2. As Ilhas E a Arqueologia. Os Arquipélagos Da Madeira E Dos Açores
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2. As ilhas e a Arqueologia. Os Arquipélagos da Madeira e dos Açores Legenda: Perspectiva sobre o Ilhéu da Cal, Porto Santo. 2. As ilhas e a Arqueologia. Os Arquipélagos da Madeira e dos Açores “As pequenas ilhas irão ter um papel histórico de uma importância bem maior daquela que podia prever a sua dimensão minúscula e o seu acentuado isolamento no meio do vasto oceano.” Suzanne Daveau26 2.1. Os espaços e os registos de antropização “O território aparece como um palimpsesto onde sucessivamente se foram escrevendo dados novos que hoje podemos ler, descodificar e interpretar” Teresa Barata Salgueiro27 Os arquipélagos da Madeira e dos Açores foram antropizados pelos portugueses na primeira metade do século XV. Orlando Ribeiro, numa síntese cuidada, evidencia o modelo transposto das terras de origem dos povoadores para um espaço geograficamente diversificado: “Primeiro marco da expansão portuguesa, os arquipélagos da Madeira e dos Açores, completamente ocupados nos meados do século XV, são uma réplica da fisionomia humana de Portugal numa paisagem física que o Continente desconhece” (RIBEIRO, 1962:45). Este geógrafo, juntamente com outros investigadores da “escola de Lisboa” enceta, em 1949,28 uma refrescante abordagem no estudo monográfico da ocupação humana das ilhas portuguesas do Atlântico, seguindo-se-lhe outros trabalhos de enfoque insular.29 Regra geral, estes ensaios de geografia humana são unânimes em levantar o problema dos condicionalismos que terão pesado no 26Portugal Geográfico, 1.ª edição, Lisboa, Edições Sá da Costa, Lda., 1995, p. 76. 27 “A espacialidade no Tempo Urbano”, Penélope, n.º7, Lisboa, 1992, p. 8. 28 L’ile de Madère. Étude Géographique, Lisboa, UGI, 1949 (com a tradução portuguesa, A Ilha da Madeira até Meados do Século XX, ICALP, Lisboa, 1988). 29 Entre outros estudos, despertam a atenção: Raquel Soeiro de Brito, A Ilha de São Miguel. Estudo Geográfico, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1955; Carlos Alberto Medeiros, A Ilha do Corvo, Lisboa, Livros Horizonte, 1967 e António Brum Ferreira, A Ilha Graciosa, Lisboa, Livros Horizonte, 1968. 38 complexo processo de humanização do espaço insular, invocando-se vários factores: físicos, climáticos (genericamente determinados pela diferença de posição), origem dos povoadores, condições mesológicas e experimentação e aproveitamento dos recursos naturais (MEDEIROS, 1969:95-125; MEDEIROS, 1988:7-18; CUNHA, 1963:117-138). Conhecidas e desabitadas antes da ocupação portuguesa de Quatrocentos, as ilhas assistem à entrada e à fixação de gente, animais, plantas e demais produtos e técnicas oriundas da Metrópole.30 Progressivamente, edificam-se as infra-estruturas básicas à sobrevivência e à habitabilidade: as primeiras casas (inicialmente de madeira, com cobertura de colmo,31 taipa32 e salão33 e, depois, de pedra argamassada e telha); as unidades industriais de moagem (engenhos de serrar madeira,34 de moer cereais e de produção do açúcar) e as tendas para uso dos vários ofícios indispensáveis à dinâmica do dia-a-dia. No acto da transformação do cenário natural, as necessidades agro- pecuárias foram sendo suprimidas com a introdução e o cultivo de produtos e de animais domésticos (para fins alimentares e obtenção da lã e de peles).35 A pouco e pouco, e paralelamente com a utilização dos recursos locais (pesca, silvicultura, madeiras, pedreiras e plantas tintureiras: sumagre e urzela) incentiva-se o cultivo do pastel e introduzem-se os cereais (trigo), com particular expressão nos Açores, que o exporta para o Reino, Norte de África e Madeira.36 30 Sobre as influências exógenas e os processos de inovação, difusão, adopção e rejeição nas ilhas açorianas consulte-se Rui de Sousa Martins, “Os Processos criativos e as origens do povoamento”, Oceanos, Vol.I, Lisboa, 1989, pp. 65-67. 31 No caso da Madeira consulte-se António Aragão, Para a História do Funchal, 2.ª edição, Funchal, DRAC, 1987, p. 221 e António Ribeiro Marques da Silva, “Casas da Colmo”, Atlântico, n.º14, Funchal, 1988, pp.101-111. Nos Açores: “morando os descobridores em suas cafuas de palha e feno” (FRUTUOSO, 2005, IV:7). 32 “ Também mui fortes, por ser ali bom o barro de que se fazem, sem haver outras d’esta sorte em toda esta ilha”, referindo-se Frutuoso às casas que não eram construídas em alvenaria de Vila Franca do Campo (FRUTUOSO, 2005,IV:156). 33 O termo “casas de salão” é de origem local e serve para caracterizar a técnica utilizada de cobrir de barro as habitações e os outros imóveis de apoio à actividade agro-pecuária na Ilha do Porto Santo. Sobre este assunto leia-se o capítulo infra 3.3. Arquitecturas e equipamentos funcionais. 34 Jordão de Freitas, Serras de Água nas Ilhas da Madeira e Porto Santo, Separata da “Revista de Arqueologia”, Tomo III, Lisboa, 1937, pp.3-8. 35 Note-se as referências históricas à largada de ovelhas antes da chegada dos primeiros povoadores: “ (…) o infante D. Henrique meu tio nos enviou dizer que ele mandára lançar ovelhas nas sete ilhas dos Açores e que se nos aprouvesse que as mandaria povoar…” (AA, 1980,I:5). 36 Cfr., Alberto Vieira, O Comércio de cereais dos Açores para a Madeira no século XVII, Separata do Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, Vol. XLI, 1983. 39 Para a criação de solos aráveis e protegidos dos elementos erosivos, constroem-se os poios37 na Madeira e os currais,38 nos Açores (Figs.70, 71, 1069 e 1070). A este respeito importa sublinhar a singularidade e a autenticidade dos terrenos declivosos das localidades da Maia39 e de São Lourenço, na Ilha de Santa Maria; dois bons exemplos da percepção do engenho e da preservação da memória cultural na actualidade. A condução e o transporte de água para os terrenos agrícolas faziam-se por uma complexa rede de levadas40 e de aquedutos.41 No estabelecimento das primeiras comunidades constroem- se os imóveis de apoio aos serviços municipais, religiosos, militares e de assistência e demais equipamentos funcionais de apoio à vida quotidiana (poços-cisternas, levadas e outras canalizações, abrigos na rocha, pontes e arruamentos). No que respeita ao Arquipélago da Madeira, o açúcar, numa primeira fase e, após a decadência deste, o vinho; servem de “motores económicos” da sociedade insular. O predomínio açucareiro despoletou assinaláveis impactes na paisagem humanizada: verificou-se a extensão dos poios cultivados predominantemente com cana-de-açúcar (Figs.1121, 1121A e 1529), o que impossibilitou a intercalação com outras culturas; reduziram-se consequentemente a área de floresta devido às exigências de combustível para os engenhos e edificavam-se crescentemente por toda a ilha imóveis abastados com os lucros daquele lucrativo comércio. Dependente do mercado externo, a primeira “ilha de açúcar” do Atlântico” conhece momentos de pauperismo humano e agrícola, pois como 37 Socalcos agrícolas construídos em forma de pequenos terraços com muros de suporte em pedra. 38 A recolha da tradição oral mostrou que os marienses designam estas construções em pedra invariavelmente de “currais” ou “quartéis”, realçando-se a especificidade do uso do termo “través” para designar as construções com pedra seca. 39 Leia-se a descrição da unidade paisagística da Maia no Inventário do Património Imóvel dos Açores. Vila do Porto - Santa Maria, 2005: ”Conjunto de encostas voltadas ao mar, dispostas em anfiteatro, estruturadas em socalcos preenchidos com “quartéis” (compartimentos regulares, murados, para cultivo e protecção da vinha). Estes “quartéis” têm acesso por estreitos escadórios orientados no sentido do maior declive das encostas.” (BRUNO, 2005:125) e no estudo de João de Medeiros Constância: “Em vários locais da beira-mar, encostas extremamente declivosas foram transformadas em socalcos e estes divididos por muros de pedra solta em quartéis, onde se cultiva a vinha, aproveitando para esse fim boas condições naturais: terrenos pedregosos e boa exposição solar.” (CONSTÂNCIA, 1982:227). 40 Sobre a relação da água enquanto “mercadoria” leia João José de Sousa, “As levadas”, Atlântico, n.º17, Funchal, 1989, pp. 40-47. 41 Para os Açores leia-se Carreiro da Costa, “O abastecimento de água”, Etnologia dos Açores, Vol. 2, Lagoa, Câmara Municipal da Lagoa, 1991, pp. 802-833. 40 alertou Braudel a “cana é tanto mais perigosa quanto é apoiada por um capitalismo poderoso, que, no século XVI, provém tanto da Itália, como de Lisboa ou de Antuérpia, e ao qual ninguém consegue resistir”. 42 Uma das obras mais relevantes do ponto de vista da humanização da paisagem em consequência da plantação dos canaviais foi a construção de levadas. A necessidade de rega dos canaviais e o fabrico industrial do açúcar dependente da energia motora exigiram o aproveitamento dos recursos aquíferos, cautelosamente regulados e encaminhados para as áreas de utilização. Ao referir-se ao papel das ilhas mediterrânicas e atlânticas na Época Moderna – forjando a célebre expressão do “Mediterrâneo Atlântico” - Fernand Braudel expõe as contingências dos ilhéus, sujeitos às flutuações da história política e económica e a todo o emaranhado gerado pela oscilação dos circuitos marítimos e constante insegurança dos “predadores” do mar. Constate-se os episódios frequentes pelos quais as populações das ilhas do Porto Santo e de Santa Maria passaram procurando refúgio nas áreas rochosas, e evitando os ataques corsários e a razia dos saques perpetuados pelos argelinos no século XVII, que por duas situações dizimaram uma parte considerável daquelas comunidades insulares. Essa “sorte comum”, aliada às situações cíclicas de fome, sustentaram uma surpreendentemente relevância histórica,43 não obstante a sua “pequenez” territorial. No encalço da frase de Suzanne Daveau que prenuncia o actual capítulo reforça-se, uma vez mais, com a síntese braudeliana: “Em termos exteriores, porém, o seu papel histórico é de uma grandeza pouco comum de esperar em zonas tão pobres. Com efeito, os grandes eventos históricos culminam frequentemente nas ilhas. Mas seria talvez mais justo dizer que se “servem” delas” (BRAUDEL, 1983:177). 42 Fernand Braudel, O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe II, Vol.