emancipação feminina e mesmo as novas configurações de parcerias homoeróticas — estudadas, por exemplo, por Marlise Matos. CFA e RR optam pela hibridização desses aspectos contemporâneos com os desenhos ou resíduos do amor-paixão, cuja abordagem é muito mais problematizada e pluralizada em suas elaborações. Essas tendências romântico-tardias de ambos foram lidas como um investimento pessoal num dispositivo histórico-político-cultural que permite uma complexificação maior das subjetividades. Assim, a idéia de intimidade nesses dois artistas se coloca no plano da individualidade, da performance e da criação de uma escrita poética e possível, afastando-se das análises giddeanas, que vêem na questão da intimidade uma sociabilização do pessoal. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Posso afirmar, então, que a busca do grande amor e as representações das experiências amorosas foram lidas ao longo de toda a tese como um mito possível de ser modulado. E isso se materializou a partir de uma articulação entre os funcionamentos do amor nos textos poéticos e nos discursos dos autores escolhidos e a produtividade das definições cunhadas em Mircea Eliade, Rougemont e Ian Watt. Dessa forma, o termo mito foi usado tanto para os arquétipos engendrados pelas narrativas quanto para as construções móveis propostas pelo conjunto dos textos trabalhados, uma vez que os desenhos resultantes da exploração poética de CFA e RR podem funcionar como respostas às questões não- pragmáticas do ser humano. Nesse sentido, creio ter confirmado a hipótese de que tanto CFA quanto RR investem nas representações amorosas como um lugar de estetização do efeito de verdade construído pelo fluxo cambiante do mito. A articulação dessas modulações com a produção de linguagens poéticas é o que torna seus textos sensoriais, híbridos e polimórficos. Quando finalizei o exercício de aproximação e afastamento entre as particularidades de CFA e de RR, percebi que entre o desejo pessoal e isto que se produziu e se chama dança, havia uma espécie de conquista: no espaço intervalar das abstrações, dos funcionamentos de conceitos, dos fechamentos de foco e dos panoramas, resta uma perambulação pelas superfícies reflexivas dos discursos. Esta perambulação se liquefaz pegando emprestados dos próprios objetos seus mais significativos pontos de ligação entre os desdobramentos socioculturais, as trajetórias pessoais e isto tudo que, subjetivamente, derivou-se e desliza, é emaranhado e é fluxo, é infinitamente pessoal mas pode arriscar-se a convites coletivos. Quando a velha crise reaparecer, feito plâncton, estrela cadente ou caco de vidro, talvez eu possa novamente ajustá-la ao ritmo dos passos que, aqui, foram ensaiados, não mais procurando no seu interior, resplandecente e vazio, a indicação das novas trajetórias, mas me deixando conduzir pelas mobilidades dos novos espaços de onde, espero, estar cantando.

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CAPA:

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