Canibalismo, pacificação e monitoramento ELIANE K. CARVALHO 1

Apesar de recente, a disseminação do uso da internet, conectando pessoas dos mais diferentes lugares sem a necessidade de deslocamento físico, a partir de uma comunicação instantânea, alterou o fluxo – no que diz respeito tanto à quantidade quanto à velocidade – de informações e a própria maneira de interagir com as pessoas, as coisas e o planeta. O próprio funcionamento da internet modificou-se nestas duas últimas décadas, assimilando cada vez mais um caráter participativo, com a maior possibilidade de modificação de conteúdos e interação, além de sua função inicial de troca de informações. 2 Em um primeiro momento, a internet se mostrou, inclusive, um campo seguro para expressar os desejos e pensamentos menos convencionais, ou incomuns, e unir aqueles que compartilhassem desses desejos e pensamentos. Nesse sentido, se mostrou um campo propício para realizar (ou viabilizar) fantasias proibidas ou consideradas desviantes – ainda que não fossem ilegais –, virtual ou concretamente. Atualmente a internet (ou o espaço digital) é cada vez mais um espaço preferencial e mais garantido para conhecer pessoas, não tão incomuns, fazer contatos profissionais e amorosos. Os anarquistas (e anti-capitalistas, de modo geral) também encontraram no cyber espaço uma maneira de possibilitar encontros, trocar informações e mesmo organizar ações ao redor do planeta (SEBASTIÃO JR, 2013; PASSETTI, 2013). Este uso da internet logo foi assimilado ao chamado movimento antiglobalização no final dos anos de 1990, início dos anos 2000, articulando protestos simultâneos ao redor do planeta pelo meio virtual e com a utilização de novas tecnologias de comunicação, e que, em pouco tempo, tornaram- se movimentos por alternativas, a partir de demandas pontuais (SEBASTIÃO JR, 2013). 3 Dessa maneira, o meio virtual foi caracterizado por alguns tanto quanto um campo

1 Pesquisadora no Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária) do PEPG-CS/PUCSP e doutoranda em Ciências Sociais pela PUC/SP, com a pesquisa Sexo no mercado: produções de verdade , orientada por Dorothea Voegeli Passsetti, com financiamento do CNPq. 2 Sobre o desenvolvimento e funcionamento da internet cf. dissertação de mestrado de Luíza Uehara Araújo (2013). 3 Para mais reflexões acerca dos movimentos na atualidade ver também o boletim mensal do Nu-Sol: hypomnemata 118 e hypomnemata 121; Disponíveis em: http://www.nu- sol .org/hypomnemata/hypomnematas.php.

de possíveis liberdades como também propício a perigos; campo de manifestações públicas e de conjunção de grupos ou indivíduos tidos como subversivos. uma história emblemática No ano de 2001, Armin Meiwes, com 41 anos na época, técnico de informática nascido na Alemanha, escreveu uma mensagem – sob o codinome Franky – em um fórum da internet direcionado à "simpatizantes de canibalismo", em que buscava por um "rapaz jovem entre 18 e 30 anos" 4 para ser esquartejado e devorado (DW, 03/12/2003).5 Entre as diversas pessoas que responderam ao anúncio, segundo Meiwes, apenas uma pessoa correspondia, ainda que parcialmente, às suas expectativas. Apesar da idade, o engenheiro Bernd Jürgen Brandes, de , com então 42 anos, se ofereceu ao abate e os dois marcaram um encontro na casa de Meiwes em Rotenburg (AFP, 03/12/2003). Brandes e Meiwes tiveram relações sexuais, Brandes tomou sedativos com álcool e ambos tentaram comer seu pênis flambado. Quando o primeiro já se encontrava desacordado, Meiwes o matou e cortou seu corpo em pedaços que foram guardados no freezer e quase completamente comidos nos 10 meses seguintes. Desde o primeiro contato até a concretização da fantasia – como definiu Meiwes – tudo foi realizado com consentimento de ambos, inclusive com um registro em vídeo que confirmava o consentimen to (DW, 03/12/2003). No ano seguinte, em 2002, Meiwes voltou a procurar por novos voluntários, mas foi denunciado por um estudante universitário em Innsbruck, na Áustria (JAG, 14/12/2009). Em alguns meses a polícia chegou à casa de Armin Meiwes, onde encontrou parte da carne de Brandes no freezer, além do registro em vídeo. Em dezembro de 2003 ele foi levado à juri. Em 2004, sentenciado a 8,5 anos por homicídio culposo e, em 2006, após apelação da promotoria, foi sentenciado a prisão perpétua por assassinato com motivação sexual. Apesar da apelação de Meiwes, em 2008 a mesma sentença foi anunciada sem

4 Em um dos primeiros anúncios disponível no arquivo do antigo fórum Cannibal Café [http://web.archive.org/web/20011222054639/http://necrobabes.org/perroloco/forum/messages/460.html] “Franky” buscava por um jovem entre 18 e 25 anos, posteriormente ele ampliou um pouco a faixa etária. 5 Maiores referências sobre a história podem ser encontradas em minha dissertação de mestrado (CARVALHO, 2008), mas para o presente artigo selecionei apenas algumas notícias que apresentam informações repetidas também em outros meios.

direito a outras apelações (RW, 30/01/2004; FOLHA/REUTERS/A. PRESS, 24/10/2008). A dificuldade em julgar o caso se deu pelo fato da chamada vítima ser voluntária e porque a prática de canibalismo não se constitui como crime na Alemanha. A explicitação dessa dificuldade – apresentada pela mídia desde o início do julgamento 6 – mostra que a grande questão no caso era saber como punir um ato que não era punível pelo código penal, mais ainda, que o grande horror se referia especificamente ao canibalismo. Apesar dos argumentos da defesa, a busca incessante por parte da promotoria foi arrumar argumentos para uma maior penalização diante da falta de argumentos. Para além da representação no tribunal, o caso teve repercussão mundial a partir da rapidez com que as informações circulavam na mídia eletrônica. As notícias foram traduzidas de agências internacionais, como a alemã Deutsche Welle , quase que imediatamente. O público, diante dos vereditos, foi convocado a dar a sua opinião de qualquer parte do planeta. No Brasil, por exemplo, A DW brasileira lançou uma enquete que colocava a questão: “Você concorda com a sentença de 8,5 anos de prisão para o canibal de Rotenburg? Caso contrário, que pena você daria?” (RW, 30/01/2004) 7. Na mesma época, o site da BBC lançou para aos seus leitores a questão: Was the cannibal verdict right? (BBC-NEWS, 30/03/2004). Apesar de argumentos sólidos que refutassem a chamada periculosidade de Meiwes – como, por exemplo, o fato dele ter liberado outras possíveis vítimas que desistiram quando já estavam prontas para o abate – e do fato de haver um consentimento por trás da prática, o veredito, dado em 2006, manteve-se. Enquanto não foi detectada nenhum desvio mental em Armin Meiwes (BBC, 29/12/2003), o que poderia resultar em sua inimputabilidade (e solucionar o problema moral colocado pelo seu ato), a promotoria delegou a inimputabilidade à Brandes. Apesar de morto, foi declarado que Brandes não tinha condições mentais de decisão e que, portanto, o mesmo foi conduzido por Meiwes para satisfazer aos desejos deste último (JAG, 30/07/2014). Na penitenciária Meiwes foi solicitado a colaborar com a investigação do que se

6 Em notícia veiculada à agencia Deutsche Welle encontra-se a seguinte constatação: “If Brandes willingly offered himself to Meiwes for slaughter, as the video evidence of the whole incident suggests, then the problem, according to legal experts, is that a charge carrying a possible life sentence will be difficult to apply.” (DW, 03/12/2003)

suspeitava serem outros dois crimes de canibalismo, realizados em 1998 e 2000 (REINHARDT, 22/10/2007). Na prisão de segurança máxima de Kassel, engajou-se no partido verde alemão, em 2007, liderando um grupo de discussão sobre políticas ambientais, além de ter se tornado vegetariano (HALL, 20/11/2007; OBST, 30/07/2013). A situação criada por Meiwes e Brandes e os seus desdobramentos são emblemáticos para se pensar o funcionamento da sociedade hoje. A crença do anonimato na rede virtual libera os seus usuários a exporem suas fantasias mais secretas. Possibilita a estes viver, virtualmente, uma vida que não se consegue, não se pode ou não se quer viver concretamente. Os sites de relacionamento, desde fóruns de discussão até, recentemente, as redes sociais, necessitam apenas que se depositem as informações pessoais, que ficarão disponíveis para serem vistas, agregadas, espiadas, selecionadas, consultadas, 24hs por dia, de maneira mais ou menos restrita (de acordo com os desejos de seus usuários), mas que, a qualquer momento, cada vez mais, podem ser rastreadas e disponibilizadas para órgãos específicos em nome da segurança. Se por um lado, este meio virtual convoca a participação por meio da exposição do que antes era tido como campo privado, ele também incita a vigilância de todos por cada um e intima os “usuários de bem” a denunciar quaisquer atividades suspeitas. E permite, ainda, que cada um dê sua opinião, seu julgamento, acerca das práticas e acontecimentos alheios. Os acontecimentos expostos na internet não ficam mais restritos aos lugares onde estes ocorreram, mas tomam, rapidamente, uma dimensão planetária, para além de fronteiras físicas. As opiniões midiáticas misturam-se com as opiniões do público geral e se retroalimentam. O alcance da mídia, torna os acontecimentos ainda maiores em sua amplitude e, ao mesmo tempo, estes mesmos acontecimentos podem dissolver-se e se tornarem obsoletos com a mesma rapidez e intensidade que foram conhecidos. O meio virtual, portanto, possibilita o desenvolvimento de relações muito próprias do que Deleuze chamou de sociedade de controle. O indivíduo, produto do pensamento iluminista, torna-se na atualidade um ser dividual, não mais restrito a uma identidades

7 Durante a pesquisa fiz um acompanhamento da enquete nos dias 13/03/2006; 18/09/2004; 06/08/2008, entretanto, ao acessar novamente o link em 30/07/2014 a enquete ou seus resultados não estavam mais

determinada, mas portador de uma série de identidades, inclusive fantásticas, possibilitadas pelo meio virtual. As massas, que também podem ser contabilizadas virtualmente, dissolvem-se em amostras, dados, mercados ou 'bancos'.” (DELEUZE, 2004, p. 222). Para além disso, há um controle exercido por meio de acessos à informação, em que, por meio de senhas ou criptografias, se determina quem pode ter acesso à o que . Deleuze, entretanto, não supõe que a emergência desta nova forma de controle tenha suprimido outras técnicas – como por exemplo o a técnica disciplinar de encarceramento –, segundo Edson Passetti, “a sociedade de controle não destrói o que a antecedeu: redimensiona o domínio de maneira mais sutil.” (2004, p. 154). Se a sociedade disciplinar investia na produtividade do corpo e na docilidade política, como anunciara Foucault,

na sociedade de controle pretende-se integrar as forças políticas por meio da materialidade econômica em fluxos, fazendo com que cada um participe criando e reformando programas.(...) Integra por meio da cultura de telecomunicação, da cultura de informática pela internet, uma emergente cultura biotecnologia que funde trabalho, lazer, corpo, política, escola. Trata-se de uma nova diversidade de assujeitamentos que se anuncia, ultrapassa e cria na instantaneidade, na atualização de outra virtualidade. (PASSETTI, 2003, p. 250)

Como alertou Passetti, estas relações não são restritas ao meio virtual, seus efeitos incidem diretamente sobre o corpo e a vida de cada um. Armim Meiwes, que expôs seus desejos em um fórum da internet, concretizou-os e foi denunciado a partir do meio virtual, por alguém disposto a cumprir seu papel de cidadão-polícia. Já no interior do estabelecimento prisional, Meiwes foi convocado (e aceitou) a participar da solução de outros casos, do qual ele teria uma certa familiaridade, uma vez que foi identificado como um monstro especifico – ainda que o fato dele ter tido uma experiência com canibalismo, não faça dele exatamente um expert no assunto, como se houvesse uma “natureza canibal” reconhecida por todos os seus adeptos: ou seja, um disponíveis, mas podem ser conferidas em CARVALHO, 2008.

monstro constituído, que reconheceria e compreenderia facilmente os seus. Assumiu sua celebridade monstruosa respondendo ao desejo comum de se estar em evidência, ainda que os desdobramentos desta exposição espetacular, não o tenham agradado quando se viu objeto de demonização para o entretenimento alheio 8 e quando, tarde demais, percebeu que a pena que desejada a monstros como ele são, irremediavelmente, perpétuas. Ainda assim, possivelmente com a ilusão de que sua pena poderia ser de alguma maneira amenizada, a participação de Meiwes não ficou restrita à cooperação policial. Engajou-se na causa ambiental, aderindo ao Partido Verde e tornando-se líder no grupo de discussão criado dentro da penitenciária. Armin Meiwes, teria declarado aos seus colegas de cela (HALL, 20/11/2007; OBST, 30/07/2013), que aprendeu que, o que se faz com os animais na indústria pecuária é

8 Antes mesmo do fim do julgamento, a história repercutiu em músicas, série e filmes. A banda alemã fez a música Mein Teil (Meu pedaço/Minha parte), em 2004, inspirada na história. A música chegou às paradas de sucesso no país (AFP, 27/08/2004) e, em 2006, Armin Meiwes mencionou processar a banda, mas, aparentemente, o processo não teve maiores desdobramentos (DW STAFF, 12/01/2006; BLABBERMOUTH, 12/01/2006; VÁRIOS, 09/2012). Outra banda, a sueca Bloodbath , inspirou-se em Brandes para criar a música “Eaten” (comido), também em 2004. Diferente das músicas, um filme inspirado na história de Armin Meiwes com Bernd J. Brandes, chegou a ser banido na Alemanha. [http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u58410.shtml] Em 2006, foi lançado o filme Rohtenburg , direção de Martin Weisz, sobre uma estudante na Alemanha que investiga o caso de um canibal muito similar a Meiwes, como tema de sua tese.[http://www.imdb.com/title/tt0448400/?ref_=nm_knf_t2] A pedido de Meiwes, o Tribunal Estadual de Kassel julgou que os direitos individuais de Meiwes deveriam se sobrepor aos direitos artísticos. No ano de 2009, o Supremo Tribunal Federal da Alemanha revogou a decisão, considerando que, por não distorcer os fatos conhecidos publicamente, a história não violava os direitos de Meiwes [http://www.imdb.com/title/tt0448400/trivia? ref_=tt_ql_2].O filme alemão Cannibal , de Marian Dora, foi lançado em vídeo em 2006. Ele deveria ser uma parceria com Ulli Lommel, mas por considerar o filme muito “sangrento”, Lommel preferiu fazer sua própria versão, afastando-se um pouco da história de Meiwes, com o filme “Diary of a Cannibal”, lançado, também em vídeo, em 2007 [http://www.imdb.com/title/tt0826817/ ]. Nos EUA, o curta An Appetite for Bernard Brady , de 2005, com direção de Chris Mangano, também foi inspirado na história de Meiwes, assim como o filme alemão de : Dein Herz in Meinem Hirn (Seu coração no meu cérebro), também de 2005. A série britânica The IT Crowd , também teve como tema no episódio “Moss and the German”, em 2007, a história de um alemão que procurava pessoas para serem comidas a partir de sites na internet [http://www.imdb.com/title/tt1095845/]. Além disso, como esperado, foram publicados diversos livros sobre o assunto, um deles escrito pelo próprio cientista forense envolvido no caso. Entre eles: Chloe Castleden. Issei Sagawa, Armin Meiwes, Robin Gecht: Three Cannibal Killers. Constable & Robinson, 2011; Günter Stampf. Interview with a Cannibal: The Secret Life of the Monster of Rotenburg . Phoenix Books, Inc., 2008 (do jornalista que entrevistou Meiwes na prisão); Lois Jones. Cannibal: The True Story of the Maneater of Rotenburg. Mass Market Paperback, 2005; Manfred Risse. Abendmahl der Mörder: Kannibalen Mythos und Wirklichkeit. Gebundene Ausgabe, 2007, (do cientista forense envolvido no caso); também o documentário: Der Kannibale von Rotenburg (2 DVDs) http://www.amazon.de/Der-Kannibale-von-Rotenburg- DVDs/dp/B0016KCBT6/ref=cm_cr_pr_product_top;

tão terrível quanto o próprio ato que ele mesmo havia cometido. Se em tempos remotos, no ocidente, Deus era a única possibilidade de salvação para as almas perdidas, na atualidade o ambientalismo assume como a nova religião e mesmo como a única salvação possível do planeta. (CARNEIRO, 2012) o insuportável Há, nesta história, no entanto, um elemento que ultrapassa o contexto atual da sociedade. O elemento insuportável do canibalismo. Retomando a emergência deste conceito, nos voltamos à época da chamada colonização dos índios na América do Sul. A palavra canibal tem origem na deformação da palavra Karib, pelos espanhóis, que chamavam de kanibales alguns povos guerreiros das antilhas que praticavam a antropofagia como parte de seu ritual de guerra (CLASTRES, 1995). O fato é que o termo passou a ser empregado de acordo com os interesses dos conquistadores, especialmente em um momento em que a matança e captura dos índios havia sido proibida neste território. Justificava-se assim, a morte dos índios ou a sua escravização, atribuindo a eles a prática, considerada insuportável, do canibalismo. Michel de Montaigne (1987), no século XVI, assim como Lévi-Strauss (2006), no século XX – cada um a seu modo – elaboram reflexões acerca dessa prática insuportável aos ocidentais. O primeiro justifica que na mesma época, atrocidades mais terríveis – como por exemplo a tortura – eram praticadas com frequência na Europa, sobre os corpos ainda vivos, enquanto que os canibais, ao menos matavam os seus antes de comê-los, poupando- lhes o sofrimento do corpo. Lévi-Strauss, por outro lado, e um texto intitulado “somos todos canibais”, mostra que a prática de ingerir partes do corpo de nossa própria espécie, é uma prática comum em nossa sociedade, porém respaldada pela assepsia científica; neste sentido, a única coisa que justificaria o horror das práticas indígenas guerreiras, seria o fato de atribuir a estes uma inferioridade selvagem e subjugá-los. Mas para além deste ranço colonial com relação ao canibalismo, no caso específico de Meiwes e Brandes, a grande questão é que, diante do controle sobre a vida e o corpo,

ainda que por um momento, estes tomaram suas vidas e seus corpos para si. A internet, abre espaço para a incorporação das diferenças e, hoje em dia, mesmo do ponto de vista econômico, estas diferenças parecem ser muito bem vindas na medida em que revitalizam o próprio mercado. Mas essa diferença deve ser segura. Essa assimilação, portanto, respaldada em um discurso de pacificação, se dá na medida em que as diferenças não provoquem grandes rupturas ou que causem grandes convulsões, ao contrário. Estas diferenças são incorporadas, na medida em que possam amenizar conflitos latentes. Neste sentido, o insuportável está sempre relacionado com o que rompe. rupturas hoje Apesar de vivermos hoje em tempos de condutas conservadoras, revestidas de roupagens high-tech , ou no que Passetti (2007) chamou de conservadorismo moderado , algumas práticas mostram-se ao menos como possíveis rupturas. Recentemente, as chamadas jornadas de junho de 2013 fizeram emergir práticas que se tornaram insuportáveis às condutas moderadas. O estopim foi um ato, chamado também pelos meios virtuais, contra o aumento da tarifa de ônibus em vinte centavos. (PASSETTI, 2013) A expectativa para o ato é de que fosse algo pacífico, moderado talvez, mas diante de inconformidades que ultrapassavam uma questão financeira, o ato, tomou proporções maiores, na medida em que diante da violência da polícia a ação explosiva dos nomeados black blocs , fez repercutir um movimento de dimensões inesperadas na atualidade. A participação popular é algo assimilado, e mesmo desejado, na prática de governo dos corpos. A grande mídia, não no primeiro momento, mas em pouco tempo reconheceu como legítima as manifestações populares. Diante da sua legitimidade, muitos dos primeiros manifestantes, e outros incorporados a posteriori, assumiram o seu papel de cidadãos de bem em troca da sua participação pacífica e reconhecimento pela chamada sociedade. Neste momento, houve uma também uma ruptura entre os tipos de manifestantes: os manifestantes de bem, que apenas queriam seus direitos reconhecidos, e aqueles que

estavam interessados em uma algo mais significativo. Se a princípio estes últimos foram úteis ao movimento no que diz respeito ao seu alcance popular, no segundo momento eles passaram a ser, de certa forma, demonizados tanto pela mídia, como dentro do próprio movimento. (PASSETTI, 2013) Aqueles identificados como vândalos e depois como black bloc passaram a sofrer uma espécie de caça às bruxas . A própria assimilação do termo black bloc pela mídia, ainda que esse venha denominar uma tática específica anarquista, apareceu como uma construção mais favorável à identificação do insuportável (IDEM). As manifestações populares, em si, desde que pacificadas, coordenadas, e inofensivas, não são completamente indesejadas na medida em que dão à população uma sensação de saciedade de direitos e vozes, deixando intocados os velhos mecanismos de controle e usurpação da vida de cada um. Nesta caça às bruxas , a internet, que serviu e serve como meio aglutinador de pessoas e de coordenação de manifestações, passou também, com um afinco maior a servir de campo de monitoramento e controle daqueles considerados perigosos. Tal como a atribuição da prática de canibalismo a certos povos indígenas pode justificar o seu extermínio ou escravização, a identificação (real ou não) de pessoas com as táticas black bloc tem justificado prisões preventivas, saques policiais em casas de suspeitos, reforços policiais, etc. O perigo da tática black bloc , num determinado momento, está na não submissão à ordem necessária para a continuidade de governos e hierarquias. Da ameça da tomada de suas vidas por cada um, sem regulamentações externas. De certa maneira, foi essa mesma ameça que tornou tão insuportável o ato voluntário de canibalismo quanto as intervenções não-passivas dentro das manifestações. Entretanto, não podemos ignorar, que passadas os primeiros avanços, a própria tática black bloc , parece servir também à celebridade de mártires partidários e a estratégias ainda nebulosas. Essas práticas tem sua vitalidade quando propiciam rupturas na ordem, assim como foi com a relação própria de Meiwes e Brandes, mas que tal qual os primeiros, não esteve livre de uma captura que passou antes por uma criminalização.

O insuportável pode ser definido como tal, enquanto coloca um perigo não às pessoas, mas à própria sociedade. Se não fosse assim a própria existência da polícia seria rejeitada por grande parte da população, quando o que vemos é justamente a disseminação de uma conduta policial. Por outro lado, os meios de governo e os amantes da ordem, associam diretamente a sua “agressividade” a um perigo para as pessoas na sociedade de modo geral. Foi assim, por exemplo, que o horror diante da morte de um jornalista por manifestantes, em um acidente trágico e estúpido, se sobressaiu diante das intervenções violentas contínuas da polícia dentro e fora das manifestações. É desse modo que se justificam represálias, contenções e maximização de penas. É dessa maneira que se dá a construção dos monstros. Enquanto houver algo de incapturável em práticas quaisquer, essas serão sempre assimiladas dentro de uma monstruosidade que possa justificar o seu extermínio – como aconteceu com os genocídios indígenas, a prisão perpétua de Armin Meiwes e a recente captura e prisão de manifestantes que foram relacionados de alguma maneira com as práticas black bloc (e estes são escassos exemplos). Os investimentos contra os chamados monstros , a caça às bruxas, fazem-se em nome da paz social. A grande expectativa na construção de uma dada cultura da paz , tão disseminada nas mídias e entre organizações não governamentais e intelectuais a serviço da ordem, justifica o controle e monitoramento minucioso da vida de cada um, por meio de informações e dados que cada pessoa é intimada a fornecer (e as vezes o fazem voluntariamente) sobre si mesmos. O espaço virtual incita a uma participação; coloca-se como um facilitador das intrincadas relações sociais; apresenta-se como solução para realização de fantasias e garante o encontro de pares. Enquanto se mantém no campo da fantasia, do platônico, os desejos mais obscuros permanecem inofensivos. As rupturas, as transformações, os riscos aparecem quando tomam o corpo concreto e escapam da virtualidade, e para isso, menos do que um espaço virtual é preciso alguma coragem. Nesse sentido, o espaço virtual tende a pacificar desejos, ou mesmo cria novos desejos que não se realizam além do espaço virtual. Os monitoramentos e rastreamentos eletrônicos, por outro lado, dificilmente satisfazem-se com os efeitos virtuais. A sua existência tem como objetivo primeiro incindir

sobre os corpos para além da virtualidade. Desta maneira, até as fantasias virtuais são identificadas como perigosas e devem constar nas medidas de prevenções. Aliás, alimenta- se de cada uma dessas vidas eletrônicas – subrepticiamente – até que algum acontecimento extraordinário o acesse. A internet, desse ponto de vista, é sem dúvida algum um lugar seguro para provocar pacificações. Para que exista uma ruptura qualquer, não há lugar seguro e, no entanto, elas não deixam de existir e para os amantes da paz e da ordem, isso é insuportável.

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