Acervo Instituto Memória Brasil – Direção e Autoria: Assis Ângelo Ano II – nº13 – 6/5/2013

Vanzolini, o cientista compositor O Brasil perdeu na noite de 28/4 um de seus maiores herpe- novembro do mesmo ano, no Pasquim –, e que, como sempre, tologistas, Paulo Emílio Vanzolini. Com ele morreu também o contextualiza e enriquece com novas informações. compositor Paulo Vanzolini, autor de clássicos como Ronda e Boa leitura! Volta por cima. Embora tenha sido mais pelo lado musical que Vanzolini gan- Eduardo Ribeiro e Wilson Baroncelli hou manchetes ao longo de sua vida, ele sempre fez questão de se declarar apenas um cientista que compunha de vez em quando. Outra de suas afirmações constantes era no sentido de classificar como “boba” e “piegas” sua composição mais conhecida, Ronda. Sobre ela ser considerada a música-símbolo de , disse uma vez em entrevista, com a ironia que lhe era peculiar: “Que símbolo, que nada! Uma música que fala de uma prostituta que mata o amante não pode ser símbolo de coisa nenhuma”. Para ele, sua melhor composição era Capoeira do Arnaldo (ver letra e link na pág. ). Para os especialistas, entretanto, cada uma no seu estilo, ambas são magistrais, como outras do mestre cientista. Nesta 13ª edição de Jornalistas&Cia Memória da Cultura Popu- lar, para homenagear o amigo Vanzolini Assis Ângelo resgatou do acervo do seu Instituto Memória Brasil entrevista que fez com ele, em 8/4/1990, para o D. O. Leitura, extinto suplemento cultural do Diário Oficial do Estado de São Paulo – reproduzida depois, em Assis, no acervo do IMB, com um exemplar do D. O. Leitura

Partiu em silêncio, sem choro, nem lágrima Por Assis Ângelo - Fotos e reproduções fotográficas de Clarissa de Assis Aquela segunda-feira 15 chegou em- Paulo era assim, carinhoso e reverente 1balada nos braços das quatro estações, com os amigos. como quase sempre ocorre no outono E lá no bar ele ficou até por volta da paulistano. meia-noite batucando na mesa, cantaro- O frio, mais fácil de pegar, não me lar- lando chorinho e molhando a garganta gou desde então. para espantar o frio porque, dizia, “ninguém E ali pelo meio da tarde, um pouco mais, é de ferro”. talvez, o compositor Eduardo Gudin tele- Passaram-se dez dias e dez noites desde fonou para lembrar o compromisso que eu aquela segunda-feira, a mais fria do ano. assumira, de ir ao encontro de Paulo para O dia 25 deu as caras de modo estranho, uma prosa e risadas regadas a cerveja no isto é: negando ar aos pulmões da cidade. Bar do Alemão. O dia 25 amanheceu com o horizonte Eu iria; mas à medida que a noite che- pintado de cinza, de tão poluído. gava e a temperatura caia, eu esmorecia. O dia 25 veio com um aumento absurdo O vento soltava silvos arrepiantes. de ozônio na atmosfera e maus presságios A lua no céu não se via, mas era Nova e incrustados nos seus mistérios. faltavam dez dias para a lua Cheia chegar; Nesse dia Paulo foi levado às pressas ao e ela chegou, coincidentemente, no dia do Hospital Albert Einstein, em cuja Unidade aniversário de Paulo: 25 de abril. de Terapia Intensiva permaneceu por três Não fui ao encontro marcado, mas dias com pneumonia extensa, sem previsão Andrea foi e disse que logo que ele a viu de alta. perguntou por mim. Pneumonia extensa é a que não perdoa,

é a que provoca queda de oxigênio no em biblioteca pública e numa das unidades cobras e lagartos, calejadíssimo, com umas sangue das pessoas. do Centro Educacional Unificado da Prefei- 50 malárias e outros males nas costas, Paulo Portanto, era grave a situação. tura de São Paulo. passou a vida em busca do desconhecido. Mas eu fiquei sabendo disso somente no Lembrei-me também dos festivais de Foram muitas as viagens. domingo 28, começo da noite, através de e- poetas improvisadores realizados no Cen- Ele aprendeu e ensinou. -mail do colega repórter Jotabê Medeiros, tro de Tradições Nordestinas e no Teatro Suas expedições foram todas registradas do Estadão. Denoy de Oliveira, de que participamos em fotos e diários. Às 20h58 postei no blog um texto, cujo como jurados. Os diários, escritos com sua letra bonita, título era Paulo Vanzolini não está em casa. Ele vibrava com os repentes dos vio- somam duas dezenas de volumosos cader- À meia-noite e quatro minutos já da leiros, tanto que um dia até compôs, por nos e foram anexados aos 25 mil volumes segunda – mais uma segunda, e fatídica –, brincadeira, uma estrofe em sextilha com da biblioteca que construiu com os 300 o músico Ítalo Peron telefonou para falar rimas no 2º, 4º e 6º versos ou linhas (AB- mil dólares que recebeu a título de direitos de uma tragédia. CBDB), esta: autorais por suas músicas e que doou ao E fui dormir um sono aperreado. Museu de Zoologia da Universidade de São Às 15h23, postei: Paulo Vanzolini está Eu sou Paulo Vanzolini Paulo, USP, do qual foi diretor por décadas. no céu. Animal de muita fama Uma de suas vontades era permanecer E logo a sua história inteirinha a minha Eu tanto corro no seco à frente do Museu por toda a vida, mas não mente me trouxe. Como na vargem de lama deixaram. Lembrei-me das idas e vindas que fiz à Mas quando o marido chega “Essa política de gabinete é uma porca- sua casa, no Cambuci, e ao museu de Zo- Me escondo embaixo da cama ria!”, me disse uma vez, zangado. ologia, no Ipiranga; dos nossos encontros Paulo conhecia o interior do Brasil como discorrendo sobre cultura popular no Sesc, Pesquisador de campo especializado em a palma das mãos. nº 13 6/5/2013 Pág. 2 A Amazônia, por exemplo, talvez ele só último (4/5) em O Estado de S. Paulo que perdesse em conhecimento para os índios “Vanzolini descobriu uma Amazônia mais e Deus. heterogênea do que imaginava. (...) Ele Ele era incrível. desvendou parte do mistério que cerca a E como como se não bastasse, lembrou origem da biodiversidade amazônica”. Fernando Reinach na sua coluna de sábado Paulo era um cidadão desassombra- 2do, que nunca teve medo de ajudar pessoas perseguidas pelos poderosos do

Acervo pessoal Acervo governo militar, escondendo-as na sua casa e na casa de amigos e facilitando a fuga de quem precisava fugir através das nossas fronteiras. Além disso, ele ainda achava tempo para compor música... Em 2009, o diretor de cinema Ricardo Dias fez o filme Um homem de moral, sobre o compositor Paulo Vanzolini. Antes, o mesmo Ricardo dirigiu os do- cumentários Os calangos do Boiaçu e No rio (BBB) e 5ª e 6ª (DD), com a 1ª e a 3ª (AC) Amazonas, sobre o cientista Paulo Emílio sem rimas. O detalhe nesse tipo de setilha Vanzolini. – ao contrário da setilha de cordel – é que Lembrando os poetas improvisadores essas estrofes terminam com uma “deixa”, ao som de viola de que tanto gostava, arris- que leva forçosamente um dos repentistas quei fazer no bico da pena os heptassílabos a rimar a última linha com a 1ª da estrofe Na Amazônia, pesquisa a bordo a seguir, com rimas entre as 2ª, 4ª e 7ª linhas seguinte, assim:

Vanzolini foi-se embora Vanzolini está acima A última vez em que eu e Paulo estive- Rumo à eternidade Do banal e do rasteiro 3mos juntos foi na noite de 9 de fevereiro Ele deixou obra completa Pela vida ele passou de 2012, no Sesc Santana, onde proseamos E em nós muita saudade Como grande brasileiro sobre música para uma pequena plateia Foi mestre, compositor, Fez o que tinha de fazer que lotou o ambiente onde fora instalada Cantou a alegria e a dor Sem desistir do prazer a exposição Roteiro Musical da Cidade de Com toda liberdade Foi da ciência guerreiro São Paulo, da qual ele participou e foi ho- menageado num espaço próprio com uma Ele lutou por igualdade Com o geógrafo e ambientalista Aziz retrospectiva da sua obra musical. E fez da música oração Ab´Saber, o Ph.D em Herpetologia pela Uni- Embora quase sempre de cara fechada, Da ciência o seu caminho versidade de Harvard Paulo Emílio Vanzolini aparentemente de poucos amigos, ele vivia Fortaleceu-se na razão foi coautor da Teoria de bem com a vida. Vanzolini foi artista dos refúgios, segun- O seu humor era requintado, irônico, Nascido em terra paulista do a qual as mudan- mas simples; o contrário exato do humor Foi ele um bom cidadão ças climáticas em comportado e politicamente correto que florestas contínuas, anda por aí. Fez Erudito e Leilão, como a Amazônia, Ele tinha a língua solta e nunca deixava Ronda e Volta por Cima, fragmentam forma- de opinar, tanto que até depreciava uma de Amor de Trapo e Farrapo, ções vegetais que suas músicas mais conhecidas, Ronda, que Tanta coisa de boa rima causam especiação classificava de “boba” e “piegas”. Fez Vanzolini com ciência e, consequente- Ronda foi gravada por dezenas de intér- Porque teve paciência mente, enriquecem pretes, entre os quais Cauby Peixoto, José Para estudar nosso clima Um dos livros científicos a biodiversidade da Domingos, Waldir Calmon, Emílio Santiago, de autoria de Vanzolini nossa América. , Pedrinho Mattar, Fagner,

Maria Bethania, Ângela Maria, Nora Ney, nos” com “eterno”? (Amor de trapo e farrapo). volto solto pro ar/Contigo livre a bailar/ Clara Sverner, Waleska, Marlene e Carmen E qual cientista faria versos como estes: Enquanto o vento soprar/Sem pensar no Costa. “Eu moro onde mora a raiz/Do chão/No chão” (Raiz). A poesia de Paulo sempre foi especial. escuro calado e feliz/Do chão/No tempo Qual compositor abordaria um mesmo Qual letrista que, além de não ligar pra que eu tinha asa/Piruetei, mandei brasa/ tema com situações diversas e se sairia tão rima, aqui e ali ainda emprega termos Voei no vento do ar/Pra depois voltar/Pro bem, como Vanzolini em Samba erudito conflitantes como “mistifório” e “aprecea”? chão/No fundo do chão eu botei raiz/A (“...Soltei filipetas/Pra te dar um Cadilac/ (Alberto). seiva do chão eu bebi feliz/No escuro da Mas você nem ligou/Pra tanta proeza/Pôs Qual compositor arriscaria rimar “infer- minha casa/Vai me nascer outra asa/E eu um preço tão alto/Na sua beleza/E então como Churchill/Eu tentei outra vez/Você foi demais/Pra paciência do inglês/Aí me cur- vei/Ante as forças dos fatos/Lavei minhas mãos/Como Poncio Pilatos”) e Falta de mim

A homenagem no Sesc Ronda teve dezenas de gravações nº 13 6/5/2013 Pág. 3 (“...Estranha quem amargue a boca/Que já cearense Aldemir Martins (1922-2006). não lhe beija/Que anda em seco os olhos/ As letras e poemas que Paulo fazia não Sem os meus/Com a muita raça que tem/ tinham outro fim senão o de deleite próprio Leva essa farsa/Até o fim/Mas trás escrita e dos amigos. na testa/A falta de mim”)? Um exemplo: quando estourou o escân- Ao mesmo tempo em que gerava um dalo de adultério envolvendo os ministros samba lírico como Cravo branco (“...Ela lhe Bernardo Cabral e Zélia Cardoso de Mello deu o cravo/O outro se ofendeu/Ele olhou o do governo Collor, em outubro de 1990, revólver/Dava tempo e não correu/Dobrou Paulo cantarolou um musiquinha cuja letra os joelhos/Desabou no chão/Com os olhos é esta que vai a seguir, inédita, como inédito redondos/E o cravo branco na mão...”), continua meu livro em que ela foi alojada, gerava também um samba que de lirismo 20 dias que sacudiram o Brasil: não tinha nada, como Suicídio, em que o personagem quer se matar mas o máximo Minha neguinha que consegue, por ter “o corpo fechado”, Hoje eu acordei disposto é provocar um enorme descarrilamento A fazer seu gosto Livro de Assis, ainda inédito na Central. Vamos nos casar Em muitos momentos o humor de Paulo Hoje é o dia Que eu vou dar uma passada soava ácido. De enfrentar a Pretoria No dentista Isso talvez pelo fato de ter sido especial De na pausa ou na agonia E volto já observador das pequenas tragédias da A gente se amarrar vida. E o padre e o cartório Eu reconheci a história rapidamente e Essas observações, aliás, renderam letras Já estão avisados Paulo riu, satisfeito, ao narrar com objeti- de música e poemas que primeiro inseriu O bifê tá contratado vidade em versos a cena envolvendo os num folheto intitulado Lira, no final dos Nada vai faltar amantes, num hotel em Paris. anos 50, e no livro Tempos de cabo, de 1981, Você se pinte Outro exemplo? ilustrado depois (2ª edição, Imprensa Oficial Você se enfeite Num dia qualquer de 1966, o publicitário do Estado de São Paulo; 2009) pelo pintor Você se vista Marcus Pereira, seu sócio no extinto Jogral, junto com Luiz Carlos Paraná, lhe propôs e gravaram, com arranjos de e silêncio cortante. O sol amarelo de poei- gravar um LP com as músicas que fazia e do maestro Portinho, o histórico – e hoje ra tóxica registrou a centena e meia de guardava. raro – LP Paulo Vanzolini – Onze e pessoas presentes ao cemitério onde está A resposta foi curta e grossa: Não! uma capoeira, que traz no repertório péro- também o que restou de Monteiro Lobato e Noutra ocasião, o mesmo Marcus, junto las como Juízo final, Capoeira do Arnaldo, da marquesa de Santos. Apenas um repór- com Paraná, fez a mesma proposta. Praça Clóvis, Cravo branco e Volta por cima, ter de jornal e outro de televisão cobriam A resposta foi curta: Sim. entre outras. discretamente o acontecimento de dor, Eu outubro de 1967, , Mas essa não foi a primeira vez que Paulo tristeza, abandono, impotência. Mauricy Moura, Cristina, irmã do Chico; se deixou gravar em disco. Braços cruzados e mãos nos bolsos eram Adauto Santos, Cláudia Morena e o pró- A primeira ocorreu no dia 3 de agosto de sinais de que o frio estava voltando. prio Carlos Paraná entraram em estúdio 1953, num estúdio da extinta RCA Victor, no . Na ocasião, gravou a até então inédita Ronda, que ocupou o lado B do disco de 78 rpm nº 80.1217, que trazia no lado A a moda de viola Marvada pinga. Ronda foi composta em 1945, ainda no tempo em que o autor era cabo do Exército. Na segunda, 29 de abril, por volta das 318h e aos 89 anos de idade, o homem de moral Paulo Vanzolini foi sepultado sem choro, sem lágrima, sem música, sem Praça Clóvis - Vitor Gonçalves palma, sem nada. O adeus foi mudo. O Em áudio e vídeo Confira nos links a seguir alguns momentos relevantes de Paulo Vanzolini em som e/ou imagem: • Depoimento de Vanzolini a Assis sobre Ronda – http://migre.me/epPel • Poema dele para São Paulo – http://migre.me/epPqS • O documentário Um homem de moral, dirigido por Ricardo Dias – http://migre.me/erim2 • A ciência do bamba, outro documentário sobre Paulo – http://bit.ly/10fUjuo • Depoimento ao programa Provocações, de – http://migre.me/eriCf O cientista Paulo Emílio Vanzolini foi diretor do Amazonas (Instituto Nacional de Pes- Museu de Zoologia pela Universidade de quisas da Amazônia), professor do curso São Paulo, médico formado pela Univer- de pós-graduação em História Social no sidade de Medicina da USP, doutor (Ph.D) Departamento de História da Faculdade

pela Harvard University, livre-docente da de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Abril Press Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP; membro titular da Academia da USP; professor-assistente encarregado Brasileira de Ciências; fellow da John Si- da disciplina Princípios e Métodos Básicos mon Guggenheim Memorial Foundation; da Investigação Científica-Estatística na honorary member da American Society of Faculdade de Medicina da USP, professor Ichthyologists and Herpetologists; fellow de graduação e pós-graduação da disci- da American Association for the Advan- plina Zoogeografia Ecológica da América cement of Science; membro do comitê do Sul no Instituto de Biociências da USP; organizador do Congresso Mundial de professor de pós-graduação na área de Herpetologia; e presidente da Associação Ecologia da Universidade Federal do Brasileira de Estudos Quaternários. nº 13 6/5/2013 Pág. 4 Doutor Paulo Emílio Vanzolini, um Ph.D do samba (íntegra da entrevista publicada na edição nº 95 do D. O. Leitura, suplemento do Diário Oficial do Estado de São Paulo, em 8 de abril de 1990) “Não sou homem de duas profissões. Sou zoólogo. Faço da poesia e da música um hobby.” Mesmo assim, e com a reputação internacional de cientista doutorado em Harvard, Paulo Vanzolini é autor de pelo menos dois clássicos da música popular brasileira: Ronda e Volta por cima. Este texto apresenta um pouco das duas faces do cientista-sambista que, além desta absoluta singularidade, tem a de detestar dar entrevista. “Me dá dor de cabeça”.

Por Assis Angelo

O poeta e compositor popular Paulo Vanzolini, também doutor (Ph.D) em Bio- logia pela Harvard University desde 1951, – Não sou homem de duas profissões. Lembra do primeiro poema escrito, da está completando 67 anos de idade. Viva! Sou zoólogo. Faço da poesia e da música primeira música composta? Nascido no dia 25 de abril de 1923, às 4 da um hobby. – Não. Lembro da primeira música gra- tarde, num aconchegante casarão da ou- Além do mais é cantor, contador de vada, que foi Ronda. trora tranquila av. Brigadeiro Luiz Antônio, histórias e íntimo do gênero repente, e se Ano? em São Paulo, Paulo Vanzolini, ou melhor, apresenta sem firulas e aos moldes dos – 1953, por Inezita Barroso. Ela gravou o dr. Paulo Emílio Vanzolini é hoje um ho- cantadores nordestinos: “Eu sou Paulo Ronda nas costas da Moda da pinga. mem reconhecido internacionalmente pela Vanzolini/Animal de muita fama/Eu tanto Como assim? originalidade e seriedade de suas pesquisas corro no seco/Como na vargem da lama/ – É que ela tinha esquecido que um no campo da Herpetologia, que é a parte Mas quando o marido chega/Me escondo disco tem dois lados, o A e o B. Então, de da Zoologia que trata dos répteis. embaixo da cama”. um lado tinha Moda e do outro acabou O dr. Paulo Emílio Vanzolini é diretor do Enfim, Paulo ou dr. Paulo? entrando Ronda. Museu de Zoologia da Universidade de São – Paulo. Ronda foi gravada, então, pela primeira Paulo desde 1962; o poeta e compositor O fato de ser conhecido pela maioria do vez, em 1953. Quantos anos depois de com- Paulo Vanzolini é autor de verdadeiras público como poeta e compositor não o posta? pérolas da música popular, como Ronda incomoda? – Ah, quase dez. Ela foi composta por e Volta por cima. Até o ano passado, o dr. – Não. Eu sempre fiz música. Comecei a volta de 1945. Paulo Emílio Vanzolini havia concluído seis compor na época de estudante. Nos anos Como surgiu a ideia? mestrados e 21 doutoramentos, publicado 40 eu era o apresentador dos shows da Fa- – A ideia surgiu da boêmia acadêmica, cinco livros e 107 outros trabalhos de cunho culdade de Direito Largo de São Francisco. do bas fond, da prostituição. Bar, chope. científico. Mas, enfim, quem são esses pau- Também cheguei a escrever monólogos e Surgiu de cabeça, sem raiz em realidade los? Super-homens? O dr. Paulo relaxa e ri, a produzir programas de rádio e festivais nenhuma. Tipo Álvares de Azevedo. Enfim, aparentemente assumindo a identidade de música. foi coisa de estudante; de romantismo- do artista: Queda pra arte. Estimulado por alguém -estudantismo mesmo. – Não, não. Somos uma pessoa. especial? Se não houve história na composição, Cientista de dia, de noite compositor, – Não. Sempre fiz essas coisas de forma talvez tenha havido na gravação. Você poeta, boêmio. Explica: espontânea. acompanhou a gravação integral de Ronda? – Sim, acompanhei a gravação. Foi en- apresentado aos músicos. Da nossa parte, graçadíssima, meio por acaso. Eu estava no clima de ansiedade. Dos músicos, não. Eram estúdio, ao lado de Inezita. No Rio. Na hora tarimbados. Inezita começou a cantar e os ficou decidido que Ronda seria incluída no músicos a tocar, todos num só microfone. disco, aliás o primeiro de Inezita Barroso. Achei que não ia dar certo. Deu, ficou bom. Não houve ensaio, não houve nada. Fui Você vê, tudo de improviso e sem repetição. Hoje nem Nélson Gonçalves grava de improviso com os músicos, pois há todo um ritual a ser seguido. – Pois é... E quem eram os músicos que participa- vam da primeira gravação desse verdadeiro clássico da MPB que é Ronda? – Eu não conhecia ninguém. Só depois, já em São Paulo, é que fiquei sabendo que gra- vara com o naipe dos maiores gênios: Garoto Volta por cima - Clóvis de Lima Bola Sete e Menezes no violão; Chiquinho no acordeon e Abel no clarinete. Bola Sete

Partitura de Ronda, para a cantora Márcia Volta por cima - Roberto Silva Volta por cima - nº 13 6/5/2013 Pág. 5 e Menezes faziam o diabo no violão, idem trabalhei no sertão nordestino, conheço vista, isso me dá dor de cabeça. Além do Garoto, de quem me tornei amigo. seu povo, seus hábitos. Eu poderia até dizer mais, a minha área de atuação é, mesmo, Dezenas e dezenas de intérpretes grava- que Capoeira do Arnaldo é uma espécie de a Zoologia. E Zoologia não interessa ao ram Ronda. Na sua opinião, qual a melhor homenagem que fiz ao Nordeste. jornal, à tevê. interpretação? Você toca algum instrumento? Você estu- Mas você não fala à imprensa por que – De todas, duas me emocionam até dou música? Sabe ler partitura? Enfim, qual não quer ou por que não te procuram? No hoje: as de Márcia e Cláudia Moreno. Elas a sua formação? Brasil, aliás, música, para a imprensa, de recriaram Ronda e realizaram gravações – Bom, a minha formação mesmo é modo geral, é boa quando é estrangeira, de primorosas. E um detalhe: em nenhum acadêmica. Fui criado pra ser intelectual. preferência de autoria dos gringos do Norte... momento elas se copiam. De fato, as inter- Sou zoólogo, essa é minha profissão de – Não, não. Vez por outra até que procu- pretações que dão a Ronda são primorosas. fato. Eu sou homem de uma só profissão. ram o compositor Paulo Vanzolini. O campo Ronda foi a primeira gravação. E a se- Agora, musicalmente falando eu sou um de ação de Paulo Emílio Vanzolini é o da gunda? analfabeto. Faço música de ouvido, não Zoologia. Prefiro falar de Zoologia. – Volta por cima, muitos anos depois. toco instrumento nenhum e não sei ler Como é que a Zoologia entrou na sua Esse samba também era pra Inezita gravar, partitura. Mais: não tenho voz, sou muito vida? Influência dos pais? Há biólogos na mas ela não pôde. Ficou pra Noite Ilustrada, desafinado. família? que fez um sucesso danado. Por quê? – Gosto de bicho desde pequeno [conta Das músicas que você fez, quais as de sua – Não sei, talvez não tenha me interes- a lenda que o menino Paulo um dia ganhou preferência? sado. de presente do pai e que com ele foi ao – Há umas quatro, incluindo aí Boca da Embora você seja autor de verdadeiras Butantã, onde se abismou ao ver animais de noite. Mas Capoeira do Arnaldo é a minha maravilhas musicais, dificilmente se lê algu- todos os tipos, que até então considerava melhor música. Ela tem toda uma dimen- ma coisa a seu respeito nos jornais. Em tele- inexistentes; a partir daí teria surgido sua são lúdica. Gosto disso. É uma coisa assim visão, então, acho que você nunca apareceu. paixão pelos répteis]. Os répteis são bichos de contar vantagens, de corpo aberto. – Pois é. Não gosto de aparecer em muito especiais. Aliás, eu lido com bichos Lembra o Nordeste, o nordestino. Aliás, eu noticiário algum. Não gosto de dar entre- como bichos e não como causadores de moléstias ou produtores de dinheiro. O nica, deu-me uma biblioteca inteira antes dos em setembro de 1948 e retornei em meu interesse pelos bichos é totalmente mesmo de eu aprender a ler. Quer dizer, janeiro de 1951. Harvard me foi muito útil. científico. Acho que é assim que deve ser. eu tinha de ser intelectual ou intelectual. E Voltando um pouco à música. Você não é Você doutorou-se pela Harvard... gosto do que sou, do que faço. de compor muito... – Normal. Sou de uma família de intelec- A música... – Na verdade, eu tenho umas 40 músicas. tuais. Fui criado para ser intelectual, como – Está no meu sangue. A poesia também, Eu produzia uma música, um sambinha disse. Fui criado com literatura, música, só que procuro não misturar as coisas [ele por ano. Agora, nem isso. É, como eu disse pintura. Meu pai, um professor da Politéc- não confunde alho com bugalho; aliás, antes, um hobby. Sou zoólogo, diretor do Paulo Emílio Vanzolini, o dr., só está dispo- Museu de Zoologia da Universidade de São nível para a imprensa como Paulo Vanzoli, o compositor, depois das 18 horas, que é a hora em que deixa de lado seus afazeres no Museu]. Qual, na sua opinião, a diferença do bicho para o homem? – O bicho deve ser preservado. E do cientista para o compositor? – O cientista é importante. Você é o único zoólogo da família? – Somos três irmãos, dois homens e uma mulher. Um engenheiro, uma professora de Primeira publicação de Psicologia da USP e eu. Desde criança, eu poesia impressa de Paulo, sempre quis ser zoólogo. Não sei por quê. que se chamou Lira, de Me especializei. Depois de muitos estudos, Paulo Vanzolini Assis Ângelo e Paulo Vanzolini deixei o Brasil em direção aos Estados Uni-

Paulo. Música para mim é divertimento, não Paraná chegou a produzir um disco seu, Chico é quem apresenta esse disco... faço dela profissão. não foi? – É ele e outros amigos, inclusive Marcus Insisto no assunto. Tem músicas inéditas? – Sim, o primeiro e mais importante Pereira. Chico eu conheço desde seus dois – Não. As que eu tinha foram tiradas, disco meu. Com a participação de Adauto anos de idade. Quase um filho. Fui muito raspadas, do baú para o LP [Inéditos de Santos, Cláudia Moreno e Chico Buarque, amigo de seu pai. Paulo Vanzolini] patrocinado pela Comgás entre outros amigos queridos. Foi em 1968. Você é de poucos parceiros, por quê? em 1987. – Não sei. Tem o Gudin (Eduardo), o Inezita tem duas músicas suas. Inéditas. Toquinho e o meu velho e bom amigo de – Pode ser, não lembro. Se existirem, são Campinas Paulo Artur Nogueira, o Paulinho antigas, muito antigas, coisa da época de Nogueira. Um gênio, o Paulinho. estudante, talvez. Você há pouco falou que Capoeira do Por que você compõe tão lentamente? Arnaldo é sua melhor música. Como surgiu – Eu componho lentamente, sim, mas essa música? com toda a sabedoria poética que me é – De farra. Um dia o Arnaldo Predoso possível. É meu jeito. Posso dizer, aliás, que d’Horta, jornalista e pintor amigo, me depois da morte do meu grande amigo Luiz desafiou: “Esse gringo Carybé está por aí Carlos Paraná senti-me desmotivado para ensinando capoeira a todo mundo e você, o continuar compondo. Ele era fabuloso, nos que faz? Nada. Aí então, eu disse: “Pois bem, entendíamos como irmãos. Paraná fazia amanhã eu vou lhe mostrar uma coisa”. E arte sem compromisso com o mercado. Ele, mostrei Capoeira do Arnaldo. Quer dizer, de fato, tinha preocupação com a cultura. essa música surgiu de uma brincadeira, Talvez por isso eu me desse tão bem com pois eu adoro Carybé, que é amigo meu ele. De certa forma, é por causa dele que até hoje. Amigo queridíssimo. não componho há muito tempo. Por isso Essa entrevista de Vanzolini a Assis também foi Além de falar com insuspeita propriedade é que não tenho inéditas. reproduzida no Pasquim em novembro de 1990 a respeito de cobras e lagartos e outros ha- nº 13 6/5/2013 Pág. 6 bitantes do chamado mundo animal, você uma espécie de cantador, repentista. Qual arte maravilhosa. Há toda uma magia no trabalhou em rádio com Cacilda Becker e a importância que esse tipo de arte tem em canto do cantador, pois ele não só tem Gregório Barrios. De farra? sua vida? preocupação com a rima, preocupa-se – De certa forma. Foi bom. Eu me di- – Ah, taí uma coisa de que gosto muito: também com a forma. vertia muito. Mas trabalhei em televisão o repente. O cantador nordestino faz uma A Paraíba é arsenal de cantador. também, antes do advento do teipe. Pra Cacilda eu produzia um programa do tipo “correio sentimental” e para o Gregório, um musical. E na tevê? – Ah, eu produzi o 1º Festival da Velha Guarda, em 1954. Esse festival teve a par- ticipação de , , Jacob da USP Emolo-Jornal Francisco do Bandolim, J. Cascata, Leonel Azevedo e outros cobrões da época. Produção para a Tupi. Também foi de minha responsabili- dade o primeiro show de cantador de viola nordestino. Pra esse “festival” eu trouxe Dimas e Otacílio Batista, por exemplo. Na época, época do 4º Centenário de São Paulo, eu tinha um programa. Levei Dimas e Otacílio para cantar. A apresentação deveria se encerrar as 23h, encerrou-se as 4h. Ao vivo, uma beleza! Em Capoeira do Arnaldo você se revela

– É, Zé Limeira era de lá. Zé Limeira é Muita gente boa, como o geógrafo Azis O primeiro, Tempos de cabo, e o segundo, meu “santo”. Mas em São Paulo ainda há Ab’Saber, já disse que você é “um cientista Lira, de Paulo Vanzolini. Era para ser Lira de gente boa na estrada, como Tião Carreiro classe Alfa”, classe essa com quadro hoje em Paulo Vanzolini. O autor conta que lamen- e Pardinho. Esses dois tem um trabalho extinção. tou a publicação a partir daí e que nunca autêntico, embora não sejam cantadores – Bobagem. Sou apenas um profis- mais cometerá “erros” desse tipo. aos moldes do Nordeste. Mas são autên- sional que se dedica seriamente às suas Perdemos nós. ticos, representam a música do interior atividades. de São Paulo. Além desses cabras, tem o O biólogo Clodowaldo Pavan diz que você João Pacífico, que é um deus, autor, se não é um homem de muitos instrumentos. bastasse, de Cabocla Tereza. – Os répteis pra mim são instrumentos Se você quisesse ou pudesse, quem selecio- de trabalho. Talvez ele tenha se referido naria para integrar um LP? Paulo Vanzolini a isso. faria parte dessa seleção? Falamos do poeta muito pouco nesta – Ah, não sei. Só sei que começaria a entrevista... selecionar autores do tempo de Silvio Cal- – A poesia é importante, mas a pesquisa das. O próprio Silvio, com Chão de estrelas, científica é muito mais. Portanto... Precisa- Orestes Barbosa, Ataulfo Alves e , mos ser práticos. entre outros. Noel para mim é um mestre, -x- o único que chegou perto dele foi Chico Na verdade, o poeta Paulo Vanzolini não Buarque. Sinceramente, não sei se sobraria se sente muito à vontade para falar da sua espaço nas 12 faixas para alguma coisa de poesia. Lembra que, nos anos 1950, publi- Paulo Vanzolini. cou dois livros com alguma “coisa poética”.

Capoeira do Arnaldo Letra e música de Paulo Vanzolini (a preferida do autor) Quando eu vim da minha terra Doze santos sem milagre Pra me alisar pêlo fino Mas tinha que fazer força Passei na enchente nadando Quinze suspiros sem ai E arrepiar pêlo grosso Porque as moça num queria Passei frio, passei fome Trinta marido contente Que eu saí da minha terra Passei dez dias chorando Me perguntando “já vai?” Sem cisma, susto ou sobroço Vamo-nos embora, i-êi (...) Por saber que de tua vida E o padre dizendo às beata Pra sempre estava passando “Milagre custa, mas sai” Vamo-nos embora, i-êi (...) Eu sai da minha terra Nos passo desse calvário Por ter sina viageira Tinha ninguém me ajudando Vamo-nos embora, i-êi (...) Quando eu vim da minha terra Cum dois meses de viagem Tava como um passarinho Vim fazendo tropelia Eu vivi uma vida inteira Perdido fora do bando Quando eu vim da minha terra Nos lugar onde eu passava Sai bravo, cheguei manso Vamo-nos embora, ê ê Num sabia o que é sobroço Estrada ficava vazia Macho da mesma maneira Vamo-nos embora, camará Sabença de burro velho Quem vinha vindo, voltava Estrada foi boa mestra Presse mundo afora, ê ê Coragem de tigre moço Quem ia indo, não ia Me deu lição verdadeira Presse mundo afora, camará Oração de fechar corpo Quem tinha negócio urgente Coragem num tá no grito Pendurada no pescoço Deixava pro outro dia E nem riqueza na algibeira Quando eu vim da minha terra Rifle do papo-amarelo Padre largava da missa E os pecado de domingo Veja o que eu deixei pra trás Peixeira de cabo de osso Onça largava da cria Quem paga é segunda-feira Cinco noivas sem marido Medalha de Padre Ciço E os pai de moça donzela Vamo-nos embora, i-êi (...) Sete crianças sem pai E rosário de caroço Mudava de freguesia Confira em http://migre.me/epOz6 o próprio Vanzolini cantando a música.

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