UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

FLAVIO DA ROCHA BENAYON

REVOLUÇÃO EM 1930: SENTIDOS EM DISPUTA NA CONSTITUIÇÃO DA HISTÓRIA

CAMPINAS, 2017

FLAVIO DA ROCHA BENAYON

REVOLUÇÃO EM 1930: SENTIDOS EM DISPUTA NA CONSTITUIÇÃO DA HISTÓRIA

Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestre em Linguística.

Orientadora: Profa. Dra. Suzy Maria Lagazzi

Este exemplar corresponde à versão final da Dissertação defendida pelo aluno Flavio da Rocha Benayon e orientada pela Profa. Dra. Suzy Maria Lagazzi.

CAMPINAS, 2017 Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CAPES ORCID: http://orcid.org/0000-0002-7965-4239

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624

Benayon, Flavio da Rocha, 1992- B431r BenRevolução em 1930 : sentidos em disputa na constituição da história / Flavio da Rocha Benayon. – Campinas, SP : [s.n.], 2017.

BenOrientador: Suzy Maria Lagazzi. BenDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.

Ben1. Análise do discurso. 2. Movimentos sociais - Brasil - 1920-1930. 3. Designação (Lingüística). 4. Memória coletiva - Brasil. 5. Brasil - História - Tenentismo - 1922-1934. 6. Brasil - História - Revolução, 1930. 7. Brasil - História - Aliança liberal - 1930. I. Lagazzi, Suzy,1960-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Revolution in 1930 : senses in dispute in the constitution of history Palavras-chave em inglês: Discourse analysis Social movements - - 1920-1930 Designation (Linguistics) Collective memory - Brasil Brazil - History - Tenentism - 1922-1934 Brazil - History - Revolution, 1930 Brazil - History - Liberal alliance, 1930 Área de concentração: Linguística Titulação: Mestre em Linguística Banca examinadora: Suzy Maria Lagazzi [Orientador] Vanise Gomes de Medeiros Guilherme Adorno de Oliveira Data de defesa: 12-05-2017 Programa de Pós-Graduação: Linguística

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BANCA EXAMINADORA:

Suzy Maria Lagazzi

Vanise Gomes de Medeiros

Guilherme Adorno de Oliveira

Claudia Regina Castellanos Pfeiffer

Luciana Nogueira

IEL/UNICAMP 2017

Ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Nilda Rocha e Flavio Rodrigues, obrigado pelo esforço, sacrifício e confiança, além do amor e segurança, que me possibilitaram constituir um percurso acadêmico e de vida.

Ao IEL, pelo espaço que proporcionou encontros extraordinários. Agradeço pelas derivas que tiveram ocasião nas aulas, a partir da exposição do confronto singular de diferentes professores com os saberes que se arriscavam a enunciar; às conversas acompanhadas de cafés; às reuniões para a escrita de cartas-manifesto nos tempos de luta – que perduram; às discussões, que não devem cessar.

Em meu percurso pelo IEL, a presença de Suzy Lagazzi, minha orientadora, foi imprescindível. Agradeço pelas aulas instigantes, pelas leituras atentas de minha dissertação – que foram determinantes para a constituição de meu trabalho – e pelos textos de sua autoria, que me consumiam vorazmente, possibilitando-me uma compreensão outra da prática materialista. Também sou grato por sua leveza e humanidade enquanto orientadora.

Aos professores da UNICAMP, especialmente aos que tive a oportunidade e o prazer de escutar em suas aulas provocantes: Suzy Lagazzi, Lauro Baldini, Mónica Zoppi, Nina Leite, Sheila Elias, Eduardo Guimarães e Aquiles Tescari. Agradeço também a Juanito Avelar, por me permitir acompanhá-lo como PED e pelas excelentes aulas na graduação. Sou igualmente grato aos funcionários da UNICAMP, pela eficiência e disposição.

Às valiosas amizades constituídas na pacata Barão Geraldo. Além de serem preciosas pela relação singular criada, foi o motivo fundamental para que a alegria existisse no cotidiano de Campinas. Pelas conversas, pelos cafés, pelas brigas, pelos cinemas, pelas viagens, pela embriaguez, não posso deixar de nomear aqueles com quem pretendo manter uma amizade por um tempo infinito, para além do trabalho acadêmico: Ricardo Bezerra, Vinícius Castro, Aline Machado, Mirielly Ferraça, Arnaldo de Lima, Felipe Nascimento, Renata Brandão, Guilherme Adorno, Lilian Braga, Sérgio Toledo.

Em meu percurso pela UFF, espaço por onde circulei antes de chegar ao IEL, tive a oportunidade de me deparar com encontros inesquecíveis. Agradeço, especialmente, à Vanise Medeiros, por ter me encantado quando entrei em contato, pela primeira vez, com a Análise do Discurso, em suas aulas na graduação. Posteriormente, por desenvolver comigo uma pesquisa de iniciação científica, cujo objeto retorna até hoje. Sou grato, igualmente, por seu bom humor e seriedade com a prática discursiva.

O LAS-UFF foi fundamental para o começo de minha formação como analista do discurso. Os encontros e grupos de estudo que debatiam animadamente em torno da teoria fundada por Pêcheux tiveram grande importância para mim. Agradeço, particularmente, pelo contato com a sedutora psicanálise, através das aulas de Bethania Mariani, e às frutíferas aulas de Silmara Dela Silva.

Tenho certeza que encontrarei, por anos a fio, os amigos de Niterói, do LAS-UFF, que continuam sempre carinhosos, divertidos e especiais. Espero poder continuar num movimento constante de influência mútua, especialmente com Sarah Casimiro, Milene Leite, Wellton da Silva, Fernanda Mello, Elisa Guimarães, André Cavalcante e Mariana Vita.

Em particular, agradeço aos amigos do Rio, que me acompanham por muitos anos e que, incontáveis vezes, parte de suas histórias se confundem com as de minha vida. A esses amigos, Daniel Capecchi, Ísis Paes e Flávio Max, espero que, apesar da distância, sempre tenhamos a afinidade e a ternura que nos une. Outros amigos, por quem também tenho grande carinho e com quem espero contar até o fim da vida, são Gabriel Andrade, Juliana Barros, Priscilla Fróes, Iana Assumpção e Ana Paula Caamaño.

Faço um agradecimento especial a Gabriel Aires, um amigo muito próximo contra o qual as intempéries da vida foram muito violentas e cruéis. Seu nome fica aqui cravado.

Agradeço à minha família.

Agradeço à banca, constituída por Suzy Lagazzi, Vanise Medeiros e Guilherme Adorno. Obrigado pela preciosa leitura e pela possibilidade de debate.

Agradeço à Capes pela bolsa concedida. Esse financiamento foi decisivo para a constituição deste trabalho.

RESUMO

A partir da Análise do Discurso Materialista, esta dissertação questiona a história institucionalizada sobre a designação revolução, em 1930, na formação social brasileira. Esse período foi marcado pelo movimento revolucionário que levou Getúlio Vargas ao poder da República após a deposição de Washington Luís e impedimento de posse de Júlio Prestes. Ao recortar e analisar sequências discursivas enunciadas ao longo da década de 1920 e em 1930, defendo o caráter contraditório que constitui a designação revolução. Em 1930, posições em relação complexa constituíram o movimento revolucionário, produzindo efeitos de sentido em disjunção. Essa relação complexa compareceu na produção de determinações discursivas em disputa para revolução, principalmente em torno das designações luta, ordem e eleições, analisadas a partir da enunciação de Vargas, Borges de Medeiros e Juarez Távora, que configuram posições representativas do movimento. Em minhas análises, destaca-se também o retorno de uma memória de revolução ao longo da década de 1920. Essa designação, sob diferentes formas linguísticas, compareceu na Revolta do Forte de Copacabana, na guerra civil do , no movimento revolucionário paulista e na Coluna Prestes. Alguns desses eventos filiam-se ao tenentismo, de forma que a memória dessas manifestações, não somente pela designação revolução, é atualizada no movimento revolucionário. Além de alguns tenentistas comporem a fileira militar do evento de 1930, designações e práticas retornaram, possibilitando a chegada de Vargas ao poder. Esse retorno atualizou o prestígio do tenentismo que estava em jogo, ao menos, desde a Coluna Prestes. Outros eventos também foram atualizados em 1930, como a formação de uma coligação que tentou produzir uma ruptura na política do café com leite, o retorno da questão da fraude eleitoral e a constituição de um movimento que tentou impedir a posse de um candidato do Partido Republicano. Os sentidos de revolução enunciados por Vargas foram os institucionalizados, contudo outras possibilidades de significação foram produzidas no período, como as que comparecem na enunciação de Carlos Prestes, cuja posição de sujeito produz sentidos em relação de oposição à oficial. Devido ao retorno de diferentes significações de revolução, à produção de sentidos em disjunção no interior do movimento revolucionário e à disputa de sentidos pelo mesmo evento a partir de posições em relação de oposição em 1930, defendo, neste trabalho, o caráter dividido do objeto revolução.

Palavras-chave: Análise do Discurso. Revolução em 1930. Movimento revolucionário. Retorno da memória de revolução. Objeto dividido.

ABSTRACT

From the Materialistic Discourse Analysis point of view, this dissertation inquires the institutionalized history about the revolution denomination, in 1930, inside Brazilian social formation. This period was marked by the revolutionary movement, which took Getúlio Vargas to the Republic power after Washington Luís deposition and Júlio Prestes impediment. Cutting out and analysing discoursive sequences uttered over the1920s and 1930s, I defend the contradictory nature that constitutes revolution denomination. In 1930, positions in complex relation constituted the revolutionary movement producing disjunctive effects of meaning. This complex relation attended in competitive discursive determinations produced for revolution, mainly over fight, order and elections denominations analyzed inside Vargas, Borges de Medeiros and Juarez Távora utterances, which set the movement representative positions. The analysis, therefore, points to the split nature of revolution. In my analysis, the return of a memory of revolution over the 1920s also stands out. This denomination, in different linguistic forms, attends in the Revolt of Copacabana’s Fort, in the civil war in Rio Grande do Sul, in the paulista revolutionary movement and in Coluna Prestes. Some of these events join the lieutenant movement, what makes the memory of these demonstrations, not only by revolution denomination, to be improved as revolutionary movement. Apart from the fact that some lieutenants join the military row of 1930 event, denominations and practices return, what allow the advent of Vargas to the power. This return refreshed the prestige that the lieutenant movement held. Other events were also improved in 1930 such as the formation of a coalition which tried to break the coffee and milk politics, the return of election fraud topic and the creation of a movement that tried to stop a candidate from the Republican Party to take office. The meanings of revolution uttered by Vargas were institutionalized, however other possible meanings were produced in that moment, such as the ones attending in Carlos Prestes utterance whose subjective position produces opposite meanings against the official ones. Because different meanings of revolution return and disjunctive meanings inside the revolutionary movement are produced and also because there is a competition of meanings over the same event from opposite related positions in 1930, I defend, in this work, the split nature of the revolution object.

Keywords: Discourse Analysis. Revolution in 1930. Revolutionary movement. The return of the revolution memory. Split object.

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ...... 9 I. INTRODUÇÃO ...... 15 a) A contradição na formação social ...... 15 b) A contradição no discurso ...... 18 c) Corpus discursivo e questões de ancoragem ...... 24 II. ALIANÇA LIBERAL: REVOLUÇÃO INSTITUCIONALIZADA ...... 29 a) O equívoco na luta: entre as eleições e as armas ...... 29 b) A divisão na Aliança Liberal: a ordem e o regime postos em questão ...... 38 c) Lei, eleição e fraude...... 45 d) A revolução em Vargas ...... 52 e) A revolução em um tenentista: Juarez Távora...... 61 f) Uma regularidade sobre o movimento revolucionário em diferentes posições ...... 64 III. REVOLUÇÕES APAGADAS PELO DISCURSO OFICIAL ...... 71 a) Revolução na década de 20 em quatro atos ...... 76 a.i) Ato I: a revolta no Forte de Copacabana ...... 76 a.ii) Ato II: revolucionários em armas no Rio Grande do Sul...... 85 a.iii) Ato III: o movimento revolucionário paulista ...... 90 a.iv) Ato IV: um encontro revolucionário sob a Coluna Prestes ...... 99 b) A designação movimento revolucionário em 1930 ...... 108 c) Revolução e revolucionários no manifesto de Prestes ...... 113 d) Outros sentidos de revolução e revolucionários em Prestes ...... 116 IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 119 BIBLIOGRAFIA DO CORPUS DISCURSIVO ...... 124 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 128

ANEXO 1 ...... 131

9

APRESENTAÇÃO

O evento de 1930 ainda não acabou. É possível ouvir ecos distantes de vozes silenciadas junto às palavras enunciadas pelas bocas que narram a história institucionalizada. E a cada fragmento escutado, formas outras de contar a história são enunciadas, de modo que a leitura dominante a cada vez torna-se um pouco fragilizada, ainda que a narrativa oficial resista. Nesse mesmo tempo de escuta outra, joga-se com a possibilidade de uma fissura, mínima, que seja, na dominância exercida sobre as múltiplas instâncias que estruturam a atual configuração da formação social, pois abre-se um minúsculo espaço para sentidos marginais, desafiando a arrogância do poder que se perpetua pela enunciação do sentido legítimo. Dessa forma, a relação entre forças contraditórias concorre para ser transformada.

A história institucionalizada conta que em 3 de outubro de 1930 teve início, no Rio Grande do Sul, o movimento revolucionário. Pouco tempo depois, Washington Luís, presidente na ocasião, foi deposto por uma junta de militares que, no começo de novembro, passou o poder a Getúlio Vargas, que se tornaria chefe do governo provisório. Após sua posse, Carlos Prestes lançou o manifesto “Aos revolucionários do Brasil”, em que uma revolução diferente da produzida pelo movimento revolucionário era significada. A memória de Prestes filiava-se fortemente ao movimento designado por tenentismo, o qual enunciava um desejo de revolução desde 1922, no levante do Forte de Copacabana, e, também, em 1924, na revolução paulista e na Coluna Prestes. Alguns tenentistas, em 1930, juntaram-se a Vargas, compondo a coligação política nomeada de Aliança Liberal. Fez parte dessa Aliança o líder político de Vargas, Borges de Medeiros, que foi governador do Rio Grande do Sul em 1923, ocasião em que os revolucionários rio-grandenses, liderados por Assis Brasil, combateram o governo suspeitamente eleito. Assis Brasil compôs também a Aliança Liberal. Os sentidos de revolução, na década de 1920 e em 1930, são constituídos em uma configuração complexa da formação social no Brasil.

A complexidade que envolve a constituição de um objeto, entretanto, não se opõe a um efeito de evidência. Quando lemos revolução, essa designação parece óbvia, pois significa a partir de determinada posição. No entanto, quando a revolução ganha corpo na história, a obviedade de diferentes posições é materializada em espaços de confronto. Revolução, em 1930 e ao longo da década de 1920, funciona como um objeto dividido, mobilizando forças em disputa. Contudo, uma significação, a institucionalizada, ocupa o lugar de evidência quando se olha para trás e se enuncia movimento revolucionário, apagando as 10

outras revoluções em jogo e a história de suas relações. Porém, esse apagamento não é total, pois algo resta na língua que perpetua o passado enquanto memória. Assim, as disputas de forças pretéritas estão na forma material que restou e em sentidos atualizados. Ao seguir os rastros que podem ser analisados, especialmente em 1930, ao menos algumas questões podem ser colocadas: que apagamentos funcionam no movimento revolucionário? A partir de que divisões esse movimento foi constituído? Quais revoluções se confrontam nas condições de 1930? Que memórias de revolução são atualizadas?

Os rastros que se perpetuam em um evento continuam a nos contar sobre ele e sobre as disputas que o antecederam. Essas disputas produzem um efeito sobre o presente. Os modos pelos quais as leituras sobre o evento de 1930 são conduzidas, isto é, como certos sentidos organizam diferentemente o arquivo, ao menos quando se diz do movimento revolucionário, são indícios das disputas que continuam indefinidamente a se travar. Acerca das forças em concorrência que constituem os diferentes gestos de leitura, Pêcheux afirma sobre sua relação com o arquivo: “Seria do maior interesse reconstruir a história deste sistema diferencial dos gestos de leitura subjacente, na construção do arquivo, no acesso aos documentos e à maneira de apreendê-los [...]”. E, ainda: “Assim começaria a se constituir um espaço polêmico das maneiras de ler, uma descrição do ‘trabalho do arquivo enquanto relação do arquivo com ele-mesmo, em uma série de conjunturas, trabalho da memória histórica em perpétuo confronto consigo mesma’.” (PÊCHEUX, 2010, p.51, grifos do autor).

Não direcionei minha análise para pensar a história do sistema diferencial dos gestos de leitura, contudo mostra-se produtiva a relação entre esse sistema e o evento. As diferentes tradições de leitura sobre um evento colocam no campo de uma história institucional as relações de forças que são o sintoma de conflitos surgidos no passado. Assim, as disputas que ocorrem entre os variados gestos de leitura não são formas de ler melhor o evento, mas são um modo de perpetuar as lutas sobre as quais uma memória oficial impôs o esquecimento. A existência do evento coloca em circulação modos em concorrência de organização do arquivo, de forma que as disputas que tiveram ocasião em 1930 também encontram lugar nas leituras sobre 30 que se perpetuam. Assim, não é de se surpreender que a cada ano uma nova obra seja publicada sobre aquele período, trazendo à tona deslizamentos.

Os espaços polêmicos das maneiras de ler configuram-se a partir de posições de sujeito, constituídas pela ação da ideologia. As diferentes clivagens subterrâneas – isto é, diferentes recortes orientando distintos percursos de sentidos – que organizam o arquivo, apontam para as divergências entre posições constituídas a partir de formações discursivas em 11

relação de contradição. Desse modo, acessar o arquivo se dá a partir de uma posição, e, sendo assim, aquela que se perpetua como legítima é uma entre outras. Outras leituras possíveis podem comparecer, tal qual um sintoma, em novas leituras que se fazem constantemente sobre o passado. Esse é o indício de que o passado está presente. Algo do pretérito grita, retorna insistentemente, sendo reformulado, demonstrando seus outros modos de ser narrado, através das vozes que clamam por ser escutadas. Equivocamente, a fala dessas vozes não possui pré-existência.

O retorno de uma memória e os gestos de leitura que a significam têm implicações com o presente. Walter Benjamin formulou dezoito teses e dois apêndices sobre o conceito de história. Recorto o primeiro apêndice a fim de refletir sobre a inscrição do passado no tempo contemporâneo:

O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios. O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um rosário. Ele capta a configuração em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. [...] (BENJAMIN, 1987 [1940], p.232). Retomo o momento em que Benjamin afirma que um fato “se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios”. A memória histórica, que frequentemente é lida com uma regularidade religiosa, que se configura como um fato, é resultado dos sentidos legitimados, das memórias estabilizadas e dos arquivos oficializados que as narrativas dominantes estabeleceram na duração dos eventos que produziram a atual configuração social. Os fatos históricos não existem independentemente, como fósseis a serem descobertos. Entretanto, nas equações da história, os sentidos dominantes podem ruir, e o acontecimento de outrora, que permanece a ressoar, pode ser ressignificado, derivando para outros dizeres. E assim, um novo acontecimento pode determinar novos fatos históricos, de modo que os fatos são construções produzidas a partir de posições ideológicas. Os tempos de hoje reclamam sentidos nos tempos de outrora, fazendo significações derivarem. Daí que, conforme Benjamin, o historiador consciente1 “capta a configuração em que sua própria época entrou em contato com uma

1 Dizer historiador consciente certamente não corresponde à perspectiva da Análise do Discurso Materialista, mas insisto em trazer a citação por conta da consequente relação entre presente e passado apresentada por Benjamin. 12

época anterior”. As reconfigurações das relações contraditórias entre as posições ideológicas irão contar novos fatos sobre o passado.

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A produção sobre o ano de 1930, no Brasil, é vasta e, ainda, efervescente. Os textos produzidos, levando em conta as distintas materialidades, desde livros a filmes, organizam diferentemente o arquivo, marcando disputas entre distintos gestos de leitura e constituindo novos fatos históricos sobre 1930. Apenas no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), na UNICAMP, no campo identificado a uma prática materialista de estudos discursivos, pelo menos desde a década de 80, há trabalhos que direta ou indiretamente tratam do movimento revolucionário de 30. Para citar alguns, em 1988, Bethania Mariani, em sua dissertação, analisou enunciados de dois jornais da época, Correio da Manhã e O País. A pesquisadora abordou a relação entre a imprensa de 1930 e a constituição da memória histórica. Em 1999, foi lançada a segunda edição de Argumentação e discurso político, de Haquira Osakabe, professor do Instituto, que analisou enunciados produzidos por Vargas de 1930 à 1937. Em 2015, dois projetos de dissertação propuseram recortar o período como objeto de análise. O trabalho de Renata Brandão, a partir do quadro teórico da Semântica do Acontecimento, estuda os discursos de Vargas de 1930 adiante. O outro texto, no caso, este, filiando-se à Análise do Discurso Materialista, propõe trabalhar as relações de forças em jogo no evento de 30, considerando a produção de apagamentos que constituíram a história institucionalizada.

Além dos exemplos mencionados, são inúmeros os trabalhos produzidos em outras áreas, como na história, economia, sociologia. Ademais, a imensa maioria dos compêndios de história do Brasil trata, ainda que brevemente, do movimento revolucionário. A fim de rastrear um insistente retorno do evento de 1930, é suficiente citar algumas poucas obras de história e biográficas. Em 1992, Edgar Carone publicou “Brasil, anos de crise”; em 1997, Boris Fausto lançou um livro intitulado “A revolução de 1930”; em 2012, Lira Neto iniciou uma trilogia biográfica sobre Getúlio Vargas; em 2015, Anita Prestes editou “Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro”. De distintas maneiras, todas as obras citadas passam pelo ano de 1930, produzindo diferentes significações para o evento. Os variados trabalhos, situados em campos teóricos distintos ou não, discursivizam diferentemente o evento em questão até hoje. 13

O evento não cessa de produzir sentidos. A respeito das eleições francesas que levaram F. Mitterand à presidência, Pêcheux afirma a existência de enunciados em disputa que remetem ao mesmo fato, mas não constroem as mesmas significações. E formula: “O confronto discursivo prossegue através do acontecimento...” (PÊCHEUX, 2015, p.20). Nos enunciados recortados por Pêcheux, no caso, a partir das eleições francesas, há uma disputa que se coloca no campo político, onde o mesmo “fato” é diferentemente significado. Quanto à citação trazida, proponho uma leitura em que tal confronto nunca cessa, pois as disputas que tiveram ocasião sempre prosseguem, ainda que opacamente. Assim, os sentidos que determinaram o evento de 1930 estão em tensão no presente, mantendo uma relação contraditória de antagonismos e alianças para significar, por exemplo, a revolução de Prestes e a da Aliança Liberal.

Dessa forma, até hoje, o evento não cessa de se reinscrever, nem de significar, apesar dos esforços das forças dominantes por estabilizar e perpetuar os sentidos legitimados naquela época e que entram em ressonância com as demandas do presente. Uma afirmação de Bethania Mariani é extremamente pertinente para iniciar uma reflexão sobre essas questões:

Um arquivo, qualquer que seja, representa uma instituição que congrega em seu funcionamento aspectos políticos, técnicos, jurídicos e éticos. Em qualquer arquivo se inscreve a historicidade de uma política de silenciamento (ORLANDI, 2001) resultante das condições históricas e ideológicas de sua institucionalização e de sua inserção nas redes de memória. Assim, na organização de qualquer arquivo há sentidos colocados para serem lidos e repetidos (o que é canônico, hegemônico) e há também sentidos recalcados, silenciados, interditados. Podemos pensar, então, que nos arquivos se inscrevem sintomas da época em que foram organizados e é com esses sintomas que um pesquisador se depara. (MARIANI, 2016, p.17). O sintoma da época, inscrito nos arquivos, retorna, desde 1930 até hoje, insistentemente, sob diferentes formas, em diversas áreas, reclamando sentidos outros, interditados. A impossibilidade de tudo dizer sobre o evento e o funcionamento do apagamento apontam para o que torna o movimento revolucionário um objeto tão intrigante e incessante. O sintoma da época percorreu os anos da história do Brasil e ainda percorre. Num agitado mar de memórias que não cessam de se emaranhar numa disputa por serem lembradas, seja numa biografia, tese, dissertação ou artigo, os pesquisadores funcionam como posições que sustentam as revoluções em contradição que cabem dentro do evento de 1930. A história de 30 não está morta, nem plenamente estabilizada, ela ainda disputa, pois a história de 30 acontece hoje, através dos pesquisadores dessa época e, em um nível mais subterrâneo, nas disputas que têm lugar na formação social atual. 14

Ainda sobre as eleições de F. Mitterand, cito Pêcheux: “uns e outros vão começar a ‘fazer trabalhar’ o acontecimento [...] em seu contexto de atualidade e no espaço de memória que ele convoca e que já começa a reorganizar: o socialismo francês de Guesde a Jaurès, o Congresso de Tours, o Front Popular, a Liberação...” (Pêcheux, 2015, p.19). As forças intrincadas disputam pela reorganização do espaço de memória, seja apagando ou produzindo outras significações. E a cada novo evento, aqueles de outrora se constituem no espaço de memória que é colocado em jogo pelas disputas entre discursividades. Assim, pergunto: que relação quase noventa anos atrás mantém com a atualidade? Arrisco a responder que as disputas que tiveram ocasião em 1930 se materializaram em toda a história e continuam na contemporaneidade, sob diferentes formas, mantendo alguns sentidos e deslocando outros. A cada nova reconfiguração das condições de produção, a partir das quais ruas são ocupadas, golpes de Estado são conduzidos, e pesquisadores disputam sentidos sobre seus objetos, as relações contraditórias de 30, e as anteriores a esse evento, se perpetuam, sempre no sinuoso jogo de relações de forças em conflito. Sob esse aspecto, há semelhanças entre ontem e hoje: quando se trata de pensar a história das lutas de classes, a história é a mesma. As disputas existem!

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I. INTRODUÇÃO

a) A contradição na formação social

O momento histórico de mudança abrupta do poder do Estado, cujo assento da presidência da República é forçosamente tomado de um governo por outro, é frequentemente precedido por disputas violentas entre forças concorrentes. Tais forças se enfrentam, por vezes, nas trincheiras montadas provisoriamente nas ruas, onde civis e militares, às vezes de armas em punho, encarnam as posições ideológicas que se encontram contraditoriamente relacionadas. O aparelho midiático é outra trincheira na qual forças heterogêneas travam sua perpetuação, por exemplo, quando diferentes jornais concorrem por seus candidatos. Em 1930, encontramos, na escrita de diferentes historiadores2, um cenário radical de divisão na qual a formação social brasileira estava inscrita.

Fez parte desse cenário a composição da Aliança Liberal, que reuniu políticos de oposição a Júlio Prestes3, candidato de Washington Luís e membro do Partido Republicano Paulista (PRP). Os presidentes filiados a partidos republicanos governavam o país há anos sob o acordo da política do café com leite, de forma que o poder era alternado entre mineiros e paulistas. O presidente do período, Washington Luís, era do PRP e o candidato oficial também, o que implicava na quebra do acordo. Essa quebra figurou entre as condições para a formação da aliança entre políticos de , Rio Grande do Sul e Paraíba. Entre os aliados rio-grandenses estavam Borges de Medeiros e Assis Brasil, cujos nomes evocavam a memória de forças antagônicas na guerra civil que teve ocasião em 1923, no sul. Após a derrota de Vargas, em 1º de março de 1930, deflagrou-se o movimento revolucionário, sendo constituído pelos membros da Aliança Liberal e pelos tenentistas, contra os quais, num passado não muito distante, políticos dessa coligação tinham lutado de armas em punho. As condições de 30 impunham uma reconfiguração das disputas passadas, entretanto, não sem que essas colocassem efeitos na forma de uma Aliança contraditória4.

Na formação social que estruturava as disputas de 1930, Vargas figurava enquanto porta-voz contra Washington Luís. Ao mesmo tempo, a partir da posição na qual um antigo tenentista enunciava, Carlos Prestes, havia a recusa em sustentar uma filiação ao movimento

2 Para citar alguns: Boris Fausto (1997); Lira Neto (2012); Anita Prestes (2015). 3 Júlio Prestes, membro do Partido Republicano Paulista, não deve ser confundido com Carlos Prestes, tenentista e, depois, membro do Partido Comunista Brasileiro.

4 A contradição que constitui a Aliança Liberal será trabalhada com maior atenção posteriormente. 16

revolucionário ou ao PRP. Neste momento complexo, diferentes designações circularam como sintoma das disputas que constituíram o período, sendo enunciadas a partir de diferentes posições de sujeito: movimento revolucionário, na enunciação de Getúlio Vargas; movimento subversivo, em enunciados de Washington Luís; e contra-revolução, na enunciação de Carlos Prestes. As forças em contradição disputavam pela tomada do poder e pela perpetuação do sentido legítimo, de forma que os efeitos da divisão na formação social da época ganharam contornos acentuados.

A divisão é constitutiva de todas as sociedades, em todos os momentos. Dito de outro modo, podemos ler essa afirmação como uma paráfrase da célebre frase do Manifesto do Partido Comunista: “A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes.” (MARX, ENGELS, 2008, p.8). Se a história de uma sociedade é estruturada pelas lutas de classes, essa contradição fundamental deve ser pensada conjuntamente com as relações que configuram a existência de posições ideológicas, que todo sujeito é interpelado a ocupar. A tese central de Althusser, na qual “A ideologia interpela os indivíduos como sujeitos.” (ALTHUSSER, 1996, p.131) coloca como ponto fundamental que para ser sujeito é preciso ser interpelado ideologicamente.

O investimento teórico de Althusser concorre na direção da formulação de uma teoria geral da ideologia, que, inevitavelmente, implica numa leitura das ideologias particulares. Para o autor:

Por um lado, penso ser possível afirmar que as ideologias têm uma história própria (ainda que esta seja determinada, em última instância, pela luta de classes); e por outro, creio ser possível afirmar que a ideologia em geral não tem história – não num sentido negativo (sua história lhe é externa), mas num sentido absolutamente positivo. (Ibidem, p.125, grifos do autor). O sentido positivo da ideologia em geral não ter história configura-se em sua realidade oni-histórica, isto é, em ser um funcionamento imutável e eterno da história. A ideologia em geral, recrutando a todos, “funciona” ao interpelar o indivíduo em sujeito, que, sendo sempre já sujeito, se encontra já chamado pelas ideologias particulares, que “sempre expressam posições de classe” (Ibidem, p.124, grifos do autor). Para Althusser, “uma teoria das ideologias se baseia, em última instância, na história das formações sociais, e, portanto, dos modos de produção combinados nas formações sociais e das lutas de classes que se desenvolvem dentro delas.” (Idem, grifos do autor). Ainda, para o autor, as ideologias particulares “têm uma história cuja determinação, em última instância, situa-se claramente fora das ideologias em si, embora as suponha” (Idem). 17

As ideologias particulares, que doravante designo de formação ideológica, denominação condizente com a usada por Pêcheux, têm uma história situada fora de si e localizada na história das formações sociais. Cabe dizer que compreendo as formações sociais como o espaço de relações contraditórias com as formações ideológicas, sendo estas recortes ideológicos daquelas. Ou seja, não se trata de uma relação de conteúdo e continente, mas de uma intrincação entre formações, funcionando de maneira imbricada. A história de uma formação ideológica, estando fora de si e encontrando-se nas formações sociais, é determinada a partir de sua relação com outras formações ideológicas num espaço de relações de forças. Desse modo, a ideologia, oni-histórica, interpela o indivíduo em sujeito, que chamado por uma formação ideológica, torna-se mais um recrutado nas fileiras de determinada posição-ideológica. Contudo, tal posição ideológica, expressão de uma formação ideológica, constituída em uma formação social cujo espaço é estruturado pela contradição, está em relação com outras posições ideológicas, que em última instância concorrem para sua constituição e existência. Assim, a história de uma formação ideológica traz em si, potencialmente, a história de outras formações, considerando o espaço contraditório no qual elas se constituem. Com isso, chego à formulação de que outras posições estão inevitavelmente inscritas na ilusão de unidade que constitui o sujeito.

No Brasil de 1930, as condições de produção que determinavam o funcionamento da formação social do período se configuraram pelas disputas de forças que concorriam pela tomada do poder e pela legitimidade outorgada pelo discurso oficial. Ou seja, as condições de produção em 1930, levando em conta como sua parte constituinte tudo aquilo que estrutura a história – e sobretudo uma história do Brasil, nas primeiras décadas do século XX, atravessada pela eclosão de manifestações como o tenentismo, a Coluna Prestes, a revolução paulista, e problemas advindos da política do café com leite –, possibilitaram uma violenta materialização dos conflitos latentes nas relações de poderes heterogêneos. Assim, naquele ano, encontramos diferentes forças: as de orientação governista, organizada em torno do Partido Republicano Paulista (PRP); as de oposição ao governo, organizadas sob a legenda da Aliança Liberal, contraditória já em sua constituição; as forças de oposição ao governo e, ao mesmo tempo, aos membros da Aliança Liberal, das quais Carlos Prestes era membro de destaque. Essas forças compunham relações de disputas, de forma que um comboio partiu do Rio Grande do Sul para tomar o poder no Distrito Federal – na época, localizado no ; um tenentista, identificado com o comunismo, escreveu um manifesto contra o novo poder que se instituiria, marcando sua dissidência com os membros tenentistas que 18

compuseram a Aliança Liberal; uma junta militar depunha o presidente até então instituído; um candidato eleito à presidência pelo PRP, sob suspeita de fraude e após a tomada de poder por Getúlio Vargas, foi impedido de tomar posse; entre outros episódios que servem como índice do evento.

Esses episódios foram produzidos a partir da relação tensa entre diferentes formações ideológicas. As forças que chegaram ao poder em 1930 foram as que se perpetuaram como dominantes, constituindo um modo regular de enunciar aquele acontecimento histórico. Em decorrência, outros modos de contar sobre 30 ficaram apagados, contudo, ao nos remetermos aos dizeres oficiais do período, é possível analisar a presença de outros sentidos, marginais, que subsistem na constituição daqueles que se propõem enquanto unidade. Dessa forma, se, durante o evento, as memórias foram atravessadas pela heterogeneidade que marcava as condições de produção, tais marcas se perpetuaram também através de sua inscrição no discurso oficial. Com isso, cabe citar Pêcheux em uma reflexão sobre a porosidade da memória:

E o fato de que exista assim o outro interno em toda memória é, a meu ver, a marca do real histórico como remissão necessária ao outro exterior, quer dizer, ao real histórico como causa do fato de que nenhuma memória pode ser um frasco sem exterior. (PÊCHEUX, 2015b, p.50). b) A contradição no discurso

As contradições de 1930, materializadas nas práticas de sujeitos falantes, foram constituídas a partir de diferentes discursividades, assumindo diferentes formas. As posições ideológicas em contradição guardam uma relação estreita com as diferentes posições discursivas. A respeito disso, deve-se considerar a leitura que Pêcheux fez de Althusser, especificamente quando este afirmou que o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia. Pêcheux reformulou essa tese, pensando especificamente a relação sujeito e discurso, e propôs: “os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos-falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes.” (PÊCHEUX, 2009, p.147, grifos do autor)5. Essa relação entre ideologia e discurso implica que a contradição entre formações ideológicas estruture também,

5 A respeito da relação entre Formação Ideológica e Formação Discursiva, Pêcheux afirma haver uma intrincação entre ambas, contudo, observa em nota: “Diremos apenas que não se pode tratar nem de uma pura equivalência (ideologia = discurso) nem de uma simples distribuição de funções (‘prática discursiva’ / ‘prática não-discursiva’). Seria, antes, conveniente falar de uma ‘intrincação’ das formações discursivas nas formações ideológicas, intrincação cujo princípio se encontraria precisamente na ‘interpelação’.” (PÊCHEUX, 2009, p.147, nota 9). 19

ainda que não por uma correspondência direta, as formações discursivas. Assim, a interpelação discursiva produz sujeitos-falantes que significam diferentemente objetos que, por esse motivo, são historicamente divididos.

A noção de objetos divididos6 aponta para a impossibilidade da sua pré-existência, isto é, para a impossibilidade de haver um sentido originário. Ou seja, é histórico ao objeto ser dividido, recebendo sua consistência material e seus sentidos a partir da formação discursiva e ideológica em que se inscreve. Pêcheux observa:

[...] as formas discursivas nas quais aparecem os ‘objetos’ tais como o balão, a estrada de ferro ou a toupeira são sempre conjunturalmente determinados enquanto objetos ideológicos; nem universais históricos, nem puros efeitos ideológicos de classe, esses objetos teriam a propriedade de ser ao mesmo tempo idênticos a eles mesmos e diferentes deles mesmos, isto é, de existir como uma unidade dividida, suscetível de se inscrever em um ou outro efeito conjuntural, politicamente sobre-determinado (poderíamos, em nossa contemporaneidade ideológica fazer observações análogas sobre noções como a de ‘mudança’ ou de ‘liberdade’). Isto suporia que não há, de início, uma estrutura sêmica do objeto, e em seguida aplicações variadas dessa estrutura nesta ou naquela situação, mas que a referência discursiva do objeto já é construída em formações discursivas (técnicas, morais, políticas...) que combinam seus efeitos em efeitos de interdiscurso. (PÊCHEUX, 2014, p.158). Questões importantes podem ser colocadas a partir das observações de Pêcheux com relação à divisão que constitui revolução. Em 1922, a partir de um interrogatório a um tenentista preso após o levante de uma unidade militar, comparece a formulação movimento revolucionário. Em 1923, na guerra civil deflagrada no Rio Grande do Sul, a designação revolucionários é enunciada. Em 1924, na revolução paulista, quando tenentistas tomaram por um breve período o poder em São Paulo, há esta revolução. Também em 1924, no Rio Grande do Sul, no levante tenentista que deu origem à Coluna Prestes, que perduraria até 1927, circulou os revolucionários e a revolução no Brasil. Em 1930, no discurso de posse de Vargas, comparece movimento revolucionário. No mesmo período, na enunciação de Carlos Prestes, constituída a partir de outra posição que não a dos antigos companheiros do movimento tenentista que se aliaram a Vargas, há Revolução. Essas formas relacionadas a designações semelhantes significam diferentemente? Em que medida os sentidos produzidos

6 Mobilizo a noção de objetos divididos para ser consequente com a elaboração de Pêcheux em Metáfora e interdiscurso, texto de grande força para as minhas análises, contudo a noção de objetos paradoxais, presente em um importante percurso de leitura apresentado em Objetos paradoxais e Ideologia, por Mónica Zoppi-Fontana, também levanta questões relativas ao caráter contraditório dos objetos. 20

para revolução convergem ou divergem, apontando para diferenças ou semelhanças entre posições?

A designação revolução foi enunciada a partir de posições constituídas em diferentes condições de produção, como, para citar um exemplo, o levante de 1922, contra Artur Bernardes, e o de 1930, contra Washington Luís. Esse “mesmo objeto”, que não possui uma estrutura sêmica originária, mobiliza sentidos constituídos a partir de posições aparentemente em disputa, como o movimento revolucionário, da Aliança Liberal, sendo designado de contra-revolução a partir da posição de Prestes. As redes de memória, as quais cada discursividade retoma para se constituir, fornecem a obviedade do objeto, de forma que o mecanismo que possibilita tais evidências inscreve-se intradiscursivamente na sequência através do pré-construído, do discurso transverso e do discurso relatado. Esse funcionamento que se materializa na sequência é anterior à enunciação realizada pelo sujeito, tendo sua origem nos processos de interpelação discursiva e interpelação ideológica. Levando em conta que todo objeto é atravessado pelo efeito de evidência que funciona a partir de uma posição de sujeito, cabe aprofundarmo-nos nos mecanismos que fornecem sentidos às designações, como revolução. Contudo, o termo designação, produtivo neste trabalho, precisa ser especificado antes.

A partir de uma posição materialista, considero de antemão a impossibilidade de haver uma relação direta entre um nome e um objeto, isto é, que apenas um nome refira um objeto através de uma relação unívoca. Considero também que o gesto de designar produz sentidos sobre um objeto, de forma que não há pré-existência possível. Afirmar a possibilidade de dizer sobre a existência dos objetos no mundo exterior à linguagem é formular um postulado filiado à existência de um sentido único, cuja base de funcionamento é a noção de verdade. Ao considerar a interpelação do sujeito pela ação da ideologia, considero também que todos os objetos são efeito das filiações ideológicas e discursivas. As considerações feitas anteriormente sobre os objetos divididos colocam a impossibilidade de uma relação intrínseca entre nome, sentido e objeto. Assim, o termo designação inscreve na história, a partir de uma posição de sujeito, os sentidos que são produzidos ao se enunciar, rompendo com a noção de relação intrínseca e colocando em funcionamento posições em contradição. O modo como compreendo designação tem sua base na formulação de Eduardo Guimarães:

A designação é o que se poderia chamar de significação de um nome, mas não enquanto algo abstrato. Seria a significação enquanto algo próprio das 21

relações de linguagem, mas enquanto uma relação linguística (simbólica) remetida ao real, exposta ao real, ou seja, enquanto uma relação tomada na história. É neste sentido que não vou tomar o nome como uma palavra que classifica objetos, incluindo-os em certos conjuntos. (GUIMARÃES, 2005, p.9, grifos do autor). A afirmação de que não há, de início, uma estrutura sêmica do objeto implica em dizer que o sentido sempre pode ser outro, pois o objeto, não sendo a priori semanticamente estruturado, recebe sua significação a partir de regiões de sentido diferentes. A essas regiões, Pêcheux nomeou de Formação Discursiva (FD), definindo-as como “aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito” (PÊCHEUX, 2009, p.147, grifos do autor). Dessa forma, compreende-se porque um mesmo objeto produz sentidos divididos, isto é, significa diferentemente, como revolução, pois sua estrutura sêmica pode ser constituída a partir de uma FD e não de outra. De toda forma, isso não elimina a possibilidade de FDs antagônicas significarem um mesmo objeto de forma semelhante. O que se pretende ressaltar é que o sentido, por não existir de antemão, se constitui a partir de uma FD através da relação que um objeto mantém com outros objetos em uma mesma região discursiva. Assim:

[...] se uma mesma palavra, uma mesma expressão e uma mesma proposição podem receber sentidos diferentes – todos igualmente ‘evidentes’ – conforme se refiram a esta ou aquela formação discursiva, é porque – vamos repetir – uma palavra, uma expressão ou uma proposição não tem um sentido que lhe seria ‘próprio’, vinculado a sua literalidade. Ao contrário, seu sentido se constitui em cada formação discursiva, nas relações que tais palavras, expressões ou proposições mantêm com outras palavras, expressões ou proposições da mesma formação discursiva. (PÊCHEUX, 2009, p.147-148, grifos do autor). As designações e enunciados que produzem sentidos semelhantes por fazerem parte de uma mesma FD remetem a famílias parafrásticas semelhantes. Os limites das redes de sentidos podem ser testados na relação que as designações mantém com outras semelhantes, de modo que as equivalências lexicalizadas entre substituíveis são produtoras intradiscursivas de significação que permitem constituir os limites entre redes. Esse é um dos meios de trabalhar as semelhanças e as diferenças entre posições com relação a alguns objetos, pois as famílias parafrásticas e as redes de sentidos operam uma regularidade sobre uma posição de sujeito. Entretanto, ao considerar que o discurso outro estrutura uma sequência discursiva, a regularidade de sentidos de uma posição pode ser afetada. Sendo assim, os enunciados produzidos a partir de uma posição filiada à determinada FD constituem uma estabilidade relativa, pois podem ser afetados pela memória de outras FDs. 22

O funcionamento parafrástico da produção de sentidos, mencionado acima, remete a uma certa leitura materialista de Saussure, especificamente da noção de valor. Saussure afirma, sobre a correspondência entre valores e conceitos, que “subentende-se que são puramente diferenciais, definidos não positivamente por seu conteúdo, mas negativamente por suas relações com os outros termos do sistema. Sua característica mais exata é ser o que os outros não são.” (SAUSSURE, 2006, p.136). Essa afirmação é colocada em relação ao sistema da língua, contudo podemos compreendê-la articulada ao mecanismo pelo qual uma posição de sujeito, constituída a partir de uma FD, produz os sentidos que negativamente, pelo jogo parafrástico mobilizado, a diferencia de outra. Ou seja, os sentidos de uma FD se diferenciam dos de outra pelas designações e enunciados que ela mobiliza como rede de substituíveis, que são negativamente diferentes da rede de substituíveis mobilizada por outra FD. Esse funcionamento constitui um importante mecanismo para a Análise do Discurso: “a expressão processo discursivo passará a designar o sistema de relações de substituição, paráfrases, sinonímias etc., que funcionam entre elementos linguísticos – ‘significantes’ – em uma formação discursiva dada.” (PÊCHEUX, 2009, p.148, grifos do autor). O que produz a evidência de um objeto dividido, portanto, é o esquecimento7, configurado pela relação negativa que uma rede parafrástica, produzida a partir de uma posição de sujeito, mantém com outras redes parafrásticas, garantindo, ao mesmo tempo, a produção dos sentidos.

O processo discursivo, então, orienta a produção linguística de sentidos, sendo a FD sua matriz. Contudo, as fronteiras que delimitam as redes de sentidos são porosas, numa relação onde o estranho sempre habita o familiar, onde sentidos só produzem sentido numa relação com o outro. Assim, em uma sequência enunciada a partir de uma posição emparelhada à Aliança Liberal, apesar de o processo discursivo orientar a produção de sentidos tendo na base de seu funcionamento o efeito de unidade, em tal enunciado, o discurso outro pode se inscrever pelo não-dito, por exemplo, quando ocorre intradiscursivamente o apagamento de outros movimentos, mas, ao mesmo tempo, se diz da existência desses movimentos. Esse é o caso de um recorte presente na enunciação de Fragoso, um dos militares que compôs a junta que depôs Washington Luís. A seguir, o recorte: “O movimento revolucionário que V. Ex. dirigiu é singular em nosso país; pelo seu caráter, extensão e simultaneidade não encontra nenhum símile comparável na nossa história.”. Enunciar “nenhum símile comparável na nossa história” é dizer que haveria símiles em outras condições. Então, a partir do funcionamento do outro estruturando a sequência, ao menos uma

7 Posteriormente abordarei mais detalhadamente a noção de esquecimento. 23

importante questão se formula: quais os símiles apagados – mas que deixaram rastros – do movimento revolucionário?

Deve-se levar em conta, ainda, que as disputas por determinar o evento ocorrem a partir de posições de sujeito, constituídas em filiação a FDs. Ou seja, o sujeito do discurso é sempre uma posição produzida na relação com uma FD, não existindo a priori, portanto sendo um efeito de discurso. Nesse ponto, encontra-se o insuportável do materialismo histórico, quando em confronto com o idealismo: o insuportável da peste do assujeitamento, pois o sujeito não escolhe as memórias com que se identifica, nem é dono de seu dizer8. Dessa forma, é um sujeito despossuído de si, ou seja, determinado pelas leis da história e do inconsciente. Sendo assim, o sujeito é posição, determinada pelas condições de produção, estando em uma relação contraditória com outras posições a partir das quais sentidos em concorrência são produzidos. Nesses termos, podemos afirmar a existência de objetos divididos, cuja significação sempre pode ser outra.

Assumindo que os sentidos sempre podem ser outros, também é correto afirmar que as forças em disputa concorrem por estabilizar um sentido em dada configuração social, garantindo-lhe maior legitimidade em detrimento de outros, que por vezes são apagados. Um evento também é dividido no ponto em que diferentes posições de sujeito tentarão determinar seus sentidos, constituindo relações de forças em confronto e configurando um dizer dominante, porém nenhuma será suficiente para esgotar as marcas daquele evento. Eni Orlandi, ao dizer de redes de sentidos censuradas, traz uma reflexão que cabe aos discursos apagados pelo efeito da história oficial:

Para terminar, eu gostaria de dizer que o real histórico faz pressão, fazendo que algo irrompa nessa objetividade material contraditória (a ideologia). O que foi censurado não desaparece de todo. Ficam seus vestígios, de discursos em suspenso, in-significados e que demandam, na relação com o saber discursivo, com a memória do dizer, uma relação equívoca com as margens dos sentidos, suas fronteiras, seus des-limites. (ORLANDI, 2015, p.61).

8 Temos então duas pestes, a do assujeitamento, conforme o materialismo histórico, e a da psicanálise, sob a forma do inconsciente: “Em 1955, durante uma conferência na Sociedade de Neuropsiquiatria de Viena, Jacques Lacan afirma ter ouvido da boca de Carl Gustav Jung a seguinte história. Em 1909, ao chegar ao continente americano para uma série de conferências na Universidade Clark, de Worcester, Freud teria murmurado no ouvido de seu jovem discípulo: 'Eles não sabem que lhes estamos trazendo a peste.'" (ROUDINESCO, 2009, p.126). Lacan comenta o engano de Freud, pois a América que havia suprimido o poder de subversão da psicanálise. Entretanto, para esta nota, fico apenas com a peste. 24

c) Corpus discursivo e questões de ancoragem

O gesto analítico que compõe este trabalho circunscreve-se à materialidade significante verbal. Essa especificidade é orientada pelo corpus discursivo, compreendido por Courtine como “[...] um conjunto de sequências discursivas, estruturado segundo um plano definido em relação a um certo estado das CP [condições de produção] do discurso.” (COURTINE, 2014, p.54). Ainda, segundo o autor, a constituição do corpus discursivo é uma operação “que consiste em realizar, por meio de um dispositivo material de uma certa forma (isto é, estruturado conforme um certo plano), hipóteses emitidas na definição dos objetivos de uma pesquisa.” (Ibidem, p.54). O estado das condições de produção considerado para a montagem do conjunto de sequências discursivas foi aquele que constituiu o evento de 1930, especificamente os sentidos mobilizados pela designação revolução. As questões de ancoragem, mostradas à frente, orientaram os objetivos que ajudaram na constituição do corpus e, portanto, na reunião do conjunto de enunciados.

Tais sequências discursivas foram recortadas de textos compostos inicialmente como manifestos, entrevistas a jornais, cartas e discurso de posse da presidência da República. Em alguns casos, sua primeira enunciação pública assumiu a forma de materialidade significante verbal oral, e apenas posteriormente ganhou uma versão oficial escrita, como foi o caso do discurso de posse de Getúlio Vargas. O critério de seleção dos textos foi orientado pela relação que esses mantinham com o evento e o modo como apresentavam regularidades que correspondiam às questões de ancoragem. Tais questões, estruturantes deste trabalho, são a seguir formuladas: que sentidos foram produzidos para revolução no evento de 1930? Que apagamentos foram produzidos? A escolha dos textos não foi uma fase anterior às análises, pois estas possibilitaram constantemente uma nova seleção daqueles, incluindo-os no trabalho, conforme o movimento da pesquisa demandava – orientado pelas questões de ancoragem. Um gesto inicial foi considerar a legitimidade investida na figura do porta-voz do movimento revolucionário e analisar o “Discurso pronunciado pelo Dr. Getúlio Vargas por ocasião de sua posse como chefe do governo provisório da República”. Nele, compareceu o apagamento de outras posições que produziram sentidos para revolução, como foi o caso da posição de sujeito a partir da qual se constitui Carlos Prestes. Com isso, outros textos foram selecionados para compor a análise. Ao levar em conta o apagamento da memória dos levantes do começo da década de 20 e, sobretudo, da Coluna Prestes que compunha a designação movimento revolucionário, foi possível trabalhar com os tenentistas e selecionar textos em que esses produziam sentidos para revolução. Assim, através desse percurso, foi 25

possível constituir um corpus discursivo em que posições configuraram-se em uma relação complexa.

A respeito de texto, na Análise do Discurso Materialista, essa noção movimenta uma especificidade discursiva que o faz ultrapassar o efeito de unidade que pode produzir em outros campos do conhecimento. Orlandi afirma que “Não vemos nos textos os ‘conteúdos’ da história. Eles são tomados como discursos, em cuja materialidade está inscrita a relação com a exterioridade.” (ORLANDI, 2010, p.68). Desse modo, um texto, tomado em análise, remete às condições de produção que possibilitaram sua constituição, não sendo esse inteiramente uma unidade, mas um material que aponta para as disputas que lhe possibilitaram sua constituição a partir de uma posição de sujeito. Assim, o trabalho com o texto é produtivo não somente pelas relações semânticas que são mantidas em seu interior, mas principalmente pelo não-dito que o sustenta, e por isso afirmo que ele não é inteiramente uma unidade. Há, dessa forma, a impossibilidade de uma leitura analítica se limitar à história institucionalizada, tomando os sentidos que circulam no material como uma obviedade, pois o trabalho do analista remete insistentemente à exterioridade, ou seja, às relações de forças que podem contar uma história diferente da legitimada. Recorto uma afirmação pertinente, de Orlandi, que aponta para a heterogeneidade que constitui o texto:

Os textos individualizam – como unidade – um conjunto de relações significativas. Eles são assim unidades complexas, constituem um todo que resulta de uma articulação de natureza linguístico-histórica. Todo texto é heterogêneo: quanto à natureza dos diferentes materiais simbólicos (imagem, som, grafia etc.); quanto à natureza das linguagens (oral, escrita, científica, literária, narrativa, descrição etc.); quanto às posições do sujeito. Além disso, podemos considerar essas diferenças em função das formações discursivas: em um texto não encontramos apenas uma formação discursiva, pois ele pode ser atravessado por várias formações discursivas que nele se organizam em função de uma dominante. (Ibidem, p.70). Quanto à figura do porta-voz, desempenhada sobretudo por Vargas, no caso das posições identificadas com as discursividades que compõem a Aliança Liberal, ela desempenha uma função em que se destaca de seus representados, sendo dotada de visibilidade, o que implica em um ganho de legitimidade que os demais não detêm. Essa figura também possui dupla visibilidade, na medida em que dialoga com diferentes posições, especialmente com aqueles que detêm o poder legal e com os seus representados que investiram-no como porta-voz. Esse mecanismo de dupla visibilidade garante a posição privilegiada perante o evento, já que mantém relação com posições dominantes e dominadas. Pêcheux explica o porta-voz como 26

[...] ator visível e testemunha ocular do acontecimento: o efeito que ele exerce falando ‘em nome de...’ é antes de tudo um efeito visual, que determina esta conversão do olhar pela qual o invisível do acontecimento se deixa enfim ser visto: o porta-voz se expõe ao olhar do poder que ele afronta, falando em nome daqueles que ele representa, e sob o seu olhar. Dupla visibilidade (ele fala diante dos seus e parlamenta com o adversário) que o coloca em posição de negociador potencial, no centro visível de um ‘nós’ em formação e também em contato imediato com o adversário exterior. (PÊCHEUX, 1990, p.17). No evento de 1930, Getúlio Vargas foi o porta-voz do movimento revolucionário, falando em nome da Aliança Liberal e daqueles que estavam identificados com ela, constituindo um nós que produzia como efeito de sentido uma representação da totalidade da dissidência ao poder da República. Assim, no movimento de exposição ao olhar do poder que afrontava, no caso, o governo de Washington Luís, outras possibilidades de dissidência foram tomadas e apagadas na voz de Vargas. O apagamento não se configura apenas em relação às posições antagônicas que são incluídas no nós universalista, mas também na distância entre o porta-voz e seus representados das classes populares, cujo afastamento necessário para aquele tomar a frente e se converter em uma posição visível e legítima torna estes opacificados. Dessa forma, as palavras de Zoppi-Fontana fazem sentido sobre o porta-voz, no evento de 30, e o funcionamento da divisão interna apagada pelo nós: “Relação imaginária de representação, pela qual o porta-voz se destaca do grupo como seu legítimo representante; operação de universalização, pela qual essa operação primeira de divisão interna é apagada pela legitimação jurídico-institucional do poder do Estado” (ZOPPI-FONTANA, 2014, p.79).

Quanto ao tratamento dos recortes, assumo a equivocidade da designação revolução e sua materialidade como espaço de inscrição onde sentidos em contradição se relacionam, contando histórias não institucionalizadas sobre 1930 e uma longa e importante parcela da história do Brasil, em parte, esquecida. A produção desse esquecimento, entretanto, não é impeditivo para que a memória recalcada funcione, produzindo sentidos que retornem na história, de maneira deslocada. A equivocidade implica em disputa de sentidos entre diferentes posições que concorrem por estabilizar a legibilidade de um enunciado. Sendo assim, assumo minha inscrição epistemológica no terreno materialista quando afirmo que a significação não é anterior ao valor que um significante estabelece em relação a outro, ou seja, o sentido não preexiste à palavra, mas se constitui no fio do dizer, que evoca uma rede de relações com o não dito.

Um momento determinante no evento de 1930 foi aquele designado por movimento revolucionário. Esse movimento reuniu integrantes da Aliança Liberal (AL), que 27

contava com a participação de políticos que, em anos anteriores a 30, compuseram lados partidariamente opostos9. A AL iniciou a empreitada de levar Vargas ao poder federal e depor Washington Luís. Na duração desse evento, Carlos Prestes, antigo líder da Coluna que compôs um dos momentos mais tensos do tenentismo, declarou sua divergência aos tenentistas que se juntavam à Aliança Liberal. Ao considerar as condições da época, este trabalho parte da opacidade dos sentidos, das fronteiras porosas das formações discursivas e da contradição como funcionamento que rege tais formações para analisar a produção de sentidos para revolução, e pôr em suspenso as evidências que determinam tal objeto.

O gesto de leitura sobre o ano de 1930 é o de tomá-lo como um evento aberto a múltiplas possibilidades de revolução, constituídas a partir de diferentes posições. A história oficial, entretanto, produziu como única leitura possível uma relação intrínseca entre o movimento revolucionário, conduzido pela AL, e o evento que irrompeu naquele ano. Contudo, as análises, ao apontarem para os silenciamentos e as disputas por revolução, indicam a contradição constitutiva do evento, como também as outras revoluções que eram possíveis além daquela da AL. Com isso, se um gesto importante é tomar a designação em jogo como um objeto dividido, abrindo para a possibilidade de sentidos outros comparecerem, outro gesto fundamental é pensar o evento enquanto tal, isto é, não determiná-lo enquanto criação da vontade das posições aliadas a Vargas, mas enquanto irrupção possível a partir das condições de produção nas quais diferentes formações discursivas disputavam por determinar sentidos para o evento. Nesse viés, o movimento revolucionário foi bem sucedido, pois comumente o lemos como sinônimo do que irrompeu em 1930. Todavia, o evento não se fecha a uma discursividade, pois ele é ocasião de disputa entre diferentes posições.

Regularmente, os textos oficiais e a história disciplinarizada constituem versões relativamente estabilizadas de um acontecimento histórico, provocando o apagamento de outras forças que disputaram, um dia, os sentidos do(s) objeto(s) em jogo. Contudo, as marcas do discurso outro, recalcado, apagado, permanecem produzindo sentidos no enunciado oficial, como analisaremos futuramente. Tais marcas também permanecem em uma relação equívoca com sentidos que são produzidos hoje, seja sendo ressignificadas, quando não sofrem censura, ou negociando suas margens com os discursos que se perpetuam, quando censurados. Antes de trabalhar os mecanismos de produção de sentidos para revolução, trago a seguinte

9 Refiro-me a Borges de Medeiros e Assis Brasil, que disputaram o governo do Rio Grande do Sul, em1923, e, após os resultados das eleições, deflagraram uma guerra civil. 28

afirmação de Bethania Mariani, em sua dissertação sobre a imprensa de 1930, que diz das memórias perpetuadas:

[...] qual dessas representações do Brasil foi cristalizada, perpetuada na história? Com certeza não foi o país sério e moralista de Washington Luiz. Também não foi a dos comunistas... Não é preciso ir muito longe nem prolongar mais esta charada. Com certeza, a revolução vitoriosa de 1930, ou melhor, seus vencedores são os responsáveis pelo desenvolvimento de determinada visão da história oficial. (MARIANI, 1988, p. 207-208).

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II. ALIANÇA LIBERAL: REVOLUÇÃO INSTITUCIONALIZADA

O estado de espírito do povo brasileiro é de franca revolta. Tomei médias e creio não errar orçando em 90% o índice das criaturas que, quando se abrem na intimidade, denunciam este estado de revolta. Do espírito de revolta ao espírito revolucionário a transição é mínima. Basta que deflagre um movimento militar para que a passagem se opere e o revoltado se transforme em revoltoso. Revoltoso platônico, é verdade, mas perigosíssimo, pois dará à explosão a força moral das suas simpatias e a material, sendo-lhe possível. (...) Entre nós, por que persiste o cancro das revoluções militares? Por que o povo se revela tão simpático a tais movimentos, sejam encabeçados por quem for? É porque o povo não se sente ligado ao governo, e não vê diferença entre governo revolucionário e legalidade usurpada. Opere-se o casamento, cesse o divórcio, e para esmagar levantes militares não será preciso recorrer à força: o eleitor defenderá o seu elegido. Como vão as coisas, vejo tudo negro. Esta revolução não será a última, porque a revolução está na alma de toda a gente. Reprimida aqui, ressurgirá além, e o nosso pobre Brasil não fará outra coisa senão curar feridas periodicamente reabertas. A repressão não atinge a causa última do fenômeno. Equivale a combater a febre, em vez de atacar a causa da febre. De que valeu a terrível repressão castilhista no Sul? Cada degolado dava origem a dez futuros revoltosos seus filhos e parentes, e a revolução lá está, em perpétua incubação, com explosões periódicas. É preciso atacar as causas últimas do espírito de revolta, o que só se conseguirá dando ao povo o que ele quer: direito de eleger livremente, por meio do voto secreto. Não fazer isto é incubar eternamente o ovo da revolução. (Monteiro Lobato, Alcibíades Pizza, Manifesto em prol do voto secreto, 9 de agosto de 1924). a) O equívoco na luta: entre as eleições e as armas

As articulações que constituíram a Aliança Liberal e a candidatura de Vargas como presidente da República, eclodindo posteriormente no movimento revolucionário, remontam à quebra da política do café com leite, como já afirmado. O impasse entre o Partido Republicano Mineiro (PRM) e o Partido Republicano Paulista (PRP), sucedido após Washington Luís apoiar Júlio Prestes como candidato oficial, o que implicava na perpetuação da política paulista sobre a mineira, contribuiu para resultar em uma tríplice aliança entre Minas, Paraíba e Rio Grande do Sul. Ao mesmo tempo, o nome de Vargas na composição da chapa evocava uma maior participação gaúcha na política nacional. Além disso, a instabilidade no decorrer da década de 20, especialmente na forma de conflitos armados em que circulava a designação revolução, concorria para novas possibilidades no cenário político nacional. 30

As crises econômicas sucedidas em 20, no Brasil, culminando com as consequências da quebra do mercado mobiliário internacional, em 1929, contribuíram para a reconfiguração das condições de produção. O fator econômico favoreceu pôr em questão sentidos que posições relacionadas aos partidos republicanos perpetuavam na constituição da nação, abrindo espaço, assim, para possibilidades outras. Conforme os Índices da produção industrial – 1914-1930, de Roberto Simonsen10, em 1922, ano do levante tenentista em Copacabana, que ficou conhecido como a revolta dos 18 do forte, o índice da produção industrial nominal era de 401%, sendo que 100% equivale ao ano de 1914. Em 1923, o índice nominal correspondia a 616% e, em 1924, ano da revolta paulista, decaíra para 461%. Até 1927, ano em que a Coluna Prestes encontrou seu término no exílio na Bolívia, o índice não ultrapassara 581%, não retomando o ritmo produtivo de 1923. Boris Fausto (1997, p.38) afirma:

No curso da década de 1920, após o recesso dos dois primeiros anos, decorrência da crise internacional, a indústria parece ter retomado o desenvolvimento em 1922, e sobretudo em 1923, para sofrer um séria queda em 1924, da qual só se recuperaria, parcialmente, nos últimos anos do período, sem atingir o nível de 1923. É o que se infere do quadro de Roberto Simonsen. O quadro apontado por Fausto é usado para indicar o predomínio da produção agrícola sobre a industrial, que sofreu com significativas crises na década de 20, de modo que aquela se manteve como produção principal do país por períodos posteriores a 1930. Assim, o autor demonstra que “a queda da Primeira República não correspondeu ao ascenso ao poder nem da burguesia industrial, nem das classes médias, contraditando assim versões correntes na época em que o trabalho foi escrito.” (Ibidem, p.11). Por outro lado, a questão que aponto é o cenário de crise que pode ter contribuído para as condições de deriva de sentidos, possibilitando a constituição do movimento revolucionário. Além da estagnação nos índices industriais, o exponencial aumento do custo de vida, conforme os Índices do custo de vida – 1914-193011, podem apontar para uma abertura na religiosidade dos sentidos que determinavam a política nacional. Tomando 1914 como equivalente a 100%; em 1922, o índice do custo de vida correspondia a 184%; em 1923, a 202,8%; em 1924, a 236,6%; e em 1927, a 267,4%. Em 14 anos, a elevação do custo de vida no país, conforme os dados

10 Roberto Simonsen, Evolução industrial do Brasil. São Paulo, Rev. dos Tribunais, 1939, p.40 apud FAUSTO, Boris, 1997, p.39

11 Roberto Simonsen, Evolução industrial do Brasil. São Paulo, Rev. dos Tribunais, 1939, p.40 apud FAUSTO, Boris, 1997, p.40 31

informados na tabela de Roberto Simonsen, correspondem a 167,4%, tendo uma ligeira redução em 1928, equivalendo a 263%.

Os índices formulados por Simonsen silenciam uma série de questões, entre elas, uma das principais, a de considerarmos a impossibilidade de formar uma média nacional do custo de vida reunindo as condições reais de existência de distintas classes, abastadas e miseráveis, em um número. Esse gesto implica em um apagamento das especificidades que determinam a realidade econômica das populações pertencentes às diferentes camadas sociais existentes no Brasil, e que, por esse motivo, possuem práticas distintas que não cabem numa escala percentual. Contudo, o registro de tais dados interessa, neste trabalho, ao apontar um imaginário econômico desfavorável a setores influentes, como o industrial, e a constituição de informações que colocariam em questão a gestão política republicana dos últimos anos perante o povo, como a elevação exponencial do custo de vida no Brasil. Além das questões nacionais, as mundiais também reconfiguraram as condições para o desenrolar do movimento revolucionário.

Houve, em 1929, a grande depressão, que afetou em distintas proporções as diferentes economias do globo. O café, um dos produtos brasileiros de maior exportação, teve seu valor de venda diminuído, gerando um cenário econômico desfavorável. Conforme Boris Fausto (Ibidem, p.129),

[...] abriu-se a crise mundial, em outubro de 1929. A crise não produziu a revolução, como uma espécie de curto-circuito em um sistema em pleno funcionamento, e é possível mesmo especular sobre a eventualidade da queda da República Velha, independentemente dela. Mas as contradições da economia cafeeira, das instituições que consagravam seu predomínio ganharam outra dimensão. O encontro entre diferentes episódios econômicos, sobretudo após a quebra da política do café com leite exercida por Minas Gerais e São Paulo, possibilitou que, em 17 de junho de 1929, no Hotel Glória, no Rio de Janeiro, fosse assinado um acordo entre um político mineiro e um gaúcho: José Bonifácio de Andrada e Silva e João Neves da Fontoura. Nesse dia, o formato inicial da Aliança Liberal começou a ganhar contornos burocráticos, de modo que a plataforma de Getúlio Vargas na campanha presidencial foi lançada em 1929. Em 1º de março de 1930, o candidato aliancista perderia no pleito eleitoral, tendo recebido mais de setecentos mil votos, contra mais de um milhão de seu adversário. Nesse período, o sufrágio excluía mulheres e analfabetos, de forma que uma parcela considerável da população não possuía direitos políticos. 32

Desde o lançamento da Aliança Liberal, a luta eleitoral contra o candidato do governo de Washington Luís, Júlio Prestes, estava posta, pois o pleito de 1º de março de 1930 colocava-se como previsto. Contudo, desde o princípio, o equívoco constituiu de maneira insistente essa designação, fazendo com que outros sentidos fossem mobilizados em seu horizonte de possibilidades. A reconfiguração das condições de produção no decorrer da campanha eleitoral fez trabalhar o equívoco, abrindo para a possibilidade de ressignificação da luta. Com isso, ao menos uma questão pode ser colocada: como as ressignificações de luta durante a campanha da Aliança Liberal contribuíram para a constituição do movimento revolucionário? A análise do deslizamento de sentidos em sequências discursivas recortadas de textos enunciados a partir de 1929, que inclui documentos que contam das primeiras articulações que formariam a AL, até o momento de tomada do poder da República pelo movimento revolucionário, em 1930, permitiu trabalhar a equivocidade dessa designação e sua relação com o movimento. Abaixo, seguem alguns recortes:

SD1. Deixo aqui três hipóteses para sairmos pela paz ou pela luta. (G. Vargas, Carta de Getúlio Vargas a João Neves da Fontoura, 26 de Julho de 1929, grifos meus).

SD2. Insisti em que, dada a forma da consulta, nós iríamos para a luta eleitoral. (O. Aranha, Carta de Osvaldo Aranha a Getúlio Vargas, 1929, grifos meus).

SD3. Declarei que nós também nada poderíamos sugerir, uma vez que a luta era o único caminho honroso que nos restava e aquele que o povo, integralmente unido, impunha nesta conjuntura. (Idem, grifos meus).

SD4. Se, ao contrário, entenderes que está tudo findo, devemos organizar imediatamente a batalha. (Idem, grifos meus).

SD5. Contamos com elementos em todo o país. Somos fortes e estamos decididos. Teremos luta e bravia. (Idem, grifos meus).

SD6. Nessas condições, abre-se a perspectiva de uma luta áspera, que não desejo, de consequências imprevisíveis. (G. Vargas, Carta de Getúlio Vargas a Borges de Medeiros, 31 de julho de 1929, grifos meus).

SD7. Resumes admiravelmente a situação nesta frase: “O nosso futuro está num acordo digno ou numa luta bravia”. (Idem, grifos meus). 33

SD8. Eu desejaria que esta questão, sofrendo um abalo, por um brusco desequilíbrio de forças, tornasse inútil a continuação da luta. (G. Vargas, Carta de Getúlio Vargas a Osvaldo Aranha, 12 de agosto de 1929, grifos meus).

SD9. Temos até aqui suportado, com infinito estoicismo, sob as fosforescências de uma liberdade irrisória, todas as injustiças, todas as preterições, todas as durezas, todas as astúcias, com que costuma a prepotência escarnecer das prerrogativas a inteligência dos povos civilizados; temos suportado na esperança ou, melhor de que na esperança, na certeza de que a luta de 1º de março vai dar ao país a oportunidade de reassumir a direção de seus próprios destinos. (Aliança Liberal, Eleição Presidencial de Março de 1930, 26 de fevereiro de 1930, grifos meus).

SD10. Chegamos assim à solução violenta, como única capaz de ser aposto [aposta] com êxito aos dominadores. (C. Prestes, Carta de Luís Carlos Prestes a Osvaldo Aranha, março de 1930, grifos meus).

SD11. Indagamos em seguida do Dr. Borges de Medeiros o que pensava S. Exa. da atitude dos libertadores, cujos principais elementos se mostram exaltados e partidários de uma solução violenta. (B. Medeiros, Entrevista de Borges de Medeiros ao jornal A Noite, aconselhando o acatamento do resultado das urnas e o reconhecimento de Júlio Prestes, 19 de março de 1930, grifos meus).

SD12. Ainda quando percebi que a hipertrofia do Executivo inteiramente fora da medida, absorvendo os três poderes, aniquilava o regime e assumi de maneira ostensiva a direção da luta eleitoral em favor do meu opositor, tentei uma solução conciliatória. (G. Vargas, Manifesto de Getúlio Vargas, 24 de agosto de 1930, grifos meus).

SD13. Cansada de lutar inutilmente contra essa máquina política, desesperada de melhorar a situação do país, dentro das possibilidades legais, decidiu-se a Nação pela luta armada. (G. Vargas, Entrevista de Getúlio Vargas à United Press, outubro de 1930, grifos meus).

SD14. Mas, era bem possível que o governo, já em agonia, apegado às posições e teimando em manter uma autoridade inexistente de fato, tentasse sacrificar, nas chamas da luta fratricida, seus escassos e derradeiros amigos. (G. 34

Vargas, Discurso de posse de Getúlio Vargas como Chefe do Governo Provisório, 3 de novembro de 1930, grifos meus).

O equívoco que constitui luta comparece desde as articulações políticas datadas de 1929, anteriores ao pleito eleitoral. O recorte de SD1 coloca uma tensão, na forma de uma oposição, que percorrerá o restante do corpus discursivo. Em “para sairmos pela paz ou pela luta”, a forma verbal produz como saída, isto é, como solução, uma alternatividade, materializada na conjunção ou, entre a paz e a luta. Os sentidos de luta, então, são antagônicos aos de paz, ainda que aquela se realize apenas nas urnas. Entretanto, a designação é opaca, podendo mobilizar também significações aproximadas de luta armada. O processo de produção de sentidos aponta, com maior veemência, a distância de luta em relação à paz, de modo que à medida que a eclosão do movimento revolucionário for se aproximando, tal distância semântica se tornará mais efetiva.

As designações produzidas a partir da posição de sujeito na qual Osvaldo Aranha enuncia, constituída também a partir da mesma posição na qual Vargas enuncia, fazem o equívoco trabalhar de forma semelhante ao recorte anterior. Em SD2, luta eleitoral coloca a materialidade da luta e sua existência nas urnas. Isso se deve ao funcionamento linguístico da designação, cujo substantivo é determinado pelo adjetivo eleitoral. Contudo, o determinante, na tentativa de saturar o nome, produz uma indeterminação do mesmo, o que abre para a possibilidade de existência de outras lutas que não sejam adjetivadas por eleitoral. Outras formas de comparecimento da designação, a partir da mesma posição de sujeito, atestam seu equívoco e a impossibilidade da saturação. Em SD3, a luta materializa a insuficiência do caráter eleitoral. Em SD4, a batalha parece ser outra maneira de designar a luta e de significar a oposição à paz, pois faz trabalhar os sentidos de luta, abrindo-a para além da questão eleitoral. Em SD5, Teremos luta e bravia, configura um funcionamento que retoma a abertura colocada pelas designações anteriores, porém produzindo um funcionamento diferente.

O enunciado Teremos luta e bravia materializa linguisticamente uma conjunção frequentemente utilizada como coordenativa aditiva, no caso, o e. Essa sequência marca um deslizamento nos sentidos de luta, pois ela aponta para um afastamento maior em relação à paz, ao acordo. Ainda não é possível afirmar que essa luta signifique a armada, e não a eleitoral, pois a luta eleitoral bravia é uma possibilidade, contudo, ela aponta para o distanciamento da probabilidade de haver uma resolução diplomática para os impasses políticos que tomaram o cenário nacional. 35

As sequências 4 e 5 inauguram sentidos diferentes para luta, de modo que somente eleitoral não é suficiente para significar batalha e bravia. Essas designações, elementos da enunciação de Osvaldo Aranha, também foram enunciadas por Vargas, de forma que ambos, como afirmado, são constituídos a partir de posições semelhantes. Em SD6, uma luta áspera mantém a significação de bravia e aponta para uma modificação das condições de produção, em que torna a paz, o acordo, cada vez mais distante, posto os contornos cada vez mais acentuados do confronto entre a Aliança Liberal e o Partido Republicano Paulista.

A ocasião em que os sentidos de luta começaram a significar bravia foi contemporânea à recepção oficial da notícia da candidatura de Vargas por Washington Luís, presidente da República em 1929. Este não aceitou tranquilamente a candidatura de seu antigo ministro da Fazenda. A respeito desse episódio, Lira Neto comenta: “Em síntese, a única alternativa que Washington Luís deixava a Getúlio era a da retirada pura e simples da candidatura, com a consequente aceitação do nome de Júlio Prestes. Isso, para os gaúchos, representaria uma rendição desonrosa”. (NETO, 2012, p.326) E, em seguida, recorta o comentário de um político aliancista: “‘Equivaleria a riscar-nos do mapa político. Se capitularmos agora, em 1934 [data da eleição presidencial subsequente], o Júlio Prestes irá eleger o cozinheiro ou o chofer do palácio, e até o Rio Grande baterá palmas’, revoltou-se João Neves.” (Idem).

Uma ressalva deve ser feita quanto ao batimento entre o trabalho de análise e a produção historiográfica. No gesto analítico não se trata de fazer historiografia, pois, em meu caso, neste subcapítulo, busco compreender o processo de produção de sentidos para a designação luta ao longo do movimento revolucionário e em seus antecedentes, pois esse processo ajuda a analisar modos de determinar o evento de 1930. Não está em jogo a tentativa de descrição da história, apesar de, em alguma medida, o trabalho de análise implicar em uma operação que lide com a história. O que coloco em questão é: sendo a historiografia e a análise do discurso regiões do saber distintas, possuindo objetivos diferentes, o trabalho que realizo sobre o movimento revolucionário de 1930 deveria não se dispor a um entrelaçamento com a produção historiográfica já realizada sobre esse tema?

É possível que, em alguns casos, as resoluções historiográficas possam sobredeterminar o trabalho de análise, impedindo que de fato os dispositivos teóricos e analíticos da Análise do Discurso Materialista sejam postos em operação com o corpus discursivo. Contudo, quando o corpus aponta para o que aparenta ser uma alteração nas condições de produção e para um consequente deslizamento de sentidos, o batimento com a 36

historiografia, que indica resultados semelhantes aos do analista, torna-se inescapável, pois seria imprudente não colocar em relação resultados semelhantes levantados a partir de campos diferentes. Por esse motivo, em dados momentos, coloco em batimento os levantamentos historiográficos com minhas análises. No que toca às condições que abrem para o deslizamento de sentidos, elas não são previsíveis e nem mesmo rastreáveis em sua totalidade, contudo, por meio da análise de uma designação que percorre o corpus discursivo com que trabalho, foi possível indicar ao menos um episódio que influenciou na mobilização de significações outras para luta.

Quanto a essa designação nas outras sequências, a alternatividade, produtora de exclusão, que compareceu em SD1, opondo paz à luta, retorna em SD7, na forma de acordo digno e luta bravia. A paz desliza para acordo digno, ganhando contornos jurídicos, ao mesmo tempo, luta desliza para luta bravia, reafirmando as mudanças e indicando o equívoco entre o caráter eleitoral e a batalha. O recorte presente em SD8, a continuação da luta, perpetua o equívoco de forma semelhante a enunciados anteriores, indeterminando luta, o que não acontece em SD9.

Na sequência 9, ao enunciar a luta de 1º de março, seu funcionamento é parecido ao de SD2, porém especificando a ocasião em que a luta eleitoral será decidida. Já a sequência enunciada a partir da posição de sujeito na qual Prestes se constitui faz circular novos sentidos para luta, se distanciando do caráter eleitoral e se aproximando de uma significação outra: uma solução violenta. Essa designação, presente na sequência 10, é um recorte da Carta de Carlos Prestes a Osvaldo Aranha e marca uma das articulações entre os líderes da Aliança Liberal e os tenentistas. Na ocasião, em março de 1930, Prestes ainda não publicara o manifesto em que marcava seu distanciamento do programa aliancista.

A designação solução violenta é constituída a partir de uma alteração nas condições de produção, pois, ainda que sempre latente a possibilidade de sua materialização, devido à indeterminação de luta, um dos fatores que possibilitou a abertura para sentidos outros foi a aproximação do movimento tenentista. Outro fator que contribui para a alteração nas condições de produção foi a derrota no pleito de 1º de março, com a vitória do candidato do PRP, Júlio Prestes. Dessa forma, as significações possíveis para luta deslizam uma vez mais, pois, ainda que ela não seja diretamente adjetivada como violenta, a denominação presente na enunciação de Prestes produziu efeitos que retornarão sobre enunciados futuros. A designação solução violenta produz tal repercussão a ponto de ser objeto de questionamento do jornal A Noite a Borges de Medeiros, como apontado em SD11. Então, os sentidos de luta 37

eleitoral e luta bravia não são mais suficientes para dar conta de um terceiro sentido que emerge.

Em oposição à solução violenta, em SD12 comparece solução conciliatória, junto com luta eleitoral, contudo, dada a insuficiência de ambas, elas não são perpetuadas, abrindo espaço para luta armada, presente em SD13. As designações solução violenta e solução conciliatória entram em disputa, de modo que aquela é predominante para a constituição do movimento revolucionário. A designação solução violenta, enunciada primeiramente a partir da posição de Prestes, foi uma formulação que contribuiu para a constituição da luta armada, e possibilitou, posteriormente, a eclosão do movimento revolucionário. O deslizamento para luta armada é uma possibilidade desde o começo da campanha da Aliança Liberal, entretanto, sua efetivação só se tornou possível após mudanças consideráveis nas condições de produção, como a derrota nas eleições e a aproximação ao tenentismo.

A luta, sempre constituída na equivocidade, derivou de luta eleitoral, luta bravia, para luta armada, resultando no movimento revolucionário. A luta armada, ainda que distante, era uma possibilidade posta desde o princípio, conforme o movimento de deriva aponta nas sequências discursivas analisadas. A solução violenta não se tornaria realidade sem a reconfiguração das condições de produção, contudo, também é provável que, se uma indeterminação não operasse desde o princípio, a nível discursivo, sobre o movimento, isto é, se o equívoco não estivesse ali colocado, uma mudança na prática da Aliança Liberal, culminando na tomada do poder da República, não viesse a acontecer.

Outra deriva ainda ocorre, já indicando o novo lugar dos aliancistas enquanto Governo Provisório da República: a luta armada torna-se luta fratricida. A partir da posição de governo oficial, a luta é posta em semelhança a um crime, e seus autores são considerados os antecessores do poder federal, isto é, os membros do PRP. Esse novo deslizamento produz um apagamento da relação entre a Aliança Liberal e a luta eleitoral, a luta bravia e a luta armada. O antigo governo passa a ser responsabilizado pelo cenário conturbado na política nacional, conforme o discurso oficial, e a luta torna-se apenas aquela em que seus “escassos e derradeiros amigos” foram sacrificados. O percurso histórico que a designação luta conta das disputas entre a Aliança Liberal e o PRP, portanto, tenta ser silenciado, o que só é possível por haver um governo derivado do movimento revolucionário. Isso se dá pela tentativa do novo governo de apagar a memória da deriva que fura a ordem, isto é, o movimento parafrástico que culmina na luta armada e na consequente chegada ao poder. Dessa forma, o apagamento provocado por luta fratricida conta a história de sua constituição. 38

b) A divisão na Aliança Liberal: a ordem e o regime postos em questão

Anteriormente afirmei sobre a constituição da Aliança Liberal a partir da reunião de posições que historicamente estavam em uma relação complexa. Vimos que em suas fileiras figuravam Borges de Medeiros e Assis Brasil, que em 1923 disputaram o governo do Rio Grande do Sul e, após o pleito eleitoral, confrontaram-se, produzindo uma guerra civil no estado. Também compunham a AL, Artur Bernardes e alguns tenentistas. Desde 1922, as forças governistas confrontavam os tenentistas, em diferentes regiões do Brasil, que, por sua vez, queriam a deposição de Bernardes. Na duração da campanha presidencial de 1922, Borges de Medeiros apoiou o candidato à presidência Nilo Peçanha, enquanto Assis Brasil aliou-se a Artur Bernardes. Entretanto, em 1924, quando os tenentistas levantaram inúmeras unidades militares no Rio Grande do Sul, as forças de Assis Brasil foram seus aliados, enquanto Medeiros se uniu a Bernardes para combater os levantes. As condições de 1930 demandaram uma reorganização das relações de forças, no entanto, a memória não cessa de produzir efeitos.

Os membros do tenentismo ficaram predominantemente à frente do núcleo militar do movimento revolucionário de 1930. Os tenentistas têm uma história que remonta ao movimento iniciado em 1922, com o episódio que levantou o Forte de Copacabana, levando grande parte dos sublevados à morte. A respeito desse episódio que marcou o início das ações dos tenentes, Anita Prestes conta:

Sob o comando do tenente Antônio de Siqueira Campos, num gesto heroico que repercutiria intensamente durante toda a década de 1920, cerca de trinta homens (quatro oficiais, soldados e cabos e um civil) marcharam de peito aberto pela praia de Copacabana. Foram metralhados pela tropa governista de mais de 3 mil soldados. Apenas dois conseguiram sobreviver, embora gravemente feridos: o próprio Siqueira Campos e o também tenente Eduardo Gomes. (PRESTES, Anita, 2015, p.35-36). A sublevação do Forte de Copacabana era o índice de relações em confronto entre as forças governistas do período e alguns setores militares. O representante legalista do poder federal, no caso, o presidente empossado em 1922 pelo Partido Republicano Mineiro, era Artur Bernardes. A oposição militar ao candidato foi particularmente marcada pela circulação de cartas endereçadas contra o setor: “Em outubro de 1921, o Correio da Manhã publicou as famosas ‘cartas falsas’, ofensivas aos militares e atribuídas a Artur Bernardes, o candidato oficial às eleições presidenciais de março de 1922. A efervescência nos meios militares era muito grande.” (Ibidem, p.31). As relações de disputas em jogo não se resumem à oposição de um setor dos militares ao candidato do PRM, mas remontam a posições em divergência, no 39

caso, as posições que se constituíram a partir da discursividade governista da época e as posições que começavam a se constituir a partir de outra discursividade, não coincidente com a primeira.

As relações entre as forças em disputa foram ganhando duração, de modo que fazem parte das condições de produção diferentes episódios de sublevação. Entre distintos eventos que marcaram o tenentismo, a Coluna Prestes se destaca fortemente na história desse movimento, constituindo uma marcha que teve início no Rio Grande do Sul e que foi até o Rio Grande do Norte, durando dois anos e três meses, retornando, em seu fim, às regiões fronteiriças do e cruzando o território boliviano. Diversos membros dessa marcha, como Juarez Távora, João Alberto Lins de Barros, Djalma Soares Dutra e Osvaldo Cordeiro de Farias, posteriormente, seguiriam a Aliança Liberal, em desacordo com os deslocamentos da tomada de posição de Luís Carlos Prestes na direção da discursividade comunista. Esses tenentistas integraram o movimento revolucionário de 1930 sob o comando de Góis Monteiro, que os perseguiu na década de 20: “Com a ruptura de Prestes, a chefia do movimento armado foi entregue ao tenente-coronel Pedro Aurélio de Góis Monteiro, ex- comandante de tropas legalistas que combateram os rebeldes paulistas e perseguiram a Coluna Prestes.” (Ibidem, p.126).

Apesar das alianças entre as forças em oposição ao governo, em 1930, a prática tenentista se identificava a rituais de sentido e memória próprios, pois sua constituição é anterior à Aliança Liberal. Assim, é pertinente questionar se os sentidos produzidos pelos tenentistas são coincidentes com a prática dos dirigentes políticos do movimento. Apesar de membros militares e políticos de diferentes partidos comporem um mesmo movimento, os sentidos mobilizados por uns e outros podem apontam para diferenças. A relação de aliança pode ocorrer de forma complexa, constituindo coincidências em certos campos, contudo, em outros, pode haver significações distintas em relação a alguns objetos. Dessa forma, determinações que funcionam produzindo sentidos para revolução podem apontar para a divisão na unidade do movimento revolucionário de 1930.

Um ponto recorrente em alguns enunciados diz respeito à ordem e às mudanças pretendidas com o movimento. A esse respeito, há a produção de sentidos para a designação ordem. Recorto, em um primeiro momento, algumas SD de Borges de Medeiros e de Getúlio Vargas enunciadas desde o começo da Aliança Liberal até depois do pleito eleitoral, quando Vargas já havia composto o manifesto sobre o resultado das eleições. Posteriormente, 40

recortarei sequências de Juarez Távora, um antigo membro do movimento tenentista, enunciadas após a derrota da Aliança Liberal.

SD15. A campanha de reação liberal – não é demais insistir – exprime uma generalizada e vigorosa tentativa de renovação dos costumes políticos e de restauração das práticas da democracia, dentro da ordem e do regime. (G. Vargas, Plataforma de Getúlio Vargas na campanha presidencial, grifos meus).

SD16. Afirmo-lhe que o Rio Grande se manterá dentro da ordem e da paz, fiel às suas tradições de absoluto respeito aos poderes constituídos. Não vejo absolutamente como remediar males, se eles existem, com um mal ainda maior como seria uma revolução. (B. Medeiros, Entrevista de Borges de Medeiros ao jornal A Noite, 19 de março de 1930, grifos meus).

SD17. Não renego igualmente as ideias que sustentei. É com serenidade e segurança que reafirmo a minha convicção de que o país está a exigir profunda modificação não só nos nossos hábitos e costumes políticos, como também em muitas de suas leis, sobretudo a eleitoral. Confio ainda que esta modificação se processará dentro da ordem e do regime. (G. Vargas, Manifesto de Getúlio Vargas sobre o resultado das eleições, 31 de maio de 1930, grifos meus).

Os trechos grifados significam diferentemente a crença na lei. A posição de sujeito que enuncia em SD16, próxima à que constitui a enunciação de Vargas, porém não coincidente, afirma que “o Rio Grande se manterá dentro da ordem” e o “absoluto respeito aos poderes constituídos”, garantindo a legitimidade da lei e remetendo à manutenção dos poderes legais dominantes. Faz-se produtivo remeter a base linguística à ordem discursiva e analisar o funcionamento da retomada de memórias diferentes daquelas de SD15 e SD17 sob formas verbais muito semelhantes. Em todas as sequências, um sintagma adverbial (SAdv) parecido se repete, contudo produzindo sentidos diferentes. Em SD16, esse SAdv é “dentro da ordem e da paz” que funciona sintaticamente como adjunto adverbial de “se manterá”.

No primeiro período de SD16, há uma partícula “se” funcionando morfologicamente como pronome reflexivo em relação ao sujeito “Rio Grande” e ao verbo “manterá”. O pronome reflexivo transforma o agente em paciente de sua ação, de modo que age sobre si próprio. Ao mesmo tempo, o adjunto adverbial restringe as condições de ação do agente-paciente: dentro da ordem e da paz. Assim, a manutenção da lei se perpetua pela ordem sintática por meio de uma informação adjacente que determina um funcionamento 41

cíclico, isto é, o agente é o paciente de um processo sem aberturas, onde se pressupõe não haver interferências de outros funcionamentos, nem deslocamentos. Dessa forma, uma paráfrase possível para traduzir a rede cíclica desse enunciado é: “O Rio Grande manterá dentro da ordem e da paz o Rio Grande”. O SAdv, função que pode ser sintaticamente suprimida numa sentença e, portanto, mais eficaz por poder funcionar discretamente, impõe o retorno de uma ação do agente sobre si mesmo, enquanto paciente. A análise desse retorno cíclico da lei, sem abertura para uma revolução, pôde ser configurada a partir da partícula “se”, presente em SD16, quando posta em relação às outras sequências. A presença dessa forma linguística constitui um sintoma que faz o ritual falhar ao permitir um gesto de leitura de um Rio Grande enquanto objeto dividido.

Na paráfrase “o Rio Grande manterá dentro da ordem e da paz o Rio Grande”, afirmar a ordem e a paz é também mobilizar as memórias que disputaram sentidos no passado e que estão em relação de forças no presente de 1930. Uma leitura produtiva é aquela que coloca em questão o objeto Rio Grande, de forma que o agente é dividido em relação ao paciente. Ou seja, o Rio Grande agente produz sentidos em que é e determina a ordem ao Rio Grande paciente, que esteve em uma relação de disputa com aquele e cujas memórias foram apagadas pela ilusão de unidade que se constituiu sobre a designação do estado. Nesse território, aconteceram conflitos sangrentos entre os aliados do partido republicano, força dominante em 1930, e os federalistas, assim como foi região do início de levantes tenentistas de 1924, ocasião em que a população se dividiu em relação ao apoio às tropas sublevadas. O enunciado extremamente equívoco “o Rio Grande se manterá dentro da ordem” produz o silenciamento de redes de memória em confronto, memória que produz múltiplas significações à revolução.

O SAdv “dentro da ordem e da paz” é semelhante ao que comparece nas sequências enunciadas por Vargas: “dentro da ordem e do regime”. Entretanto, apesar de uma base linguística similar, não é possível afirmar seu pertencimento à mesma família parafrástica, pois ‘paz’ e ‘regime’ não coincidem e também as posições que enunciam são distintas, de forma que os efeitos de sentido podem ser analisados a partir do SP “da paz”, em SD16, única diferença, na língua, em comparação à “do regime”, em SD15 e SD17. O sintagma “da paz” atualiza a memória das disputas que se travaram entre federalistas e republicanos, ao menos desde a revolução federalista, no Rio Grande do Sul. Também atualiza a alternatividade entre pela paz ou pela luta, analisada no subcapítulo a, na qual, à medida que o movimento revolucionário se torna mais provável, mais distante fica um acordo 42

entre a Aliança Liberal e o PRP. Afirmar o “absoluto respeito aos poderes constituídos” é sustentar os poderes dominantes que se perpetuaram historicamente. A revolução, enquanto “um mal ainda maior”, enunciada pela posição de sujeito na qual Borges de Medeiros se constitui, é atravessada por memórias, especificamente a da revolução federalista, que comparecem senão opacamente no movimento revolucionário de 1930.

O enunciado recortado de Vargas produz sentidos diferentes de SD16, ainda que Borges de Medeiros tenha apoiado a Aliança Liberal e, por vezes, estruturas linguísticas semelhantes compareçam nas três sequências em análise. Como apontado anteriormente, há um SAdv que comparece em todos os recortes, sendo o segundo SP a única modificação. Esse sintagma, nos enunciados de Vargas, é “dentro da ordem e do regime”, que se encontra presente em dois momentos distintos da campanha da AL: em uma fase anterior ao sufrágio (SD15), de divulgação da plataforma da campanha presidencial, e em um instante posterior ao pleito (SD17), após o resultado do presidente eleito. Em SD15, o sintagma adverbial retoma a forma verbal “exprime”, cujo complemento é “uma generalizada e vigorosa tentativa de renovação dos costumes políticos e de restauração das práticas da democracia”. Os sintagmas preposicionais grifados no recorte exposto, no caso, “de renovação” e “de restauração”, colocam um funcionamento diferente com relação à ordem, se comparado à enunciação de Borges de Medeiros. A respeito de SD16, afirmei que a lei se dava enquanto um processo sem aberturas. Em SD15, os SP grifados tornam “dentro da ordem e do regime” um processo equívoco, pois ao mesmo tempo em que se afirma a tentativa de renovação e de restauração dentro da ordem, abre-se para mudanças no regime.

O recorte presente em SD17 foi constituído após o pleito eleitoral e aponta para deslizamentos que já estavam latentes no momento de início da campanha da AL, como o equívoco entre ordem e regime, de um lado, e renovação e restauração, de outro. O SAdv trabalhado comparece em “Confio ainda que esta modificação se processará dentro da ordem e do regime”. O pronome demonstrativo retoma anaforicamente suas leis, cujo pronome possessivo retoma “o país”. Proponho uma paráfrase para analisar o enunciado: “Confio ainda que a modificação da lei, sobretudo a eleitoral, se processará dentro da ordem e do regime”. Se, em Borges de Medeiros, o SAdv “dentro da ordem e da paz” consolida o fechamento para mudanças, em Vargas, o SAdv “dentro da ordem e do regime” abre para uma relação equívoca entre ordem e regime e a modificação da lei, sobretudo a eleitoral. O equívoco, presente em SD17, já estava materializado, sob outra forma, em SD15. Dessa forma, modificação, enunciado após o pleito eleitoral, configura um deslizamento de renovação e 43

restauração, que produziam efeitos em concorrência com “dentro da ordem e do regime”. O equívoco comparece como indício da imbricação entre língua e história, de modo que certo estado das condições de produção, em dado momento, possibilitou que sentidos estáveis entrassem em disputa no interior de uma discursividade, mas com a dominância da ordem e do regime sobre possíveis mudanças. Com a reconfiguração das condições de produção, modificação ganhou prevalência, fazendo eclodir o movimento revolucionário. Contudo, a ordem não deixa de compor a posição que constitui Vargas.

A ordem, então, se mantém legitimada na posição na qual SD16 foi enunciada, numa circularidade que não produz aberturas a deslizamentos. Na posição a partir da qual o dizer de Vargas é constituído, em SD15 e SD17, o equívoco presente entre a mudança e a ordem e o regime abre para deslizamentos possíveis, ainda que a legitimidade dos processos legais não seja totalmente suprimida. No entanto, a enunciação de Juarez Távora, um tenentista que compôs o movimento revolucionário, mobiliza outra posição diante de ordem, colocando em jogo sua legitimidade de forma mais veemente. Recorto, a seguir, duas sequências discursivas enunciadas em um momento posterior ao pleito eleitoral.

SD18. Temos tido todos nós que hoje palmilhamos o caminho da revolução um mesmo ponto de partida: a descrença na eficiência dos processos legais para a solução da crise que asfixia a nacionalidade. (J. Távora, Carta aberta de Juarez Távora, 31 de maio de 1930, grifos meus).

SD19. Nós os da velha guarda revolucionária, acreditamos que o mal não reside apenas na deficiência dos homens – mas, sobretudo, na perniciosa mentalidade ambiente que a prática defeituosa de uma Constituição, divorciada das realidades da vida nacional, permitiu surgir, timidamente, na aurora do regime, e agravar-se, intoleravelmente, sob o consulado dos últimos governos. (J. Távora, Carta aberta de Juarez Távora, 31 de maio de 1930, grifos meus).

As sequências acima, enunciadas a partir da posição na qual se constitui o enunciado de Távora, apresentam um funcionamento linguístico semelhante quanto ao nós nos recortes a seguir: “todos nós que hoje palmilhamos o caminho da revolução” e “Nós os da velha guarda revolucionária”. Ambos são acompanhados de uma determinação, contudo, no primeiro caso, ocorre via uma oração relativa restritiva e, no segundo, através de um sintagma preposicional. No entanto, discursivamente, ao trabalharmos com a não pessoa discursiva, o funcionamento apresenta diferenças. Em SD18, o enunciador identifica-se a um nós 44

generalizado, reforçado pelo pronome indefinido todos, cuja única especificidade seria “hoje palmilhar o caminho da revolução”. O efeito produzido é o da unidade de revolução, assim como o da unidade dos sujeitos que compõem essa revolução. Então, ao passo que o pronome “todos” produz o apagamento da divisão inscrita no movimento revolucionário desde sua constituição, “o caminho da revolução” concorre pelo apagamento de outros sentidos possíveis de revolução. De todo modo, revolução é algo já dado na enunciação de Távora, de forma que não há dúvidas de sua realidade.

O recorte que comparece em SD19, ao trabalhar com a não pessoa discursiva, produz outros efeitos. A posição de sujeito relacionada à discursividade tenentista identifica- se a um nós especificado, introduzido por um SP: da velha guarda revolucionária. Ao levar em conta a presença de membros do tenentismo na composição do movimento revolucionário, a velha guarda revolucionária pode ser parafraseada por tenentistas. Uma divisão é criada entre nós, os da velha guarda e, parafrasticamente, os outros, da jovem guarda revolucionária. Esse funcionamento, presente na base material da língua pelo nós e pelo SP que o determina, pode ser lido como indício de uma divisão na composição da Aliança Liberal. Um dos efeitos dessa dessemelhança comparece nos sentidos produzidos para a ordem e o regime. Na posição a partir da qual se constitui a enunciação de Vargas, analisei uma relação equívoca entre a ordem e a mudança. Na enunciação de Távora, contudo, a legitimidade mobilizada ao regime será outra.

A posição de sujeito na qual Juarez Távora constitui-se enquanto sujeito enunciador coloca em questão a validade da lei. Os recortes a seguir, extraídos de SD18 e SD19, apontam para esse funcionamento: “a descrença na eficiência dos processos legais” e “a prática defeituosa de uma Constituição”. Os SP “dos processos legais” e “de uma Constituição” produzem sentidos semelhantes, pertencendo à mesma família parafrástica. De modo similar, o sintagma “a descrença na eficiência” funciona como paráfrase de “a prática defeituosa”. Ambos os recortes, em SD18 e SD19, produzem uma descrença no regime.

Assim, ocorrem três posições dessemelhantes em relação ao objeto ordem. No enunciado de Borges de Medeiros, há uma plena legitimação da ordem, através de um funcionamento aparentemente sem brechas à mudança. Na enunciação de Vargas, o rearranjo nas condições de produção, após o pleito eleitoral e a aproximação ao tenentismo, impõe um deslizamento entre os significantes renovação/restauração e mudança, tornando acentuada a relação equívoca com a ordem, latente anteriormente. Entretanto, a legitimidade da ordem não é completamente dispensada pela posição que constitui Vargas. Na enunciação de Távora, 45

configura-se uma deslegitimação dos poderes legais, isto é, uma descrença do regime. As três posições analisadas compuseram a Aliança Liberal, que conduziu o movimento revolucionário de 1930. Esse movimento, ao mesmo tempo em que apresentava convergências necessárias para sua constituição, apresentava divisões em seu interior em campos determinantes para os rumos da política nacional. c) Lei, eleição e fraude

Nos subcapítulos anteriores, analisei o funcionamento do equívoco na produção de sentidos outros. Sobre a designação luta, um trajeto de deslizamentos foi percorrido por sequências enunciadas em condições de produção heterogêneas, de modo que isso apontava para o momento em que a equivocidade possibilitou significações outras que contribuíram para a constituição do movimento revolucionário. Uma relação equívoca também estava posta entre a ordem e o regime e a possibilidade de modificação em enunciados constituídos a partir da posição na qual Vargas se constitui como sujeito do discurso. Com relação à luta, a derrota eleitoral e a aproximação aos tenentistas foram fatores de influência para o deslizamento de luta eleitoral para luta armada. Tais razões também tiveram importância para uma ressignificação de regime e uma aproximação de modificação a partir da posição que estruturou o dizer de Vargas. Essas diferentes designações marcaram a possibilidade da constituição do movimento revolucionário.

Neste subcapítulo, farei um retorno à questão legal e à eleitoral, presentes anteriormente, analisando sua importância para a formação do movimento revolucionário. Ao trabalhar com os sentidos de modificação, propus a seguinte paráfrase ao partir das relações anafóricas estabelecidas por um pronome demonstrativo: “Confio ainda que a modificação da lei, sobretudo a eleitoral, se processará dentro da ordem e do regime” [SD17]. A lei, sobretudo a eleitoral, comparece como um complemento de modificação, produzindo-lhe sentidos que indicam significações que circularam e constituíram o movimento revolucionário. No arquivo, a presença da questão eleitoral foi regular, em muitos momentos colocando em jogo a lei. Desse modo, ao levar em conta o retorno sintomático desses objetos no corpus, compus um trajeto de lei e eleição em enunciados relacionados à Aliança Liberal, abrangendo de novembro de 1929, ocasião em que a AL já estava formada, até a tomada do poder, em novembro de 1930. Abaixo, seguem os recortes:

SD20. Sobre voto secreto diz ele será uma maneira moralizar eleições. Precisamos uma lei impeça fraude que é um grande mal. Claro que a par disso precisamos 46

também respeitar resultado das urnas. De nada valerá uma boa lei eleitoral mesmo voto secreto sem que haja propósito de se respeitar voto. Acreditamos que voto secreto será um grande passo dado no sentido de se ter no país eleições honestas.12 (G. Vargas, Entrevista telegráfica de Getúlio Vargas ao jornal A Noite, novembro de 1929, grifos meus)

SD21. É uma dolorosa verdade, sabida de todos, que o voto e, portanto, a representação política, condições elementares da existência constitucional dos povos civilizados, não passam de burla, geralmente, entre nós. (Plataforma de Getúlio Vargas na campanha presidencial, grifos meus)

SD22. Alega-se que as minorias políticas só não se fazem representar nas Assembleias Legislativas quando não constituem forças ponderáveis de opinião. Raramente é isso exato. Muito mais frequente é o caso de núcleos fortes de oposição com inegável capacidade de irradiação e proselitismo não conseguirem, sequer, pleitear seus direitos nas urnas, porque são triturados pela máquina oficial, pela violência, pela compressão, pela ameaça, obrigados à submissão ou à fuga, quando impermeáveis à sedução ou ao suborno. Se, por milagre, chegam, às vezes, a escapar a todos esses fatores conjugados, acabam vencidos, afinal, pela fraude. (Idem, grifos meus)

SD23. Em muitos estados, excetuadas as capitais e algumas cidades mais importantes, não se fazem eleições. Dias antes dos pleitos, os livros eleitorais percorrem a circunscrição, recebendo as assinaturas dos eleitores “amigos”. De acordo com essa coleta, lavram-se as correspondentes atas, que são encaminhadas, após, com todas as exteriores formalidades oficiais. (Idem, grifos meus)

SD24. Quarenta anos de regime republicano radicaram, com efeito, em muitas localidades e não apenas nos sertões, a fraude sistematizada, em nome da qual falam os representantes da nação [...] (Idem, grifos meus)

SD25. Sabemos quais os elementos com que pretende jogar o partido situacionista; deslembrado de que, com os processos que imagina pôr em prática, a ascensão ao Catete de seu candidato seria como a marcha de um esquife em caminho do sepulcro. Não nos é estranho imaginarem os reacionários suplantar as vozes dos

12 Algumas sequências, enunciadas por telégrafo, podem ter partículas ou palavras suprimidas. 47

liberais na aluvião das atas falsas, das ameaças, da fraude, da compreensão, da derrama dos dinheiros públicos, da cavalaria dos eleitores volantes e dos votos dos estrangeiros, dos menores e de quantos, por si ou por outrem, possam depositar cédulas nas urnas. (Aliança Liberal, Eleição Presidencial de Março de 1930, 26 de fevereiro de 1930, grifos meus)

SD26. Compostas de magistrados federais e de representantes dos próprios estados, essas Juntas têm de somar os votos que tiveram os candidatos. Para uns as Juntas são suspeitas: mas a culpa disso não é de ninguém. A lei assim o determina. Depois, formar-se-á o Congresso e, para os senadores e deputados, eles próprios se reconhecerão e, mais tarde, reconhecerão o Presidente e o Vice-Presidente da República. Funções exclusivamente políticas, mas que o são de acordo com o nosso regime. Se isso é um mal, vamos reformar o regime. Mas cumpramos por enquanto a lei. (B. Medeiros, Entrevista de Borges de Medeiros ao jornal A Noite, aconselhando o acatamento do resultado das urnas e o reconhecimento de Júlio Prestes, 19 de março de 1930, grifos meus)

SD27. Pode haver, e há, muitos votos a subtrair desses totais, provenientes de fraudes que as Juntas vão apurar. Serão reduções proporcionais, porque fraudes houve de norte a sul, inclusive aqui mesmo. A lei eleitoral infelizmente favorece essas coisas e, diante da nossa ainda falha educação cívica, não há como impedir de todo tais vergonhas. (Idem, grifos meus)

SD28. Reputo desnecessário mencionar circunstanciadamente as fraudes e compressões que, no decorrer das eleições e nas urnas, foram verificadas em número não pequeno, abrangendo toda a larga escala dos processos de mistificação que o reiterado viciamento do sufrágio popular tornou entre nós inevitável, mercê da incultura política dos executores da lei, cujos truques e ardis a mesma legislação eleitoral estimula e propicia. (G. Vargas, Manifesto de Getúlio Vargas sobre o resultado das eleições, 31 de maio de 1930, grifos meus)

SD29. Ainda quando percebi que a hipertrofia do Executivo inteiramente fora da medida, absorvendo os três poderes, aniquilava o regime e assumi de maneira ostensiva a direção da luta eleitoral em favor do meu opositor, tentei uma solução conciliatória. As violências e perseguições prévias, como ato preparatório da fraude, punham em evidência que depois do pleito eleitoral tenderia a que a 48

cumplicidade de um Congresso sem compreensão dos seus altos deveres ajustes de contas pelo sacrifício de direitos, de todos os elementos incorporados à corrente Liberal.13 (G. Vargas, Manifesto de Getúlio Vargas, 24 de agosto de 1930, grifos meus)

SD30. Sua interferência violenta e desabusada, tolhendo ao povo o direito de voto, as fraudes escandalosas praticadas nas eleições de março, o esbulho contra candidatos que haviam vencido, apesar da intervenção federal, os crimes perpetrados contra a Paraíba, cuja autonomia foi ostensivamente violada, as ameaças contra o estado do Rio Grande do Sul, fizeram transbordar a indignação do povo, amparado pelas forças do Exército Nacional. (G. Vargas, Entrevista de Getúlio Vargas à United Press, outubro de 1930, grifos meus).

SD31. No Brasil, salvo pequenas exceções, não existe regime representativo. Não há eleições, no exato sentido desta palavra. Na maior parte dos estados do Brasil, as eleições são lavradas em atas falsas, feitas nas casas dos apaniguados dos governos locais, sem interferência do povo. (Idem, grifos meus).

SD32. Era vossa também a convicção de que só pelas armas seria possível restituir a liberdade ao povo brasileiro, sanear o ambiente moral da pátria, livrando-a da camarilha que a explorava, arrancar a máscara de legalidade com que se rotulavam os maiores atentados à lei e à justiça – abater a hipocrisia, a farsa e o embuste. (G. Vargas, Discurso de posse de Getúlio Vargas como Chefe do Governo Provisório, 3 de novembro de 1930, grifos meus)

No recorte extraído da entrevista de Vargas ao jornal A Noite, em SD20, comparecem algumas designações e relações que se perpetuaram pelo corpus discursivo. Entre elas, a designação lei eleitoral, que coloca em relação uma questão central deste subcapítulo: os sentidos que circulam em torno dos objetos lei e eleição, e que foram inicialmente trabalhados a partir da paráfrase “modificação da lei, sobretudo a eleitoral”. Também se repetiram designações que determinam a eleição, produzindo-lhe sentidos, como fraude. Essa forma de denominar compõe um percurso particular em relação com os objetos que são o centro deste subcapítulo. Sua regularidade e mudança de sentidos apontam para reconfigurações nas condições de produção.

13 Esse recorte apresenta-se com sintaxe e léxico estranhos na fonte. 49

Ainda, em SD20, as orações de sujeito implícito, de verbo na primeira pessoa do plural, no presente do indicativo, apontam para práticas que não são exercidas no presente da enunciação. Em “Precisamos uma lei impeça fraude”, “precisamos também respeitar resultado das urnas” e “Acreditamos que voto secreto será um grande passo dado no sentido de se ter no país eleições honestas”, o verbo, no primeiro recorte, mobiliza significações em que a lei possibilita fraude, e, em seguida, que o resultado das urnas não são respeitados. No terceiro recorte, acreditamos, junto com o verbo no futuro do indicativo será e a partícula se mais o indicativo ter, em se ter, mobilizam sentidos em que as eleições não são honestas. Assim, a lei é fraudulenta, os resultados das urnas não são respeitados e as eleições são desonestas.

Na sequência 21, a existência constitucional é posta em questão, e assim, por consequência, as extensões possíveis que dela derivam, como a lei e o Estado de direito. O voto, significado como representação política e determinado como condições elementares da existência constitucional dos povos civilizados, é deslegitimado pela designação burla. Essa, ao produzir sentidos para voto, atualiza a memória de lei fraudulenta e eleições desonestas. Ao analisar também o nós, presente na SD21, é possível significá-lo como brasileiros e determiná-lo como povo não civilizado, pois as condições elementares de sua existência constitucional não existem. Dessa forma, na ausência das condições elementares da existência constitucional, há uma relação posta entre a questão eleitoral e a lei, que abre para a possibilidade de sentidos que coloquem em jogo a validade da ordem.

Em SD22, também recortada a partir da Plataforma de Getúlio Vargas na campanha presidencial, assim como a anterior, é constituída a designação do agente que implementaria a impossibilidade de pleitear direitos nas urnas: a máquina oficial. Se em SD20 não está colocada uma relação entre lei, questão eleitoral e agente de uma prática, em SD22 esse laço é construído remetendo ao poder legal. A denominação máquina oficial pode funcionar atualizando sentidos de governo instituído, de ordem vigente e de existência constitucional atual. A legitimidade do poder oficial é outra vez posta em questão por estar associada a práticas como violência, compressão, ameaça, sedução, suborno e fraude. A sequência 23 atualiza os sentidos de eleições desonestas no recorte não se fazem eleições, apontando o funcionamento da fraude. Também deslegitima a ordem ao colocar formalidades oficiais em relação com a desonestidade eleitoral.

Afirmei que uma relação entre lei, eleitoralidade e a ordem vigente havia sido mobilizada em SD22. Essa aproximação apresenta-se como regular e comparece também em 50

outras sequências, como em SD23, por meio de não se fazem eleições e formalidades oficiais. O equívoco em formalidades oficiais possibilita significá-lo como as formalidades da lei, que mobiliza o imaginário de atemporalidade, e a oficialidade exigida pela ordem vigente, deslegitimando essas duas formas em relação ao fazer eleitoral, que, em consequência, estaria sofrendo com a fraude. Em SD24, a fraude sistematizada, que traz à memória a lei e a eleitoralidade, se relaciona com os representantes da nação. Assim, fraude desliza para fraude sistematizada, constituindo-se em prática do regime republicano, e os representantes, podendo ser adjetivados de fraudadores, são desautorizados. Esse percurso de deslegitimação do regime e de seus representantes constitui uma abertura que possibilitará o surgimento do movimento revolucionário e sua ascensão.

A regularidade da relação entre a fraude e um agente que a pratica se mantém, entretanto, a denominação de um agente ocorre de forma mais precisa no texto da Aliança Liberal anterior ao pleito de 1º de março de 1930. Em SD25, partido situacionista e reacionários significam junto de aluvião das atas falsas, das ameaças, da fraude, da compreensão, da derrama dos dinheiros públicos, da cavalaria dos eleitores volantes e dos votos dos estrangeiros, dos menores e de quantos, por si ou por outrem, possam depositar cédulas nas urnas. Entre diferentes práticas, a fraude eleitoral é reiterada, atualizando os recortes de SD23: “Precisamos uma lei impeça fraude”, “precisamos também respeitar resultado das urnas”. Tais sentidos funcionam ao longo do corpus produzindo a deslegitimação de um terceiro, e, dada a aproximação das eleições que caracteriza SD25, o partido situacionista, e opositor à Aliança Liberal, é significado como o agente da fraude.

O recorte presente em SD26, enunciado de uma posição de sujeito distinta das analisadas até agora, produz sentidos diferentes dos até então mobilizados. Em “Para uns as Juntas são suspeitas: mas a culpa disso não é de ninguém. A lei assim o determina”, há uma despersonalização do agente praticante de fraude. Ainda, em “Se isso é um mal, vamos reformar o regime”, não se trata de alterar aqueles que estão à frente do regime, mas de reformá-lo. Esse funcionamento decorre da despersonalização que mobiliza sentidos para lei e regime e que, por consequência, desresponsabiliza entidades como as Juntas. O funcionamento presente nas sequências enunciadas a partir da posição que constitui Vargas, anteriores à SD26, é de tal modo diferente que possibilita a constituição de uma relação entre a existência da fraude e a responsabilização de um agente que a produz. Em SD27, “A lei eleitoral infelizmente favorece essas coisas”, significa lei eleitoral como fraudulenta, contudo, responsabilizando a própria lei, e não o poder instituído. 51

Os sentidos mobilizados em SD26 e SD27 foram produzidos a partir de uma posição que, apesar de compor a Aliança Liberal, apresenta dessemelhança em relação ao objeto lei quando comparada à posição a partir da qual a enunciação de Vargas foi constituída. Significar a fraude como produto da lei eleitoral, sendo que “a culpa disso não é de ninguém”, não foi a rede de sentidos que possibilitou a constituição do movimento revolucionário. Um dos fatores de seu desencadeamento foi a circulação de uma posição discordante da de Borges de Medeiros em relação à lei, o qual não mobilizava ao partido situacionista a relação entre fraude e eleição. Em SD28, no recorte “o reiterado viciamento do sufrágio popular tornou entre nós inevitável, mercê da incultura política dos executores da lei, cujos truques e ardis a mesma legislação eleitoral estimula e propicia”, há a designação dos responsáveis pelo viciamento das eleições: os executores da lei. Em SD29, é possível ler o poder instituído como responsável pela fraude eleitoral, pois há a atualização do poder Judiciário em “a hipertrofia do Executivo inteiramente fora da medida, absorvendo os três poderes, aniquilava o regime”.

Dada as articulações iniciais do movimento revolucionário, a questão eleitoral é um dos fatores que confere sua legitimidade. A sequência 30, “tolhendo ao povo o direito de voto, as fraudes escandalosas praticadas nas eleições de março, o esbulho contra candidatos que haviam vencido”, atualiza sentidos de SD20, porém, agora, de forma a mobilizar povo contra o poder oficial. Ao longo do percurso realizado pelo corpus discursivo, a legitimidade do regime foi posta em questão, culminando, em SD31, na afirmação da ausência de representatividade do governo instituído. O recorte não existe regime representativo pode ser parafraseado por não há eleições, no exato sentido desta palavra, presente na mesma sequência. Esse movimento de deslegitimação da representatividade, mobilizando diferentes sentidos desde antes do início oficial da campanha eleitoral da Aliança Liberal, foi determinante para a constituição do movimento revolucionário.

Em SD32, em “arrancar a máscara de legalidade com que se rotulavam os maiores atentados à lei e à justiça”, os objetos lei e justiça estão em relação à máscara de legalidade, de maneira que esse funcionamento desautoriza o governo anterior pela prática de atentados sob o disfarce da legalidade. Tal recorte produz um efeito de “ajuste” na contradição que atravessa a posição a partir da qual a enunciação de Vargas é constituída. Em um recorte enunciado em SD17, “Confio ainda que esta modificação se processará dentro da ordem e do regime”, compareceu uma disputa entre modificação e ordem e regime. Com o movimento revolucionário, ordem e regime foram deslegitimados em prol da modificação das forças 52

oficiais. Afirmar a máscara de legalidade e os atentados do regime anterior é um modo de se significar dentro da ordem e de apontar a posição governista como fora dela.

Esse funcionamento conciliaria a contradição entre modificação e ordem e regime. No entanto, os deslocamentos analisados no percurso realizado apontam para um efeito de conciliação. A posição a partir da qual a enunciação de Borges de Medeiros é constituída, em SD26 e SD27, produz sentidos para a lei e o regime em que a despersonalização desses objetos implica numa continuidade daquilo que já significam. Diferentemente, em SD18 e SD19, na posição a partir da qual a enunciação de Juarez Távora é constituída, os recortes “a descrença na eficiência dos processos legais” e “a prática defeituosa de uma Constituição” apontam para a modificação do regime. A posição a partir da qual a enunciação de Vargas é constituída parece oscilar entre uma posição e outra, por mais que se aproxime dos sentidos de enunciadores tenentistas quando o movimento revolucionário ganha seus primeiros contornos. O recorte “Era vossa também a convicção de que só pelas armas seria possível [...] arrancar a máscara de legalidade com que se rotulavam os maiores atentados à lei e à justiça” [SD32] mantém o funcionamento da equivocidade na sequência, pois só pelas armas aponta para uma modificação que remete à memória do tenentismo, e a insistência no imaginário da legalidade aponta para as sequências enunciadas a partir da posição na qual Borges de Medeiros é constituído enquanto sujeito do discurso. d) A revolução em Vargas

Getúlio Vargas, em 3 de novembro de 1930, toma posse como chefe do governo provisório da República, pronunciando seu discurso oficial. Washington Luís, o antigo presidente, já havia sido deposto e feito prisioneiro, no forte de Copacabana, por uma junta de generais militares não integrantes da Aliança Liberal. Esses generais foram os condutores da transição do poder, de modo que o período de vacância entre a saída de um presidente e a posse de outro durou cerca de 10 dias. Esse período coloca algumas questões para alguns historiadores, como Boris Fausto, quanto à transição do poder a Vargas e a perpetuação da junta de militares:

Tasso Fragoso, Bertoldo Klinger, Malan d’Angrogne, Leite de Castro executaram o golpe de 24 de outubro no Rio de Janeiro, ‘para prevenir excessos’, e há sérios indícios de que pretendiam se perpetuar no governo. Klinger, pelo menos, manifestou-se abertamente neste sentido. (FAUSTO, 1997, p.135). 53

De toda forma, foi Vargas o presidente empossado com os poderes da República, que, em seu primeiro pronunciamento oficial, enunciou, na primeira linha, a designação movimento revolucionário, determinando-a discursivamente. Esse tipo de determinação, diferente da linguística, funciona saturando o nome a partir de uma posição de sujeito. Os elementos da saturação, como um adjetivo, um sintagma preposicional ou uma oração relativa, comparecem no intradiscurso como determinantes que se relacionam com o nome, produzindo-lhe sentidos a partir de uma FD. Freda Indursky afirma que “a concepção de determinação discursiva consiste em um efeito de sentido onde intervêm conjuntamente fatores sintáticos, semânticos e ideológicos. E daí decorre sua diferença com a concepção linguística de determinação.” (INDURSKY, 2013, p.215, grifos da autora).

A designação movimento revolucionário, acompanhada de diferentes determinações, circulou em diversos enunciados, a partir de posições de sujeito que produziam sentidos semelhantes àqueles na qual a posição de interpelada a significar, como na enunciação de Tasso Fragoso, integrante da junta militar, no discurso de 4 de novembro. No entanto, o evento, que foi historicamente estabilizado como movimento revolucionário, também foi denominado como movimento subversivo e contra-revolução. O equívoco comparece como índice das forças que disputavam por estabilizar o evento de 1930. O mesmo evento é designado e determinado diferentemente a partir da posição que o nomeia, mobilizando redes de sentido outras, configurando o panorama das forças que lutavam por dominá-lo. Dessa forma, o equívoco, na língua, funciona como o espaço de materialização das disputas na história, isto é, da contradição que configura a relação entre as formações discursivas no interdiscurso.

As designações citadas, além de indicar a relação contraditória entre posições na formação social configurada em 1930, expõem o que há de inapreensível no evento e o caráter dividido do objeto revolução. As diferentes formas de denominar e determinar o evento são também formas conflitantes de produção de sentidos. A existência dessas relações de forças coloca o real da história em jogo na medida em que a impossibilidade de captura desse real movimenta a contradição. As diferentes posições ideológicas mobilizam fragmentos do real, para os quais diferentes sentidos são produzidos, contudo, a existência de forças em disputa aponta para a impossibilidade de o apreender, de modo que esse inapreensível do evento faz trabalhar a contradição. Sendo assim, a contradição está em relação com o impossível do real. E o evento tem algo a ver com um momento cujo real que o ocasionou escapa, mas produzindo efeitos a partir de um efêmero encontro. Afinal: “Não 54

descobrimos, pois, o real: a gente se depara com ele, dá de encontro com ele, o encontra.” (PÊCHEUX, 2015, p.29).

As designações recortadas anteriormente – movimento revolucionário, movimento subversivo e contra-revolução –, constituídas como formas concorrentes de nomear o evento de 1930, compareceram na enunciação de Vargas, Washington Luís e Carlos Prestes, respectivamente. Getúlio Vargas foi o porta-voz da Aliança Liberal, que produziu sentidos para movimento revolucionário a partir de uma identificação com um certo projeto de nação. Essa discursividade fez circular os sentidos que foram estabilizados na história institucionalizada sobre o evento de 30. Em um gesto inicial, trabalhei com o evento de 1930 designado como movimento revolucionário, significado a partir da posição de sujeito na qual a enunciação de Getúlio Vargas foi constituída. Quanto ao corpus, recortei sequências do discurso de posse de Vargas como chefe provisório da República. Esse é um texto oficial que inaugura um momento histórico, fazendo circular massivamente novos sentidos para revolução, a partir de um lugar privilegiado14.

Linguisticamente, ao menos dois níveis de leitura são produtivos para se trabalhar com a designação do evento de 1930: em uma primeira leitura – lexical –, movimento revolucionário é constituído por um substantivo e um adjetivo qualificativo, em outra – sintática –, a designação constitui um sintagma nominal que estará em relação a outros sintagmas. A primeira leitura é proveitosa para pensar o funcionamento interno da denominação e sua relação com os apagamentos e retomadas de memória de outros eventos. Já a segunda será especialmente produtiva para analisar a produção de sentidos outros a partir de uma posição, objetivo para o qual prossigo neste momento.

Ao afirmar que sintaticamente o sintagma nominal é qualificado por outros sintagmas, esse funcionamento na base linguística, em uma leitura discursiva, evoca o eixo intradiscursivo e as relações sustentadas pela designação e seus determinantes. Contudo, para analisar a produção de sentidos própria a uma posição, é preciso não se restringir ao intradiscurso e levar em consideração as relações intersequenciais sustentadas, pois elas mobilizam a significação. Indursky afirma que “[n]este segundo nível de determinação discursiva, são relacionadas diferentes determinações intradiscursivas que se encontram em sequências discursivas dispersas ao longo do corpus.” (INDURSKY, 2013, p.221-222, grifos

14 O discurso de posse de Vargas encontra-se anexo, pois em diferentes ocasiões, em distintos capítulos, irei recortar sequências desse texto. 55

da autora). Para analisar como movimento revolucionário é significado em diferentes sequências, portanto, tratei a designação como um sintagma, para, em seguida, trabalhar com as determinações que produzem sentidos para ela através de um jogo imbricado entre relações sintáticas e intradiscursivas colocadas num plano intersequencial.

Dois movimentos de determinação discursiva da denominação compareceram na análise: um relacionado à legitimidade da revolução da AL perante o povo, bem como os efeitos daí advindos, como o apagamento de outras posições. Outro, relacionado aos objetivos do movimento revolucionário, depois que a AL chegou ao poder. Duas designações foram emblemáticas para marcar as redes parafrásticas distintas que determinaram o movimento: movimento eminentemente nacional e movimento regenerador. Recorto, a seguir, algumas sequências do discurso de posse de Vargas a fim de trabalhar intersequencialmente com sintagmas que possibilitam significar o evento como movimento eminentemente nacional:

SD33. Ele é [o movimento revolucionário], efetivamente, a expressão viva e palpitante da vontade do povo brasileiro (G. Vargas, Discurso de posse, 3 de novembro de 1930, grifos meus).

SD34. Para não defraudarmos a expectativa alentadora do povo brasileiro, para que este continue a nos dar seu apoio e colaboração, devemos estar à altura da missão que nos foi por ele confiada. (Idem, grifos meus).

SD35. [...] a revolução foi a marcha incoercível e complexa da nacionalidade, a torrente impetuosa da vontade popular, quebrando todas as resistências, arrastando todos os obstáculos, a procura de um rumo novo, na encruzilhada dos erros do passado. (Idem, grifos meus).

Os sintagmas grifados acima determinam sentidos para movimento revolucionário significando sua relação com o povo, como em “a expressão viva e palpitante da vontade do povo brasileiro”, “a expectativa alentadora do povo brasileiro”, “a marcha incoercível e complexa da nacionalidade” e “a torrente impetuosa da vontade popular”. Uma regularidade sintática pode ser observada nos recortes acima. Todos são sintagmas nominais (SN) que introduzem sintagmas preposicionais (SP) que alocam paráfrases de povo brasileiro. O primeiro sintagma configura uma exceção na medida em que o SP que guarda uma relação parafrástica com vontade popular é introduzido por outro SP, da vontade, que está ligado a um SN. Em SD33 e SD35, os SN ocupam a posição de predicativo do sujeito, atribuindo uma qualificação ao nome, que, no caso, desliza parafrasticamente de movimento revolucionário, 56

em SD33, para revolução, em SD35. Indursky afirma que: “O sujeito é compelido, pela formação discursiva que o afeta, a saturar o substantivo [...], pois os determinantes linguísticos que precedem o nome não são suficientes para determinar o seu dizer.” (INDURSKY, 2013, p.216, grifos da autora). Uma das formas de saturar o nome, nas sequências analisadas, ocorre pela determinação intersequencial através de SP – do povo brasileiro, da nacionalidade, da vontade popular – contidos em SN – a expressão viva e palpitante, a expectativa alentadora, a marcha incoercível e complexa, a torrente impetuosa – relacionados a movimento revolucionário.

Os SP pertencem à mesma família parafrástica, pois funcionam como modos diferentes de produzir sentidos semelhantes – povo brasileiro, nacionalidade, vontade popular. Essa rede de paráfrases determina sentidos para o evento de 1930 a partir da posição de sujeito na qual a enunciação de Vargas se constitui, provocando efeitos sobre o movimento e sobre as significações de outras discursividades. Mobilizar sentidos que determinam o movimento revolucionário como “a expressão viva e palpitante da vontade do povo brasileiro” ou “a marcha incoercível e complexa da nacionalidade” produz uma versão oficial da história na qual a legitimidade do movimento está garantida perante a população. Mais, ainda, determinar desse modo uma versão do evento a partir da posição enunciativa que constitui o dizer de Vargas é fabricar uma unidade entre o movimento e o povo, como se não houvesse divisões intrincadas. Esse funcionamento remonta ao nós universalista da figura do porta-voz, que apaga a distância entre ele e a população, que, por sua vez, também é dividida.

A transição do porta-voz ao poder da República implica na continuação de certos mecanismos, como o nós universalista mencionado. Essa identificação total entre povo e movimento implica, também, no silenciamento de outros movimentos que contestem a posição a partir da qual se constitui os enunciados de Vargas e que produzam outros sentidos para o evento. Não há espaço, a princípio, para que um outro povo ou outra revolução circulem em concomitância com aqueles do discurso oficial. Dessa forma, não é em vão que uma das paráfrases para revolução, que comparece no discurso de posse de Vargas, seja “movimento eminentemente nacional” (VARGAS, 1930). O qualificativo “eminentemente nacional”, considerando o pertencimento de nacionalidade e povo à mesma família parafrástica, funciona como forma de dizer revolução. Dito de outra forma, revolução significa nacionalidade e vontade popular. Ou seja, não existe povo fora da revolução da enunciação de Vargas, nem outra revolução legitimada por outra nacionalidade que não seja a de Vargas. 57

A relação entre povo e revolução, como afirmado, garante legitimidade ao movimento. Esse efeito, em parte, é produzido por uma imagem de unidade de povo, que é estruturada nas formas “povo brasileiro”, “vontade popular” e pelo pronome singular de terceira pessoa “ele”, em SD34. O efeito de totalidade presente nos sintagmas recortados, bem como no pronome, contribui para a produção da revolução como vontade legítima da população, escrevendo a história que se institucionalizaria e, ao mesmo tempo, impedindo que povo seja compreendido como uma designação que reúne posições desiguais, divididas. Assim, tenta-se apagar o outro do discurso de posse de Vargas, pois as posições que se identificavam com Carlos Prestes e a posição governista, e portanto estavam na contramão do movimento da Aliança Liberal, foram silenciadas pelo imaginário de povo como uma coletividade de posição única e coincidente. A revolução da posição que constitui Vargas, parafraseada por movimento eminentemente nacional, significa, portanto, como movimento de uma população una e identificada a uma certa posição, apagando os sentidos que circulam em outras posições.

A produção do imaginário de um povo uno mantém uma relação com a posição que enuncia, especialmente pelo funcionamento da não pessoa discursiva. Indursky afirma sobre esse conceito que “na interlocução discursiva, a não pessoa discursiva corresponde ao referente lexicalmente não especificado ao qual eu se associa para constituir nós.” (INDURSKY, 2013, p.82, grifos da autora). O nós é compreendido como as diferentes formas linguísticas que se relacionam com a primeira pessoa do plural, como flexões verbais e pronome possessivo, não se restringindo, portanto, ao pronome pessoal do caso reto. A não pessoa discursiva, no discurso de posse de Vargas, apresentou dois funcionamentos distintos, de modo que ambos produzem sentidos em relação a povo e à ilusão de unidade. A análise dessa operação demanda outros enunciados que fazem trabalhar o nós da não pessoa discursiva:

SD36. O movimento revolucionário, iniciado, vitoriosamente, a 3 de outubro, no sul, centro e norte do país, e triunfante a 24, nesta capital, foi a afirmação mais positiva que, até hoje, tivemos da nossa existência como nacionalidade. (Idem, grifos meus).

SD37. Em toda a nossa história, não há, sob esse aspecto, acontecimento semelhante. (Idem, grifos meus). 58

Nos recortes “tivemos da nossa existência como nacionalidade” e “toda a nossa história”, o sujeito da enunciação de Vargas está identificado com a totalidade do povo. A não pessoa discursiva comparece produzindo uma igualdade entre a posição em que Vargas enuncia e a população, de forma que a nacionalidade e a história de um também é a de outro. As formas linguísticas de primeira pessoa do plural estão imbricadas a um funcionamento discursivo que coloca a posição de Vargas como representante legal do povo, pois está identificado a ele e, portanto, sabe de suas demandas. Ao mesmo tempo, confere legitimidade ao movimento revolucionário, e, por extensão, à Aliança Liberal, pois o sujeito que enuncia o discurso de posse é o porta-voz do povo, que sabe o que ele deseja. Essa coincidência entre o porta-voz e a população encontra sentido na posição de sujeito que o produz, pois é o modo de garantir sua chegada e perpetuação no poder, contudo, a divisão que constitui povo fica apagada, de modo que as posições que não se identificam à nacionalidade e à história abrangidas pelo pronome nossa não são reconhecidas como parte daquela designação.

Um outro funcionamento da não pessoa discursiva acontece no discurso de posse de Vargas. Esse mecanismo possibilita analisar uma outra rede de determinações ao movimento de 30 que não aquela marcada pela legitimidade popular. A constatação da vitória do movimento revolucionário provoca um deslizamento de sentidos que a paráfrase movimento eminentemente nacional não abrange. Esse deslizamento aponta para uma modificação das condições de produção até então configuradas. Em SD35, a revolução é também significada como “a procura de um rumo novo”, de forma que esse recorte aponta para uma outra rede de sentidos que irá determinar o sintagma movimento revolucionário. Adiante, exponho algumas sequências, em relação intersequencial, que dizem de outros sentidos em jogo:

SD38. Quando, nesta cidade, as forças armadas e o povo depuseram o Governo Federal, o movimento regenerador já estava virtualmente triunfante em todo o país. (Idem, grifos meus).

SD39. Passado, agora, o momento das legítimas expansões pela vitória alcançada, precisamos refletir, maduramente, sobre a obra de reconstrução que nos cumpre realizar. (Idem, grifos meus).

SD40. Resumindo as ideias centrais do nosso programa de reconstrução nacional, podemos destacar, como mais oportunas e de imediata utilidade [...] (Idem, grifos meus). 59

As sequências recortadas compõem outra rede de determinações ao sintagma, produzindo-lhe sentidos em relação a “movimento regenerador”, “obra de reconstrução que nos cumpre realizar” e “nosso programa de reconstrução nacional”. A revolução produzida pela posição de sujeito que constitui a enunciação de Vargas significa regeneração e reconstrução nacional, de modo que essas designações pertencem ao mesmo campo parafrástico. Esse movimento metafórico possibilita que, no interior do sintagma, o nome passe a ser determinado pelos sentidos de regeneração e reconstrução, como em “movimento regenerador”. Assim, intersequencialmente é possível analisar diferentes sentidos que a determinação, extremamente opaca, revolução mobiliza. Essa segunda paráfrase possível à revolução diz de um segundo funcionamento da não pessoa discursiva, ou seja, o deslizamento de sentidos de movimento revolucionário, não significando mais somente movimento eminentemente nacional, é acompanhado por uma mudança no modo como o porta-voz se relaciona ao povo pelo uso de formas da primeira pessoa do plural.

Apesar de SD34 trazer as marcas da mudança em curso, o recorte de novos enunciados se faz necessário às análises do outro funcionamento que se instaura. Mais uma vez, orientei meu recorte pelo nós que caracteriza a não pessoa discursiva.

SD41. Passado, agora, o momento das legítimas expansões pela vitória alcançada, precisamos refletir maduramente sobre a obra de reconstrução que nos cumpre realizar. (Idem, grifos meus).

SD42. Precisamos, por atos e não por palavras, cimentar a confiança da opinião pública no regime que se inicia. (Idem, grifos meus).

O nós que comparece nas sequências SD34, SD41 e SD42 se diferencia daquele presente nos outros enunciados. Não é possível afirmá-lo como uma forma linguística que inclui discursivamente o povo. Nele, há uma divisão entre o governo e a população, de modo que o poder revolucionário, agora poder oficial da República, foi detentor de uma “missão que nos foi por ele [pelo povo brasileiro] confiada”. A estrutura sintática dessa frase aponta para a divisão em jogo. A não coincidência entre as duas instâncias se expressa linguisticamente pela presença de nos e de ele, podendo ser parafraseada como “O povo brasileiro confiou a missão de reconstrução nacional a nós”. A distância entre um e outro é configurada sintaticamente pela distância entre sujeito e objeto, assim como é marcada discursivamente na não coincidência entre ambos. A imbricação entre sintaxe e discurso também aponta que a posição de objeto ocupada por nos é uma materialização do recebimento 60

de uma missão conferida pelo povo, sujeito da oração. Assim, o movimento revolucionário, compreendido como movimento regenerador, conforme uma rede de sentidos mobilizada pela posição de sujeito a partir da qual se constitui a enunciação de Vargas, foi uma vontade da população, uma incumbência elegida pelo povo. Esse funcionamento reforça a legitimidade do movimento e do governo provisório que se instaura, assim como conta da figura do porta- voz como um eleito do povo. Entretanto, também marca uma mudança com relação à unicidade entre povo e movimento.

Ao levar em conta a não pessoa discursiva, o discurso de posse de Vargas apresenta diferentes modos de significar o nós. Em um momento inicial, os sentidos produzidos mobilizam a relação coincidente entre povo e movimento. Em um segundo momento, quando o poder revolucionário se transformou em governo provisório, o sujeito aliancista se destaca da população, sendo por ela eleito como agente da obra de reconstrução. Ao mesmo tempo, esse duplo funcionamento em relação ao nós opera produzindo sentidos sobre a figura do porta-voz. Pêcheux afirma, a respeito dessa figura, que

O destino do porta-voz circula assim entre a posição do profeta, a do dirigente e a do homem de Estado, visto que ele é o ponto em que ‘o outro mundo’ se confronta com o estado de coisas existente, o ponto de partida recíproco no qual a contradição vem se amarrar politicamente a um ‘negócio de Estado’. (PÊCHEUX, 1990, p.18). O movimento revolucionário mobiliza diferentes sentidos no discurso de posse de Vargas, de forma que movimento eminentemente nacional e movimento regenerador são deslizamentos que marcam significações não coincidentes. Ambas as redes de sentidos constituem o mesmo enunciador, contudo, em diferentes momentos, uma possui dominância em relação à outra. Antes da constatação de que a revolução chegou ao poder da República, o porta-voz identifica-se enquanto povo, isto é, enquanto “o outro mundo” que se confronta com o estado de coisas existentes. Quando “o outro mundo” passa a ser o estado de coisas existente, especificamente quando o porta-voz chega ao poder, a posição de sujeito constitui- se na do “homem de Estado”. Esse duplo funcionamento se realiza discretamente desde o momento da constituição do porta-voz, marcando sua dupla visibilidade – “ele fala diante dos seus e parlamenta com o adversário” (Ibidem, p.17). Quando a posição a partir da qual a enunciação de Vargas é constituída ascende à posição de governo provisório, a relação de dominância entre as posições se modifica, dada as alterações das condições de produção.

O porta-voz, através do nós, configura duas redes de sentido distintas, sendo povo a primeira a ter dominância e, posteriormente, eleito do povo e agente da regeneração. Essas 61

significações possíveis são produzidas de forma imbricada, de modo que em certo momento uma sobredetermina a outra. O porta-voz profeta, dirigente da população, fala pelo povo contra a posição governista. Quando se constitui oficialmente em homem de Estado, investido pelo poder da República, fala para o povo. Todavia, ao falar para a população, se investe da legitimidade concedida por ela, segundo os sentidos produzidos pela posição a partir da qual a enunciação de Vargas se constitui, sendo a distância entre sujeito e objeto não apenas a marca da nova configuração, onde se fala para e não pelo povo, mas também o índice de ser o eleito da vontade popular. Dito de outra forma, foi por ter enunciado pela população, que o porta- voz constituiu-se em uma posição legitimada a dizer para ela, sendo essa a marca de um deslizamento que torna o dirigente em homem oficial de Estado. Por esse motivo, os modos de enunciar não deixam de estar imbricados, na medida em que um autoriza a existência do outro. e) A revolução em um tenentista: Juarez Távora

O modo como revolução significa na enunciação de Juarez Távora, um tenentista que compôs a Aliança Liberal, configura-se de forma dessemelhante à posição a partir da qual se constitui a enunciação de Vargas, ainda que ambas estejam emparelhadas na composição da Aliança Liberal. A descrença nos processos legais, através da crença na luta armada e na deslegitimação da lei, de um lado, e a sustentação da legitimidade da ordem, de outro, marcam diferenças entre as posições. Então, ainda que haja semelhança suficiente para compor o movimento revolucionário, há objetos cuja tomada de posição não é coincidente. A análise das sequências a seguir possibilita o aprofundamento de algumas questões.

SD43. A revolução afigura-se-nos – para todos os que já não cremos na eficiência do voto – essa força renovadora. (J. Távora, Carta aberta de Juarez Távora, 31 de maio de 1930, grifos meus).

SD44. Não creio na exequibilidade da revolução desencadeada pela massa inerme do proletariado das cidades, dos colonos das fazendas, dos peões das estâncias, dos habitantes esparsos dos nossos sertões. A essa massa faltam-lhe todos os atributos essenciais para realizar uma insurreição generalizada, nos moldes da que preconiza o manifesto do general Prestes – coesão, iniciativa, audácia e, sobretudo, eficiência bélica. (Idem, grifos meus). 62

SD45. A revolução possível no Brasil terá portanto, de continuar a apoiar-se nos mesmos meios que tem sido alicerçada até aqui. Reconheço que são deficientes e até precários; mas são os mais viáveis e, portanto, os mais práticos. Teremos de fazê-la com o concurso de todos os homens de boa vontade, que a mentalidade reacionária e desvairada do poder público conduzir àquele ponto de partida, de onde nós, revolucionários, empreendemos a nossa caminhada – a descrença na eficácia dos processos legais vigentes, para a solução do problema nacional. (Idem, grifos meus).

Um primeiro gesto de entrada nas sequências foi por meio da análise do processo de produção de sentidos engendrado pelo nós. Para trabalhar com esse funcionamento, foi produtivo considerar a formulação de Indursky sobre a não pessoa discursiva, como operada anteriormente. No recorte “todos os que já não cremos”, em SD43, o pronome indefinido produz uma totalização sobre o enunciador e ao nós não especificado no qual esse se associa, que denominarei de nós revolucionário tenentista (nós TN). Na mesma sequência, a forma verbal “afigura-se-nos” comparece como materialização do nós TN, predicando e produzindo sentidos para revolução. Em SD45, há um funcionamento semelhante no recorte “Teremos de fazê-la com o concurso de todos os homens de boa vontade”. A forma verbal “teremos” marca um nós ao qual o enunciador se associa, significando a revolução relacionada à discursividade tenentista, e sobre o qual se pode perguntar: quem são os agentes incluídos em nós TN, isto é, que posições esse pronome mobiliza e que posições outras não cabem nessa forma de primeira pessoa do plural?

O nós em jogo funciona, em diversas sequências, mobilizando sentidos para revolução, como afirmado. Contudo, como a questão há pouco formulada levantava, os agentes mobilizados ficavam opacos. No recorte “de onde nós, revolucionários, empreendemos a nossa caminhada”, em SD45, a relação entre a forma da primeira pessoa do plural e a designação revolucionários se torna explicitada. O enunciador se identifica enquanto revolucionário e se associa aos revolucionários na produção da não pessoa discursiva. Assim, trata-se de analisar as determinações que significam a revolução tenentista em Távora e que sentidos constituem os que são considerados revolucionários.

Na sequência 43, em “não cremos na eficiência do voto”, o nós TN funciona como posição que demanda uma negação ao SP “na eficiência do voto”. Os revolucionários tenentistas, que empreendem a caminhada da revolução, produzem sentidos que deslegitimam o voto. Na sequência 45, em “de onde nós, revolucionários, empreendemos a nossa 63

caminhada – a descrença na eficácia dos processos legais vigentes, para a solução do problema nacional”, o SN grifado mobiliza mais uma determinação à revolução da enunciação de Távora. Esses dois recortes que caracterizam os revolucionários tenentistas possuem estrutura linguística semelhante. Em “a descrença na eficácia dos processos legais vigentes” e em “não cremos na eficiência do voto”, do voto e dos processos legais vigentes são SP demandados pelos SN eficácia e eficiência, que são paráfrases. Por sua vez, descrença funciona, mesmo pertencendo a outra classe gramatical, como paráfrase de não cremos. A estrutura linguística semelhante ocorre em concomitância com os sentidos semelhantes em jogo: o “voto” faz parte dos “processos legais vigentes”. A posição a partir da qual o enunciado de Távora é constituído está em oposição ao regime legal.

Ao retornar para o recorte “Teremos de fazê-la com o concurso de todos os homens de boa vontade”, em SD45, é possível analisar algumas determinações mobilizadas para revolucionários. Os agentes da revolução são “todos os homens de boa vontade”, o que coloca em cena a existência de “homens de má vontade” e a impossibilidade de que esses conduzam o movimento. Na continuação da sequência, o sintagma nominal “descrença na eficácia dos processos legais vigentes” determina sentidos aos “homens de boa vontade”. Dessa forma, os “homens de má vontade” são aqueles que creem nos processos legais, como o voto. Nas condições de produção configuradas em 1930, a posição governista se apoiava nas vitórias eleitorais para justificar a manutenção de seu governo e deslegitimar o movimento revolucionário15. Portanto, as forças governistas podem ser incluídas entre os de “má vontade”.

Entre o nós revolucionário tenentista, também há a impossibilidade de incluir os agentes da revolução presente na enunciação de Carlos Prestes. Em SD44, a posição de sujeito que constitui o dizer tenentista enuncia o que significa sua revolução através da negação do movimento que vem de outra posição, no caso, por meio do discurso relatado que retoma o manifesto de Prestes. Os agentes enunciados nessa modalidade de inscrição do outro são: a “massa inerme do proletariado das cidades, dos colonos das fazendas, dos peões das estâncias, dos habitantes esparsos dos nossos sertões”. Apesar de não ser possível considerá- los como “homens de má vontade”, eles também não constituem o nós TN.

15 Recorto um trecho representativo desse funcionamento, extraído do jornal governista Correio Paulistano, da edição de 21 de outubro de 1930: “A rebeldia não se quis submeter ao desfecho de uma luta eleitoral que não foi favorável ao grupo que agora se levantou contra o Brasil, depois do pronunciamento do Congresso e do reconhecimento, sem contestação, do candidato eleito para dirigir os destinos da República.” 64

A revolução mostra-se como objeto dividido ao produzir sentidos diferentes a partir das distintas posições que enunciam. A posição governista se opõe ao movimento tenentista significando-o como parte da rebeldia. Já a posição que estrutura o dizer de Prestes mobiliza sentidos outros para revolução, atualizando a memória do comunismo, em que o proletariado seria o legítimo revolucionário16. Quanto à relação entre a posição que estrutura o dizer de Vargas e o de Távora, ela é marcada por fronteiras mais tênues, especialmente por conta da configuração de aliança que teve ocasião em 1930. Contudo, a análise permitiu explorar um ponto de tensão que toca a crença nos processos legais, sendo essa uma região equívoca na composição da Aliança Liberal. f) Uma regularidade sobre o movimento revolucionário em diferentes posições

Diferentes designações concorreram com movimento revolucionário, mobilizando significações distintas para o evento de 1930. A constituição de diferentes denominações ao evento apresenta-se como uma tomada de posição, mobilizando sentidos em relação de contradição. Entretanto, uma forma pré-construída comparece de maneira semelhante, determinando as designações em disputa, de forma que, se em torno de alguns objetos há dessemelhança entre posições, produzindo diferentes sentidos, quando se trata de atualizar a memória do local de início do movimento revolucionário, isso ocorre de forma convergente. O pré-construído institui a possibilidade de se produzir as evidências, dar os contornos e limitar o evento que futuramente ficaria institucionalmente estabilizado a partir da posição que constitui a enunciação de Vargas.

Compreendo a noção de pré-construído a partir de Pêcheux, que afirma haver uma discrepância entre o que é pensado antes e a afirmação global da frase. Em outros termos, o que foi pensado antes, em outro lugar, pode ser designado de objeto do pensamento, e a afirmação global da frase é o pensamento. O objeto do pensamento constitui o impensado do pensamento, existindo anteriormente ao sujeito. No exemplo trazido por Pêcheux do ateísmo militante, “aquele que salvou o mundo morrendo na cruz nunca existiu”, o objeto do pensamento, de existência anterior ao sujeito, é aquele que salvou o mundo morrendo na cruz. A afirmação global da frase inclui a negação nunca existiu. O pré-construído garante o funcionamento do enunciado ao ser atualizado como objeto do pensamento, pensado antes, em outro lugar, e que se encaixa na enunciação como um todo. Nas palavras de Pêcheux:

16 A esse respeito, elaborei com maior atenção no capítulo 3. 65

Concluiremos esta primeira aproximação do problema do pré-construído destacando, como uma sua característica essencial, a separação fundamental entre o pensamento e o objeto de pensamento, com a pré-existência deste último, marcada pelo que chamamos uma discrepância entre dois domínios como o impensado de seu pensamento, impensado este que, necessariamente, pré-existe ao sujeito. (PÊCHEUX, 2009, p.93, grifos do autor). Ao atualizar um objeto do pensamento semelhante, as diferentes posições que compunham as condições de produção nas quais o evento de 1930 ocorreu contribuíram para a institucionalização do que ficou conhecido como movimento revolucionário. Para analisar esse funcionamento, recorto abaixo algumas sequências discursivas que possibilitaram trabalhar com o pré-construído – materializado sob distintos mecanismos linguísticos – que se repete como forma de determinar distintos modos de designar o movimento liderado pela Aliança Liberal, produzidos a partir de diferentes posições:

SD46. Foi mais dolorosa surpresa e mais vivo sentimento indignação repulsa todo Brasil viu irromper estados Minas e Rio G. Sul e Paraíba sanguinário movimento subversivo que ali se desenrola (W. Luís, Manifesto de Washington Luís à nação, 10 de outubro de 1930, grifos meus).

SD47. O movimento revolucionário, iniciado vitoriosamente a 3 de outubro, no sul, centro e norte do país, e triunfante a 24, nesta capital, foi a afirmação mais positiva, que até hoje tivemos, da nossa existência, como nacionalidade. (G. Vargas, Discurso de posse, 3 de novembro de 1930, grifos meus).

SD48. O movimento revolucionário que V. Ex. dirigiu é singular em nosso país; pelo seu caráter, extensão e simultaneidade não encontra nenhum símile comparável na nossa história. De norte a sul, de leste a oeste, todas as populações se levantaram num indomável anseio de liberdade. (T. Fragoso, O discurso do General Tasso Fragoso, 4 de novembro de 1930, grifos meus).

SD49. Com a quartelada do Rio de Janeiro, está terminada a primeira parte da contra-revolução que, dirigida pelos politiqueiros de Minas e do Rio Grande, com a conivência consciente ou inconsciente, mas sempre criminosa, de oficiais "revolucionários", foi iniciada em diferentes pontos do País, nos primeiros dias de outubro. (C. Prestes, Aos revolucionários do Brasil, 6 de novembro de 1930, grifos meus). 66

As posições de sujeito a partir das quais são produzidas as enunciações de Prestes e Washington Luís constituíram designações diferentes de movimento revolucionário para o evento de 1930 – contra-revolução e movimento subversivo. Ao contrário, a denominação recortada nas SD da posição de sujeito na qual Vargas e Fragoso enunciam é similar, pois, nesse caso, apesar de haver dois enunciadores, o nome mobilizado para o movimento é o mesmo. Ao afirmar a dessemelhança entre as designações mobilizadas pelas diferentes posições, afirmo também a impossibilidade de a designação contra-revolução ser substituível por movimento revolucionário. Aquela filia-se a uma outra rede de memórias que não a que determina os sentidos a partir da qual se constitui a enunciação de Vargas, portanto, produz outros efeitos de sentido.17

No entanto, apesar dos diferentes sentidos produzidos para o evento de 1930, as diferentes posições de sujeito enunciam pré-construídos semelhantes. O pré-construído que se repete a partir de diferentes posições está relacionado ao local e à data de início do que ficou posteriormente institucionalizado como movimento revolucionário. Os trechos grifados nas sequências discursivas, por meio de uma repetição, produzem uma regularização do que será estabilizado como a história oficial. Os mecanismos linguísticos que possibilitam tal funcionamento se materializam, sobretudo, através de determinações que assumem gramaticalmente a função de orações relativas e adjuntos adverbiais. Esse mecanismo determina, em alguns recortes, como afirmado, as regiões de estopim do evento e sua data de início, contudo, o enunciado, a cada vez determinado, indetermina-se, deslizando a ponto de produzir novos sentidos. Esses modos de determinar precisam de uma leitura linguística imbricada com os efeitos de sentido produzidos em nível discursivo.

Em SD46, o recorte “estados Minas e Rio G. Sul e Paraíba” funciona gramaticalmente como adjunto adverbial de lugar da locução verbal “viu irromper”. O sujeito da ação de ver irromper é “todo Brasil”, e a locução verbal exige como objeto direto “sanguinário movimento subversivo”. A oração relativa determinativa “que ali se desenrola” reforça a relação entre os estados e a gestão do movimento, limitando o espaço onde o evento efetivamente teve lugar, enquanto “todo Brasil”, sendo sujeito, acompanha na sua totalidade a restrição espacial do que se desenrola.

17 No capítulo III, analiso o processo de significação que caracteriza a revolução constituída a partir da posição de sujeito na qual Prestes enuncia. Na enunciação de Prestes, a designação contra-revolução produz sentidos em relação de oposição a movimento revolucionário. 67

Em SD47, ao contrário de movimento subversivo, a designação do evento não configura um objeto direto, pois ocupa a função sintática de sujeito da oração, sendo determinada por uma relativa determinativa reduzida de particípio. Essa oração determinativa conta da vitória do movimento, de seu início em uma data específica e das regiões que lhe deram ocasião, como comparece na SD “iniciado vitoriosamente a 3 de outubro, no sul, centro e norte do país”. Enumerar as regiões do país, em vez dos estados, produz como efeito uma indeterminação dos lugares em que o movimento teve início, configurando um deslizamento que abre para que sentidos outros sejam produzidos, como a maior adesão ao movimento, em vez de sua repercussão espacial limitada, como presente na posição governista.

Antes de analisar a sequência enunciada a partir da posição na qual Fragoso foi constituído, passo à SD49. Nela, é possível ler “Com a quartelada do Rio de Janeiro, está terminada a primeira parte da contra-revolução que [...] foi iniciada em diferentes pontos do País, nos primeiros dias de outubro” como uma oração relativa determinativa18 que está subordinada a “contra-revolução”. Nessa determinativa, conta-se de seu mês de início, em outubro, assim como do começo em diferentes lugares. A indeterminação produzida pela relativa presente na SD enunciada a partir da posição que constitui Prestes é mais porosa do que aquela produzida na sequência enunciada pela posição de sujeito que constitui o dizer de Vargas. Nesta, há as nomeações das regiões do país – sul, centro e norte –, naquela, os lugares de começo do movimento são designados como “diferentes pontos do País”, mobilizando, portanto, sentidos diferentes, que podem indicar um índice mais amplo de adesão ao movimento.

Por fim, em SD48, enunciada por uma posição de sujeito que produz sentidos semelhantes à posição a partir da qual se constitui a enunciação de Vargas, há o adjunto adverbial “De norte a sul, de leste a oeste”, deslocado para o início do período. Ele produz sentidos em relação a “todas as populações”, sujeito da oração, que, por sua vez, funciona produzindo sentidos ao movimento revolucionário. “De norte a sul, de leste a oeste” reconta a história do movimento revolucionário, contudo, na repetição da região onde o evento teve início, os sentidos deslizam para produzir outros sentidos, semelhantes aos que eram

18 A leitura da oração como relativa determinativa não se guia pelo uso normativo da língua, pois tem- se em vista que nem sempre o texto materializa a língua verbal conforme a norma culta padrão. O jogo com o equívoco pode possibilitar uma leitura dupla, como oração relativa determinativa e explicativa. Contudo, para as questões levantadas, uma compreensão da oração como determinativa é mais produtiva. 68

produzidos em SD46, no recorte “todo Brasil”. Dessa forma, a indeterminação dos lugares de começo do movimento, em SD48, tem por resultado a produção do efeito de totalidade de adesão ao movimento, pois todas as regiões, assim como todas as populações, o apoiaram.

Em todas as sequências apresentadas, comparecem, na estrutura da língua, mecanismos que atribuem sentidos ao evento, pois mobilizam, por adjuntos adverbiais e relativas determinativas, determinações indiretas ao movimento revolucionário. O adjunto adverbial, em SD46, poderia ser lido como uma informação adicional, passível de ser subtraída, contudo, sua presença no intradiscurso cumpre uma função que determina movimento subversivo, e esse mecanismo produz o efeito de uma restrição a sua extensão espacial. Nas outras sequências, há a presença da relativa determinativa e de outro adjunto adverbial, que mobilizam significações específicas para o evento.

Os sentidos produzidos com relação aos mecanismos analisados mudam de uma sequência para outra, pois são empregados para determinar uma forma de designar o movimento, e não outra, a partir de posições de sujeito diferentes. Em SD46, onde a inscrição das regiões de começo do movimento é a mais determinada no intradiscurso, há, como efeito, sua limitação espacial. Isso condiz com o lugar governista de onde a posição de sujeito enuncia e com a ameaça sofrida, assim como com sua pretensão de se legitimar constantemente, mostrando à opinião pública a pouca adesão ao movimento revolucionário.

Na estrutura de SD46, as disputas que ocorrem no interdiscurso comparecem na ordem sintática. Essa sequência é a única a apresentar a designação do movimento na posição de objeto, sendo “todo Brasil” sujeito. Nas outras sequências, o evento ocupa posição sintática de sujeito. Na primeira sequência, a ordem dos sintagmas é a expressão das condições de produção, em que o movimento revolucionário ainda não estava consolidado e o governo federal tentava desarticulá-lo em seus pronunciamentos. Quando “todo Brasil” ocupa posição de sujeito e “sanguinário movimento subversivo” é objeto direto de “viu irromper”, é o Brasil, ou a população brasileira, que está contra o movimento subversivo, olhando de seu lugar dominante, quase como alguém que assiste a algo com desdém, a alguma coisa que acontece em uma região isolada, na posição de um objeto direto. Essa leitura, contudo, só faz sentido na discursividade governista, cujos lugares institucionais estão ameaçados, e a manutenção de tais sentidos é vital para a sua perpetuação. Depois de consolidado, quando as outras posições enunciam, o movimento já não é mais objeto, mas ganha a proximidade e a consistência de sujeito. 69

A língua e a história se entrelaçam desde a ordem sintática até os sentidos que comparecem enunciando o outro que organiza a sequência. Em SD46, por exemplo, os sentidos produzidos para movimento subversivo, assim como sua posição de objeto direto na ordem sintagmática, significam em relação às condições de produção em jogo, que envolviam a disputa de forças pelo poder da República. Nesse ponto, comparece o outro, não dito, estruturando a sequência e compondo a relação entre intradiscurso e interdiscurso. Uma das formas do interdiscurso se inscrever no eixo intradiscursivo ocorre pelo pré-construído, modalidade a qual gostaria de retomar.

Pêcheux, em o Papel da memória, retomando alguns traços do debate que reuniu Pierre Achard, Jean Davallon e Jean-Louis Durand, coloca em questão possíveis relações entre o evento e a memória discursiva. Ao se perguntar onde residem os “implícitos”19, ausentes por sua presença, na leitura da sequência, Pêcheux recorre a Achard, que trata de sua constituição pela via da repetição:

P. Achard levanta a hipótese de que não encontraremos nunca, em nenhuma parte, explicitamente, esse discurso-vulgata do implícito, sob uma forma estável e sedimentada: haveria, sob a repetição, a formação de um efeito de série pelo qual uma ‘regularização’ (termo introduzido por P. Achard) se iniciaria, e seria nessa própria regularização que residiriam os implícitos, sob a forma de remissões, de retomadas e de efeitos de paráfrase (PÊCHEUX, p.2015b, p.46). A partir das formulações acima, apesar de as sequências recortadas apresentarem sentidos diferentes, ressalto a importância para a análise de certas determinações do evento que comparecem como evidentes em todos os enunciados, ainda que o jogo determinação/indeterminação varie. Em todos os recortes, as regiões de início do evento foram inscritas no intradiscurso, assim como a maioria das sequências apresentou sua data de início. Uma possível leitura da repetição presente nas sequências discursivas recortadas é considerá-la enquanto expressão do começo de um efeito de série pelo qual se iniciou uma regularização do que foi o evento de 1930. Ou seja, a repetição, realizada a partir de diferentes posições, produziu uma estabilização de um momento da história, através de um efeito de paráfrase. Ao afirmar um início do evento, se marca seus limites e se delimita suas fronteiras, isto é, conta-se que em outubro de 1930, em certas regiões do Brasil, houve um movimento revolucionário.

19 Por “implícito”, compreendo, conforme a coletânea de debates mencionada, o interdiscurso, ou seja, o funcionamento que dá a legibilidade de uma sequência. Segundo Pêcheux (2015b, p.46): “[...] mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.” 70

O efeito de série pelo qual se configurou uma regularização sobre o movimento revolucionário foi possível porque nas sequências havia a repetição de um objeto do pensamento semelhante. O pré-construído em comum nas enunciações de Washington Luís, Vargas, Fragoso e Prestes é o que aponta as regiões de início do movimento, ainda que a relação entre determinação/indeterminação varie. É provável que uma sedimentação dessa formulação já estivesse em curso, pois, caso contrário, um objeto de pensamento semelhante não seria atualizado nos enunciados de posições que foram regularmente dessemelhantes ao produzir sentidos para outros objetos. A regularidade desse pré-construído, conjuntamente com a posse do poder exercida por Vargas, contribuiu para a institucionalização dos sentidos de movimento revolucionário.

Ainda que posições antagônicas nomeiem o evento diferentemente, mobilizando sentidos outros, ao determiná-lo de forma semelhante, constrói-se a evidência histórica do movimento. Como a posição legitimada foi a dominante, a que chegou ao poder da República, em 1930, a designação perpetuada foi movimento revolucionário, de modo que as predicações do movimento, enunciadas a partir de diferentes discursividades, contribuíram para a estabilidade da afirmação de que houve um movimento revolucionário em 1930, iniciado em 3 de outubro, no sul, centro e norte do país. Essa afirmação se perpetua até hoje, na história institucionalizada. Assim, um efeito de historicização, que constrói o começo evidente de um evento, fundando-o, é constituído a partir de diferentes posições.

Dessa forma, a análise aponta para o processo de produção da evidência de que dizer movimento revolucionário de 1930 é referir-se ao evento iniciado em 3 de outubro, em diferentes estados. Essa designação poderia se referir à tomada do poder pela junta militar, como citado anteriormente, ou às articulações políticas que se davam antes de outubro, contudo, o dizer estabilizado, quase instantâneo, é: “iniciado a 3 de outubro, no sul, centro e norte do país”. Essa predicação, ou paráfrases dela, sustenta a estabilidade da evidência produzida ao evento, apesar de as designações enunciadas a partir de posições de sujeito em relação de contradição indicarem a disputa pelos sentidos de revolução, assim como o enfrentamento pelo futuro político do Brasil. Dessa forma, quando se diz do evento de 1930, a designação estabilizada é movimento revolucionário, de modo que contra-revolução e movimento subversivo ficam apagadas, como se nunca tivessem sido enunciadas.

71

III. REVOLUÇÕES APAGADAS PELO DISCURSO OFICIAL

Nesse dia, aquele tio me disse, com um nó na garganta: “Você diria que todos esses anos na clandestinidade ou nas prisões de Pilsudski, a bandeira vermelha, nossas lutas, o fim do tsarismo, as greves, a Internacional, tudo isso era por nada? Que nos enganamos? Diga! Será que nos enganamos completamente?”. Eu tive muita dificuldade para encontrar as palavras necessárias para que meu tio Moshe não afundasse numa total desesperança. Não, ele não tinha lutado por nada; mas como lhe garantir, e como transmitir às gerações futuras, a dimensão de seu militantismo obscuro? Porque esses militantes, como meu tio, não merecem desaparecer de nossas memórias. Eles se dedicaram de corpo e alma à causa dos desafortunados, dos “condenados da terra”, dos operários explorados e miseráveis, dos desempregados atingidos pelas crises econômicas e sociais, particularmente a de 1929. Eles deram tudo na esperança da revolução salvadora. Criadores de partidos revolucionários, organizadores e inspiradores do movimento operário, fundadores de sindicatos, eles eram incansáveis, desafiando o frio e a fome, a adversidade política em todas as suas formas. Quantos dentre eles foram jogados no fundo do calabouço no auge da vida, por regimes tirânicos e autoritários, por ditaduras fascistas sangrentas ou simplesmente por nossas boas e velhas democracias votando aqui e ali leis de exceção? Quantos foram fuzilados, mutilados, marcados para sempre, isso para não falar do destino ainda mais trágico daqueles que foram as primeiras vítimas de Stálin, quando seu único crime era levar a sério o socialismo, acreditar na vitória da revolução, exercer seu espírito crítico, empreender iniciativas pessoais corajosas, querer mudar o mundo? Vidas esmagadas, sacrificadas, mas vidas com um horizonte, um ideal. Tio Moshe, penso em você! (Régine Robin, A memória saturada, 2016, p.16-17). A designação movimento revolucionário produz-se, pelo discurso oficial, enquanto unidade de sentidos estabilizados, silenciando outras vozes que constituem diferentes modos de significar. Ao considerar as condições do acontecimento histórico de 1930, constituiu-se uma unidade de revolução e de revolucionários no Brasil em decorrência do apagamento das diferentes forças em jogo. A evidência de que há apenas um modo de significar um evento e que somente uma rede de sentidos é possível para produzir as predicações que qualificam determinado movimento decorre, em parte, de esquecimentos provocados pelo efeito ideológico elementar. O sujeito do discurso é constituído a partir de dois esquecimentos. O segundo, de ordem pré-consciente/consciente, produz a consistência dos sentidos de uma formulação, ou seja, “pelo qual todo sujeito-falante ‘seleciona’ no interior da formação discursiva que o domina, isto é no sistema de enunciados, formas e sequências que nela se encontram em relação de paráfrases” (PÊCHEUX, 2009, p.161).

O primeiro esquecimento remonta ao sujeito como origem dos sentidos, pois remete à constituição de uma posição na filiação a uma formação discursiva, de modo que o 72

sujeito é impossibilitado de ter consciência da existência de objetos divididos nos quais sentidos outros podem os constituir, a partir de outras discursividades. Afirmar que a formação discursiva é a matriz de sentidos encontra relação com o esquecimento produzido para constituir o sujeito, pois sendo matriz, há a ilusão de ser a origem dos sentidos, como se não estivesse em relação contraditória com outras posições. E, assim, há o esquecimento de que é a partir da relação complexa entre discursividades que as significações dos objetos são dadas. Esse esquecimento é de ordem inconsciente e, sobre ele, Pêcheux afirma: “o esquecimento nº I, que dá conta do fato de que o sujeito-falante não pode, por definição, se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina.” (Ibidem, p.162, grifos do autor).

O vínculo entre os esquecimentos deve ser levado em conta a fim de se compreender o mecanismo de produção do efeito ideológico elementar. Pêcheux afirma, em uma reformulação, que o esquecimento 2 “cobre exatamente o funcionamento do sujeito na formação discursiva que o domina, e que é aí, precisamente, que se apoia sua ‘liberdade’ de sujeito-falante.” (Ibidem, p.164, grifos do autor). E prossegue:

A esse imaginário linguístico [o espaço de reformulação-paráfrase que caracteriza uma formação discursiva dada] deveriam, sem dúvida, ser relacionadas também as ‘evidências’ lexicais inscritas na estrutura da língua, levando-se em conta que as equivalências lexicalizadas entre substituíveis resultam, de fato, do esquecimento (de tipo I) do discurso-transverso que as une, de modo que essas equivalências aparecem, no que chamamos o imaginário linguístico, como o simples efeito das propriedades lexicais, evidentes em sua eternidade. Isso marca – parece-nos – a ascendência dos processos ideológico-discursivos sobre o sistema da língua e o limite de autonomia, historicamente variável, desse sistema. (Ibidem, p.165, grifos do autor). O ponto de enlace entre os esquecimentos reside no espaço de reformulação- paráfrase – que caracteriza o esquecimento 2 e funciona a partir do esquecimento 1 – provocar o apagamento da existência de relação contraditória entre formações discursivas, que caracteriza o interdiscurso. A equivalência entre palavras e enunciados, que caracteriza o processo parafrástico, isto é, as equivalências lexicalizadas entre substituíveis, ocorre a partir de uma formação discursiva que as coloca em relação, fazendo operar o discurso transverso. O mecanismo linguístico de remissão equivalente de uma palavra ou enunciado por outro produz o efeito de obviedade dos sentidos, que, por sua vez, acarreta a ilusão da impossibilidade de uma formação discursiva estar em relação contraditória com outras FDs, provocando o apagamento da existência de objetos divididos – “no espaço de reformulação- paráfrase de uma formação discursiva – espaço no qual, como dissemos, se constitui o sentido –, efetua-se o acobertamento do impensado (exterior) que o determina” (Ibidem, p.165-166). 73

Esse mecanismo linguístico, caracterizante do esquecimento 2, tem sua origem na formação discursiva que lhe fornece sentidos. Assim, é correto afirmar que o esquecimento 2 é a produção, na língua, do apagamento do interdiscurso, via o esquecimento 1. Essa formulação parece explicar a ascendência dos processos ideológico-discursivos sobre o sistema da língua, afirmada por Pêcheux.

O espaço de reformulação-paráfrase, orientado por dada formação discursiva, entretanto, não funciona por equivalências perpétuas, pois não há ritual sem falhas. Apesar de o efeito ideológico elementar provocar o esquecimento do interdiscurso, as FDs estão em relação com outras, de forma que os sentidos dos quais dada formação discursiva é matriz se constituem a partir do encadeamento contraditório que as condições de produção determinam. Assim, o funcionamento inevitável do esquecimento não interdita o deslocamento de sentidos, nem a possibilidade de identificação com outra FD, e isso não implica em uma via pedagógica, nem em uma responsabilidade do sujeito por seu deslocamento. Não está em jogo um sujeito de responsabilidade, mas um indivíduo assujeitado. Pêcheux afirma, em “Só há causa daquilo que falha”: “Apreender até seu limite máximo a interpelação ideológica como ritual supõe reconhecer que não há ritual sem falhas; enfraquecimento e brechas, ‘uma palavra por outra’ é a definição da metáfora, mas é também o ponto em que o ritual se estilhaça no lapso” (PÊCHEUX, 2009b, p.277). O processo discursivo, que garante a produção de sentidos e a consistência de uma FD, também é o espaço que está constantemente aberto ao equívoco, à possibilidade de deslocamento e de significar a partir de outra posição. Assim, o processo de reprodução das relações de produção dos sentidos se dá em concomitância com a possibilidade de transformação.

A contingência joga com a expectativa de deslocamento dos sentidos no sujeito, joga também com a expectativa de deslocamento dos sentidos na história. A contingência atua na reconfiguração da relação contraditória entre as formações discursivas, que operam na constituição do sujeito e da história. Assim, afirmar a morte da história incorreria em um problema, pois sua inscrição no presente é constante e as posições que disputam por contar o passado também, mesmo que esse passado esteja relativamente estabilizado. Se os objetos não detém um sentido intrínseco, mas significam a partir das posições de sujeito que os enunciam, as designações mobilizadas para determinar um movimento que compõem a história institucionalizada também estão em jogo nas disputas pela manutenção de sentidos. Esses objetos, que parecem tão bem estabelecidos pela rigidez da história, um dia podem não fazer mais sentido, e então deslocam-se para outras significações, antes impensadas. As 74

circunstâncias do deslocamento remetem às condições de produção e ao non-sens inconsciente que “não para de voltar no sujeito e no sentido que nele [no non-sens] pretende se instalar.” (Ibidem, p.276).

Nos itens seguintes, trabalharei movimento revolucionário no batimento com designações semelhantes que circularam pela década de 1920, em diferentes ocasiões. Ao proceder dessa forma, não levo em conta um possível maquiavelismo da Aliança Liberal ao investir-se com a legitimidade popular do tenentismo, sobretudo da Coluna Prestes. Entretanto, considero as condições de produção em jogo e o retorno, cuja forma linguística é um sintoma, de uma questão recalcada, mobilizando outros sentidos. O recalque retorna: “[...] os traços inconscientes do significante não são jamais ‘apagados’ ou ‘esquecidos’, mas trabalham, sem se deslocar, na pulsação sentido/non-sens do sujeito dividido.” Ainda: “E é justamente isso que separa em definitivo o conceito psicanalítico de recalque da ideia filosófica (platônica) de esquecimento ou de apagamento.” (Ibidem, p.277). Há a impossibilidade de transpor o funcionamento do inconsciente no sujeito para sua relação com a história, contudo, certas semelhanças se mantêm, como o retorno de uma designação sob uma forma deslocada, quando questões colocadas pelo tenentismo em direção à política nacional foram recalcadas. Assim, não é de se estranhar o retorno de cenas históricas sob formas estranhamente familiares:

Retornos, repetições, paródias, imitações, ilusões, em forma de fantasmas e de espectros, há retorno do recalcado no acontecimento, da ‘hantologia’ como sublinha Derrida. Diga-me que cadáveres você escondeu nos baús da história, e eu lhe direi que tipo de acontecimento você deve esperar. (ROBIN, 2016, p.60). Afirmar que a história não está morta, nem se trata de algo fixável, é levar em consideração seus retornos, seja pela possibilidade de releitura a partir de posições em confronto, seja pela inscrição do interdiscurso no intradiscurso. Quando o discurso do outro estrutura uma sequência, por exemplo, pela negação de um acontecimento que produz o apagamento de outras posições, as disputas comparecem na língua, no presente da enunciação. Daí, como afirmei no início do trabalho, não haver dessemelhança entre ontem e hoje, pois a história das lutas de classes permanece sendo travada após o evento, estando ele estabilizado ou não. Dessa forma, tendo em vista o batimento entre base linguística e processo ideológico-discursivo, será produtivo considerar o funcionamento da negação linguística pensando-a discursivamente como o espaço onde um discurso outro pode comparecer, produzindo, neste caso, um apagamento sobre as memórias de movimentos constituídos a 75

partir de posições antagônicas às oficiais. Para tanto, retomo duas sequências discursivas que apresentam a negação linguística:

SD1. O movimento revolucionário, iniciado vitoriosamente a 3 de outubro, no sul, centro e norte do país, e triunfante a 24, nesta capital, foi a afirmação mais positiva, que até hoje tivemos, da nossa existência, como nacionalidade. Em toda nossa história política, não há, sob esse aspecto, acontecimento semelhante. Ele é, efetivamente, a expressão viva e palpitante da vontade do povo brasileiro, afinal senhor de seus destinos e supremo árbitro de suas finalidades coletivas. (G. Vargas, Discurso de posse, 3 de novembro de 1930, grifos meus).

SD2. O movimento revolucionário que V. Ex. dirigiu é singular em nosso país; pelo seu caráter, extensão e simultaneidade não encontra nenhum símile comparável na nossa história. De norte a sul, de leste a oeste, todas as populações se levantaram num indomável anseio de liberdade. (T. Fragoso, O discurso do General Tasso Fragoso, 4 de novembro de 1930, grifos meus).

As duas SD acima, cujas estruturas negativas são linguisticamente marcadas pelo uso da partícula não, foram produzidas em condições de produção semelhantes. Ambas foram enunciadas após a deposição de Washington Luís, circulando como pronunciamento de líderes supostamente provisórios no poder, e sendo proferidas a partir da sede do governo federal. Para trabalhar com essas SD, pretendo operar com o exercício parafrástico, levando em conta a compreensão de paráfrase de Paul Henry: “Precisemos que a noção de paráfrase que está em questão é uma noção discursiva e que ela remete àquela de formação discursiva enquanto determinação daquilo que pode, numa conjuntura dada e a partir de uma posição dada, ser substituto de uma unidade dada.” (HENRY, 1990 [1975], p. 52, grifos do autor). Formularei as paráfrases considerando os trechos grifados em SD1 e SD2, levando em conta o que pode e deve ser dito a partir das posições que constituíram as sequências. Assim, proponho:

PR(SD1). Em toda história política da nação não há acontecimento semelhante ao movimento revolucionário.

PR(SD2). O movimento revolucionário, pelo seu caráter, extensão e simultaneidade, não encontra nenhum símile comparável na história do país. 76

As duas paráfrases anteriores, muito semelhantes, provocam, através da negação, o apagamento de movimentos anteriores, tais como os levantes tenentistas, e, sobretudo, a Coluna Prestes. A configuração da formação social em 1930, em que há a disputa entre diferentes posições, levando em conta a dominância de uma coligação política, a Aliança Liberal, promove o apagamento de memórias que possam atualizar alguma relação de um movimento legitimado pela população com uma posição outra. As partículas negativas apontam para a tentativa de determinar o movimento revolucionário através de um apagamento, contudo, no gesto de negar, o discurso-outro comparece. A partir daí, é possível colocar algumas questões: como outras afirmações da nacionalidade existiram? Que efeitos o apagamento provocado pelo funcionamento da negação colocou? É possível haver um outro movimento, produzindo outros sentidos?

A partir da negação em SD1 e SD2, e de suas respectivas paráfrases, levando-se em conta as condições de produção, é possível afirmar que houve outro(s) movimento(s) que produziram repercussão no Brasil e que, de algum modo, estão em relação com movimento revolucionário. Assim, fica negado, na posição que constitui Vargas, que em outro lugar houve um movimento de magnitude capaz de causar um nó na história política brasileira. Acredito que seguir o rastro da designação revolução pela década de 1920 pode contar uma outra história que se tentou apagar. a) Revolução na década de 20 em quatro atos a.i) Ato I: a revolta no Forte de Copacabana

A designação movimento revolucionário convoca o retorno de sentidos e episódios anteriores ao evento de 30, de forma que ao longo dos anos de 1920, diferentes momentos da história, mobilizando sentidos próximos de revolução, materializaram práticas que retornaram de forma – incrivelmente – semelhante constituindo o movimento que levou Vargas ao poder. Em 1º de março de 1922, houve uma disputa eleitoral entre o situacionista Artur Bernardes e o oposicionista Nilo Peçanha, sendo o primeiro membro do Partido Republicano Mineiro e o segundo encabeçando a Reação Republicana. Apesar do apoio de militares e de parcela considerável de eleitores de diversas cidades do Brasil, Nilo Peçanha perdeu o pleito eleitoral. As questões que a fraude eleitoral colocava na ocasião das eleições de 22 operaram na abertura de sentidos que contribuíram para a eclosão do tenentismo. A respeito do voto, afirma Anita Prestes: 77

Na República Velha (1889-1930), as eleições eram feitas ‘a bico de pena’: além de a votação acontecer a descoberto, na frente de todo mundo, existiam listas pré-fabricadas de eleitores, incluindo até mortos e pessoas que sequer existiam. Os ‘coronéis’ do interior, senhores todo-poderosos de terras e donos da ‘situação’, obrigavam pela força os membros de sua clientela a votarem nos seus candidatos, ou, mais simplesmente, limitavam-se a preencher os boletins eleitorais com os nomes dos seus escolhidos. E, se alguém ousasse reclamar, era imediatamente eliminado pelos capangas a serviço do ‘coronel’. Tratava-se do célebre ‘voto de cabresto’. Nas cidades a situação não era muito diferente. Dentro desse sistema, que atingia praticamente todo o país, não ficava difícil para os donos do poder ganhar as eleições. (PRESTES, Anita, 2009, p.18). No capítulo II, analisei como a importância da questão eleitoral, quanto à fraude, foi determinante para a eclosão do movimento revolucionário. Esse problema quanto ao voto se colocava desde antes da formação da Aliança Liberal, configurando uma demanda anterior. O voto secreto e o combate à fraude eleitoral consistiam em uma demanda do tenentismo na década de 20, de forma que essas questões percorreram esses anos até 1930. Outra razão pela qual as eleições ocuparam um lugar central enquanto objeto de luta foi a exclusão do direito de voto de grande parte dos brasileiros. O economista Wilson Cano afirma sobre o período:

Um dos pesos políticos maiores, contudo, parece ter sido a questão do sistema eleitoral, em que a proibição do voto feminino, do analfabeto, o limite mínimo de 21 anos para votar, a farsa do voto pelo controle coercitivo das mesas eleitorais e o maior peso do voto rural, impediam não só uma eleição ‘limpa’, mas tolhiam ainda a participação maior da população: dos 2,7% que os eleitores de 1898 representavam em relação à população brasileira, passa a 3,4% em 1926 e ainda em 1930, atingiam tão somente 5,7%! (CANO, 2012, p.907). A questão eleitoral retorna na história, de forma que dois episódios são emblemáticos. Após a constatação do resultado das eleições de 1º de março de 1930, quando Vargas perdeu o pleito para o republicano Julio Prestes, o movimento revolucionário não demorou a tomar forma, sendo a dúvida quanto à legalidade das eleições uma das condições de sua constituição. Após a derrota de Nilo Peçanha para o republicano Artur Bernardes, em 1º de março de 1922, não demoraria para o que ficou conhecido como o primeiro levante tenentista se formar, sendo também a questão eleitoral uma demanda de luta. E, frustrados os resultados esperados nas urnas, a luta encontrou outro campo20: “Para os rebeldes, só restara uma solução: pegar em armas e alcançar pela força o que era impossível conseguir pela via eleitoral, ou seja, levar Nilo Peçanha à Presidência da República.” (PRESTES, Anita, 2009, p.18). Isso não ocorreu. O candidato da Reação Republicana não chegou ao poder, entretanto,

20 Essa afirmação serviria como explicação para o deslizamento de luta eleitoral para luta armada, em 1930. Contudo, neste momento, serve como explicação para as eleições de 1922. As semelhanças não são em vão. 78

uma nova rede de sentidos abria o futuro do país para novas possibilidades. Alguns anos depois, Vargas alcançaria pela força a presidência da República, o que era impossível pelo voto.

Faço uma ressalva com relação à semelhança que 30 e 22 convocam. As condições de produção que determinam os sentidos de um e outro momento são diferentes e, por esse motivo, uma equiparação entre os dois episódios não é possível. No começo dos anos de 1920, muitos países ainda se reestruturavam das consequências da Primeira Guerra Mundial, o que implicava em uma instabilidade financeira em âmbito mundial. Internamente, os anos 20, quanto aos fatores econômicos, segundo Wilson Cano: “como um todo apresenta resultado médio espetacular: grande aumento físico e de valor nas exportações; notável expansão da área plantada dos demais produtos, além da área cafeeira; ‘boom’ de investimento industrial [...]” (CANO, 2012, p.901-902). Ainda, quanto à questão industrial: “Confirmam o excelente desempenho industrial, as importações de bens de capital para a indústria: em todos os anos de 1923 a 1928, para o conjunto do Brasil, elas foram bem maiores do que as da primeira década do século XX” (Ibidem, p.903)21.

No começo da década, os movimentos sindicalistas, anarquistas e de esquerda sofreram com perseguições; estrangeiros haviam sido expulsos do país; a imprensa atuava sob a punição do governo; e o Estado de Sítio havia sido decretado durante o regime de Bernardes. Ainda, no decorrer desses anos, diferentes movimentos, como os variados levantes tenentistas, posteriores ao de 22, reestruturaram as relações de forças que configuravam a formação social brasileira. Os diferentes fatores, ilegíveis em sua totalidade, contribuíram para a formação do movimento revolucionário. Dessa forma, ao colocar episódios de 30 e 22 lado a lado, pretendo trabalhar não com as repetições, pois essas são impossíveis, já que as condições de produção e circulação dos sentidos são outras, mas trabalho com os retornos na história. Sob diferentes formas, mobilizando diferentes significações, o que houve em 22 guarda semelhanças com o que houve em 30, retornando de modo reelaborado.

O episódio institucionalizado como o primeiro levante tenentista teve ocasião em 5 de julho de 1922, quando soldados do Forte de Copacabana, situado no Rio de Janeiro, se rebelaram contra o governo de Epitácio Pessoa e contra a vitória eleitoral de Artur Bernardes. Outras unidades militares também deveriam se levantar pelo país, porém não se deu dessa

21 Esses dados parecem contrapor o cenário econômico apresentado na citação de Boris Fausto, na página 29, a partir dos dados de Roberto Simonsen. 79

forma, de modo que o desfecho de 5 de julho, em Copacabana, foi trágico, de acordo com a narração de Anita Prestes (2009, p.15):

Saíram os 18 heroicos combatentes, de peito a descoberto, pela praia de Copacabana, ao encontro das tropas governistas que marchavam em direção ao forte. Pelo caminho receberam a adesão de um civil solidário com a rebelião – o jovem estudante Otávio Correia – e o apoio emocionado de populares que lhes mitigaram a sede. Dispostos a enfrentar os disparos inimigos, os rebeldes repudiaram a ordem de rendição. Manchando de sangue as alvas areias de Copacabana, os 18 heróis foram trucidados. Nas palavras do poeta, ‘bateram-se dezoito contra mil...” Interessa-me trabalhar o retorno de revolução e de práticas que a constituíram em diferentes episódios dos anos de 1920 e analisar em que isso implica para a constituição do movimento revolucionário de 1930. Ocasionalmente, designações relacionadas a revolta e rebelião também serão trabalhadas por sua ligação com revolução em certas condições. Em um primeiro momento, recorto sequências discursivas relativas ao levante do Forte de Copacabana. Abaixo, encontram-se enunciados a respeito da negociação das forças do governo com os revoltosos durante o conflito; o interrogatório de um militar com dois sobreviventes do episódio, os tenentes Eduardo Gomes e Siqueira Campos; e o depoimento de Siqueira Campos ao jornal A Noite, em edição extraordinária.

SD3. Comunico-vos, de ordem do governo da República, que não é possível conceder aos elementos do Exército nacional que se encontram revoltados no Forte de Copacabana, e sob vosso comando, o armistício que foi solicitado por intermédio do capitão Renato Aleixo. (Relatório do Coronel João Nepomuceno da Costa, Comandante das Forças de Ataque, julho de 1922, grifos meus).

SD4. Parlamentei, porque isso é, militarmente falando, um grande recurso de guerra: convinha ouvir um revoltoso para apanhar com sutilezas o que de verdade pretendiam os rebeldes, politicamente falando, e quem era o chefe do movimento. De fato, pela longa e manhosa entrevista sustentada com o parlamentar, capitão Aleixo, ficou o comando convicto de que o marechal Hermes era o chefe supremo dos rebeldes e pretenso futuro ditador. (Idem, grifos meus).

SD5. Perguntado se foi convidado por alguém para a rebelião ou se assinou algum compromisso, respondeu negativamente. Perguntado se sabia que outras unidades acompanhavam o Forte, respondeu ter acreditado que o movimento fosse geral. (Escrivão cap. Milton de Freitas Almeida, Interrogatório do Tenente Eduardo Gomes, 12 de julho de 1922, grifos meus). 80

SD6. Perguntado se lhe constou que o mal. Hermes seria o chefe do movimento revolucionário, respondeu que o supunha naturalmente indicado para isso, mas ignorava se ele assumiu algum compromisso. (Idem, grifos meus).

SD7. A situação que o depoente encontrou no Forte era quase de pânico, pois, ante a certeza de que o Forte de Copacabana estava isolado no, digo, só no movimento, como garantira, com a sua palavra, o sr. ministro da Guerra, e ante a garantia de vida que se prometia aos revoltosos (tudo por meio do telefone), os camaradas estavam resolvidos a abandonar o Forte. (Escrivão cap. Milton de Freitas Almeida, Interrogatório do Tenente Antônio de Siqueira Campos, 14 de julho de 1922, grifos meus).

SD8. Perguntado por que se rebelou contra o governo respondeu porque achava que os últimos atos dele, já na questão das candidaturas presidenciais, já no caso de Pernambuco e, finalmente, no caso puramente militar da prisão do marechal Hermes e nas notas consecutivas, enfim, de um modo geral, a maneira por que o governo tratava o Exército, segundo acha o depoente, permitia a esse Exército todos os atos de revolta. (Idem, grifos meus).

SD9. Perguntado se o capitão Euclides Fonseca o havia convidado para a revolta, respondeu que nunca. Perguntado se tomou parte em reuniões de caráter subversivo ou se assinou algum compromisso, respondeu que não. (Idem, grifos meus).

SD10. Com a prisão daqueles oficiais (inclusive o gen. Bonifácio) e os disparos feitos sobre Cotunduba à 1h30min, e que não foram correspondidos, conforme ficara combinado, pelas demais fortalezas, teve início a revolta. (Siqueira Campos, Depoimento de Siqueira Campos sobre o Cinco de Julho – Edição extraordinária de A Noite, 3 de setembro de 1923).

SD11. Já disseram os jornais o que foi a luta entre os revoltosos [...] (Idem, grifos meus).

Nas sequências recortadas, interessa-me, como dito, trabalhar com o processo de produção de sentidos de revolução, o que abrange designações como revoltados e rebeldes, pois mobilizam, dentro de algumas SDs, significações semelhantes, funcionando em uma relação parafrástica. Assim, em SD3, ao analisar o processo semântico instituído por 81

revoltados no recorte “aos elementos do Exército nacional que se encontram revoltados no Forte de Copacabana”, há uma divisão implicada no interior da instituição militar. Ao lermos “que se encontram revoltados” como uma oração relativa determinativa produzindo sentidos para “elementos do Exército nacional”, essa instituição encontra-se dividida entre os militares revoltados e os militares que compõem as forças do governo. A ilusão de unidade da instituição, como órgão isento de contradições, fragiliza-se, de forma que a fissura nesse imaginário possibilita a sustentação dos militares revoltados. A partir da divisão no Exército surgem os revoltados. E ainda que os rebelados tenham sofrido forte repressão, e até mesmo a morte, isso não foi suficiente para o falecimento de uma nova rede de sentidos, pois essa sobreviveu e se ampliou.

A mesma sequência também pode ser lida como uma relativa explicativa, levando em conta o jogo equívoco que constitui a língua. Passo a ler “que se encontram revoltados no Forte de Copacabana” como uma explicação que generaliza os “elementos do Exército nacional”, isto é, em vez de produzir uma divisão no Exército, cria uma totalização dessa instituição, de forma que, conforme essa leitura, “os revoltados no Forte de Copacabana” são uma metonímia do Exército nacional, pois ainda que nem toda a instituição esteja lá, ela se encontra representada no Forte. Agora, faço um jogo com a supressão da relativa que venho trabalhando: “Comunico-vos, de ordem do governo da República, que não é possível conceder aos elementos do Exército nacional o armistício que foi solicitado por intermédio do capitão Renato Aleixo”. O apagamento da explicativa coloca uma relação de oposição entre o governo e o Exército. Na ocasião das eleições presidenciais de 1922, a circulação de cartas falsas em nome de Artur Bernardes comprometeram as relações entre setores militares e o governo. Na leitura proposta neste parágrafo, esse descontentamento fica exposto, de forma que os desentendimentos entre essas duas forças concorreram para as brechas abertas no interior da instituição militar, possibilitando a configuração de uma nova rede de sentidos. Os deslocamentos dessa rede foram tão significativos que, em torno de 1930, fazem revolução ser significada na enunciação de Prestes de forma muito próxima ao comunismo, motivo de perseguição pelos militares22.

O equívoco entre uma leitura explicativa e uma determinativa tem seu ganho nas aberturas possíveis para além dos sentidos canonizados. A sequência trabalhada foi recortada do relatório de um coronel que liderou as forças de ataque contra o Forte de Copacabana,

22 Posteriormente abordarei os sentidos de revolução na enunciação de Prestes, mas fiz essa breve menção para expor a força e os caminhos inesperados que uma rede de sentidos pode tomar. 82

comandando os militares que atacaram por terra, céu e mar os revoltados. Entretanto, a contradição, por ser constitutiva, já funcionava no interior do Exército. A relativa explicativa mostra o equívoco entre a instituição militar e o governo. Já a determinativa aponta para a divisão entre os militares. Ambos os movimentos fizeram parte da constituição dos revoltados, de forma que essa dupla leitura da relativa diz da relação entre a contradição estruturante das condições de produção do período e o equívoco materializado na língua.

Em SD4, duas designações estão em relação de substituição com revoltados, sendo um revoltoso e os rebeldes. Esses nomes são mobilizados a partir de uma posição que ocupa o lugar institucional de Exército nacional sob comando do Governo Federal e em batalha com os elementos revoltados, portanto, por enquanto, expus apenas o modo como os militares sob comando do governo designam os revoltados. Nessa mesma sequência, comparece uma estrutura regular, composta por sujeito, verbo de ligação e predicativo do sujeito. Os recortes que a materializam são: “quem era o chefe do movimento” e “o marechal Hermes era o chefe supremo dos rebeldes”. Os sujeitos “quem” e “marechal Hermes” são substituíveis, de modo que o predicativo do sujeito mobiliza qualificações ao marechal. Entretanto, creio ser mais produtivo perguntar pela incompletude que compõe chefe do movimento e pensar na paráfrase possível com o segundo predicativo do sujeito recortado. Em chefe do movimento, de que movimento se trata, que designações cabem como determinantes de movimento? O recorte chefe supremo dos rebeldes possibilita a constituição de uma paráfrase que permite mobilizar uma rede de determinações para movimento. Assim, considerando a relação de substituição mobilizada por revoltados, as seguintes designações são possíveis:

 chefe do movimento dos rebeldes

 chefe do movimento dos revoltados

 chefe do movimento dos revoltosos

Os deslizamentos apontados tornam possível a constituição de uma rede de sentidos que caracteriza movimento e, mais que isso, produz a consistência de uma dissidência no interior da instituição militar, geralmente atravessada pelo imaginário da unidade. Contudo, para sustentar o funcionamento da ilusão, não é possível mais considerar os 83

revoltosos como membros da unidade, assim eles se tornam um movimento à parte, expulsos do corpo institucional23.

A próxima sequência discursiva foi recortada a partir de um interrogatório a um dos revoltados sobreviventes ao episódio do Forte de Copacabana, neste caso, o tenente Eduardo Gomes. O interrogatório foi registrado por um capitão – e que, portanto, ocupava um lugar institucional vinculado ao Exército – que atuou como escrivão. Em SD5, a designação rebelião foi uma das formas de nomear o episódio, assim como movimento. Novamente, esta denominação, em “respondeu ter acreditado que o movimento fosse geral”, comparece de modo indeterminado. Contudo, a relação de substituição com rebelião estabelece a produção de certos sentidos a movimento, por mais que nenhuma determinação o qualifique.

Em SD6, há a repetição da estrutura composta por sujeito, verbo de ligação e predicativo do sujeito, presente em SD4, porém, desta vez, o tempo verbal muda e o predicativo também, como segue no recorte: “o mal. Hermes seria o chefe do movimento revolucionário”. O sujeito permanece o mesmo, enquanto o tempo do verbo de ligação deixa de ser “era” e muda para “seria”. O deslizamento mais produtivo é o marcado pelo predicativo do sujeito, materializado como chefe do movimento revolucionário. A designação movimento revolucionário compareceu em um interrogatório conduzido por militares sob o comando do governo, abrindo os sentidos para a revolução. Antes, o movimento comparecia senão de modo indeterminado e evocando lateralmente as designações rebeldes, revoltados e revoltosos como possibilidade de qualificação. Agora, a designação se materializa no interrogatório como chefe do movimento revolucionário, evocando as significações anteriores e entrando em uma rede de sentidos que abre para uma nova circulação.

Não se trata de coincidência deparar-se com uma designação presente em 1922 que, depois, retorna no movimento revolucionário de 1930. As condições de produção de 30, em que os tenentistas faziam parte do movimento, fazendo circular práticas discursivas e também práticas de luta, como pegar em armas, possibilita a atualização da designação. Além disso, a questão da fraude eleitoral, a vitória republicana indesejada por alguns setores em 1º de março, a empreitada da tomada de poder, essas condições, impossíveis de serem esgotadas, contribuíram para o retorno do movimento revolucionário. Entretanto, talvez deva-se

23 Nesse ponto, é inevitável fazer referência à designação movimento revolucionário, que circulou em 1930. Há uma relação entre as designações expostas, presentes no levante de 1922, e a de 1930. Entretanto, abordarei nas próximas linhas, pois as próximas sequências podem reforçar a relação a ser colocada. 84

considerar como um dos principais fatores do retorno a produção de um recalque nos anos de 1920. A expulsão de estrangeiros, a censura à mídia, o Estado de Sítio, o combate violento aos movimentos, o cerco militar contra cidades em que civis morreram, todas essas características do governo de Artur Bernardes, sobretudo, tentaram produzir um silenciamento dos sentidos de revolução, sejam os mobilizados pelo levante do Forte de Copacabana, sejam os movidos pelas batalhas ocorridas no sul, pela revolução paulista, pela Coluna Prestes.

O silêncio imposto pelos governos republicanos da década de 20 não foi suficiente para impedir que revolução se perpetuasse, derivando de sentidos e retornando sob outras formas, mas carregando algo como memória, que conta sobre seu passado, ainda que na forma de uma negação, como em SD1 e SD2. Quanto à revolução na década de 20, a beleza que reside no movimento dos sentidos está justamente no inesperado do que pode vir a ser. Em 1930, o movimento revolucionário não era a revolução tenentista de 22, nem a dos federalistas do sul, também não era a dos revolucionários paulistas, nem a dos membros da Coluna Prestes, nem a do Prestes leitor de Marx. O movimento revolucionário de 30 era outra coisa, efeito do retorno de inúmeros outros movimentos que derivaram e abriram para o inesperado dos sentidos que possibilitaram a Vargas chegar ao poder.

A próxima sequência foi recortada a partir do inquérito do segundo sobrevivente do episódio do Forte de Copacabana, Siqueira Campos. O interrogatório foi registrado pelo mesmo escrivão das sequências anteriores, um capitão. Cabe mencionar que o interrogador de Eduardo Gomes e de Siqueira Campos foi o então general de divisão Augusto Tasso Fragoso, o mesmo que presidiu, em 30, a junta de militares que depôs Washington Luís antes de passar o poder federal a Vargas, sob suspeitas de suas intenções em permanecer como chefe da República. Foi também a partir da posição de sujeito na qual o enunciado de Fragoso se constituiu que um apagamento sobre os movimentos anteriores ao de 30 foi produzido, conforme o recorte a seguir, presente em SD2: “O movimento revolucionário que V. Ex. dirigiu é singular em nosso país; pelo seu caráter, extensão e simultaneidade não encontra nenhum símile comparável na nossa história”.

Em SD7, o episódio é designado, como em SD5, de movimento, colocando em jogo, mais uma vez, uma indeterminação, e seus participantes são denominados de revoltosos. Além dessa, uma outra forma de designar comparece: camaradas. Em SD8, atos de revolta remete a movimento, constituindo uma rede de sentidos. Além disso, aquela designação opera um jogo entre a unidade e a divisão com relação ao Exército no recorte “de um modo geral, a maneira por que o governo tratava o Exército, segundo acha o depoente, permitia a esse 85

Exército todos os atos de revolta”. Em o Exército, a instituição é produzida como unidade, sem fraturas internas, entretanto, ao enunciar esse Exército, opera-se um jogo equívoco em que esse pode funcionar anaforicamente remetendo a o Exército ou permite opor esse Exército a outro, ressaltando a divisão presente em SD3 quanto aos militares revoltados e aos sob mando do governo. Em SD8, todos os atos de revolta produz sentidos equívocos, pois uma dupla leitura é possível: “o Exército tem permissão a todos os atos de revolta” e “essa parte do Exército, e não outra, tem permissão a todos os atos de revolta”. Essa operação contraditória atua de forma semelhante em SD3, nas leituras possíveis da relativa. Em SD9, outra paráfrase de movimento comparece, neste caso, a revolta.

As próximas sequências foram recortadas de uma entrevista de Siqueira Campos ao jornal A Noite, tratando da sublevação do Forte de Copacabana, ocorrida em julho de 1922. A designação a revolta comparece como forma de significar o episódio, em SD10, e, em “a luta entre os revoltosos”, na sequência 11, os revoltosos designa os participantes da revolta. Nesses recortes, é notável a ausência de movimento como forma de denominar a revolta do Forte. Essa designação circulou na enunciação dos militares sob o comando do governo, ainda que tenha sido a partir dos registros de um escrivão tomando depoimento de revoltosos. Na enunciação de Siqueira Campos, os nomes relacionados a revolta são os que predominam. a.ii) Ato II: revolucionários em armas no Rio Grande do Sul

As eleições federais de 1922 produziram questões suficientemente fortes para agitar o cenário nacional, sendo relacionadas à fraude e fazendo eclodir um levante militar. Em 1923, um episódio semelhante teve lugar no sul do país, sendo constituído pelas condições de produção que as disputas entre federalistas e republicanos evocavam desde muito tempo na região. Nesta ocasião, Borges de Medeiros, o então presidente do Rio Grande do Sul – o equivalente ao cargo de governador – caminhava para seu quinto mandato à frente do estado. Entretanto, o resultado suspeito advindo da contagem dos votos contribuiu para a produção de conflitos armados na região.

As disputas eleitorais no sul, realizadas em novembro de 1922, tiveram como opositores Assis Brasil, representante dos federalistas, e Borges de Medeiros, líder do Partido Republicano Rio-grandense (PRR). Nas eleições federais, que tiveram ocasião meses antes, os federalistas, a contrário do que se poderia supor, apoiaram o republicano Artur Bernardes, enquanto Borges de Medeiros apoiou a Reação Republicana de Nilo Peçanha. Lira Neto 86

afirma que o líder do PRR “resolveu insurgir-se contra a hegemonia da conhecida ‘República do café com leite’” e, ainda: “Borges aderiu à Reação Republicana, aliança que tentava construir um eixo alternativo de poder, composto pelo Rio de Janeiro e pelas oligarquias de Bahia e Pernambuco” (NETO, 2012, p.177). A Aliança Liberal, constituída por Rio Grande do Sul, Paraíba e Minas Gerais, em 1930, configura o retorno de uma insurgência contra a política do café com leite. A fraude eleitoral pode ser analisada como um dos fatores desencadeantes de um novo cenário político no país, entretanto, a ruptura da hegemonia de Minas e São Paulo na posse da presidência também contribuiu para a possibilidade de constituição do movimento revolucionário, colocando em jogo forças que, desde antes, demandavam poder.

A apuração de janeiro de 1923, que decidiria o presidente do Rio Grande do Sul, não foi suficiente para conceder a vitória a Borges de Medeiros. Conforme Neto, “Obtivera a maioria do eleitorado, mas não os três quartos previstos pela Constituição castilhista para assegurar-lhe a recondução ao cargo.” (Ibidem, p.174). Caso os três quartos não fossem alcançados na votação, poderia haver um impasse institucional que culminaria em uma intervenção federal, cujo presidente empossado era Artur Bernardes, do qual Medeiros foi adversário. Entretanto, após haver manipulação dos votos, o líder do PRR foi considerado eleito presidente do estado. Lira Neto afirma:

No dia seguinte, apresentaram um parecer que expunha uma votação de 106319 sufrágios a favor de Borges, contra 32217 do candidato oposicionista, Joaquim Francisco de Assis Brasil. Isso significava que, por uma estreita margem de pouco mais de 2 mil votos, os três quartos regulamentares estavam artificialmente garantidos. Desse modo, Borges de Medeiros foi declarado reeleito para mais um quinquênio à frente do governo do Rio Grande do Sul, por artes da cabala orquestrada por Getúlio, que produzira uma multiplicação instantânea dos votos a favor do candidato oficial. (Ibidem, p.175). Os federalistas não acataram o resultado duvidoso das eleições e pegaram em armas contra Borges de Medeiros. Uma guerra civil foi iniciada no Rio Grande do Sul, fazendo circular a designação revolução e configurando práticas que, futuramente, retornariam imbricadas junto à revolução de outros movimentos, determinando sentidos para 1930. Assis Brasil, Borges de Medeiros e Vargas compuseram a Aliança Liberal, constituindo-se em posições contrárias à governista de Washington Luís. Contudo, uma relação de disputas configurava essas posições em 1923, ao menos no que se tem na história estabilizada. Neto comenta, sobre um episódio do conflito que tomava o Rio Grande do Sul, que “O intuito de Honório [um federalista] era invadir Uruguaiana e, segundo os boatos que 87

corriam até no Rio de Janeiro, abrir terreno para que Assis Brasil instalasse ali um governo revolucionário paralelo.” (Ibidem, p.186). Isso poderia provocar uma intervenção federal no sul e impedir o governo de Medeiros, já que haveria uma duplicidade de poderes no estado. Getúlio Vargas, mesmo já detendo um cargo político, trajou-se de militar e foi nomeado comandante do 7º Corpo Provisório, sendo incumbido de auxiliar as forças republicanas.

Com o perdurar da guerra civil, as forças revolucionárias estavam com poucos recursos e não haviam conseguido promover uma intervenção federal na região. Por sua vez, o governo estadual encontrava-se comprometido com as despesas decorrentes dos conflitos, que não cessavam. A partir desse cenário, o ministro da Guerra de Bernardes, general Setembrino de Carvalho, foi enviado a fim de mediar um acordo entre as forças em disputa. Em 14 de dezembro de 1923, no Palácio das Pedras Altas, propriedade de Assis Brasil, um acordo foi assinado entre federalistas e republicanos. A esse respeito, Lira Neto comenta:

[...] os rebeldes abriram mão de sua principal bandeira de luta: a renúncia de Borges de Medeiros. Pelo acordo de Pedras Altas, Borges cumpriria todo o resto dos quatro anos que ainda restavam de seu mandato quinquenal. Com a ressalva de que não poderia mais pleitear nenhuma reeleição no fim do período. Ficou acertado que, em 1928, os rio-grandenses teriam necessariamente um novo governante, escolhido em eleição fiscalizada por observadores do Exército e do governo federal. No simulacro de castelo medieval de Assis Brasil, o castilhismo-borgismo acabara de ver lavrado o seu atestado de óbito. (Ibidem, p.213). As sequências que trabalharei a seguir foram recortadas do acordo de Pedras Altas, formulado por um tenente-coronel que ocupava o papel de secretário. Nos enunciados abaixo, analiso o processo de produção de sentidos na constituição da designação revolução e em designações relacionadas.

SD12. Aos quatorze dias do mês de dezembro do ano de mil novecentos e vinte e três, em Pedras Altas, município de Pinheiro Machado, Estado do Rio Grande do Sul, na casa de residência da granja de Pedras Altas, reunidos os srs. general-de-divisão Fernando Setembrino de Carvalho, ministro de Estado dos Negócios da Guerra, como delegado especial do Exmo sr. presidente da República, e o dr. Joaquim Francisco de Assis Brasil, como representante dos chefes revolucionários em armas, comigo, tenente-coronel Lafaiete Cruz, servindo de secretário, [...] foram por mim lidas as cláusulas do acordo que é resultado de entendimento e ajuste prévios entre o general Setembrino de Carvalho e o dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, presidente do Estado do Rio Grande do Sul, de um lado, e de outro, entre o mesmo sr. general e o dr. Joaquim Francisco de Assis Brasil, acordo este 88

que, celebrado nesta data, põe termo à luta armada que os revolucionários sustentam contra o governo do estado (Secretário tenente-coronel Lafaiete Cruz, Acordo de Pedras Altas – Pacificação gaúcha, com reforma da Constituição Estadual, 14 de dezembro de 1923).

SD13. Sexto. Logo que seja declarada a paz, o armamento das tropas revolucionárias será recebido por oficiais do Exército que forem para isso designados (Idem, grifos meus).

SD14. Sétimo. O governo do estado solicitará da Assembleia dos Representantes autorização para relevar de quaisquer direitos os contribuintes que os tiverem pago anteriormente às autoridades revolucionárias, desde que estas tenham feito a arrecadação de conformidade com as leis e regulamentos do estado (Idem, grifos meus).

SD15. Oitavo. As requisições feitas e as contribuições de guerra impostas pelos revolucionários serão satisfeitas, bem como indenizados os danos causados aos particulares de qualquer facção (Idem, grifos meus).

SD16. E tendo ficado ciente do que se estatuiu, declarou o dr. Assis Brasil que lançaria uma proclamação aconselhando os revolucionários a deporem as armas, na conformidade deste acordo, retirando-se para seus lares confiantes nas garantias que oferece o Governo Federal. (Idem, grifos meus).

Os resultados das eleições estaduais no Rio Grande do Sul, sob acusação de fraude, deram início a disputas entre forças que atualizaram os confrontos entre federalistas e republicanos na região, mobilizando a designação revolução. Em SD12, um aposto funciona produzindo sentidos para o nome do líder federalista, conforme o recorte “o dr. Joaquim Francisco de Assis Brasil, como representante dos chefes revolucionários em armas”. Semelhanças semânticas ocorreram em SD6, enunciado em que compareceu “o mal. Hermes seria o chefe do movimento revolucionário”, entretanto o recorte estruturava-se de forma diferente, de modo que o trecho grifado comparecia como predicativo do sujeito. Em SD12, o trecho grifado é um aposto e revolucionários é um qualificativo de chefe e não de movimento.

No que se relaciona ao episódio do Forte de Copacabana, não está dado que os revoltados são revolucionários. Há uma operação de deslizamento que qualifica o movimento como revolucionário ao produzir sentidos para o mal. Hermes. De outro modo ocorre com a 89

determinação dos federalistas, no Rio Grande do Sul, pois, no acordo de Pedras Altas, revolucionários funciona como forma evidente de designá-los. Em SD12, os participantes do episódio são caracterizados como revolucionários, como em chefes revolucionários, mas há a ausência de marcas que caracterizem um movimento revolucionário. A obliteração dessa designação marca uma diferença em relação aos revoltados de 1922. Também a presença de armas, em chefes revolucionários em armas, compõe uma diferença com SD6. Esse adjunto coloca uma informação que poderia ser dispensada, mas que, por sua materialização, evoca como questão o porquê de em armas ser relacionado a chefes revolucionários.

Na mesma sequência, a relação entre armas e revolucionários comparece em outro recorte: “põe termo à luta armada que os revolucionários sustentam contra o governo do estado”. Houve um deslizamento de armas em que ela não mais aparece em relação a chefes revolucionários, mas ao lado de luta. A designação luta armada sofre uma sedimentação histórica, retornando em 1930, como visto no capítulo II, possibilitando a constituição do movimento revolucionário. Entre as possibilidades desse retorno está os efeitos de luta armada em SD12. Essa designação é determinada por uma relativa que ao ser lida como explicativa produz uma generalização sobre revolucionários, de forma que uma paráfrase possível para trabalhar esse efeito seria: “Os revolucionários sustentam a luta armada contra o governo do estado”. Revolucionários, considerando as condições de produção do acordo de Pedras Altas, significa os federalistas, entretanto, sendo uma forma possível de designar os tenentistas da revolta do Forte de Copacabana, materializa-se no equívoco. A memória dos revoltados de 1922 havia causado duração e ocorrido no ano anterior aos conflitos no sul. Afirmar o término da luta armada dos revolucionários contra o governo do estado faz com que aqueles signifiquem mais que os federalistas, pois evocam a história, de forma imbricada, de outras revoluções.

A memória dos tenentistas coloca-se no jogo equívoco da revolução no sul, e perdura. Em 1930, o enunciado “Os revolucionários sustentam a luta armada contra o governo” seria sustentável, considerando a relação de antagonismo entre o movimento revolucionário e o governo federal. Como trabalhado anteriormente, o retorno de luta armada foi importante para a tomada de poder por Vargas, assim como a atualização de revolucionários. Entretanto, o retorno de uma estrutura mais complexa sintaticamente, se comparada às designações, parece ter ocorrido, pois um enunciado, que foi se compondo na década de 1920, produziu sentidos em 1930. Nos conflitos ocorridos no Rio Grande do Sul, a luta armada era contra o governo estadual, contudo, bastava uma qualificação se elipsar, no 90

curso da história da Primeira República, para que as relações de forças constatadas fossem outras. As relações entre o governo federal e as forças dissidentes já estavam críticas, como o levante de 1922 aponta, no entanto, quando a queda de estadual, em governo estadual, torna- se possível, as relações de forças em âmbito nacional já são outras. Assim, por efeito de um retorno, os sentidos do enunciado “Os revolucionários sustentam a luta armada contra o governo” circularam em 1930, ainda que não necessariamente de forma explícita.

A relação entre armas e revolucionários percorre o acordo de Pedras Altas. Em SD13, no recorte “o armamento das tropas revolucionárias será recebido por oficiais do Exército”, o sintagma tropas revolucionárias, podendo ser dispensável, acompanha armamento na função de adjunto adnominal. Anteriormente, havia dito que os agentes eram qualificados de revolucionários, entretanto não o movimento. Na designação tropas revolucionárias decorre isso quando tropas sofre determinação, assim como chefes, mas o episódio não. O mesmo comparece em SD14, em autoridades revolucionárias. A ausência da qualificação revolucionário a qualquer designação substituível por movimento é notável quando comparado ao episódio de 1922, ocasião em que, a partir do lugar institucional do Exército, a designação chefe do movimento revolucionário foi materializada.

Os participantes que se dispuseram contra o governo estadual, em 1923, no Rio Grande do Sul, são designados, em SD15, de revolucionários. E, ainda, particulares de qualquer facção comparece como modo de significar os participantes de ambos os lados do conflito. Em SD16, os revolucionários, assim como na sequência anterior, é uma forma de denominar os federalistas, que aparecem, mais uma vez, em relação a armas. No recorte “declarou o dr. Assis Brasil que lançaria uma proclamação aconselhando os revolucionários a deporem as armas”, a deposição das armas garante o imaginário de funcionamento do acordo e, também, desarticula os revolucionários em armas. O retorno da designação armas constitui uma regularidade na produção de sentidos de revolucionários, na guerra civil do Rio Grande do Sul, marcando uma diferença com os tenentistas revoltosos do Forte de Copacabana. a.iii) Ato III: o movimento revolucionário paulista

No ano seguinte à guerra civil que teve ocasião no Rio Grande do Sul, novos levantes tenentistas despontaram, dessa vez em São Paulo. Na história institucionalizada, marca-se o dia da deflagração da revolta paulista em 5 de julho, remetendo, assim, a 5 de julho de 1922, dia do levante tenentista que resultou no combate do Forte de Copacabana. A deposição de Artur Bernardes, cujo governo continuava sob estado de sítio, era, mais uma 91

vez, uma das demandas do movimento tenentista, assim como foi no levante do Forte. A exigência do voto secreto também continuava figurando entre as bandeiras dos revoltosos de 1924.

O governador de São Paulo fugiu, após o início do levante, possibilitando a tomada do poder pelos rebeldes. Estando o país sob estado de sítio, o governo federal autorizou um ataque militar à cidade, fazendo com que São Paulo fosse bombardeada. Desde forças do exército até tropas das polícias militares estaduais foram mobilizadas para combater o levante tenentista. Dada a desvantagem de força entre os combatentes e as tropas do governo, os tenentistas se retiraram para o Estado do Paraná. Anita Prestes afirma que:

Chegando ao Estado do Paraná, os rebeldes permaneceram imobilizados entre o caudaloso e turbulento Rio Paraná e a Serra do Medeiros. Logo enfrentariam as tropas comandadas pelo general Cândido Mariano Rondon, que havia se oferecido pessoalmente a Artur Bernardes para dar combate aos militares rebeldes. Começava uma nova etapa da revolução tenentista. (Ibidem, p.45) As sequências que trago a seguir foram recortadas de três textos constituídos durante o levante paulista de 1924. Um foi o Manifesto do Partido Republicano por ocasião da Revolução Paulista de 1924, enunciado a partir de uma posição governista. O segundo foi o Manifesto Revolucionário Paulista, constituído pelos líderes do movimento. O último foi enunciado pelo chefe militar dos tenentistas, o general Isidoro Dias Lopes, e se trata das condições para a deposição das armas. Neste primeiro momento, trago um recorte cuja enunciação se dá a partir de uma aparente relação de oposição aos rebeldes.

SD17. A população de São Paulo foi despertada, hoje, inopinadamente, por uma rebelião de solidários que começaram a atacar a residência particular do Presidente do Estado (Palácio dos Campos Elysios), de onde foram rechaçados, abandonando as armas para se reunir a outros revoltosos que atacaram quartéis, telégrafos e centros telefônicos. (Manifesto do Partido Republicano Paulista por ocasião da Revolução Paulista de 1924, 6 de julho de 1924, grifos meus).

No recorte “A população de São Paulo foi despertada, hoje, inopinadamente, por uma rebelião de solidários”, a população de São Paulo é significada enquanto unidade, sem possibilidade de divisão, sendo despertada por uma rebelião de solidários, designação na qual o partido governista nomeia o movimento que o contrapõe. No entanto, o sintagma preposicional (SP) de solidários, na função de atribuir sentidos à rebelião, produz uma indeterminação que joga com o equívoco da língua. Os solidários são solidários a quê ou a quem? Aos tenentistas, ao movimento de deposição de Bernardes, contra o governo estadual, 92

à população de São Paulo? Um pequeno deslizamento enunciado a partir de uma posição governista joga com a possibilidade de sentidos outros que não aqueles em aliança com as posições dominantes. Em SD17, há a designação dos tenentistas como revoltosos.

As próximas sequências foram recortadas do Manifesto Revolucionário Paulista, enunciado em 10 de julho de 1924. Os revolucionários paulistas incluem-se no movimento tenentista.

SD18. Os chefes do movimento revolucionário ansiavam por encontrar-se com os representantes da imprensa desta capital [...] (Manifesto Revolucionário Paulista, 10 de julho de 1924, grifos meus).

SD19. Antes de mais nada, é preciso fazer notar que esta revolução não é um movimento isolado, que se tivesse podido levar a efeito somente nesta circunscrição da República. (Idem, grifos meus).

SD20. Circunstâncias imprevistas porém, determinaram a sua irrupção sem o caráter de simultaneidade previsto, o que está certo, não prejudicará a segurança das convicções e a eficácia da ação das demais unidades do movimento revolucionário. (Idem, grifos meus).

SD21. Sendo, como é, esse ato histórico, de caráter nacional, visa mudar completamente a situação do governo da República e dos estados onde isso for necessário à execução do programa revolucionário. (Idem, grifos meus).

SD22. Entretanto, não visa a revolução a pessoa do dr. Artur Bernardes, o que diminuiria o caráter elevado em que se inspirou e com o qual se apresenta ao povo brasileiro. (Idem, grifos meus).

SD23. O Exército não tem ambições e não quer postos. Age abnegadamente, por altruísmo brasileiro e, fundamentalmente, patriótico e, nesse sentido, os chefes do movimento revolucionário querem dar o exemplo aos que, agora, ocupam os altos postos da administração do país, que, com raras exceções, não souberam servi-lo nos seus interesses gerais. (Idem, grifos meus).

SD24. Temos empenho em declarar que a população de São Paulo encontrará da parte dos revolucionários todos os esforços para a sua segurança e garantia, assim como para a aplicação de quaisquer princípios de justiça. (Idem, grifos meus). 93

SD25. A imprensa, qualquer que seja o seu credo, terá da nossa parte uma garantia completa de manifestação do pensamento, estando os revolucionários dispostos a estudar e atender a todas as reclamações que, por seu intermédio tragam o cunho da sinceridade, do patriotismo. (Idem, grifos meus).

SD26. Este movimento revolucionário é um gesto de indignação e patriotismo. (Idem, grifos meus).

Na sequência 18, há um retorno configurado por os chefes do movimento revolucionário, ainda que mobilizando uma flexão de número diferente. Essa formulação foi enunciada em 1922, no interrogatório de Eduardo Gomes, no recorte “o mal. Hermes seria o chefe do movimento revolucionário”. Sintaticamente, do movimento revolucionário continua configurando um sintagma preposicional (SP) que compõe um sintagma nominal (SN) com os chefes. Ao contrário do levante do Forte de Copacabana, no Manifesto Revolucionário Paulista, a estrutura de um SP contendo movimento revolucionário, e ligado a um SN, será recorrente. Em SD19, no recorte “esta revolução não é um movimento isolado”, o processo de produção de sentidos aponta para uma diferença que se estabelece entre outras revoluções que foram movimentos isolados. Ao levar em conta o trajeto que revolução mobiliza, é possível considerar como outras revoluções isoladas o levante tenentista de 1922, no Rio de Janeiro, e a guerra civil de 1923, no Rio Grande do Sul. No recorte “que se tivesse podido levar a efeito somente nesta circunscrição da República”, comparece o caráter nacional que o movimento mobiliza enquanto efeitos de sentido.

Se, em SD19, se considera que esta revolução diferencia-se de outra revolução ao convocar a luta armada que teve ocasião no sul, há um processo de significação de uma diferenciação entre os revolucionários do sul e os revolucionários tenentistas. A estrutura de o chefe do movimento revolucionário, presente em 1922, e de os chefes do movimento revolucionário, de 1924, quando em comparação com a estrutura de chefes revolucionários em armas, presente no Acordo de Pedras Altas, de 1923, aponta para uma diferença entre os tenentistas e os revolucionários do sul. Em os chefes do movimento revolucionário, do movimento revolucionário configura um SP que se liga ao SN os chefes. Esse funcionamento marca uma autonomia de movimento revolucionário, que pode comparecer atrelada a outros SN, como a eficiência do movimento revolucionário, ou, jogando com a língua através de paráfrases, os combatentes do movimento revolucionário, os tenentistas do movimento revolucionário. Além disso, revolucionário é uma característica de movimento. Em chefes revolucionários em armas, o SP é em armas, enquanto chefes revolucionários é um SN que 94

inclui o SP. Revolucionários caracteriza chefes, de forma que movimento não se inclui enquanto possibilidade. Assim, uma diferença entre os levantes tenentistas e a guerra civil ocorrida no sul é marcada em SD19, quando, ao se afirmar o caráter amplo e nacional dos levantes, esse funcionamento está imbricado aos sentidos que movimento mobiliza, e que está ausente em outras manifestações.

Em SD20, a designação movimento revolucionário comparece, mais uma vez, como SP, no recorte “a eficácia da ação das demais unidades do movimento revolucionário”. Há uma reunião de sintagmas preposicionais, pois o SP do movimento revolucionário encontra-se ligado ao SP das demais unidades, que por sua vez está atrelado ao SP da ação, que, por fim, está ligado ao SN a eficácia. O qualificativo revolucionário comparece com frequência mobilizando sentidos para movimento no Manifesto Revolucionário Paulista, especialmente sob a forma do SP do movimento revolucionário. No Acordo de Pedras Altas, revolucionário qualifica distintos nomes, não apresentando uma regularidade, como em chefes revolucionários, tropas revolucionárias, autoridades revolucionárias. A estruturação de um SP possibilita a recorrência da enunciação de movimento revolucionário, assim como a produção de um caráter nacional para a revolução, por meio dos sentidos que movimento mobiliza. A imbricação entre a repetição de uma estrutura sintática e a produção de sentidos que envolve as designações em jogo contribui para um retorno na história a ponto de, em 1930, estourar o movimento revolucionário que levou Vargas ao poder.

Um novo SP, cujo nome qualificado por revolucionário se altera, comparece no recorte “à execução do programa revolucionário”, em SD21. A designação movimento desliza para programa no interior do SP, de modo que esse está ligado ao sintagma à execução. Na mesma sequência, o recorte “ato histórico, de caráter nacional” mobiliza sentidos para o movimento. Em SD22, a revolução constitui um SN, assim como esta revolução, presente em SD19, que também é um SN. A designação do evento como revolução apenas ocorre na forma de SN e ocupando a posição sintática de sujeito. Ainda, é regular esse nome comparecer em sequências linguisticamente negativas, como “esta revolução não é um movimento isolado” (SD19) e “não visa a revolução a pessoa do dr. Artur Bernardes” (SD22). O funcionamento da negação nessas sequências assemelha-se a uma denegação. Em SD19, quando o recorte “esta revolução não é um movimento isolado” é posto ao lado de “a sua irrupção sem o caráter de simultaneidade previsto” (SD20), comparece a ausência do caráter de simultaneidade do movimento, isto é, a característica de ele ocorrer em diferentes regiões, apesar da negação de ser um movimento isolado. Ou seja, como um movimento sem 95

simultaneidade pode não ser isolado? Em SD22, há a negação de a revolução visar à pessoa de Artur Bernardes, quando historicamente uma das demandas é a deposição do presidente.

A denegação evoca um funcionamento produtivo na constituição da revolução, que é a possibilidade de ressignificação do movimento. Em 1922, o levante do Forte ficou isolado, como o recorte presente em SD7 aponta: “A situação que o depoente encontrou no Forte era quase de pânico, pois, ante a certeza de que o Forte de Copacabana estava isolado no, digo, só no movimento, como garantira, com a sua palavra, o sr. Ministro da Guerra”. Afirmar que “esta revolução não é um movimento isolado”, em 1924, é produzir outros sentidos em contraposição àqueles que constituíram a revolução tenentista de outrora. Negar que a revolução visa à pessoa de Bernardes também é mobilizar uma nova significação para os sentidos produzidos pela posição a partir da qual Siqueira Campos enuncia, em 1922, em SD8: “Perguntado por que se rebelou contra o governo respondeu porque achava que os últimos atos dele, já na questão das candidaturas presidenciais, já no caso de Pernambuco e, finalmente, no caso puramente militar da prisão do marechal Hermes e nas notas consecutivas, enfim, de um modo geral, a maneira por que o governo tratava o Exército, segundo acha o depoente, permitia a esse Exército todos os atos de revolta.”. A posição sintática de sujeito, no caso de revolução, é vantajosa para a constituição de novas determinações para essa designação.

De forma diferente acontece com a formulação movimento revolucionário, que ocorre frequentemente como SP, como em os chefes do movimento revolucionário, já mencionado e agora também presente em SD23. Essa construção produz sentidos que mobilizam um efeito de evidência que não se compara à negação que acompanha e coloca em questão revolução. Se o episódio é designado mutuamente como revolução e movimento revolucionário, seus agentes são nomeados de revolucionários, como comparece na SD24: “da parte dos revolucionários”. Em SD25, a designação dos agentes comparece em “estando os revolucionários dispostos”. Em uma sequência, haverá a presença de um SP e, em outra, um SN, entretanto, o nome não muda, sendo revolucionários.

Em SD25, o recorte “A imprensa, qualquer que seja o seu credo, terá da nossa parte uma garantia completa de manifestação do pensamento” coloca em jogo as condições de produção na qual o governo de Bernardes estabeleceu a censura sobre a imprensa. Nesse recorte, a disputa entre forças concorrentes ganha materialidade, especialmente através da estrutura “da nossa parte”, que coloca em jogo a outra parte. Entretanto, em “estando os revolucionários dispostos a estudar e atender a todas as reclamações que, por seu intermédio 96

tragam o cunho da sinceridade, do patriotismo”, há uma limitação à “garantia completa de manifestação do pensamento”. As designações sinceridade e patriotismo são extremamente opacas e são objetos divididos, significando a partir das posições que a empregam. Elas, compondo a relativa restritiva que determina todas as reclamações – “todas as reclamações que, por seu intermédio tragam o cunho da sinceridade, do patriotismo” –, limitam a garantia completa de manifestação do pensamento. Dizendo de outro modo, haverá garantia completa de manifestação do pensamento, pois todas as reclamações serão atendidas, mas só as sinceras e patrióticas. Então, quais os sentidos de sinceridade e de patriotismo? Dada a opacidade desses objetos, não é possível saber que sentidos mobilizam, e é esse mecanismo que produz um efeito favorável a sujeitos identificados a determinadas posições.

Na sequência 26, comparece, pela primeira vez, movimento revolucionário como SN. Diferente de revolução, que frequentemente constitui um SN que estrutura uma denegação, aquela designação, em “Este movimento revolucionário é um gesto de indignação e patriotismo” não mobiliza partículas negativas, mas reforça as evidências de sua existência através de designações opacas que ocupam a função de predicativo do sujeito – um gesto de indignação e patriotismo. O movimento revolucionário, em posição sintática de sujeito, é determinado por designações que pouco dizem sobre ele.

As próximas sequências foram recortadas a partir de um texto que indica as condições do porta-voz tenentista, general Isidoro Dias Lopes, para a deposição das armas. A constituição desse texto foi em 17 de julho de 1924, ou seja, pouco depois da composição do Manifesto Revolucionário Paulista e ocasião em que os tenentistas ainda estavam na capital paulista.

SD27. General Isidoro Dias Lopes, chefe das Forças Revolucionárias (Condições do General Isidoro Dias Lopes para a deposição das armas, 17 de julho de 1924, grifos meus).

SD28. Entrega imediata do governo da União a um governo provisório, composto de nomes nacionais de reconhecida probidade e da confiança dos revolucionários. Exemplo: dr. Venceslau Brás. (Idem, grifos meus).

Na sequência 27, comparece a formulação “chefe das Forças Revolucionárias”, sendo composta por um SP, das Forças Revolucionárias, ligado a um SN, chefe. Ao contrário do Manifesto Revolucionário Paulista, a designação que remete à revolução não qualifica movimento, mas as forças que o compõe. Assim, há um deslizamento no interior do SP. Além 97

do funcionamento do efeito metafórico no levante de 1924, ao traçar um trajeto da designação revolução em diferentes eventos, é possível apontar o retorno de uma estrutura sintática semelhante àquela que compõe “chefe das Forças Revolucionárias”. Abaixo, recorto essa estrutura em diferentes períodos, indicando o ano, o texto de onde foi extraída e a sequência discursiva.

 o chefe do movimento revolucionário (1922, Interrogatório do Tenente Eduardo Gomes, SD6)

 dos chefes revolucionários em armas (1923, Acordo de Pedras Altas, SD12)

 os chefes do movimento revolucionário (1924, Manifesto Revolucionário Paulista, SD18, SD23)

 chefe das Forças Revolucionárias (1924, Condições do General Isidoro Dias Lopes para a deposição das armas, SD27)

Em todas as formulações, a designação revolucionário, ou uma respectiva forma flexionada, funciona qualificando um nome, que se altera. Também é regular a presença de chefe, variando em número, em todos os recortes. Apenas nos episódios tenentistas, 1922 e 1924, revolucionário está materializado na forma de um SP que posteriormente se relaciona a chefe, que ocupa função de SN. Em 1923, como dito anteriormente, revolucionários qualifica chefes, não remetendo a um movimento e compondo com ele um SP próprio. Em 1922 e 1924, há a recorrência de um SP, do movimento revolucionário e das Forças Revolucionárias, que apenas posteriormente se liga a chefe, mantendo, assim, uma autonomia relativa que possibilitará uma deriva do SP. Esse traço que compõe do movimento revolucionário permite sua estabilidade enquanto formulação, possibilitando seu retorno, e permite sua autonomia para futuramente se tornar um SN que frequentemente ocupará a posição sintática de sujeito. Em 1930, os enunciados em SD1 e SD2 – já recortados – foram produzidos a partir da posição de sujeito na qual Vargas e Fragoso enunciaram, e que retomo a seguir:

SD1. O movimento revolucionário, iniciado vitoriosamente a 3 de outubro, no sul, centro e norte do país, e triunfante a 24, nesta capital, foi a afirmação mais positiva, que até hoje tivemos, da nossa existência, como nacionalidade. Em toda nossa história política, não há, sob esse aspecto, acontecimento semelhante. Ele é, efetivamente, a expressão viva e palpitante da vontade do povo brasileiro, afinal senhor de seus 98

destinos e supremo árbitro de suas finalidades coletivas. (G. Vargas, Discurso de posse, 3 de novembro de 1930, grifos meus).

SD2. O movimento revolucionário que V. Ex. dirigiu é singular em nosso país; pelo seu caráter, extensão e simultaneidade não encontra nenhum símile comparável na nossa história. De norte a sul, de leste a oeste, todas as populações se levantaram num indomável anseio de liberdade. (T. Fragoso, O discurso do General Tasso Fragoso, 4 de novembro de 1930, grifos meus).

A designação movimento revolucionário retorna, não como SP, mas como SN em posição sintática de sujeito. Os recortes de 1922 e 1924 permitem montar uma fórmula mínima da estrutura linguística que retorna: SN [determinante + nome] + SP [preposição + SN (movimento revolucionário)]. Em SD27, em chefe das Forças Revolucionárias, há um deslizamento no interior do SP, de movimento para Forças. Apesar de a estrutura sintática mínima permanecer a mesma, SN + SP, o nome se altera. Considerando as designações que circularam em 1930, movimento revolucionário retorna na enunciação de Vargas, entretanto forças revolucionárias tem força suficiente para compor alguns enunciados da Coluna Prestes, como será analisado no próximo item.

Na sequência 28, no recorte “Entrega imediata do governo da União a um governo provisório”, a designação governo provisório, assim como movimento revolucionário, configurará um retorno em 1930. No discurso de posse de Vargas, logo em seu início, há na descrição: “Discurso pronunciado pelo Dr. Getúlio Vargas por ocasião de sua posse como chefe do Governo Provisório da República”. Nas últimas linhas do pronunciamento, também comparece: “Assumo, provisoriamente, o governo da República, como delegado da revolução”. Algumas designações seguem pela história, em um movimento de retorno, mobilizando sentidos outros, não mais os de outrora, mas ainda produzindo efeitos. Se antes, na primeira metade da década de 1920, o governo provisório e o movimento revolucionário não se concretizaram, anos mais tarde, eles encontraram concretude, porém tratava-se de um outro movimento e de um outro governo. No movimento da memória na história, parece haver sentidos que são inscritos com tal potência que configuram uma espécie de coagulação simbólica que retorna indefinidamente, talvez até sua formulação, que é da ordem do imprevisível. Essa coagulação se estrutura, linguisticamente, ao menos através das dimensões sintática (SN + SP) e lexical (chefe do movimento revolucionário). Discursivamente, há um movimento de derivas, retornos e disputa de sentidos. 99

a.iv) Ato IV: um encontro revolucionário sob a Coluna Prestes

Afirmei no item anterior que, em julho de 1924, houve um levante tenentista que tomou o poder na capital paulista, no entanto, após o cerco das forças militares, os revolucionários se retiraram para o Paraná. Em outubro do mesmo ano, no Rio Grande do Sul, outros tenentistas se levantaram, porém, dessa vez, contando com o apoio da força rebelde cujo porta-voz era Assis Brasil, que havia lutado contra Borges de Medeiros em 1923. Na guerra civil que teve ocasião no sul, a legenda partidária de Assis Brasil apoiou o governista Artur Bernardes, ao passo que Borges de Medeiros era partidário de Nilo Peçanha – como dito anteriormente. Os tenentistas, que em 24 eram apoiados pelos rebeldes do sul, insurgiam- se contra o governo federal, representado por Bernardes. As condições da formação social do final de 1924 implicaram em um rearranjo nas relações de forças em disputa, resultando em uma aproximação entre os revolucionários gaúchos e os tenentistas. Conforme Anita Prestes, “vários caudilhos ligados a Assis Brasil aderiram ao levante. As tropas dos maragatos, de lenço vermelho no pescoço, incorporaram-se às diversas unidades rebeladas, constituindo um reforço para a revolução tenentista.” (PRESTES, Anita, 2009, p.50).

Unidades do exército presentes em diferentes pontos do Rio Grande do Sul se rebelaram, de forma que, posteriormente, o governo do Estado, comandado por Borges de Medeiros, com o apoio de Bernardes, conseguiu desmobilizar parte do movimento. Medeiros contava com o suporte de tropas do Exército e com policiais militares enviados de diferentes estados do país. Em novembro, apenas uma unidade tenentista permanecia levantada: “as tropas acampadas em torno de São Luís Gonzaga, sob comando do coronel comissionado Luiz Carlos Prestes.” (Ibidem, p.57). Contando com aproximadamente 1,5 mil membros, começava a se formar o que foi mais tarde designada de Coluna Prestes. A composição da Coluna era heteróclita, já que composta por tenentistas, com formação militar, e revolucionários que haviam lutado na guerra civil do Rio Grande do Sul, em maioria civis. Anita Prestes afirma que:

A tropa que ia sendo organizada na Coluna compunha-se de dois grupos principais: os soldados, que haviam se levantado nas unidades militares rebeladas, e os civis, chefiados pelos caudilhos maragatos, acostumados à indisciplinada luta guerrilheira, que deixara raízes no Rio Grande do Sul. Tanto uns quanto outros eram, em sua maioria, jovens moradores da região do planalto gaúcho, caboclos provenientes de famílias pobres, sem terra ou com pouca terra – os chamados ‘pelos duros’. Em geral, trabalhavam como peões nas fazendas de criação de gado ou eram assalariados [...] (Ibidem, p.63). 100

As forças governistas marchavam na direção de São Luís Gonzaga a fim de desbaratar o movimento tenentista, conforme a narrativa historiográfica. Contudo, mobilizando-se taticamente, os revolucionários escaparam, seguiram para o norte do estado e atravessaram para . No decorrer desse processo, parte dos membros abandonou o movimento, ficando no estado de origem. Em março de 1925, os revolucionários marchavam na direção dos tenentistas paulistas, que estavam sitiados no Paraná. Ao cruzarem o Rio Iguaçu, deu-se o encontro esperado: “Em 11 de abril de 1925, os soldados da Coluna, finalmente, confraternizaram com as tropas rebeldes paulistas em Benjamin Constant” (Ibidem, p.82). Após o encontro, a Coluna sofreu uma reorganização, sendo comandada pelo major Miguel Costa, oficial de maior patente que prosseguira, e dividida em duas brigadas, uma liderada por Carlos Prestes e outra por Juarez Távora – cujas sequências, ao menos algumas das enunciadas em 1930, foram analisadas neste trabalho.

A reorganização da Coluna implicou na divisão de uma brigada de tenentistas paulistas e outra de revolucionários do sul. As práticas das duas brigadas não eram coincidentes, de forma que durante a marcha havia um descompasso. Em junho de 1925, no Mato Grosso, que na época ainda não havia sido dividido, a Coluna sofreu uma nova reorganização: “Estruturaram-se quatro destacamentos [...]. Todos incluíam gente do Rio Grande do sul e de São Paulo. Miguel Costa continuou no comando da 1ª Divisão Revolucionária, enquanto Prestes foi nomeado chefe do Estado-Maior” (Ibidem, p.90). De Mato Grosso, a Coluna partiu para Goiás e, em seguida, prosseguiu para o Maranhão, ingressando nesse estado em novembro de 1925. Ao marchar próximo ao Rio Parnaíba, os revolucionários atravessaram para o Piauí, região em que tiveram contato com o Partido Comunista do Brasil:

No início de 1926, dois emissários de Cristiano Cordeiro, dirigente comunista de Pernambuco, e do tenente Cleto Campello informaram ao comando rebelde sobre a conspiração que se desenvolvia em Recife. Campello pretendia sublevar o Batalhão de Caçadores dessa cidade, contando com o apoio do operariado local. Também estavam programados levantes na Paraíba, Ceará e Sergipe. Cristiano Cordeiro e Cleto Campello solicitaram o apoio da Coluna, cujo comando comprometeu-se a conduzir os rebeldes às proximidades de Recife. (Ibidem, p.110). Antes de alcançar a Coluna, o levante de Campello, que contava com a participação de civis, foi derrotado. Nessa época, os revolucionários atravessavam para o Ceará e, em seguida, marchavam para o Rio Grande do Norte. Após, no começo de fevereiro de 1926, a Coluna cruzou para a Paraíba, enfrentando a força policial e cangaceiros contratados pelo governo, entre eles, Lampião. Ainda atravessou Pernambuco, Bahia e 101

entraram em Minas Gerais. Após a concentração de militares em Minas, no fim de abril de 1926, a Coluna retornou à Bahia, depois atravessou o nordeste, cruzou Goiás e Mato Grosso, e, em fevereiro de 1927, ingressou na Bolívia. Conforme Anita Prestes, “a Coluna Prestes – à qual se somaram os rebeldes paulistas de julho de 1924 – manteve-se, durante 2 anos e 3 meses, percorrendo cerca de 25 mil quilômetros através de 13 Estados do Brasil.” (Ibidem, p.129).

As sequências discursivas reunidas a seguir foram recortadas de textos constituídos no período dos primeiros levantes tenentistas de 1924, no Rio Grande do Sul, passando pela formação da Coluna Prestes, até entrevistas concedidas por Carlos Prestes quando estava exilado na Bolívia. O primeiro texto trabalhado foi o Manifesto de Luís Carlos Prestes dirigido ao povo de Santo Ângelo, composto em outubro de 1924, quando a unidade de Santo Ângelo havia se sublevado e os tenentistas desse posto ainda não haviam marchado para São Luiz Gonzaga.

SD29. Todo o Brasil, de norte a sul, ardentemente deseja, no íntimo de sua consciência, a vitória dos revolucionários, porque eles lutam por amor ao Brasil, porque eles querem que o voto do povo seja secreto, que a vontade soberana do povo seja uma verdade respeitada nas urnas, porque eles querem que sejam confiscadas as grandes fortunas feitas por membros do governo à custa dos dinheiros do Brasil, porque eles querem que os governos tratem menos de politicagem e cuidem mais do auxílio ao povo laborioso, que numa mescla sublime de brasileiros e estrangeiros, irmanados por um mesmo ideal, vive trabalhando honestamente pela grandeza do Brasil. (Carlos Prestes, Manifesto de Luís Carlos Prestes dirigido ao povo de Santo Ângelo, 29 de outubro de 1924, grifos meus).

SD30. Todos sabem hoje, apesar da censura da imprensa e do telégrafo, apesar das mentiras oficiais espalhadas por toda a parte, que os revolucionários têm recebido verdadeira consagração por onde têm passado e que até hoje não foram batidos. (Idem, grifos meus).

SD31. E agora, depois da entrada em ação da coluna Rondon, é o próprio governo quem confessa não ser mais possível dominar a revolução no Brasil, porque a vitória dela é já uma aspiração nacional. (Idem, grifos meus).

SD32. Hoje, 29 de outubro, por ordem do general Isidoro Dias Lopes, levantam-se todas as tropas do Exército das guarnições de Santo Ângelo, S. Luís, São Borja, 102

Itaqui, Uruguaiana, Santana, Dom Pedrito, Jaguarão e Bajé; hoje, irmanadas pela mesma causa e pelos mesmos ideais, levantam-se as forças revolucionárias gaúchas da Palmeira, de Nova Wurttemberg, Ijuí, S. Nicolau, Santiago e de toda a fronteira até Pelotas, e hoje entram no nosso estado os chefes revolucionários Honório Lemos e Zeca Neto, tudo de acordo com o grande plano já organizado. (Idem, grifos meus).

SD33. E, desta mescla, desta comunhão do Exército e povo, com nacionais e estrangeiros, resultará a rápida terminação da luta armada no Brasil, para honra nossa e glória dos nossos ideais e dos nossos foros de povo civilizado e altivo. (Idem, grifos meus).

SD34. De acordo com o plano geral, as tropas de Santo Ângelo talvez pouco demorem aqui, mas, durante este tempo, a ordem, o respeito à propriedade e à família serão mantidos rigorosamente, e, para isso, o governo revolucionário provisório conta com o auxílio da própria população. (Idem, grifos meus).

A questão eleitoral, quanto ao voto, já colocada no levante de 1922, retorna em SD29 como uma demanda dos revolucionários, conforme o recorte a seguir: “eles querem que o voto do povo seja secreto, que a vontade soberana do povo seja uma verdade respeitada nas urnas”. Essa é uma das questões que também possibilitou a constituição do movimento revolucionário, em 1930. Em SD29, enunciada em 1924, as demandas eleitorais mobilizam sentidos na direção da produção de uma nacionalidade, que parece retornar em 30. Abaixo, trago as duas sequências, recortadas em capítulos anteriores, do período em que Vargas chegou ao poder como chefe do Governo Provisório e analiso em relação com SD29:

SD35. O movimento revolucionário, iniciado vitoriosamente a 3 de outubro, no sul, centro e norte do país, e triunfante a 24, nesta capital, foi a afirmação mais positiva, que até hoje tivemos, da nossa existência, como nacionalidade. (G. Vargas, Discurso de posse, 3 de novembro de 1930, grifos meus).

SD36. O movimento revolucionário que V. Ex. dirigiu é singular em nosso país; pelo seu caráter, extensão e simultaneidade não encontra nenhum símile comparável na nossa história. De norte a sul, de leste a oeste, todas as populações se levantaram num indomável anseio de liberdade. (T. Fragoso, O discurso do General Tasso Fragoso, 4 de novembro de 1930, grifos meus). 103

Em SD35 e SD36 é regular a presença de pronome possessivo seguido por um nome, como em nossa existência, nosso país, nossa história. Essas formulações, e também todas as populações (SD36), remetem a um efeito de unidade, não à toa, de existência, país, história e populações. Essas designações são postas em relação, mobilizando sentidos em torno de um mesmo objeto, que poderia ser nação. O imaginário de unidade é linguisticamente constituído, e os pronomes nosso e todos contribuem para a produção desse efeito, pois reafirmam a homogeneidade de nossa existência, de nosso país, de nossa história, a vontade de todas as populações. É a ideia de nação, ou a nacionalidade, que vai se constituindo. A produção dessa unidade pode ser designada de outras formas, mas denomino de nacionalidade e de nação para ser coerente com a enunciação constituída a partir da posição de Vargas. Esse objeto é formulado enquanto pré-construído – “foi a afirmação mais positiva, que até hoje tivemos, da nossa existência, como nacionalidade”, pois a existência da nacionalidade é inquestionável, é um já-dado que significa como efeito de unidade e produz sentidos ainda que essa designação não esteja inscrita na ordem intradiscursiva, em outros recortes.

A nacionalidade significa nos pronomes possessivos – nosso, nossa – e nos indefinidos – todas. Também, em SD35 e SD36, mobiliza os efeitos de totalidade e unidade nas formulações sul, centro e norte do país e De norte a sul, de leste a oeste. O principal mecanismo que produz os sentidos de nação não está nas afirmações feitas, mas no objeto nacionalidade enquanto pré-construído, nos pronomes que colocam outros objetos em relação, como existência, país, história, populações, e na articulação de movimento revolucionário enquanto afirmação mais positiva de nacionalidade. Em SD29, na enunciação de Prestes, há a configuração de sentidos que poderiam significar a nação. Em Todo o Brasil e de norte a sul, há a produção de uma totalidade que se articula ao desejo pela vitória dos revolucionários. Esse funcionamento, em 1924, é semelhante ao ocorrido em 1930, contudo, como os tenentistas não chegaram ao poder, a possibilidade de institucionalização de sua nacionalidade era improvável. Em SD29, o funcionamento apresentado se relaciona a “eles [os revolucionários] lutam por amor ao Brasil”. Uma paráfrase possível seria: “Os revolucionários lutam por amor à nação”. Dessa forma, seria possível jogar com a memória que amor ao Brasil convoca, estabelecendo uma relação com nacionalidade e apontando os possíveis retornos de funcionamentos e efeitos de 1924 a 1930.

A questão eleitoral não comparece na enunciação de Vargas e Fragoso (SD35 e SD36), entretanto, essa foi uma das condições para a constituição do movimento 104

revolucionário. Após a tomada do poder por Vargas, apenas a reafirmação da nacionalidade é configurada, contudo, no enunciado constituído a partir da posição de Prestes, em 1924, a relação com o voto é diretamente articulada por uma coordenada explicativa: “eles lutam por amor ao Brasil, porque eles querem que o voto do povo seja secreto, que a vontade soberana do povo seja uma verdade respeitada nas urnas”. A questão eleitoral, que foi determinante para o levante de 1922, para a guerra civil no Rio Grande do Sul e para o movimento revolucionário de 1930, comparece como demanda em 1924 e funciona para a constituição da nacionalidade. Uma questão semelhante, quanto ao voto, estava presente em 1930, ainda que não seja afirmado em SD35 e SD36.

Os efeitos de totalidade e unidade que os pronomes possessivos e indefinidos produziram nas sequências acima analisadas também ocorrem em SD30, no recorte “Todos sabem”. Esse efeito, articulado a “têm recebido verdadeira consagração por onde têm passado”, legitima a prática dos revolucionários. No entanto, nas condições da época, em que o governo de Bernardes instituiu a censura sobre a imprensa, parte da população tinha medo da Coluna Prestes, o que provavelmente era ampliado com a propaganda governista contra os revolucionários. A respeito da propagando governista, Anita Prestes afirma sobre um episódio específico, pouco antes de a Coluna chegar à cidade de Porto Nacional: “Alguns dias antes, o comando rebelde enviou uma mensagem às autoridades locais, pedindo que os habitantes não abandonassem suas casas nem temessem os soldados da Coluna. Procurava-se, dessa forma, combater a propaganda governista [...]” (PRESTES, Anita, 2009, p.98,100). Assim, ainda que o funcionamento de SD30 produza certa legitimidade para os revolucionários ao totalizar o que todos sabem, esse efeito entra em disputa com o aparato midiático governamental, que fazia circular o contrário do que era constituído a partir da posição enunciativa de Prestes.

A designação revolução no Brasil, em SD31, configura-se como um já-dado no eixo intradiscursivo, produzindo um efeito de evidência que atualiza “Todo o Brasil, de norte a sul” (SD29). A revolução tem amplitude em território nacional e não demanda nenhuma qualificação, como tenentista ou civil. Em “a vitória dela é já uma aspiração nacional”, há uma generalização em aspiração nacional, não abrindo brechas para outras possibilidades, a não ser o desejo de vitória da revolução. A produção desse efeito de unidade, mais uma vez, parece contribuir para a constituição da nacionalidade que retornará no discurso de posse de Vargas, em 1930.

No item anterior, que tratava da revolução paulista de 1924, afirmei que havia uma estrutura sintática mínima (SN [chefe] + SP [do movimento revolucionário]) que 105

circulou pelo movimento garantindo o retorno do SP devido a sua fixidez promovida pela preposição. Também afirmei que, no interior do SP, o nome havia deslizado para “forças”, sendo qualificado por “revolucionárias”. Em SD32, no recorte “levantam-se as forças revolucionárias gaúchas”, a designação forças revolucionárias gaúchas comparece como SN e com outra qualificação – gaúchas. Na mesma sequência, no recorte “e hoje entram no nosso estado os chefes revolucionários Honório Lemos e Zeca Neto”, os chefes revolucionários configura um retorno de uma formulação semelhante a que circulou em 1922, o chefe do movimento revolucionário, mas que atualiza especialmente uma formulação de 1923: dos chefes revolucionários em armas. O episódio de 23 não era tenentista, de forma que a presença de em armas relacionado a chefes revolucionários dizia do caráter não militar do movimento, em termos institucionais, produzindo uma diferença a outros movimentos. Dito de outro modo, a diferença entre 1923 e 1924 pode ser apontada ao comparar as duas designações: chefes revolucionários em armas (1923) e chefes revolucionários (1924). A diferença é o que em armas mobiliza como significação, sendo uma questão forte o caráter militar institucional de um evento e não de outro. De toda forma, a designação chefes revolucionários, assim como a presença na Coluna Prestes de revolucionários civis que lutaram na guerra civil de 23, e também devido ao território de levante onde os tenentistas inicialmente se revoltaram em 1924 ter sido o Rio Grande do Sul, atualiza a memória da revolução, que atravessa e constitui as práticas discursivas.

A deriva de luta eleitoral para luta armada foi um ponto importante para a eclosão do movimento revolucionário de 1930. Em 1924, aquela designação já circulava, porém, se em 30 os sentidos produzidos estavam em relação ao movimento cujo porta-voz era Vargas, em 24 mobilizavam outros sentidos. Na sequência 33, no recorte “resultará a rápida terminação da luta armada no Brasil”, luta armada no Brasil produz sentidos na direção da Coluna Prestes. A memória de luta armada ligada ao movimento tenentista foi atualizada em 1930, passando a significar diferentemente. Em 1924, essa designação estava relacionada ao efeito de unidade que comparece em “E, desta mescla, desta comunhão do Exército e povo, com nacionais e estrangeiros”, em SD33. Em 1930, esta formulação, particularmente a comunhão do Exército e povo, retornou no discurso de posse de Vargas, em “No fundo e na forma, a revolução escapou, por isso mesmo, ao exclusivismo de determinadas classes. Nem os elementos civis venceram as classes armadas, nem estas impuseram àqueles o fato consumado”. 106

Na última sequência do manifesto trabalhado, em SD34, o recorte “o governo revolucionário provisório”, presente na revolta paulista de forma semelhante – “Entrega imediata do governo da União a um governo provisório” (SD28) –, é atualizado em Vargas, como apontado anteriormente: “Discurso pronunciado pelo Dr. Getúlio Vargas por ocasião de sua posse como chefe do Governo Provisório da República”. A designação governo provisório, nos revolucionários paulistas, desliza para governo revolucionário provisório, na enunciação de Prestes, e em Vargas é enunciada como Governo Provisório da República. É notável como revolucionário não cabe no Governo Provisório da República. Essa ausência produz sentidos na direção de que o movimento revolucionário conduziu a uma deposição do governo, entretanto, aí cessa sua função. Assim, um segundo momento do movimento, que condiz com o analisado pela designação movimento regenerador, no segundo capítulo, indica um outro tempo do evento cujo porta-voz foi Vargas, isto é, um tempo em que revolucionário já não cabe da mesma forma.

A próxima sequência foi recortada a partir de um texto enunciado em abril de 1925, por Miguel Costa, major que estava à frente da 1ª Divisão Revolucionária, formada após o encontro dos revolucionários do Rio Grande do Sul com os de São Paulo. Esse material marca a expulsão de Filinto Muller, combatente que abandonou a Coluna, buscando refúgio na Argentina.

SD37. Seja excluído do estado efetivo das Forças Revolucionárias o capitão Filinto Muller por haver covardemente se passado para o território argentino, deixando abandonada a localidade da “Foz do Iguaçu”, que se achava sob a sua guarda, resultando que as praças que compunham a mencionada guarnição o imitaram neste gesto indigno, levando armas e munições pertencentes à revolução. (Miguel Costa, Boletim de expulsão do Capitão Filinto Muller das forças revolucionárias, 25 de abril de 1925, grifos meus).

A forma de designar o movimento, em SD37, é revolução e o modo de caracterizar as forças que o compõe é revolucionárias. No recorte “Seja excluído do estado efetivo das Forças Revolucionárias”, o SP das Forças Revolucionárias retorna de outras formulações, como de chefe das Forças Revolucionárias (SD27), que circulou na revolução paulista, e de “levantam-se as forças revolucionárias gaúchas” (SD32), formulação constituída a partir da enunciação produzida pela posição de sujeito de Prestes. Essa designação, forças revolucionárias, atualiza o SP da estrutura sintática mínima, SN + SP, configurada em 1922, 107

em chefe do movimento revolucionário, mas cujo nome de SP, em 1924, deslizou para forças, se perpetuando como formulação outra que circulou no movimento.

Em outubro de 1925, em uma região que correspondia a Goiás, pois naquele período a divisão em Tocantins ainda não havia ocorrido, mais um manifesto foi constituído pela Coluna Prestes. Desse texto, retirei a próxima sequência, que recorto a seguir:

SD38. E o povo pode ficar certo de que os soldados revolucionários não enrolarão a bandeira da liberdade enquanto se não modificar esse ambiente de despotismo e intolerância que asfixia, num delírio de opressão, os melhores anseios da consciência nacional! (Miguel Costa, Carlos Prestes, Juarez Távora, Manifesto da Coluna Prestes – Proclamação em Porto Nacional, 19 de outubro de 1925).

No recorte “os soldados revolucionários não enrolarão a bandeira da liberdade”, a determinação que revolucionários produz sobre soldados convoca uma divisão presente também no levante do Forte de Copacabana, em 1922. Na formulação os soldados revolucionários não cabe os soldados que não forem revolucionários, e nesse espaço é possível incluir os militares a serviço do governo. Uma divisão é operada entre os soldados: os revolucionários e os do governo. Em 1922, no recorte “aos elementos do Exército nacional que se encontram revoltados no Forte de Copacabana” (SD3), a leitura da relativa como determinativa produzia sentidos para elementos do Exército nacional de forma que a divisão operava na instituição militar entre os militares revoltados e os a serviço do governo. Esse funcionamento possibilitou produzir fissuras no imaginário de unidade que compunha a instituição e abriu para a perpetuação do movimento tenentista. Apesar dessas fissuras, o tenentismo não deixou de estar em relação ao militarismo, pois o rastro das designações – Coluna Prestes, comparada à Coluna Rondon; Comandante da Primeira Divisão Revolucionária; soldados revolucionários – não deixa escapar a organização institucional que o estrutura. De toda a forma, é admirável como duas ordens – a revolucionária e a militar institucional – se reúnam, por exclusão, nas mesmas designações e, em 1925, essa divisão na instituição militar ainda funcione, contribuindo para a sustentação do movimento. Operar nas divisões é um trabalho fecundo na medida em que o funcionamento dessas é um potencial motor, quando não para deslocamentos na estrutura social, ao menos para derivas.

A última sequência discursiva que trago foi recortada a partir de uma entrevista de Carlos Prestes ao jornal A Esquerda, em abril de 1928, quando aquele já estava exilado. Abaixo, segue o enunciado: 108

SD39. Prevejo diz o general o inevitável triunfo da campanha para a regeneração dos costumes políticos, pacífica ou revolucionariamente. (Entrevista de Luís Carlos Prestes ao vespertino carioca A Esquerda, 9 de abril de 1928, grifos meus).

O recorte “campanha para a regeneração dos costumes políticos, pacífica ou revolucionariamente”, em SD39, enunciado em 1928, retorna de diferentes formas. Em 1929, em carta para João Neves da Fontoura, um político aliado, há na enunciação de Vargas: “Deixo aqui três hipóteses para sairmos pela paz ou pela luta”. A formulação pela paz ou pela luta atualiza os sentidos de pacífica ou revolucionariamente, mesmo que em 1929 o movimento revolucionário ainda não estivesse formado, e nem mesmo, naquele momento, a Aliança Liberal estivesse oficializada para disputar as eleições de 1º de março do ano seguinte. Essa atualização de revolucionariamente em pela luta provavelmente foi uma das condições que possibilitou a deriva de luta eleitoral para luta armada, em 30.

O recorte campanha para a regeneração dos costumes políticos, em SD39, também é atualizado em Vargas. No discurso de posse, a posição de sujeito a partir da qual se constitui a enunciação de Getúlio Vargas afirma: “Quando, nesta cidade, as forças armadas e o povo depuseram o Governo Federal, o movimento regenerador já estava, virtualmente, triunfante em todo o país”. A formulação campanha para a regeneração retorna como movimento regenerador. Há também, na plataforma de Vargas na campanha presidencial, o recorte “A campanha de reação liberal – não é demais insistir – exprime uma generalizada e vigorosa tentativa de renovação dos costumes políticos”, de forma que a designação dos costumes políticos é atualizada em uma estrutura semelhante à da enunciação de Prestes – um SP. Ainda, as designações às quais os SP trabalhados estão ligados poderiam servir como paráfrase, pois em a regeneração dos costumes políticos (Prestes) e de renovação dos costumes políticos (Vargas), regeneração e renovação mobilizam sentidos semelhantes. Há um retorno de formulações e designações que circularam na Coluna Prestes em Vargas. b) A designação movimento revolucionário em 1930

A chegada de Vargas ao poder como porta-voz do movimento que destituiu Washington Luís da presidência da República e impediu Julio Prestes de tomar posse tem uma configuração complexa. As posições que estavam em relação de forças, concorrendo pela estabilização de sentidos, atualizaram memórias da década de 20, produzindo deslocamentos. A eficácia das memórias atualizadas, no que toca os sentidos produzidos a partir da enunciação de posições filiadas à Aliança Liberal, sobretudo no caso da designação 109

movimento revolucionário e de outras designações que materializavam revolução, residiu na produção de um silenciamento sobre formulações semelhantes que haviam circulado anteriormente, em outro lugar, em outra época24.

Uma outra época em que revolução circulou, porém não com a mesma estabilidade que em outros períodos, como vimos, foi o ano de 1922, quando o movimento tenentista articulou planos para que Epitácio Pessoa abandonasse o poder e Artur Bernardes fosse impedido de tomar posse25. No levante do Forte de Copacabana, a determinação revolucionário produziu sentidos em relação a movimento.26 A formulação movimento revolucionário permaneceu sendo atualizada em outros levantes tenentistas, como os de 1924, em São Paulo e no Rio Grande do Sul, conforme as análises anteriores apontaram. A determinação revolucionário, e suas possíveis variações, também circulou, sendo enunciada pelos tenentistas em diferentes levantes e deslizando para significar em relação a outros nomes, como em programa revolucionário, Manifesto Revolucionário Paulista, Forças revolucionárias, chefes revolucionários, governo revolucionário provisório. Vimos também que o levante tenentista de 1924, no Rio Grande do Sul, sofreu repressão das forças governistas, contudo, certo número de revoltosos resistiu, dando início à formação da Coluna Prestes. Alguns membros do movimento tenentista que compuseram a Coluna ganharam destaque na história oficial, assim como ganharam destaque na frente militar do movimento revolucionário de 1930.

O movimento tenentista iniciado em 1924 foi designado de revolução e seus integrantes chamados de revolucionários. Houve uma imbricação de sentidos entre tenentismo, revolução e revolucionários, de modo que uma designação determinou sentidos para outra, e remeteu aos objetivos, inscritos em alguns livros de história, que o movimento, em seu início, pretendia alcançar e para os novos que foram formulando-se ao longo da marcha iniciada com a Coluna Prestes. Em fevereiro de 1927, os membros da Coluna ingressaram na Bolívia, dando início ao exílio. Contudo, a inscrição da memória na história não conhece fim, agitando-se em um movimento de recalques e retornos. E, no que toca à relação intrínseca entre história e língua, as designações, produzidas na duração do evento,

24 As questões colocadas no começo deste capítulo – a partir de SD1 e SD2, enunciadas em 1930 – em torno do silenciamento de outros movimentos, e desenvolvidas pelas análises dos itens precedentes, encontra agora uma formulação mais precisa acerca das designações relacionadas à revolução.

25 Sobre o levante tenentista ocorrido em 1922, abordei com maior profundidade anteriormente. 26 Retomo a formulação chefe do movimento revolucionário, em SD6. 110

retornam mobilizando outros sentidos, em outras condições de produção, remetendo a novos objetivos e a um novo movimento.

No sintagma nominal movimento revolucionário, movimento é um nome adjetivado pelo qualificativo revolucionário, de forma que, assim, lhe são atribuídas características que outros movimentos não possuem, ou seja, uma especificidade lhe é fornecida. Contudo, tais atributos especificados por revolucionário, em uma leitura linguística, não são suficientes para compreender o processo de produção de sentidos que o nome mobiliza, em suma, não é suficiente para saturar o nome.

O sintagma nominal precisa ser trabalhado no nível discursivo para que o funcionamento da saturação possa ser analisado. O estudo da saturação tem importância porque se trata de uma questão ideológica, ou seja, é constituída a partir de uma posição, determinando sentidos para o nome conforme aquilo que “numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito” (PÊCHEUX, 2009, p.147, grifos do autor). A respeito do funcionamento discursivo que o adjetivo desempenha em relação ao nome, Freda Indursky afirma que:

um adjetivo justaposto a um substantivo funciona como modificador de sua extensão, contribuindo para ampliar-lhe a compreensão, limitando-lhe a extensão, já que sua referência virtual pode ser por demais genérica. Desse modo, assumimos que o adjetivo pode funcionar como um elemento capaz de saturar o substantivo, constituindo-se em um determinante discursivo, isto é, em uma das categorias que promovem a identificação do dito com a FD que afeta o sujeito da sequência discursiva. (INDURSKY, 2013, p.215, grifos da autora). Assim, revolucionário determina discursivamente movimento e o significa a partir de determinada posição de sujeito, produzida a partir da formação discursiva que a engendra. Entretanto, ao considerar o todo complexo com dominante das FDs, uma formação discursiva não é fechada, mas heterogeneamente constituída pelo dizer outro de outras FDs. Dessa forma, movimento revolucionário agita a rede de sentidos por atualizar a memória de outros dizeres sobre outros movimentos. A designação em jogo atualiza memórias, deslocando sentidos. No momento, é possível reunir as inquietações manifestadas perguntando pelo que justifica o funcionamento de revolucionário enquanto qualificador linguístico e discursivo para o movimento de 1930. Ou seja, por que dizer movimento revolucionário?

O movimento revolucionário de 1930 teve como frente militar membros do tenentismo que tiveram papel de destaque nos levantes de 1924, como o que deu origem à 111

Coluna Prestes. Os agentes dos levantes ficaram conhecidos como revolucionários e os episódios foram designados, entre algumas denominações, de movimento revolucionário e revolução. No caso da Coluna, após a dissolução da marcha e a saída de Artur Bernardes da Presidência da República, inúmeras reportagens foram divulgadas em jornais e revistas, do Brasil e do exterior, de forma que a Coluna Prestes passou a gozar de prestígio entre a população. Anita Prestes conta que:

As camadas médias urbanas, em especial, vibravam com a figura de Prestes: surgia e consolidava-se a imagem do Cavaleiro da Esperança, cujo “gênio” era glorificado em incontáveis editoriais, artigos e reportagens nos jornais da época. Prestes virara mito, e sua figura passava a ser a encarnação das esperanças das populações urbanas, ansiosas por mudanças que não sabiam definir, mas confiantes de que o Cavaleiro da Esperança, que havia vencido dezoito generais bernardistas, saberia conduzir o país pelo caminho da libertação e da prosperidade. (PRESTES, Anita, 2015, p.100). Boris Fausto também afirma o prestígio popular do movimento, sobretudo o do tenentismo, de forma geral27:

Do ponto de vista mais geral das relações entre o tenentismo e as populações urbanas, é certo que a corrente contava, nessa época, com ampla simpatia popular. Ao entrar em São Paulo, na Revolução de 1924, os revolucionários foram recebidos com palmas; no curso da luta, os soldados das trincheiras abertas nas ruas da Liberdade, Vergueiro, Paraíso e da Consolação, nas avenidas Paulista e Brigadeiro Luís Antônio, recebiam o ‘rancho’ das residências vizinhas. Um tenente legalista, em conversa com Paulo Duarte, falava do ressentimento de seus homens diante da hostilidade manifestada pelo povo de São Paulo. Senhoritas de Caçapava, Mogi das Cruzes, São José dos Campos, Taubaté iam à estação, à chegada dos trens que conduziam tropas enviadas pelo governo federal, e incitavam os soldados a aderir aos rebeldes. (FAUSTO, 1997, p.85). As citações acima atestam a popularidade do movimento, entretanto não funcionam como modo de sobrepor o discurso sobre o tenentismo à análise. Os recortes de Anita Prestes e Boris Fausto servem como exemplo do imaginário que se perpetuou sobre esse movimento. O prestígio do tenentismo entre a população foi registrado por estudiosos do período, contudo, ao levar em conta a divisão como constitutiva de qualquer formação social,

27 Anteriormente, na página 103, afirmei sobre o temor da população em relação ao tenentismo. A propaganda governista contribuía para a produção desse medo, entrando em disputa com a propaganda constituída pelos próprios tenentistas e, provavelmente, por outros meios. A disputa pela produção de uma imagem do tenentismo certamente produziu divisões na população, mas acredito que outros fatores entraram em ressonância com o aparelho midiático. Assim, formulo uma questão que tem sua base no problema da identificação e para a qual não pretendo me aprofundar neste trabalho: por que enquanto uma parcela da população é afetada pelo temor ao tenentismo, outra é afetada pela esperança nesse movimento? Na historiografia, parece que um sentido ficou estabilizado em detrimento de outros. 112

é certo que nem todos o apoiavam, e talvez nem mesmo a maior parte do povo o visse de forma positiva. No entanto, o imaginário de prestígio popular perdurou, e é a possibilidade de atualização desse funcionamento a outros movimentos, produzindo efeitos, que importa à análise. Assim, não está em jogo a possibilidade de acesso ao real histórico, mas de considerar a memória perpetuada. Também não se pretende sobredeterminar a potencialidade da análise ao considerar uma possível generalização do prestígio da Coluna Prestes exercida pelo discurso sobre, mas de levar em conta o imaginário em questão, que provavelmente também atuou em 1930.

Ao colocar a designação movimento revolucionário em análise, que circulou em 30, é possível recortar verticalmente, na cadeia interdiscursiva, formulações semelhantes que circularam no tenentismo. Entretanto, os sentidos produzidos são outros, pois as condições de produção também são outras:

 Movimento revolucionário (1930)

 os revolucionários, a revolução no Brasil, forças revolucionárias gaúchas, os chefes revolucionários, o governo revolucionário provisório (1924, Coluna Prestes)

 os chefes do movimento revolucionário, esta revolução, do movimento revolucionário, programa revolucionário, a revolução, da parte dos revolucionários, os revolucionários, este movimento revolucionário, chefe das Forças Revolucionárias (1924, Revolução Paulista)

 revoltados, um revoltoso, os rebeldes, o chefe supremo dos rebeldes, o movimento, o chefe do movimento revolucionário, todos os atos de revolta, a revolta (1922, Levante do Forte de Copacabana)

A designação linguística, em 1930, composta por um nome e um adjetivo qualificativo, remete a uma designação discursiva, que atualiza a memória da revolução, em suas diferentes formas e flexões, que circulou nos levantes tenentistas. Um dos efeitos que essa atualização produz é o de legitimação do movimento liderado por Vargas perante a população na medida em que esse se investe de um imaginário que incorpora o prestígio popular do tenentismo, sobretudo o da Coluna Prestes.

A produção do esquecimento pela negação da existência de outros movimentos de magnitude, como em SD1 e SD2, conta-nos sobre as condições de produção da época. A 113

Coluna Prestes foi um movimento capaz de provocar duração na história, a ponto de a população, após as reportagens sobre a Coluna que circularam na mídia, verem-na como uma esperança de mudança política nos rumos nacionais. O movimento que teve Vargas como porta-voz precisava de legitimidade, portanto, a negação teve como efeito romper com as manifestações anteriores e evitar uma aproximação à posição na qual Prestes constituía-se enquanto sujeito de discurso nas condições de produção de 1930. Também, com o apagamento dos movimentos da década de 20, a Aliança Liberal se investia, pela memória que a designação movimento revolucionário atualizava, com a autoridade das reivindicações passadas e, assim, produzia um efeito de unidade da vontade nacional que remetia a um tempo mítico, passado. Ou seja, o prestígio do tenentismo é transferido para o movimento revolucionário como mecanismo de legitimidade.

Pela negativa, houve o apagamento da memória de outros movimentos, como a Coluna Prestes, provocando o imaginário de que a marcha de Vargas representava a oportunidade de mudança nacional esperada pela população, isto é, representava a vontade do povo brasileiro (SD1). O retorno de um episódio recalcado na história compareceu produzindo outros sentidos. Não se trata mais de uma revolução tenentista, mas de um evento que reclama outras significações. Esses sentidos são disputados, destacadamente, pelas posições que compuseram a Aliança Liberal e pela posição a partir da qual se constitui Prestes28, que, aquelas, para exercerem sua dominância sobre a outra posição, precisam provocar um silenciamento, marcado na base linguística. O retorno de uma memória, estruturado na remissão do intradiscurso ao interdiscurso que movimento revolucionário convoca, impõe um duplo apagamento: o da revolução tenentista de outrora, e o da revolução contemporânea de Prestes. c) Revolução e revolucionários no manifesto de Prestes

Em 6 de novembro de 1930, Prestes lançou, em seu exílio em Buenos Aires, um manifesto intitulado “Aos revolucionários do Brasil”. Nele, a oposição ao governo provisório de Vargas e à tomada de posição dos antigos participantes dos levantes tenentistas fica patente, sobretudo a partir dos sentidos em concorrência que circulam para revolução e revolucionário. Levando em conta o funcionamento da determinação discursiva, recorto uma

28 Nos itens C e D abordarei os sentidos de revolução que a enunciação de Prestes, em 1930, convoca. 114

sequência para analisar como tais designações produzem novos sentidos a partir da posição que constitui a enunciação de Prestes.

SD40. É já evidente que o papel de todos os “revolucionários” que pegaram em armas com a Aliança Liberal foi de simples agentes militares do imperialismo. (C. Prestes, Aos revolucionários do Brasil – Manifesto de Carlos Prestes, 6 de novembro de 1930).

Em SD40, há uma relativa que determina discursivamente “revolucionários”: “que pegaram em armas com a Aliança Liberal”. Ao analisarmos a relativa como restritiva, devemos levar em consideração a formulação de Pêcheux a respeito:

Concluiremos esta primeira aproximação do problema do pré-construído destacando, como uma sua característica essencial, a separação fundamental entre o pensamento e o objeto de pensamento, com a pré-existência deste último, marcada pelo que chamamos uma discrepância entre dois domínios como o impensado de seu pensamento, impensado este que, necessariamente, pré-existe ao sujeito. (PÊCHEUX, 2009, p. 93). Sendo assim, considero a relativa restritiva como o objeto do pensamento ou o impensado do pensamento, sendo marcada por uma dupla discrepância em relação ao pensamento presente na sentença. A primeira discrepância é marcada pelo desnível sintático que separa a oração principal da subordinada. A segunda comparece a nível discursivo pela distância que envolve a relativa em relação à oração principal, pois aquela foi afirmada em outro lugar, naturalizando uma afirmação sobre o objeto “revolucionários”. Ao levar em consideração o impensado do pensamento, que marca o discurso-outro que constitui a sequência discursiva em análise, é possível propor a seguinte paráfrase para a relativa:

PR(SD40). Os “revolucionários” pegaram em armas com a Aliança Liberal.

Em 1930, esse enunciado sustentava a legitimidade do movimento revolucionário perante a população. Parte desse efeito era resultado da atualização da memória do tenentismo, sobretudo da Coluna Prestes. Como afirmei anteriormente, os tenentistas ficaram conhecidos, entre algumas designações, por revolucionários. Tais membros, que são listados nominalmente por Carlos Prestes – “[...] alistaram-se nas hostes aliancistas [Juarez] Távora, Miguel Costa, Isidoro [Dias Lopes], João Alberto e outro militares [...]” (C. PRESTES, Aos revolucionários do Brasil) –, são aqueles que compuseram também o movimento revolucionário de 1930. Assim, o pré-construído presente na relativa determinativa construía um enunciado que circulava e legitimava o movimento de 1930 e que poderia ainda ser parafraseado da seguinte maneira: 115

PR2(SD40). Alguns tenentistas pegaram em armas com a Aliança Liberal.

A relação de oposição entre as posições de sujeito imprime marcas no enunciado de Prestes. Impossibilitado de dizer o que não pode nem deve ser dito, Prestes produz sentidos para revolucionários diferentemente do que a posição de sujeito que constitui o dizer de Vargas ou a posição enunciativa dos tenentistas da Aliança Liberal produziriam. Uma marca dessa impossibilidade de dizer como outra posição de sujeito comparece nas aspas de “revolucionários”. Freda Indursky, ao trabalhar com a heterogeneidade marcada e constitutiva, noções constituídas a partir do consequente trabalho de Jacqueline Authier- Revuz, notou, em seu corpus, um funcionamento que creio pertinente à questão colocada. A autora afirma:

[...] o uso autonímico protege seu usuário, para que não lhe seja imputada a posição ideológica veiculada por tais expressões, ficando resguardadas as diferenças ideológicas entre as duas posições de sujeito, construídas a partir de FD antagônicas. Esse uso autonímico das aspas funciona, na expressão de Authier [1981, p. 128], como um ‘antilapso’. (INDURSKY, 2013, p. 245). Os “revolucionários”, com aspas, podem ser compreendidos como os tenentistas que se aliaram à Aliança Liberal. A determinação discursiva, pelo funcionamento da relativa, significa “revolucionários”. A partir disso, gostaria de propor outras paráfrases para analisar como os tenentistas são sobredeterminados discursivamente.

PR3(SD40). Alguns tenentistas foram agentes militares do imperialismo.

PR4(SD40). Alguns tenentistas foram agentes militares da ditadura.

PR5(SD40). Alguns tenentistas foram agentes militares do regime de opressão.

PR6(SD40). Alguns tenentistas foram agentes militares da tirania.

As designações ditadura, regime de opressão e tirania foram recortadas do manifesto de Carlos Prestes, e pertencem à mesma família parafrástica de imperialismo. Tais designações garantem o sentido de imperialismo, pois esse existe na relação que estabelece com outras denominações. Para citar Pêcheux:

[...] se se admite que as mesmas palavras, expressões e proposições mudam de sentido ao passar de uma formação discursiva a uma outra, é necessário também admitir que palavras, expressões e proposições literalmente diferentes podem, no interior de uma formação discursiva dada, ‘ter o mesmo sentido’, o que – se estamos sendo bem compreendidos – representa, na verdade, a condição para que cada elemento (palavra, expressão ou proposição) seja dotado de sentido. (PÊCHEUX, 2009, p.148, grifos do autor). 116

Os sentidos produzidos para imperialismo, a partir da posição de sujeito na qual Prestes enuncia, sobredeterminam intersequencialmente tenentistas, que por sua vez sobredetermina interdiscursivamente “revolucionários”, com aspas. Assim, “revolucionários”, em Prestes, significa diferentemente dos sentidos favoráveis mobilizados pelas posições a partir da qual se constituem os enunciados de Vargas e dos tenentistas. Contudo, no manifesto de Prestes, circulam outros sentidos para revolução e revolucionários. d) Outros sentidos de revolução e revolucionários em Prestes

Carlos Prestes, em 1930, ainda vivia em exílio em Buenos Aires. Pouco antes de o movimento revolucionário iniciar, os antigos membros do tenentismo visitaram-no na Argentina, ocasião em que a ruptura com os tenentistas vem à tona. A esse respeito, Anita Prestes conta:

Prestes decidira romper definitivamente com os “tenentes”. Durante os meses de março e abril, ele redigiu o manifesto que veio à luz nos últimos dias de maio de 1930. Antes, porém, de torná-lo público, Prestes quis dar uma satisfação a seus antigos camaradas: “Falava-se abertamente de conspirata, de luta armada, e eu queria romper... tornar público... Mas não queria fazer isso sem primeiro entregar o posto que tinham me dado de chefe militar da Revolução dos ‘tenentes’. Então, chamei-os a Buenos Aires” [Luís Carlos Prestes, fita n.8]. (PRESTES, Anita, 2015, pp. 122, 123). O manifesto lançado por Prestes, em novembro de 30, é um texto em que comparece uma tomada de posição de discordância em relação aos tenentistas que seguiam com Vargas. A partir da posição na qual Prestes se constitui, os sentidos da denominação “revolucionários”, com aspas, foram sobredeterminados pela família parafrástica de imperialismo. Também, a partir da posição de sujeito trabalhada, esses “revolucionários”, substituíveis por tenentistas, são designados de falsos revolucionários. Há então, no não dito, os verdadeiros revolucionários disputando sentidos com os falsos, conforme a enunciação produzida a partir da posição de sujeito em jogo. Para analisar como os verdadeiros significam, recorto a seguinte sequência discursiva:

SD41. A experiência destes últimos meses, no Brasil e em toda a América do Sul, deve servir para convencer os trabalhadores das cidades e dos campos, os soldados e marinheiros, de que só eles poderão fazer a Revolução; que os falsos revolucionários, mesmos os que eram considerados honestos e sinceros, facilmente se vendem por alguns galões e bordados que lhes ofereçam Bernardes e 117

seus companheiros. (C. Prestes, Aos revolucionários do Brasil – Manifesto de Carlos Prestes, 6 de novembro de 1930, grifos meus).

O recorte grifado no começo da sequência acima é representativo de uma diferente rede de sentidos mobilizada para Revolução e revolucionários. Os falsos revolucionários designam aqueles emparelhados com a Aliança Liberal, enquanto os verdadeiros revolucionários, presente no não dito, designam os que poderão fazer a Revolução. Os trabalhadores das cidades e dos campos, os soldados e marinheiros são componentes que figuram entre os verdadeiros revolucionários. Ainda, o pronome pessoal do caso reto de terceira pessoa – “só eles poderão” – funciona não apenas anaforicamente, retomando a oração anterior, mas também interdiscursivamente, sendo substituível por todos aqueles que signifiquem revolucionários, sem aspas. Entre os verdadeiros revolucionários, comparece, no manifesto: os trabalhadores das cidades e dos campos, soldados e marinheiros; as grandes massas trabalhadoras do Brasil; as grandes massas esfomeadas e descontentes; o movimento proletário; os operários conscientes; os operários, camponeses, trabalhadores conscientes; os pequenos funcionários; os colonos e camaradas das fazendas de café; os peões e trabalhadores; as grandes massas abandonadas e analfabetas do interior do país; os camaradas; a vanguarda revolucionária; os soldados e operários; os intelectuais pobres, estudantes, pequenos funcionários e empregados no comércio.

Revolucionários, sem aspas, não mobiliza em sua família parafrástica os tenentistas. Essa ausência indica a disputa que viemos trabalhando entre falsos revolucionários e verdadeiros, assim como entre os membros políticos da Aliança Liberal e os verdadeiros revolucionários. Assim, há dois movimentos que seguem em relação de oposição em diferentes direções, sendo eles expressos pelas designações movimento revolucionário e Revolução. Ou seja, conforme as significações postas em jogo a partir da posição de sujeito trabalhada, os falsos revolucionários são agentes do movimento revolucionário, enquanto os verdadeiros revolucionários são aqueles que têm interesse na Revolução. Da mesma maneira, como as figuras que participam ou podem participar dos movimentos não se confundem, os eventos também não se confundem, isto é, movimento revolucionário não é o mesmo que Revolução. Isso tem por consequência uma sobredeterminação de falsos revolucionários para movimento revolucionário, determinando sentidos que deslegitimam a posição que constitui a enunciação de Vargas e as posições enunciativas dos tenentistas. De outro modo, verdadeiros revolucionários sobredetermina Revolução, legitimando sentidos para o evento esperado no porvir. Também é essa uma forma 118

de atualizar os sentidos da revolução tenentista de outrora, contudo assumindo uma posição ideológica radicalmente diferente daquela tomada por Vargas.

As disputas pela estabilização de sentidos acontecem no nível do interdiscurso, isto é, têm lugar nos diferentes modos possíveis de atualização da memória do tenentismo e da Coluna Prestes, sobretudo no que diz respeito à memória da revolução. As variadas redes de significação mobilizadas para revolução lutam por fixar um sentido e não outro, tendo como efeito da estabilização a legitimidade popular oriunda dos levantes tenentistas. Em Vargas, a atualização dessa memória tem por resultado investir-se do prestígio da revolução de outrora ao mesmo tempo em que silencia a magnitude dos movimento do passado. Esse funcionamento marca a ruptura com os levantes tenentistas, como a Coluna Prestes, mas mantém a legitimidade popular que anseia por modificações políticas. Em Carlos Prestes, ao atualizar a revolução tenentista, também ocorre o deslocamento de sentidos. Contudo, diferente de Vargas, em que há uma negação linguística e discursiva provocando um silenciamento do passado, o deslocamento em Prestes dá-se menos marcadamente. Para tanto, é preciso recortar outra SD a fim de analisar os sentidos possíveis para Revolução, em 1930.

SD42. Organizemos o único governo capaz de satisfazer as necessidades dos trabalhadores, de dar a terra aos que a trabalham, de lutar intransigentemente contra os imperialistas – o governo dos conselhos de operários, camponeses, soldados e marinheiros! (C. Prestes, Aos revolucionários do Brasil – Manifesto de Carlos Prestes, 6 de novembro de 1930).

Os sentidos de Revolução são determinados pela possibilidade de um governo dos conselhos de operários, camponeses, soldados e marinheiros. Assim, retomo SD41 para propor uma paráfrase:

PR(SD41). Só os verdadeiros revolucionários poderão fazer o governo dos conselhos de operários, camponeses, soldados e marinheiros.

A posição de sujeito a partir da qual se constitui a enunciação de Prestes, em 30, aproxima-se de uma memória dos movimentos que lutam por um governo de operários. As disputas entre as diferentes forças políticas em 1930 apelam a confrontos ideológicos anteriores, isto é, aos que buscam uma reforma do Estado e aos que buscam um governo do proletariado. 119

IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O retorno de episódios anteriores ao evento de 30 constitui o movimento revolucionário, de forma que ao longo dos anos de 1920, diferentes momentos da história mobilizaram sentidos para revolução, materializando práticas que foram atualizadas no movimento que levou Vargas ao poder. A memória dos levantes tenentistas de 1922 e 1924, assim como a memória da guerra civil que teve ocasião no Rio Grande do Sul, em 1923, retornaram em 1930. Questões relacionadas à fraude eleitoral, à ruptura da política do café com leite e à constituição de alianças políticas já estavam em jogo, ao menos, desde 1922. Mesmo as condições de produção de 30 sendo outras, quando comparadas às dos anos 20, ainda assim, houve a possibilidade do retorno de questões de outrora.

A constituição da Aliança Liberal, determinante para a candidatura de Vargas, em 1º de março de 1930, reuniu posições que historicamente se confrontaram, como Assis Brasil e Borges de Medeiros, na guerra civil de 1923, no sul, ou os tenentistas e Artur Bernardes, contra o qual os levantes de 1922 queriam impedir a posse e os de 1924 exigiam a deposição. A formação da AL detinha uma complexidade que se materializou, sobretudo, conforme as análises desenvolvidas, nas posições contraditórias de Getúlio Vargas, Borges de Medeiros e Juarez Távora. A seguir, montei um quadro que resume as posições em relação complexa quando em convergência ou divergência a objetos específicos:

MUDANÇA NA ORDEM E FRAUDE LUTA NO REGIME ELEITORAL G. VARGAS + +/- - B. MEDEIROS - - + J. TÁVORA + +

Quadro I: Relações complexas entre posições na constituição da Aliança Liberal

O quadro acima indica a convergência ou divergência dos sentidos produzidos a partir da enunciação de determinadas posições de sujeito em relação a alguns objetos que constituíram as condições para a formação do movimento revolucionário de 1930. O sinal positivo (+) aponta para a convergência à significação de um objeto, enquanto o sinal negativo (-) aponta para a divergência. Quando os dois são representados juntos (+/-), indica uma posição equívoca, de forma que uma delimitação em uma posição ou outra não seria suficiente para dar conta dos sentidos em jogo. Por fim, quando não há símbolo algum, como no caso de fraude eleitoral na enunciação de Távora, há a indicação da ausência de uma análise que pudesse apontar uma circulação de sentidos em relação ao objeto. Os objetos 120

presentes no quadro I foram recortados das análises que desenvolvi no capítulo II. Também, a leitura do quadro deve ser feita considerando a significação produzida a partir da relação entre as posições, ou seja, se Vargas e Távora são convergentes (+) em luta, significa que mobilizam sentidos semelhantes para o objeto.

No quadro I, indiquei que as posições a partir das quais as enunciações de Vargas e de Távora se constituem são convergentes aos sentidos que produzem para o objeto luta, enquanto a enunciação de Medeiros é divergente. Para afirmar a convergência de Vargas, baseei-me em recortes que significam o objeto luta como em “Cansada de lutar inutilmente contra essa máquina política, desesperada de melhorar a situação do país, dentro das possibilidades legais, decidiu-se a Nação pela luta armada.” (SD13 – Cáp.II). No caso da posição de Távora, analisei recortes como em SD43 – Cáp.II: “A revolução afigura-se-nos – para todos os que já não cremos na eficiência do voto – essa força renovadora”. A designação revolução produz sentidos que entram em uma relação parafrástica com luta. Para afirmar a divergência nos sentidos produzidos a partir da enunciação de Medeiros em relação aos enunciados constituídos a partir das posições de Vargas e Távora, recortei formulações como “Nessas condições, abre-se a perspectiva de uma luta áspera, que não desejo” (SD6 – Cáp.II) e “Não vejo absolutamente como remediar males, se eles existem, com um mal ainda maior como seria uma revolução” (SD16 – Cáp.II). Assim como em Távora, revolução está em uma relação parafrástica com luta.

Em relação à descrença na ordem e no regime, afirmei que a posição de Távora produzia sentidos convergentes, ao menos parcialmente, quanto à descrença quando em relação com a posição de Vargas. Na enunciação de Medeiros, há significações em divergência com a posição a partir da qual se constitui a enunciação de Távora, mas apenas parcialmente divergente da posição de Vargas. A partir da posição de Vargas, circulam sentidos equívocos, produzindo uma convergência relativa com Távora e com Medeiros. Para indicar a posição a partir da qual Távora enuncia, recortei duas sequências em que se produz sentidos semelhantes: “a descrença na eficiência dos processos legais” (SD18 – Cáp.II) e “a prática defeituosa de uma Constituição” (SD19 – Cáp.II). Na enunciação de Medeiros, há a crença na ordem e no regime, como em “Afirmo-lhe que o Rio Grande se manterá dentro da ordem e da paz, fiel às suas tradições de absoluto respeito aos poderes constituídos.” (SD16 – Cáp.II) e “Depois, formar-se-á o Congresso e, para os senadores e deputados, eles próprios se reconhecerão e, mais tarde, reconhecerão o Presidente e o Vice-Presidente da República. Funções exclusivamente políticas, mas que o são de acordo com o nosso regime. Se isso é um 121

mal, vamos reformar o regime. Mas cumpramos por enquanto a lei.” (SD26 – Cáp.II). Em SD26, há sentidos produzidos em relação à descrença na ordem, suficientes até para compor a formulação reformar o regime, contudo, diferente da enunciação de Vargas e Távora, essa descrença não é suficiente para a posição de Medeiros interromper o ritual de sentidos que fazia funcionar o regime que elegeu Júlio Prestes29. O funcionamento que configurou a perpetuação da ordem e do regime a partir da enunciação de Medeiros justificou uma divergência em relação às outras posições, no quadro I.

A posição a partir da qual a enunciação de Vargas é constituída configura-se de modo equívoco quanto à modificação na ordem e no regime, sem que se possa incluí-la como suficientemente convergente ou divergente em relação às demais posições. As análises realizadas a partir da seguinte sequência apontam para o equívoco que constitui a posição de Vargas: “É com serenidade e segurança que reafirmo a minha convicção de que o país está a exigir profunda modificação não só nos nossos hábitos e costumes políticos, como também em muitas de suas leis, sobretudo a eleitoral. Confio ainda que esta modificação se processará dentro da ordem e do regime.” (SD17 – Cáp.II). Há a produção de sentidos em relação à mudança na ordem e no regime, como a designação modificação aponta, contudo, há a sustentação de uma posição legalista, significando dentro da ordem e do regime. Essa crença na legalidade figura entre as condições para a constituição do movimento revolucionário, pois é a sustentação desses sentidos que aponta a fraude eleitoral como possibilidade para invalidar as eleições de 1º de março de 1930 e, assim, formar o movimento. A constituição do movimento revolucionário ocorre a partir de uma posição equívoca entre a legalidade – de combater a fraude eleitoral – e a ilegalidade – de depor um presidente e não acatar os resultados das urnas. Um sintoma dessa equivocidade se materializa em SD17, em modificação nos costumes políticos e nas leis, mas dentro da ordem e do regime. O equívoco produz uma convergência relativa entre Vargas e Távora, e, ao mesmo tempo, entre Vargas e Medeiros.

Quanto à fraude eleitoral, os sentidos produzidos na enunciação de Medeiros são divergentes em relação à posição de Vargas, como na sequência a seguir: “Compostas de magistrados federais e de representantes dos próprios estados, essas Juntas têm de somar os votos que tiveram os candidatos. Para uns as Juntas são suspeitas: mas a culpa disso não é de ninguém. A lei assim o determina.” (SD26 – Cáp.II). Em outra sequência, há: “Pode haver, e

29 Pretendo, com isso, marcar uma diferença na produção de sentidos na enunciação de Medeiros e na de Vargas. 122

há, muitos votos a subtrair desses totais, provenientes de fraudes que as Juntas vão apurar. Serão reduções proporcionais, porque fraudes houve de norte a sul, inclusive aqui mesmo. A lei eleitoral infelizmente favorece essas coisas e, diante da nossa ainda falha educação cívica, não há como impedir de todo tais vergonhas.” (SD27 – Cáp.II). Ainda que a fraude eleitoral esteja em jogo, os sentidos mobilizados não são suficientes para deslegitimar as eleições. Na enunciação de Vargas, ao contrário, essa é uma das principais condições para a eclosão do movimento revolucionário, como em “Sua interferência violenta e desabusada, tolhendo ao povo o direito de voto, as fraudes escandalosas praticadas nas eleições de março” (SD30 – Cáp.II). Quanto à Távora, minhas análises não apontaram uma convergência ou divergência à Vargas ou à Medeiros em relação à fraude eleitoral.

O quadro proposto anteriormente, assim como as sequências recortadas, não esgotam a análise desenvolvida neste trabalho, mas resumem esquematicamente a complexidade que subjaz à composição da Aliança Liberal. Dessa forma, é possível pensar o movimento revolucionário sendo sobredeterminado por diferentes objetos cujos sentidos foram constituídos em concorrência, como eleições, ordem e regime, luta, a partir de posições em contradição. A contradição constitui não apenas revolução, mas também outros objetos que lhe fornecem sentidos, configurando a divisão em diferentes instâncias. Quanto à revolução em 1930, a reconfiguração das formações sociais possibilitou que a atualização da memória de outros movimentos funcionasse tanto para as forças que chegaram ao poder, quanto para as marginais, como a posição a partir da qual se constitui a enunciação de Carlos Prestes. Assim, revolução significou de forma diferente da enunciação de Vargas, mobilizando uma memória dos governos de conselhos de operários. Revolução, em 1930, é equívoca em diferentes sentidos. Equívoca pelas memórias das revoluções de outrora que atualiza, pelos objetos que a sobredeterminam, pelas diferentes posições no interior da mesma aliança e pelas posições em confronto contra a AL.

O evento de 1930 ainda não acabou. É possível ouvir ecos distantes de vozes silenciadas. Por esses ecos, um importante trajeto pode ser contado ao se percorrer os rastros de revolução, levando em conta as derivas e as disputas de sentidos que fazem parte do que foi o movimento revolucionário de 30 e que nele sobrevivem de forma esquecida. Espero ter constituído um espaço no qual os ecos mais frágeis tenham tido força, ainda que sob outras condições, para subsistirem. Entretanto, há questões que permanecem atuantes na formação social brasileira e que estão relacionadas com o modo como tais ecos, sempre em disputa, continuam a existir. Ao agitar um pouco a estabilidade da história institucionalizada, essas 123

questões se reconfiguram e se reformulam. Assim, o que elas têm a nos dizer sobre hoje? Irei arriscar-me a formular brevemente algumas inquietações.

Ao nos depararmos com o inesperado do movimento dos sentidos que significa revolução nos levantes tenentistas e resulta na ascensão de Vargas, em 1930, o que é possível dizer de outros movimentos ocorridos no Brasil? Colocando de outra forma, em 1922, as relações de forças que constituíam a formação social abriram para que novos sentidos de revolução fizessem sentido, e essas significações possibilitaram que novos movimentos, inesperados, ganhassem consistência no país. Então, seria possível pensar que aberturas certos acontecimentos históricos complexos possibilitaram no passado e quais suas relações com o presente da formação social brasileira? A violência com que tentaram reprimir os levantes tenentistas contribuiu para que a revolução fosse recalcada e retornasse posteriormente. Nos tempos de hoje, o que é efeito do retorno de um recalque e o que ainda está por retornar? Por fim, chamo atenção para revolução enquanto objeto dividido que circulou fortemente ao longo dos anos de 1920 e em 1930. Quais os objetos divididos que estão no centro das lutas de hoje? Que efeitos essa divisão nos colocou, nos coloca e pode nos colocar? Que perigos nos aguardam sob o risco de silenciamento das divisões?

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ANEXO 1

DISCURSO DE POSSE DE GETÚLIO VARGAS COMO CHEFE DO GOVERNO PROVISÓRIO (3 DE NOVEMBRO DE 1930) O movimento revolucionário, iniciado, vitoriosamente, a 3 de outubro, no sul, centro e norte do país, e triunfante a 24, nesta capital, foi a afirmação mais positiva que, até hoje, tivemos da nossa existência como nacionalidade. Em toda a nossa história política, não há, sob esse aspecto, acontecimento semelhante. Ele é, efetivamente, a expressão viva e palpitante da vontade do povo brasileiro, afinal senhor de seus destinos e supremo árbitro de suas finalidades coletivas. No fundo e na forma, a revolução escapou, por isso mesmo, ao exclusivismo de determinadas classes. Nem os elementos civis venceram as classes armadas, nem estas impuseram àqueles o fato consumado. Todas as categorias sociais, de alto a baixo, sem diferença de idade ou de sexo, comungaram em um idêntico pensamento fraterno e dominador: – a construção de uma pátria nova, igualmente acolhedora para grandes e pequenos, aberta à colaboração de todos os seus filhos. O Rio Grande do Sul, ao transpor as suas fronteiras, rumo a Itararé, já trazia consigo mais da metade do nosso glorioso Exército. Por toda parte, como, mais tarde, na capital da República, a alma popular confraternizava com os representantes das classes armadas, em admirável unidade de sentimentos e aspirações. Realizamos, pois, um movimento eminentemente nacional. Essa, a nossa maior satisfação, a nossa maior glória e a base invulnerável sobre que assenta a confiança de que estamos possuídos para a efetivação dos superiores objetivos da revolução brasileira. Quando, nesta cidade, as forças armadas e o povo depuseram o Governo Federal, o movimento regenerador já estava, virtualmente, triunfante em todo o país. A nação, em armas, acorria de todos os pontos do território pátrio. No prazo de duas ou três semanas, as legiões do norte, do centro e do sul bateriam às portas da capital da República. Não seria difícil prever o desfecho dessa marcha inevitável. À aproximação das forças libertadoras, o povo do Rio de Janeiro, de cujos sentimentos revolucionários ninguém poderia duvidar, se levantaria em massa, para bater, no seu último reduto, a prepotência inativa e vacilante. Mas, era bem possível que o governo, já em agonia, apegado às posições e teimando em manter uma autoridade inexistente de fato, tentasse sacrificar, nas chamas da luta fratricida, seus escassos e derradeiros amigos. Compreendestes, senhores da Junta Governativa, a delicadeza da situação e, com os vossos valorosos auxiliares, desfechastes, patrioticamente, sobre o simulacro daquela autoridade claudicante o golpe de graça. Os resultados benéficos dessa atitude constituem legítima credencial dos vossos sentimentos cívicos: integrastes definitivamente o restante das classes armadas na causa da revolução; poupastes à pátria sacrifícios maiores de vidas e recursos materiais, e resguardastes esta maravilhosa capital de danos incalculáveis. Justo é proclamar, entretanto, senhores da Junta Governativa, que não foram somente esses os motivos que assim vos levaram a proceder. Preponderava sobre eles o 132

impulso superior do vosso pensamento, já irmanado ao da revolução. Era vossa também a convicção de que só pelas armas seria possível restituir a liberdade ao povo brasileiro, sanear o ambiente moral da pátria, livrando-a da camarilha que a explorava, arrancar a máscara de legalidade com que se rotulavam os maiores atentados à lei e à justiça – abater a hipocrisia, a farsa e o embuste. E, finalmente, era vossa também a convicção de que urgia substituir o regime de ficção democrática, em que vivíamos, por outro, de realidade e confiança. Passado, agora, o momento das legítimas expansões pela vitória alcançada, precisamos refletir maduramente sobre a obra de reconstrução que nos cumpre realizar. Para não defraudarmos a expectativa alentadora do povo brasileiro; para que este continue a nos dar seu apoio e colaboração, devemos estar à altura da missão que nos foi por ele confiada. Ela é de iniludível responsabilidade. Tenhamos a coragem de levá-la a seu termo definitivo, sem violências desnecessárias, mas sem contemplações de qualquer espécie. O trabalho de reconstrução, que nos espera, não admite medidas contemporizadoras. Implica o reajustamento social e econômico de todos os rumos até aqui seguidos. Não tenhamos medo à verdade. Precisamos, por atos e não por palavras, cimentar a confiança da opinião pública no regime que se inicia. Comecemos por desmontar a máquina do filhotismo parasitário, com toda a sua descendência espúria. Para o exercício das funções públicas, não deve mais prevalecer o critério puramente político. Confiemo-las aos homens capazes e de reconhecida idoneidade moral. A vocação burocrática e a caça ao emprego público, em um país de imensas possibilidades – verdadeiro campo aberto a todas as iniciativas do trabalho – não se justificam. Esse, com o caciquismo eleitoral, são males que têm de ser combatidos tenazmente. No terreno financeiro e econômico há toda uma ordem de providências essenciais a executar, desde a restauração do crédito público ao fortalecimento das fontes produtoras, abandonadas às suas dificuldades e asfixiadas sob o peso de tributações de exclusiva finalidade fiscal. Resumindo as ideias centrais do nosso programa de reconstrução nacional, podemos destacar, como mais oportunas e de imediata utilidade: 1) concessão de anistia; 2) saneamento moral e físico, extirpando ou inutilizando os agentes de corrupção, por todos os meios adequados a uma campanha sistemática de defesa social e educação sanitária; 3) difusão intensiva do ensino público, principalmente técnico-profissional, estabelecendo, para isso, um sistema de estímulo e colaboração direta com os estados. Para ambas as finalidades, justificar-se-ia a criação de um Ministério de Instrução e Saúde Pública, sem aumento de despesas; 4) instituição de um Conselho Consultivo, composto de individualidades eminentes, sinceramente integradas na corrente das ideias novas; 5) nomeação de comissões de sindicâncias, para apurarem a responsabilidade dos governos de postos e de seus agentes, relativamente ao emprego dos dinheiros públicos; 133

6) remodelação do Exército e da Armada, de acordo com as necessidades da defesa nacional; 7) reforma do sistema eleitoral, tendo em vista, precipuamente, a garantia do voto; 8) reorganização do aparelho judiciário, no sentido de tornar uma realidade a independência moral e material da magistratura, que terá competência para conhecer do processo eleitoral em todas as suas fases; 9) feita a reforma eleitoral, consultar a nação sobre a escolha de seus representantes, com poderes amplos de constituintes, a fim de procederem à revisão do estatuto federal, melhor amparando as liberdades públicas e individuais e garantindo a autonomia dos estados contra as violações do Governo central; 10) consolidação das normas administrativas, com o intuito de simplificar a confusa e complicada legislação vigorante, bem como de refundir os quadros do funcionalismo, que deverá ser reduzido ao indispensável, suprimindo-se os adidos e excedentes; 11) manter uma administração de rigorosa economia, cortando todas as despesas improdutivas e suntuárias - único meio eficiente de restaurar as nossas finanças e conseguir saldos orçamentários reais; 12) reorganização do Ministério da Agricultura, aparelho, atualmente, rígido e inoperante, para adaptá-lo às necessidades do problema agrícola brasileiro; 13) intensificar a produção pela policultura e adotar uma política internacional de aproximação econômica, facilitando o escoamento das nossas sobras exportáveis; 14) rever o sistema tributário, de modo a amparar a produção nacional, abandonando o protecionismo dispensado às indústrias artificiais, que não utilizam matéria- prima do país e mais contribuem para encarecer a vida e fomentar o contrabando; 15) instituir o Ministério do Trabalho, destinado a superintender a questão social, o amparo e a defesa do operariado urbano e rural; 16) promover, sem violência, a extinção progressiva do latifúndio, protegendo a organização da pequena propriedade, mediante a transferência direta de lotes de terras de cultura ao trabalhador agrícola, preferentemente ao nacional, estimulando-o a construir com as próprias mãos, em terra própria, o edifício de sua prosperidade; 17) organizar um plano geral, ferroviário e rodoviário, para todo o país, a fim de ser executado gradualmente, segundo as necessidades públicas e não ao sabor de interesses de ocasião. Como vedes, temos vasto campo de ação, cujo perímetro pode, ainda, alargar-se em mais de um sentido, se nos for permitido desenvolver o máximo de nossas atividades. Mas, para que tal aconteça, para que tudo isso se realize, torna-se indispensável, antes de mais nada, trabalhar com fé, ânimo decidido e dedicação. Quanto aos motivos que atiraram o povo brasileiro à revolução, supérfluo seria analisá-los, depois de, tão exata e brilhantemente, tê-lo feito, em nome da Junta Governativa, o sr. general Tasso Fragoso, homem de pensamento e de ação e que, a par de sua cultura e superioridade moral, pode invocar o honroso título de discípulo do grande Benjamin Constant. 134

Através da palavra do ilustre militar, apreende-se a mesma impressão panorâmica dos acontecimentos, que vos desenhei, já, a largos traços: a revolução foi a marcha incoercível e complexa da nacionalidade, a torrente impetuosa da vontade popular, quebrando todas as resistências, arrastando todos os obstáculos, à procura de um rumo novo, na encruzilhada dos erros do passado. Senhores da Junta Governativa: Assumo, provisoriamente, o Governo da República, como delegado da revolução, em nome do Exército, da Marinha e do povo brasileiro, e agradeço os inesquecíveis serviços que prestastes à nação, com a vossa nobre e corajosa atitude, correspondendo, assim, aos altos destinos da pátria.