juLho 2015 48 www.candido.bpp.pr.gov.br candidojornal da biblioteca pública do paraná Cesar Marchesini A correspondência entre autores ganha Intimidade cada vez mais importância dentro dos estudos literários e ajuda a entender obras compartilhada e o período em que foram escritas

CARTAS INÉDITAS DE WILSON BUENO A JOÃO ANTÔNIO

Artigo | Roberto Prado • Entrevista | Toninho Vaz • Poema | Fabrício Carpinejar 2 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná editorial

liberação, determinada pela Con- cartum Cesar Marchesini expediente troladoria Geral da União (CGU), de uma carta enviada pelo escri- A tor Mário de Andrade, no dia 7 candido de abril de 1928, ao poeta Manuel Ban- Cândido é uma publicação mensal deira dominou a pauta cultural brasilei- da Biblioteca Pública do Paraná ra nos últimos dias. Bem mais do que o aparente “bafo” da correspondência, “tão falada (pelos outros) homossexualidade” do autor de Macunaíma, o fato aponta para outra questão, mais complexa e pro- funda: a correspondência entre escritores Governador do Estado do Paraná: Beto Richa tem relevância para os estudos literários. Secretário de Estado da Cultura: Paulino Viapiana Para entender o assunto, a repor- Diretor da Biblioteca Pública do Paraná: Rogério Pereira tagem do Cândido consultou especia- Presidente da Associação dos Amigos da BPP: Marta Sienna listas, entre os quais Marcos Antonio de Moraes, da Universidade de São Pau- Coordenação Editorial: lo (USP), Pedro Theobald, da Pontifícia Rogério Pereira e Luiz Rebinski Universidade Católica do (PUCRS), Alvaro Santos Simões Junior, da Universidade Estadual Paulis- Redação: ta (Unesp), e Diana Junkes Bueno Mar- Marcio Renato dos Santos e Omar Godoy tha, da Universidade Federal de São Car- los (UFSCar). Estagiários: A professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Ligia Kaype Abreu, Lucas de Lavor e Thiago Lavado Fonseca Ferreira assina um ensaio iné- dito sobre a trajetória de Luiz Gama, Coordenação de Desenho Gráfico | CDG | SEEC intelectual brasileiro negro, a partir da troca de cartas do autor com outros in- Rita Solieri Brandt | coordenação terlocutores. Para completar o especial, Bianca Franco, Marília Costa, Marluce Reque Cândido publica cartas que o escritor e Raquel Dzierva | diagramação Wilson Bueno enviou ao amigo João Antônio — conteúdo inédito. A edição de julho traz ensaio do po- Colaboradores desta edição: eta, letrista Roberto Prado sobre o percurso André Rodrigues, Ariádiny Rinaldi, Cesar Marchesini, Fabrício do seu irmão, o também poeta Marcos Pra- Carpinejar, Isabel Furini, Jair Ferreira dos Santos, Lígia Fonseca do — além de poemas inéditos do artista Ferreira, Marcelo Backes, Marcos Prado, Marília Costa, Marluce que saiu de cena há quase duas décadas. Reque, Roberto Prado e Wilson Bueno. Após o Supremo Tribunal Fede- ral (STF) liberar a publicação de biogra- fias não autorizadas,C ândido entrevista Redação: Toninho Vaz, autor, entre outros títu- [email protected] | (41) 3221-4974 los, de O bandido que sabia latim, biogra- fia de Paulo Leminski há algum tempo fora de circulação por desentendimento Biblioteca Pública do Paraná do autor com as herdeiras do poeta. Rua Cândido Lopes, 133. CEP: 80020-901 | Curitiba | PR. O ex-guitarrista da Legião Urba- Horário de funcionamento: na Dado Villa-Lobos é o personagem Segunda à sexta, das 8h30 às 20h. da série Perfil do Leitor e, entre os iné- Sábados, das 8h30 às 13h. ditos, poemas de Fabrício Carpinejar e Marcelo Backes e o fragmento de um romance de Jair Ferreira dos Santos. Todos os textos são de responsabilidade exclusiva Boa leitura. do autor e não expressam a opinião do jornal.

3 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido curtas da bpp

Sossélla inédito A editora Arte & Letra lança em excêntrica entre livros, papéis e pen- agosto Nova Holanda, novela inédi- samentos em sua biblioteca particular, ta do escritor Sérgio Rubens Sossélla. com aproximadamente 15 mil livros ca- Juiz de Direito, depois da aposenta- talogados. O autor morreu em 2003, em doria Sossélla dedicou-se exclusiva- Paranavaí. Deixou mais de 400 obras mente à literatura, vivendo de maneira publicadas e vários livros inéditos.

Cléo e a Fofa A escritora Cléo Busatto aca- peso e de opinião forte. Ela muda ba de lançar seu primeiro livro ju- de escola e passa a sofrer persegui- venil. A fofa do terceiro andar sai ções por parte dos colegas. É quan- pelo selo Galera Júnior, da Edito- do conhece um menino que não se ra Record. A história gira em tor- importa com padrões de beleza e que no de Ana, uma menina acima do vê o mundo de uma outra maneira.

Arte japonesa no MON O Museu Oscar Niemeyer (MON) imagens de guerreiros, gueixas e atores apresenta, até 2 de agosto, a exposição teatrais. A mostra faz parte dos eventos “Ukiyo-e, obras primas de Hokusai e Hi- comemorativos aos 120 anos do Tratado roshige — Coleção Museu de Arte Fuji de de Amizade, Comércio e Navegação as- Tóquio”, com 70 obras japonesas que reve- sinado entre Brasil e Japão no dia 5 de lam paisagens, flagrantes do cotidiano, novembro de 1895.

Teatro para crianças Estão abertas as inscrições para o às 17h, no auditório Paul Garfunkel da curso de teatro infantil da Biblioteca Pú- BPP. O curso será ministrado pela pro- blica do Paraná. O objetivo é ensinar às fessora de teatro e atriz Rana Moscheta. crianças noções básicas de improvisação e Ao fim de cada semestre, o grupo encena expressão corporal. Meninos e meninas de uma peça, que será apresentada na BPP. 7 a 10 anos podem se inscrever. As aulas Os interessados devem procurar a Seção acontecem todas as sextas-feiras, das 14h Infantil no telefone 3221-4980. 4 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

ENTREVISTA| TONINHO VAZ Livre para publicar Autor de livros sobre Paulo Leminski, Torquato Neto, Luiz Severiano Ribeiro e Santa Edwiges, o jornalista fala de sua trajetória e comenta a liberação das biografias não autorizadas no país

Omar Godoy

Divulgação

Autor das biografias de Torquato Neto e Paulo Leminski, Toninho Vaz atualmente trabalha em um livro sobre o músico Zé Rodrix, morto em 2009. 5 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

entrevista aconteceu no calor do Os ministros do STF acabaram as informações incluídas exploram momento, logo após o Supremo de decidir pela liberação de biografias “fatos trágicos” e “não contribuem sem autorização prévia. Como você para elucidar a personalidade e a obra Tribunal Federal derrubar a avalia todo o processo de discussão do do biografado”. Este é o único motivo exigência de autorização prévia tema, que culminou com o julgamento ou há outros? desta semana? Quem ganhou e quem O trecho de oito linhas foi usado para a publicação de biografias perdeu com isso, no fim das contas? apenas como pretexto por elas, pois não noA Brasil (único país democrático do A exigência de autorização para as existe nada de errado nele. Elas nunca biografias é parte da nossa história das me pediram para retirar as oito linhas, mundo em que esse tipo de censura trevas, das poucas liberdades e da taca- por exemplo. E sendo sobre o suicídio ainda existia). Como era de se esperar, nhez cultural. O nome certo é censura. do irmão dele, é curioso que a família Toninho Vaz estava satisfeitíssimo, pois A nossa Constituição deve ser respeitada de Pedro Leminski, com a qual sem- — e os biógrafos venais, mentirosos, pu- pre tive um bom relacionamento, nun- viu seu livro sobre Paulo Leminski ser nidos. O que aconteceu no STF foi o res- ca tenha me hostilizado. A rigor, o li- liberado automaticamente pela Justiça. gate de um equívoco judicial em forma vro censurado tinha o mesmo conteúdo de Código Civil. A sociedade ganhou, das três edições anteriores. Como jus- Em 2013, as herdeiras do poeta vetaram ganharam os libertários. Perderam os re- tificar a censura, então? Quando elas a reedição de O bandido que sabia latim acionários, aqueles que apostam nas tre- alegam que deveriam receber dinheiro vas, no silêncio. Como disse a Ministra para permitir a publicação, acredito que alegando “violação à intimidade e honra” Cármen Lúcia: “Cala a boca já morreu”. estão mais próximas do real motivo que do biografado e de sua família. A obra as levaram a tomar uma atitude idêntica foi lançada originalmente em 2001, com Você acredita que agora have- a de María Kodama, a viúva de Borges, rá um boom de biografias no mercado que depois da morte do poeta “sentou” o consentimento da viúva e das filhas de editorial brasileiro? em cima de sua obra e não permite nem Leminski, mas a inclusão de um trecho Não tenho certeza disso, mas cer- homenagens se não houver dim-dim. tamente vai ficar mais fácil pesquisar Elas pensam como o Djavan, que bio- sobre o suicídio do irmão do poeta e publicar obras biográficas. Parte da grafia gera muito dinheiro. É a tacanhez azedou a relação entre as duas partes. ameaça foi afastada, mas as armadilhas cultural. Mesmo com a decisão do STF, estão sempre por aí. pretendo manter na justiça uma ação O papo, no entanto, não ficou limitado por perdas e danos que já está correndo. ao tema espinhoso. Jornalista com mais Como fica a situação da sua bio- de 40 anos de carreira e passagens por grafia do Paulo Leminski (cuja reedi- Você leu Passeando por Paulo Le- ção não foi autorizada pela família do minski, livro de memórias do Domingos vários veículos importantes do país, poeta) após a decisão do STF? Pellegrini? O que achou? o curitibano também falou sobre sua Em princípio o livro está livre para Li e não gostei. As memórias do ser editado, mas já fui avisado que as Pellegrini referem-se, sobretudo, a um trajetória, o futuro da profissão e as herdeiras do Leminski vão tentar im- Leminski em decadência, já depaupe- outras biografias que produziu (Torquato pedir o uso de poemas, qualquer poema rado física e mentalmente, abatido pela dele, alegando direitos autorais. Já que doença. Muito diferente do Leminski Neto, Santa Edwiges, Darcy Ribeiro, não podem mais censurar, elas agora que eu conheci em 1970, no auge da Luiz Severiano Ribeiro), entre outros prometem apelar para a mesquinharia forma física (era judoca) e intelectual, assuntos. Antes do fechamento da intelectual. É lamentável que façam isso então com 25 anos, e com quem con- em nome de um poeta libertário. vivi até o fim. Nada contra o direito do edição, ele ainda revelou uma novidade: Pellegrini de escrever e publicar o livro, começou a negociar, com uma “grande A família do Leminski alega que o cuja batalha tem muitos méritos, mas veto tem relação com um trecho acres- guarda uma visão limitada do persona- produtora brasileira”, os direitos de O centado à obra, sobre o suicídio do ir- gem, deixando a impressão de que o po- Bandido... para o cinema. mão do poeta. Segundo as herdeiras, eta foi “apenas” aquilo. Veja: a censura 6 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

ENTREVISTA| TONINHO VAZ aos nossos livros aconteceu no mesmo e o convite partisse de fonte qualificada Sim, com relação aos poetas. Mas eu sozinho, apenas com uma advogada para momento, mas ele foi o primeiro a saber pela estima, eu aceitaria. escrevi também a biografia parlamentar questões jurídicas, nada consegui. Mas e imediatamente saiu em defesa das nos- do Darcy Ribeiro, senador; sobre o ho- ainda acho um absurdo a falta de infor- sas posições. Mas o Pellegrini, que morava Existem outras personalidades pa- mem de cinema Luiz Severiano Ribeiro, mação sobre o genial maestro. A biografia em Londrina, não engana o leitor e nem ranaenses que você gostaria de biografar? um cearense, e Edwiges, a santa libertá- que existe, do professor Vasco Mariz, com promete outra coisa além da sua convivên- Nenhuma, particularmente. Anos ria. Além da história do Solar da Fossa, todo o respeito, foi escrita em 1959 e igno- cia com Leminski, que morava em Curiti- atrás, tentei fazer em parceria com a fenômeno carioca que também é reple- ra a vivência dele em outras cidades. ba. Tudo certo. Vale a pena lembrar, então, jornalista Miriam Karam, de Curitiba, to de outsiders. Estas escolhas refletem o que o livro de cartas trocadas entre Regis uma abordagem de personagens e histó- status da minha geração, da contracultu- Por que você saiu da editora Record? Bonvicino e Leminski, Envie meu dicioná- rias do folclore da cidade, suas lendas e ra, eu sou filho da contracultura. Porque a editora se comportou mal rio: cartas e alguma crítica, também estava mitos, através de um edital da Fundação comigo. Romperam uma cláusula im- sob censura e agora foi liberado. Cultural de Curitiba, mas não fomos Como você encara a tarefa de pro- portante de um contrato e ainda que- classificados. O escritor Wilson Bueno é duzir uma biografia por encomenda? riam dizer que o errado era eu. Mas a Há quem diga que você planeja es- outro bom personagem, por isso mesmo O processo é diferente? justiça definiu a questão e a editora teve crever uma biografia de Dalton Trevisan. já tem alguém pesquisando a vida dele. Sim, é diferente. Eu escrevi a bio- que me indenizar. Desde então, passei Essa informação tem algum fundamento? grafia de Edwiges a convite da editora a ser tratado como inimigo mortal da Nunca pensei nisso. Acredito que pes- Você acredita que os seus biogra- Objetiva, que estava lançando uma cole- Record, que através do Sindicato dos soas mais próximas do Dalton e de suas his- fados têm uma característica em co- ção sobre santos. Já haviam sido editados Editores de Livros, presidido por uma tórias estejam mais qualificadas. Mas é um mum? Alguns deles são outsiders, mal- São Francisco e Santa Teresa e me deixa- representante da família, me afasta dos grande personagem. Se me convidassem, ditos, contraculturais. ram escolher a santa. Inicialmente, ten- eventos produzidos por eles, como as tei escrever sobre São Jorge, o santo dos bienais e a Flip, de Paraty. Mas eu não cariocas, mas descobri que a vida dele era na vim para este mundo para me alinhar Arquivo pessoal verdade limitada ao primeiro São Jorge, um com coisas antigas e viciadas. centurião que nasceu na Capadócia e de quem pouco se sabe. Depois dele, todo e Como é, em linhas gerais, o seu qualquer centurião que se recusava a ma- método de trabalho como biógrafo? tar cristãos e era sacrificado por isso pas- A biografia nada mais é do que sou a se chamar São Jorge. Acabei optan- uma reportagem grande, completa, so- do por Edwiges depois de assistir a uma bre um único tema, o personagem. Cla- impressionante missa dominical da igreja ro que tenho liberdade de puxar o texto de Santa Edwiges em São Cristóvão, no para as nuances do romance, nada im- Rio. E percebi o desespero e a aflição das pede. Até hoje, entre centenas de entre- pessoas endividadas com o burgo mestre. vistas feitas para todos os meus livros, Num certo sentido, é a santa nacional. não existe nenhuma que eu não tenha feito pessoalmente, olhando nos olhos Quem é o seu “personagem dos dos entrevistados. Eu reconheço que sei sonhos” como biógrafo? perguntar. Costumo gastar um ano na Durante anos tentei fazer uma bio- pesquisa e outro escrevendo. grafia completa e moderna do maestro Villa-Lobos, abordando sobretudo o tem- Quais os biógrafos, brasileiros e po em que ele viveu em Paris e Nova York, internacionais, que mais influencia- um relato ainda inédito. Na época, comu- ram o seu trabalho nessa área? niquei a minha intenção a Turíbio Santos, O Fernando Morais e o Ruy Cas- então presidente do Instituto Villa-Lobos tro são mestres, mas sempre gostei de (onde se concentram os arquivos do ma- biografias, antes de elas surgirem mo- estro) e fui abençoado por ele. Mas o or- dernas. O trabalho do João Máximo, çamento de R$ 600 mil para a produção com Noel Rosa, é sério. Certa vez, fui determinou que eu deveria procurar a Lei influenciado por um livro específico, a Nos anos 1980, o biógrafo colaborou com o jornal Nicolau, editado pelo escritor Wilson Bueno (à esquerda). Rouanet ou algo parecido. Como trabalho biografia do baixista Jaco Pastorius, do 7 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Arquivo pessoal amiga de Sting, que estivera com ele fotografando na Amazônia. O Bueno gostava muito da entrevista que fiz com Já fui avisado o Paulo Francis, em seu apartamen- “ to na Rua 47, em Manhattan. O títu- que as herdeiras do lo escolhido pelo Bueno: “O senhor das polêmicas!”. O Millôr chegou a citar Leminski vão tentar a entrevista na sua coluna do Jornal do Brasil. Lembro que aproveitei a viagem impedir o uso de e deixei alguns exemplares do Nicolau na New York University, setor de língua poemas, qualquer portuguesa. Sou suspeito, mas conside- ro o Nicolau um dos marcos da cultura poema dele, alegando paranaense moderna. E mais: será que alguém já percebeu a riqueza do nosso direitos autorais” parque gráfico e dos nossos designers?

Mesmo estando fora das reda- ções, como você vê as mudanças radi- Vaz foi amigo próximo do escritor e político Darcy Ribeiro, de quem escreveu a biografia parlamentar. cais que o jornalismo e a profissão de jornalista estão passando nos últimos anos? Acredita que a atividade como grupo Weather Report, escrita pelo jor- risco e lançar o livro sem consultar a vi- do Paraná, também editado pelo Murá. nós a conhecemos está “ameaçada”, nalista nova iorquino Bill Millkoski, li- úva. Assim foi feito. Não houve represá- Sempre caprichei no figurino e conside- como alguns profetizam? gado a revistas de jazz. Nunca foi tradu- lia, mas o livro ficou praticamente iné- ro esta experiência fundamental para Eu acho que o jornalismo já mudou zida para o português. Eu sabia que o dito, pois nunca estava disponível nas minha adaptação nas redações cariocas, sua feição, misturado às outras fontes de Jaco teve um fim trágico, mas não sabia livrarias. A tiragem era mínima e o livro onde cheguei em 1974. informação. Eu costumo dizer que, como o que tinha acontecido com ele. Devorei acabou definhando. A segunda edição, jornalista, venho do linotipo, passei pelo o livro em duas noites. Por coincidência, que saiu pela editora Nossa Cultura, de Em 2014, a Biblioteca Pública do offset e cheguei na web. São formas, não foi a última biografia que eu li antes de Curitiba, e está nas livrarias, foi auto- Paraná lançou uma reedição impressa conteúdo. Como disse recentemente o começar a minha primeira, do Leminski rizada pelo filho do poeta, Thiago Nu- do jornal Nicolau, publicado pela Secre- professor Umberto Eco, “Os imbecis fo- nes, que garantiu liberdade total de ex- taria de Estado da Cultura entre 1987 e ram aceitos e acomodados nas redes so- Qual dos seus livros foi o mais di- pressão. Lançada em 2013, está levando 1996. Sabe-se que você foi um grande ciais, onde ganharam voz e podem emitir fícil de desenvolver? uma vida bastante saudável. divulgador da publicação, mesmo mo- opinião”. Nada mais é sagrado. Mas cui- A biografia deT orquato Neto, cer- rando fora de Curitiba. Fale dessa épo- dado com a informação, quando equivo- tamente. A primeira edição, feita em Como foi sua vivência como jor- ca e da importância do Nicolau. cada ela pode trabalhar contra você. parceria com a editora Record, foi im- nalista nas redações do Paraná? Sim, eu era amigo do editor Wil- pugnada pela viúva do poeta quando es- Comecei escrevendo sobre cine- son Bueno. Nessa época eu morava no Quais são seus próximos projetos? tava para ir para as máquinas. Depois de ma, como hobby, para o editor Aroldo Rio e viajava pelo mundo como editor Estou retomando contato com edi- cinco meses de negociação, a editora ca- Murá, no suplemento cultural do Diá- de televisão. O Bueno (ele não gostava toras, pois já iniciei pesquisa para escrever pitulou e me ofereceu o recurso do dis- rio do Paraná, por onde já tinham passa- de ser chamado de Wilson) achou inte- sobre o fantástico Zé Rodrix, um músico trato, ou seja, mesmo com o contrato as- do Paulo Leminski, Sylvio Back, Lelio ressante eu me tornar um repórter iti- genial e uma pessoa surpreendente. De- sinado (já estava para rodar) os originais Sotto Maior, o pessoal do grupo Ápo- nerante sempre que possível. Foi assim pois de alguns meses de pesquisa, estou voltaram para mim. A editora perdeu o ro. Foi o primeiro contato. Depois, com que criamos algumas coisas juntos. Re- convencido da riqueza do personagem — dinheiro que me havia adiantado meses carteira assinada, fui para o Diário da latos de New Orleans, Nova York, Paris, de quem pouco se conhece, não fosse ele antes. Dois dias depois do distrato, rece- Tarde, do grupo Gazeta do Povo, onde o Cuba, etc. Em Nova Orleans eu procu- um aplicado membro da maçonaria bra- bi um telefonema de uma editora paulis- meu editor era o Celso Nascimento, ain- rei e achei o metro quadrado onde nas- sileira. Neste caso, tenho o apoio da famí- ta chamada Casa Amarela (da revista Ca- da hoje na praça Carlos Gomes. Fiz tra- ceu o blues; de Londres, eu trouxe um lia: a viúva Julia e os seis filhos concorda- ros Amigos) se dizendo disposta a correr o balhos regulares para o jornal católico Voz ensaio fotográfico de Sue Cunninghan, ram. Mas ainda não tenho editora. g 8 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

POEMA | FABRÍCIO CARPINEJAR

Meu casaco não serve para nada, não será travesseiro de minha viúva TODAS AS MULHERES nas pedras frias de uma escada, não será guarda-chuva de minha viúva em tempestades repentinas, não será proteção dos ombros de minha viúva nas saídas das festas. É um casaco de morto, morrendo com o morto.

Assim como morrem comigo as cadeiras ao meu redor.

Assim como morrem comigo as boias de flores em minha volta, que não me devolverão às margens.

Assim como morre comigo o fogo dos candelabros.

Assim como morrem comigo o medo dos trovões e o meu grito, asas da água.

Assim como morrem comigo o nó da gravata e do estômago, os percalços e as certezas. Morrem comigo o alto e o mínimo, o baixo e o sublime.

Morrem comigo minha imagem, minha melhor versão, minha decadência, minha agressividade, meu suspiro, meu bocejo. Eu perderei a mim definitivamente. E perder não é falta de cuidado, é apenas perder.

Eu não me reconheço nesta pompa de ministro, nos dosséis e flâmulas, nas bandejas de prata e nos cálices de veneno, nos discursos graves e nos cumprimentos formais.

Até pareço satisfeito e bonito. Ilustrações Marluce Reque Mas, de longe, todo morcego é um pássaro.

Eu me vejo de perto, por dentro. Reparo em minhas pernas magras, Fabrício Carpinejar nasceu em 1972, em Caxias do Sul (RS). iguais a de meu pai, É poeta, cronista, jornalista e professor. Autor de 30 livros, ossudas, de canelas finas: entre poesia, crônicas, infantojuvenis e reportagem, atua como O poema publicado pelo não iria mesmo longe. apresentador da TV Gazeta e TVCOM. Também é colunista do Cândido faz parte do Se eu pudesse rir, estaria debochando de minha aparência. programa Encontro com Fátima Bernardes, da Rede Globo, e do livro inédito de Fabrício Carpinejar, que será lançado Da minha cabeça de anão, superior ao próprio corpo. jornal Zero Hora. Na poesia, publicou, entre outros, Um terno de Do queixo pontiagudo escondido pela barba grisalha. pássaros ao sul (2000) e Cinco Marias (2004). Todas as mulheres no segundo semestre pela Do nariz sem forma alguma. marca seu retorno ao gênero depois de oito anos, desde Meu filho, editora Bertrand Brasil. minha filha (2007). Carpinejar vive em (RS). Minha vida não é uma folha em branco, mas não entendo a minha letra. 9 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

ISABEL FURINI | POEMAS

DESTINO DE CONDOR

e se vestiu de orvalho depois de pássaro e tive medo que se afastara cantando primaveras semeando flores sobre as pedras ou tentando reverdecer o deserto

na montanha de Machu Picchu um condor o seguia e um xamã ao predizer o seu destino falou do caminho das estrelas

e uma vez ele escutou o vento do Atacama e uma árvore (a única entre as pedras) AQUELA ÓPERA murmurou em seu ouvido sonhei com uma gárgula no alto de um prédio : a gárgula (na penumbra) espreitava o céu seu destino é ser pássaro e vi algumas luzes transformar-se em gárgulas e voar e voar rumo às estrelas enquanto os bêbados cantavam: (além do vento) Libiamo, libiamo ne’lieti calici che la belleza infiora*. voar rumo as estrelas. acordei e olhei pela janela e vi dois bêbados e uma prostituta sentados na calçada — os bêbados estavam cantando La Traviata e a prostituta usava um branco véu de noiva e alegremente dançava dançava dançava INTERROGANTE ao escutar a ópera de Verdi cantada pelos bêbados O tempo é a imagem móvel da eternidade. Platão. percebi dentro de mim o alento de um dragão (um infinito ulular de estrelas de sons e melodias) impossível ignorar os espelhos de Picasso e lembrei-me de antigas noites de sonhos e de solidão peixes escorregadios que refletem o próprio eu impossível ignorar cadeiras e espelhos a prostituta terminou sua dança e tirou o véu guitarras e arlequins e ficou quieta e silenciosa (seus olhos fitavam o firmamento) e eu percebi que ela observava entre as nuvens o rosto de Deus nos quadros do artista dormem (o verdadeiro) a geometria e o mistério do cubo (as formas e sua alquimia) *Libiamo, libiamo ne’lieti calici che la belleza infiora/ Brindemos, brindemos nos alegres cálices, que a beleza floresce. as horas brincam e pular de frente e de perfil entre os chapéus das mulheres Picasso cria um ardil fragmenta o mundo com sua mente arguta e pinta rostos com várias perspectivas

Isabel Furini é escritora e educadora. Autora do livro de enquanto as horas brincam e pulam poemas Os corvos de Van Gogh (2012), orienta a oficina : “Como Escrever um Livro”, no Solar do Rosário, em Curitiba. um, dois, três...e o quarto homem? É colunista da revista IndicaMais de Araraquara (SP). onde estará o Timeu de Platão? 10 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná memória

A capitania de Vandré Entre agosto de 1991 e janeiro de 1992, Geraldo Vandré, que em setembro completa 80 anos, escreveu crônicas para o jornal Correio Popular, de Campinas. O conteúdo do material revela um artista mais preocupado em fazer odes às Forças Armadas do que textos de protesto

ariádiny rinaldi

uando retornou do exílio na Eu- é preciso garimpar as antigas edições Luiza Erundina, prefeita de São Paulo, Aérea Brasileira, e que até então eram ropa, no segundo semestre de no Centro de Documentação do jor- na época, pelo PT. Por isso, Vandré en- desconhecidos do público. Três anos de- 1973, Geraldo Vandré decidiu nal. “A coluna dele passou desperce- viava os textos por fax, de maneira es- pois da publicação, “Fabiana” finalmen- Qque não cantaria novamente no bida. Os leitores não associavam o parsa e fragmentada. Intitulada “Capita- te ganhou melodia e foi executada no Brasil. Isolou-se em seu apartamento nome à pessoa, ou, simplesmente, não nia de Wanmar”, a coluna ocupava meia Concerto Sideral, evento promovido no Centro de São Paulo, evitou apari- acreditavam que era mesmo o Geral- página e saía todos os sábados, acompa- pelo Ministério da Aeronáutica, em co- ções públicas e raramente concedeu en- do Vandré”, explica Jary Mércio, edi- nhada de ilustrações caprichadas. memoração da Semana da Asa, no Me- trevistas. Foi visto pela última vez, em tor, à época, do caderno de cultura do No comando de sua capitania, morial da América Latina. março do ano passado, no Teatro Bra- Correio Popular. Vandré evita lembrar o passado. Abor- A música deixou os fãs perplexos, desco, na capital paulista: até topou su- Na década de 1990, o Correio in- da, rapidamente, a mudança de Minas porque dilacerava qualquer áurea revo- bir ao palco, a convite da cantora norte- vestiu fortemente em jornalismo opina- Gerais para o , quando ti- lucionária e esquerdista persistente sob -americana Joan Baez, mas permaneceu tivo e teve outras grandes personalida- nha 16 anos, e os tempos na academia da a figura de Geraldo Vandré. O homem em silêncio absoluto enquanto ela mos- des, como Rubem Alves e , antiga Universidade do Distrito Federal, que fez o Maracanãzinho inteiro cantar trava sua versão de “Pra Não Dizer que incluídos no rol de colunistas. Antes de onde cursou Direito. Com nostalgia, re- em uníssono os versos “vem/vamos em- Não Falei de Flores (Caminhando)”, aceitar a proposta, Vandré fez algumas corda alguns parceiros de composições, bora/que esperar não é saber/quem sabe o maior hino de resistência ao regime exigências. Uma das imposições era com como Carlos Lyra, Baden Powell e Ala- faz a hora/não espera acontecer”, duran- militar brasileiro (1964-1985), compos- relação à integridade de seu texto. Nin- íde Costa. Mas não comenta sobre a sua te o Festival Internacional da Canção de to por Vandré. Mesmo mudo, nas úl- guém poderia mudar uma vírgula sequer infância na Paraíba e em Pernambuco, o 1968, e fez Antônio Carlos Jobim e Chi- timas quatro décadas, Geraldo Vandré de lugar. “Publicávamos exatamente o alvoroço da era dos festivais, a passagem co Buarque levarem a maior vaia de suas não permaneceu calado. Nas páginas de que ele nos encaminhava, não importa pelo Uruguai, Chile, França, Alemanha vidas; aquele que se viu obrigado, com jornal, encontrou uma forma diferente se tivesse erros de grafias ou gramati- e outros países durante o período de exí- a instalação do Ato Institucional nº5 a de se expressar e assumiu, durante seis cais”, relembra Mércio. lio, ou o seu último show em Ciudad del suspender a turnê que passaria por Goi- meses, o posto de colunista do Correio O músico nunca visitava a re- Este, em 1985, no Paraguai. ânia, Anápolis e Brasília para se escon- Popular, de Campinas (SP). dação. Estava em constantes viagens, der na casa da viúva de Guimarães Rosa; Publicados entre agosto de 1991 e fazia questão de mencionar na colu- Fabiana contraditória aquele que, fugindo da repressão da di- e janeiro de 1992, sem qualquer re- na: numa semana escrevia de Salvador, Vandré inaugura sua colaboração tadura, exilou-se no Chile e de lá foi ex- percussão, os textos caíram no esque- na Bahia, onde prestigiava cerimônias no Correio Popular com a divulgação, na pulso com a tomada de poder do ditador cimento. Para ter acesso ao material, oficiais do alto comando da Marinha; íntegra, dos versos de “Fabiana”, com- Augusto Pinochet; aquele mesmo ho- que não está disponível na internet, na outra, direto do gabinete da amiga postos em 1985, em homenagem à Força mem era, agora, amigão dos militares. 11 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Reprodução A rosa do povo mora Rei da ironia dentro do meu coração; Gravado na França, no final de escuta, bem, que a viola 1970, e lançado por aqui apenas três viola tua intenção; anos mais tarde, Das Terras de Benvirá e a rosa do povo mora é tido como um dos álbuns mais tristes dentro do teu coração da música brasileira. Quem ouve os 41 Se a rosa do povo mora minutos e 57 segundos não acredita que dentro do teu coração possa pulsar qualquer veia cômica da- Se a viola que viola, quele homem de canto choroso. Surpre- viola, da história, o vão, endentemente bem-humorado em sua ilumina-se a memória, coluna, Vandré critica uma reportagem fortalece-se a razão da Folha de S.Paulo, publicada em 14 de fortalece a tua história setembro de 1991. dentro do meu coração Segundo o compositor, a repor- tagem “induz os leitores a uma visão De “Marinha, Marina e Mari- falsa e enganosa da realidade” ao jun- nheira”, escrita em 1975, em tributo à tá-lo ao grupo do Centro Popular de Marinha do Brasil, Vandré publicou Cultura (CPC), do qual nega ter par- apenas a introdução, os 16 primeiros ticipado. Após justificar a recusa, di- versos. Os demais 33 versos que com- zendo que não concordava com o ca- põem a canção estão, atualmente, entre ráter propagandístico e panfletário que os documentos da Divisão de Censura transcendia as atividades artísticas pro- e Diversões Públicas (DCPC), e falam movidas pela organização, ele emenda: sobre de um soldado, fugitivo, que traiu “Esclarecida, no principal a diferença e matou a si mesmo. entre Geraldo Vandré e uma vaca sa- grada de qualquer seita partidária da Guarda aquela palma alvissareira contemporaneidade, vamos adiante”. Poemas inéditos Projetada, para sempre, nas alturas Que eu me guardo a vida inteira; É de Vandré, também, frases sar- Além de “Fabiana”, Geraldo Van- Da Razão nordestina e brasileira Cuida que na sombra da palmeira, cásticas como “se eu fosse o Rober- dré também publicou outros 15 poemas Que mais forte não há, nem Não se descuide a madeira; to Carlos começaria o ano novo can- inéditos no Correio Popular. As metáfo- Verdadeira” Aquela janela de calçada tando: ‘Eu sou o mesmo gato’. Como ras da flor e do mar, além da temática (Estrela do Oriente ou galope à beira- Aquele porte, aquela esteira, não sou, começo publicando a íntegra da cultura popular e da (sobre) vivência -mar, 9 de novembro de 1991) Aquele pendão do mês de junho, do texto literário de Fabiana, a canção compõem boa parte de seus versos. A flor, o fruto e uma fogueira que, este ano, cantaremos todos jun- A maioria dos versos publicados na tos”. Em outro momento, ele aproveita “Vida comprida Capitania não possibilita a interpretação de É provável que da mesma gave- para sinalizar um erro frequente — que É caminho de aprender andar um engajamento político por parte do au- ta de onde Vandré tirou esses 15 poe- até escapou em alguns de seus álbuns. Vida vivida tor. O único que deixa resquícios de uma mas, existam inúmeros outros. Do seu “Pra não dizer que não falei de flores É viver além voz de protesto é “São Paulo (Mais que primeiro LP (Geraldo Vandré, 1964) até (não é das é de)”, corrige. Não é só lembrar” meu Amor)”, publicado no dia do aniversá- o quinto e último lançado (Das Terras (Cantares I, 21 de setembro de 1991) rio da cidade. Vandré revela que o escreveu de Benvirá, 1970) foram gravadas apro- Canção jurídica há mais de uma década — portanto, em ximadamente 55 canções. Se continu- Embora tenha preenchido de po- “Da riqueza, sem parar, da natureza, pleno regime militar. No texto, o substan- asse com o mesmo fôlego, Vandré te- esias a Capitania, Vandré, em seu dis- Altaneira, firmeza e realeza tivo “viola” assume, também, a função do ria acumulado, hoje, mais de quinhentas curso, mostra-se mais interessado nas Alterosa no chã destas planuras, verbo “violar”. novas composições. questões relacionadas ao Direito do que 12 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná memória

às Artes. “Minha prioridade, nestes úl- rurais que devolvessem o Brasil para os dez refinarias do país havia reduzido em também, com o passado político do Bra- timos anos, tem sido uma canção jurí- brasileiros. Não seria hora, já mais que 50%. Ernestro Weber, então à frente da sil, rotulando-se como “o mais subversi- dica”, ironiza. chegada, de dar um basta neste fluxo estatal, chegou a anunciar a demissão de vos dos seres”. “Diante das presunções de Antenado ao noticiário diário, progressista que transformou nossas ci- 38 grevistas. governo que se fundamentam em crimes Vandré posiciona-se contra a privatiza- dades em verdadeiros campos de con- Ex-fiscal da antiga Superinten- como o Ato Institucional nº5 e nos pro- ção da Embraer, que, na época, enfren- centração?”. tênia Nacional de Abastecimento (Su- cedimentos de seus aplicadores, sou sub- tava uma crise financeira, e reprova os Ao abordar a greve dos funcio- nab), Vandré toma para si as dores dos versivo, mesmo. E tem mais: onde estou, programas de construção de casas po- nários da Petrobrás, na coluna publi- funcionários. Para ele, a estatal estava estes criminosos não se apresentam, pes- pulares, tema que começava a ganhar cada em 14 de agosto de 1991, Vandré agindo de acordo com as diretrizes de soalmente como investidos em funções força na pauta das políticas municipais, problematiza e aponta as falhas na le- uma empresa privada. “A Petrobrás não de governo brasileiro.” por temer um processo de concentração gislação em assegurar o direito de gre- é uma empresa particular dentro da qual Vandré também se manifesta so- demográfica — o que, na opinião dele, ve aos servidores públicos. A greve dos a moral que move o esforço de produ- bre a violação dos direitos o autor. Para “é um verdadeiro genocídio”: “Não se- petroleiros, que lutavam por reajuste sa- ção seja o lucro. Para ser mais rigoroso, ele, o principal inimigo da vida artística ria mais humano, assim, desenvolvimen- larial de 370%, já durava quatro dias. A lucro não tem moral, mesmo.” Ainda no é o mercado que, utilizando-se de “meios to propriamente dito que se realizassem empresa estimava que, por causa da re- texto, Vandré revela sua infelicidade com ilícitos”, lucra com produtos culturais ro- programas de construção de residências cessão, a produção de combustíveis nas relação não só ao governo de então, mas, tulados como “proibidos”. Depois, como 13 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Ariádiny Rinaldi é jornalista. Colabora com os jornais O Diário do Norte do Paraná, Estado de Minas e Correio Braziliense. Vive em Maringá (PR).

num “ciclo vicioso”, anuncia a liberação prazer. A colaboração era remunerada. sinais de um certo enfado ou dificul- espaço reservado a Capitania de Wan- dos produtos e lucra novamente com as Por razões administrativas, o Correio Po- dade para manter o compromisso. O mar, no dia seguinte. “Ele expressou toda vendas. Na coluna publicada no dia 7 de pular efetuava o pagamento em cheque, derradeiro texto de Vandré foi enviado a sua genialidade. Era um poema con- dezembro de 1991, ele lamenta o fato de mas o compositor exigia receber em es- próximo ao horário do fechamento da creto. Concreto como seu próprio ser”, sua obra ter sido “explorada comercial- pécie, recusando, também, o pagamento edição. O aparelho de fax cuspiu uma defende Mércio. mente”. Simone, Elba Ramalho, Geraldo por meio de depósito em conta bancária. folha em branco. Achando tudo mui- Menos inclinado a poética estéti- Azevedo, Zé Ramalho, Luiz Gonzaga, “Certo dia, recebi um telefonema do se- to estranho, Jary Mércio telefonou para ca do ponto de Vandré, Marini entende a Tonico & Tinoco e até mesmo a ban- tor financeiro reclamando de que os che- ele. “O texto está, aí, sim”, assegurou o atitude do músico como uma provocação da Charlie Brown Jr. já interpretaram as ques se acumulavam no departamento. compositor. “Olhe direito, não tem um aos leitores: “Acho que ele gostaria de canções de Vandré. “Disparada”, “Fica Vandré havia mandado um recado di- ponto no meio da folha?”, perguntou. saber como as pessoas reagiriam àquilo. mal com Deus” e “Caminhando” foram zendo que não entraria ‘no sistema’”, re- Mércio aproximou a página dos olhos Outros colegas deduziram que ele não as mais regravadas. Nem todos os regis- lembra o jornalista Wilson Marini. e, forçando bem a vista, encontrou o conseguira escrever o texto à tempo e tros tiveram autorização do compositor. Mas não foi devido a confron- tal ponto. “Esse é o meu texto”, expli- encontrou um jeito de resolver seu in- tos com o setor financeiro que a cola- cou Vandré. Os jornalistas compraram cômodo diante da tarefa assumida. De- Em e$pécie boração de Vandré chegou ao fim. Se- a brincadeira do compositor e o pon- pois disso, ele abandonou a coluna. Nun- Vandré não escrevia apenas por gundo Marini, o cantor já vinha dando to foi publicado em meio ao vazio no ca mais vimos Vandré”. g 14 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

ARTIGO

Vinte anos sem (com)

MarcosRoberto Prado lembra dos anos P de convivênciarado e das parcerias com o irmão, morto em 31 de dezembro de 1996

Primeiro tempo Mas, acabava recolhendo os enjeitados Aliás, poucos sabem que o Mar- no fundo de um quintal do Bacacheri, e seus caquinhos. cos Prado, além de parceiro letrista de Curitiba, Paraná, Brasil. A Lata de Luxo O mano dividiu espaço, por al- um seleto grupo de lendários músicos, Um dia fui à casa da minha mãe, gum tempo (até partir para novas aven- também arriscava lá as suas melodias Segundo tempo Nadyr do Prado, localizada no mitoló- turas) com as indefectíveis tralhas que, solo. Algumas vezes ao violão. Outras a gico Bacacheri, o bairro mais bem guar- tradicionalmente, ocupavam 82,5% da capela, ou ao estilo Lamartine Babo — O Fim é Um Bom Começo dado do Brasil. Explico melhor. Neste metragem útil do aposento (esta pala- só com percussão — quando a harmonia O tempo passou esse tempo todo recanto curitibano estão a base aérea, vra deriva de “local de aposentadoria exigia mais que sua felina habilidade no fingindo se arrastar no marasmo, em cli- o CINDACTA 2, o Material Bélico, de móveis e objetos”? Pena que o Le- instrumento de corda que ele arranha- ma de pesadelo. Cada bilionésimo de se- o Aquartelamento da Ponte do Baca- minski não está aqui para explicar). va com tocante elegância. Dizia assim: gundo pingando penosamente de uma cheri, o Hotel de Trânsito, o gigantesco A coisarada era ali socada para torneira frouxa ou escorrendo invisível Vigésimo Batalhão de Infantaria Blin- — sabe-se lá — quem sabe um dia. Enfim sós de uma privada desregulada. De repen- dado (o famoso Vinte Bibe) e a casa do Mas como esse santo dia nunca chega- (Marcos Prado) te, me dou conta que ele, o tempo, esse cartunista Luiz Antônio Solda. va, permanecia estocada — ao menos ente que não existe, na verdade não ras- Pois bem. Aproveitando a dei- nas casas dos antigos, pois essa juven- acabou, que pena teja: voa pelo espaço. E atropelado pela xa, fui visitar o meu irmão Marcos que, tude de hoje não respeita mais nada e nosso amor se transformou vertiginosa sucessão de janeiros, me caiu nesta época, como todo marmanjo en- é bem capaz de tacar no lixo a ossada num bar com meia porta na cabeça, de uma vez só, a consciência xotado pela esposa, voltara ao lar ma- do avô! as cadeiras sobre a mesa de que já se foram quase 20 anos desde a terno — habitava então um singe- O que eu estava contando, mes- eu torrado e você torta morte do meu irmão mais novo, o Mar- lo “puxadinho” nos fundos da casa da mo? Ah, sim, entrei no quarto do meu — — cos Prado. Partida que quebrou a traje- dona Nadyr. irmão, desviando o impressionante vo- cada um pro seu lado tória de um artista com pilha, pique e Não lembro qual das malvadas lume de livros e cinzeiros que ele havia a madrugada vazia tesão para mais 60 anos de estrada, no havia cometido esta barbaridade com conseguido acrescentar ao já populoso você em sua carruagem de princesa mínimo. Doeu? Ainda dói. um rapaz tão bom, marido exemplar e ambiente. Rindo de pura satisfação, ele eu com um pé na frente e outro atrás Parece que foi ontem, parece que que havia cunhado, entre outras pérolas imediatamente me passou uma folha nos dois a mesma tristeza foi nunca, não se parece com nada aque- da vida a dois, a prima definição “o sofá manuscrita e, sobraçando uma antiga la sangria desatada. Eu chegando lá com é o melhor amigo do homem”. lata de lixo que, partir deste momento Talvez algum dia alguém tenha Léa, a esposa dele, no pronto socorro A mãe costumava dizer às no- solene virou um tambor, me apresentou dó da gente e grave essa canção inédi- do Hospital Cajuru, em Curitiba, para ras de todos os rebentos: “Quer le- a sua mais nova canção, um samba qua- ta. Esse luxo nascido da parceria entre uma alucinada sequência de cenas que var, mesmo? Não aceito devolução”. se Adoniran. um grande coração e uma lata de lixo, até hoje reprisam, enevoadas na mente. 15 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

De vez em quando me pego lutando, na Para nós, isso era a vida, nem sabíamos cidade de sua mórbida timidez, sonhan- Roberto Prado nasceu e vive em Curitiba (PR). É poeta, memória, para que o desfecho seja di- que era batuque, música, poesia. do dar a ela um ar mais moderno, ale- tradutor, publicitário, jornalista e autor de canções ferente. Mas acontece que, sem darem O Marcos teria hoje os seus 54 gre e cosmopolita. Gente que dedicou o gravadas, entre outros, por Carlos Careqa, Oswaldo Rios, a mínima para a minha opinião, qui- anos de idade. Um inimaginável senhor, melhor de suas vidas, no mais das vezes Sidail César, Tatára, José Oliva, Thadeu, Adriano Sátiro, seram os deuses e as musas da poesia um senhor poeta que levou embora seu sem nenhum retorno além da própria sa- Beijo aa Força, Maxixe Machine, Lábia Pop, Ferryboat, que ele fosse convocado, no réveillon de incontrolável carisma e contagiante alegria tisfação, para imprimir sangue e vida ao Missionários, Grupo Fato e Viola Quebrada. É autor de 1996, para reapresentar-se no lugar onde de viver, mas deixou uma obra que resiste triste ambiente cultural curitibano. Am- diversos livros de poesia, prosa e tradução. Seu mais nasce o tempo. sem perder cor, aroma, frescor, sabor. Poe- biente que, vendo hoje, você pode ima- recente lançamento é o áudio-livro Presença de espíritos Lembro bem que eu e Marcos sia, música e atitude que as novas gerações ginar remotamente como era no tempo (2014), na interpretação de Antônio Abujamra, com crescemos escrevendo juntos, desde abraçam como se fosse delas. E é mesmo. das diligências. Por essas e por muitas versões de poemas fundamentais da literatura universal. sempre (nisso o tempo não me enga- Personalidade inquieta, talento outras que você, pesquisando, vai desco- na). Duas crianças lendo alto, cantando, múltiplo, artista explosivo, Marcos foi brir, acho que o Marcos Prado ainda está parodiando, debochando, desmontando um dos expoentes de uma geração de por aí. Começando pelo fim. todos os brinquedos literários que nos santos guerreiros e malucos de pedra, caiam nas mãos, pelo complicado prazer artistas de todos os naipes que batalha- Prorrogação de ver como eram pelo lado de dentro. ram sozinhos ou em bando para tirar a Um inédito de Marcos Prado Reprodução

No sentido horário, os poetas Roberto Prado, Sérgio Viralobos, Thadeu Wojciechowski e Marcos Prado. 16 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná poemas | marcos prado

que botijão a pariu?

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gorda dragão dizem que me chamou de vagabundo faço do teu nariz pela enésima vez tomada do teu bafo saiu banha dos meus olhos quando gasogênio soube da tua bosta mole metano como escorre sua menstruação oleosa e seu corrimento qual foi meus olhos derreteram nesta tarde o seu trabalho por sua causa, porca máter neste mundo javali fêmea? obesa você me chama de vagabundo onde estão os seus méritos? de inútil e aproveitador fritando alguém? me conte uma história boa, suína refogando algo? algo que justifique sua vida mesquinha ensebando quem? e que solte o seu rabo colesterolizado 3 gorducha eu te conto uma história sou vagabundo que entra dentro de uma história mas eu posso contar a sua história que explica uma história bucho que eu ainda não contei placa de costela gorda como não conto com você, pelancuda na boca de bebedor de cerveja jogando truco com o pessoal do almoxarifado

as estrias a celulite as cartucheirinhas provam que você trabalhou demais Ilustração Richard Bischof coisa balofa 17 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

o dia em que o poeta descobriu que não estava morto entre uma pá de terra e outra

perdido, estou perdido / perdido o rit- paredes em um universo infinito / cheio mas pessoas de que esqueci o nome / mo e a rima, perdido / nenhum acha- de verdades afasto a cortina e minto / odiei outras que desejaria além dele o do, ideia, sentido / ando como se de conheço gente de todo o tipo / não sei sobrenome / quando passei bem, lem- nenhum lugar tenha saído por a lugar o que é pobre, médio ou rico / alguns brei que deveria passar fome / é, eu não nenhum ter ido / se me aparecem sím- consideram caro serem ricos / outros li a vida como você está vendo / não sou bolos, virgulo / se fatos, pontuo / não uma graça serem pobres / dos médios, eu quem está escrevendo? / ainda bem me sinto mais o coitado que bebeu o desisto / olhando para trás acho um de- que você não está lendo conteúdo / nem como o herói que não satino / ser ninguém meio a tanto des- conseguiu se salvar, contudo / duvi- tino / não modifiquei nada, nem man- do de quem acredita na vida / detes- tive / sempre morri de rir de quem vive cadela vira gata to quem acha essa passagem um teste / / a morte hoje comigo sobrevive / fugi alquimia falso quem acha tudo uma farsa e faz do de todos os compromissos com meus vira lata mundo um pasto / estou entre quatro dois cérebros omissos / gostei de algu- (Roberto Prado e Marcos Prado)

Marcos Prado nasceu e morreu em Curitiba (1961 — 1996). Foi poeta e compositor. Teve letras gravadas pelo grupo Beijo AA Força nos discos O que me quer o Brasil que me persegue (1987), Música ligeira nos países baixos (1993) e Sem suingue (1996). Parte de sua obra poética foi publicada na coletânea Ultralyrics (2006). Os poemas publicados pelo Cândido foram gentilmente cedidos por Roberto Prado, irmão do poeta. 18 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

perfil do leitor | dado villa-lobos

CCom umlássicos livro de memórias recém-lançado, obrigatórios o guitarrista fala de sua formação literária baseada em grandes autores da literatura brasileira e mundial

Omar Godoy

ado Villa-Lobos acaba de engros- dos Rolling Stones) e confortável na dessa primeira fase de leituras é Jean parti para Noites brancas, O jogador, Os sar a fileira dos músicos brasileiros condição de narrador, o “legionário” en- Baptiste-Poquelin, o Moliére. “Obras irmãos Karamazov. Nessa mesma época, que se enveredaram pelo merca- fim topou a empreitada. como O doente imaginário, O avarento e tive a fase ‘romance policial’, que adoro Ddo editorial. A exemplo de figu- “O processo foi intenso e demo- Escola de mulheres me fizeram procurar até hoje. Sou fã de Dashiell Hammett. ras como Lobão, Marina Lima, Kledir rado, mas divertido. Achei bacana para outras peças de teatro, como O rinoce- Raymond Chandler, Chester Hime e, Ramil (da dupla com Kleiton), Eras- mim e para os fãs. Quem sabe agora ronte, do Ionesco, e As moscas, do Sartre.” claro, Agatha Christie”, revela. mo Carlos e Humberto Gessinger, entre não posso partir para a ficção, talvez es- De volta ao Brasil, o músico pas- Rubem Fonseca também aca- outros, o guitarrista também está com crever alguns contos?”, diz. Influências, sou a se interessar pelo que chama de ba entrando na conversa, já que Dado um livro na praça: Memórias de um legio- segundo ele, não faltam. Filho de uma “clássicos obrigatórios”. Incentivado compôs a trilha do filme Bufo & nário (editora Mauad X), escrito por ele artista plástica e de um diplomata que pela escola, leu com gosto Lima Bar- Spallanzani (2001), baseado na obra do com a colaboração do historiadores Fe- tocava piano clássico, Dado Villa-lo- reto, Jorge Amado, Machado de As- autor mineiro nonagenário. “Já conhe- lipe Demier e Romulo Mattos. “É um bos foi estimulado a ler desde pequeno. sis e outros autores canônicos nacio- cia O selvagem da ópera e Agosto. Mas foi novo modelo de negócios, pois a vida do “O ambiente em casa sempre foi cheio nais. “Lembro de ter adorado Triste fim só depois do Bufo que comecei a ler os músico não está fácil”, brinca, tentando de livros. Das enciclopédias a Montei- de Policarpo Quaresma, do Lima Barre- contos, todos sensacionais. Tive a sorte explicar essa tendência dos últimos anos. ro Lobato, passando por Jorge Amado, to, que minha turma toda leu e depois de estrear na música para cinema tendo O projeto foi uma ideia de De- Molière, Sartre, Poe, García Márquez. discutiu em sala de aula. Nessas opor- uma história do Rubem como fonte de mier, fã da Legião Urbana e compa- Também lembro dos quadrinhos da tunidades, alguém invariavelmente dava inspiração”, afirma. nheiro de pelada de Dado. Mas só se Mafalda, Asterix, Tintim, Tio Patinhas.” uma dica interessante, como o Cem anos Saindo do terreno dos clássicos, o consolidou algum tempo depois, com Edgar Allan Poe foi o primeiro de solidão, do García Márquez. Assim, guitarrista cita autores contemporâneos a entrada de Mattos, que sugeriu uma autor que realmente o impressionou, a eu fui lendo tudo o que chegava pela es- como Will Self, Ian McEwan, Michel produção a seis mãos — os historiado- partir de uma coletânea de contos com cola, pelos amigos, pais, irmãos”, conta. Houellebecq e Amélie Nothomb. En- res cuidariam da pesquisa e organização tradução francesa de Charles Baudelai- Esses caminhos o levaram a tre os brasileiros, acompanha a produ- do material, enquanto o músico se con- re (Dado viveu em Paris durante par- Dostoiévski, um de seus escritores pre- ção de Luiz Alfredo Garcia Roza, Mar- centraria apenas em contar suas histó- te da infância). “Eram histórias de ter- feridos. “Quando li O idiota, perce- celo Rubens Paiva e Fausto Fawcett, rias. Empolgado com a leitura de Life ror muito reais e possíveis”, lembra o bi que a linguagem das telenovelas es- seu parceiro musical e amigo particular. (livro de memórias de Keith Richards, guitarrista. Outro nome fundamental tava toda ali. Fiquei impressionado e “O Fausto é uma fonte inesgotável da 19 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Divulgação filosofia do comportamento humano radical. Sempre discutimos a obra dele. Seu livro Favelost é ficção/premonição pura”, define. Sobre , Dado se li- mita a contar que os dois às vezes con- versavam sobre literatura e trocavam in- dicações. “Ele me deu de presente uma edição em francês de A montanha má- gica, do Thomas Mann”, diz. Como se sabe, o título do livro batizou uma faixa da Legião Urbana presente no álbum V, lançado em 1991. Em tempo: a entrevista foi re- alizada dias antes de o Supremo Tri- bunal Federal decidir pela liberação de biografias não autorizadas previamente. Questionado sobre o assunto, o músico se mostrou totalmente favorável à liber- dade para a pesquisa e publicação des- se tipo de obra. “Devo muito a autores como Ruy Castro, Paulo César de Araú- jo e Nelson Motta, que registram parte importante da nossa história em seus li- vros. Para mim, não faz sentido esse cer- ceamento. Que liberem, por favor!” g Dado Villa-Lobos acaba de lançar seu primeiro livro, Memórias de um legionário, escrito em parceria com dois historiadores. 20 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná especial | Cartas

Os bastidores da vida literária A correspondência entre escritores é cada vez mais utilizada nos estudos literários e ajuda na compreensão de temas que aparecem no período em que narrativas e poemas foram produzidos

Marcio Renato dos Santos

Lasar Segall / Reprodução

ernando Sabino e Otto Lara Re- que produzia. Hoje, no entanto, per- sende. T.S Eliot e Ezra Pound. Ru- cebe-se que praticamente nada é des- bem Braga e Vinicius de Moraes. prezível, as informações mais ínfimas FGoethe e Schiller. Paulo Leminski podem servir não só para documentar e Régis Bonvicino. Clarice e Elisa Lis- a biografia de um autor como também pector. Todos os autores mencionados esclarecer o seu processo de criação, a trocaram cartas. Alguns até com mais de gênese de sua obra”, diz. um interlocutor. Mário de Andrade, por Já a professora da Universidade exemplo, se correspondeu com inúmeros Federal de São Carlos (UFSCar) Diana amigos, de Câmara Cascudo a Tarsila do Junkes Bueno Martha observa que não se Amaral. E o conteúdo dessas correspon- deve ler uma obra em função da história dências adquire, cada vez mais, valor — de vida do artista. Mas, pondera a estu- inclusive para os estudos literários. diosa, as cartas são um rico material tanto O professor da Pontifícia Uni- para a realização de pesquisas como para versidade Católica do Rio Grande do compreender a biografia dos escritores: Sul (PUCRS) Pedro Theobald afirma “Por meio de cartas são revelados proje- que, durante anos, as informações das tos da obra, reflexões sobre a literatura e correspondências entre escritores fo- a arte. A partir da interlocução entre escri- ram desprezadas pelos estudiosos — tores é possível, muitas vezes, compreender consideradas inúteis para o estudo da ideários estéticos de modo amplo.” produção literária. “Acreditava-se que O professor da Universidade São era adequado manter uma separação Paulo (USP) Marcos Antonio de Mora- rígida entre o que a pessoa era e o es comenta que as cartas, principalmente Mário de Andrade recebeu 7 mil cartas e fez da correspondência um meio para afirmar o modernismo brasileiro. 21 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Reprodução a partir dos românticos, mostram que da, Machado de Assis também elogia os autores começavam a ter consciên- publicamente Castro Alves. “A cor- cia da figura do escritor na socieda- respondência de Castro Alves mostra de — a necessidade de ser reconhecido como ele se movimentou para conse- publicamente aparece, por exemplo, na guir divulgação. O poeta, como tantos correspondência entre Gonçalves Dias autores, fazia muita política literária”, e Joaquim Manuel de Macedo. comenta Moraes. Moraes destaca o esforço de Castro Alves em busca da consagra- Gigantismo epistolar ção. Em 1868, o poeta pernambuca- Mário de Andrade recebeu 7 mil no vai ao Rio de Janeiro, procura José cartas, das quais Marcos Antonio de de Alencar, para quem apresenta al- Moraes reuniu mais de duas mil, algu- guns de seus textos. Alencar publica mas com mais de 60 páginas. “A partir carta aberta em um jornal e, em segui- do modernismo, a carta deixa de ser, por

“A partir do modernismo, a carta deixa de ser, por exemplo, algo vazio ou um mero gesto de cordialidade. A correspondência de Mário de Andrade revela o esforço para afirmar uma geração. Ele utilizou as cartas como uma forma de legitimar o modernismo.” Marcos Antonio de Moraes, professor da USP

As cartas de Castro Alves mostram que ele se movimentou em busca de reconhecimento público. 22 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná especial | Cartas

Dico Kremer

exemplo, algo vazio ou um mero gesto o modernismo”, comenta Moraes, que de cordialidade”, afirma Moraes, que fez conquistou Prêmio Jabuti com os livros mestrado e doutorado sobre o assunto e Correspondência Mário de Andrade & atua no Instituto de Estudos Brasileiros Manuel Bandeira (2000) e Câmara Cas- na USP, onde está à frente de pesquisas cudo e Mário de Andrade — cartas 1924- sobre o acervo de escritores. 1944 (2010). As cartas escritas pelo autor de Macunaíma, ressalta o pesquisador da Escreveu, é pra publicar USP, revelam dedicação e cuidado com Moraes acredita que o interes- a escrita. Na correspondência que en- se, contínuo e crescente, de pesquisa- viou dia 26 de setembro de 1924 para dores e do público leitor pelo conteú- Câmara Cascudo, Andrade discute al- do das correspondências de escritores gumas questões com o interlocutor, en- tem explicação: “Literatura é proces- tre as quais a pertinência, ou não, de so. O livro é o resultado final e as car- publicar crônicas em forma de livro: tas revelam questões pouco conheci- “Crônica é pra jornal. Livro é uma con- das, como intenções, negociações e cepção mais inteiriça e completa. As tensionamentos.” suas crônicas ficaram muito bem num Monteiro Lobato, o primeiro es- jornal. Em livro a maior parte delas per- critor brasileiro a publicar a própria cor- de 90% da graça e oportunidade.” respondência, tinha noção de que haveria Em carta destinada à Tarsila do leitores para o diálogo escrito e, em um Amaral, com a data de 15 de novembro primeiro momento, privado entre auto- de 1923, Andrade faz restrições à ami- res. Em Barca de Gleyre (1944) estão reu- ga e aos colegas modernistas que, na- nidas algumas cartas que Lobato trocou quele contexto, estavam na Europa: “Vo- com o amigo escritor Godofredo Rangel. cês se parisianizaram na epiderme. Na mensagem escrita dia 8 de ju- Isso é horrível! Tarsila, Tarsila, volta lho de 1921, o autor do Sítio do pica-pau para dentro de ti mesma. […] Aban- amarelo, e também editor, faz uma suges- dona Paris! Tarsila! Tarsila! Vem para tão, comercial, ao interlocutor: “Rangel, a a mata-virgem.” publicação dos teus contos virá melhorar Marcos Antonio de Moraes ana- a saída do romance, de modo que é mais lisa que Mário de Andrade usou as car- comercial imprimi-los agora do que de- tas para, bem mais que estabelecer di- pois. E não te incomodes com a parte álogo, criar e consolidar o projeto do econômica do negócio — se dá ou não modernismo. “A correspondência dele dá lucro para a casa. É coisa que não tem revela o esforço para afirmar uma ge- a mínima importância. O importante é ração. Mário de Andrade utilizou as que você vá se imprimindo e imprima-se cartas como uma forma de legitimar todo — nem que o editor leve a breca.” As cartas que Paulo Leminski escreveu e enviou para Régis Bonvicino podem ser lidas como poemas. 23 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Reprodução

Os escritores, principalmente a partir da década de 1970, sabiam, com clareza, que escrever, e enviar, uma car- ta não é um gesto banal — o material tende a ficar para a posteridade. Se Ana Cristina Cesar confessou que ao pro- duzir correspondência ela quase tinha de renunciar à própria literatura (ape- sar de a produção em prosa e poesia da autora flertar com o texto epistolar), Paulo Leminski elaborou cartas, as en- viadas a Régis Bonvicino, que podem ser lidas como poemas. Paulo Theobald, da PUCRS, diz que, em alguns casos, a carta acaba por se transformar em uma extensão do trabalho literário, pelo fato de o autor desenvolver em sua correspondência o mesmo estilo de sua ficção ou poesia. “Às vezes, aparecem nas correspondên- cias as mesmas imagens presentes nos textos publicados. Um exemplo disso é o Caio Fernando Abreu. Estudos es- tão revelando esse fato, recorrência de imagens, em suas cartas e crônicas”, afirma Theobald.

E-mail, Face & blog Pesquisas apontam — e é preci- so ressaltar — que a onipresença das redes sociais no cotidiano estimulou a comunicação escrita entre as pes- soas. “Ainda não conheço estudos so- bre como isso afetou a correspondên- cia entre os escritores. O que podemos afirmar é que ela [a troca de informa- ção entre autores] continua, mas não ficou imune ao processo: tornou-se mais fácil corrigir as próprias cartas Monteiro Lobato foi o primeiro escrito brasileiro a publicar a própria correspondência. 24 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná especial | Cartas

Reprodução sem deixar vestígios, armazenar có- pias, mas certamente as cartas, ago- ra e-mails, também se tornaram mais fragmentárias”, afirma Theobald. O pesquisador da PUCRS acres- centa que, aparentemente, os escritores em atividade antes do advento da inter- net, por levarem mais tempo na elabo- ração de suas cartas, eram mais cuida- dosos quanto ao estilo: “Isso é verdade até certo ponto. Para escrever bem, até mesmo comunicar-se — pois essa é a principal função da carta, do e-mail — é preciso despender um certo tempo no planejamento do que será escrito.” Diana Junkes Bueno Martha, da UFSCar, tem a impressão de que a in- ternet cria meios mais ágeis de comuni- cação. “O e-mail permite, ainda, a manu- tenção de certo estilo, o que poderia levar a pensar que as cartas continuam sendo trocadas, mas com um suporte diferente”, diz. Já o Facebook e outros modos de co- municação, como, por exemplo, o Skype, de acordo com Diana, tornam a comuni- cação ainda mais ágil e exigem brevidade. “Ambos [Facebook e Skype] per- mitem a comunicação síncrona, como as troca de mensagens ou mesmo as cha- madas com vídeo. Não creio, porém, que haja prejuízo em termos dos conteúdos das mensagens. Penso que o teor das in- formações, a qualidade do texto e os vín- culos entre os correspondentes se man- tém de modo muito parecido, sobretudo no e-mail. É importante sublinhar que o diálogo permanece, sofrendo, natural- mente, as transformações impostas pe- los novos modos de comunicação”, afir- ma a professora da UFSCar. g Estudos apontam que imagens das crônicas de Caio Fernando Abreu se repetiam em algumas cartas que ele escreveu. 25 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Reprodução

Exigências para editar cartas em livro

Dia 14 de agosto de 1931, Mário de Andrade enviou uma carta para Câmara Cascudo. Começava da seguinte maneira: “Cascudinho, bom dia. Acabo de devorar o tudo mandado, carta, charuto de Álvares e mais o Ensaio. Este é simplesmente magnífico e fico a me lamber de gratidão.” A correspondência traz outros comentários. Em 2010, Marcos Antonio de Moraes publicou Câmara Cascudo e Mário de Andrade — cartas 1924-1944, livro que traz a mensagem mencionada anteriormente. Mas, além do texto escrito por Andrade, Moraes também incluiu, ao final da carta, algumas informações: “Carta datada: ‘S.Paulo, 14-VIII-31’; datiloscrito, fita preta; autógrafo a tinta preta; papel jornal; 1 folha; 32,2 X 21,9 cm; rasgamento nas bordas esquerda e direita; rasgamento por oxidação de tinta; furo parte superior.” Todas as correspondências reunidas na obra trazem Todo escritor escreve e envia cartas? informações similares. “É importante fazer isso, descrever a carta, para que A convite do Cândido, Diana Junkes Bueno Martha, professora da o leitor possa, de fato, ler a correspondência. Se havia um rabisco, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), responde a pergunta: é preciso contar”, afirma Moraes. “Trata-se de um esforço para escrever, e enviar carta, é prática recorrente entre escritores? proporcionar o máximo de informações sobre como aquela troca de mensagem aconteceu”, completa. “Não sei se poderíamos dizer que enviar e receber cartas é O professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) algo inerente à condição do escritor, mas certamente podemos dizer que Alvaro Santos Simões Junior observa que, ao publicar um livro com a são gestos comuns entre muitos escritores e que as cartas constituem correspondência entre dois autores, é necessário entrar em contato com parte importante de sua produção, seja por revelarem opções estéticas, os herdeiros de quem enviou e de quem recebeu as cartas. “Além disso, se preocupações com os caminhos da arte e da própria atividade do houver outras pessoas citadas, elas, ou os seus representantes, deverão ser escritor, como aspectos de suas biografias. consultadas antes da publicação”, diz Simões Jumior. Praticamente todos os escritores trocaram correspondência, dos mais renomados aos menos conhecidos. As correspondências de Jorge Amado, (foto), Guimarães Rosa, Fernando Sabino, por exemplo, são amplamente estudadas. As cartas eram dirigidas para outros escritores, artistas, intelectuais, ou mesmo familiares. As cartas entre escritores são comuns em toda a literatura. E remontam muito tempo atrás. Padre Antônio Vieira, foi autor de mais de 500 cartas. São importantes as cartas de Cláudio Manuel da Costa, dos escritores românticos e de Machado de Assis. O teor, entretanto, varia. As discussões estéticas são comuns a partir do romantismo, quando a própria ideia da concepção artística como trabalho criativo em detrimento de uma concepção da arte como inspiração passa a ganhar relevância — essa discussão, por meio de cartas, culmina entre os modernistas.” 26 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná especial | Cartas

Cândido publica com exclusividade duas cartas de Wilson Bueno endereçadas a João Antônio, no começo dos anos 1980. O material foi gentilmente cedido por Luiz Carlos Pinto Bueno, depositário doO acervo do escritor paranaense. Está em curso um acordo entre os herdeiros dos dois autores para que a correspondência entre Bueno e Antônio seja reunida. 27 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Re-verdes tingui, 3/ JAN/ 1984

João Antônio. Amigo muitíssimo.

Acertado o reinício da sempre — e finalizando o delírio — na releitu- ingente batalha pela subvida, em 15 de ra (terceira) dos dois volumes de “Me- dezembro larguei-me cá deste mocó mórias do Cárcere”. A mais fina, for- para Florianópolis. Aqui recém-chega- te, máscula e viril lição de humanidade, do (dia 2, ontem) topei com suas sem- que conheço, uma humanidade suja de pre generosíssimas remessas. Obrigado si mesma, certo, mas ô que humanismo muito pela costumeira atenção. (Preciso vero e fero o deste mestre insuperável lhe devolver a 2ª versão da carta). das Alagoas! Fico feliz que tenha aproveitado, Agradeço e retribuo os votos supimpamente reescrito, o trecho que muito sinceros de que em mais este ano, passa a integrar a página 8 do seu con- possamos ser dele sobrevivente, como to de Natal. Aquilo ali é mesmo como- aconteceu com o fatídico 1983. Que o vente. Em minha humilíssima opinião, santo de sua devoção, Santo Antônio da de todos os títulos ficaria apenas com Batalha, lhe dê a citada energia para o dois: “Pedaço de Marianita” (a lem- trabalho e a igual fraca esperança. brar os grandes títulos de Aníbal Ma- Mandei a Duílio Gomes alguns chado) ou “Balada de Gaivotas, de Bo- cometimentos poéticos. Se conseguir lhas Douradas e da Cachorra Tatiana”. furar o duríssimo bloqueio da neurose Nenhum outro, sinceramente, me bate que me paralisa frente a qualquer pa- mais na entranha que estes dois. pel em branco, escreverei, enfim, o “Pin- Ainda antes de viajar andei aqui, gente em Bronze”. Ideias há muitas. febril e ensandecido com o “Sete Noi- Andei relendo seu “Dedo Duro” e con- tes”, de Jorge Luis Borges, que me le- sidero Paulo Melado do Chapéu Man- vou, de tabela para a leitura de Dante, gueira Serralha” coisa definitiva. Platão e até mesmo De Quincey (tra- duzido por Baudelaire — “Memórias Com recomendações a Tereza, de um Comedor de Ópio”). E, loucura guardiã deste inquieto espírito macu- das loucuras, tudo acabou se bifurcando naímico, o teu, sempre, Wilson Bueno. 28 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná especial | Cartas 29 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Revárzeas, 11/ julho/1984

João Antônio. Muitíssimo prezado.

A correria, aqui, tem sido imen- verá, mas a matéria ficou, no todo, mui- sa. Além do trabalho com as crônicas to boa, em minha opinião. E mereci, in- do jornal, três vezes por semana, ain- clusive, nesse dia, chamada de primeira da funciono regularmente pela manhã página. Aliás, o meu trabalho, que assim e à tarde no lufa-lufa pela subvida. Mas que possa, te mando xerox (para uma se- só assim para eu escrever. Desembestei, vera avaliação) vem fazendo um sucesso João Antônio, desembestei nas escrevi- que acho que não mereço muito, cá por nhações. Estou fazendo o que conside- estas bandas. Aquela que lhe enviei (o ro anotações, à grande, para o livro (ou jornal inteiro, como IMPRESSO e que livros), que pretendo escrever. v., até agora não acusou se recebeu, ou O Aleijadinho saiu, ao menos por não) sobre os POLACOS ganhou elo- um período (já aconteceu outras vezes) gio até de gente super-enfarada. Tanto do rol das minhas obsessões. Li, inteiro, fazia — gente super-enfarada não têm o livro da Isolda. É quase certo que seja opinião, tem estado-de-espírito. essa mesma que andava lá por Congo- Vivência marioandradiana, de três, nhas, naquele tempo que lhe dei notícia quatro ocupações simultâneas e mais o em carta. Só pode ser ela. O livro é (foi) mundo de cartas, epistolagem de Norte fantástico, lido numa fase de vagabun- a Sul deste país. dagem total e sem as alusões de agora. E ainda as leituras: acabo de Fico te devendo carta alentada so- sair de um livro que li com unção, pe- bre Antônio Francisco Lisboa. Creio que sando e fazendo escorrer na voz e até Wilson Bueno nasceu em Jaguapitã (PR), em 1939. É autor, a minha visão bem pequena das coisas, nas mãos, cada frase, cada período, entre outros, de Manual de zoofilia (1991), Mar Paraguayo não há de fazer falta. Com sinceridade. cada parágrafo, cada capítulo: “IN- (1992), Meu tio Roseno, a cavalo (2000), Amar-te a ti nem sei Aí vai a primeira das cartas de FÂNCIA” do mestre Graciliano. Re- se com carícias (2004) e Cachorros do céu (2005). Tem livros Um Pingente. Embora o esforço do solvi , por acaso, lê-lo já que havia a publicados na Argentina, Chile, Cuba, Estados Unidos e México. grande ilustrador brasileiro — Seto. besteira de não entendê-lo, embora Bueno faleceu em Curitiba, em 2010. Lembra dele? — passou por quase to- a leitura total, lá nos meus dezesseis das as revistas e editoras de São Paulo. anos. É uma definitiva obra-prima. João Antônio nasceu em São Paulo, em 1937. É autor de Japonês de grande talento, e ainda que Melhor, muito superior que a Infân- Malagueta, Perus e Bacanaço (1963). O livro, que conta a heterossexual definitivo, um apaixona- cia de Tolstói e acho que em domínio história de três malandros paulistas, foi traduzido para oito do por Mishima. Na correria das reda- de língua supera o Machado de Assis. idiomas e ganhou o Prêmio Jabuti. Depois, João Antônio ções, principalmente cá por estas plagas / Terminou o papel e o tempo!/ ES- publicou mais vinte obras, entre elas, Leão de chácara (1975), e num jornal relativamente novo, enfiou CREVA — ESCREVA — ESCREVA. Malhação de Judas (1976), Casa dos loucos (1978), O Calvário um baita U no PINGENTE, como v. Wilson Bueno. e porre do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto (1979), Dedo-duro (1981) e Abraçado ao meu rancor (1986). O autor foi encontrado morto em sua casa no dia 1º de maio de 1996. 30 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná ensaio

No coração, a liberdade: as cartas exemplares

deA professora L da Universidadeuiz FederalGama de São Paulo (UNIFESP) Ligia Fonseca Ferreira faz uma análise da trajetória de Luiz Gama, intelectual brasileiro negro, e pouco conhecido, a partir da troca de cartas do autor com outros interlocutores

uitos talvez o desconheçam, e republicana, militando nos jornais, na apreender aspectos mais íntimos e re- mas Luiz Gama (BA/1830 — tribuna e nos tribunais duas décadas an- veladores da “alma” de um homem que SP/1882) é uma personalidade tes do advento da Abolição e da Repú- sempre se colocou como protagonista e Mextraordinária de nossa histó- blica. No Direito, o advogado “provisio- agente da História com a qual se entre- ria. Dentre os raros intelectuais negros nado” (com licença especial), inovou nas laçava sua vida — vida que, particular- do século XIX, foi o único a ter sofrido estratégias jurídicas, desenterrando leis mente numa carta, ele próprio se encar- 8 anos de escravidão, fato marcante na como a de 7 de novembro de 1831, que regou de contar. trajetória de um homem nascido livre, declarava livres os africanos chegados ao Em 25 de setembro de 1880, o cuja vida devotou a libertar escravos. Brasil a partir daquela data, combatendo renomado abolicionista responde às so- Poeta, jornalista, advogado e ma- a escravização ilegal. licitações feitas pelo jovem amigo Lúcio çom, Gama cumpriu um destino in- Jamais frequentou escolas, pois, de Mendonça, como se depreende das comum numa época impiedosa para segundo ele, “a inteligência repele os linhas iniciais: “Não me posso negar ao pessoas de sua cor e condição. Desem- diplomas, como Deus repele a escravi- teu pedido (...): aí tens os apontamen- penhou um papel pioneiro em vários dão”. Os brasileiros esquecem que, cem tos que me pedes, e que sempre eu os campos. Na literatura, universo exclusi- anos antes de Martin Luther King, um trouxe de memória”. Os “apontamen- vo de brancos, introduziu em 1859 uma negro, aqui, declarou ter um “sonho su- tos” consistiam no relato sobre sua vida, voz até então ausente ao publicar sua blime: as terras do Cruzeiro, sem reis e desde o nascimento e infância na Bahia obra única, as Primeiras Trovas Burles- sem escravos”. até o momento em que os dois homens cas (PTB), coletânea de poemas satíri- Tanto a obra poética de Gama se conheceram em São Paulo, em mea- cos nos quais um autor que se assume quanto os artigos publicados nos prin- dos dos anos 1860. “negro” denuncia os paradoxos políticos, cipais órgãos de imprensa de São Paulo Porém, as motivações do reme- éticos e raciais da sociedade imperial. e da Corte são permeados por elemen- tente e do destinatário, o teor e finalida- Na política, exerceu incontestável tos autobiográficos. Porém, na diminu- de da carta, bem como a própria histó- liderança nas campanhas abolicionista ta correspondência conhecida, pode-se ria do documento parecem simples, mas 31 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

não são. Primeiramente, porque não se trata de mera curiosidade de um ou de confissões espontâneas do outro, em- bora seja evidente a cumplicidade en- tre os dois. Havia, por outro lado, uma premência pessoal e política. Apesar da diferença de idade, os laços de amizade se nutrem de afinidades diversas. Am- bos participaram da fundação do Parti- do Republicano Paulista (1873). Aos 26 anos, o também poeta, jornalista e advogado Lúcio de Men- donça, futuro fundador da Academia Brasileira de Letras, tinha grande pres- tígio em São Paulo, Rio e Minas Gerais. Aos 50 anos, Gama era, nas palavras de José do Patrocínio, o “grande chefe”, “o símbolo da grande causa”. De fato, ha- via mais de dez anos que realizava con- corridas conferências, escrevia artigos polêmicos, encabeçava iniciativas para o alforriamento de escravos promovidas pela influente loja maçônica América de São Paulo. O advogado autodidata se con- vertera em renomada autoridade na ju- risprudência sobre escravidão. Terror Reprodução dos fazendeiros e dos advogados e juí- zes corruptos, sua popularidade na pro- víncia e em outros rincões do Império estava no auge, o número de inimigos também. Sua saúde era frágil. No mo- mento em que escreve a carta, Gama sofria da diabetes que lhe ceifaria a vida em dois anos e talvez já suspeitasse que não veria as reformas que sonhara. Justificava-se, pois, a pressa de Mendonça em obter as informações com as quais redigiria um ensaio bio- gráfico, publicado um ano depois, po- rém sem nenhuma mênção à carta de Gama. Mesmo se em alguns poemas das Primeiras Trovas Burlescas existem alusões à vivência como escravo, o pas- Luiz Gama foi um intelectual negro no Brasil no século XIX. sado do popular abolicionista não era 32 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná ensaio

Reprodução conhecido em minúcias. Foi este o obje- desordeiros (...) em 1838, fora posta em to maior das revelações sobre uma vida prisão; e que tanto ela como os seus na qual perpassam questões candentes companheiros desapareceram. [Segun- do Segundo Império e se entrecruzam a do] meus informantes [esses] «amo- dimensão individual e coletiva. tinados» fo[ram] mandados para fora Gama narra episódios dramáti- pelo governo, que, nesse tempo, tratava cos de sua infância numa Bahia agitada rigorosamente os africanos livres, tidos por revoltas negras e regenciais. Os de- como provocadores. (...) talhes denotam uma memória aparente- Meu pai, não ouso afirmar que mente intacta. Evocando sua filiação, ele fosse branco, porque tais afirmativas, se apresenta como um típico brasileiro, neste país, constituem grave perigo pe- fruto do “casamento”, ao menos sim- rante a verdade, no que concerne à me- bólico, entre África e Portugal, e sugere lindrosa presunção das cores humanas: ter herdado dos pais, e especialmente da (...) [ele] pertencia a uma das principais mãe, a mítica Luiza Mahin, as caracte- famílias da Bahia de origem portugue- rísticas que lhe permitiram enfrentar as sa. Devo poupar à sua infeliz memória barreiras impostas aos negros, escravos uma injúria dolorosa, e o faço ocultando ou não. Ironiza também a hipócrita clas- o seu nome. sificação racial então reinante no país. Ele foi rico; e nesse tempo, muito Desoladora é a revelação de ter sido jo- Obra fundamental para conhecer o legado do pensador extremoso para mim : criou-me em seus gado no cativeiro pelo próprio pai, cujo brasileiro. braços. Foi revolucionário em 1837. Era nome oculta, fato que até hoje alimen- apaixonado pela diversão da pesca e da ta o mistério em torno de se verdadeiro retinto (...) tinha os dentes alvíssimos caça; (...) jogava bem as armas, e mui- nome e identidade. Escreve ele: como a neve, era muito altiva, geniosa, to melhor de baralho (...) esbanjou uma insofrida e vingativa. boa herança (...) e reduzido à pobreza “Nasci na cidade de S. Salvador (...) era quitandeira (...) e mais extrema, a 10 de novembro de 1840, (...) em um sobrado da Rua do Bângala, de uma vez (...) foi presa como suspei- (...) vendeu-me, como seu escravo, a (...) a 21 de junho de 1830, pelas 7 ho- ta de envolver-se em (...) insurreições bordo do patacho Saraiva.” ras da manhã, e fui batizado, 8 anos de- de escravos (...). pois, na igreja matriz [de] Itaparica. (...) Em 1837, depois da [Sa- Seguem-se então, nesta carta que Sou filho natural de uma (...) afri- binada] (...) veio ela ao Rio de Janei- tem as potencialidades de um roman- cana livre, (...) de nome Luíza Mahin, ro, e nunca mais voltou. Procurei-a ce, os dramas rocambolescos vividos pagã, que sempre recusou o batismo e a em 1847, em 1856, em 1861, na Cor- pelo escravo Luiz. A narrativa constru- doutrina cristã. te, sem que a pudesse encontrar. Em ída na carta apresenta outros mistérios Minha mãe era baixa de estatu- 1862, soube, por uns pretos minas (...) que ressaltam a capacidade do autor ra, magra, bonita, a cor era de um preto que ela, acompanhada com malungos de safar-se de situações inextricáveis, 33 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

como quando, aos 18 anos, depois de ter (...) colegas; eles narraram-me também família, deixa conselhos que sintetizam aprendido a ler e escrever, obtém “ardi- fatos semelhantes; eu caí em nostalgia, seus principais valores e crenças, antes losa e secretamente provas inconcussas” chorei e dormi.” de encerrar: “Lembra-te que escrevi es- de ter nascido livre. Gama viveria outra Gama sabia do destino que tas linhas (...) sob ameaça de assassinato. privação de liberdade quando, soldado Mendonça daria a suas confissões, o Tem compaixão de teus inimigos, como da polícia, reagiu às ofensas de um ofi- que nos autoriza a pensar que ele foi eu compadeço-me da sorte dos meus”. cial “insolente”: “Estive então preso 39 uma espécie de coautor da biografia e Dois meses depois, em 26 de no- dias (...) Passava os dias lendo e, às noi- da imagem que desejava legar à poste- vembro de 1870, escreve a José Carlos tes, sofria de insônias; e, de contínuo, ti- ridade, até porque, coincidência ou não, Rodrigues, jornalista brasileiro residen- nha diante dos olhos a imagem de mi- sua carta, hoje conservada na Bibliote- te em Nova York, mostrando-se satis- nha querida mãe. Uma noite (...) em ca Nacional (RJ), só viria a público no feito por ter triunfado das ameaças de sonho, vi que a levavam presa (...) Dei século XX por ocasião de seu cente- morte graças ao apoio popular: “sou de- um grito (...) os companheiros alvoro- nário. Assim, encaminhando-se para a testado pelos figurões da terra, que me taram-se; corri à grade e enfiei a cabeça morte e avaliando retrospectivamente puseram a vida em risco, mas sou es- pelo xadrez (...) narrei a ocorrência aos sua vida, não se furtou em fazer o ba- timado e muito pela plebe. Quando lanço das realizações que mais orgulha- fui ameaçado pelos grandes (...) tive a Reprodução vam o imbatível defensor que advogava casa rondada e guardada pela gentalha”. de graça: “[no foro e na tribuna] ganho Evoca também as perseguições moti- o pão para mim e para os meus, que são vadas por seu envolvimento “em favor todos os pobres, todos os infelizes; e de gente livre [africanos] posta em ca- para os míseros escravos que, em núme- tiveiro indébito”, o que acarretou sua ro superior a 500, tenho arrancado das demissão do cargo de escrivão na Polí- garras do crime”. cia e a nova atividade: “Fiz-me rábula e Vitorioso por um lado, Gama não atirei-me à tribuna criminal; tal é hoje teve uma vida tranquila. Recebeu cons- minha profissão”. tantes ameaças de morte que ele denun- Transcritas e comentadas pela pri- ciava publicamente e em tom provo- meira vez em 2011¹, estas e outras cartas cador, nas páginas dos jornais ou, num possuem uma aura especial, emanando plano mais privado, escrevendo a fami- das linhas traçadas por Luiz Gama, em Ligia Fonseca Ferreira nasceu em São Paulo (SP), liares e amigos. Em 23 de setembro de cujo coração apenas ardia a ideia de li- onde vive. É bacharel em Letras pela Universidade de 1870, deixou uma comovente mensa- berdade, em múltiplos sentidos. g São Paulo (USP) com doutorado na Universidade de gem a seu filho único, Benedito, então Paris 3/Sorbonne. Atua no departamento de Letras com 10 anos de idade, possivelmente da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e é antes de sair para para tratar de algum 1. Cf. Com a palavra Luiz Gama. Poemas, artigos, car- organizadora de Primeiras Trovas Burlescas e outros processo envolvendo propriedade es- tas, máximas. Organização, introdução e notas Ligia poemas de Luiz Gama (2000) e Com a palavra Luiz Gama: o intelectual negro adquire cada vez mais visibilidade. crava. Ignorando se voltaria a ver sua Fonseca Ferreira. Imprensa Oficial de São Paulo: 2011. Gama. Poemas, artigos, cartas, máximas (2011). 34 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná romance | jair ferreira dos santos

O INFERNO DAS FRASES DE EFEITO Nunca é tarde para termos uma infância feliz. Ilustração Bianca Franco Maximo Simpson, poeta argentino 35 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

ara qualquer observador, a cata- A lista do que evitávamos fazer “Escrevi um poema sobre ela. Torcemos os lábios num semi-sorri- pora, um abridor de latas seriam não era pequena e pela calça jeans, a ca- Não me lembro mais dos versos.” so ante essa acusação, surpresos por- mais românticos do que June e eu. misa amarela marcada pelos seios sem “Que pena. Nunca li.” que, agora, ela não era nem amarga PNão tínhamos grandes recursos te- sutiã, eu não podia deduzir grandes coi- “Era sobre uma índia que a tribo nem cruel. atrais, embora mentir, omitir, dissimu- sas. June rodou pela cidade seguindo um local enterrou numa urna entre as raí- “A gente amadureceu, podemos lar fossem jogos aos quais, no passado, roteiro que eu não tinha como decifrar zes da árvore. No outono ela floresce, é conversar sobre qualquer coisa.” ela se entregava com eficiência quan- às cegas. Enquanto isso, comentava a in- como se a mulher renascesse. Simples June me estendeu uma lata de do necessário ou mesmo por um desvio dependência e o aspecto saudável reve- assim. E fora de moda.” Antártica gelada, depois o copo para di- sem nome, e eu também mentia, omi- lados por sua mãe após a morte do ma- Saímos do carro. vidi-la comigo. Os sanduíches de peito tia e dissimulava ao remeter minha opi- rido, que durante décadas de casamento No cheiro seco que sobe da terra de peru foram regados com um molho nião sobre o que via aos cenários certa- infeliz só lhe deixara uma saída — a hi- há rastros diversos — defensivos, adu- de ervas artesanal feito de ricota, limão, mente mais amenos do futuro. Existiam pocondria. Eu ouvia em silêncio, con- bos, lavouras. Perto de onde estamos, sálvia e outras folhas igualmente virtu- porém linguagens de carinho que esca- centrado no incômodo que se tornava sobram pastos vazios, com arbustos e osas. Eventualmente, a uns 200 metros pavam aos modelos habituais (joias, can- aflitivo quando se reprimia algo tão na- matagais nos baixios desgastados pela mais abaixo, víamos passar por uma es- ções, sussurros, o sonho da casa própria), tural quanto estar de olhos abertos. Ela estação. Sob um sol pálido, o planal- trada vicinal um ônibus, um caminhão e assim até mesmo June e eu tínhamos mudou de assunto para continuar falan- to se estende para o poente com vales com restolhos de cana. De repente, pe- ao deus dará o nosso jeito de satisfazer do com a promiscuidade das comadres, e colinas devastados, mais que recober- lotões de pardais sobrevoaram a paineira a demagogia do amor. Que nos é tão ín- agora sobre a rebelião na família de Pa- tos, pela resolução cinza que o ar dá ao na direção contrária à do sol. tima quanto o nosso pâncreas. loma, née Ortúndia, por causa do novo trigo verde. As promessas que fizemos “Me lembro do nosso encontro Eram quatro da tarde — Dante nome que assumira. Parentes a evitavam a uma paisagem. Um pouco da nossa como se fosse ontem. Eu tinha vindo e eu discutíamos como ele podia que- ou não se dirigiam mais a ela, e houve firmeza vem daí. de férias do Rio para visitar Dante, re- O INFERNO DAS brar sua neutralidade de opinião quanto quem, na igreja, a denunciasse ao pastor, June me pediu para tirar do por- ver uns amigos e andava muito por aqui. à PPP do crematório no blog e no Face, que descolou no ‘apóstolo’ Paulo passa- ta malas a caixa de isopor com cerve- Respirar, espairecer. Tem lugares que ali- passando a ser contra — quando ela me gem onde figurava obscuramente o reba- jas no gelo, enquanto ela carregava a viam a nossa desordem. Era dezembro, pegou de carro na Agrotec. Me pediu tismo, permitindo-lhe salvar a fiel para sacola onde havia pães e queijos para não sei, e eu vi uma mulher sair dos tri- para não falar nada, deitar no banco do não a perder a cliente. acompanhar o peito de peru fatiado. lhos e caminhar até mim, sentado no FRASES DE EFEITO carona, inclinado ao máximo para trás, e Quando o carro parou num acos- Arrumamos tudo sobre toalhas duplas banco de madeira que não existe mais fechar os olhos. Eu disse que este era um tamento em declive, eu, me levantando, de papel, depois nos sentamos em al- junto à árvore. Você me perguntou: exercício de autodomínio que as freiras vi que estávamos próximos ao muro la- mofadas de plástico, ela na posição do ‘É você que é o Max Strasser?’ do Educandário faziam comigo na in- teral do cemitério, branco feito nata; à lótus, em meio a um círculo de flores Não esperou a resposta e emendou: ‘Eu fância, e ela respondeu: nossa frente, do outro lado da ferrovia de um rosa vivo que evitamos pisar. li o seu livro.’ “Exatamente, meu, espero que desativada fazia anos, erguia-se esplên- Abrimos os trabalhos com um beijo ‘Talvez. Sobreviveu?’ não tenha esquecido a lição.” dida e rosada a paineira sob a qual nos longo, ansioso. ‘Até agora sim, vamos ver daqui “Que história é essa?” encontramos pela primeira vez. “Você me beija como se eu fosse pra frente. Eu sou a June’. “Nós precisamos fazer aquilo que “Estive aqui há um mês”, falei. desaparecer”, ela disse. “E daí, o que aconteceu?” estamos fingindo que não vamos fazer. É “Eu também. O casario está che- “É mais ou menos isto, conside- “Eu apertei a sua mão, olhan- bobagem, mas precisamos disso”, insis- gando perto do cemitério, se derrubarem rando aonde você foi parar na versão do para as suas sobrancelhas, dois ar- tiu, já com o carro em movimento. a paineira vai ser horrível.” anterior”, não pude deixar de lembrar. cos finos bem desenhados; achei que 36 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná romance | jair ferreira dos santos

diziam coisas esquisitas, uns descami- “A cerveja é a minha cocaína, eu to tempo ela vai durar. / Tá valendo, es- formo. / Eu também não. Tem horas que nhos, e pensei assim, do nada: ‘Essa mu- me sinto poderosa.” tão faltando heróis para o pessoal da chego perto de alguma sugestão, alguma lher vai me foder a vida’”. “Poderosa. Antigamente diria “fo- idade dela. / Para a nossa também. Ali- fiapo de resposta, mas ela me foge igual “Você nunca me falou nisso. derosa.” Higienizaram a sua linguagem, ás, vamos fazer 50 anos, você em outu- uma mosca. / Deixa pra lá. E o nos- Se arrependeu?” quase não ouvi você soltar um palavrão.” bro, eu em novembro. O que que é isso, so grito de guerra, qual era? // A gen... “Se tivesse me arrependido, não “Já sei: eu mudei uma porção 50 anos? / Não sei, mas se você não tem Juntos e berrando: estaríamos aqui.” de hábitos porque mudei de classe problemas de sobrevivência fica mais “Max”, ela disse com uma suavi- blá blá blá, fácil viver, a gente não precisa ter tanta INÚTEL, A GENTE SOMOS INÚTEL. dade estranha, ou pelo menos assim me “O que vc disse mesmo sobre opinião, e olha o mundo um pouco de soava a felicidade nela, “nós tiramos a a cocaína?” cima, de um vazio superior. Da minha Essa valeu a tarde. Os roquinhos sorte grande pela segunda vez. A gente “Eu disse que a cerveja é a minha parte, acabou aquele negócio de ser ma- mixurucas que pareciam o Evangelho. não tem o direito de errar.” cocaína, porque eu me sinto poderosa. caco de mim mesmo, de macaquear o ta- Agora é sério, não vai me esganar, mas E bebeu a Antártica como man- Descobri por acaso.” lento, agora é isto, o que sobrou, e eu não temos de renovar aos poucos o seu guar- davam os Upanishads — com um gole “Sorte sua”, falei, e entrei num sei se quero melhorar muito. / A gente da roupa. Você continua se vestindo mal. demorado. surto de alegria porque enfim estáva- podia comemorar o meu ou o seu ani- / Você também se vestia mal, agora deve “Claro, claro”, eu disse. “Quantos mos conversando sem reticências, sem versário em Montevidéu. Achei um guia ter melhorado ou danou-se de vez, não anos faz que nos encontramos aqui?” premissas ocultas, às claras. Seu projeto turístico da cidade no meio dos seus li- sei. Com dinheiro, faz besteiras maiores. “Vinte anos, cravadinhos.” “madame” tanto quanto a minha poesia vros. Eu conheço Chicago e não conhe- Muda de assunto. / Sim, meu rei. En- “Você está mais lenta, mais orga- e os prêmios sem jaça que ela recebeu ço o Uruguay, que não fica tão longe de contrei o Neno e a Norma na rua an- nizada. Acho bom e bonito.” eram meias verdades. Precisávamos de Foz. / Estive lá umas duas vezes. Acho teontem. Querem que a gente vá com “O nome disso é filho mais a Res- escapes, a cerveja, a prosa vadia que eu que a sua família não vai gostar. Pensa- eles a um bar quase no fim da Espírito ponsabilidade Sócio-Ambiental. É como escrevia para os jornais ou para o Dan- mos nisso uma outra hora. / Foi só uma Santo, o Mula Preta. Enche de estudan- ter a obrigação de acreditar, você precisa te. Entrávamos pela sinceridade porque, ideia. / Sim, nada contra. Mas, June, faz tes. No quarteirão de cima fica o Mula se organizar para ser convincente.” anexo à meia verdade, havia um país vi- dias que estou pra te falar: você ou é es- Manca, é frequentado mais pelos velhos, “Pensei que fosse protestar porque zinho e desconhecido por onde começá- tranha mesmo ou engana bem, porque mas tem o mesmo cardápio: mandioca eu não disse que você está mais bonita.” vamos a andar mais comportadamente eu não vejo o menor traço de menopau- frita com bacon e cervejas importadas. “Eu não sou uma mulher bonita, desde o nosso reencontro. sa em você. A sua lubrificação é perfei- Os velhos tem mais dinheiro. Na deco- eu sou uma mulher interessante.” Tomei um bom gole de cer- ta / Eu sou uma retardada, vai demorar. ração, numa das paredes, tem vários ti- “E a plástica no nariz?” veja para imitá-la, e mastiguei o san- Só fui menstruar aos 15 anos. / Bueno, pos de bengalas com os sobrenomes dos “Foi pra corrigir um defeito, não duíche com voracidade, como se obrigado, vamos ter um playground sem donos gravados. / Vamos lá. Você é a mi- para virar a Angelina Jolie. Aliás, eu estivesse esfomeado. problemas por mais tempo. Me dá outra nha locomotiva social. Daqui a pouco já não gostaria de ser uma mulher bo- “Como está a Vívian?” latinha. Estou bebendo feito um cami- escureceu. / A brisa aumentou. Está es- niiiita. Dá muito trabalho. Meu, pode “Meio tristinha porque a peruca nhoneiro de férias. É porque não con- friando. É uma pena você não gostar de ser uma roubada, se você não tem da Amy Winehouse que ela comprou sigo falar sobre quase nada do que eu criança. Precisava conhecer os filhos do uma personalidade assim à altura da em Londrina, lembra?, está se desfa- vejo em você. / Foda-se — em sua ho- meu irmão mais velho. / O ser huma- sua beleza.” zendo, era artigo vagabundo. Acha que menagem — deixa correr. Mas eu te- no mais desprezível que eu já vi é uma June esvaziou o copo e en- vão matar a cantora ou que ela pode se nho uma pergunta bem clara que você criança, garoto de três anos e meio, qua- laçou os dedos sobre as coxas sem suicidar. Tudo porque em Nova York ainda não respondeu. Por que você não tro. Era meu vizinho no Rio. A manha parecer cansada. tem uma bolsa de apostas sobre quan- escreveu mais poesia? Eu não me con- em pessoa. Não fala, só berra. Não ri, 37 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

não sei do que ele brinca, não tem ami- gos. Manda o pai tomar no cu, chama a mãe de vaca. Só tem duas respostas: não, e NÃÃÃÃÃÃO. É agressivo, de- saforado. Parece que não é burro, mas pras em Foz. / Quem fazia? / Quando não tem medo, já imaginou uma criança não era o Ramon, ele adora comprar es- sem medo, a insolência? É um psicopata peciarias exóticas, aparelhos, novidades em botão. / Você já tentou se colocar no pra cozinha, quando não era ele, era o lugar do menino? Parece criança adota- motorista. / June... / O quê? / Aposto da. / Na época, se me colocar no lugar como você frequentava a Daslu. / Não dele diminuísse o esporro, eu até enca- existe isso de “frequentar” a Daslu, não pressa, nos quais eu não sabia o que era rava. / Ia me esquecendo, amanhã tenho é um bar ou uma igreja. Eu fui lá al- técnica, o que era paixão, o roçar dos lá- que levar minha mãe no dentista. Refa- gumas vezes, comprei roupas com mi- bios parecia um deslizar de seda sobre zer implantes. Ela tem uma resistência à nhas amigas de São Paulo, mas daí eu seda enquanto a língua ia e voltava pe- dor impressionante. / Você também. Ah, li em algum lugar que a loja não vendia los caminhos que chamavam o orgasmo sim, o filhodaputinha usava um bordão: moda, vendia preconceito. Caiu a ficha, e depois de variações que aumentavam ‘Não tô nem aí’, à vera, aos quatro anos. parei com aquilo. / Escureceu. / Culpa a sensação de limite e me abandona- Dá pra segurar? Vai lá, leva a mãmi, um sua. Vem cá. Estou com frio, me abraça. vam em um beco estreito e esfuziante o pouco de submissão aos costumes não Uma lua turca que fosse se ergue- gozo veio como uma calamidade festiva faz mal, as gerações são para isso. Estou ra em algum lugar porque o escuro ficou no seu exagero. Derrubei a cabeça no seu falando porque não sinto a menor falta menos compacto e eu a beijei demorada- colo, mas não esperei os suspiros para- Jair Ferreira dos Santos é escritor e poeta. Paranaense nem de ser filho nem de ser pai. / De- mente, depois ela pegou na minha mão rem, me ajoelhei à sua frente, pedi a ela de Cornélio Procópio, está radicado no Rio de Janeiro pois dessa, acho que vou levar você co- e a levou até os seios por baixo da cami- que tirasse os jeans e a calcinha e que, desde a década de 1970. Autor do clássico O que é pós- migo no Canção pra fazer as compras sa amarela, que eu desabotoei para lam- de pé, apertasse, esfregasse, enfiasse meu moderno (1985), também publicou A inexistente arte da do mês. / Não abusa que eu topo e aí ber, afagar seus mamilos endurecidos, e rosto na sua vagina, que eu, agarrado às decepção (contos, 1996), Breve, o pós-humano (ensaios, pode ser muito pior. / Você tem razão, ela desceu o zíper da minha calça, tirou suas coxas, depois lambi com aplicação, 2003) e Cybersenzala (contos, 2007). O trecho publicado não seria uma boa medida sócio-educa- meu pau para fora curvando-se para su- com devoção, até fazê-la emitir uma cas- pelo Cândido faz parte do romance em progresso O tiva, porque eu mesma não fazia as com- gá-lo com movimentos delicados, sem cata de gemidos sincopados ao gozar. g inferno das frases de efeito. 38 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

ENSAIO | André rodrigues

CLIQUEMES CURITIB A 39 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

André Rodrigues é fotógrafo há mais de 10 anos. Entre 2012 e 2014 fez parte da equipe de fotógrafos do jornal Gazeta do Povo. Atualmente, dedica- se a trabalhos independentes e ao projeto “Voto em Imagens”, em que fotografa eleições. Segundo o autor, a série Iluminados — homem revelado na cidade, publicada nesta edição, revela a cidade por meio do duelo entre luz e sombra. “Uma interação que acontece em cenários arrebatadores e quase de forma icônica”, diz Rodrigues. 40 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

Poemas | marcelo backes Ilustração: Marília Costa

Uma viagem em que percorri o Irã de Norte a Sul, depois de volta ao Norte, POEMAS E BAQUES passando por Persépolis e Pasárgada, me fez voltar aos gazéis de Hafez (1320- 1389), para mim o mais sublime entre os grandes poetas persas. Li várias traduções, alemãs, inglesas e francesas, sabendo desde o princípio que era impossível traduzir seus versos. A experiência foi tão intensa, no entanto, que BASEADOS EM METÁFORAS nasceram alguns poemas fundamentados nas belas metáforas de Hafez, tão grandiosas na pujança oriental que por certo fazem qualquer ocidental – e isso deve ter acontecido inclusive com Goethe, que séculos depois chamaria o persa DE HAFEZ de seu irmão gêmeo – não corar, mas empalidecer de pudor.

fugiu teu coração e eu, não obstante, perdido como uma flecha pairei no ar por um instante depois caí e me perdi no pó do chão

o peixe, o pássaro eu mantive acordado à noite inteira com minha queixa e tu, gazela, distante, bela, não levantaste nem mesmo a cabeça de teu travesseiro

dos teus cachos em desalinho jamais vou me livrar sozinho pois só quem na tua armadilha cai é livre de verdade e não se vai

nem por toda a eternidade saberá o que é o amor quem não tocou com seu nariz rubicundo o pó do piso de um bar imundo

Marcelo Backes é escritor, tradutor, professor da Casa do Saber e autor dos romances O último minuto (2013) e A casa cai (2014), entre outras obras. Vive no Rio de Janeiro (RJ).