Canibalismo, Pacificação E Monitoramento ELIANE K

Canibalismo, Pacificação E Monitoramento ELIANE K

Canibalismo, pacificação e monitoramento ELIANE K. CARVALHO 1 Apesar de recente, a disseminação do uso da internet, conectando pessoas dos mais diferentes lugares sem a necessidade de deslocamento físico, a partir de uma comunicação instantânea, alterou o fluxo – no que diz respeito tanto à quantidade quanto à velocidade – de informações e a própria maneira de interagir com as pessoas, as coisas e o planeta. O próprio funcionamento da internet modificou-se nestas duas últimas décadas, assimilando cada vez mais um caráter participativo, com a maior possibilidade de modificação de conteúdos e interação, além de sua função inicial de troca de informações. 2 Em um primeiro momento, a internet se mostrou, inclusive, um campo seguro para expressar os desejos e pensamentos menos convencionais, ou incomuns, e unir aqueles que compartilhassem desses desejos e pensamentos. Nesse sentido, se mostrou um campo propício para realizar (ou viabilizar) fantasias proibidas ou consideradas desviantes – ainda que não fossem ilegais –, virtual ou concretamente. Atualmente a internet (ou o espaço digital) é cada vez mais um espaço preferencial e mais garantido para conhecer pessoas, não tão incomuns, fazer contatos profissionais e amorosos. Os anarquistas (e anti-capitalistas, de modo geral) também encontraram no cyber espaço uma maneira de possibilitar encontros, trocar informações e mesmo organizar ações ao redor do planeta (SEBASTIÃO JR, 2013; PASSETTI, 2013). Este uso da internet logo foi assimilado ao chamado movimento antiglobalização no final dos anos de 1990, início dos anos 2000, articulando protestos simultâneos ao redor do planeta pelo meio virtual e com a utilização de novas tecnologias de comunicação, e que, em pouco tempo, tornaram- se movimentos por alternativas, a partir de demandas pontuais (SEBASTIÃO JR, 2013). 3 Dessa maneira, o meio virtual foi caracterizado por alguns tanto quanto um campo 1 Pesquisadora no Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária) do PEPG-CS/PUCSP e doutoranda em Ciências Sociais pela PUC/SP, com a pesquisa Sexo no mercado: produções de verdade , orientada por Dorothea Voegeli Passsetti, com financiamento do CNPq. 2 Sobre o desenvolvimento e funcionamento da internet cf. dissertação de mestrado de Luíza Uehara Araújo (2013). 3 Para mais reflexões acerca dos movimentos na atualidade ver também o boletim mensal do Nu-Sol: hypomnemata 118 e hypomnemata 121; Disponíveis em: http://www.nu- sol .org/hypomnemata/hypomnematas.php. de possíveis liberdades como também propício a perigos; campo de manifestações públicas e de conjunção de grupos ou indivíduos tidos como subversivos. uma história emblemática No ano de 2001, Armin Meiwes, com 41 anos na época, técnico de informática nascido na Alemanha, escreveu uma mensagem – sob o codinome Franky – em um fórum da internet direcionado à "simpatizantes de canibalismo", em que buscava por um "rapaz jovem entre 18 e 30 anos" 4 para ser esquartejado e devorado (DW, 03/12/2003).5 Entre as diversas pessoas que responderam ao anúncio, segundo Meiwes, apenas uma pessoa correspondia, ainda que parcialmente, às suas expectativas. Apesar da idade, o engenheiro Bernd Jürgen Brandes, de Berlin, com então 42 anos, se ofereceu ao abate e os dois marcaram um encontro na casa de Meiwes em Rotenburg (AFP, 03/12/2003). Brandes e Meiwes tiveram relações sexuais, Brandes tomou sedativos com álcool e ambos tentaram comer seu pênis flambado. Quando o primeiro já se encontrava desacordado, Meiwes o matou e cortou seu corpo em pedaços que foram guardados no freezer e quase completamente comidos nos 10 meses seguintes. Desde o primeiro contato até a concretização da fantasia – como definiu Meiwes – tudo foi realizado com consentimento de ambos, inclusive com um registro em vídeo que confirmava o consentimen to (DW, 03/12/2003). No ano seguinte, em 2002, Meiwes voltou a procurar por novos voluntários, mas foi denunciado por um estudante universitário em Innsbruck, na Áustria (JAG, 14/12/2009). Em alguns meses a polícia chegou à casa de Armin Meiwes, onde encontrou parte da carne de Brandes no freezer, além do registro em vídeo. Em dezembro de 2003 ele foi levado à juri. Em 2004, sentenciado a 8,5 anos por homicídio culposo e, em 2006, após apelação da promotoria, foi sentenciado a prisão perpétua por assassinato com motivação sexual. Apesar da apelação de Meiwes, em 2008 a mesma sentença foi anunciada sem 4 Em um dos primeiros anúncios disponível no arquivo do antigo fórum Cannibal Café [http://web.archive.org/web/20011222054639/http://necrobabes.org/perroloco/forum/messages/460.html] “Franky” buscava por um jovem entre 18 e 25 anos, posteriormente ele ampliou um pouco a faixa etária. 5 Maiores referências sobre a história podem ser encontradas em minha dissertação de mestrado (CARVALHO, 2008), mas para o presente artigo selecionei apenas algumas notícias que apresentam informações repetidas também em outros meios. direito a outras apelações (RW, 30/01/2004; FOLHA/REUTERS/A. PRESS, 24/10/2008). A dificuldade em julgar o caso se deu pelo fato da chamada vítima ser voluntária e porque a prática de canibalismo não se constitui como crime na Alemanha. A explicitação dessa dificuldade – apresentada pela mídia desde o início do julgamento 6 – mostra que a grande questão no caso era saber como punir um ato que não era punível pelo código penal, mais ainda, que o grande horror se referia especificamente ao canibalismo. Apesar dos argumentos da defesa, a busca incessante por parte da promotoria foi arrumar argumentos para uma maior penalização diante da falta de argumentos. Para além da representação no tribunal, o caso teve repercussão mundial a partir da rapidez com que as informações circulavam na mídia eletrônica. As notícias foram traduzidas de agências internacionais, como a alemã Deutsche Welle , quase que imediatamente. O público, diante dos vereditos, foi convocado a dar a sua opinião de qualquer parte do planeta. No Brasil, por exemplo, A DW brasileira lançou uma enquete que colocava a questão: “Você concorda com a sentença de 8,5 anos de prisão para o canibal de Rotenburg? Caso contrário, que pena você daria?” (RW, 30/01/2004) 7. Na mesma época, o site da BBC lançou para aos seus leitores a questão: Was the cannibal verdict right? (BBC-NEWS, 30/03/2004). Apesar de argumentos sólidos que refutassem a chamada periculosidade de Meiwes – como, por exemplo, o fato dele ter liberado outras possíveis vítimas que desistiram quando já estavam prontas para o abate – e do fato de haver um consentimento por trás da prática, o veredito, dado em 2006, manteve-se. Enquanto não foi detectada nenhum desvio mental em Armin Meiwes (BBC, 29/12/2003), o que poderia resultar em sua inimputabilidade (e solucionar o problema moral colocado pelo seu ato), a promotoria delegou a inimputabilidade à Brandes. Apesar de morto, foi declarado que Brandes não tinha condições mentais de decisão e que, portanto, o mesmo foi conduzido por Meiwes para satisfazer aos desejos deste último (JAG, 30/07/2014). Na penitenciária Meiwes foi solicitado a colaborar com a investigação do que se 6 Em notícia veiculada à agencia Deutsche Welle encontra-se a seguinte constatação: “If Brandes willingly offered himself to Meiwes for slaughter, as the video evidence of the whole incident suggests, then the problem, according to legal experts, is that a murder charge carrying a possible life sentence will be difficult to apply.” (DW, 03/12/2003) suspeitava serem outros dois crimes de canibalismo, realizados em 1998 e 2000 (REINHARDT, 22/10/2007). Na prisão de segurança máxima de Kassel, engajou-se no partido verde alemão, em 2007, liderando um grupo de discussão sobre políticas ambientais, além de ter se tornado vegetariano (HALL, 20/11/2007; OBST, 30/07/2013). A situação criada por Meiwes e Brandes e os seus desdobramentos são emblemáticos para se pensar o funcionamento da sociedade hoje. A crença do anonimato na rede virtual libera os seus usuários a exporem suas fantasias mais secretas. Possibilita a estes viver, virtualmente, uma vida que não se consegue, não se pode ou não se quer viver concretamente. Os sites de relacionamento, desde fóruns de discussão até, recentemente, as redes sociais, necessitam apenas que se depositem as informações pessoais, que ficarão disponíveis para serem vistas, agregadas, espiadas, selecionadas, consultadas, 24hs por dia, de maneira mais ou menos restrita (de acordo com os desejos de seus usuários), mas que, a qualquer momento, cada vez mais, podem ser rastreadas e disponibilizadas para órgãos específicos em nome da segurança. Se por um lado, este meio virtual convoca a participação por meio da exposição do que antes era tido como campo privado, ele também incita a vigilância de todos por cada um e intima os “usuários de bem” a denunciar quaisquer atividades suspeitas. E permite, ainda, que cada um dê sua opinião, seu julgamento, acerca das práticas e acontecimentos alheios. Os acontecimentos expostos na internet não ficam mais restritos aos lugares onde estes ocorreram, mas tomam, rapidamente, uma dimensão planetária, para além de fronteiras físicas. As opiniões midiáticas misturam-se com as opiniões do público geral e se retroalimentam. O alcance da mídia, torna os acontecimentos ainda maiores em sua amplitude e, ao mesmo tempo, estes mesmos acontecimentos podem dissolver-se e se tornarem obsoletos com a mesma rapidez e intensidade que foram conhecidos. O meio virtual, portanto, possibilita o desenvolvimento de relações muito próprias do que Deleuze chamou de sociedade de controle. O indivíduo, produto do pensamento iluminista, torna-se na atualidade um ser dividual, não mais restrito a uma identidades 7 Durante a pesquisa fiz um acompanhamento da enquete nos dias 13/03/2006; 18/09/2004; 06/08/2008, entretanto, ao acessar novamente o link em 30/07/2014 a enquete ou seus resultados não estavam mais determinada, mas portador de uma série de identidades, inclusive fantásticas, possibilitadas pelo meio virtual. As massas, que também podem ser contabilizadas virtualmente, dissolvem-se em amostras, dados, mercados ou 'bancos'.” (DELEUZE, 2004, p.

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