UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Artes

EVALDO PICCINO

MUDANÇAS DE SUPORTES SONOROS NO MERCADO FONOGRÁFICO BRASILEIRO CAPÍTULOS DIGITAIS E ANALÓGICOS DE UMA NOVELA MUITO ANTIGA

CAMPINAS 2007 CAMPINAS 2007 Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca Central da Unicamp Helena Joana Filipsen – CRB-8ª / 5283

Piccino, Evaldo. P581m Mudanças de suportes sonoros no mercado fonográfico brasileiro : capítulos digitais e analógicos de uma novela muito antiga / Evaldo Piccino. – Campinas, SP : [s.n.], 2007

Orientador: José Eduardo Ribeiro de Paiva. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

1. Música - Tecnologia. 2. Arte e tecnologia. 3. Registros onoros na musicologia. 4. Som - Registros e reprodução écnica. I. Paiva, José Eduardo Ribeiro de. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The challenging of the sounding medias in theBrazilian phonografic market: digital and analogical chapters of a very old novel. Palavras-chave em inglês: Music – Technology Art and technology Sound recordings in musicology Sound – Recording and reproducing – Digital techniques. Titulação: Mestre em Multimeios. Banca examinadora: José Eduardo Ribeiro de Paiva [Orientador] Ricardo Goldemberg Rafael Santos Mendes. Data da Defesa: 28-02-2007. Programa de Pós-Graduação: Multimeios.

Dedico este trabalho à Prof. Dra. Keila Righi, referência no estudo dos primatas notívagos e defensora incondicional dos princípios matemáticos da reciprocidade. AGRADECIMENTOS

Agradeço ao professor Eduardo Paiva, pela total confiança e liberdade com que me orientou em todo o projeto. Aos docentes Ricardo Goldenberg e Rafael Santos Mendes (UNICAMP), pelos apontamentos no exame de qualificação. Aos professores Ricardo Monteiro (Universidade Anhembi Morumbi) e Adilson Ruiz (UNICAMP), pela colaboração na banca exminadora. À professora Priscila Ermel (FFLCH-USP), que acreditou neste projeto em sua fase mais embrionária. Ao professor Carlos Augusto Calil (ECA-USP), pelo apoio concreto que me deu para que eu frequentasse o curso de mestrado. À professora Tamara Benakouche (UFSC), pela orientação na bibliografia que, sem saber, me deu. Ao professor Guilherme Carboni (FAAP), pelas infindáveis conversas e valiosíssimas trocas de informação. Aos colegas do Mestrado em Multimeios do IA-UNICAMP e do Grupo de Estudos em Produção Cultural no Brasil da Belle Epóque à década de 50 da FFLCH-USP, em Especial Orlando Fantasini, Cintia Onofre e Simone Aranha, pelo providencial estímulo. À Camila Koshiba Gonçalves, pela imensa generosidade com que compartilhou suas fontes de pesquisa. Ao Pedro Alasmar, por toda ajuda na edição de imagens e traduções em vários estágios da minha pesquisa. Ao Helder e à Patrícia pela amizade e hospitalidade nestes anos de Campinas. Também aos funcionários da CPG – IA e da Biblioteca do IFCH, pela prontidão e paciência com que sempre me atenderam.

RESUMO

Este trabalho tem por finalidade esboçar uma breve análise comparativa das mudanças de suportes sonoros no mercado fonográfico brasileiro, desde o cilindro até o CD, passando pelos discos em 76 e 78 RPM em gravação mecânica e elétrica e pelo Long Playing, identificando alguns elementos que estiveram presentes impactando estas mudanças. A identificação destes elementos acaba por demonstrar que muitos deles estão presentes nas mudanças de suportes analógicos e se repetem com o advento da mídia e da tecnologia digitais. Dessa forma a análise terá como contraponto esta dicotomia: digital versus analógico, com a intenção de comparar os efeitos causados em diferentes épocas, tentando pontuar o novo e o velho, semelhanças e diferenças, dentro da história da indústria fonográfica no Brasil. A comparação terá por base os diferentes papéis (e suas inversões) desempenhados pela indústria, os artistas e o publico consumidor enquanto agentes do mercado ao longo das diferentes etapas de produção da música de massa, entendendo-se por este termo a música feita com o intuito de ser gravada e vendida.

Palavras-chave: Música e Tecnologia, Arte e Tecnologia, Registros Sonoros na Musicologia, Som – Registros e Reprodução, Técnica. ABSTRACT

This work has the purpose to sketch a brief comparative analysis of the changes in sound medias on the Brazilian phonographic market, since the Edison Cylinder until the CD disk, going through the 76 and 78 RPM disks in acoustic and electrical recording and the Long Playing, identifying some elements which have impacts on these changes. The identification of these composing elements comes to demonstrate that many of them are present in the changing of analog medias and repeat themselves with the digital media and technology advents. Thus, the analysis will have as a counterpoint this dichotomy “digital” versus “analog”, with the intention to compare the effects made in different times, trying to distinguish the new and the old, similarities and differences, inside Brazilian’s phonographic industry’s history. The comparison will have, as a basis, the different roles (and it’s inversions) played by the industry, the artists and the consumers public as agents of the market through the different production stages of the popular music, being this term referred to the music made with the objective to be recorded and sold.

Keywords: Music - Technology, Art and Technology, Sound Recordings in Musicology, Sound – Recording and Reproducing, Digital techniques. SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 11

CAPÍTULO 1 – DELIMITAÇÃO DE CAMPO E OBJETO DE PESQUISA...... 15

1.1 REFERENCIAIS TEÓRICOS...... 15

1.2 CONTEXTO HISTÓRICO DA TECNOLOGIA...... 20 capítulo 2 – BREVE HISTÓRICO DAS MUDANÇAS DE SUPORTES SONOROS ANALÓGICOS E IDENTIFICAÇÃO DOS PRINCIPAIS ELEMENTOS DE IMPACTO NO MERCADO...... 24

2.1 CILINDRO...... 24

2.1.1 Antecedentes históricos...... 24 2.1.2 Patente e fabricação do aparelho reprodutor...... 24 2.1.3 Patente e fabricação do suporte sonoro...... 25 2.1.4 Chegada do fonógrafo no Brasil...... 25 2.1.5 Início da comercialização no Brasil...... 26 2.2 PRODUÇÃO EM SEPARADO DO SUPORTE E DO CONTEÚDO COM CAPACIDADE DE PRODUÇÃO LIMITADA E SEMI-ARTESANAL...... 27

2.3 BATALHAS JUDICIAIS EM TORNO DE PATENTES COMO FERRAMENTA DE CONTROLE SOBRE A TECNOLOGIA...... 30

2.3.1 Propriedade intelectual, patentes e direitos autorais: conceitos e distinções...... 30 2.3.2 As patentes no desenvolvimento da indústria fonográfica...... 31 2.3.3 As patentes como tentativa de ferramenta de controle sobre a tecnologia e o mercado...... 32 2.4 DISCO DE GRAVAÇÃO MECÂNICA (76 E 78 RPM)...... 33

2.5 PRODUÇÃO UNIFICADA DO SUPORTE E DA GRAVAÇÃO COM CAPACIDADE DE PRODUÇÃO INDUSTRIAL...... 33

2.5.1 O papel da fábrica e a implantação no Brasil de uma indústria predominantemente nacional...... 39 2.6 AS PATENTES COMO TENTATIVA DE FERRAMENTA DE CONTROLE SOBRE A TECNOLOGIA E O MERCADO...... 48 2.6.1 A patente brasileira 3465 para gravação de discos dos dois lados ...... 49 2.7 DISCO PLANO DE GRAVAÇÃO ELÉTRICA...... 52

2.7.1 Codificação do sinal mecânico em corrente elétrica...... 52 2.8 A TECNOLOGIA COMO FATOR LIMITANTE DE MERCADO E FIXAÇÃO DAS TRASNACIONAIS NO BRASIL...... 53

2.9 LONG PLAYING – LP...... 66

2.9.1 Capacidade técnica de longa duração...... 66 2.10 SURGIMENTO DE UM NOVO FORMATO DE PRODUTO...... 68

CAPÍTULO 3 – A MUDANÇA DE SUPORTE SONORO PARA DIGITAL E IDENTIFICAÇÃO DOS PRINCIPAIS ELEMENTOS DE IMPACTO E SEUS EFEITOS NO MERCADO...... 72

3.1 CD – ÁUDIO DIGITAL COMPACT DISC LASER...... 72

3.1.1 Capacidade técnica de longa duração, armazenamento e transmissão...... 74 3.1.2 Manutenção do mesmo formato de produto...... 75 3.1.3 Codificação do sinal em bits...... 77 3.2 A TECNOLOGIA COMO FATOR INTERATIVO DE MERCADO...... 78

3.3 FIM DA PRODUÇÃO UNIFICADA DO SUPORTE E DA GRAVAÇÃO E REALIZAÇÃO DE UM POTENCIAL DE PRODUTIVIDADE COM CAPACIDADE SEMI-INDUSTRIAL...... 82

3.4 DISPUTAS LEGAIS EM TORNO DE DIREITOS AUTORAIS NA TENTATIVA DE COMBATER OS EFEITOS DA TECNOLOGIA...... 86 conclusão ...... 91

REFERÊNCIAS ...... 92 11

INTRODUÇÃO

A chegada e consolidação da tecnologia do suporte sonoro digital através do Áudio Digital Compact Disc Laser – CD causou intenso impacto no mercado fonográfico brasileiro e internacional. No entanto vários elementos deste impacto estiveram presentes em outras mudanças de suportes analógicos desde o desenvolvimento do cilindro até o Long Playing, passando pelos discos em 76 e 78 RPM em gravação mecânica e elétrica. No caso do CD estes elementos causaram efeitos análogos e também inversos aos causados pelo impacto dos suportes analógicos ponto de vista tecnológico, mercadológico e legal. Esses elementos seriam as alterações causadas em função das mudanças de suportes no mercado, foram estes os principais:

 Produção em separado ou unificada do suporte e da gravação;  Batalhas judiciais em torno de patentes ou de direitos autorais como ferramenta de controle sobre a tecnologia;  Modo de produção limitado e semiartesanal ou industrial;  Codificação do som em corrente elétrica ou bits;  Capacidade técnica de longa duração.

A sucessão de mudanças de suporte no mercado pode ser comparada à de capítulos em uma novela, onde os mesmos atores desempenham papéis diferentes. A identificação dessas mudanças dos papéis e atores sociais é fundamental para se entender o processo Quem são eles? Quais são os papéis? Em que mudam? Dessa forma os efeitos das mudanças de suporte a não serão analisados a partir de sua influência na obra de arte nem sobre a sociedade. O ponto de partida será o conceito da mídia sonora enquanto interface, ou seja, enquanto área de troca entre indústria, público consumidor e artista. Essa concepção foi adotada por Paiva (2002)1, que também faz a distinção das etapas de criação/registro/duplicação/reprodução e seus meios2. Os papéis da 1 PAIVA, José Eduardo Ribeiro de. Sonorização em multimídia: Técnicas e tecnologias específicas para a música digital. Tese de doutorado. Campinas: UNICAMP / Instituto de Artes, 2002, p. 37.

2 PAIVA, José Eduardo Ribeiro de. Uma Análise crítica da relação música/tecnologia do pós-guerra até a atualidade. Tese de mestrado. Campinas: UNICAMP / Instituto de Artes, 1992, p. 20. 12

indústria, público consumidor e artista nestas etapas tiveram sua dinâmica de atuação alterada pelo advento da mídia digital em relação ao que ocorria com as mídias analógicas. Assim sendo, além da metáfora da novela, surge a do espelho. Essa na verdade é uma ilustração de como a tecnologia do suporte digital pode repetir e inverter os elementos que já existiam nas outras mudanças de mídias. Como se estes elementos fossem refletidos e invertidos pela superfície espelhada que reflete o LASER. Essa idéia do espelho como repetição e inversão estará presente na estrutura deste trabalho, que primeiro apresentará em ordem cronológica os suportes analógicos vigentes no mercado fonográfico, apontando as inovações tecnológicas e identificando os seus principais elementos de impacto. Em seguida será analisado o suporte digital e como esses elementos atuaram e causaram efeitos análogos, inversos ou mesmo neutralizados. A idéia da inversão tem aqui uma dupla conotação: a primeira é a de alteração na ordem; a apresentação e análise dos elementos serão feitas em ordem inversa à que aparecem os suportes analógicos, sugerindo um movimento de retorno na história da indústria fonográfica. A segunda conotação é de contrariedade: a inversão de papéis entre os atores fazendo com que elementos se repitam com efeitos contrários. Alguns trabalhos já foram desenvolvidos sobre música e tecnologia digital no Brasil entre eles os de Paiva e Vicente (1996)3 e outros sobre indústria fonográfica na área de ciências sociais como os de Dias (2000)4, Morelli (1991)5 e Puterman (1994)6 sem entanto focar na questão dos suportes sonoros em si. Apesar do extenso volume de reflexões sobre o tema publicado e fatos historicamente documentados e/ou praticamente comprovados, não foi feita nenhuma discussão acadêmica que explorasse os elementos da mudança da mídia sonora digital em comparação com as analógicas que dominaram o mercado brasileiro. Os estudos sobre a influência da tecnologia também são numerosos desde às abordagens mais clássicas sobre a arte ligadas à chamada Escola de Frankfurt (em especial autores como Benjamin, Habermas, Horkheimer e Adorno) a outros mais contemporâneos

3 VICENTE, Eduardo. A música popular e as novas tecnologias de produção. Tese de mestrado. Campinas: UNICAMP / IFCH, 1996.

4 DIAS, Márcia Tosta. Os donos da voz. Indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. São Paulo: Boitempo Editorial, 2000.

5 MORELLI, Rita de Cássia Lahoz. Indústria fonográfica: um estudo antropológico. Campinas: Editora da UNICAMP, 1991.

6 PUTERMAN, Paulo. Indústria cultural: a agonia de um conceito. São Paulo: Perspectiva, 1994. 13

sobre a tecnologia digital (em especial Flichy, Castells, Levy e Postman) se estabelecendo uma distância entre autores de diferentes épocas. O objetivo da pesquisa é ao mesmo tempo, considerar de maneira mais restrita questões próprias da indústria fonográfica e da tecnologia digital, assim como esboçar uma análise comparativa de épocas diferentes em diferentes estágios tecnológicos. Dessa forma, embora a abordagem não seja unicamente histórica, procuraremos dentro deste confronto chegar a parâmetros para escalonar essa distância e estabelecer o que é velho e o que é novo na indústria fonográfica, pontuando os impactos causados na era da tecnologia digital, relacionados com a era da tecnologia analógica. A questão central não é ressaltar se os aspectos e efeitos são positivos ou negativos, mas sim o seu caráter de mediação. No capítulo 1 será feita a delimitação de campo e objeto de pesquisa, a apresentação dos referenciais teóricos e do contexto histórico da tecnologia. No capítulo 2 – Breve histórico das mudanças de suportes sonoros analógicos e identificação dos principais elementos de impacto e seus efeitos no mercado – a identificação dos elementos a serem trabalhados será feita alternando análise e descrição, esta última baseada em dois autores que pesquisaram exaustivamente a história da indústria fonográfica no Brasil: Tinhorão (1981)7 e Franceschi (2002)8. O primeiro, apesar de ser frequentemente mais associado às suas atividades como crítico musical em diferentes veículos (em especial no Jornal do Brasil), já há mais de vinte anos tem como principal atividade a de historiador, que exerce com a mais absoluta idoneidade e fidelidade às fontes e sobretudo com extrema honestidade intelectual, em especial na maneira como transparece seu viés ideológico, por muitos criticado9. O segundo, além de pesquisador foi o curador dos arquivos da Casa Edison e anexou à sua segunda obra milhares de documentos textuais e sonoros na

7 TINHORÃO, José Ramos. Música popular: do gramofone ao rádio e TV. São Paulo: Ática, 1981.

8 FRANCESCHI, Humberto Moraes. Registro sonoro por meios mecânicos no Brasil. : Studio HMF, 1984. / FRANCESCHI, Humberto Moraes. A Casa Edison e seu tempo. Rio de Janeiro: Sarapuí, 2002.

9 Segundo o próprio autor em entrevista concedida à Fábio Santos para a revista República nº 19, em maio de 98: Aos 70 anos, exilado de sua trincheira original desde 1980, quando pôs o ponto final em sua coluna semana no Jornal do Brasil, o jornalista e crítico musical quer finalmente ser lido como historiador, o que, segundo ele, sempre foi. Quer pôr um fim nos juízos do Tinhorão e dar relevância ao estudioso...” “O método a que Tinhorão se refere é o materialismo histórico - eixo central da teoria social marxista...” “Uma visão de história que procura a causa final e a grande força motriz de todos os acontecimentos históricos importantes no desenvolvimento econômico da sociedade (...) na consequente divisão da sociedade em classes distintas e na luta entre classes” “Cada um faz o que pode. No meu caso, é a denúncia, estudando historicamente o processo. Quem se julgar revolucionário que jogue bomba, tem o meu aplauso. Se possível, atômica.” 14

forma de CD-ROM, o que além de comprovar o que o que propõe, deixa aberto o caminho para uma infinidade de outras descobertas, interpretações e abordagens.

No capítulo 3 – A mudança de suporte sonoro para digital e identificação dos principais elementos de impacto e seus efeitos no mercado será apresentada a chegada CD e analisados os elementos presentes no impacto da sua consolidação no mercado: capacidade técnica de longa duração, armazenamento e transmissão; manutenção do mesmo formato de produto; conversão do som em bits como a introdução de um novo elemento no processo de gravação; fim da produção unificada do suporte e da gravação com a realização de um potencial de produtividade com capacidade semi-industrial e disputas legais em torno de direitos autorais como ferramenta de controle na tentativa de combater os efeitos da tecnologia.

15

CAPÍTULO 1 – DELIMITAÇÃO DE CAMPO E OBJETO DE PESQUISA

1.1 REFERENCIAIS TEÓRICOS

O primeiro suporte a ser apresentado será o cilindro e o primeiro elemento a ser abordado a disputa legal como ferramenta de controle sabre a tecnologia, ou seja, a tentativa de combater seus efeitos e determinar o mercado, presente desde o lançamento do cilindro como suporte, quando a invenção de Edison teria ferido patentes do concorrente Bell & Tainter e gerado batalhas judiciais. Embora a abordagem deste aspecto legal não tenha finalidade de análise jurídica, a necessidade de conceituar e distinguir patentes, direitos autorais e propriedade intelectual requer referências desta natureza e recorreremos à Carboni e Coleman. Uma outra questão é a separação do suporte e da gravação nas etapas de registro, duplicação e comercialização, pois os suportes eram importados para aqui serem gravados e duplicados com capacidade de produção limitada e semiartesanal. A chegada do cilindro não trouxe consigo nenhuma mudança, e sim o nascimento do suporte sonoro e seu mercado, portanto ao apresentar seus elementos a abordagem será mais descritiva que analítica. No Disco Plano de gravação mecânica (76 e 78 RPM), segundo suporte apresentado, as batalhas judiciais em torno de patentes continuam a ser um dos elementos presentes, no entanto a produção do suporte e da gravação passa a ser unificada e a capacidade de produção passa a ser industrial com uma indústria que permanece predominantemente nacional. A análise terá como base autores como Flichy que contextualiza historicamente a produção industrial cultural e a dualidade hardware/software e Paiva de quem será melhor abordado o conceito do suporte sonoro enquanto Interface. As relações da tecnologia com a forma e conteúdo na música industrializada terão referências em Dias e de concepções de autores da Escola de Frankfurt, em especial Adorno e Marcuse, assim como as ideias de Marx da relação de tecnologia com forças produtivas quando analisados o papel da fábrica e a implantação no Brasil de uma indústria predominantemente nacional. Os parâmetros para discutir indústria brasileira buscaremos em Franceschi – os componentes econômico e político no fluxo movimentação da matriz européia em direção ao Brasil – e Roberto Schwarz – o papel da industrialização e do desenvolvimento na concepção do que viria a ser a identidade nacional. 16

Na análise do disco plano de gravação elétrica será abordado o impacto mercadológico e tecnológico da codificação do sinal mecânico em corrente elétrica, a tecnologia como fator limitante no mercado e a fixação definitiva das gravadoras transnacionais no mercado brasileiro em função desta inovação. O contexto da mundialização terá referencial em Flichy, Dias e Ortiz e principalmente em Camila K. Gonçalves e Franceschi que contextualizam a instalação das gravadoras Odeon, Victor e Columbia no Brasil. O papel da tecnologia como fator interno e externo nesta alteração de panorama suscitará neste ponto as críticas, em especial de Levy e Braudel, ao conceito de impacto tecnológico e do chamado determinismo de autores como Weber e Marcuse. Como último suporte analógico, o Long Playing – LP terá focada sua análise na já mencionada capacidade técnica de longa duração e no surgimento de um novo formato de produto. O dimensionamento entre o técnico e o artístico neste processo de formatação abordará conceitos de inovações como disco de autor e disco de estúdio, com base em autores como Paiano, Paiva e Levy. No Capítulo III: A mudança de suporte sonoro para digital e identificação dos principais elementos de impacto tecnológico e seus efeitos no mercado para a análise sobre capacidade técnica de longa duração do CD e a manutenção do mesmo formato de produto introduzido pelo LP, além do fato inédito da capacidade de e transmissão vinculada à de armazenamento, será abordada a rapidez de processamento das mudanças na era da tecnologia digital, na concepção de Castells (1999)10, bem como seu peso na relação entre as necessidades de um novo conceito artístico e de um novo formato de produto. A conversão do som em bits e a tecnologia como fator interativo de mercado, serão analisados a partir de conceitos de Paiva, em especial interface e as etapas de criação/registro/duplicação/reprodução. Serão abordadas a fragmentação e segmentação dentro do processo produtivo, identificadas por Dias e Vicente como uma aproximação dos artistas enquanto atores do processo de produção. A essa concepção mais próxima de Adorno serão contrapostas outras como as de Puterman, que postula o devenir das transformações e a possibilidade de diálogo e da participação do público. Recorreremos aos princípios de Castells sobre da apropriação e redefinição das novas tecnologias por parte dos usuários como processos e não mais como ferramentas. Também a partir de outro ponto desta linha de pensamento de Castells sobre o usuário como agente - a realização de um novo potencial de produtividade – será feita a

10 CASTELLS, Manuel. A Sociedade em rede: a era da informação: economia, sociedade e cultura. Vol. 1. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 17

análise sobre capacidade de produção industrial do CD. A situação de conflito ou oposição estabelecida entre consumidor e indústria terá referenciais em Levy e também em Dias e Gonçalves, assim como o fim da integração entre hardware e software também colocada por Flichy que servirão de base para a discussão sobre a produção em separado do suporte e da gravação. Já a discussão sobre as disputas legais em torno de direitos autorais como ferramenta de controle na tentativa de combater os efeitos da tecnologia se baseará novamente em Carboni e também em Dantas e Ascensão. Esse embasamento não somente servirá para conceituar direito autoral, mas para analisar sua utilização como instrumento de apropriação da informação enquanto produto e a dificuldade de mensuração do seu preço em função da anulação de tempo pela velocidade das tecnologias de informação. Um dos alicerces do pensamento de Marx, o princípio da tecnologia como meio de produção de mais valia, será relativizado. A delimitação de campo será feita em torno das mídias que dominaram no mercado fonográfico, em especial o brasileiro, dessa forma suportes que não chegaram a se fixar definitivamente de maneira de fato competitiva, não serão analisados pelo fato de não terem causado impacto, portanto nenhum elemento a ser detectado em sua chegada no mercado. Dessa forma não será analisado o disco de 45 RPM lançado pela Victor em 1950 para competir com o LP, batizado de Extended Playing – EP. A pesar de seus sulcos serem considerados por muitos audiófilos como a melhor alternativa em áudio analógico, seu fracasso no mercado ocorre porque a Victor insiste em uma patente proprietária. O disco 45 possui um orifício central de 2 polegadas com a intenção de somente ser reproduzido nos toca-discos Victor. É adotado para compactos no mundo todo exceto no Brasil e na .

Outras mídias que não entrarão na análisepor representarem apenas tentativas de aprimorar a longa duração são os discos Extended Long Playing - ELP de 16 2/3 e 8 1/3 RPM que funcionam razoavelmente para reproduzir com inteligibilidade a fala mas não melodias. Acabam sendo utilizados como versões sonoras de livros e revistas para cegos como a Seleções Reader’s Digest. O mesmo ocorre com os meios magnéticos de gravação, pelo de não se firmarem de fato como competitivos com o disco, não foram analisadas suas atuações como mídias comerciais, posteriormente desenvolvidas em rolos (a partir dos anos 50), cartuchos e cassetes (a partir de 1963 pela Philips e Basf em conjunto). Um dos responsáveis pela introdução do 18

sistema no Brasil, o então executivo da Phonogram André Midani (1976)11, já na época identificava no suporte o objetivo de ampliar e não dividir o mercado, uma concorrência mais direto com o rádio e uma limitação econômica ditada pelas restrições na importação dos componente de fabricação do aparelho reprodutor (toca-fitas) por parte do governo brasileiro. Apesar da afirmação de Frith (1992)12: “Em 1970 os cassetes respondiam por um terço das vendas da indústria fonográfica e, em 1971, o valor dos gravadores vendidos superava o de toca-discos”, neste trabalho será tratado somente seu uso industrial como intermediário ao processo do corte do acetato e na conversão de gravações de 78 para 33 1/3 RPM13. Já os discos em 78 RPM gravados pelo do sistema elétrico serão considerados uma mídia diferenciada dos gravados pelo sistema mecânico, pois sua chegada no mercado não significou apenas um diferencial na manufatura da indústria do disco, mas a codificação da onda sonora em corrente elétrica. Ao contrário do que ocorria no sistema mecânico o som gerado é transformado em sinal de corrente eletromagnética e depois amplificado no momento da gravação e da reprodução. Isso acarretou em uma diferença enorme nos equipamentos de captação e amplificação como o microfone e os alto-falantes e também de reprodução, como as eletrolas e vitrolas elétricas. Foi alterada a relação entre software e hardware: um disco de gravação elétrica poderia ser ouvido em um aparelho de reprodução mecânico, como um gramofone, mas seria ouvido como se fosse de gravação mecânica. Houve, portanto, uma substituição de discos e equipamentos, fato identificado por Gonçalves (2006, p. 38)14:

Em médio prazo, contudo, os equipamentos da fase mecânica tendiam a cair em desuso. Já afirmava a própria Phono-Arte que “o moderno tipo de máquina falante nada mais é do que uma necessidade exigida pelo novo processo de gravar que lhe antecipou.”A diferença de qualidade sonora entre os discos mecânica e eletricamente gravados era tão grande que poucos meses após a Columbia lançar seus primeiros discos elétricos nacionais, a Óptica Ingleza passou a comercializar

11 FOLHA DE S. PAULO. Cassete substituirá o LP?. São Paulo: 28 mai. 1976.

12 FRITH, S. The industrialization of popular music. London: Sage Public. Inc, 1992. 13 Com o fim das perseguições políticas na Alemanha os suportes magnéticos de gravação e reprodução começam a ser produzidos embora a sua descrição já tivesse sido feita por Oberlim Smith nos U.S.A. em 1888 e as pesquisas com esses meios iniciados dez anos depois na forma de gravadores de rolos de arame pelo dinamarquês Valdemar Poulsen.

14 GONÇALVES, Camila Koshiba. Música em 78 Rotações: “discos a todos os preços” na São Paulo dos anos 30. Música em 78 Rotações. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP/ FFLCH, 2006, p. 38. 19

seu estoque de discos importados da fase mecânica da Columbia com 50% de desconto. Algo semelhante, mas de maior envergadura, ocorreu com a Victor e a Columbia/EUA nos Estados Unidos, que estabeleceram um acordo comercial para vender todo o seu estoque de discos mecânicos por um preço reduzido antes de lançarem as gravações elétricas no mercado. Além disso, para realçar as qualidades do disco elétrico, as vitrolas eram consideradas imprescindíveis para qualquer residência, e eram apresentadas como “maravilhosos instrumentos para o lar”, com design moderno, muito mais condizente com os recentes progressos tecnológicos da fonografia.

A evolução foi significativa e de enorme impacto tecnológico e a separação em fase mecânica e fase elétrica na história da indústria fonográfica é considerada em muitos autores como, além dos já citados, Azevedo (1982)15. Por outro lado, a escolha do CD como mídia digital a ser analisada, além da fixação e permanência no mercado (critério este que exclui da análise outras mídias como DAT, DCC e MD) é sua classificação, segundo Negroponte (1995)16, como mídia embalada: “Há cinco caminhos para se levar informação e entretenimento à casa das pessoas: o satélite, a radiodifusão, o cabo, o telefone e a mídia embalada (todos aqueles átomos como os cassetes, CDs e material impresso).” Dessa forma a escolha do CD como o suporte digital a ser analisado, além do recorte histórico e de sua característica como mídia fixada no mercado, fica ligada a este conceito de mídia embalada, um suporte onde a reprodução é precedida e possibilitada pela função de armazenamento e não transmissão como ocorre por exemplo com os arquivos em mp3 que, sem dúvida nenhuma, revolucionaram o mercado fonográfico, mas não deverão ser trabalhados nesta análise. Os átomos e bits são elementos centrais no pensamento de Negroponte (1995), que os exemplifica de maneira bastante simplificada17:

Não faz muito, estive presente a um encontro administrativo de altos executivos da Polygram em Vancouver no Canadá. O propósito da reunião era intensificar as comunicações entre as gerências e oferecer a todos um panorama do ano vindouro, incluindo-se aí muitas amostras de discos, filmes, jogos e vídeos de rock a serem lançados em breve. Tais amostras seriam despachadas para o encontro por intermédio da Federal Express, e sob a forma de CDs CD-ROMs e fitas de videocassete – um material físico em embalagens de verdade, com peso e tamanho [...] Por infelicidade, parte do material ficou perdido na alfândega. Naquele mesmo dia, eu estivera despachando e recebendo bits pela Internet em meu quarto de hotel, enviando-os e recebendo-os do MIT e de todas as partes do mundo, Ao contrário dos

15 AZEVEDO, M. A; BARBALHO, Gracio; SANTOS, Alcino; SEVERIANO, Jairo. Discografia Brasileira 78 RPM. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1982.

16 NEGROPONTE, N. A Vida Digital, São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 55

17 Id. p. 17. 20

átomos da Polygram, meus bits não ficaram retidos na alfândega. [...] Um bit não tem cor, tamanho ou peso e é capaz de viajar a velocidade da luz. Ele é o menos elemento atômico no DNA da informação. Ele é um estado, ligado ou desligado, verdadeiro ou falso, para cima ou para baixo, dentro ou fora, preto ou branco. Por razões práticas, consideramos que o bit é um zero um 1. O significado do 1 ou 0 é uma questão à parte. Nos primórdios da computação, uma fileira de bits em geral representava uma informação numérica. (NEGROPONTE, 1995, p. 17)

1.2 CONTEXTO HISTÓRICO DA TECNOLOGIA

Apesar de mais difundida depois da Revolução Industrial, a influência da tecnologia segundo vários autores estaria presente desde os primórdios da humanidade. Ducassé18, por exemplo, trata a questão da relação do homem com a técnica e suas consequências sob um prisma histórico identificando na própria Pré-História técnicas chamadas primitivas ou fundamentais, que seriam as que resumem as relações de base entre o homem e seu meio como fatos técnicos. Postman (1994)19 faz referência à conhecida classificação de idade da pedra, idade do bronze, idade do ferro e idade do aço como invenção taxionômica erudita baseada no caráter tecnológico de uma era. Ducassé menciona no período outros fatos técnicos como: a modelagem e as armadilhas. Novos fatos teriam feito do Neolítico a fase da extensão das técnicas primitivas como: a pedra polida, a cerâmica cosida no fogo e a cultura do solo. Na Antiguidade civilizações como Egito, Mesopotâmia, Índia e China teriam vivenciado o desenvolvimento da agricultura (com a irrigação metódica e instrumentos), o progresso na metalurgia (fundição e forja), na cerâmica e também na arquitetura e sobretudo na tecelagem. Segundo o autor, os gregos foram os grandes herdeiros das civilizações orientais e o êxito da soberania de Atenas se deve em grande parte ao equilíbrio entre sociedade agrícola e expansão marítima. Antes dos gregos as regras eram “coleções de processos empíricos, limitando-se a anotar as operações a realizar e as regras a aplicar para resolver um outro problema prático.” Não dão a forma geral nem a demonstração dos resultados, tem uma solução justa mas não justificada:

18 DUCASSÉ, Pierre. História das Técnicas. Rio de Janeiro: Publicações Europa-América, S/D.

19 POSTMAN, N. Tecnopólio: a rendição da cultura à tecnologia. São Paulo: Nobel, 1994. p. 32. 21

A partir do século VI a.C. conseguem isolar a idéia de quantidade de entre as experiências que até a altura a envolviam. Estudando em si mesmas as verdades assim postas em evidência, os gregos fizeram a distinção entre o resultado prático procurado pelas técnicas do número e a forma geral e demonstrativa que permite obter esse resultado. Descobriram assim, a técnica geral dessas técnicas, a matemática pura, mãe de todas as ciências e de todas as aplicações.

Daí teriam se originado os processos de medida (comprimento, massa, volume, tempo). Outra conquista teria sido a primeira manifestação do progresso em cascata, quando a navegação deu origem ao aperfeiçoamento de guinchos, roldanas, cabrestantes, tornos, brocas, além do desenvolvimento da mecânica e da estática. Coube aos Romanos o desenvolvimento da medicina, arquitetura, máquinas de guerra e principalmente da engenharia civil em especial na organização regular dos transportes (estradas, pontes, aquedutos). No entanto no século IV a.C. os bárbaros invadem as fronteiras e as migrações de povos acabam com a homogeneidade do Império Romano acompanhadas por uma crise na produção e circulação das riquezas e das condições de progresso técnico e de trabalho regular acarretando na decadência geral da vida civilizada. O enfraquecimento da organização romana teve como componente significativo a destruição do sistema de transportes em meio aos conflitos e destruição dos centros urbanos. Os povos civilizados por Roma desceram a um nível técnico inferior ao da Antiguidade Pré-Helênica. Conclui Ducassé que a industriosa sabedoria da Antiguidade não conseguiu fundar numa sólida base técnica a admirável cultura intelectual e artística (cuja herança recebemos) e ignorou a verdadeira civilização industrial. Isto se deve em parte ao desprezo pelo trabalho servil e o próprio trabalho em si e à escravatura. Relembra a frase de Aristóteles em defesa da escravidão que se tornaria uma profecia: “Quando a lançadeira andar sozinha, os escravos serão inúteis.” A grande obra da idade média foi retomar o esforço técnico e culminar no decisivo triunfo do progresso industrial. Ao lado da centralização urbana e da extensão das trocas, o progresso técnico foi um grande aliado das classes de homens livres a transformarem-se em trabalhadores em seu processo de emancipação. A conquista das forças motoras, em especial a água e o vento e aperfeiçoamento dos moinhos, invenção da idade antiga que veio conduzir à economia do trabalho humano, aumentando o rendimento das forças utilizadas. O desenvolvimento dos transportes marítimos e terrestres, da metalurgia, das técnicas agrícolas e do comércio comprometido pelas invasões também fizeram da técnica medieval uma força social de renovação que, em contraposição à força passiva e à servidão 22

dos impérios, teve uma correspondência estrita à sociedade e suas leis de desenvolvimento, com uma ação enérgica sobre a estrutura social. Na Idade Moderna a autoridade real e a unificação política vão possibilitar que se tente em escala nacional tudo que o comércio e a indústria desde a idade média tinham realizado em nível das cidades. A isso se soma a aproximação da técnica com a ciência e a filosofia: Com Descartes, Leibniz, Voltaire e Diderot o método experimental tornou-se o princípio-modelo de um aprofundamento e uma completa renovação no campo das idéias. A partir do renascimento o empirismo passa a dar lugar ao espírito animador do progresso técnico. Sob o domínio das descobertas da química, astronomia, ótica, medicina e cirurgia as evoluções técnicas foram muitas no âmbito da metalurgia, navegação e agricultura. No entanto a partir dos progressos da ciência e da técnica dos meios gasosos e do aperfeiçoamento da máquina a vapor é que a busca de novas energias desabrochou nos considerados maiores impactos tecnológicos da idade moderna anteriores a tecnologia digital: vapor, ferrovia, eletricidade e motores de combustão interna. Castells20 considera o vapor como a força central da Primeira Revolução Industrial (próxima a 1770), assim como eletricidade da Segunda Revolução Industrial (cerca de cem anos depois), juntamente com motores de combustão interna, o aço, produtos químicos, telégrafo e telefonia. Apesar de enxergar entre as duas revoluções continuidades fundamentais, distingue como fator diferencial básico “a importância decisiva de conhecimentos científicos para guiar o desenvolvimento tecnológico após 1850”, ao passo que na Primeira Revolução Industrial não de baseava na ciência, mas “apoiava-se em um amplo uso de informações, aplicando e desenvolvendo os conhecimentos existentes.” A Revolução da Tecnologia de Informação no século XIX teve três estágios de inovação em três principais campos da tecnologia baseada em eletrônica: microeletrônica, computadores e telecomunicações. Castells identifica o verdadeiro cerne da revolução no transistor, inventado em 1947 pela Bell Laboratories, com o primeiro passo em sua difusão dado em 1951 com a invenção do transistor de junção por Shocley. Seguiram-se então sucessivas inovações significativas: a mudança para o silício em 1954, o processo plano em 1959, o circuito integrado em 1957, o microprocessador em 1971 e as versões comerciais dos computadores, desde a década de 50.

20 CASTELLS. Op. cit. p. 49 23

Postman21 temporiza o que chama de revolução da informação e nela identifica cinco estágios. O primeiro seria marcado pela invenção da imprensa que cria novas fontes de acumulação de dados e propicia o crescimento da ciência, anunciando seu advento, publicando, estimulando e codificando-o. Depois de passar por um longo período entre o início do século XVII e meados do século XIX em que “não foi traduzida nenhuma tecnologia importante que alterasse a forma, volume ou a velocidade de informação”, o segundo estágio é anunciado pelo telégrafo, que age em parceria com a imprensa diária e transforma a informação em mercadoria. Contemporânea do telégrafo, a fotografia inicia o terceiro estágio fazendo com que as imagens viessem a suplementar e tender a substituir a linguagem. O quarto estágio chega com a Radiodifusão e o quinto com a tecnologia do computador.

21 POSTMAN. Op. cit. p. 77 24

CAPÍTULO 2 – BREVE HISTÓRICO DAS MUDANÇAS DE SUPORTES SONOROS ANALÓGICOS E IDENTIFICAÇÃO DOS PRINCIPAIS ELEMENTOS DE IMPACTO NO MERCADO

2.1 CILINDRO

2.1.1 Antecedentes históricos

A tradução da vibração das ondas sonoras antecede o início da fabricação dos suportes sonoros no começo do século XVIII quando o inglês Thomas Young desenvolve o aparelho que leva seu nome e traduz graficamente as vibrações diretamente do corpo vibrante. Em 1857 Edward Léon Scott de MartinVille constrói o Fonautógrafo, que traduz os sons das partículas vibrando no ar. Baseado na orelha humana, o aparelho é composto de um pavilhão por onde o som entra e um diafragma com uma agulha acoplada que grafa o gráfico em um cilindro.

2.1.2 Patente e fabricação do aparelho reprodutor

Em 1877 o francês Charles Cross patenteia e batiza o fonógrafo que, lendo o cilindro ao contrário, reproduz o som gravado. No entanto quem de fato construiu o aparelho no mesmo ano foi Thomas Alva Edison. O aparelho por ele desenvolvido fica mais conhecido com o nome de tin-foil e possui um cilindro fixo com base de estanho. Alguns fatores retardam a sua exploração comercial, como a prioridade profissional de Edison para a lâmpada elétrica e sua relutância na utilização como entretenimento. Os usos que pretende fazer enumera em declaração à North American Cientific Review (1987)22.

1. Escrever cartas e toda espécie de ditado 2. Livros falantes para cegos 3. Ensino de elocução 4. Reprodução musical 22 ODISSEIA DO SOM. Museu da Imagem e do som. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1987. 25

5. Registros familiares: anotações de poupança, lembranças de família pelas vozes de seus componentes e mesmo as últimas palavras de pessoas moribundas.

6. Brinquedos: bonecas falantes, etc.

7. Relógios falantes.

8. Preservação da linguagem, através da reprodução da pronúncia exata.

9. Preservação das explicações faladas de professores de modo que os alunos pudessem recorrer a elas quando desejassem

10. Conexão com o telefone para fazer deste instrumento ma auxiliar na transmissão de gravações permanentes e valiosas em vez de recipientes de momentâneas e fugazes comunicações.

2.1.3 Patente e fabricação do suporte sonoro

Charles Tainter e Alexander Graham Bell (o inventor do telefone) aperfeiçoam alguns aspectos e em 1886 patenteiam o graphophone, junto com ele introduzem o cilindro removível, primeiro suporte sonoro explorado comercialmente produzido em papelão com revestimento em cera.

2.1.4 Chegada do fonógrafo no Brasil

Segundo Tinhorão (1981)23, o primeiro fonógrafo chega ao Brasil em 1879 em Porto Alegre por Eduardo Perris, representante de Thomas Edison. Franceschi (1984)24 relata que a primeira apresentação do fonógrafo no Rio de Janeiro, documentada em jornais da época, teria sido no ano de 1878 em uma conferência da Glória, no Edifício da Escola da Freguesia da Glória parta fins pedagógicos. No mesmo ano e no seguinte, o proprietário de um fonógrafo chamado F. Rodde realiza demonstrações numa loja chamada Ao Grande Mágico, na Rua do Ouvidor. Pelas relações que esta casa, especializada em telefones, mantém com os produtos de Graham Bell,

23 TINHORÃO. Op. cit. p. 14 24 FRANCESCHI, 1984. p. 17 26

não é possível determinar a procedência do aparelho, anteriormente anunciada como Edison, no entanto, pela data é possível afirmar tratar-se de um reprodutor de cilindros fixos, pois naquela ocasião não existem ainda os cilindros removíveis. A família Imperial, que fazia assistência regular às Conferência da Glória, publica o Decreto Imperial 7.07 de 9 de novembro de 1878 concedendo a Edison o privilégio “introduzir no Império do Brasil o fonógrafo de sua invenção”. A decreto foi transcrito na íntegra por Franceschi (1984)25, que concorda com Tinhorão (1981)26 em atribuir também à família Imperial a primeira gravação feita no Brasil em fonógrafo trazido pelo Comendador Carlos Monteiro e Souza, amigo comum de Edison e D. Pedro II, representante comercial do primeiro no Brasil e cessionário da iluminação elétrica em Belém e também da implantação do sistema telefônico. Segundo Franceschi (1984)27, apesar do entusiasmo, nem o decreto imperial, nem a representação comercial pelo Comendador Monteiro e Souza vão adiante. Nessas primeiras gravações e audições são gravados depoimentos do imperador e membros da corte e executadas audições de música. O primeiro brasileiro a ter a voz gravada cantando é o príncipe D. Augusto, interpretando a ária “Pêcheur de perles” de Bizet.

2.1.5 Início da comercialização no Brasil

O tchecoslovaco naturalizado americano Frederico Figner em 1889 toma contato com os primeiros fonógrafos de exibição nos E.U.A. e, em sociedade com seu cunhado Joe Smith, grava vários fonogramas com a intenção de exibir em países latinos. Viaja inicialmente para Cuba e depois para vários países da América Latina fazendo exibições pagas. Depois de um retorno aos E.U.A., parte para o Brasil onde desembarca em Belém em 1891 e inicia as exibições com o fonógrafo. As primeiras gravações segundo Franceschi (1984)28 são realizadas com o proprietário do Hotel Central onde se hospeda com um discurso anti-republicano do advogado Dr. Joaquim Cabral. Continua com suas exibições em Manaus, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife, Salvador e em 1892 chega ao Rio de Janeiro e aluga um pequeno imóvel na Rua do Ouvidor e continua fazendo exibições. Em transações comerciais com James Mitchell, representante de

25 FRANCESCHI, 1984, p. 19. 26 TINHORÃO, Op. cit. p. 16. 27 FRANCESCHI, 1984. p. 21. 28 FRANCESCHI, 2002. p. 18 27

Columbia e com F. M. Prescott, representante da Edison e fundador da International Zonophone Company começam as exibições com um fonógrafo automático acionado por moedas que permite a escolha de vários cilindros e começa a desenvolver outras inovações e atividades ainda em caráter de exibição Uma delas é o kinetoscópio sonoro (trazido em 1894 de Chicago) sincronizado com fonógrafos, um precursor do cinema sonoro (patenteado somente em 1908). Outra atração é a Inana de 1897, um espetáculo de ilusão de ótica que, através de jogos com espelhos simula uma mulher flutuando no ar. Em 1899, em sociedade com o inglês Bernard Wilsom Shaw forma o Club de Graphophone, uma espécie de consórcio para graphophones29 e cilindros que impulsiona Figner na compra e venda, além de exibições. Em 1897 muda seu estabelecimento para a Rua Uruguaiana e inicia a gravação de cilindros para venda. O único concorrente na venda de cilindros na época é a CASA AO BOGARY fundada em 1895 pelo representante da Gramophone Company Arthur Augusto Villar Martins, atuante também no ramo de perfumaria. Em 1900, Figner funda nova casa comercial novamente na Rua do Ouvidor e dá o nome de CASA EDISON, em homenagem a Thomas A. Edison.

2.2 PRODUÇÃO EM SEPARADO DO SUPORTE E DO CONTEÚDO COM CAPACIDADE DE PRODUÇÃO LIMITADA E SEMI-ARTESANAL

Uma característica muito particular do cilindro é a existência de duas maneiras de se fabricar: cilindros virgens para serem gravados em fonógrafos e cilindros prensados já com os sulcos da gravação. No caso do mercado fonográfico brasileiro, não são fabricados cilindros no país, sejam virgens ou gravados. Os suportes são importados para aqui serem gravados e duplicados. Uma conseqüência da fabricação do suporte independente da gravação é o reaproveitamento do cilindro, que ocasiona por parte das gravadoras do processo de raspagem e polimento dos cilindros gravados e a comercialização por intermédio de trocas. O método de raspagem, já utilizado no dictafone de Bell e Tainter consiste na preparação do cilindro para nova gravação apagando-se os sulcos já gravados. Para isso um

29 Graphophone é uma marca registrada para nomear o aparelho mecânico reprodutor de cilindros patenteado por Bell em 1886 e mais tarde fabricado pela Columbia, concorrente do Fonógrafo. 28

aparelho chamado raspador gira em alta velocidade e a superfície do cilindro é tocada por uma faca de safira e em seguida por um polidor que consiste num fio de platina acoplado a uma pilha. Mais tarde a faca é substituída por uma lâmina de aço e o fio de platina por um de alumínio acoplado a uma lâmpada de álcool. Os cilindros usados a serem raspados são obtidos através de trocas com as casas gravadoras, segundo anúncios em jornais da época os inteiros valem de $500 a 3$000 e os quebrados de $250 a 1$000 (com caixa) na Casa Bogary e na Casa Edison o cilindro usado mais a quantia de 1$500 pode ser trocado por um novo.

Figura 1 – Cilindro Columbia e Anúncios da Casa Edison e Casa Ao Bogary com referência à troca de cilindros usados para regravação.

Fonte: FRANCESCHI, 1984.

Outro fator digno de nota é o uso do cilindro como suporte de gravação imediata, uso semelhante ao que se fez posteriormente com os discos em acetato com base de alumínio e os meios magnéticos e digitais de reprodução (rolos, fitas cassete, DAT e MD). Essa função faz com que o cilindro figure também como suporte não só de produtos de massa (gravado industrialmente com o intuito de ser vendido), mas também com outras finalidades, como gravação em campo para pesquisas. 29

O processo de produção de cilindros virgens utiliza um molde metálico de duas partes onde é colocada a cera derretida, em seguida é torneado para fechar a fenda resultante da moldagem em duas partes. Na etapa seguinte, com a cera ainda moldável, é colocado num cubo de prensagem a fim de definir com exatidão as partes interna e externa. Os cilindros moldados já gravados são desenvolvidos por Edison em 1902 e o método consistia um processo eletrolítico de pulverização a ouro, material que é eletrodepositado num cilindro original a partir do qual é construído um molde de cobre. Esse molde é oco com a impressão de um cilindro original no interior onde é colocada uma mistura de ceras fundidas, que depois de girar e ser resfriada é retirada do molde já na forma de cilindro. Essa forma de produção em massa não é utilizada no Brasil. Os cilindros mais populares moldados por este processo são o Edison Moulded Record e Columbia, importados para o Brasil com músicas estrangeiras gravadas. Dentre os cilindros virgens gravados no Brasil predominam os cilindros Phrynis, patente de Figner no país. Em relação aos modos de duplicação dos cilindros gravados no Brasil, pouca coisa documentada foi encontrada a respeito, Franceschi (1984)30 indica como possibilidades um aparelho de duplicação citado por Figner como nome de “Desideratum”, sobre o qual não foram encontradas mais referências. O autor aponta como outras possibilidades o método de dublagem ou dubing, pelo qual um cilindro tem os registros transferidos para outro, um por vez, ou o método pantográfico desenvolvido pela Pathé em 1896 que permite a confecção de cinco ou mais cópias de cada vez. Flichy (1982)31 quantifica o número de cópias possíveis pelo processo pantográfico em vinte e cinco e situa o desenvolvimento do método por moldagem em 1901, mas ressalta que nesta época a supremacia do disco já estava assegurada. Dada a grande quantidade de fonogramas oferecida pelo catálogo da Casa Edison com a promessa de remessa para o mesmo dia, acredita Franceschi (1984) que houvesse um processo de duplicação minimamente desenvolvido. As gravações são feitas sem o uso de eletricidade, não há válvulas e no lugar do microfone é usado um grande cone metálico, daí o nome gravação mecânica. Na extremidade do cone um diafragma vibra e uma agulha sulca nos cilindros vibrações análogas. Girados em sentido contrário no fonógrafo percorrem o sentido inverso, fazendo o cone ou corneta amplificar o som do diafragma.

30 FRANCESCHI, 1984. p. 35

31 FLICHY, Patrice. As multinacionales del audiovisual. Barcelona: Ed. Gustavo Gilli, 1982. P. 252 30

2.3 BATALHAS JUDICIAIS EM TORNO DE PATENTES COMO FERRAMENTA DE CONTROLE SOBRE A TECNOLOGIA

2.3.1 Propriedade intelectual, patentes e direitos autorais: conceitos e distinções

Embora a finalidade da análise não seja jurídica faz-se necessário, inicialmente, fazer uma abordagem, ainda que breve, de patentes e direitos autorais enquanto institutos jurídicos para que se tenha uma melhor compreensão do assunto. Segundo Carboni (2004)32, as criações do intelecto humano são protegidas pelo Direito dos povos civilizados. Ao estabelecer tal proteção, o Direito separa as criações intelectuais em dois campos distintos: (a) o campo da técnica, que compreende as criações voltadas à satisfação material, utilitária do homem, que seja passível de industrialização (como, por exemplo, o desenvolvimento de uma nova ferramenta, uma nova tecnologia, um produto original ou um novo processo de fabricação); e (b) o campo estético, que diz respeito às criações voltadas ao mero deleite, a conferir um novo sentido às coisas do mundo, através de uma combinação original de palavras, linhas, formas, cores, sons e imagens (como as obras de arte de maneira geral). O ramo do Direito voltado à proteção das criações intelectuais no campo da técnica é a chamada Propriedade Industrial, que tem como escopo: marcas, patentes, desenhos industriais e a repressão à concorrência desleal. As criações no campo estético são protegidas pela Propriedade Literária, Artística e Científica, também chamada de Direitos Autorais33. À união desses dois ramos distintos do Direito, que têm o mesmo fundamento jurídico, isto é, as criações do intelecto humano, dá-se o nome de Propriedade Intelectual. Portanto, a Propriedade Intelectual é a disciplina que se compõe da Propriedade Industrial e do Direito de Autor.

32 CARBONI, G.; PICCINO, E. Batalhas judiciais e indústria fonográfica – a versão digital de uma história muito antiga. In: ANAIS DO V CONGRESSO DA INTERNATIONAL ASSOCIATION FOR THE STUDY OF POPULAR MUSIC. IASPM: Rio de Janeiro, 2004. 33 NEGROPONTE, Op. cit. p. 63. Inclusive cita o fato de que nos Estado Unidos as patentes são de alçada do executivo (Departamento do Comércio) e os direitos autorais do legislativo (Biblioteca do Congresso). 31

2.3.2 As patentes no desenvolvimento da indústria fonográfica

CARBONI coloca ainda que as patentes podem ser entendidas como um monopólio temporário concedido pelo Estado a um particular para que este possa fabricar e comercializar a sua criação intelectual com exclusividade. A patente confere ao seu titular o direito de impedir terceiros de fabricarem ou comercializarem criações iguais ou semelhantes. No Brasil, a patente de invenção é válida pelo prazo de vinte anos. Decorrido esse prazo, a patente cai em domínio público, podendo, assim, ser explorada por qualquer pessoa. Na fase de desenvolvimento da indústria fonográfica (final do século XIX e início do século XX), foram obtidas patentes para os aparelhos reprodutores (fonógrafos e gramofones) e para os suportes físicos dos fonogramas (como cilindros e discos). Portanto, nessa fase, as principais disputas judiciais da indústria fonográfica diziam respeito a essas patentes. Essas disputas, melhores detalhadas por FRANCESCHI (1984, p. 14)34, começam já no lançamento do cilindro removível, considerado o primeiro suporte sonoro explorado comercialmente, um aperfeiçoamento que Charles Tainter e Alexander Graham Bell fizeram da invenção de Thomas Edison. Edison, que se recusara a trabalhar no invento de Bell e Tainter, desenvolve o cilindro de cera maciça em substituição à base de papelão que, devido à diferença de coeficientes de dilatação dos dois materiais, ocasiona a quebra em função da variação de temperatura. No entanto em sua nova invenção fere a patente dos concorrentes na utilização da cera de carnaúba e no princípio da agulha flutuante. Um acordo comercial foi tentado como solução para conciliar os concorrentes com a escolha de um único financista – Jesse H. Lippincott – como representante exclusivo de ambos. Caberia assim a um comercializar o aparelho de gravação e outro o aparelho de reprodução sonora. A medida, no entanto não obteve sucesso e acabou em processo judicial e formação de novas corporações. A American Graphophone Company de Bell e Tainter, junta- se em 1893 à Columbia Phonograph Company formando a Columbia Phonograph Company General. A Edison Speaking Company torna-se a National Phonograph Company.

34 FRANCESCHI, 1984. p. 14 32

2.3.3 As patentes como tentativa de ferramenta de controle sobre a tecnologia e o mercado

A adoção de um acordo comercial para resolver um impasse legal demonstra como a questão prioritária não era a autoria da patente e sim o privilégio de utilizá-la, ou seja, o controle de mercado. Coleman (2003)35 dá relevância a este aspecto quando opõe o pragmatismo dos inventores americanos e seu interesse nas aplicações em negócios em oposição aos inventores europeus, apesar de situar o início das patentes na Inglaterra com a Rainha Elizabeth I (1561 – 1590). Dá também peso às concessões de patentes para o êxito de inventores sobre concorrentes e cita o exemplo deste fator em invenções como o telégrafo, o rádio e televisão. Francheschi (1984)36 contextualiza essa questão das intenções de uso de patentes no Brasil associando a disputa mercadológica por vias legais com o que ocorria no mercado internacional:

[...] A diversificação cada vez maior dos produtos lançados pelas grandes companhias estrangeiras da metade para o final da primeira década deste século impôs, tanto para os que estavam no mercado para os que pretendiam entrar, seguiam normas de conduta bastante claras em face de perspectivas cada vez mais promissoras. Para uns, como Figner, era a continuidade de um processo já estabelecido. Para outros, esperança de negócios futuros e até possíveis associações com as grandes companhias. E ainda para os que não estavam diretamente no mercado, a possibilidade de inventos tão originais que pudessem interferir na luta por novidades que a indústria sempre esperava. O mercado brasileiro, apenas começando, já sofria todo o envolvimento das então ainda pequenas, grandes companhias internacionais que, testando a potencialidade de cada país, apossava-se, apossavam-se deles ou não, segundo suas conveniências. Os poucos e incipientes comerciantes com pretensões a fabricantes tentavam, através do registro de patentes, proceder de maneira análoga às lutas que se desenvolviam pela disputa dos mercados internacionais. Eram, na maioria das vezes, ingênuas proposições sem nenhuma estrutura tecnológica que os garantisse andar livremente por si próprios[...] (FRANCESCHI, 1984, p. 43)

Em seguida o autor exemplifica com um pedido de privilégio de patente para “cilindros brasileiros moldados” sob a alegação de que eram “sistema apropriado para cilindros musicais ou falados puramente brasileiros”. O pedido é do já mencionado Arthur Augusto Villar Martins, proprietário da CASA AO BOGARY. O autor cita ainda registros de patentes para coloração da massa dos cilindros, sob a alegação de que as cores influem preponderantemente na qualidade da reprodução sonora e ainda um substituto para as cornetas metálicas de gravação por um aparelho que apresenta um 35 COLEMAN, MARK. Playack: from the victrola to MP3, 100 years of Music, Machines and Money. Cambridge: Da Capo Press, 2003. p. 6. 36 FRANCESCHI, 1984. p. 43. 33

simulacro da faringe, da garganta e “de uma boca aberta quando a língua está estendida para fora”.

2.4 DISCO DE GRAVAÇÃO MECÂNICA (76 E 78 RPM)

Emile Berliner, ex-funcionário de Bell para quem desenvolvera o sistema de microfonagem para telefones, é quem em 1888 patenteia e constrói o gramofone e o disco plano. Edison e Graham Bell já haviam idealizado o disco como novo suporte (Edison chegou a patenteá-lo na Inglaterra), porém não investem em sua fabricação devido à dificuldade de manutenção da rotação ao chegar no centro do disco (dificuldades que só viriam a ser plenamente superadas cem anos mais tarde com o advento da rotação variável no CD). Berliner não obtém de início grande êxito comercial, pois vende a patente para a empresa alemã Kammerer & Reinhardt construir brinquedos: discos para fazer bonecas falarem e uma versão infantil do gramofone que não vingam comercialmente. Em 1894 o disco é lançado no mercado sob patentes de Berliner pela Gramophone Company como suporte sonoro. Os primeiros exemplares são fabricados em vulcanite (espécie de polímero natural semelhante à borracha) que com o selo Angel (com o logotipo do cupido) chegam ao Brasil inicialmente representados pela CASA AO BOGARY no Rio de Janeiro. Nos primeiros catálogos figuram com o nome de chapas.

2.5 PRODUÇÃO UNIFICADA DO SUPORTE E DA GRAVAÇÃO COM CAPACIDADE DE PRODUÇÃO INDUSTRIAL

Assim como no cilindro as gravações e reproduções continuam exclusivamente mecânicas, ou seja, feitas sem o uso de eletricidade. Não há válvulas e no lugar do microfone é usado um grande cone metálico. Para reprodução não há sequer regulagem de volume nos gramofones e Victrolas mecânicas. Inicialmente funcionado com rotação manual, o sistema acionado pelo mecanismo movido a corda do gramofone é desenvolvido por Berliner em parceria com o mecânico norte-americano Eldridge Johnson, que funda em Candem a Consolidated Talking Machine. Além do formato plano, o disco inova o sistema de corte, que passa de vertical para horizontal, ou seja, as ondulações são gravadas na lateral e não no fundo dos sulcos, como ocorre com os cilindros. 34

Se no sistema de gravação não são feitas muitas evoluções em relação aos cilindros (uma agulha acoplada a um diafragma na extremidade do cone de gravação reproduz numa matriz de cera as ondulações) no processo de produção elas vem a causar o principal impacto tecnológico, com a introdução do modo de produção em grande escala. FRANCESCHI37 descreve detalhadamente método desenvolvido por Berliner:

Desde o princípio da década de 1890, Emile Berliner, um alemão erradicado nos E.U.A., especializado em química e interessado em acústica, descobrira o método de gravar sons em disco de zinco revestido com uma película gordurosa e impermeável que, depois de gravado, era imerso em ácido. O ácido reagia sobre os traços feitos pela agulha de gravação, deixando no zinco um sulco, fino e raso, com profundidade homogênea. Com a comprovação de resultados satisfatórios, Berliner dedicou-se ao que achava ser o ponto central do processo: a duplicação. Encontrou uma maneira simples de fazer cópia. Consistia em fazer uma matriz, em cobre, a partir do disco original de zinco gravado em ácido e depois usar esta matriz negativa para imprimir discos positivos sobre algum material adequado. Como, por exemplo, um carimbo de metal imprime sobre lacre derretido pelo calor. A confecção da matriz foi o ponto-chave do sucesso do disco. (FRANCESCHI, 1984, p. 75)

Apesar dos aperfeiçoamentos posteriores (em especial nas técnicas de prensagem, galvanoplastia e na substituição da matriz em cera pelo disco de acetato em base de alumínio), o processo manteve-se basicamente o mesmo na história da indústria do disco. A matriz de cera gravada passa por um processo de galvanoplastia onde através de eletrólise é confeccionado em primeiro molde em metal, a partir desse molde é confeccionada uma espécie de contramolde chamada madre (que pode ser tocada como o disco) onde são corrigidas as imperfeições. Na seqüência é feito um novo molde que funciona como estampa para a confecção do disco propriamente dito em prensas (JAMBEIRO, 1975)38. Dessa forma, com o formato de disco plano, são superadas as dificuldades de duplicação do formato cilíndrico e os processos de produção passaram de semiartesanais para

37 FRANCESCHI, 2002. p. 75

38 Sobre pormenores do processo de produção industrial do disco e sua evolução em diferentes épocas consultar: Disco em São Paulo. Coordenação do maestro Damiano Cozzella. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento de Informação e Documentação Artísticas, Centro de Pesquisa de Arte Brasileira, 1980.

JAMBEIRO, Othon. Canção de massa: as condições da produção. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1975.

BRYSOM, H. Courtney. The Gramophone Record. London: Ernest Benn Limited, 1935.

HENSLOW, Miles (Editor). Hi-Fi Year Book. London: Miles Henslow Publications Limited, 1956.

PERCY WILSON, M. A. The Gramophone Handbook. London: Methuen & Co Ltd, 1957. 35

industriais. Um autor que discute a questão é FLICHY39 relatando que em 1900, apenas três anos após sua criação na Filadéfia, o primeiro estúdio de gravação da história já oferecia um catálogo de cinco mil títulos. No entanto não considera a capacidade de produção de grande pertinência, colocando que a imprensa em 1860 já havia substituído o modo de produção artesanal pelo industrial e, dentro deste contexto, o disco e o filme foram praticamente desde o princípio, elaborados de forma industrial em grandes séries. Mas também é FLICHY quem traz à tona a necessidade na fonografia da mediação por um aparelho leitor, necessidade inexistente na imprensa. Essa dualidade hardware/software, segundo o autor é fundamental para o desenvolvimento dos meios audiovisuais tanto em nível de produção quanto de consumo. Dentro dessa dualidade é que se entende o impacto da mudança de suporte do cilindro para o disco de gravação mecânica no Brasil. Outro autor que discute a questão mais focada na questão tecnológica é PAIVA, embora trabalhe mais diretamente influência da tecnologia como meio expressivo nas obras produzidas, é de grande relevância para nossa análise a revisão feita por ele do conceito de Interface40:

O termo interface tornou-se conhecido a partir da popularização da informática pessoal nos anos oitenta, porém não se deve esquecer que elas estão presentes em todos elementos tecnológicos utilizados pelo homem em suas diversas atividades. Especificamente para a música, pode-se afirmar que todo instrumento é uma interface, um local onde, através da trova do código musical por um gesto, se produz som. Seria essa a definição correta de interface: um local de trocas, onde linguagens são convertidas em sons, sons em imagens, códigos em outros códigos... pode ser um código, um instrumento ou qualquer coisa que reaja a um estímulo produzindo outro estímulo que possa ser convertido em som... Adotarei essa definição para todos os equipamentos em que ao contato de um estímulo mecânico/elétrico/eletrônico se obtenha uma resposta musical. (PAIVA, 2002, p. 37).

O autor também faz referência a Dertouzos (2002)41: "As interfaces são importantes, pois nos colocam em contato com as máquinas do Mercado de Informação, ou, numa abordagem mais filosófica, porque são o ponto de encontro entre o humanismo e a tecnologia".

39 FLICHY, Op. cit. p. 19

40 PAIVA, 2002. p. 37

41 DERTOUZOS apud PAIVA, 2002. p. 37 36

A relação então não é na verdade dual, pois a ideia da mídia sonora como área de troca não somente se aplica entre hardware e software, homem e máquina, aparelho reprodutor e suporte, mas entre indústria, público consumidor e artista. Também a influência da tecnologia altera as interações entre todos estes agentes. Com o advento do disco matrizado e prensado, deixa de ser industrializado e comercializado o suporte virgem como ocorria com o cilindro42, os gramofones não podem gravar como alguns fonógrafos faziam. Apesar de o cilindro e o disco conviverem por alguns anos no mercado (no caso do Brasil entre 1902 e meados dos anos 10), na nova interface sonora o papel do consumidor passa a ser somente o de consumir para ouvir, ao passo que não mais compra o suporte para poder gravar. Uma ilustração bastante rica e interessante para este fato é a famosa imagem do cachorrinho ouvindo o gramofone, uma das mais famosas logomarcas de toda a história da indústria fonográfica, usada pela Grammophone, H.M.V. e Victor, entre outras, ao longo mais de um século. A história relatada na Odisséia do Som43 conta que a figura teria sido originalmente pintada em tela pelo Pintor Charles Barraud, observando Neeper, um cachorro que ouvia no fonógrafo cilindros gravados com a voz de seu dono, um irmão falecido de Barroud. Ao oferecer a imagem para a o representante da Berliner de Londres Willian Berry Owen (ela já havia sido oferecida e recusada pela Edison), Barroud teria sido orientado a retocar o quadro substituindo o fonógrafo por um gramofone e, por conseqüência, o cilindro por um disco. Neeper não poderia, hipoteticamente falando, estar mais ouvindo a voz do dono, apesar de ser este o nome da tela (His master’s voice) que seria também marca registrada por Berliner e associada à sua imagem.

42 O disco virgem aparece anos mais tarde quando surge o disco de acetato em base de alumínio. Na verdade não como produto de mercado, pois apenas substitui a matriz em cera no processo de gravação, ainda no processo de corte direto (sem intermediação de mídias magnéticas), o que permite uma melhoria de qualidade embora mantenha várias limitações no número de cópias a serem prensadas por matriz. Também como suporte de gravação imediata é utilizado em arquivos sonoros, rádios e pesquisas de campo onde muitas vezes permanecem como suporte definitivo. A diferença entre os coeficientes de dilatação do acetato e do alumínio torna o suporte frágil e sujeito a rachaduras pela ação das variações de temperatura, o que acaba acarretando na extinção de documentos muitas vezes únicos, como também ocorre com os cilindros.

43 ODISSÉIA DO SOM. Museu da Imagem e do som. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1987. 37

Figura 2 – Pintor Charles Barroud ladeado pelas duas versões do seu quadro A Voz do Dono.

Ainda em relação a vozes e donos, peço licença à Dias (2002)44 para plagiar a introdução de seu livro, utilizando a mesma ilustração de seu livro: um trecho da canção de Chico Buarque de Hollanda A voz do dono e os donos da voz (1981)45:

Até quem sabe a voz do dono /Gostava do dono da voz / Casal igual a nós, de entrega e de abandono / De guerra e paz, contras e prós / Fizeram bodas de acetato / Assim como os nossos avós / O dono prensa a voz, a voz resulta um prato / Que gira pra todos nós. (BUARQUE, 1981).

Com o disco a voz passa a ser prensada, não mais gravada num cilindro a ser duplicado, não é só a relação do público consumidor que se alteram nesta nova interface, mas as relações entre suporte e conteúdo que passa então a ser unificada, o termo música industrializada ganha outra dimensão, bem como sua relação com a tecnologia, suas mudanças e impactos, como também aborda Dias (2002)46:

[...] a técnica não fornece somente os aparatos necessários às gravações e aos seus reprodutores, tais aparatos passam a compor o quadro das tecnologias de produção e reprodução musicais e, além de serem, eles mesmos um produto dessa racionalidade técnica, definem a forma e o conteúdo dos produtos. (DIAS, 2002)

44 DIAS, Márcia Tosta. Op. cit. Seu trabalho é mais ligado às ciências sociais. O referencial teórico é bastante ligado ao conceito de indústria cultural aproximando ideias de autores da Escola de Frankfurt (em especial Horkheimer e Adorno) e especificidades da indústria fonográfica brasileira. A autora avança em uma análise do processo no período compreendido entre os anos 70 e 90 focada na atuação das chamadas majors (grandes indústrias transnacionais) e indies (pequenas gravadoras independentes).

45 BUARQUE, CHICO. A voz do dono e os donos da voz. Almanaque. Marola Edições Ltda, 1981.

46 DIAS, Márcia Tosta. Op. cit. 32. 38

E parafraseando para a questão a definição de Adorno para mediação47 coloca que a técnica “está na própria coisa, não sendo algo que seja acrescido entre a coisa e aquelas às quais ela é aproximada”. Conclui então:

Assim a técnica vai disseminando sua lógica - objetivando a aproximação apontada entre as esferas da administração e da cultura – desde a definição de todo o aparato ideológico, do rudimentar ao mais avançado, à concepção do produto, sua distribuição e difusão, até tornar-se ela mesmo objeto de consumo.

Esta discussão tem antecedentes na Escola de Frankfurt, em especial em Adorno (1986)48 para quem a união dos domínios entre a arte superior e a arte inferior se daria graças aos meios atuais da técnica e à concentração econômica e administrativa, somando os diversos ramos do que conceitua como Indústria Cultural, com uma estrutura semelhante para constituir um sistema que faz produtos adaptados para o consumo das massas. As massas seriam assim elementos secundários, um acessório da maquinaria. O termo Indústria Cultural, dessa forma, viria substituir Cultura de massa, a fim de evitar a interpretação de que essa cultura surgiria das massas. As técnicas da Indústria Cultural, que dizem mais respeito à distribuição e reprodução mecânica, são externas ao seu objeto que, enquanto obra de arte, teria como técnica a sua organização interna e organização imanente. Aí se configura o suporte ideológico da Indústria Cultural: em eximir as consequências da sua técnica extra-artística de produção de bens em seus produtos, sem se preocupar com a determinação que a objetividade da técnica implique para a forma intra-artística. Ao contrário de Benjamin (1983)49 que se atem mais ao uso do aparato técnico do cinema para sua análise na questão da reprodução da obra de arte, Adorno (1983)50 em sua obra, se aproxima mais da questão da música e de sua produção, reprodução e consumo:

47 ADORNO apud DIAS, Id., ib. 48 ADORNO, T. W. A indústria cultural. Grandes Cientistas Sociais. Organização de Gabriel Cohn. São Paulo: Ática, 1986.

49 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In: Os pensadores: Benjamin, Habermas, Horkheimer e Adorno. São Paulo: Editora Abril, 1983.

50ADORNO, T. W. Ideias para a sociologia da música. In: Os pensadores: Benjamin, Habermas, Horkheimer e Adorno. São Paulo: Editora Abril, 1983. p. 268. 39

A contradição consigo mesma, em que se emaranha, mostra que é ilusória a integração de produção, reprodução e consumo que está se esboçando. A unidade de cultura musical contemporânea, com parte da Indústria Cultural, é a auto-alienação completa. Tolera somente o que traga a sua chancela , a tal ponto que os consumidores nem o percebem mais. Alcançou-se a falsa conciliação. O que estaria perto, a “consciência das necessidades”, torna-se insuportavelmente estranho. E o mais alheio, entretanto, que não contém nada mais dos homens, é metido neles a força da repetição pela maquinaria, achegando-se ao seu corpo e ao seu espírito: é o que está indiscutivelmente mais próximo. (ADORNO, 1983, p. 268).

Já Marcuse (1967)51 analisa o impacto da tecnologia sobre a produção cultural, defendendo a idéia de uma cultura superior ocidental pré-tecnologia cujo reconquista de valores é invalidada pela realidade tecnológica em desenvolvimento, que mina não somente suas formas tradicionais, mas as próprias bases de alienação artística (distinção entre a realidade artística e realidade social), com tendência a invalidar a própria essência da arte. A reprodução e a banalização tornam a arte pré-tecnologia dente de uma engrenagem de uma cultura que refaz seu conteúdo. A comunicação em massa mistura arte, política, música e filosofia levando essas esferas a um denominador comum que é a forma de mercadoria. As relações internas da indústria enquanto agente na interface passam por mudanças significativas com a nova concepção de fábrica propriamente dita e sua implantação no Brasil segue estes novos paradigmas, mas ao estabelecê-los apresenta suas peculiaridades.

2.5.1 O papel da fábrica e a implantação no Brasil de uma indústria predominantemente nacional

Não só as concepções de indústria cultural da Escola de Frankfurt, mas também as chamadas perspectivas clássicas no estudo da técnica, segundo muitos estudiosos, tem como o ponto de partida as ideias de Marx à medida que estabelecem a relação de tecnologia com forças produtivas. Em A Maquinaria e a Indústria Moderna (1994)52, ao defender a ideia da máquina como meio de produção de mais valia, analisa suas relações com o valor que transfere ao produto, as consequências imediatas da produção mecanizada sobre o trabalhador, a luta entre o trabalhador e a máquina, a teoria da compensação pelos desempregados pela máquina, a repulsão e atração dos trabalhadores pela fábrica e a

51 MARCUSE. A Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro: Zaar, 1967.

52 MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1994. p. 423-582. 40

revolução que a indústria moderna realiza no artesanato, na manufatura e no trabalho em domicílio, além de analisar a legislação fabril inglesa e a indústria moderna e agricultura. Em O Desenvolvimento da Maquinaria onde estuda o corpo da fábrica e a estrutura do sistema de máquinas trabalha com conceitos como: Ferramenta, Máquina, Máquina–Ferramenta, Produção artesanal, Manufatura e Fabricação automática. Defende o princípio de que na manufatura, o isolamento dos projetos parciais, é um princípio fixado pela própria divisão do trabalho; na fábrica mecanizada, ao contrário, é imperativa a continuidade dos processos parciais e que a indústria moderna entra em conflito a base que possuía no artesanato e na manufatura, à medida que a Máquina-Ferramenta adquire uma forma livre e a manufatura não pode produzir máquinas modernas com o tear e o tear a vapor. Postula também que a revolução dos modos de produção de um ramo industrial se propaga a outro e o sistema de transporte e comunicação foi assim adaptado ao modo de produção da grande indústria. Em A Fábrica, na análise que faz em seu conjunto e em sua forma acabada, coloca que na manufatura e no artesanato, o trabalhador se serve da ferramenta, na fábrica, serve à máquina. Naqueles, procede ele o movimento instrumental do trabalho; nestas, tem de acompanhar o movimento do instrumental. Se para o autor, na manufatura os trabalhadores são membros de um mecanismo vivo, na fábrica, eles se tornam complementos vivos de um mecanismo morto, que existe independente deles. A maquinaria é quem torna uma realidade técnica e palpável a inversão em que o instrumental de trabalho emprega o trabalhador, e não o trabalhador que emprega o instrumental de trabalho, o que caracteriza toda produção capitalista. Na conversão do instrumental do trabalho em maquinaria, a força humana é substituída por forças naturais e a rotina empírica pela aplicação consciente da ciência. Com esta transição de manufatura, na indústria fonográfica as gravadoras passam a ter uma relação mais estreita com a fábrica de discos, ao passo que não apenas compram a suporte para gravar, mas necessitam fabricar ou estabelecer diferentes relações contratuais com as fábricas, como abertura de representações ou filiais. Segundo Franceschi (1984)53 a transição das gravações brasileiras se inicia em 1902. Apesar da Casa Edison e a Casa Ao Bogary já comercializarem discos e Gramofones desde o final do século anterior, é neste ano que Figner consegue através de carta enviada pelo representante F. M. Prescott patente da International Zonophone Company para gravar discos

53 FRANCESCHI, 1984. p. 60. 41

no Brasil com o selo Zon-O-Phone. São lançadas simultaneamente duas séries, o primeiro número de cada é gravado pelos cantores Cadete e Baiano, considerado o intérprete do primeiro disco lançado no Brasil o Zon-O-Phone 10.001 com o lundu Isto é bom de autoria de Xisto Bahia. No Brasil por mais de uma década é realizada apenas a etapa de gravação das matrizes em cera por técnicos vindo da Alemanha para onde seguem de navio para serem prensados os discos pela Berliner. A partir de 1904, com a incorporação da Zon-O-Phone pela Internacional Talking Machine, a Casa Edison passa a gravar pelo selo Odeon e as ceras enviadas para prensagem na Fonotipia Company de Londres. Uma grande parcela da matrizes derrete em função do calor gerado pelas caldeiras. Dessa mesma forma são produzidos aproximadamente entre 1911 e 1913 os discos dos selos Faulhaber e Favorite Record, lançados pela Casa Faulhaber também ligada á material de escritório de perfumaria que representa no Brasil a Favorite Record Aktiengessellschaft, sediada em Linden na Alemanha. A firma Faulhaber e Cia possui estúdio próprio e passa por uma série de contratos, distratos e alterações entre os irmãos Antonio, João Felipe, Guilherme e Frederico Faulhaber. Também atua dessa maneira a Victor Talking Machine, que registra suas marcas no Brasil em 1904 (posteriormente, além de Victor, Victrola em 1906 e His Master Voice em 1907). Com estrutura e proteção por registros legais, tem seus produtos distribuídos por quase todas as casas do ramo e lança entre 1908 e 1912 nas séries 97, 98 e 99.000 discos fabricados nos E.U.A. com música e intérpretes brasileiros como Mário Pinheiro, José João de Barros e os Geraldos. Franceschi54 atenta que estes são inicialmente artistas da Casa Edison, que firma com a Columbia um contratado em 1907, obrigando-se a fornecer os artistas para gravações para a com. Ambos mantêm estreitas relações desde 1899, como os Clubes de Gramofones e de Novidades, e suas negociações comerciais envolvem sempre quantidades estipuladas de mercadorias, determinações de preços e praças sobre onde e quando os dois poderiam atuar, assim como o outro representante da Columbia no Brasil: A Campos e Cia. Os limites são na verdade a abrangência da rede de distribuição da Casa Edison incluindo “a parte sul de Minas Gerais, parte essa compreendida entre os limites com o estado de São Paulo, em uma linha reta que partido da pequena cidade de São Bento neste estado (São Paulo) vão terminar na pequena cidade de Parnaíba, no estado de Minas Gerais.”

54 FRANCESCHI, 2002, p. 174. 42

Também foi contratado entre ambos que a Columbia mandaria ao Brasil um técnico para gravar 250 discos com artistas e local fornecidos por Figner, que receberia em discos e aparelhos. A Columbia não poderia vender estes discos, nem no Brasil nem no estrangeiro a não ser para os irmãos Figner. Franceschi55 transcreve ainda um trecho de manuscrito autobiográfico de Figner de 1946 a esse respeito:

[...] dono dos direitos autorais, fui procurado pelo representante da Columbia, um israelita, advogado americano, não me lembro mais do deu nome [Charles J. Hopkins, gerente da Columbia no Brasil], que veio me pedir para permitir que a Columbia mandasse aqui um gravador de discos, pagando-me os direitos autorais pelas músicas que fossem de minha propriedade e como ele veio pedindo uma esmola e os discos iam ser simples, eu cedi. Uns dos ou três meses depois vieram dois técnicos e trouxeram 200 ceras para serem gravadas, emprestei-lhes minha sala de gravação, mesmo para ver os seus apetrechos e ajudei-lhes a arranjar uma banda e cantores, não os meus. Nunca vi uma gravação tão malfeita. Os discos eram baixinhos e foram um verdadeiro fiasco. (FRANCESCHI, 1984, p. 71)

E assim, no mesmo período em que a Victor, gravou a Columbia no Brasil seus discos de música brasileira nas séries B e Disco Brasileiro com exceção dos de Mário Pinheiro, o primeiro cantor brasileiro a gravar nos E.U.A. Franceschi56 também coloca que “À Columbia interessava apenas vender discos, parelhos e acessórios com preços determinados pelo mercado americano. Não se fabricava nada no Brasil.”. Assim sendo a atuação destas duas gravadoras estrangeiras nessa fase mecânica no Brasil se resumiam a possuir representantes e não fábricas nem filiais aqui, com a única intenção de lucrar com o processo de prensagem e vendas de discos, sem interferir diretamente na produção das gravações ou mesmo na distribuição dos discos industrializados. A concorrência com a Casa Edison, quando não acordada, também não era de todo desproporcional, como também consta em manuscrito autobiográfico de Figner57 de 1946:

Tive eu a notícia de que a Columbia estava tentando obter a exclusividade dos direitos autorais das diversas casas de música. Logo eu soube disso, peguei uns cem contos, e fui de casa em casa, de todas as editoras de música e adquiri todos os seus dos direitos autorais e os que iam adquirir nos próximos vinte anos. Todos passaram recibo provisório comprometendo-se a fazer a cessão por escritura pública. O que de fato fizeram. Fui a São Paulo e lá adquiri os direitos autorais só de uma das casas: Chiaparelli, se não me falha a memória. Em todo caso, já não havia perigo nenhum

55 FIGNER apud FRANCESCHI, 2002, p. 174.

56 FRANCESCHI, 1984, p. 71. 57 FIGNER apud FRANCESCHI, 1984, p. 71. 43

de me cortarem as asas. Aos autores, compreendendo o alcance, também daí em diante, com raras exceções, vendiam adquiri direitos de impressão, e a mim ou outros, o direito de gravação em discos.

Em 1913, segundo Franceschi (1984)58, o italiano Saverio Leonetti, registra sob o número 2230 na Junta Comercial de Porto Alegre o marca comercial do selo “Disco Gaúcho” para Casa “A Elétrica”, os discos inicialmente eram gravados no Rio de Janeiro por Figner, que também prensava nessa época prensava discos para a Casa Hartlieb da mesma cidade. Foram eles os pioneiros em selos fonográficos fora do eixo Rio – São Paulo. Mas é Leonetti quem no ano seguinte inicia a fabricação de discos, conforme anuncia o jornal Correio do Povo. A fábrica inicialmente chamava-se “Gaúcho” e chega a pensar discos para o selo Phoenix da Casa Edison de São Paulo de Gustavo Figner (irmão de Fred Figner) entre 1914 e 1918; começa também a abrir caminho para conquista de mercado na América do Sul, em especial na Argentina, Uruguai e Paraguai, lançando discos de artistas como Francisco Canaro, Augustin Barrios, Roberto Firpo, Gardel e Razzano. Em 1919 é ampliada e tem seu nome alterado para “Fábrica Phonográphica União”, segundo Verdana (2006)59, a fábrica também faz lançamentos pelos selos Era, Atlanta, Artigas, Tele-Phone e Rob Firpo até sua falência, decretada em 1923. Outra fábrica brasileira foi a Fábrica Popular - do famoso selo “Disco Popular” - com contrato registrado na Junta Comercial número 81.121 em 1920 por seus sócios proprietários: os portugueses Paulo Lacombe e João Baptista Gonzaga (João Baptista Fernandes Lage antes de ser adotado como filho pela compositora Chiquinha Gonzaga). Menos de dois anos depois a firma já se encontrava endividada, Lacombe se retira da sociedade e é registrada a firma individual J.B. Gonzaga, que funciona no mesmo prédio da anterior, também residência do proprietário e de Chiquinha Gonzaga. Há controvérsias quanto ao real grau de parentesco entre ambos, - mãe e filho ou cônjuges? - mas João Batista foi comprovadamente gerente do setor de Gravação da Casa Edison, e também um dos anunciadores das músicas nos discos (... disco para a Casa Edison, Rio de Janeiro...) juntamente com os cantores Bahiano e Eduardo da neves.

58 FRANCESCHI, Id. p. 92

59 VERDANA, Hardy. A eléctrica e os discos gaúcho. Porto Alegre: SCP, 2006. 44

Franceschi (1984)60 comprova o fim da “firma, fábrica e residência” anexando o recibo do pagamento do último aluguel de julho de 1923 e ressalta que, apesar da pouca duração, o selo lança artistas importantes como Francisco Alves e Sinhô, o grande sistematizador do nosso samba popular urbano. Lança também o selo Jurity. De outro selo de duração efêmera: Grand Record (de 1910 a 1913), Franceschi61 alega que as poucas informações oficiais a respeito não permitem comprovar se fabricam ou apenas gravam discos e que menos ainda se sabe sobre os selos Brazil-Phone e Imperador. Mas quem de fato inicia a fabricação de discos no Brasil, aliada ao capital estrangeiro, é a Casa Edison, pioneira dentro e fora do setor fonográfico em montar uma esquema de distribuição com filiais em todo o país e líder absoluta nas vendas. Em 1913 é construída no Rio de Janeiro a fabrica de discos Transoceanic Company, com nome de fantasia Fábrica Odeon - Rio de Janeiro, de propriedade da Internacional Talking Machine; apesar de Figner investir capital próprio em troca de exclusividade de comercialização. Franceschi62 descreve a Fábrica Odeon como possuidora do equipamento mais moderno da época, onze departamentos distintos, auto-suficiência industrial, 150 operários, capacidade de produção de até um milhão e quinhentos mil discos por ano operando com trinta prensas, “o que daria em média um disco a cada três minutos.” O autor ainda transcreve o contrato que resumidamente estipulava que Figner compraria o terreno e construiria o prédio A Internacional Talking Machine forneceria capital (150 contos de réis) para aquisição de maquinário, ambos seriam de sua propriedade assim com a titularidade das licenças e impostos a serem pagos. A Internacional pagaria a Figner um arrendamento pelo terreno (27 contos de réis), por prazo prorrogável a seu contento bem como o direito de exigir de Figner que lhe passasse a escritura, indenizando-a de seus custos com amortização de 20% da produção de discos. Caso decidisse suspender as atividades antes da amortização total pagaria ao credor em um prazo de seis meses. Ao mesmo tempo em que Franceschi atenta para o teor leonino do contrato e da “maneira sutil, mas extremamente enérgica” com que o domínio do capital internacional já naquela época se processava e exemplificava com a implantação da Fábrica Odeon no Brasil,

60 FRANCESCHI, 1984. p. 112.

61 Id. p. 81. 62 Id. p. 107. 45

por outro lado contextualiza a movimentação da matriz em direção ao Brasil como um fluxo de ordem menos econômica e mais política, em função da primeira grande guerra. O confisco dos bens das empresas alemãs em diversos países acirrou uma crise sem precedentes ao afetar companhias que eram o “centro e origem da produção fonográfica mundial para a maior parte do mundo”. Uma das saídas para evitar mais confiscos foi transformar as sucursais que operavam em países neutros em firmas com nomes e estatutos sociais nacionais. Segundo Franceschi (1984)63: “As Américas é que forneceram as bases de sustentação para a gradativa superação da crise, cirando inovações e modismos tanto tecnológicos como culturais. Observou-se novo vigor no mercado” e exemplifica a popularidade internacional alcançada por gêneros das Américas como o fox-trot, o maxixe e o tango. A indústria fonográfica internacional estabelece assim uma política - nesse primeiro momento - mais de salvaguarda do que de expansão de mercado.

Figura 3 – Registro de Firma J.B. Gonzaga (Fábrica Popular), fachada da Fábrica Savério Leonetti (União) e casa das prensas da Fábrica Odeon.

Fontes: VERDANA, Hardy. A eléctrica e os discos gaúcho. Porto Alegre: SCP. 2006 e FRANCESCHI, 1984. (SBAT).

63 FRANCESCHI, 1984. p. 93. 46

Coloca ainda o autor que, com essa necessidade de se desligar da dependência, industrial européia que faz com que os interesses se voltem par o mercado brasileiro, a instalação da fábrica Odeon foi assim a cadeia de produção do primeiro elo de ligação fisicamente instalado no processo cultural brasileiro, que não era então nacional, mas intimamente distrital. Utiliza então uma metáfora bastante curiosa ao retratar os polos culturais brasileiros não como irmãos, mas como primos “Da mesma família, mas com pouca intimidade”. Cita como um padrão na etapa de ligação destes polos a atuação do compositor e letrista Catulo da Paixão Cearense, que pretendendo exclusivamente o sucesso punha letra em músicas de aceitação independente de sua origem. “Aí então a família reuniu-se, mas sem perder o domicílio, o que é, em termos de hoje, dado importantíssimo”. Este papel da industrialização e do desenvolvimento na concepção do que viria a ser a identidade nacional do Brasil, foi abordado em vários momentos na obra de Roberto Schwarz (1977; 1987; 1999)64. Segundo o autor, desde a independência, havia uma discrepância entre o Brasil idealizado e o real, isso se devia ainda à mentalidade escravocrata e iria se perpetuar por muito tempo devido ainda às relações de trabalho e à falta de desenvolvimento e de um passo globalizante. Confrontando as visões de Schwarz e Franceschi, é possível identificar um componente aparentemente paradoxal neste início de industrialização do disco no Brasil. Primeiramente o indiscutível - e nem sempre abordado com a devida relevância - papel pioneiro do setor fonográfico na história da industrialização do país. Na década de 1910 o país praticamente só importava e nada produzia, em se falando de bens de consumo em escala industrial. Em segundo lugar o quanto a música brasileira de massa se estabeleceu de maneira concreta com elemento da identidade nacional. Até hoje pode-se dizer que somente o rock e o jazz, ainda assim em alguns guetos dos E.U.A. e da Europa conseguiram o alcance e o prestígio mundial conquistados pela música brasileira de massa, entendida aqui como a música feita com o intuito de ser gravada e vendida, ao contrário da música étnica e da música erudita.

64 Em especial em: SCHWARZ, Roberto. “Fim de século” in: Seqüências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 155-162. SCHWARZ, Roberto. “As idéias fora do lugar” in: Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977. p. 13-28. SCHWARZ, Roberto. “Nacional por subtração” in: Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 19-48. 47

Esse aparente paradoxo entre o atraso tecnológico e industrial do Brasil da época e o papel alcançado pela música brasileira de massa na identidade nacional pode ser considerado como uma espécie de aborto, não só na perspectiva de Schwarz como também da linha frankfurtiana, mencionada neste mesmo capítulo ao estabelecer a relação software versus hardware e forma versus conteúdo na produção. Este é um assunto a ser estudado com mais profundidade do que permite este capítulo de dissertação e que pode vir a ajudar a preencher um vácuo presente em muitas análises - mesmo as mais contemporâneas - entre e o que é dito sobre os que produzem música no Brasil e (também o que eles mesmos dizem) sobre o chamado mercado fonográfico brasileiro, colocado como elemento obscuro, hora como vilão, hora como satã, mas quase sempre como um palavrão. O mercado fonográfico ainda é visto sob uma ótica frankfurtiana (que renomeia, mas insiste na tecla da dicotomia cultura superior versus cultura de massa) da qual foge uma análise menos dogmática do processo de industrialização da música no Brasil. De qualquer forma é fato que, nos primórdios da Fábrica Odeon no país, praticamente não havia interferência em nível de recrutamento de artistas e escolha repertório e de arranjos. Ainda citando Franceschi65:

O início dos anos vinte, testemunhando a recuperação do pós-guerra, encontrou o Brasil como verdadeira ilha rodeada de investimentos comerciais e culturais por todos os lados. Defendemo-nos, absorvendo e transformando esta avalanche de influências, e entramos na Segunda década deste século com surpreendente produção criadora.... o samba, ainda amaxixado... tornara-se gênero musical. (FRANCESCHI, 1984, p. 112)

A construção do samba como emblema da identidade nacional enquanto típico produto da música de massa e a influência da gravação em disco neste processo foram melhor estudados em autores como SILVA (2006)66 e SANDRONI (2001)67, mas é ainda FRANCESCHI (1984)68 quem aponta dois rastros do teor da internacionalização da indústria

65FRANCESCHI, 1984. p. 112

66 SILVA, Flávio. O samba no Rio de Janeiro: entre “tradição” e “industrialização”. In: ANAIS DO III ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ETNOMUSICOLOGIA. São Paulo: ABET, 2006. 67 SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro. 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/ UFRJ, 2001. 68 SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro. 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/ UFRJ, 2001. 48

do disco no Brasil naquele momento: o fato dos catálogos internacionais ignorarem totalmente a produção brasileira e o fato de que mesmo após a instalação da Fábrica Odeon ainda Fred Figner “ Para a maioria simbolizava a figura do dono e assim prestavam-se-lhe todas a deferências.” Todos conheciam os donos da voz, mas não a voz dono, porque havia agora um novo dono, mas ainda morava longe.

2.6 AS PATENTES COMO TENTATIVA DE FERRAMENTA DE CONTROLE SOBRE A TECNOLOGIA E O MERCADO

Franceschi (2002)69 também relata que a violação da mesma patente da agulha flutuante, que causara litígios entre a Columbia e Thomas Edison, é alegada em novas batalhas judiciais já no início da industrialização do disco como suporte. Nessa ocasião a Columbia e a Berliner Gramophone Company, fundada por Emile Berliner – inventor do disco plano - estão em uma fase acirrada de concorrência entre seus produtos, apostando a Columbia em suas campanhas publicitárias nas vantagens do cilindro (ainda não fabricava discos) como suporte de gravação e não só de reprodução e na possibilidade do consumidor gravar e produzir as vozes dos amigos e membros da família. Em meio a essa batalha. Berliner em 1896 contrata Frank Seaman, um agente de anúncios que desmembraria sua empresa em três: além da fabricante de discos (Berliner Gramophone Company) uma empresa cuida dos controles das patentes (United States Gramophone Company) e uma terceira dos anúncios de vendas (Seaman National Gramophone Company). Como, na ocasião da ação, a Columbia consegue um parecer da corte de Nova Iorque que impede a fabricação de gramofones e discos pela Berliner (através do advogado Philip Mauro), a estratégia de resposta é a Seaman National Gramophone Company criar a Universal Talking Machine Company como subsidiária para fabricar gramofones sob encomenda em grandes quantidades para a Berliner. Aproveitando-se da situação, Frank Seaman cessa com as encomendas e faz um acerto com a Columbia, confirmando a infração para manter imobilizada a empresa em que trabalhara. Consegue assim permissão da concorrente para lançar o Zonophone, aparelho

69 FRANCESCHI, 2002, p. 79. 49

concorrente do Gramofone, através da Universal Talking Machine. É a primeira grande “puxada de tapete” da indústria do disco. A próxima empresa a se indispor judicialmente com Seaman em 1901 é a Consolidated Talking Machine, cujo proprietário Elderige Jonhson desenvolvera e negociara com Berliner o mecanismo de aparelho corda para funcionamento do gramofone. Ao tentar impedir que a concorrente fabrique os aparelhos e use o nome gramofone - alegando que esta se trata de uma subsidiária disfarçada da empresa impedida - Seaman não consegue paralisar a produção da Consolidated, mas somente impedir o uso do nome. O novo nome escolhido então é Victor Talking Machine, supostamente comemorando a vitória judicial. 2.6.1 A patente brasileira 3465 para gravação de discos dos dois lados

Ao contrário da Casa Edison, quase todos os concorrentes até a década de 1910 produzem discos com gravação em apenas uma das faces. Este detalhe normalmente apontado como mera curiosidade na verdade atenta para uma questão bastante recorrente na história da indústria fonográfica: o embate entre os aspectos tecnológico, mercadológico e legal. A velocidade de rotação dos discos, que inicialmente varia entre 76 e 80 RPM e mais tarde é padronizada em 78, fazia com que cada disco comportasse em média 3 minutos de gravação em cada lado, o que na maioria dos casos era preenchido com uma só música no tamanho padrão de 10 polegadas. A gravação dos dois lados significa assim um produto com o dobro de duração. Entretanto o fato de apenas alguns fabricantes utilizarem este diferencial não se deve a impossibilidade tecnológica, mas sim a existência de uma patente proprietária obtida pelo engenheiro suíço Adhemar Napoleon Petit que negocia seu uso apenas para licenciar as empresas fabricantes. Segundo Franceschi (2002)70 no Brasil essa patente é negociada através da Internacional Talking Machine com Fred Figner que a registra com o número 3465 e lhe dá exclusividade para produzir os “discos duplos” ou “double side”. Figner é concessionário da patente de 1901 até 1908, quando passa a titular. Em 1910 lhe é concedida a propriedade pela Diretoria Geral de Indústria e Comércio. Segundo Franceschi (2002), essa patente é ao menos uma vez ferida: pela Columbia em sua série B. Os discos são fabricados na verdade pela American Graphophone Company, célula mater do grupo Columbia, que alega estrategicamente as duas serem entidades comerciais deliberadamente diferentes e a American detentora das patentes brasileiras 6165 e 6166, que

70 FRANCESCHI, 2002. p. 79. 50

privilegiam um processo de fabricação de discos de materiais diferentes e impressos dos dois lados. A batalha culmina na busca e apreensão de mais de 2.000 discos na Casa Standard de A. campos e Cia., representante da American Graphophone Company, e também na anulação das patentes brasileiras 6165 e 6166. É bastante claro que os atores nestas disputas judiciais ainda são apenas as empresas fabricantes dos aparelhos reprodutores e suportes físicos patenteados, sem envolvimento dos compositores e dos consumidores de música. 51

Figura 4 – Título de propriedade da Patente brasileira 3465.

Fonte: Franceschi (2002). 52

2.7 DISCO PLANO DE GRAVAÇÃO ELÉTRICA

2.7.1 Codificação do sinal mecânico em corrente elétrica

A inovação mais significativa e de maior impacto tecnológico na fase do disco analógico foi o sistema elétrico de gravação. Isto não significa apenas um diferencial na manufatura da indústria do disco, mas a codificação da onda sonora em corrente elétrica. Ao contrário do que ocorria no sistema mecânico o som gerado é transformado em sinal de corrente eletromagnética e depois amplificado no momento da gravação e da reprodução, surgem equipamentos de captação e amplificação como o microfone e os alto-falantes. O processo foi descrito de maneira bem acessível em artigo publicado na época pela revista Phonoarte71 sobre “os aperfeiçoamentos do phonographo”:

Esse progresso de qualidade, como se sabe, deve-se a aplicação cuidada enregistramento electrico. Antigamente instalava-se no “studio” um grande porta voz ou corneta, que devia captar directamente os sons produzidos, afim de os transmitir a uma membrana que esse mesmos sons faziam vibrar. Estas vibrações eram então impressas sobre um disco de cera. O processo electrico é muito superior ao primeiro. Por este systema, os sons são transformados, em um microphone normal, em energia electrica, que transmitida a uma sala, onde, depois da amplificação, ela se transforma novamente em energia mecanica. A distância entre o auditoria e esta sala, não desempenha nenhum papel, o que consiste já um progresso. [...] todas as vantagens do enregistramento moderno de discos, ficariam no entanto illusórias, se não tivesse também empregado nos phonographos a reprodução electrica. Até pouco tempo, empregava-se somente o reproductor mecanico (diphfragama de mica e, depois, de membrana metalica), que consiste, em principio, numa membrana que entra em vibração sobre a acção de uma agulha; a energia sonora assim produzida, passa depois para um pavilhão ou camara acustica. Na reproducção electrica, um captor (pick-up) phonographico, substitue a membrana do diaphragma. Neses captor a vibração de uma armadura, produzida pelas vibrações da agulha nas ranhuras dis discos, produz fracas tensões electricas em uma bobina, as quaes são transmittidas para um amplificador.

Esta nova tecnologia72 permite maior apuramento e qualidade sonora e tem como impacto normalmente mais abordado o estético com o surgimento novas maneiras de cantar como a do cantor Mário Reis, sem a necessidade de tão alto volume de voz. O sistema de gravação mecânica impõe limites que fazem predominar intérpretes com mais potência de

71Título de propriedade da Patente brasileira 3465.

72 Para uma descrição mais tecnicamente detalhada do processo elétrico de gravação enquanto evolução na época, consultar:

PERCY WILSON, M. A. Modern Gramophones and Electrical Reproducers. London: Cassel and Co Ltd, 1929. 53

volume em especial tenores interpretando árias de ópera (Enrico Caruso, por exemplo, grava exclusivamente neste sistema e chega a alcançar a cifra de um milhão de cópias vendidas com Vesti la Giuba da ópera I pagliacci de Leoncavalo). (PERSY WILSON, 1929). No Brasil, os tenores (Mário Pinheiro, Arthur de Castro e os iniciantes Francisco Alves e Vicente Celestino) dividem espaço com as bandas (em especial a Banda da Casa Edison e a Banda do Corpo de Bombeiros regida pelo Maestro Anacleto de Medeiros).

2.8 A TECNOLOGIA COMO FATOR LIMITANTE DE MERCADO E FIXAÇÃO DAS TRASNACIONAIS NO BRASIL

Do ponto de vista mercadológico os efeitos alteram totalmente o panorama do mercado fonográfico no Brasil, pois a tecnologia é desenvolvida por gravadoras estrangeiras dentro de um contexto internacional extremamente competitivo. Desenvolvido inicialmente pela Columbia Americana em 1925 que realiza a primeira gravação por este sistema com o pianista Art Gillam, o lançamento comercial do primeiro disco de gravação elétrica é feito no mesmo ano pela Victor. No Brasil é implantado em 1927 pela Odeon com as músicas Albertina e Passarinho do má, gravadas por Francisco Alves no disco Odeon 10.001, mas em nível de divulgação a chegada da nova tecnologia ao Brasil se dá um ano antes, conforme descreve Tinhorão73:

Quando, porém, a partir de 1924, nos estados unidos, os engenheiros da Victor Talking Machine partiram para nova etapa no campo das gravações e reprodução de sons, criando em primeiro lugar as vitrolas ortofônicas, e mais tarde as chamadas eletrolas, “acionadas eletricamente”, a indústria brasileira perdeu impulso, e o próprio Frederico Figner ia ser reduzido em pouco tempo à condição de mero comerciante de discos, máquinas de escritório e artigos musicais. [...] Para mostrar que, a partir desse fim da década de 1920, seria impossível competir com os grandes centros industriais, que logo monopolizaram o mercado mundial de som, a Victor Talking Machine Corporation, sediada em Candem, Nova Jersey, alugaria em meados de 1926 nada menos que o Teatro Phoenix, para lançar, no Rio de Janeiro, sua mais fantástica novidade: a Vitrola Ortofônica Auditorium. [...] Para assistir a esse aparatoso lançamento do novo aparelho, anunciado como capaz de reproduzir fielmente o “som original, qualquer que fosse o diapasão ou volume”, os comerciantes Otto Cristoph e Leon e Bensabat, representantes da Victor no Brasil, através de sua firma J. Cristoph Co., encheram a platéia do teatro de convidados e , colocando o enorme móvel da vitrola ortofônica no centro do palco, ligaram o aparelho a todo volume. Diante dessa vitrola provida de um corneta de dois metros e meio de altura por três metros de fundo, que transformava as ondas

73 TINHORÃO, Op. cit. p. 29. 54

sonoras em vibrações elétricas, e as devolvia após passar por uma câmara acústica podendo “tocar um programa inteiro, durante uma hora sem interrupção e sem ser necessária qualquer intervenção” (os discos caíam automaticamente) os concorrentes brasileiros nada podiam fazer. Com a era das gravações e os discos obtidos com sistema elétrico, a partir de 1927, vão desaparecendo as velhas marcas nacionais, e as patentes Odeon, revelando-se inúteis ao velho pioneiro Frederico Figner, permitem que a própria matriz européia se estabeleça no Brasil, para concorrer a partir de 1930 com as duas rivais norte-americana: a Victor e a Columbia. (TINHORÃO, 1982, p. 29)

Franceschi (2002)74 contextualiza o estabelecimento da Odeon no Brasil e a perda da representação por Figner dentro de um processo que se inicia em 1919 com a formação da Transoceanic Trading Company sediada Holanda pela Carl Lindstron com a finalidade de estabelecer filiais nas Américas. A licença para funcionamento no Brasil é concedida em 1924, mesmo ano em que a Carl Lindstron é encampada pela Transoceanic, que por sua vez no ano seguinte é encampada pela Columbia de Londres. O autor relaciona o fato com o advento da nova tecnologia: “Uma das razões dessa enorme fusão foi deter o controle do sistema de gravação elétrica inventado pela Western Eletric. Um prenúncio da EMI-Odeon, constituída em 1931. Em seguida o autor descreve os termos de contrato estabelecidos entre Figner e a Transoceanic com “normas de conduta comercial estabelecidas flagrantemente parciais e possessivas para a Transoceanic.” A empresa fica, a partir de então, com a propriedade exclusiva das ceras gravadas, galvanos e matrizes, bem como os direitos de decisão sobre confecção de repertórios de gravações nacionais ou internacionais, de comercialização exclusiva de todo o acervo da Casa Edison por tempo indeterminado. Em 1932 a Transoceanic confisca de Figner os direitos de distribuição (exceto nas cidades de Rio de Janeiro e Niterói), o estúdio de gravação e até mesmo o contrato de gravação com Francisco Alves, que passa a gravar sob o pseudônimo de Chico Viola no selo Parlophon, com que Figner constitui sua gravadora entre 1928 e 1932, após a entrega do selo Odeon. Por um lado, a indústria fonográfica passa a ter mais investimentos e se profissionaliza, mas por outro tem alterações significativas em sua identidade. Após a Casa Edison perder a representação e a fábrica de discos da Odeon, se estabelecem aqui em 1929 as matrizes da Columbia e da Victor (comandada pelo norte-americano Leslie Evans) que até então haviam atuado apenas licenciando selos e vendendo sua produção durante um breve período (1908-1912).

74 FRANCESCHI (2002), p. 236. 55

Essa transição das atividades da Columbia no Brasil é melhor detalhada em artigo publicado na Revista Phono-Arte (1929)75:

Aproximadamente, na época m que a gravação electrica revolucionou os meios phonographicos, isto é, já uns tres anos, o publico brasileiro, quasi que tinha o conhecimento da arte phonographica dividido entre duas marcas de discos. De um lado para a Odeon, onde sabia encontrar toda sorte de musica nacional. De outro para a Victor, que lhe oferecia um largo campo para escolha de discos artisticos de musica popular estrangeira... Foi quando a Columbia apareceu, para, rapidamente, se tornar muito conhecida; Entrou pela mão de um dos nosso mais competentes commerciantes phonographico , a Optica Ingleza.

Esta casa, obteve a representação dos productos Columbia e a sua importação, a principio pequena, tomou culto com extraordinária rapidez... Aos principios do anno passado, a Optica Ingleza por motivos commerciaes, deixou de ser a única importadora dos productos Columbia.

Dahi até agora, precisamente durante um anno, os discos e phonographos da Columbia, foram importados por diversos estabelecimentos brasileiros, mas, sem caracter fixo, apenas para satisfazer do já imenso público da Columbia.

[...] Enquanto, porém a Columbia passava por um ano de insucesso nas praças brasileiras, preparava-se ella commercialmente para retomar a sua excelente posição, dando-lhe ao mesmo tempo um novo e formidável impulso. É que vemos agora definitivamente formada:

NOVA ORGANIZAÇÃO COLUMBIA: A Columbia há muito tempo projectava a gravação e fabricação de discos nacionaes. E, presentemente, é o que ella realiza. Como seu distribuidor e representante geral, para todo o brasil, conta agora a fábrica com o solido concurso da firma Byington & Cia, cujas innumeras filiaes se espalham do norte ao sul do paiz.

A gravação de discos nacionaes, de musica brasileira e como o concurso de artistas nossos, foi o principal objetivo da Columbia, uma vez terminados os seus entendimentos com a firma Byington & Cia.

[...] A columbia tem “studio” de gravação montado na capital de S.Paulo, num novo edificio construido para esse fim, proximo à aquelle em que firma Byington & Cia, já se achava installlada. Ahi é a sua séde de concentração de todos os artistas nacionaes, que vem sendo contractados diariamente. A fabricação vem sendo feita em nossa cidade, para onde são mandadas as “matrizes” dos discos gravados em S. Paulo.

[...] Ahi tem, portanto, os leitores, explicada a procedencia dos discos brasileiros da Columbia, cuja primeira série acaba de ser proposta à venda. (REVISTA PHONO- ARTE, 1929, p. 04).

Segundo pesquisa realizada por Camila Koshiba Gonçalves à Junta Comercial do Estado de São Paulo a Columbia Brazil Phonograph Company obtém o registro NIRE 35300307887 no ano de 1929 com um capital inicial de 50.000 dólares (ver figura seguinte).

75 REVISTA PHONO-ARTE. A Columbia no Brasil. n. 14, 28.fev.1929, p. 04. 56

Fonte: Camila Koshiba Gonçalves.

Já a Victor Talking Machine Company of Brazil obtém o registro NIRE 35300312341 no ano de 1928 com um capital inicial de 25.000 dólares com o objeto de discos, máquinas, aparelhos e ferramentas para produzir e registrar sons (ver figura na página seguinte) embora só iniciasse a produção de discos brasileiros em agosto de 1930. 57

Figura 5 – Registro da Victor Talking Machine Company of Brazil na Junta Comercial do Estado de São Paulo.

Fonte: Camila Koshiba Gonçalves.

A Revista Phono-Arte (1929)76 também noticiou a instalação da Victor no Brasil:

Servindo não só o nosso mercado, como o de toda a America do Sul, a Companhia Victor, a exemplo do que há fizera em e Santiago, já vinha há bastante tempo com o firme projecto de installar uma sua filial em nosso meio, para, editando a nossa música, melhor merecer a preferência de um público, que tão symphatico sempre lhe foi.

Formulando o projecto, a empresa americana, enviou incontinenti para a nossa terra um grupo de intelligentes syndicos, os quaes não titubearam em julgar o nosso mercado como um dos mais promissores.

Vultuosos capitaes, bem como gente competente, foram immediatamente destacados para os nossos maiores centros, tendo sido os trabalhos de installação e estudos iniciados n capital de S. Paulo, em maio do anno passado.

Um anno e meio gastou portanto a Victor em organização para emfim se apresentar ao nosso público. Esses longos dezoito mezes não foram porém desperdiçados.

76 REVISTA PHONO-ARTE. Discos Victor Brasileiros. n. 32, 30. nov. 1929, p. 25. 58

[...] se acha dividida entre a nossa e a capital paulista, os dous maiores centros de cultura do paiz, na quaes a conpanhia tem installados, o “studio” de gravação e a fabrica.

No Rio, portanto é que se acha o “STUDIO”, sito no terceiro pavimento do predio n. 15 da Rua do Ouvidor

[...] À sede paulista, são enviadas as matrizes das gravações effectuadas em nossa capital, sendo lá então fabricados os disco, que o paiz inteiro já acolheu. É na cidade de S. Paulo, portanto, que se acha installada a fabrica Victor, sita à Rua maestro Cardim n. 1756, a qual tem capacidade para produzir 4.000 discos por dia. Essa cifra é uma parcella animadora para o futuro da Victor no Brasil. O trabalho dos directores da Victor, que não tem sido pequeno, visa explorar com um cunho sempre elevado, tanto a nossa musica popular, como a das grandes figuras do musica brasileira.” (REVISTA PHONO-ARTE, 1929, p. 25).

Durante mais de dez anos atuam no Brasil, Paulo estas três gravadoras apenas com a efêmera existência dos selos Parlophon, Brunswick, Artephone e Brazilphone no final da década de 20. O fato é relatado por Gonçalves77 que sintetiza os dados do período em um quadro construído através de levantamento realizado na Discografia Brasileira 78 RPM.

Figura 6 – Dados do período final da década de 1920.

Fonte: Discografia Brasileira 78 RPM.

O quadro acima mostra que, entre 1902 e 1908, apenas a Zon-0-phone e o Odeon atuaram no país, com Figner à frente da produção dos dois selos; entre 1908 e o início dos anos 20, houve sete selos operando no país; durante a década de 20, apenas o Odeon, e os pequenos selos Popular/Jurity e Imperador atuaram, já que todos os outros selos da era mecânica haviam deixado de produzir matrizes nesta época. Entre 1927 e 1932, no início da fase da gravação elétrica, quatro selos 77 GONÇALVES, Op. cit. p. 38. 59

estrangeiros e três nacionais implantaram suas fábricas e estúdios no Brasil; a partir de 1932, restaram no mercado brasileiro apenas três selos estrangeiros: Columbia, Victor e Odeon. A faixa amarela mostra o percurso de Fred Figner ao longo dos anos em que gravou matrizes brasileiras.

Este panorama só começa de fato a se alterar em 1946, quando a Columbia deixou de produzir discos no Brasil e a Byington lança a marca Continental. Outras gravadoras brasileiras surgem na fase final do 78 RPM: Sinter (inicialmente um selo da Capitol), Elite Especial, Todamerica, Mocambo (em Recife, a primeira significativa fora do eixo Rio-SP) e Star (mais tarde Copacabana). Em 1964 o sistema sairia do mercado. Portanto é um fato inegável que, após a chegada da gravação elétrica no país, o panorama da indústria fonográfica nacional se alterou culminando com o mercado restrito por mais de uma década à atuação de três multinacionais. Ao contrário da formação do mercado nacional na fase das gravações mecânicas, este é um período que ainda não foi devidamente estudado e não poderia ser esgotado em capítulo desta dissertação, entretanto, está em nosso alcance indicar possíveis caminhos. Na já mencionada relação entre industrialização e identidade nacional do Brasil, Schwarz (1999)78 acredita que é preciso voltar os olhos para o mundo para saber quem somos neste processo. Para isso não bastava o Marxismo nacionalista, pois segundo o próprio Marx, a questão da igualdade não é nacional e a desigualdade é a base do capitalismo internacional: “Ora, alguém imagina Marx escrevendo O Capital para salvar a Alemanha?79”. Em “Um seminário de Marx” o assunto é analisado dentro do caso de um grupo de estudos no qual acadêmicos no final dos anos 50 analisavam pelo prisma científico O Capital. Segundo Schwarz, o grupo (que contava entre outros os quais Fernando Henrique Cardoso, que anos mais tarde, trabalharia na Teoria da Dependência) teve como uma de suas principais falhas não atentar mais devidamente para às concepções sombrias de Weber e da Escola de Frankfurt. Essa relação do capitalismo moderno com as peculiaridades da ciência moderna, Weber (2001)80 retoma concebendo-a sob a forma de dependência. O autor defende que

78 SCHWARTZ, 1999. p. 86-105.

79 SCHWARTZ. Id., p. 104

80 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2001. p. 12. 60

somente na civilização ocidental surgiram fenômenos culturais dotados de um desenvolvimento universal em seu valor e significado. Exemplifica isso na ciência, nas artes, na literatura, na organização dos grupos políticos e sociais, até chegar ao capitalismo, que considera a força mais significativa de nossa vida moderna. Segundo ele, a busca do lucro já existia em outras épocas e civilizações, mas não a procura de um lucro sempre renovado em que a aquisição capitalista racionalmente buscada é ajustada em cálculos para base de capital, onde se baseia toda a ação das partes das operações racionais. O capitalismo na era moderna ocidental só teria alcançado seu significado atual graças à sua associação com a organização racional do trabalho livre. Dois fatores viabilizaram a moderna organização racional da empresa: a separação da empresa do trabalho doméstico e a criação de uma contabilidade racional. Essa racionalidade dependente do cálculo é que, por sua vez, implicaria numa dependência das peculiaridades da ciência, em especial das exatas, cujo desenvolvimento teria recebido importantes impulsos dos interesses capitalistas ligados á aplicação prática na economia. Essa utilização técnica do conhecimento e o desenvolvimento de suas possibilidades teriam seu estímulo decorrente da estrutura social do ocidente que conta como fatores importantes as estruturas racionais do direito e da administração que viabilizaram a empresa racional com iniciativa particular, capital fixo e baseada num lucro seguro. Já Marcuse81 ao conceituar sociedade unidimensional, atribui seu autoritarismo à organização da sua base tecnológica, que institui formas de controle e coesão social fazendo a personificação da razão para o bem de todos os grupos e interesses sociais, pois o aparato técnico de produção e distribuição determina as necessidades e aspirações sociais. A racionalidade tecnológica é o único padrão e guia do planejamento e desenvolvimento dos recursos disponíveis para todos e, como sistema de dominação, a tecnologia não pode ser neutra, isolada do uso que lhe é dado. O padrão de pensamento e comportamento unidimensional surge num contexto onde os produtos manipulam e doutrinam, não mais como publicidade, mas como um estilo de vida, pois o sistema é vendido como um todo pelo aparato produtivo e sua produção. A sociedade unidimensional altera a relação entre o racional e o irracional e o impacto do progresso transforma a razão em submissão aos fatos e à capacidade dinâmica de produzir mais e maiores fatos ao mesmo tempo.

81 MARCUSE,Op. cit. 61

Outros autores pontuam melhor a questão da internacionalização ou mundialização da indústria fonográfica, sem no entanto focar na época que nos interessa. Flichy82 coloca que, embora muitos autores considerem a internacionalização da produção iniciada nos princípios dos anos sessenta, o feito multinacional se pôs em marcha entre o final do século XIX e o período entre as grandes guerras mundiais. O antigo sistema que contrapunha metrópoles e colônia foi sendo substituído por oura divisão que integra em um mesmo sistema mundial as economias de centro e as da periferia. Identifica o autor diferentes elementos do processo de internacionalização: internacionalização do produto (em nível principalmente da fixação de normas), internacionalização da produção (que pode tomar diferentes formas) e internacionalização da circulação de mercadorias. As atividades de prensagem e distribuição se mostravam vantajosas à de exportação e coloca que somente a EMI contava com trinta filiais nos anos setenta, quando as multinacionais reunidas tinham uma participação de 76% no mercado fonográfico Brasileiro. O trabalho já citado de Dias83 se direciona mais à indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura através do estudo do processo de produção musical. A autora coloca que, com o advento das gravações elétricas, as disputas pelo monopólio de software e hardware determinam a participação real no mercado mundial. Descreve o período de grandes fusões (Columbia Européia com Pathé e Gramophone Inglesa formando a EMI, Victor com RCA, Colúmbia americana com CBS, Deustche Grammophon com Telefunken e Siemens formando a Polydor e Gramophone Francesa com Philips formando a Phonogram)84 e constrói um quadro baseado em Flichy em quem se baseia sua argumentação assim como em Ortiz. De Ortiz85 ressalta que, se a indústria fonográfica mundial que em sua expansão do modo de produção global tem como estratégia prospectar mercados locais, estas chamadas sociedades do capitalismo periférico gradualmente se inserem na lógica da modernidade, fundamentada na formação de um mercado nacional e internacional de bens culturais. Quem mais pontualmente contextualiza a questão é Gonçalves (2006, p. 39)86:

82 FLICHY, Op. cit. p. 180-200.

83 DIAS, Op. cit. p. 43-44. 84 DIAS, Op. cit. p. 43-44. 85 ORTIZ apud DIAS, Id. p. 43-44. 86 62

Na realidade, o que estava em jogo para a Odeon – e para as demais companhias fonográficas nos Estados Unidos ou na Europa – eram imensas parcelas do ainda pouco explorado mercado latino-americano, num contexto de crise econômicas e bruscas quedas nas vendas em seus países-sede, e a séria concorrência do rádio. A penetração dessas empresas no Brasil é uma tentativa de escapar dessa crise, e a gravação elétrica, uma resposta decisiva aos amplificadores radiofônicos, que utilizavam a eletricidade desde o início dos anos 20 e reproduziam sons com qualidade muito superior aos fonógrafos e gramofones mecânicos.

O que se depara desta questão da alteração do panorama do mercado brasileiro são dois fatores, um externo e um interno à instalação das transnacionais no Brasil: a situação de crise mundial no mercado fonográfico na época e o desenvolvimento da tecnologia de gravação elétrica. O papel da tecnologia nesse fenômeno de concentração de know-how encontra precedentes sob o termo monopólio na referência que Postman faz a Innis (1999, p. 24)87:

Harold Innis, o pai dos estudos da comunicação moderna, falou repetidas vezes dos “monopólios do conhecimento” criados por importantes tecnologias. Ele referia-se precisamente... aqueles que tem o controle do funcionamento da uma tecnologia particular acumulam poder e, de maneira inevitável, formam uma espécie de conspiração contra aquele que não tem acesso ao conhecimento especializado, tornado disponível pela tecnologia. Em seu livro The Bias of Comunication, Innis oferece muitos exemplos históricos de como uma tecnologia nova “dissolveu” o monopólio de um conhecimento tradicional e criou um novo, presidido por um grupo diferente. Uma outra maneira de dizer isso é que os benefícios e déficits de uma tecnologia nova não são distribuídos por igual. Há, por assim dizer, ganhadores e perdedores.

Pensando em termos da Indústria fonográfica brasileira, pode-se afirmar que como perdedores ficaram os fabricantes de discos nacionais, em especial a Casa Edison de Fred Figner que, conforme verificamos atuava de maneira muito majoritária, quase próxima do conceito de monopólio utilizado pelo autor, até ser eliminado pelas concorrentes Odeon, Victor e Columbia. No entanto a dissolução do seu quase monopólio não se deu por falta de acesso ao conhecimento especializado, pois Figner utilizou a gravação de elétrica em seu selo Parlophon, entre 1928 e 1932, sua eliminação foi fruto da impossibilidade de competir financeira e administrativamente, conforme Gonçalves88:

GONÇALVES, Op. cit. p. 39. 87 INNIS apud POSTMAN, N. Op. cit. p. 24. 88 GONÇALVES, Op. cit., p. 39. 63

No Brasil, o selo Odeon inaugurou a fase da gravação elétrica em 1927 após dissolver suas conexões com Fred Figner. A gravadora não encontrou dificuldades para eliminar Figner do mercado, já que o “pioneiro da fonografia brasileira” não tinha condição financeira nem estrutura administrativa para negociar patentes, contratos e concessões com a maior empresa fonográfica européia. Organizada e disposta a aumentar lucros, logo ao assumir seu posto, a gravadora ampliou o cast de artistas e diversificou o repertório, mas manteve muito da produção do período da gravação mecânica. (GONÇALVES, 2006, p. 39).

Franceschi (2002)89 também reconhece a mudança de cast e manutenção da forma de produção e exemplifica citando trecho de um carta do arquivo Parlophon de 15 de outubro de 1932 escrita a Figner pelo Maestro Eduardo Souto, diretor artístico da Casa Edison desde 1929:

Atendendo à velha e sólida amizade que há longos anos temos mantido, lamento de coração as circunstâncias que o obrigam a mudar os rumos da sua seção de discos, à qual vinha prestando os meus melhores esforços, há mais de três anos, como empregado de sua importante casa, na qualidade de direto artístico da dita seção.

Ciente de que, a começar de 15 de novembro p.f., V.S. passará os encargos de gravação à Transoceanic Trading Company, com a qual terei que trabalhar coma na mesma função que venho exercendo em sua Casa, concordo cm essa deliberação e muito lhe agradeço o empenho que manifestou àquela Companhia no sentido de minha permanência no dito cargo. (FRANCESCHI, 2002, p. 236).

Além do caso de Eduardo Souto, Gonçalves (2006) enumera outros nomes contratados para a profissionalização das gravadoras multinacionais, como é o caso do maestro Gaó (Odmar Amaral Gurgel) também diretor artístico da Columbi e do compositor Rogério Guimarães, diretor artístico da Victor. A autora coloca que estes “cumpriam a importante função de mediar a relação entre a empresa fonográfica, que dava os primeiros passos para sua implantação no Brasil, e o mercado musical local.” e que, como o empreendimento era vital e exigia cuidado e planejamento, as empresas recrutaram profissionais com experiência anterior e enviaram ao Brasil “um grupo de inteligentes síndicos” e pessoal especializado no “numeroso staff especializado das gravadoras”. Exemplifica o processo citando os vários profissionais de cada uma delas, da Victor: Barão Lothar von Ziegesar (gerente-geral), W. G. Ridge (seu assistente direto e principal responsável pela implantação da fábrica no Brasil), John Penninger e Leslie Evans (engenheiros técnicos gravadores) e John Farlow (superintendente da fábrica). Da Columbia: John Lilienthal (diretor geral) e Wallace Downey (supervisor artístico).

89 FRANCESCHI (2002), p. 236. 64

Dessa maneira, podemos concluir que o impacto da tecnologia de gravação elétrica sobre o mercado fonográfico brasileiro não se deu por uma questão de acesso, como preconizaram Postman e Innis. Conforme já detectado por Gonçalves e Franceschi, o impacto maior foi de ordem mercadológica. A inovação tecnológica funcionou como um pivô no processo de internacionalização que culminou na implantação das multinacionais no Brasil nesta fase e o patamar de competição entre elas mudou, gerando uma demanda de requisitos de ordem financeira administrativa que acabaram por eliminar do mercado as empresas nacionais. A tecnologia funciona assim como um fator limitante de ordem interna às companhias que alteram o mercado que, por sua vez, vem agir externamente. Essa relativização do conceito do impacto da tecnologia encontra precedentes teóricos em Levy e Braudel. Levy (1999)90 critica o conceito de impacto tecnológico, a começar pela metáfora, prevenindo não avaliar a pertinência estilística de uma figura de retórica, mas sim esclarecer o esquema de leitura dos fenômenos causados pela metáfora do impacto. A idéia da tecnologia como um projétil e a cultura ou a sociedade como um alvo é rejeitada pelo autor pelo fato de parecer que as técnicas viriam de outro planeta de máquinas estranho a toda significação e qualquer valor humano. Defende ele a idéia de que são as técnicas provenientes da atividade humana e que seu uso constitui, assim como a linguagem e as instituições sociais a humanidade como tal. Defende ainda que a técnica não age por vontade própria, nem tenha efeitos distintos ou exista independentemente e separadamente da sociedade e da cultura percutida por um agente exterior, mas sim que é um ângulo de análise dos sistemas sócio-técnicos globais e um ponto de vista que enfatiza a parte material e superficial dos humanos. Segundo o autor as atividades humanas constam de interações entre pessoas e o mundo material, natural e suas artificiais as idéias e representações que inventam, produzem e utilizam os objetos técnicos. A técnica seria produto da cultura e sociedade e não fator de impacto, pois as relações não são estabelecidas entre estas entidades, mas sim entre atores humanos. Uma técnica seria produzida dentro de uma cultura condicionando sua sociedade, não a determinando. Uma mesma técnica poderia ser aplicada a conjuntos culturais diferentes, pois os fenômenos culturais e sociais não obedecem ao esquema de que um efeito é determinado por suas causas e poderia ser produzido a partir delas.

90 LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo. ED.34, 1999. 65

Ao contrário de Marcuse, Levy (1999) acredita que dependeria dos contextos, usos e pontos de vista, os efeitos de uma técnica serem positivos ou negativos (e nunca neutros). Por outro lado afirma que seria ilusório acreditar no direcionamento do devir de uma nova tecnologia. Autores contemporâneos vieram a questionar o conceito de impacto tecnológico e atacar as bases do que chamam de determinismo. Braudel (1979)91 fazendo uma análise histórica da evolução da artilharia, imprensa, navegação e transportes aponta para o atraso e a lentidão da ação das inovações tecnológicas ao longo da história. No fato de uma civilização “herdar” de uma outra os conhecimento e princípios de uma técnica não desenvolvida o autor enxerga que as sociedades determinam o desenvolvimento tecnológico, pois assim como provocam, entravam o progresso, contra ou a favor da união da ciência e da técnica. Braudel considera que, pelo fato da vida cotidiana girar em torno destas estruturas herdadas, fica à mercê das motivações econômicas empurrar o esforço da mudança. As inovações possíveis estariam sempre adormecidas até que surja a urgência de despertá-las, usa o exemplo da fundição do coque (minério de ferro) e a Revolução Inglesa para ilustrar que uma invenção apresenta-se dez, cem vezes antes diante dos obstáculos a serem transpostos. Chama o fenômeno de guerra das oportunidades perdidas. Aponta ainda para o impacto entre os entraves que parece haver entre o progresso e a estagnação da tecnologia e identifica os processos de aceleração e contensão pelos quais eles passam:

[...] Num e noutro sentido, avanço e imobilidade, a técnica é toda a espessura da história dos homens. É por isso que os historiadores que pretendem ser os seus especialistas quase nunca conseguem agarrá-la inteiramente... é certo que a ciência e a técnica se unem hoje para dominar o mundo, mas essa união implica forçosamente o papel das sociedades atuais que provocam ou entravam o progresso, como outrora.

91 BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo. Vol. 1. Lisboa: Teorema, 1979. 66

2.9 LONG PLAYING – LP

2.9.1 Capacidade técnica de longa duração

Em 1948 o Engenheiro da Columbia Peter Goldmark (o mesmo que projetara a TV a cores e o Vídeo-Tape) desenvolve o microssulco (cavidades bem mais estreitas por onde a agulha o toca-disco percorre) que associado à já existente - ao menos desde o começo dos anos trinta - rotação de 33 1/3 RPM92 permite que se grave de 15 a 20 minutos de cada lado ao invés dos 4 minutos do sistema de 78 RPM. (SALIBA, 1932). Esta possibilidade permite ao artista gravar de oito a dez músicas ao invés das duas do sistema anterior, além da flexibilidade maior de tempo nas composições (pode-se então ouvir uma sinfonia inteira sem intervalos para trocar oito vezes de disco). Esse fato da indústria do disco é muito ligado ao movimento ao desenvolvimento tecnológico e de industrialização do país e também ao impacto tecnológico do combustível e da indústria dos derivados de petróleo com a disseminação do vinil. Isso ocorre década de 40, em plena Segunda Guerra Mundial, quando os militares norte-americanos passam a usar, como uniformes, casacos de vinil, substituindo, então, as antigas roupas de borracha. Assim como a rotação de 33 1/3 RPM, o vinil já havia surgido ainda na década de 20 quando Waldo Semon, cientista que trabalha com borracha, busca combinações químicas para aperfeiçoar uma espécie de adesivo sintético. Durante seus experimentos descobre a fórmula do Policoreto de Vinila (PVC), as aplicações da novidade na fabricação de bolas de golfe e saltos de sapatos, conferem, assim, a resistência do novo material. O disco de vinil, entretanto, surge, mas não se perpetua ainda, permanecendo apenas para infantis e alguns selos como o brasileiro Tiger “inquebrável”. Com o fim da guerra e do controle das patentes na Alemanha pelo Tribunal Supremo do Reich chegam também como tecnologia de gravação os meios de reprodução magnéticos que passam a intermediar a captação e o processo do corte do acetato. Esse avanço permite no período inicial do LP remasterizações de gravações realizadas em 78 RPM na forma de coletâneas que predominam no mercado. Esteticamente o LP ainda se parece bastante com o 78 RPM, os primeiros discos de vinil são feitos em monaural, mais grossos e menos flexíveis que os modernos e o tamanho padrão ainda é de 10 polegadas.

92 SALIBA. George, J. Home Recording and all about it. New York: Gernsback Publications, 1932. 67

Assim, segundo Severiano e Melo (1997)93, o LP é prensado e distribuído comercialmente pela primeira vez no Brasil em janeiro de 1951, pela empresa Sinter (utilizando o selo Capitol). O lançamento Carnaval em Long Playing (SLP 001) traz marchinhas e sambas para o Carnaval daquele ano. As festividades carnavalescas são a grande sensação da época, impulsionadas principalmente pelo rádio. O disco reúne artistas como Oscarito, Geraldo Pereira, Heleninha Costa e os Cariocas. A chegada do LP tem de início significativo impacto tecnológico e pouco impacto mercadológico, pois compete de maneira ainda muito tímida com o 78 RPM, que domina o mercado. O preço é bastante elevado e os toca-discos não tocam na nova rotação. No final da década de 50 este quadro começa a se inverter com a chegada do sistema de equipamentos de alta fidelidade (High Fidelity ou Hi-Fi) e a estereofonia, que estréia no Brasil em 1958 com o LP “Ritmos do Brasil em Stereo” com o Grupo Ases do Ritmo pela RCA-Victor (BSP-1).

93 SEVERIANO, Jairo; MELO, Zuza Homem de. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras. Vol. 1. 1901-1957. São Paulo: ED.34, 1997. 68

2.10 SURGIMENTO DE UM NOVO FORMATO DE PRODUTO

“Rua nascimento Silva 107 Você ensinando pra Elizete As canções de Canção do Amor Demais”

Este trecho de Carta a Tom 74 (de autoria de Tom Jobim e Vinícius de Moraes) é a ilustração musical mais clássica de um fenômeno então recente chamado disco de autor. Canção do amor demais é um LP de Elizete Cardoso lançado em 1958 pelo selo Festa e tido como um marco da bossa nova com toda a referência de uma obra: título e créditos a Vinícius de Moraes e Tom Jobim e trabalho instrumental de João Gilberto. É o novo conceito de autoria inexistente nas coletâneas e nos 78 RPM, o disco ganha uma unidade e começa a ser considerado um trabalho. Gravado na íntegra apenas por um artista com canções reunidas com alguma preocupação de coesão ou mesmo de mercado, título e créditos citados, o disco de autor é um fenômeno preponderante para que a própria bossa nova fosse concebida como um movimento unificado (CASTRO, 1990; TAVOLA, 1998)94. Nesta época também começa a se fixar novo formato de 12 polegadas (o primeiro é lançado em 56 pela Sinter), os discos se tornam mais finos e flexíveis e o disco de autor começa a tomar o lugar das coletâneas. Este foi o maior impacto do LP, quando Paiano (1994)95 considera que o artista se torna mais importante que o disco: “O artista passa a ser o produto principal porque finalmente as gravadoras daqui perceberam que este é o seu novo papel na economia da música.” Ainda que esta questão da importância seja um fator de difícil mensuração, a nova dimensão que o artista passa a ter é um fato palpável e concretizado nas capas dos discos: nos 78 RPM praticamente não havia capas personalizadas de cada disco, apenas envelopes genéricos que normalmente traziam impressa publicidade das lojas, produtos, gravadoras ou a lista dos últimos lançamentos e um recorte circular que permitia ver o selo, quando muito uma

94 Sobre a influência da tecnologia, em especial do LP e da alta fidelidade na bossa nova consultar:

CASTRO, Ruy. Chega de saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 98-99.

TÁVOLA, Artur da. 40 anos de bossa nova. Rio de Janeiro: Sextante, 1998. p. 30-39.

95 PAIANO, Enor. O Berimbau e o som universal: Lutas culturais e indústria fonográfica nos anos 60. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP / Escola de Comunicação e Artes, 1994. 69

foto anunciando outros discos do artista exclusivo gravadora, Existem capas personalizadas para raros álbuns de vários discos e alguns poucos discos infantis, conforme descreve Laos (1998, p. 102-126)96:

Com o tempo, os envelopes, normalmente só com textos tipográficos, passam a apresentar ilustrações e vinhetas, mantendo no entanto uma constante que perdurará para os discos 78 rpm até sua extinção em 1964: papel sem branqueamento tipo Kraft, de qualidade inferior, com impressão em preto ou tinta especial (spot color) usualmente em uma cor ou no máximo em duas. Pode-se dizer que somente a partir de meados dos anos 1940, provavelmente tem início a utilização de fotografias ( a uma cor) nos envelopes. Elas aparecem no momento em que os envelopes passam a divulgar o repertório em catálogo dos artistas: quando o sucesso ou o volume de títulos em catálogo justificava, uma foto do artista encabeçava essa relação. Ainda não era uma capa personalizada. Visto que os envelopes eram intercambiáveis, podendo o disco de um Francisco Alves ser vendido com a relação do repertório de um orlando Silva, por exemplo.

Uma das poucas formas de variação foi da gravadora Todamerica, que trazia no selo do disco uma foto quadrada do cantor ou músico, o que fez com que fosse conhecida como "a gravadora do retratinho", ainda assim o artista ficava assim com sua imagem associada ao "casting" das gravadoras.

Figura 7– Da esquerda para a direita: envelope de disco 78 rpm, capa do primeiro LP brasileiro (nas mãos do pesquisador JairoSeveriano) e capa de Canção do amor demais.

O momento do aparecimento do disco de autor coincide com o que LP passa a tomar uma nova dimensão no mercado e o 78 RPM a funcionar como “single”: alternativa barata para o artista gravar e o consumidor comprar uma ou duas músicas, às vezes conjugadas com o lançamento de um LP. Quando o sistema sai do mercado e em 1964 esta

96 LAOS, Egeu. A capa de disco no Brasil: os primeiros anos. Vol. 1. In: Arcos, 1998. p. 102-126. 70

função passa a ser exercida pelos discos 33 1/3 RPM compactos de seis polegadas, simples ou duplos também na velocidade 45 RPM. Segundo afirma Dias97, baseada em dados da Associação Brasileiro dos produtores de Discos, a vendas de LPs no Brasil na década de 70 passa a dominar a de compactos em unidades vendidas, mas na época em que, segundo Laos (1998)98 os nomes e logotipos das gravadoras passa a parecer nas contracapas e não mais nas capas dos LPs. Com o LP chegam mercado inúmeras outras inovações ao como o vinil colorido (na verdade ele é transparente e pode-se adicionar qualquer corante) e a quadrafonia: uma espécie de estereofonia duplicada com quatro fontes sonoras emitindo quatro faixas de som, desenvolvido paralelamente em dois sistemas principais por duas empresas99 (o matricial SQ pela CBS e o discreto CD-4 pela RCA em conjunto com a National japonesa). A Odeon é a primeira a lançar no Brasil discos quadrafônicos (de Pink Floyd, Rick Wakeman e Milton Nascimento: o LP Milagre dos Peixes, o primeiro de música Brasileira), mas a novidade acaba não se fixando no mercado. A mais significativa inovação da era LP, no entanto, é a gravação multicanal, que permite que se grave um instrumento de cada vez, em momentos e até mesmo locais diferentes para depois mixá-los em uma mesa de edição. Segundo Levy100: “A partir dessa época, para um número cada vez maior de peças, a referência original tornou-se o disco gravado em estúdio, que a performance ao vivo nem sempre se consegue reproduzir”. O autor cita como exemplo o álbum Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club “cuja complexidade tornou necessárias técnicas de mixagem impossível de serem realizadas ao vivo”. Um diferencial da banda Emerson, Lake & Palmer era conseguir executar no palco o que gravavam em disco, ao mesmo tempo em que outras bandas, como por exemplo, Alan Parson’s Project são chamados “grupos de estúdio”101, pois tem performances exclusivas em estúdio. Se com o advento do LP, é criado um novo formato artístico para a canção de massa em função de um novo formato de produto e nessa adaptação - segundo Paiano - o artista ganha uma nova dimensão

97 DIAS, Op. cit. p. 56.

98 LAOS, Op. cit. p. 111. 99 ROBERTO, Fernando. Quem ganha a guerra da quadfrafonia?. In: Última Hora, 12 de junho de 1976. 100 LEVY, Op. cit. p. 140. 101 PAIVA, 2002. p. 43. 71

na economia da música, Paiva102 identifica um movimento contrário em que “a evolução do suporte (disco gravado) a um nível de igualdade em relação à música nele contida foi uma das principais realizações da tecnologia aplicada à música”. Neste caso o termo movimento contrário não implica necessariamente em caminhos divergentes, ou seja, disco de autor e disco de estúdio não são conceitos excludentes. Um exemplo citado por Paiva (1992)103 é o pioneiro álbum Tubular Bells de Mike Oldfield (1973), em que o mesmo artista executa todos os instrumentos, um dos muitos casos em o disco de estúdio intensifica (e não anula) a força da autoria. O advento do LP introduz e fixa definitivamente um novo formato de produto, dando ao consumidor a chance de comprar dez ou doze músicas ao invés de duas e ao artista a mesma possibilidade de gravá-las. A capacidade técnica de armazenamento e de longa duração dessa forma redimensiona os papéis de ambos na interface sonora que é o disco, embora basicamente ambos continuem exercendo as mesmas funções em relação á indústria propriamente dita. Entre eles é que esse redimensionamento toma mais vulto. O consumidor passa ter mais possibilidades de conhecer o dono da voz, sua proposta de trabalho, o conjunto da obra e literalmente a sua cara.

102 PAIVA, 1992. p. 28. 103 Id. pp. 25-26. 72

CAPÍTULO 3 – A MUDANÇA DE SUPORTE SONORO PARA DIGITAL E IDENTIFICAÇÃO DOS PRINCIPAIS ELEMENTOS DE IMPACTO E SEUS EFEITOS NO MERCADO

3.1 CD – ÁUDIO DIGITAL COMPACT DISC LASER

A primeira aplicação de um sistema digital para áudio industrial, segundo Natividade (1979)104, foi o sistema PCM (Pulse Code Modulation) a partir de pesquisas feitas em 1941 pelas empresas de telefonia ITT e Bell Telephone System para tratar a informação sonora entre a captação e a reprodução. Entre 1972 e 1973 vários laboratórios japoneses utilizaram o sistema comercialmente na série de discos Denon/PCM, onde o processo digital era utilizado somente na gravação da fita matriz. A aplicação para um sistema de reprodução para um sistema inteiramente digital foi desenvolvida pela Philips em conjunto com a MCA Disco-Vision inicialmente para o lançamento de um vídeo-disco, embora um dos compromissos assumidos pela MCA fosse compatibilizar um disco que contivesse apenas áudio-informação. O CD, na época chamado de disc-laser ou compact-disc, foi então desenvolvido em conjunto com a Sony e, após ser utilizado em mercado-teste em duas cidades dos Estados Unidos, foi apresentado à imprensa em 1979. Cada amostra de som é armazenada individualmente no disco por 14 protuberâncias em baixo-relevo (60 bilhões delas em linha helicoidal gravadas do centro para a periferia do disco são necessárias para 60 minutos de gravação) que formam uma linha de 1,666 micron de espessura. No aparelho reprodutor um facho luminoso de laser lê as informações refletidas pela superfície espelhada e um decodificador traduz em ondulações novamente analógicas. É lançado comercialmente no Brasil em 1987 (uma coletânea de Caetano Veloso) e começa a superar em vendas o LP seis anos depois105. (DIAS, 1996).

104 NATIVIDADE, Nestor. Outra revolução na técnica de gravar: o mini-disco digital. In: REVISTA SOMTRÊS, n. 6, junho de 1979.

105 Segundo DIAS, Op. cit p. 31, a partir de dados da Associação Brasileira dos Produtores de Discos (ABPD) e Internacional Federation of the Phonographic Industry (IFPI) publicados na Revista exame n. 607 de 10/04/1996. 73

Figura 8 – Capa da Revista Somtrês em junho de 1979 anunciando o “Disco Compacto: O começo de outra revolução”.

Fonte: Revista Somtrês (1979). 74

3.1.1 Capacidade técnica de longa duração, armazenamento e transmissão

A busca da capacidade técnica de longa duração, ou seja, a capacidade de armazenar informações a serem codificadas em som, usualmente medida em unidades tempo foi um elemento bastante recorrente ao longo das mudanças de suporte no mercado fonográfico. Já na fase dos cilindros as tentativas de aumentar capacidade técnica de longa duração se fazem presentes com a fabricação de cilindros com maior comprimento e diâmetro a fim de comportar mais que dois minutos de gravação. Os modelos famosos mais são os da linha Concert da Edison. Outras velocidades de rotação e larguras de sulco também são experimentadas. Na fase dos discos planos em 76 e 78 RPM, além das experiências com vários diâmetros (10’, 12’ e 16’) e novas velocidades de rotação (33 1/3, 45, 16 2/3 e 8 1/3 RPM) consolida-se a gravação em duas faces, acompanhada por todas as batalhas em torno das patentes de fabricação. Finalmente a questão é tecnicamente resolvida com o advento do microssulco que, associado à já existente rotação de 33 1/3 RPM, fixa no mercado o LP e passa a permitir que se grave de 15 a 20 minutos de cada lado contra os 4 minutos do sistema de 78 rpm. As tentativas, dessa forma, são feitas buscando explorar o aumento da área de superfície gravada e a redução da velocidade de rotação. No entanto o CD curiosamente tem um diâmetro consideravelmente menor que os discos analógicos (menos de quatro polegadas), é gravado de um só lado e gira em altíssima velocidade de rotação (variável entre 215 e 500 R.P.M.), possui uma capacidade de armazenar informações em até 80 minutos - que corresponde o dobro do LP - mas manteve o formato de 40 minutos de seu antecessor. Como se a tecnologia agisse pelo sentido inverso. Agora começa a se concretizar a idéia mencionada naintrodução da dissertação da inversão e sua dupla conotação: alteração na ordem e contrariedade. Ao analisar os elementos de impacto na mudança para o suporte digital, tentaremos mostrar a inversão de papéis entre os atores da interface apontando para um movimento de retorno na história da indústria fonográfica. Para isso a apresentação e análise dos elementos, a começar pela capacidade técnica de longa duração, serão feitas em ordem inversa à que aparecem os suportes analógicos. Como se fossem refletidos e invertidos pela superfície espelhada que reflete o LASER no CD. 82. 75

3.1.2 Manutenção do mesmo formato de produto

Conforme já foi colocado, o advento do microssulco conjugado com a velocidade de 33 1/3 RPM possibilitam ampliar a capacidade técnica de duração de cinco para quarenta e cinco minutos e a fixação do formato LP no mercado juntamente com o conceito artístico e de produto do disco de autor, em que o artista grava dez ou doze músicas ao invés de uma, e ganha uma importância que não tinha no formato 78 rpm. O inventor do microssulco e do LP Peter Goldmark106 declarou que decidiu trabalhar na invenção da longa duração depois de ouvir o segundo concerto para piano de Brahms e verificar que seus quatro movimentos tinham sido gravados em doze faces de discos, o que acarretava fatalmente em doze interrupções durante a audição. Para dimensionar o microssulco fez uma pesquisa de onde concluiu que, em noventa por cento dos casos, um movimento de uma peça de música erudita durava em média trinta e seis minutos, logo poderiam ser colocadas em uma face de quarenta e cinco minutos. (EDSON, 1973). Houve, portanto, uma adaptação da mídia em função da obra de arte, o contrário do ocorrido com a música popular urbana, que precisou se adaptar á capacidade de duração do 78 RPM. O CD pode conter aproximadamente 700 Mb de informação, o que equivale a uma capacidade de armazenamento de até oitenta minutos em formato de áudio wav, isso é um fato de fácil comprovação empírica, ou seja, pode-se comprar com facilidade um CD virgem com essa capacidade de duração e gravar o equivalente a dois LPs. No entanto exceto algumas séries de CDs remasterizados no “formato dois em um”, é mantido o formato de produto do LP com dez ou doze músicas, obviamente em um só lado. Não é possível precisar o porquê desse fato, todavia é possível apontar alguns caminhos. O primeiro ponto diz respeito à rapidez com que se processam as mudanças na era da tecnologia digital. Castells (1999)107 tem como um de seus pontos de partida afirmação que vivemos um dos raros intervalos na história em que ocorrem eventos muito rapidamente ajudando a estabelecer a próxima era (segundo o gradualismo de GOULD). “Um intervalo

106 EDSON, Lee. Peter Goldmark – O inventor do LP. In: Manchete. 27 set. 1973, p .27.

ZWICK, Edward. An interview with the father of hi-fi: Dr Peter Goldmark: In: Rolling Stone, n. 29, 27.set. 1973, p. 44 (Audio Supplement).

107 CASTELLS. Op. cit. p. 49. 76

cuja característica é a transformação da nossa “cultura material” pelos mecanismos de um novo paradigma tecnológico que se organiza em torno da tecnologia da informação.” Comparando a velocidade de difusão das novas tecnologias da informação entre os anos 70 e 90 com as geradas pela primeira e segunda revoluções industriais, o autor enxerga a rápida difusão por meio de uma lógica que é “a aplicação imediata no próprio desenvolvimento da tecnologia gerada, conectando o mundo através da tecnologia da informação.” Castells (1999) utiliza o termo círculo virtuoso em que a economia se capacita cada vez mais para aplicar seu progresso em tecnologia, conhecimentos e administração na própria tecnologia, conhecimentos e administração. As novas tecnologias de informação possibilitam conexões infinitas entre diferente domínios, elementos e agentes da atividade humana. Estamos, segundo ele, testemunhando um ponto de descontinuidade histórica, onde a informação se torna o produto do processo produtivo; “os produtos das novas tecnologias da informação são dispositivos de processamento da informação ou o próprio processamento da informação?” Voltando à questão dos suportes sonoros, recorro a um trecho sobre a definição de suporte, em que Negroponte (1995)108 chega a um ponto central “... A economia de bits é determinada em parte pelas limitações do meio no qual são armazenadas, ou através do qual são transmitidos.”O CD e a tecnologia de informação ao mesmo tempo que alteram essas limitações da mídia, ao trazerem uma maior capacidade técnica de armazenamento, trazem também a possibilidade de transmissão de informação que culminaram com a criação do MP3 e dos Ipods ou MP3-Players. O MP3 (abreviatura para Moving Picture Experts Group Layer Audio 3 ) é um dos formatos de arquivo digital mais populares entre os que trabalham com tecnologia de compressão. Desenvolvido para permitir comprimir o sinal de áudio, reduz um arquivo a 1/12 do seu tamanho original. Dessa maneira, o formato não só permite que um CD possa comportar até doze horas de gravação109, como possibilita sua transmissão via redes de informação e armazenamento e reprodução em Ipods, aparelhos reprodutores portáteis que não necessitam de uma mídia embolada. Já existem no mercado Ipods com capacidade de até 80 Gb, o que corresponde a capacidade de armazenar em um volume de poucos centímetros cúbicos o equivalente a mais de 1.000 LPs ou 10.000 discos em 78 RPM. Paulatinamente isso pode vir a decretar a morte do CD ou de outra qualquer outra mídia comercial embalada.

108 NEGROPONTE, Op. cit. p. 20.

109 PAIVA, 2002. pp. 64-65. 77

Essa substituição até hoje ainda não está concretizada e não é objeto de nossa análise, mas entra em jogo quando se opõe a nova velocidade de mudança das tecnologias de informação às necessidades de adaptações entre o artístico e o tecnológico. Conforme, já foi colocado, embora o LP surja no início dos anos cinquenta, o disco de autor só vem a se desenvolver no final da década, e mesmo após a saída do 78 rpm o mercado, o formato single domina o mercado na forma de compactos simples ou duplos até a década de setenta, o que significa que o novo conceito, tanto artístico como de produto, leva assim mais de vinte anos para dominar o mercado. Com a nova velocidade da tecnologia digital, não foi possível desenvolver um novo formato de produto como ocorrera com o LP, pois isso depende de um novo conceito artístico, uma vez que o CD não é desenvolvido a partir de uma necessidade artística como seu antecessor. Nesse novo panorama, a possibilidade de transmissão de informação vem gerar, senão a morte, a obsolescência do CD enquanto mídia de armazenamento de informação, e assim é neutralizado o impacto da possibilidade técnica de longa duração que, durante todas as décadas anteriores, fora um objeto de pesquisa, controvérsia e inovação na indústria fonográfica.

3.1.3 Codificação do sinal em bits

O diferencial do CD de início mais explorado comercialmente como novidade é a leitura a laser sem atrito mecânico, que eliminaria os chiados do LP. No entanto o que vem a impactar brutalmente o mercado fonográfico é o armazenamento de informação digital em bits e sua facilidade de reprodução. Assim como ocorreu com a codificação do sinal sonoro mecânico em corrente elétrica em 1927, agora passa a ser realizada a conversão em bits. Dertouzos110 é quem detalha de maneira mais simplificada o processo de digitalização: Enquanto contamos assim; 0, 1, 2 , 3, 4, 5; eles contam assim: 0, 1, 10, 11, 100, 101. Essa parcela menor e indivisível da informação representada, este número que é 1 ou 0, chama-se bit, da expressão binary digit [dígito binário]:

Um computador usa este sistema aparentemente bizarro de representação porque é feito de centenas de milhões transistores minúsculos. Um transistor é um aparelho em miniatura, que funciona como um interruptor. Pode fechar, deixando que a corrente elétrica passe, ou abrir, impedindo o fluxo. Como o interruptor só pode ser fechado ou aberto, ele só pode representar um dos dois números, 1 ou 0. Os interruptores são as mãos de dois dedos com as quais as máquinas contam... Os computadores da atualidade são construídos com chips – pequenas peças de silício, do tamanho e grossura de uma unha. 110 DERTOUZOS. Op. cit. p. 39. 78

Milhões de transistores são gravados na superfície de um chip e depois interligados. Assim, em determinado momento, em um único chip pode representar milhões de 1s e 0s... Alem disso, cada transistor pode ser ligado ou desligado num centésimo de milionésimo de segundo, mudando seu valor para 1 ou 0 e vice-versa. (DERTOUZOS, 1997, p. 39)

Negroponte (1995, p. 20)111 chega ao conceito de suporte (inclusive citando o áudio), armazenamento e transmissão:

Os bits sempre foram a partícula subjacente à computação digital, mas, ao longo dos últimos 25 anos, expandimos bastante nosso vocabulário binário, nele incluindo muito mais do que apenas números. Temos sido capazes de digitalizar diferentes tipos de informação, como áudio de vídeo, reduzido-os também a uns e zeros. Digitalizar o sinal é extrair dele amostras que, se colhidas a pequenos intervalos, podem ser utilizadas para produzir uma réplica aparentemente perfeita daquele sinal. Num CD, por exemplo, tais amostras são colhidas 44,1 mil vezes por segundo. A onda de áudio (o nível da pressão do som medido como voltagem) é registrado sob a forma de números discretos (eles próprios transformados em bits). Tocadas novamente em uma taxa de 44,1 mil vezes por segundo, essas séries de bits resultam numa reprodução contínua da música original.

3.2 A TECNOLOGIA COMO FATOR INTERATIVO DE MERCADO

Ao contrário do que ocorreu com advento do sistema de gravação elétrico, em que a tecnologia de certa forma agiu como um fator limitante (que impõe limites) de atuação no mercado, concentrando o know-how em três gravadoras no Brasil, o CD e as tecnologias digitais acabam por agir como um fator interativo (que rompe limites), à medida que passa a gerar um banalização de know-how, alterando as relações entre os agentes da mídia sonora enquanto interface. Essas mudanças dos papéis e atores sociais em especial o público consumidor se fizeram presentes nas várias etapas de criação/registro/duplicação/reprodução identificadas por Paiva (1992)112, acentuando uma tendência de fragmentação dentro do processo produtivo, existente desde a fase do LP. Dias identifica essa fragmentação do processo produtivo como um colapso da maneira fordista113 de produção, para a qual o capitalismo mundial buscou maneiras de tratamento nas quais as grandes corporações transnacionais instalam-se nos países periféricos. 111 NEGROPONTE, Op. cit. p. 20. 112 PAIVA, 1992. p. 11. 113 Sobre as relações de modo de produção na indústria fonográfica consultar: HESMONDHALGH, D. Flexibility, post-Fordism and the music industries. In: Media, culture and society. London: Sage, 1996. 79

Dessa forma se inviabilizam as linhas de produção e as partes fragmentadas do processo de trabalho passam por um processo de especialização114. A autora considera essa transformação sem precedentes na história da indústria fonográfica, cuja contínua racionalização da produção foi observada na forma de sucessivas ondas de inovação tecnológica, evidenciando a relação entre desenvolvimento técnico e produção fonográfica115. A autora considera ainda que essa mudança traz para a cena novos atores sociais e que os artistas, agentes da criação artística aproximam-se do processo de produção116, embora pondere os efeitos dessa aproximação : “ Mas a meu ver, essa é uma autonomia de gerenciamento do produto e não de criação artística. Se existe um imbricamento entre as esferas técnica e artística, é a primeira que conquista o privilégio de comandar o processo.” Morelli (2000)117 analisa as alterações sofridas por essas relações de produção entre artistas e gravadoras, em especial entre fábrica e estúdio em um período que abrange a década de 70 e Paiva (1992, p. 19)118 toca na questão sempre com mais foco na influência da tecnologia:

[...] É notadamente no período compreendido entre o pós-guerra e a atualidade que o artista se defronta com uma imensa série de novos equipamentos e/ou materiais que podem ser vistos como “meios expressivos”, os quais estão, em sua maioria, em constantes alterações, acarretando um novo grande problema: como transcender suas limitações de uso comum” em um espaço de tempo tão curto? E como quebrar a “tradição do uso comum” de um objeto tecnológico?

Isso pode vir a ser um fator limitativo, a partir do momento em que o artista se torna um integrante da indústria cultural, o que, aliás é uma necessidade nos dias de hoje, aceitando novos meios e matérias sem o estudo consciente das reais possibilidades dos mesmos. Com isso o meio pode limitar a plena fruição do “fazer artístico.

114 DIAS, Op. cit. p. 103.

115 Id. p. 17.

116 Id. p. 41.

117 MORELLI, Op. cit. Seu estudo aprofunda-se em dois artistas: Fagner e Belchior. Tem como base conceitos ligados à Escola de Frankfurt (em especial Benjamin, Habermas, Horkheimer e Adorno). 118 PAIVA, 1992. p. 19. 80

Levy (1999, p. 140)119 também compartilha, a seu modo, a visão de Paiva em especial da sobre a tecnologia de gravação: “Quase no final dos anos 60, o estúdio de gravação o grande integrador, o instrumento principal da ação musical”. Também contextualiza este aspecto chegando na tecnologia digital:

Ora, um dos primeiros efeitos da digitalização foi o de colocar o estúdio ao alcance dos orçamentos individuais de qualquer músico [...] A partir de agora os músicos podem controlar o conjunto da cadeia de produção de música e eventualmente colocar na rede os produtos de sua criatividade sem passar pelos intermediários que haviam sido introduzidos pelos sistemas de notação e gravação (editores, intérpretes, grandes estúdios, lojas. (grifos do autor).

Alguns autores, embora reconheçam este fenômeno, questionam o que possa ser confundido com “democratização do consumo”. Quando analisa as competências da era digital, Vicente (1996, p. 88)120 recorre à concepção adorniana de padronização, propondo um modelo que “tende a considerar o processo de segmentação como uma forma ainda mais radical e impositiva de padronização... a segmentação parece, neste contexto, determinar uma atrelamento ainda maior do artista individual á lógica produtiva da indústria.” O autor ainda considera que, quando um quando se enaltece uma maior flexibilidade e descentralização de produção com o advento das novas tecnologias, um aspecto fundamental do problema é relegado: “ o das instâncias de promoção e distribuição pelos quais a produção simbólica, dentro do contexto da indústria cultural, deve necessariamente passar para tornar-se acessível a um público mais amplo.” Dias (1992, p. 130)121 também aborda esta questão, em especial nas limitações das pequenas gravadoras:

Por outro lado, são completamente adversas as condições autônomas de distribuição, marketing e difusão enfrentadas pelas pequenas, se desejarem prosseguir atuando em todo o processo. A saída é ousar pouco e reiterar o modelo de sucesso instituído pela major. Assim, a fragmentação, a segmentação, o desenvolvimento tecnológico a diversidade (entendida como variedade) tornam-se características altamente sofisticadas do processo de produção consagrado pela grande transnacional, agora ainda mais racionalizado.

119 LEVY, Op. cit. p. 140. 120 VICENTE, Eduardo. A música popular e as novas tecnologias de produção. Tese de mestrado. Campinas: UNICAMP / IFCH, 1996. p. 88.

121DIAS (1992), p. 130. 81

Embora Vicente analise mais detalhadamente as mudanças sociais econômicas determinadas contrapondo conceitos frankfurtianos (em especial de Adorno) com Pierre Bordieu, ao abordar os desenvolvimentos tecnológicos no âmbito da produção e distribuição musical, analisa – assim como Paiva - os papéis da tecnologia como elemento integrante dentro da canção de massa, em especial da gravação multicanal e do protocolo MIDI. Apesar do pessimismo confesso, neste ponto parece tangir – ou mesmo extrapolar - a distinção entre os tipos de técnica de Adorno: “O conceito de técnica na indústria cultural se identifica somente nominalmente com a técnica na obra de arte. Nesta última, a técnica concerne a organização interna do objeto, com sua lógica interna. Em contrapartida, a técnica na indústria cultural é, desde o início, aquela da distribuição e reprodução mecânica, e portanto permanece sempre externa a seu objeto122. Já Puterman (1994)123 faz uma crítica específica a Adorno e Horkheimer: [...] Parecia que haviam chegado ao fim de todas as transformações sociais. Não levaram em consideração o devenir constante das diferenciações internas das sociedades, em relação às quais o progresso tecnológico age também como um fator de variações.” Na verdade o autor aponta mais precisamente para uma crítica ao conceito de sociedade de massa em favor dos processos crescentes de diferenciação e diversificação que constituem a característica predominante das sociedades atuais. O mais importante, a meu ver, é quando contextualiza as condições ideais para o desenvolvimento de um revolução na forma de se relacionar com os meios de comunicação e a introdução da possibilidade de diálogo e da participação do público nas performances eletrônicas. Nesse ponto de possibilidade de diálogo, pode-se dizer que o CD altera as relações enquanto interface, principalmente em relação aos artistas e o público consumidor. Vicente enxerga na produção de softwares de gravação e edição como bens e serviços assim como suas reduções de preço, o surgimento de um novo caminho ou para ele, “... um outro problema: o do músico enquanto consumidor de bens e serviços, do autor enquanto consumidor.” O autor coloca que a questão não é nova, mas que ganha rapidamente novas dimensões com a tecnologia digital, citando como exemplo os sintetizadores. “Os diferentes

122 ADORNO, 1986. p. 290.

123 PUTERMAN, Op. cit. p. 109. O autor propõem a noção da tecnologia como mediação para veiculação da produção cultural e contrapõe a popularização de uma nova tecnologia ancorado num repertório já de domínio público (a partir da análise de CD de conjunto integral das nove sinfonias de obras de Beethoven regido por Herbert von Karajan com a filarmônica de Berlim lançado pela Sony em 1986) ao lançamento em um sistema já existente e instalado difundindo uma música toda nova (a partir do LP de Elvis Presley Heartbreak Hotel pela RCA Victor em 1956). 82

equipamentos utilizados na produção musical tendem a tornar-se, portanto portadores da sua especialização, de um modo só possível dentro do contexto das tecnologias digitais.” Como nossa análise se atém à mídia digital enquanto suporte comercial, o fato ainda que não seja totalmente novo, tem um efeito exatamente oposto o do advento da gravação elétrica que fixou apenas três gravadoras no Brasil por mais de uma década. A tecnologia de gravação, que no começo da tecnologia elétrica foi um fator limitante de atuação no mercado, passa a ser na era digital um fator interativo. Ainda que não possa se falar exatamente em democratização, ocorre uma banalização de know-how, que altera a participação de artistas e do público nas diferentes etapas de criação/registro/duplicação/reprodução, um fato inédito que traz para o uso doméstico – inclusive na forma de bem de consumo - tecnologias antes exclusivas da esfera industrial, exatamente o contrário do que foi feito como fim da manufatura, um dos fatores aos quais WEBER atribui a viabilização da moderna organização racional da empresa. Castells124 quando analisa o recente uso das novas tecnologias, postula que quando os usuários passam a este estágio de aprender a tecnologia fazendo, apropriando-se dela e redefinindo-a, podem tornar-se ao mesmo tempo usuários e criadores, pois “As novas tecnologias de informação não são simplesmente ferramentas a serem aplicadas, mas processos a serem desenvolvidos.” Embora Vicente conteste o uso do termo “artesanal “, a indústria fonográfica de certa forma assiste o surgimento de uma espécie de manufatura com capacidade de produção semi- industrial, conforme analisaremos em seguida.

3.3 FIM DA PRODUÇÃO UNIFICADA DO SUPORTE E DA GRAVAÇÃO E REALIZAÇÃO DE UM POTENCIAL DE PRODUTIVIDADE COM CAPACIDADE SEMI-INDUSTRIAL

Se, com gravação digital, a tecnologia deixa de ser um fator limitante de atuação no mercado como ocorreu com a gravação elétrica, o mesmo ocorre ao compará-la com advento do disco plano de 78 RPM. O disco como produto industrializado marcou o início da integração forma e conteúdo, superando com a prensagem as limitações de reprodução do cilindro, mas marcando o fim da produção do suporte virgem e dos aparelhos para gravação por parte do consumidor.

124 CASTELLS, Op. cit. p. 51. 83

Com o CD, o efeito é exatamente contrário, ele acaba por voltar a produzir o suporte virgem marcando o que alguns autores chamam de fim da integração entre software e hardware. Um autor que menciona esta integração é Flichy125, que a considera o principal fator de êxito do disco, mais do que a vitória de um produto de consumo sobre um sistema de comunicação ou o triunfo de um modo de produção industrial sobre uma tecnologia interativa. O autor na verdade situa o fim da integração entre software e hardware com início nos anos cinquenta com o advento do LP e cita o caso concreto das gravadoras CBS, Siemens e EMI que deixam de fabricar aparelhos de reprodução, ficando estas atividades acumuladas com a produção de discos, somente com a RCA e a Philips, sem, no entanto, constituir uma vantagem decisiva em relação a outros grupos. Dias (1992)126 cita também cita o caso concreto da Philips já na fase de produção do CD – empresa que por sinal desenvolvera a tecnologia do suporte - na fusão Universal/Polygram quando também precisa escolher entre produção de software ou hardware, mas ao contrário do que fizera anteriormente, opta pela segunda opção:

Do que é possível apreender, ao lado do crescimento acelerado dos conglomerados transnacionais, é importante notar a radicalização do movimento de fragmentação, que tem autonomizado mesmo a esfera da geração de tecnologia, colocando em cheque a interação entre hardware e software, fundadora da indústria fonográfica [...]

A quebra de ligação entre os dois âmbitos da ação da indústria é realmente um fato novo presente na fusão Universal – Polygram. No entanto essa quebra encerra um dilema vivido pela Philips, ao mesmo tempo em que apresenta um dado fundamental para a compreensão do cenário: sua atividade de produção de hardware caminhava num sentido que a levaria a trabalhar contra a própria indústria fonográfica. Para continuar competindo no mercado de hardware, a empresa deveria incumbir-se do desenvolvimento e fabricação de equipamentos de gravação, de decodificação de mensagens musicais e de outros. Por mais que se destinem às empresas e ao consumidor comum, não se pode esquecer que tais equipamentos estão na base de atuação de toda a pirataria. A Philips teve que fazer a sua opção pela produção de hardware e, dessa forma, anunciar uma tendência que pode ser seguida também pela Sony, igualmente produtora de hardwares e softwares fonográficos. (DIAS, 1992, p. 175).

A autora levanta a questão dos equipamentos se destinarem às empresas e ao consumidor comum e chega na questão da pirataria que, embora não seja nosso objeto central de análise, é prova de um fato que ela explica de outra maneira: “trabalhar contra a própria indústria fonográfica”. A tecnologia aí traz em seu desenvolvimento o germe de sua destruição - fenômeno que normalmente se atribui à ciência –, a fabricação de hardware foge 125 FLICHY, Op. cit. p. 41. 126 DIAS, Op. cit. p. 175. 84

então do domínio da indústria fonográfica, uma vez que a mídia se destina a armazenar informação de qualquer natureza. O mesmo ocorre com o aparelho reprodutor, com a popularização dos computadores pessoais desde os anos oitenta, se torna possível não só gravar e ouvir CDs em casa, mas também duplicá-los, um fato inédito que não ocorria na fase dos cilindros. Gonçalves (1996, p. 20)127 também descreve o processo:

Uma nova mudança no formato veio consolidar-se no Brasil no início dos anos 90, quando o Compact Disc se popularizou no país. Muitos trocaram seu aparelho leitor de LP por um “toca-CD” e outros converteram sua discoteca de LPs em CDs. O Compact Disc trouxe uma outra lógica na produção dos discos, na medida em que estabeleceu um novo patamar na relação entre a gravadora e a mídia gravada. Até os anos 90, a principal característica das companhias fonográficas foi a fusão entre o processo de gravação e reprodução de 78rpm ou LPs: a mesma empresa era responsável pela gravação do disco, pela comercialização do aparelho leitor e ao consumidor não era permitido gravar músicas, somente reproduzi-las. O aparelho leitor dos 78rpm ou dos LPs era um instrumento para reprodução, e uma máquina diferente era necessária para a gravação, sendo que esta última não era comercializada para uso doméstico. Contudo, no final do século XX, algumas empresas especializaram-se na gravação de CDs e uma outra empresa ficou responsável pela fabricação e desenvolvimento do aparelho leitor, tornando-se, muitas vezes, concorrentes. As empresas que fabricavam os aparelhos leitores deixaram de ter a obrigação de manter o know-how da gravação de sons em sigilo, permitindo que o consumidor realizasse gravações com seu próprio aparelho. Como sabemos, esta possibilidade é, hoje em dia, a base da atividade de “pirataria”. É, também, uma das únicas formas de acesso de muitos consumidores à música gravada, via comércio de CDs piratas. Foi ela também quem acelerou a proliferação de inúmeras gravadoras independentes e colocou em xeque, através da “música virtual”, a necessidade de um suporte material para a circulação da música, minando as bases sobre as quais a indústria fonográfica se fundou durante todo o século XX. A mídia digital também permitiu – e isso nos interessa em particular – o uso doméstico da gravação de músicas em formato digital e a reprodução e gravação das músicas numa quantidade ilimitada de vezes.

Ainda que a duplicação possa não vir exatamente a ser, como sugere a autora, numa quantidade ilimitada de vezes, é inegável que são superadas em muito as limitações de duplicação do cilindro, agora em uso doméstico. Nesse ponto o impacto do CD sintetiza e inverte os efeitos do disco plano: separa a fabricação do suporte e do conteúdo, mas com uma capacidade produção semi-industrial, é nesse ponto que a pirataria pode confirmar o fenômeno a ponto de ser considerada uma ameaça a ser combatida pela indústria fonográfica. Dentro da interface da mídia sonora, o consumidor volta atuar nas etapas de gravação e passa a também atuar na etapa de duplicação. Quando a informação passa a ser a mercadoria e o software passa a adquirir o sentido mais difundido atualmente, ou seja, de programa de computador, o consumidor passa a ganhar uma nova dimensão assim como

127GONÇALVES, Op. cit. p. 20. 85

Vicente havia identificado em relação artista na etapa de registro. O hardware de duplicação, o gravador de CDs, também passa a ser um produto, e fora dos domínios da indústria fonográfica e aí se concretiza o que Puterman (1994) conceitua de progresso tecnológico como um fator de variações no “devenir constante das diferenciações internas das sociedades” dando condições ideais para o desenvolvimento de um revolução na forma de se relacionar com os meios de comunicação, com a introdução da possibilidade de diálogo e da participação do público. Aí se não se usa o termo revolução em seu sentido estrito, pois o consumidor passa atuar, em outra etapa, mas o acesso ainda é via consumo de bens ou serviços. A indústria perde o controle sobre a tecnologia por ela desenvolvida em função de um conflito de atores, como já postulara Levy128 ao conceituar a abertura do devir tecnológico:

[...] mesmo que a sociedade não seja determinada pela evolução das técnicas, o destino da cibercultura também não estava completamente à disposição para interpretações e projetos de atores soberanos. Por um lado, é impossível para um ator, mesmo que muito poderoso, dominar ou mesmo conhecer o conjunto dos fatores que contribuem para a emergência da tecno-cultura contemporânea, até mesmo porque, há novas idéias, novas práticas e novas técnicas que não param de surgir nos lugares menos esperados. Por outro lado. O devir da cibercultura não é controlável porque, na maior parte do tempo, diversos atores, diversos projetos, diversas interpretações estão em conflito. (grifos do autor)

Postman129 adota ponto de vista parecido ao afirmar que “... ninguém pode conspirar com segurança para ser o vencedor numa mudança tecnológica” e exemplifica com o caso do relógio mecânico. Inventado com a intenção de regular com o auxílio de toque de sinos as rotinas diárias com sete períodos de devoção dos mosteiros beneditinos dos séculos XII e XIII, o relógio acabou por regular a vida e a produção do trabalhador e do mercador, condição primordial do capitalismo. “Na eterna luta entre Deus e os bens materiais, o relógio favoreceu estes últimos, de maneira bastante imprevisível”. O autor também cita o favorecimento da diversidade sobre a unidade religiosa com o advento da bíblia impressa (em especial depois de Lutero): “podemos supor que essa possibilidade jamais ocorreu a Gutenberg.” Esse fator imprevisível no caso da indústria fonográfica é chamado de conflito, bases minadas ou trabalhos contra; na verdade diversos termos e interpretações em diversos

128 LEVY, Op. cit. p. 200.

129 POSTMAN. Op. cit. p. 32. 86

autores confirmam o que pragmaticamente é fato: a perda de controle sobre o CD enquanto mídia. Este fenômeno marca o fim da integração industrial entre suporte e conteúdo e leva para o uso doméstico a produção com capacidade semi-industrial, atuando agora o consumidor na etapa de duplicação. Castells130 utiliza o termo nova onda de concorrência entre velhos e novos agentes econômicos e toca num ponto fundamental: a realização de um potencial de produtividade:

O que é característico é a conseqüente realização do potencial de produtividade contido na economia industrial madura em razão da mudança para um paradigma tecnológico baseado em tecnologia da informação. O novo paradigma tecnológico mudou o escopo e a dinâmica da economia industrial, criando uma economia global e produzindo uma nova onda de concorrência entre os próprios agentes econômicos já existentes e também entre eles e uma legião de recém-chegados... O que mudou não foi o tipo de atividades em que a humanidade está envolvida, mas sua capacidade tecnológica de utilizar com força produtiva direta, aquilo que caracteriza nossa espécie como uma singularidade biológica: nossa capacidade de processar símbolos.

Segundo o autor esses processos sociais de criação e manipulação de símbolos que correspondem a cultura da sociedade passam a se relacionar muito proximamente com a capacidade de produzir e distribuir bens e serviço. Assim a mente humana pela primeira vez na história deixa de ser somente um elemento decisivo no sistema produtivo para ser uma força direta de produção, pois os usuários podem passar a assumir o controle da tecnologia. A capacidade de produção não é mais semi-artesanal como na fase dos cilindros, mas semi- industrial, levada em conta não somente enquanto capacidade individual do usuário, mas como potencial produtivo, que inegavelmente chega a ameaçar a indústria fonográfica propriamente dita. Abordaremos em seguida o mecanismo que a indústria fonográfica tenta utilizar para relacionar-se com essa força produtiva direta.

3.4 DISPUTAS LEGAIS EM TORNO DE DIREITOS AUTORAIS NA TENTATIVA DE COMBATER OS EFEITOS DA TECNOLOGIA

Levy131 quando conceitua digitalização atenta para o fato de que estando as informações codificadas em números ficam sujeitas a cálculos e à facilidade de manipulação.

130 CASTELLS. Op. cit. p. 109. 131 LEVY, Op. cit. p. 53. 87

Coloca como exemplo a fotografia - considerada por Benjamin132 um marco decisivo na era das técnicas de reprodução da obra de arte - que na forma analógica já podia ser reproduzida e situa a diferença trazida pela digitalização e seu ganho no fato de poder tornar-se visível de acordo com outras modalidades que não a reprodução em massa. A fotografia digitalizada não é desmaterializada, mas virtualizada. A sua noção é a de virtual em oposição a atual e não a real, assim como a árvore se encontra virtualmente na semente a informação pode se encontrar fisicamente em um local de uma rede digital, mas está virtualmente presente em qualquer ponto da rede onde seja pedida. “O virtual é uma fonte indefinida de atualizações”. Embora a questão da banalização da tecnologia na era dos bits e de fenômenos como a pirataria já terem sido tratados em outro capítulo, é em um artigo sobre ela que Dantas (2003)133 analisa o processo de informação também associando à temporalidade: "conhecimento é passado e projeto de futuro. Informação é presente e projeto em andamento.” Menciona também Von Foerster, fundador da Cibernética que sugere a relação informação e locomoção: uma garagem guarda carros, não locomoção, ele escreveu. Da mesma forma, uma biblioteca guarda livros, arquivos, microfilmes etc., não informação. Assim a informação é extraída da manipulação e leitura dos livros, tanto quanto a locomoção exige dirigir os carros. É necessário que se produza a ação. No caso dos livros, saber ler e estar qualificado para a absorção de conteúdos; no caso dos carros, saber dirigir e conhecer as regras de trânsito.

O livro, o CD, o suporte físico que contém o software (ou a música, ou o filme) não passarão de meios, como os objetos de uma biblioteca, que nada significarão ao agente, se este agente não estiver habilitado e interessado em fazê-los fazer algo: no caso, servir à produção de alguma informação... quanto mais rapidamente encontram-se, em uma biblioteca, os livros e outros textos relacionados à busca que se está a fazer, mais útil terão sido as informações que orientaram a busca, logo maior terá sido o seu valor "Dessa forma informação e ação se sintetizam no tempo: "O tempo da ação guiada pela informação fornece o valor da informação para a ação. Em outras palavras, o valor da informação é função do tempo, dado o objetivo e complexidade da busca.

Mencionando Dantas, Carboni (2005)134 coloca que como a propriedade da informação (sua utilidade, seu tempo de busca) não se encontra no suporte material que a contém, mas na ação que proporciona, o valor da informação não está relacionado ao valor do 132 BENJAMIN, Op. cit. p. 6.

133 DANTAS, Marcos. "Pirataria"... ou as razões da informação? In: Revista Reportagem. Brasília, 1o out. 2003.

134 CARBONI, Guilherme C. A Função Social do Direito de Autor e sua regulamentação no Brasil. Tese de Doutorado. São Paulo: USP / Faculdade de Direito, 2005. 88

suporte. Esse, segundo Dantas, é o segundo princípio da "economia informacional". Se o processamento da informação implica trabalho, deve-se levar em conta, também, a remuneração desse trabalho na determinação do valor da mercadoria-informação. No entanto, como o trabalho informacional implica anulação do tempo, coloca-se em xeque o método da remuneração dos custos de realização ou dos custos de transação na determinação do valor da mercadoria-informação. Cita o caso dos produtores de software livre que já entenderam essa questão. O problema estaria em encontrar modelos de contratos que assegurem a justa remuneração do trabalho (do artista, do cientista, do operário qualificado), "sem, no entanto, obrigar o beneficiário deste trabalho a arcar com custos que, hoje em dia, na era da Internet e da reprodução digital, não mais se justificam". Essa questão é crucial quando se leva em conta, como também já foi abordado em outros capítulos, que a tecnologia digital traz consigo a separação do suporte e do conteúdo e traz para o eixo doméstico a possibilidade de reprodução em escala semi-industrial. Qual o preço justo para um CD? Como se chega a dez reais ou ao preço de fábrica? Em entrevista informal o produtor fonográfico e professor universitário Mayrton Bahia afirmou que a indústria deveria apostar em assinatura de conteúdos, como poderia ser definido o Napster (site que possibilitava a reprodução gratuita de músicas): um distribuidor de conteúdo. A questão da remuneração dos artistas seria a questão principal, concordando com Dantas. Fazendo ainda uma análise de Dantas, Carboni e Piccino (2004) contrapõem a concepção Marxista:

Vejamos, portanto, como se estabelece o valor da informação enquanto mercadoria. Quando nos referimos à ação, atividade, busca, estamos, na verdade, falando de trabalho. De acordo com a teoria marxista, o trabalho é tomado como medida para a determinação do valor das mercadorias. Para tanto, verifica-se o tempo que é necessário para a realização de uma mercadoria, com base no denominado "tempo médio de trabalho", que é o tempo de trabalho requerido para se produzir um valor de uso qualquer, nas condições de produção socialmente normais existentes, e com o grau social médio de destreza e intensidade do trabalho. “com o grau social médio de destreza e intensidade do trabalho.

Entretanto, essa lógica não se aplica à mercadoria-informação. Dantas explica que o fato de Marx ter baseado sua análise da acumulação capitalista na apropriação da mais-valia da força de trabalho simples, obscureceu a importância e o valor que o capital sempre deu à informação. Foi apenas no século XIX, na Primeira Revolução Industrial, que o capital passa a dar um grande impulso às comunicações, entendidas por Marx como um conjunto que englobava tanto o transporte de mercadorias e pessoas, como o transporte de informações (cartas, telegramas, etc...). Porém, se chegou a tecer algumas considerações sobre o transporte de mercadorias, Marx ignorou o transporte da informação, pois talvez essa atividade lhe parecesse de rala importância econômica. 89

A seguir contextualiza a função do direito autoral:

Na economia capitalista, é evidente que há todo um interesse no aprisionamento da informação e na sua manutenção enquanto mercadoria, o que é garantido pelos direitos de propriedade intelectual e, mais especificamente, pelo direito de autor. É esse direito que transforma a informação em algo apropriável em regime de exclusividade, com a proibição da sua reprodução e da exploração, sem a devida autorização do titular. E a razão para tanto é muito simples: como o valor da informação é de difícil mensuração, conforme exposto acima, o poder de barganha dos agentes envolvidos na comercialização da informação depende da obtenção de algum tipo de monopólio, que garanta a exclusividade na sua exploração. Esse monopólio é constituído pelos direitos de propriedade intelectual

Ao contrário das patentes, os Direitos Autorais protegem o conteúdo das criações estéticas materializadas em um suporte tangível (como um livro, uma pintura em quadro, uma escultura) ou intangível (como os websites na Internet e as obras digitais de maneira geral). O Direito Autoral é válido por toda a vida do autor, mais setenta anos após a sua morte. Durante a fase pioneira da indústria fonográfica, poucos foram os registros documentados de desavença por direitos autorais. Segundo Franceschi (1984)135, só se gravava música cujo direito havia sido antecipadamente comprado ou doado, ou seja, um mecanismo de cessão. A partir de 1920 o autor menciona que os compositores colavam uma etiqueta no selo do disco, assinavam-na e controlavam o número de discos vendidos através de quantidade de selos em um bloco fornecido pela gravadora que correspondia à quantidade de cópias da primeira prensagem. Curiosamente o controle da numeração de discos vendidos, prática existente na época, é uma reivindicação que persiste por parte dos artistas até os dias de hoje. São raros os casos de controvérsias publicados, o único envolvendo propriamente discos ocorre em 1915 entre a Casa Edison e Selo O Gaúcho (da Casa A Eléctrica de Porto Alegre)136 em função da prensagem de fonograma com a música Cabocla de Caxangá. Figner instaura um processo de busca e apreensão para retirar os discos do mercado e obtém êxito junto à Justiça Federal que determina a apreensão de discos e matrizes por meio de oficiais de justiça encarregados da diligência. Franceschi (1984)137 considera o fato mais uma manobra comercial da representante local de Figner - a Casa Hartlieb - do que uma medida que visasse

135 FRANCESCHI. 2002. p. 79. 136 FRANCESCHI. 1984. p. 90. 137 FRANCESCHI. 2002. p. 219. 90

de fato a usurpação legal, inclusive reproduz uma carta da Casa Hartlieb endereçada a Figner relatando o acontecimento. Outro caso, que diz respeito à edição de partituras e não de discos, envolve Figner e Chiquinha Gonzaga, que em 1917 criaria o SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais), primeira entidade autoral brasileira. O cantor Mário Pinheiro também se indispõe com a Casa Edison (de quem era artista contratado) e com a Columbia, ao firmar com esta contrato para gravação nos E.U.A. em 1907. É com base na história dessas entidades que Morelli138 relata mais alguns raros momentos de desavença por direitos autorais envolvendo a indústria fonográfica. O primeiro deles em 1951 quando a SBACEM (Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Editores de Música) pleiteou um acordo para que a remuneração autoral fosse fixada em termos percentuais sobre os discos vendidos. Na década seguinte, as entidades autorais voltavam a reivindicar a numeração de discos no país em uma tentativa de aliança com o governo militar que vetou a lei em questão. Com o advento da tecnologia digital, o suporte físico deixa de ser o alvo das disputas judiciais da indústria fonográfica. Ganha relevo então, a proteção do conteúdo que está contido no suporte físico. Tal proteção deve se dar não mais em virtude de uma eventual reivindicação de direitos autorais pelo compositor, a briga da indústria fonográfica por uma maior proteção das músicas contidas nos fonogramas hoje leva em consideração um terceiro agente na relação indústria-compositor: o próprio usuário, que, com base na tecnologia digital, pode facilmente reproduzir as músicas gravadas sem a necessidade de adquirir a obra original. Assume assim um novo papel na interface, à medida em que passa a ter acesso às etapas de reprodução e gravação por meio da atualização (em seu sentido estrito) da informação digital virtual. Assim, a questão da proteção da tecnologia de reprodução e do suporte físico por patentes não é mais o que importa para a indústria fonográfica. Comparando os efeitos surtidos pelas disputas judiciais agora e no passado, evidencia-se, claramente, a perda de poder da indústria fonográfica no exercício de um controle sobre o mercado em contraposição com as inovações tecnológicas, em especial o controle sobre a patente do CD, inicialmente

138 MORELLI, Rita de Cássia Lahoz. Arrogantes, anônimos, subversivos: interpretando o acordo e a discórdia na tradição autoral brasileira. Campinas: Mercado das Letras, 2000. 91

desenvolvido por ela própria. Resta então recorrer ao direito sobre o conteúdo, como pontua CARBONI (2005)139:

Nas palavras de José de Oliveira Ascensão140: "na medida em que o Direito Autoral está ligado à tecnologia, há que contar sempre com a posição do empresário que controla a técnica. Isso foi evidente logo nos primórdios do Direito de Autor, com a invenção da imprensa: os primeiros privilégios não foram concedidos aos autores, mas sim aos impressores". Ele conclui, dizendo que a justificação do direito de autor ainda seria a de recompensar e estimular o criador intelectual, mas, na prática, são as indústrias do copyright (que se beneficiam indiretamente do exclusivo autoral) as propulsoras desta motivação.

Portanto, pode-se dizer que a função econômica do direito de autor é de justamente permitir a apropriação da informação enquanto mercadoria, tendo por base a concessão de um direito de uso exclusivo da informação, que garanta ao seu titular um poder de barganha na sua comercialização.

CONCLUSÃO

Dessa forma, termina este capítulo digital da novela das mudanças de suportes sonoros: repetindo elementos da história passada como um espelho que inverte a ordem dos elementos refletidos. A capacidade técnica de longa duração agora neutralizada, a tecnologia de gravação agora banalizada agindo como fator interativo, o fim da integração entre suporte e conteúdo com a duplicação agora em uso doméstico realizando um potencial produtivo direto nos usuários/consumidores. Dentro da Interface do suporte sonoro os mesmos atores invertem os papéis: autores gravam, consumidor duplicam e para combater a força produtiva gerada nessa inversão a indústria tenta se apropriar do direito de autor. A voz do dono e os donos da voz se confundem como nunca. À medida que se pretende uma apropriação da informação enquanto produto, cujo preço passa a ter difícil mensuração pela anulação de tempo na velocidade das tecnologias de informação, o princípio da tecnologia como meio de produção de mais valia, base do pensamento do pensamento Marxista é posto em xeque, e junto com ele as interpretações de toda uma tribo (emprestando um termo de Ricardo Goldenberg) que a partir daí teve o seu ponto de partida. O mesmo ocorre como o suporte sonoro, que voltando às disputas judiciais, pode estar agonizando da mesma forma que nasceu.

139 CARBONI, 2005. 140 ASCENSÃO apud CARBONI, 2005. 92

REFERÊNCIAS

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