UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

DA CANA DE AÇÚCAR ÀS MESAS DE SOM: HISTÓRIAS DA RABECA ATRAVÉS DE RABEQUEIROS

CATARINA SCHMITT ROSSI

CAMPINAS 2019

CATARINA SCHMITT ROSSI

DA CANA DE AÇÚCAR ÀS MESAS DE SOM: HISTÓRIAS DA RABECA ATRAVÉS DE RABEQUEIROS

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Música, na área de Música: Teoria, Criação e Prática.

ORIENTADOR: ESDRAS RODRIGUES SILVA

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA CATARINA SCHMITT ROSSI, E ORIENTADA PELO PROF. DR. ESDRAS RODRIGUES SILVA.

CAMPINAS 2019

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES). Processo nº 88887.288586/2018-00.

BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO

CATARINA SCHMITT ROSSI

ORIENTADOR: ESDRAS RODRIGUES SILVA

MEMBROS:

1. PROF. DR. Esdras Rodrigues Silva

2. PROF. DR. Hermilson Garcia do Nascimento

3. PROF. DR. Agostinho Jorge de Lima

Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

A ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros da Comissão Examinadora encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

DATA DA DEFESA: 27.08.2019

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais Wilson Rossi e Raquel Beatriz Schmitt Rossi, e minhas irmãs Bruna, Ana Rúbia e Camila… Mestres dos saberes e do poder transformador que nasce das tradições e da união. A Letícia e Elza que sempre me apoiando com leveza no caminho, mostraram quão grande e amoroso ele pode ser. A Marcio Demazo pelos primeiros e valiosos ensinos de música, bem como por me apresentar a rabeca. Aos Amigos e Professores, que sempre escutando com paciência minhas tagarelagens, ensinam-me a beleza que é buscar conhecimento através das histórias e da sabedoria popular. Ao Esdras, que pacientemente me guiou nessa jornada, iluminando as linhas desta dissertação. A Maria Fernanda Novo e Professor Agostinho de Lima por todo o suporte fornecido à pesquisa, com tamanha generosidade e profissionalismo. A Clara, Marina, Indira, Anaíra, Renata e Adiel por me apresentarem um universo que ainda reverbera. A Bianca Piagentini por tantos encontros que proporcionou, mas principalmente, pelo nosso. A Nelson da Rabeca, Thomas Rohrer, Gramani, Siba, Claudio Rabeca, Filpo Ribeiro, Jeferson Leite, Marcelo Portela, Felipe Gomide, Rê Araujo e todos os rabequeiros que compartilharam histórias e inspirações. A Universidade Estadual de Campinas pelo livre acesso ao conhecimento e por me formar como pesquisadora, musicista e ser humano. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

RESUMO

Esta pesquisa busca investigar os caminhos pelos quais a rabeca vem seguindo no cenário musical brasileiro, bem como, a abertura de possibilidades sonoras e estilísticas que têm ocorrido na prática do instrumento nas últimas três décadas, como consequência de seu êxodo rural para as zonas urbanas. Para tal, com base no conceito de hibridismo de Canclini, procedeu-se a investigação de três agentes de transformação responsáveis por eventos importantes na história atual da rabeca brasileira: Siba, José Eduardo Gramani e Thomas Rohrer, traçando um paralelo entre a história do instrumento e a performance de rabequeiros contemporâneos, destacando suas inovações no uso da rabeca e contribuições para a construção de novas linguagens.

Palavras-chave: Rabeca; Rabequistas; Fusão cultural.

ABSTRACT

This research seeks to investigate the actual status of the Brazilian rabeca in contemporary Brazilian music scene, and as well, to point out the changes in sound and style that occurred in its practice in the last three decades, as a consequence of its exodus from rural to urban areas. To this end, and based on Canclini’s concept of hybridization, we proceeded to investigate three agents of transformation responsible for important events in the current history of the Brazilian rabeca: Siba, José Eduardo Gramani e Thomas Rohrer, drawing a parallel between the history of the instrument and its performance by contemporary players, and highlighting their innovation in the usage of the instrument and their contribution for the construction of new languages.

Keywords: Rabecas; Fiddlers; Cultural fusion.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Mapa da rabeca ...... 18 Figura 2: e rabeca ...... 21 Figura 3: Zé Pereira ...... 25 Figura 4: Terno de Reis Paixão Côrtes ...... 26 Figura 5: Zé Côco do Riachão ...... 27 Figura 6: Casa Nelson da Rabeca ...... 30 Figura 7: Sala de música...... 31 Figura 8: Oficina...... 32 Figura 9: Rabeca Microfonada...... 32 Figura 10: Nelson e Cícero ...... 32 Figura 11: Arcos Nelson da Rabeca ...... 34 Figura 12: Rabecas à venda ...... 37 Figura 13: Captadores de fio de telefone ...... 39 Figura 14: Instrumentação do banco de Cavalo-marinho ...... 45 Figura 15: Transcrição Toada da Estrela ...... 46 Figura 16: Mestre Salustiano ...... 49 Figura 17: Matéria do Jornal “O Globo” ...... 58 Figura 18: Matéria do Jornal O Globo ...... 61 Figura 19: Artigo Cláudio Rabeca ...... 70 Figura 20: EnRabecador ...... 71 Figura 21: José Eduardo Gramani ...... 74 Figura 22: Gramani e Nelson da Rabeca ...... 77 Figura 23: Zé Gomes ...... 80 Figura 24: Set de Thomas Rohrer utilizado no Show Tradição Improvisada ...... 85 Figura 25: Nelson e Thomas - Show Tradição Improvisada ...... 87 Figura 26: Transcrição do tema principal de O segredo das árvores ...... 89 Figura 27: Transcrição - Rabequiê (faixa 2 - Tradição Improvisada) ...... 91 Figura 28: Encarte do CD Tradição Improvisada ...... 94

LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Relação de construtores e rabequistas da família Pereira (SILVA, 2001, p. 38). 24 Tabela 2: Mudança e continuidade na música de rabequeiros de acordo com LIMA (2015).103

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

1. A RABECA E SEUS CAMINHOS NO BRASIL 15

1.1 HISTÓRIA ...... 15

1.2 FANDANGO CAIÇARA ...... 21

1.3 AS FOLIAS DE REIS E ZÉ COCO DO RIACHÃO ...... 26

1.4 NELSON DA RABECA ...... 29

1.5 A RABECA DE PERNAMBUCO ...... 41

1.5.1 O cavalo-marinho ...... 43

1.5.1.1 A música ...... 44

1.5.1.2 Mestre Salustiano ...... 47

2. HIBRIDISMO E AS CULTURAS POPULARES 51

2.1 CONCEITO ...... 51

2.2. CASO 1 ...... 55

2.2.1 Manguebeat ...... 55

2.2.2 Mestre Ambrósio ...... 59

2.2.3 Desdobramentos - A rabeca pernambucana na cultura popular urbana ...... 64

2.3 CASO 2 ...... 73

2.3.1 José Eduardo Gramani ...... 73

2.3.2 Zé Gomes ...... 79

2.3.3 Thomas Rohrer ...... 83

2.3.4 Tradição Improvisada ...... 86

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS 95

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 107

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INTRODUÇÃO

Rabeca véia não me abandona Zabumba treme-terra, come o chão Na hora em que o tempo desaparece Transforma em pé-de-serra o calçadão. (Pé -de-calçada, Mestre Ambrósio).

Em uma viagem para conhecer as festas de São João no Recife, em junho de 2014, conheci a rabeca, instrumento musical que narra histórias, embala as danças, os festejos, e retrata muito do Brasil e suas tradições. Ouvir de perto o som das rabecas de Seu Luiz Paixão, Maciel Salú, Thiago Martins, Cláudio Rabeca e tantos outros que como estes representam diferentes fases da trajetória do instrumento, trouxe-me a certeza de que eu precisava pesquisar sobre aquilo e entender como tudo aconteceu e acontece, pois a rabeca diz muito sobre o Brasil na sua forma mais genuína. Começando a pesquisar, busquei ouvir tudo o que encontrava, e cada vez mais me fascinavam as singularidades de cada rabeca, cada rabequeiro. Gramani, Renata Rosa e Siba me mostram mais tantos universos, misturas aculturadas da linguagem rabequeira com a linguagem erudita, referências indígenas, a modernidade das pedaleiras e do diferente som do Mestre Ambrósio. Essa junção de sensações e história se expandiu ainda mais quando fui ao SESC assistir a um rabequeiro que ainda não conhecia. Lá encontrei uma constelação inteira de músicos, que eram Nelson da Rabeca, Thomas Rohrer e Dona Benedita, apresentando o projeto “Tradição Improvisada”. No meio do palco estava Nelson da Rabeca, um senhor sorridente, com pouca audição, que sentadinho ali, apoiava sua enorme rabeca no joelho e a fazia soar como um canhão… Naquelas cordas duplas reverberava um retrato de outro pedaço do Brasil, uma sinceridade e potência que notoriamente traziam uma longa história. Do seu lado esquerdo, com vestido colorido estava Dona Benedita, sua esposa, que com uma voz alegre e sem preocupação cantava livremente melodias que traduziam em palavras um pouco do que a rabeca do Seu Nelson falava. E do outro lado, estava o Thomas com rabecas diferentes, cheio de acessórios e arcos de

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vários tamanhos, completando os acordes e contornando as melodias da primeira rabeca. Todo esse começo já foi cheio de significado, e lá pela quinta música a apresentação se transformou, Dona Benedita sentou e a primeira rabeca começou a tocar sons diferentes, buscar texturas inesperadas, a segunda foi acompanhando, propondo mais e mais ideias musicais, ao mesmo tempo em que o percussionista Antonio Panda friccionava um arco de violino no prato de sua bateria, eram incríveis texturas sobrepostas, sons criados ali, na sinceridade do momento presente. Esta improvisação livre foi me inquietando e contagiando ao mesmo tempo. Então senti a necessidade de estudar esse fenômeno de sons, contemporaneidade, cultura e encantamento que é a rabeca. Conforme a pesquisa foi caminhando, pude perceber uma série de problemáticas que envolvem o tema, como mudanças na maneira de se tocar o instrumento, distanciamento do modelo de performance da música tradicional, hibridismo cultural, um novo modelo de ensino e aprendizagem, expansão dos locais de atuação, adaptações modernas no corpo do instrumento e outros fatores que serão apresentados ao longo desta dissertação. Esta pesquisa busca investigar os caminhos pelos quais a rabeca vem seguindo no cenário musical brasileiro, bem como, a abertura de possibilidades sonoras e estilísticas que tem ocorrido na prática do instrumento nas últimas três décadas, junto ao êxodo das zonas rurais para as zonas urbanas.

No âmbito da pesquisa qualitativa, buscamos interpretar o fenômeno específico em profundidade através de recursos como a observação, a descrição, comparação e a compreensão/interpretação; apresentar material bibliográfico sobre a rabeca e seu processo de transformação até os dias atuais, tendo como base inicial as publicações de Agostinho de Lima, Luiz Henrique Fiammenghi, José Gramani, John Murphy e Néstor Garcia Canclini; analisar as performances e trajetórias dos rabequeiros contemporâneos em destaque nas principais metrópoles e meios digitais; e documentar a música de Nelson da Rabeca junto do Projeto Tradição Improvisada. Com isso, busco apresentar um panorama geral do que vem ocorrendo nesse processo de urbanização da rabeca, e como os novos recursos, tanto sonoros

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quanto sociais, influenciam na música deste instrumento que atualmente sofre êxodo das regiões rurais e ganha grande dimensão nas metrópoles. A partir do conceito de hibridismo estabelecido por Canclini como “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI, 2006, p. 9), observaremos esta via de desenvolvimento da música de rabeca, que chegou aos centros urbanos e ganhou visibilidade no meio musical. Para isso, identificamos um percurso histórico que será contado através de agentes, representantes de uma tradição (que inseridos nela ou não), expandiram os limites do instrumento, valorizando-o e difundindo sua prática.

O conceito de tradição é testemunho vivo do fato de que as funções, do inovar e do conservar, só podem ser exercidas conjuntamente, já que continuar sem inovar significa apenas copiar e repetir, e inovar sem continuar significa fantasiar no vazio, sem fundamento. (PAREYSON, 2001, p. 137).

Numa perspectiva etnográfica, Seeger (2008), relaciona diretamente a tradição à mudança, questionando o lugar no passado que, no senso comum, é colocada a tradição. Esse autor afirma que “O fato de que sempre existirá uma próxima vez, aponta para o que podemos chamar de tradição. O fato de que a próxima vez não será nunca igual à vez anterior produz o que podemos chamar de mudança”. (SEEGER, 2008, p. 238). Entendemos, como Giddens (2003), que "[…] todas as tradições são inventadas” e que “nenhuma sociedade tradicional era inteiramente tradicional, e tradições e costumes foram inventados por uma diversidade de razões” (GIDDENS, 2003, p. 50). Para esse autor, a tradição sempre busca estruturar o presente, através de conteúdos narrativos e regras de coesão. No âmbito das tradições orais, é comum que os membros mais experientes, ou “vividos”, sejam os guardiões de saberes que são transmitidos aos iniciantes, como modos de interpretação para um estabelecimento coerente da vida, no presente. A tradição da música de rabeca no Brasil é feita por pessoas, e será a partir da história de algumas delas que contaremos um recorte dessa história maior. Com isso, encontramos dois caminhos pelos quais a rabeca trilhou até chegar aos centros urbanos. Ambos tiveram sua semente fertilizada nos canaviais nordestinos, se desenvolveram e espalharam pelo país.

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No capítulo I faremos uma breve introdução à história da rabeca, apresentando como ela possivelmente chegou ao Brasil, disseminando-se em algumas manifestações tradicionais. É válido ressaltar que esta pesquisa não busca percorrer a história em sua totalidade, pois seria inviável, analisaremos o recorte que nos levará a contemporaneidade e aos aspectos em questão. No capítulo II discorreremos sobre os conceitos de hibridismo e tradição, a fim de basear dois casos que guiaram a rabeca para expansão de seus limites, sendo eles:

1. A sonoridade da performance de rabeca encontrada em centros urbanos - influenciada por uma vertente musical latente em Pernambuco e pelo movimento Manguebeat, através da banda Mestre Ambrósio, tendo em Siba a figura de agente urbanizador.

2. A teia entre Zé Gramani, Nelson da Rabeca, Zé Gomes e Thomas Rohrer:

. A inserção da rabeca nas universidades, o desenvolvimento de uma linguagem rabequiana com elementos da música antiga e a pesquisa de Gramani, que foi de encontro a Nelson da Rabeca.

. A produção fonográfica de Zé Gomes, que apresentou a rabeca à Thomas Rohrer e juntos criaram a ideia do projeto Tradição Improvisada, fundamentado na expansão sonora das possibilidades estéticas e técnicas do instrumento, por meio de recursos tecnológicos e experimentações, que também foi de encontro a Nelson da Rabeca.

Nas considerações finais discorreremos sobre os reflexos destes casos na atualidade, analisando produções fonográficas dos últimos anos. Baseados em Lima (2015), faremos um comparativo da performance de antigos e novos rabequeiros.

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1. A RABECA E SEUS CAMINHOS NO BRASIL

1.1 HISTÓRIA

Embora existam inúmeros trabalhos que buscam contar a história da rabeca no Brasil, é improvável encontrar um percurso histórico determinante sobre a origem da mesma, pois os registros mais antigos não são detalhados, e possibilitam diferentes interpretações. Porém, grande parte da bibliografia encontrada aponta que a rabeca é descendente do , um cordofone de cordas de tripa presente nas manifestações de canto e dança da Europa medieval, conforme explica Santos sobre as afirmações de Sadie:

Rebec [rabeque] Instrumento de arco, que teve origem no séc. X, usado na música erudita européia, principalmente durante a Idade Média e o Renascimento. Havia duas formas básicas, periforme ou retilínea e estreita. A cravelheira às vezes formava um ângulo reto e mais tarde assumiu a forma de foice. As cordas variavam de uma a cinco ou mais, sendo três o mais típico: era geralmente afinado em quintas. (SADIE apud SANTOS, 2011, p. 19).

Em contrapartida, podemos encontrar levantamentos sobre a possível história da rabeca oriunda da região africana e Oriente Médio, segundo as pesquisas de Agostinho de Lima:

[rubãb, rubob, rebab, rabob, robãb, ribãb, rabãba, etc.] Um termo para vários cordofones, particularmente lutes, ambos tocados com arco, e liras, encontradas principalmente na África do Norte, Oriente Médio, Irã, Ásia central [etc.]. (...) A etimologia e origem do termo “rabãb” para designar cordofones não é conhecida com segurança. Foi mencionado pela primeira vez em um texto arábico medieval (séculos IX e X) de Al-Jahi Ibn khurdadhbih e Al-Fãrãbi. (REMNANT apud LIMA, 2001, p. 6).

E Fiammenghi,

Pela etimologia da palavra “rabeca”, chega-se em rabab, instrumento de origem árabe muito antigo, ainda hoje existente na música tradicional do Marrocos, cuja história confunde-se com a própria origem dos cordófonos friccionados por arco. Do rabab ou rehbab derivam suas inúmeras variantes: rubeba, rebec, rabé, , ribeca, rebeca. Tantas variações lingüísticas mostram uma das características deste instrumento que se espalhou na área de

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influência árabe no Mediterrâneo: a não padronização. A rabeca brasileira provém, portanto, desta longa linha que nos liga ao Oriente, por intermédio de nossos ancestrais ibéricos. A influência árabe na cultura ibérica não se restringiu, porém, ao período de ocupação, que foi longo o suficiente para permear todas as áreas da cultura. Uma forte miscigenação foi a marca deste período, fruto de uma convivência social permissiva e liberal, na qual católicos, muçulmanos e judeus sefarditas exerciam seus rituais religiosos e faziam trocas comerciais, culturais, e principalmente, no nosso caso, musicais. A rabeca é um dos produtos dessas trocas, mesmo que sobre ela não tenham sobrado relatos sobre seus caminhos, o que nos faz supor que viveu ali também nos subterrâneos da cultura oficial. (FIAMMENGHI, 2008, p. 156-157).

Ou ainda, em Santos (2011), relatando que a lira de braço e o são instrumentos que podem ter influenciado na forma da rabeca, pois no século XV é conhecida a existência destes instrumentos em forma primária, utilizados no acompanhamento de danças ou de canto, com função harmônica e rítmica. E mesmo com a vasta quantidade de pesquisas de autores para além dos citados aqui, Santos defende que “a invenção da rabeca repousa em relativa obscuridade, pois não há, na documentação histórica, uma trajetória clara sobre o caminho percorrido por esse instrumento”. Lima conta que as rabecas chegaram ao Brasil com os colonizadores portugueses e espanhóis. Desde então, foram se moldando conforme a realidade de cada região pela qual foram introduzidas, transformando-se junto com as culturas locais, embalando festas e rituais.

Em Camêu (1977: 22) há uma referência à presença do arrabil em uma festa de uma comunidade da região Amazônica. A autora cita um capitão espanhol Francisco Orellana que, numa expedição em 1541, relatou que presenciara uma festa onde havia “... muitas trombetas, tambor e órgãos que tocam com a boca e arrabis de três cordas”. Calmon (1988:22) cita a presença de rabecas numa festa pública de sapateiros e correeiros ocorrida em 1762 na vila de Santo Amaro na Bahia. O mesmo relatando esta festa diz que ‘... a sua demonstração em uma dança de ricas e vistosas farsas, que em nada cedia à dos alfaiates, e discorreram pelas ruas ao som de várias rebecas destramente tocadas’. (LIMA, 2001, p. 7).

Sobre a vida musical no Pará e a presença das rabecas, o musicólogo Vicente Salles observa que:

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No governo de João Pereira Caldas (1722-1780) é citada uma orquestra de 12 músicos, negros escravos, composta de timbales, 6 trompas, 2 rabecas, 2 flautas e 2 clarins, e os negros se apresentavam ‘vestidos todos com vestidos azuis e escarlates, agaloados de galões de seda, com seus barretes nas cabeças (SALLES, 1969, p. 18).

Ainda, sobre este contexto acrescenta Siba:

Ela veio com a colonização, mas veio com pessoas que de algum modo ainda mantinham um ambiente cultural e mental da Idade Média, são tradições que jogam a gente pra Idade Média. Que por sua vez passaram a existir na Europa por mistura das culturas. A rabeca não veio na mão dos donos de engenho, mas na mão do povo que veio trabalhar, ou sendo escravo ou sendo pobre europeu que tava fugindo ou tentando escapar. (SIBA, 2019)1.

Uma importante característica da rabeca é que ela é um instrumento não padronizado em todos os seus aspectos, na construção, forma, afinação, qualidade timbrística, além de não possuir um repertório hegemônico, como os instrumentos eruditos.

Seguindo o costume, as rabecas constituem uma grande diversidade no Brasil, há rabecas de cocho, rabecas de cabaça, rabecas de três cordas, além de modelos personalizados como a rabeca de lata de Luiz Costa-CE, e a rabeca do sonho de Chico Barbeiro-CE, eletrificada, confeccionada em PVC e sem caixa acústica. Os processos de fabrico são os mais diversos. A construção mais recente de rabecas em oficinas de luteria parece apontar para uma tendência mais aparentada com os violinos” (SANTOS, 2011 p. 31).

Nobrega afirma que a técnica para a construção das rabecas é particular em cada região do Brasil, resultando em instrumentos únicos, que variam até no número de cordas e na afinação das mesmas. Acrescentando que “No Brasil, a designação rabeca foi aplicada também ao violino até princípios do século XIX. É encontrada nas partituras de José Maurício e de outros compositores seus contemporâneos.” (NÓBREGA, 2000, p. 5). Também é muito particular a maneira de cada rabequeiro adequar o instrumento ao corpo, segurar o arco, e tocar. Tanto em relação à técnica quanto aos conceitos estilísticos de harmonia, melodia e improvisação.

1 Em comunicação oral durante aula-show ministrada no SESC Consolação (São Paulo), em fevereiro de 2019.

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A iconografia medieval retrata viellas e rabecas medievais sendo tocadas por jograis e trovadores com os instrumentos apoiados no peito, na altura do coração. Muitos rabequeiros da tradição brasileira adotam também essa posição, mas não são todos: Seu Nelson, Mestre Salustiano, por exemplo, apoiam a rabeca abaixo do queixo. Outros, como Siba, Luiz Paixão, Mané Pitunga, e a maioria dos rabequeiros da região de Iguape/Cananéia e Paranaguá, adotam a posição no peito, variando de músico para músico o ângulo em relação ao chão. Nesse aspecto, as rabecas são também não padronizáveis. (FIAMMENGHI, 2008. p. 175).

Pode-se notar também a pluralidade da ocorrência de rabeca nas mais variadas manifestações culturais pelo Brasil, bem como as diversas funções musicais que ela exerce em cada uma delas. São encontradas em grupos de Fandango caiçara, Reisados como Ternos de Folia de Reis e do Divino Espírito Santo, grupos de Congadas, conjuntos de forró, brincadeiras de Cavalo-marinho e Boi-de-reis, em comunidades indígenas, ou ainda como instrumento de apoio para cantadores e trovadores, além da existência de rabequeiros que tocam solisticamente em sua região, como Cego Oliveira (CE), Dona Ana da Rabeca (CE), Seu Miúdo (TO), Seu Nezinho (AM), entre outros.

Figura 1: Mapa da rabeca Fonte: rabeca.org

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Conforme pode-se observar na ilustração do Mapa da rabeca2 (fig. 1), a rabeca pode ser encontrada em grande parte do país, e somente neste estudo realizado em 2013, foram catalogados 570 registros de performances de rabequeiros, com predominância nas regiões Nordeste e Sudeste, majoritariamente nas regiões costeiras (MOTT, 2013). A bibliografia acerca do tema é ampla e direcionada a tradições específicas, já que conforme explicado, a rabeca é um instrumento pertencente a vários nichos e passível de várias interpretações. Dentre as produções mais recentes encontramos:

 LIMA; DINIZ (2017) Mestre Zezinho: música de rabeca e de cavalo-marinho na Paraíba;  PINHO JUNIOR (2017) Experiência de Estudo e ensino de rabeca em diferentes contextos por cifra numérica;  ARAUJO NETO (2016) A construção da rabeca: Idiossincrasias do mestre Antônio Merengue;  LINEMBURG (2015) As rabecas brasileiras na obra de Mário de Andrade: uma abordagem prática;  LIMA (2015) Mudança e continuidade na música de rabequeiros;  BRUSANTIN (2014 - produção coletiva) Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho;  DAMASCENO (2014) O ensino de rabeca no Instituto Federal do Rio Grande do Norte: um relato de experiência;  SANTOS, Maria (2013) Núcleos da Cultura Caiçara em Iguape e a Confecção da Rabeca;  LINEMBURG (2013) A rabeca nas cantorias do divino espírito santo em Santa Catarina;  SANTOS, Ronderick (2011) Isso não é um violino? Usos e sentidos contemporâneos da rabeca no Nordeste;

2 Pesquisa realizada por MOTT. Instituto de Artes da Universidade Federal de Brasília, levantamento de dados organizado em 2013. Disponível em Acesso em: 20 jul. 2018.

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 ALIVERTI (2011) A rabeca na Marujada de Bragança/PA: o impacto de uma pesquisa institucional em uma prática musical;  MONTEIRO JÚNIOR (2011) O entre do carvão ao corpo-em-arte de ator- brincante;  GRAMANI (2009), O aprendizado e a prática da rabeca no Fandango caiçara: estudo de caso com os rabequistas da família Pereira da comunidade do Ariri;  SANDRONI (2009) O mangue e o mundo: notas sobre a globalização musical em Pernambuco;  FIAMMENGHI (2008) O violino violado: rabeca, hibridismo e desvio do método nas práticas interpretativas contemporâneas - Tradição e inovação em José Eduardo Gramani;  MURPHY (2008) Cavalo-Marinho Pernambucano;  CARVALHO (2006), Rabecas do Ceará, livro que cataloga 105 rabequeiros da região;  CORRÊA; GRAMANI; PIMENTEL (2006). Museu vivo do fandango;  GRAMANI (2002) Rabeca, o som inesperado;  LIMA (2001) Música tradicional e com tradição da rabeca;  NÓBREGA (2000), A Rabeca no cavalo marinho de Bayeux, Paraíba;  MURPHY (1997) The "Rabeca" and Its Music, Old and New, in Pernambuco, ;  SETTI (1988) Ubatuba nos cantos das praias – estudo do caiçara paulista e de sua produção musical;  EDWARD (1988) Artesão de Sons: vida e obra do Mestre Zé Côco do Riachão;

Esta dissertação busca desvendar os caminhos de um recorte: a rabeca urbanizada via agentes de hibridação. E baseados em leitura das obras citadas, relatos de rabequeiros, análises de performances e pesquisas sobre a rabeca que chegou ao meio urbano, apresentaremos peças que contam parte desta história. Mesmo assim, a teia é grande e complexa, por isso, buscaremos contar a história de maneira fragmentada, começando por mestres nascidos em tradições culturais específicas, passando por músicos que tiveram contato com estas tradições e transformaram sua performance (os chamados agentes de hibridação), chegando à

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geração atual de rabequeiros, que reflete esses dois momentos da música de rabeca. Assim, começaremos com o Folguedo, que segundo Gramani (2011, p. 21) é a denominação empregada para diferentes manifestações encontradas no país, comumente representadas por um conjunto de danças.

1.2 FANDANGO CAIÇARA

No litoral sul de São Paulo e norte do Paraná, região conhecida como Lagamar3, encontraremos o Fandango, manifestação cultural que envolve música, dança e artesanato, onde a rabeca, junto a duas e o pandeiro, embalam a festa. É dançado em pares com coreografias de roda, apresentando variações tanto na formação dos instrumentos quanto das danças. A viola é o instrumento mais importante do fandango, podendo ser encontrado em todos os grupos, e a rabeca tem função de acompanhar as vozes da melodia e ligar um verso ao outro com pequenos solos. Com exceção das rabecas de Morretes e Iguape, que possuem quatro cordas, as rabecas mais tradicionais de fandango possuem apenas três cordas (GRAMANI, 2009).

Figura 2: Viola e rabeca Fonte: Acervo da Associação Cultural Caburé

3 Envolve as cidades entre Paranaguá (PR) e Iguape (SP) (GRAMANI, 2009. p. 20).

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O fandango sustenta-se no conhecimento passado de geração a geração, representando um vasto patrimônio imaterial da cultura popular que inclui diversas áreas: dança (marcas coreográficas que se alternam entre as batidas [sapateado] e o valsado ou bailado, conhecidas como Anu, Dondon; Chamarrita; Andorinha; CanaVerde e Recortado, entre outras); música e artesanato (tamancos). (FIAMMENGHI, 2008, p. 217).

Segundo Gramani (2011), pesquisadores acreditam que o fandango existe nesta região desde “meados do séc. XVIII, auge do fandango espanhol em Portugal” (GRAMANI, 2011, p. 20). Neste amplo estudo realizado por Daniella Gramani em 2011, pode-se encontrar uma rica bibliografia que discorre sobre a origem e desenvolvimento da manifestação. Como esta pesquisa seguirá por outros caminhos, buscamos apenas apresentar alguns dos rabequistas4 que exaltam a relevância de tão antiga manifestação e a importância de sua sobrevivência, que mesmo com dificuldades, resiste por tantos séculos, conforme conta Fiammenghi:

A rabeca permanece como um dos principais instrumentos musicais utilizados nas manifestações culturais populares na região de Iguape/Cananéia no Sul de São Paulo e que se estende até Paranaguá e Morretes, no Paraná. A permanência de antigas tradições culturais nessa região é um fenômeno raro, e é consequência do isolamento geográfico, determinado por uma intrincada rede de canais e ilhas que impedem a circulação e ocupação através de estradas e o seu desenvolvimento como terra agricultável. Se levarmos em consideração que a região é habitada desde os primórdios da colonização, podemos imaginar a antiguidade das tradições musicais ali ainda existentes, como o Fandango e as Folias de Reis. Nessas tradições, a rabeca, juntamente com as violas típicas da região, tem presença obrigatória. (FIAMMENGHI, 2008, p. 105).

A partir da metade do séc. XX, a região de Lagamar passou a sofrer um processo de migração que se intensificou nos anos 80, quando a caça, a pesca e a agricultura foram proibidas por unidades de conservação ambiental. Juntamente a esta migração, o surgimento de igrejas que proibiram a prática do fandango, além da influência dos meios de comunicação de massa, também contribuiram para que a manifestação se enfraquecesse e para que parte dos jovens perdesse o interesse pela continuidade da prática (GRAMANI, 2009, p. 31).

4 Segundo Gramani (2011, p. 59), nas práticas de fandango os tocadores de rabeca são chamados de rabequistas, diferentemente da região nordeste, onde são denominados rabequeiros.

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Embora esses fatores sejam relevantes para mudanças em determinadas características da manifestação, ela continua resistindo. Em 2008, no 2º Encontro de fandangueiros, Gramani encontrou no Ariri dois grupos de fandango com 20 integrantes cada um, compostos por jovens em sua maioria. (GRAMANI, 2009, p. 80). A rabeca é muito importante no fandango. Na verdade, a rabeca é um instrumento principal no fandango. Tem que ter rabeca, né? (...) Faz só com viola. Fica meio... Eu digo meio sem graça, né? Não fica bom. Então, não tendo o pandeiro nem o bumbo, eu acho que com a rabeca ela fica normal. Se torna a mesma coisa. (...) Não adianta você tocar uma viola se não tiver uma rabeca, um bombo, então a rabeca ela é um instrumento muito importante no fandango. Tanto que ela enfeita, tira o erro do violeiro, encobre no cantar também, então ela dá uma boa diferença. (PEREIRA, L. apud GRAMANI, 2009, p. 113).

Conforme veremos adiante, a rabeca fandangueira foi porta de entrada para José Eduardo Gramani no universo desse instrumento, através de uma rabeca construída pelo Mestre Davino de Aguiar da região de Cananéia, que ganhou de presente e para a qual compôs quatorze músicas ao longo da vida (FIAMMENGHI, 2008, p. 208). Em seu livro póstumo O Inesperado Som da Rabeca, organizado por Daniella Gramani em dezembro de 2002, Zé Eduardo registra as viagens de campo feitas de fevereiro de 1996 a julho de 1997. Passou pelas cidades de Morretes (PR), Paranaguá (PR), Iguape (SP) e Marechal Deodoro (AL) a fim de pesquisar o trabalho de quatro construtores de rabeca, sendo três provenientes das práticas de Fandango. O primeiro, Martinho dos Santos, nasceu em março de 1933 e mora no centro de Morretes (PR), toca viola de fandango que aprendeu indo aos bailes. Constrói viola, rabeca, bandolim, cavaquinho e banjo. Gramani conta que Martinho fez uma rabeca em sete dias com madeira compensada no tampo e caroba nas outras partes, utilizando cordas de viola caipira em uma afinação de Fá Maior (fá-do- fá-lá). Gramani também afirma que foi através da sonoridade desta rabeca que passou a deixar de ter o som do violino como parâmetro em sua performance. (GRAMANI, 2002). O segundo foi Júlio Pereira, construtor de rabecas da região de Paranaguá (Paraná), nascido em 1932, que também constrói rabeca mas não sabe

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tocar, apenas afinar, embora toque viola de fandango. Assim como a tradição fandangueira, o aprendizado da construção de instrumentos é de caráter familiar, e aprendeu com seu pai, que também era construtor, conforme comenta Silva:

A construção de instrumentos, estreitamente ligada à tradição do fandango na região de Paranaguá, tem um caráter familiar. A família Pereira por gerações forneceu grande parte dos construtores de rabeca e rabequistas. [...] A família é de Ariri (município de Cananéia, SP), mas estendeu ramos na região de Paranaguá, em povoados como Guaraqueçaba, Rio dos Patos e Ilha dos Valadares. Nesta lista familiar, diversos nomes com graus de parentesco variados (ao Sr. Júlio) são levantados, dentre eles:

CONSTRUTORES RABEQUEIROS

Guaraqueçaba Anísio (sobrinho) Anísio (sobrinho)

Ilha dos Valadares Pedro Pereira (sobrinho) Airton Zeca

Rio dos Patos Arnaldo (sobrinho) Tio Julino (irmão) Tio Julino (irmão) Leonildo (sobrinho) Zé Pereira (sobrinho) Felício (sobrinho) Zé Pereira (sobrinho) Joaquim (sogro de Zé Pereira) Tabela 1: Relação de construtores e rabequistas da família Pereira (SILVA, 2001, p. 38).

Segundo Gramani (2009, p. 80-97), o rabequista e construtor da família Pereira de maior prestígio na região é Zé Pereira, nascido em Rio dos Patos no ano de 1951. Exemplificando três gerações da tradição, seu filho Laerte e seu irmão mais velho Arnaldo, também são rabequistas e compõem o grupo do qual Zé é o líder, chamado Jovens do Ariri, localizado na comunidade do Ariri em Cananéia/SP, região em que reside desde 2006. Uma particularidade de Zé Pereira é que ele posiciona sua rabeca na vertical, apoiada em sua perna, e na entrevista cedida a Daniella Gramani, explica que quando a vontade de tocar rabeca surgiu, ele ainda era muito pequeno, seu braço não alcançava o instrumento, então o apoiou no chão e começou a estudar. (GRAMANI, 2009, p. 117).

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“Zé Pereira é tido como um virtuose da rabeca; a qualidade de seu toque é reconhecida tanto pelos outros fandangueiros, como por músicos e pesquisadores, e por ele próprio.” (GRAMANI, 2009, p. 116).

Figura 3: Zé Pereira5 Fonte: Iberculturaviva

O terceiro e último rabequista de fandango pesquisado por Gramani em Rabeca, o som inesperado, é Arão Barbosa, nascido em 1940 na cidade de Iguape – SP. Arão constrói rabecas desde criança e conta ter aprendido sozinho. Suas rabecas possuem quatro cordas de viola caipira em uma afinação intervalar de 4ª, 4ª e 3ª. Arão toca alguns toques de Fandango na rabeca, assim como trechos de Folias de Reis. Há uma suposição de que as rabecas chegaram à região de Lagamar através dos grupos de Folias de Reis que por lá passaram (MUSEU VIVO DO FANDANGO, 2006, p. 26), então é comum que os rabequistas desta região tenham certo conhecimento desse repertório.

5 . Disponível em: Acesso em: 17 jun. 2019.

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1.3 AS FOLIAS DE REIS E ZÉ COCO DO RIACHÃO

As Folias são manifestações religiosas que ocorrem em diversas regiões do país no período natalino, com o intuito de celebrar a visita dos três reis magos ao menino Jesus. De 24 de dezembro a 6 de janeiro, grupos de pessoas, também chamados Ternos de Reis em algumas localidades, peregrinam de casa em casa tocando violas, rabecas, gaitas, cavaquinho e caixas, cantando músicas que falam desta tradição, variando de acordo com cada região (DIANA, 2019). Segundo Pergo (2007, p. 1), a “Folia de Reis teria surgido no Brasil no século XVI, por volta do ano de 1534, por meio dos Jesuítas, como crença divina para catequizar os índios e posteriormente os negros escravos.”.

Figura 4: Terno de Reis Paixão Côrtes Fonte: Acervo de Edson Olímpio6

O estado de Minas Gerais tem forte tradição em Folias de Reis e segundo Queiroz e Carmo (2005, p. 1060), apenas na cidade de Montes Claros existem trinta grupos registrados, encontrando-se também a prática de rabeca nas apresentações de Caboclinho, inseridas nos ternos de Congada7. Segundo Mott (2013), Montes Claros é a cidade onde viveu um importante Mestre na prática de rabeca do século XX, José dos Reis Barbosa dos Santos

6 Disponível em: Acesso em: 16 jun. 2019. 7 Festa afro-católica originária de Minas Gerais por volta do séc. XVIII (QUEIROZ, 2003. p. 4).

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(Mestre Zé Coco do Riachão), nascido em 1922 em Brasília de Minas (MG), filho de tocador e construtor de violas da Folia de Reis.

Tocar rabeca significava para Zé Côco mais do que o simples ato de fazer música, mas estava ligado à devoção, à obrigação religiosa. Zé Côco disse que ficou anos sem tocar a viola, mas a rabeca, por conta da folia, nunca largou. “Fui tudo misturado: artesão, carpintêro, musgo... Mais o causo mais importante foi a folia. Essa num é profissão, nem promessa também num é. Ela sempre inxistiu na minha vida proque eu sou de Santo Reis.”(EDWARD apud GRAMANI, 2009, p. 63).

Figura 5: Zé Coco do Riachão Fonte: Acervo do site rabeca.org8

Zé Coco nasceu no dia em que passava uma Folia, então a mãe o consagrou aos Santos Reis e deu-lhe o nome José “dos Reis”. Essa devoção cresceu com ele, que ainda criança pediu ao pai para que fizesse sua primeira rabeca. Logo que aprendeu a tocar, passou a integrar ao grupo de Folias de Reis e a compor cocos, maxixes, lundus e mazurcas (MORETTO, 2013, p. 12). Também conhecido como bom violeiro, segundo Gramani (2011, p. 58) foi um dos primeiros rabequistas a gravar suas músicas em LP, totalizando sua obra em cinco álbuns, e mais de quarenta músicas, de acordo com levantamento feito por Mott (2013)9. Zé Côco destacou-se por ser um grande construtor de rabecas, seus

8 Disponível em: Acesso em: 16 jun. 2019. 9 . (2003) Violeiros do Brasil • Revivendo • CD;

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instrumentos possuem quatro cordas e ornamentos no braço, produzidos através da técnica de marchetaria.

“Ouvindo seu pai tocar desde que nasceu, aos 8 anos, já tocava viola que ele mesmo ia aprendendo a fazer. Foi marceneiro, carpinteiro, ferreiro, sapateiro, fazedor de cancelas, de engenho, de carro de boi, curral de tira, roda de rolar mandioca, mas o que o tornou conhecido, inclusive internacionalmente, foi a excelência dos instrumentos que fabricava e tocava: viola, violão, cavaquinho e rebeca. Aos vinte anos, assumiu a pequena fábrica de instrumentos de seu pai” (MOTT, 2013).

. (1997) Voo das Garças • Lapa Cia de Ação Cultural • CD; . (1987) Voo das Garças • Rima • LP; . (1981) Zé Coco do Riachão • Rodeio/WEA • LP; . (1980) Brasil puro • Rodeio/WEA • LP.

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1.4 NELSON DA RABECA

Eu cortava cana com esse facão. Agora eu faço a rabeca com ele. Tá curtinho, tá curtinho, mas ainda está bom. Foi encurtando porque eu fui fazendo a rabeca e ainda gasta mais do que cortando cana (Nelson da Rabeca, 2011)10.

O quarto rabequeiro apresentado por José Gramani no livro Rabeca, O Som Inesperado é Nelson dos Santos, hoje conhecido como Nelson da Rabeca. O encontro dos dois foi de grande importância na história da música de rabeca e é difícil encontrar o lugar certo para apresentá-lo nesta dissertação, já que sua performance é um misto de elementos musicais que remetem ao tempo passado e contemporâneo simultaneamente. Em seus 78 anos, demonstra o verdadeiro significado de uma tradição, como uma manifestação feita por pessoas, que não é estática, mas caminha conforme a realidade, transformando-se com leveza, sem perder sua essência e autenticidade.

“A gente, quanto mais toca, mais aprende, a gente nunca tá aprendido pra tocar. A gente tem que… tem que ir renovando a tocada que é pra não ficar somente naquilo.” (Nelson da Rabeca - encarte CD Tradição Improvisada, 2018).

Por conta disso, minha pesquisa de campo ocorreu na casa de Nelson da Rabeca, e buscarei transmitir aqui um pouco da riqueza que esse Mestre compartilha através de sua história, música e instrumentos. Nelson da Rabeca é um notório inventor e tem um jeito muito particular de tocar rabeca, sua música potente e sincera se comunica instantaneamente com quem o escuta. Nelson nasceu em 12 de março de 1942 na cidade de Joaquim Gomes. (GRAMANI, 2002, p. 68). Mas conforme conta na Série +7011, foi em Marechal

10 Globo Rural, Agricultor alagoano deixa o corte de cana para se dedicar à música, 2011. Disponível em: Acesso em: 22 jan. 2018. 11 Documentário realizado pelo Itaú Cultura em 2015. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2018.

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Deodoro (a duas horas de distância de sua cidade natal) que trabalhou no canavial, construiu sua rabeca e é onde reside até os dias atuais. Marechal Deodoro foi a primeira capital alagoana, fundada em 1611 com o intuito de proteger o Pau Brasil do contrabando e da ação de piratas, lá também é a cidade natal de Marechal Deodoro, primeiro presidente do Brasil. Ainda como capitania de Pernambuco, começou a desenvolver o plantio de cana de açúcar em meados de 1600 e até hoje a cana tem seu papel na economia da cidade, com a Usina Sumaúma. Outro pilar da economia da cidade é o turismo, pois em Marechal Deodoro localiza-se a Praia do Francês, uma das praias mais famosas do litoral alagoano. Atualmente é um município da região metropolitana de Maceió tombado pelo Ministério da Cultura como Patrimônio Histórico Nacional, e logo na entrada da cidade encontra-se uma estátua de Nelson da Rabeca. Em uma casa ampla no Centro Histórico (fig. 6) com grandes portas na entrada e uma rabeca bem no meio da fachada, residem Nelson da Rabeca, sua esposa Benedita dos Santos e alguns de seus dez filhos, o local foi construído através da Associação de Amigos Nelson da Rabeca e além de moradia da família, é um espaço para receber as pessoas que constantemente vão à procura de Nelson.

Figura 6: Casa Nelson da Rabeca Fonte: Arquivo pessoal Thomas Rohrer

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Na porta maior encontra-se a sala de música, onde ficam os mais complexos instrumentos. Pude contar 20 rabecas, dois rabecões, muitos arcos, além de quatro caixas de som, um armário de discos com uma bicicleta encostada, e algumas cadeiras para os músicos. As paredes ajudam a contar sua história, através de fotos e banners de shows (fig. 7).

Figura 7: Sala de música Fonte: Acervo pessoal

No quintal dos fundos, protegida apenas por um telhado, é a oficina de construção dos instrumentos. Sobre uma mesa cheia, ficam o facão e os outros instrumentos de lutheria, inúmeras madeiras de tamanhos e tipos diferentes, e um universo em potencial que só pode ser compreendido por Nelson (fig. 8). Enquanto eu fotografava e conhecia um pouco da oficina, Benedita me contava histórias bem ali ao lado, ao mesmo tempo em que trabalhava na limpeza dos peixes frescos chegados pela manhã. “Diz que rabeca existe há muitos tempos, só que a gente não conhecia, ei ele disse assim: Eu vou fazer um instrumento e nem duvido, só que a cabeça dele é pior de que um computadô. Aí ele fez a rabeca” (Benedita - Making of Tradição Improvisada12, 2018).

12 Selo Sesc, Making Of Nelson da Rabeca e Thomas Rohrer, 2018. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. /2019.

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Figura 8: Oficina Figura 9: Rabeca microfonada Fonte: Acervo pessoal Fonte: Acervo pessoal

Os dias em que fui visitá-lo eram sempre um pouco parecidos, eu chegava e ficava esperando na sala de música. Logo Seu Nelson aparecia com uma rabeca para ele, que já vinha com um cabo enrolado pra ligar na caixa de som (fig. 9), e outra acústica para mim. Com a audição debilitada, fazia questão de ligar sua rabeca em um bom volume para que pudesse ouvir, volume esse que ele controlava no próprio instrumento, através do captador que inventou. Ele não é de falar muito, então logo começava a puxar um forró.

Figura 10: Nelson e Cícero Fonte: Acervo pessoal

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Alguns minutos depois, Cícero13 (fig. 10) aparecia na fresta da porta e já pegava a zabumba e o microfone, depois da terceira ou quarta música me convidavam pra tocar. Nelson afinava a minha rabeca pinçando os dedos nas cordas, uma vez a dele, outra a minha, e ia arrumando assim, na comparação. Cada dia eram notas diferentes, mas o intervalo costumava ser o mesmo (3M, 4J, 5J), formando um acorde maior invertido. Durante a entrevista, Thomas, seu parceiro de rabeca atual, contou que a nota de referência varia de acordo com o que fica melhor em cada rabeca e que Nelson pensa em música de uma forma completamente auditiva, internalizada de maneira precisa. Sobre esta forma de afinação tão específica, Fiammenghi discorre:

Por outro lado, o tipo de afinação utilizada por Nelson da Rabeca, favorece a ressonância do instrumento. Nelson utiliza um diapasão variável, afinando a nota mais grave de sua rabeca de Mi (2) até Sol (2), mantendo sempre a relação intervalar mencionada por Gramani. Esta afinação confere ao instrumento uma grande ressonância, pois reforça a série harmônica da fundamental (nota mais grave solta). Como ressalta Page, esse tipo de afinação é classificado de “heterofônico”, pois favorece os bordões modais, permitindo que o rabequeiro toque praticamente o tempo todo com duas ou mais cordas. (...) Ele acrescenta ainda que essa maneira de tocar incorpora ruídos percussivos aos acompanhamentos de bordão, exatamente como fazem os rabequeiros, utilizando esse recurso para produzir uma sonoridade mais robusta, forte, cheia e também como recurso rítmico (FIAMMENGHI, 2008, p. 172).

Por essa questão do acorde invertido com as cordas soltas, todas as músicas pareciam ter a mesma tonalidade, mas ele fazia de fato cada música ser única. Com seus dedos ligeiros e escorregadios, foi difícil acompanhar, já que mesmo suas músicas seguindo estruturas rítmicas quaternárias, eram imprevisíveis melodicamente. A facilidade de preencher o encaminhamento das harmonias com bordões e cordas duplas, que é também uma característica das músicas tocadas por Nelson, é decorrente dessa relação de afinação. Este fator também a aproxima dos instrumentos medievais. (FIAMMENGHI, 2008, p. 211).

13 Cícero é um amigo e parceiro de música de longa data de Nelson da Rabeca, que mora algumas ruas acima de sua casa.

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Seu Nelson estava usando dois arcos, que ia alternando conforme a música a ser tocada. Um tinha uma forma oval e a crina frouxa, com uma forma similar a do Bach Bogen14, que segundo ele, era pra tocar forró, porque soa como uma sanfona já que toca as quatro cordas ao mesmo tempo, e o outro, era mais próximo ao modelo tradicional, com a crina apertada e um corpo de metal.

Figura 11: Arcos Nelson da Rabeca Fonte: Acervo pessoal

Uma das características de sua música é a sonoridade das colcheias ou semicolcheias ligadas no mesmo arco, porém com uma pequena pausa entre cada nota (assemelhando-se a um staccato volante), assim como a constante execução das melodias em cordas duplas e o forte ritmo do forró marcado.

Quando se escuta um rabequeiro como Nelson da Rabeca, percebe- se imediatamente que se trata de outro universo musical, ligado à liberdade improvisatória característica do modalismo. A estrutura rítmica tem outra regularidade, que não se encaixa nas doze horas do nosso conhecido relógio, mas pulsa natural com o nascer e o pôr- do-sol. (FIAMMENGHI, 2008, p. 195).

Seu jeito de apoiar a rabeca também é particular, pois com as costas curvadas, costuma apoiá-la entre a mão esquerda e o pescoço, dizendo ser o melhor jeito, devido a grande dimensão de suas rabecas. Nelson da Rabeca é autodidata, aprendeu algumas coisas com Gramani e outros músicos que conheceu,

14 “Arco Bach” - arco curvo desenvolvido por Rolph Schroeder, em 1932 na Alemanha com o intuito de que mais de duas cordas dos instrumentos friccionados pudessem ser tocadas ao mesmo tempo. Este modelo de arco, foi apresentado por Thomas Rohrer a alguns anos atrás, Nelson se identificou, passando a replicar e também usar para tocar.

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mas é perceptível em sua performance uma técnica própria, resultando em um jeito único de tocar. Por conta de sua formação musical não convencional, se comparada ao ensino conservatorial hegemônico, sua música nem sempre segue padrões tonais ou um sistema temperado de afinação. Nelson toca sons criados espontaneamente, que podem ser ligados a um padrão harmônico (por conta de suas memórias musicais resultantes de referências auditivas) ou não.

Ainda no aspecto rítmico, essas rabecas contêm uma carga percussiva agregada no atrito do arco com a corda, que o rabequeiro instintivamente utiliza ao reproduzir um acompanhamento rítmico, ao estilo de um pandeiro, enquanto toca a melodia. Page descreve um procedimento semelhante em relação ao tocador medieval, em contraste com seus pares atuais, os violinistas: “o violinista pensa geralmente em termos de pura monofonia, enquanto que seu predecessor medieval cultivou estratégias para produzir tanto melodia quanto heterofonia: ruídos auxiliares permeiam qualquer melodia tocada” (PAGE, 1986, p. 127-128 apud FIAMMENGHI, 2018, p. 214). Esse estilo de tocar é característico de rabequeiros como Seu Nelson e o conhecido Mestre Salustiano, um dos maiores conhecedores das tradições da zona da mata pernambucana. (FIAMMENGHI, 2008, p. 213-2014).

Depois de um bom tempo em que estávamos tocando na sala de música, Benedita aparecia e pegava o microfone para cantar músicas da autoria deles, na maioria dos casos ela compõe a letra, e ele a melodia. Às vezes no meio de uma rabecada, ele parava e me dizia alguma coisa, ora comentava algo sobre o instrumento, ora sobre a sua história. Em uma dessas pausas, me contou que tocava sanfona quando era jovem, o que explica sua facilidade em tocar a harmonia para acompanhar o canto ou a melodia, tocada ao mesmo tempo. A casa deles é sempre movimentada, era difícil entender quem morava ali e quem estava de passagem, Maciel é o único filho que auxilia Nelson na construção das rabecas, mas mesmo com 78 anos, é ele quem comanda a oficina, e seu filho faz apenas o trabalho mais pesado. Eliene, uma das filhas, o assessora nas questões artísticas, cuida da agenda, da produção e dos contatos. Pelo que pude observar, os outros filhos homens trabalham de madrugada na pesca de peixe e siri de rio, e as mulheres limpam tudo pela manhã para a venda nos restaurantes da região.

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Nelson relatou que em 2018 ganhou o Prêmio Câmara Cascudo pelo Governo Federal e recebe dois salários mínimos da prefeitura de Marechal Deodoro, pelo seu oficio de rabequeiro e construtor. Sua história com a música é emblemática, pois conta que trabalhou nos canaviais de Marechal Deodoro até os 54 anos idade, sem nenhum contato com a rabeca, até que um dia viu na televisão um homem tocando violino e resolveu criar o seu próprio instrumento. Sobre a dureza do trabalho feito àquela época, afirma:

Se fosse cana crua eu voltava melado, todo cheio de pelo. E quando era queimada ainda era pior. Precisava tomar dois, três banhos para sair o carvão quando chegava em casa. Era um trabalho pesado. Eu não tenho saudades deste tempo não (NELSON DA RABECA, 2011).

E sobre a produção de suas rabecas, também afirma:

Eu tenho tanta rabeca espalhada no mundo que já perdi a conta, o povo gosta muito da minha rabeca. Eu tocava sanfona quando eu tinha 19 anos, aí foi aparecendo muita família e a sanfona acabou- se. Eu vi uma pessoa tocando violino, então fui para o mato, tirei a madeira, fiz a rabeca. Eu trabalhava quatro dias no canavial, sábado e domingo ia pra praia do francês, o dinheiro que eu ganhava de meio dia até a faixa de duas horas, era mesmo que trabalhando cortando cana (NELSON DA RABECA, 2018).

Com o tempo foi elaborando sua técnica de luthier, e hoje suas rabecas são referência de instrumentos, em especial pela sonoridade cheia de harmônicos e volume.

Seria equivocado enfocar a rabeca como uma manifestação autônoma, apartada de seu universo sociocultural. De fato, a maioria dos rabequeiros exerce uma função múltipla, e estão inseridos em um contexto mais amplo, como é, por exemplo, o fandango, entendido no sentido de manifestação social com várias faces, mas que encerram sempre o convívio, a festa e o mutirão. Uma exceção a esta regra é o caso de Nelson dos Santos, cujas formas de manifestações artísticas gravitam unicamente em torno de sua genialidade aflorada a partir da descoberta da rabeca, seja na construção do instrumento ou na performance e na criação de suas músicas. (FIAMMENGHI, 2008, p. 217).

Complementando Fiammenghi, é importante observarmos que além de Nelson há outros rabequeiros inseridos em contextos distantes aos dos folguedos, como por exemplo, o caso de rabequeiros de forró no nordeste que não estão

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intimamente ligados ao boi-de-reis ou cavalo-marinho, sendo solistas em seus respectivos grupos de forró. Cabral15 conta que Nelson iniciou sua carreira na praia com a música Asa Branca, tocando de guarda-sol em guarda-sol para os turistas. Aos poucos foi elaborando seu repertório, aprendendo a tocar outros xotes, baiões e forrós, também começou a compor suas próprias músicas e atualmente tem uma rica produção musical. Nesta mesma praia, Nelson vendia suas rabecas a quarenta reais, hoje vende para lugares do mundo inteiro a setecentos e cinquenta reais, contando que já vendeu mais de cinco mil instrumentos. Segundo Fiammenghi (2002) suas rabecas são escavadas por dentro, com o tampo colado em duas partes, o braço é esculpido por fora em uma peça única de madeira dura, como fruta pão, gameleira, praíba, pau-mijão, jaqueira, entre outras. Seu aspecto e tamanho aproximam-se da viola erudita, porém com o tampo ainda mais largo, embora não seja um padrão, pois Nelson criou diversos modelos de rabecas durante sua vida.

Figura 12: Rabecas à venda Fonte: Acervo pessoal

15 Artistas Alagoanos, Nelson da Rabeca. Disponível em: Acesso em: 15 jun. 2018.

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Ele constrói os tipos de rabecas por fases, fica um tempo construindo só um jeito, depois inventa outro e para de fazer o anterior. No tempo em que estive lá pude encontrar rabecas de diferentes formatos, cores e sonoridades (fig. 12).

Não necessariamente é linear, e eu possa dizer que as rabecas dele estão ficando melhores, elas ficam diferentes, numa hora ele faz assim e noutra ele faz diferente. Embora tenha um modelo dele de fazer rabecas, eu pelo menos reconheço imediatamente a mão dele (THOMAS ROHRER, 201916).

Os cavaletes também são uma parte do instrumento em constante mudança, ele está sempre inventando um formato novo com material diferente. Pude ver uma sacola com mais de 300 cavaletes, feitos de madeira, pvc, osso, chifre, acrílico, plásticos e etc.

Reencontramo-nos no “VIII Mestres do mundo”, encontro anual, realizado, em dezembro de 2013, na cidade do Crato-CE, quando pudemos fazer uma série de gravações em vídeo, enquanto ele tocava uma rabeca com cavalete de vidro que, segundo ele , “dá mais som!”. Detalhe importante de se notar é que, até então, nunca vira uma rabeca com cavalete de vidro. O fato de o vidro não ser orgânico e, portanto, não ter células, nem fibras, favorece a transmissão das vibrações sonoras. Aquela rabeca tinha um som mais brilhante do que é comum para o instrumento (NETO, 2016, p. 53).

Nelson é um artista muito aberto para coisas novas, musicalmente tem suas referências de forró que são levadas a um universo muito particular de interpretação, soando como uma reinvenção do estilo. Com uma escuta ativa, tem a prática de gravar suas performances e escutar repetidas vezes, como costuma dizer: Nas rabecas e acessórios, esse fator criativo aparece de forma mais concreta, conforme contam Thomas,

Desde que ele começou a se apresentar, quando ele tinha um problema, ele achava uma solução que estava ao alcance dele. Então ele precisava amplificar a rabeca, o que ele fez no primeiro momento, pegou o microfone do telefone, tirou e soldou… e usou esse microfone de telefone durante muito tempo. Até recentemente, ele usava falantes que ele soldou invertido, de forma que eles funcionavam como um microfone. (..) Ele é constantemente aberto para as coisas novas, por exemplo, um pouco antes de 2004 eu

16 Thomas Rohrer em comunicação pessoal.

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tocava em um grupo de música de medieval em Nova York e precisava de um instrumento com uma cara mais da época, então um amigo meu fez um desenho em tamanho real de uma Vihuela de cinco cordas que copiamos da internet. Eu levei para o Seu Nelson e ele fez, copiou idêntico (...) ele sempre inventava, ele é um inventor nato, ele fez uma harpa até, encomendada pelo seu médico. Agora ele está numa nova fase, fazendo rabecas de papelão (THOMAS ROHRER, 2019).

Figura 13: Captadores de fio de telefone Fonte: Acervo do Jornal Alagoas Boreal17

E Fiammenghi:

O caminho percorrido por Nelson para chegar a esses instrumentos é uma história à parte, e que coloca a intuição e inventividade da cultura popular em evidência, considerando que Nelson desenvolveu suas técnicas sozinho, não seguindo nenhuma tradição local, como é comum entre os outros artesãos construtores de rabecas. Esta característica individual é umas das marcas que distingue as rabecas de Nelson de todas as outras (FIAMMENGHI, 2008. p. 210).

Nelson da Rabeca já gravou 4 CDs (Caranguejo danado, Para os amigos, O segredo das árvores e Tradição Improvisada), um DVD (o Segredo das árvores -

17 Disponível em: Acesso em: 30 jun. 2019.

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2008) fez turnês nacionais e internacionais, sempre junto de Benedita, que canta e toca instrumentos de percussão. Assim como também conta Cabral18 (2008), aos poucos Nelson da Rabeca foi se firmando como luthier e rabequeiro reconhecido nacionalmente. Seu jeito de tocar a rabeca chamou a atenção de especialistas da música, como José Eduardo Gramani, que foi um dos principais incentivadores de seu trabalho (cap. II). Em meados de 1990, Gramani passou a escrever sobre Nelson em suas pesquisas e também, a compor músicas específicas para as suas rabecas, esta iniciativa proporcionou maior visibilidade a Nelson no meio artístico e chamou a atenção de outros músicos. Em 1998, artistas, intelectuais e agentes culturais criaram a Associação Amigos de Nelson da Rabeca, com o intuito de promover o trabalho artístico de Nelson, reconhecendo-o como um dos mais legítimos representantes da cultura popular alagoana. Conforme contamos, a Associação também auxiliou na construção da casa que Nelson reside, através de doações e arrecadações em shows.

Nelson desenvolveu sua carreira e chegou ao projeto Tradição Improvisada (cap. II), onde, junto com o rabequeiro suíço Thomas Rohrer, encontraremos uma performance que proporciona o encontro da tradição e da inovação, latente nos dois instrumentistas. Através do contato com Thomas, um músico improvisador livre, Nelson da Rabeca tem encontrado uma vertente contemporânea em sua música e apresentado conceitos de improvisação urbanos e “distantes” de sua forma de tocar originalmente, resultando em uma mescla de suas origens musicais e dos novos sons que chegam até ele por meio do contato com a música urbana contemporânea. Mais adiante, a presente dissertação se ocupará em apresentar essa produção em específico, por hora, nos atentaremos ao fato de Nelson ser um artista que se reinventa e cria suas ferramentas, tanto técnicas quanto musicais, a todo o momento, buscando sempre novas formas de construir seus instrumentos e acessórios para produção de sons que imagina em sua mente. Conforme conta Wagner Campos:

18 Disponível em: . Acesso em: 15 jun. 2018.

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Dominando todos os processos de sua arte musical, o corte da madeira, passando por todas as etapas específicas da construção de cada um de seus instrumentos, até a criação e interpretação de suas próprias composições, Seu Nelson trabalha apoiado em um saber secular, representando o ponto de chegada de conhecimentos muito antigos trazidos na bagagem dos colonizadores, diminuindo distâncias entre passado e presente, tradição e atualidade (WAGNER apud GRAMANI, 2002. p.74).

Com vemos, Nelson da Rabeca representa uma linha do tempo na história da rabeca brasileira. É uma única figura que ilustra as questões que buscamos abordar neste trabalho, como passado e presente, é um mestre e aprendiz de sua arte.

“Seu Nelson, desenvolveu uma sonoridade muito dele, desde a construção do instrumento, ele faz coisas que nenhum rabequeiro faz, seja na construção, jeito de tocar, afinação… é tudo uma coisa só.” (Thomas Rohrer, 2019).

1.5 A RABECA DE PERNAMBUCO

Chegaremos até o presente novamente após analisarmos outra importante via da história da rabeca, pois, pode-se perceber na bibliografia descrita no começo desta dissertação e no mapa da rabeca, que a região Nordeste é um dos principais depositários da música de rabeca, local onde o instrumento integra inúmeras manifestações culturais, aparecendo em praticamente todos os estados da região. Porém, conforme a linha de pensamento delimitada para a sequência desta dissertação, nos deteremos à prática da rabeca pernambucana que começou a ganhar visibilidade em meio às brincadeiras de cavalo-marinho realizadas na Zona da Mata Norte. E seguindo um curso para além da brincadeira, começou a expandir seus horizontes quando chegou a Recife, ganhando novas cores sonoras e redes musicais. Através das entrevistas e levantamentos de dados fonográficos realizados nesta pesquisa, percebemos que, ainda que por intermédio de agentes urbanizadores, a ancestralidade da rabeca de cavalo-marinho da Zona da Mata Norte de Pernambuco é uma das mais fortes influências na performance de rabequeiros contemporâneos encontrados nas metrópoles.

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E, como poderá ser observado ao longo desta dissertação, houve uma significativa mudança de performance do instrumento se comparado às práticas de rabeca até o começo dos anos 90, período no qual ela passou a expandir suas possibilidades, tanto sonoras quanto locais. Um dos principais responsáveis foi o surgimento da Banda Mestre Ambrósio, que na figura de Sérgio Veloso (Siba), músico da região periférica de Olinda, foi à Zona da Mata Norte de Pernambuco aprender as manifestações culturais da região, inserindo elementos dessa cultura a sua música, fundindo-a a sonoridades da música urbana. Por conta deste acontecimento, é de grande valia observarmos um pouco das manifestações que ocorrem na Zona da Mata Norte, em especial o Cavalo- Marinho, teatro musical em que a rabeca tem papel fundamental, para posteriormente prosseguirmos para os fatores que precedem o surgimento da banda.

É coerente com o fato de que nesta região muitos elementos musicais de tradição ibérica foram amplamente absorvidos e ainda se mantêm até os dias atuais. Presença registrada em pequenas cidades interioranas ou próximas do litoral e em manifestações musicais como o cavalo-marinho e o boi-de-reis, onde a rabeca participa do conjunto instrumental [...] Como a colonização desta região foi iniciada pelo litoral é provável que a rabeca tenha passado por um processo de interiorização aqui no Nordeste. Isto com a própria economia açucareira e de engenhos que foram as mais importantes atividades econômicas desta região nos séculos XVII e XVIII na região da mata atlântica. (LIMA, 2001, p.8).

As primeiras pesquisas de campo relatadas por John Murphy nos anos de 1990 e 1991 em seu livro O Cavalo-marinho Pernambucano são de grande valia para demonstrar quão representativo é o cavalo-marinho para a história da música e da sociedade brasileira dos séculos XIX e XX. Onde se estabelece a ligação do período da cana-de-açúcar e o contexto sócio-político da população pernambucana com a manifestação artística executada por eles, extrapolando os limites de justificativas meramente musicais ou sociais.

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1.5.1 O cavalo-marinho

O Cavalo-marinho é uma brincadeira originada na Zona da Mata Norte de Pernambuco e sul da Paraíba, criada por escravos, negros, índios e homens livres trabalhadores dos engenhos de cana-de-açúcar locais, tendo seus primeiros registros datados em 1871 (INRC, 2014. p. 31, 118). Em 2014, através do importante dossiê realizado para o Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo-Marinho (INRC) sob coordenação e redação da Doutora em História Social, Beatriz de Miranda Brusantin, supracitado neste capítulo, encontramos informações relevantes sobre este folguedo, que se expressa nas mais diversas faces da arte. A brincadeira é narrada pela história de uma festa oferecida pelo Capitão aos Reis do Oriente e será conduzida por Mateus, Bastião e Catirina (ausente em alguns grupos), contratados pelo Capitão para tomar conta da festa em sua ausência. Mas os três são muito bagunceiros e só se comportam com a chegada do Soldado, que os reprime. A narrativa se desenvolve com a entrada de novos personagens mascarados (chamados de figuras), puxando danças, toadas e poesias ao longo do enredo que pode durar até 8 horas, terminando com a aparição do Boi.

Trata-se de uma espécie de teatro popular que representa o cotidiano (presente e passado), real e imaginário, deste grupo social brasileiro por meio da poesia, da música, dos rituais e de seus movimentos corporais. Contém personagens com máscaras (figuras), variados tipos de danças, um rico repertório musical, a louvação ao Divino Santo Rei do Oriente, momentos de culto à Jurema Sagrada e a presença de animais ou bichos, como o Cavalo e o Boi. (INRC, 2014. p. 14).

Conforme conta Murphy (2007), o Cavalo-marinho pode ser interpretado como afirmação encenada da “economia moral do homem no campo”, sendo uma variante regional do Bumba-meu-boi, que é um folguedo cênico brasileiro incidente em diversas regiões do Brasil, o Cavalo-marinho integra o ciclo de festejos natalinos encerrando-se no dia seis de janeiro, Dia de Reis.

O folclorista Câmara Cascudo, como Mário de Andrade, julgou ser o Bumba-meu-boi o mais significante gênero musical tradicional,

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porque em sua natureza dramática, permitia dar voz ao comentário social. (MURPHY, 2007. p. 18).

A história dos festejos do cavalo marinho é intimamente ligada à história da cana-de-açúcar na região. Os homens cantam, dançam e interpretam toadas sobre um boi que dança, morre e ressuscita nas noites de sábado durante a estação de colheita. Enquanto durante a semana esse homens trabalhavam perto de bois reais, os temas do folguedo tratados de forma subjetiva e lúdica relatam tópicos cruciais para a sociedade rural, como subsistência, relação patrão-empregado, devoção religiosa e moralidade (MURPHY, 2007).

O Cavalo-Marinho configura-se como um brinquedo que sobreviveu ao contexto violento, injusto e de muita peleja da sociedade escravista, depois resistiu às mudanças socioeconômicas da agricultura canavieira, adaptou-se à urbanização e entrou pela era digital, influenciando e atuando no mundo artístico contemporâneo (INRC, 2014. p. 16).

1.5.1.1 A música

O Inventário Nacional do Cavalo-Marinho documentou 14 (quatorze) grupos diferentes na Região da Zona da Mata Norte de Pernambuco, onde cada um apresenta características próprias com narrativas e figuras diferentes. (INRC, 2014. p. 14), Segundo o INRC, as brincadeiras são predominantemente acompanhadas por um banco instrumental composto por rabeca, ganzá, reco-reco, pandeiro e voz (fig. 14). Caracterizadas por um andamento rápido, acima de 126 bpm, e um ritmo assimétrico de 3+5, grande parte das toadas são tocadas em modo maior, podendo- se encontrar sonoridade mixolídia.

Muitas melodias de Cavalo-Marinho mostram predileção por um âmbito de tipo plagal, ou seja, um âmbito de uma oitava aproximadamente, mas indo da quinta inferior à quinta superior (e não da tônica grave à tônica aguda). No toque da rabeca, no entanto, o uso de duas vozes é a regra. É muitíssimo comum entre os rabequeiros de Cavalo-Marinho o uso de uma corda solta como pedal enquanto a melodia é tocada em corda contígua, entre outras possibilidades, de polifonia a duas vozes. (INRC, 2014. p. 103).

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A rabeca é o instrumento de maior valor no cavalo-marinho, pois guia a melodia, dobrando as notas com a voz. A afinação de maior incidência é, do grave para o agudo, ré-lá-mi-si e fá-dó-sol-ré.

Figura 14: Instrumentação do banco de Cavalo-marinho Fonte: Acervo do site Fronteira Social. 19

Embora tradicionalmente seja produzida por um construtor, nos últimos anos com o fácil acesso a instrumentos industrializados, podem ser substituídas por violinos, mas no âmbito da brincadeira ainda serão chamadas de rabecas. A cidade pernambucana de Ferreiros ficou conhecida pela tradição de construtores de rabeca tendo como seu principal mestre, Mané Pitunga.

Em Pernambuco, destacou-se como habilidoso construtor de rabecas o Sr. Manoel Severino Martins, que ficou conhecido como “Mané Pitunga”. Nascido em 29 de maio de 1930, no engenho Boa Vista, município de Itambé, passou a residir em Ferreiros (PE) a partir de 1936, onde fixou moradia. Desenvolveu-se como autodidata no ofício de tocar e confeccionar o instrumento, e ainda hoje é lembrado por ter feito as melhores rabecas da Zona da Mata Norte. Mané Pitunga faleceu em Ferreiros, em 2002. Hoje, os mais conhecidos construtores de rabecas da região são Mário de Prancha, Zé de Nininha e Mongó, de Ferreiros; Biu de Dóia, de Glória de Goitá; e Fred, de Goiana (INRC, 2014. p. 104).

19 Disponível em: Acesso em: 20 jul. 2018.

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Ainda seguindo o INRC, um dos momentos mais importantes do cavalo- marinho é o da Estrela (simbolizando Jesus Cristo), que abre a sequência de danças, toadas e loas. Neste momento o banco se encaminha para o centro da roda e responde aos versos fixos cantados pelo Mestre (fig. 15).

Figura 15: Transcrição Toada da Estrela Fonte: Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC, 2014. p. 171).

Com raízes no passado escravista, o Cavalo-Marinho demanda a preservação de suas características originais, ao mesmo tempo em que convive com as transformações trazidas pela avalanche da cultura de massa e pelo contato com a arte espetacular. Hoje o brinquedo avançou suas fronteiras e já ganhou o Brasil e o mundo. É de fato um patrimônio imaterial do povo brasileiro (INRC, 2014. p. 154).

Atualmente, as usinas de cana-de-açúcar se modernizaram e o regime de trabalho mudou. Mas ainda que sobrevivam grupos de cavalo-marinho na Região da Zona da Mata Norte fazendo suas brincadeiras, o que atrai grande público, principalmente no final do ano. Uma considerável parte da população que vivia ao redor dos engenhos foi procurar por melhores oportunidades na cidade, levando consigo a essência de suas tradições, que se espalha e modifica a cada dia, assim como o meio em que vivem.

Há de se encontrar um caminho próprio para este novo artista popular que quer, e precisa, de espaço no mundo artístico contemporâneo, contudo, deve, e quer, dar continuidade a sua arte

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aprendida desde a infância e passada por gerações. Eles buscam espaço e reconhecimento para brincar no mundo contemporâneo da arte, legitimando sua cultura tradicional e sendo valorizados igualmente por isso. O problema diagnosticado reside justamente nestes aspectos: ainda não são valorizados como artistas profissionais e não encontram espaço para levar sua arte ao mundo, sem perder seus aspectos tradicionais (INRC, 2014. p. 160).

Um relevante exemplo deste processo de êxodo e hibridação é a história da família Salustiano, que perpassa três gerações de rabequeiros. A começar com João Salú, cortador de cana e brincante, seguido por seu filho Mestre Salustiano, que influenciando gerações, foi um expoente representante da música de rabeca de seu tempo na região do Recife, e seu neto Maciel Salú, que além de sua herança musical, tem grande importância na cena musical atual.

1.5.1.2 Mestre Salustiano

O doutor mandou saber do administrador por que é que eu queria sair do engenho, que eu era um bom trabalhador, ele gostava de mim porque eu não era faltoso em trabalho e cumpria minhas obrigações. Ele soube que eu ia embora e disse, ô Salustiano, você não sabe ler, como é que você vai pra um lugar que você não conhece, onde você não tem amigos, não tem seu povo de brincadeira, você vai fazer o que na cidade? Aqui você tem tudo, você acha que a vida na cidade é boa? Não é não.‘Ói, doutor, eu sei que a vida na cidade não é boa, agora o meu problema é que eu não quero mais trabalhar na palha da cana, eu sei que eu sou um artista, e aqui ninguém me valoriza, aqui o valor da gente é trabalhar no pesado de noite a dia. Eu acho que eu procurando um lugar grande, será que não encontro alguém que ache graça em mim, pra que eu possa fazer um trabalho mais desenvolvido? [...] Eu, mesmo, quero continuar com minha rabeca, sempre estudando música, que é isso aí é o meu dia-a-dia. E eu vou continuar sempre por perto da minha família, brincando maracatu… (MESQUITA, 2003. p. 93 – 94).

Responsável por introduzir os primeiros elementos de uma práxis musical rabequiana hibrida no Recife, Manoel Salustiano Soares (Mestre Salú) nasceu em 1945 no Engenho Oiteiro Alto, situado em Aliança (PE). Ainda jovem deixou a Zona da Mata Norte e migrou para a cidade de Recife, levando consigo a sabedoria e vivência dos folguedos de sua região. Segundo Murphy (2008), a família Salustiano é uma das grandes referências de Cavalo-Marinho desde 1941, quando seu pai, João Salustiano (nascido em 1918) começou a tocar rabeca. Mestre Salú cresceu na tradição e aos

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sete anos de idade passou a brincar no Cavalo-Marinho do Mestre Severino Júlio, com o papel de Arlequim. Com o tempo foi aprendendo outras figuras e também a tocar rabeca, em paralelo ao seu trabalho no canavial. Em busca de melhores condições de trabalho, mudou-se para Recife nos anos 60 e participou como rabequeiro no Cavalo-Marinho de Joaquim Felipe, sediado na Casa Amarela. Pouco tempo depois, Joaquim se mudou e Mestre Salustiano decidiu começar seu próprio grupo, passou a apresentar espetáculos reduzidos em escolas, praças, teatros, mercados e casas de cultura no Recife. A rabeca foi ganhando visibilidade e despertando o interesse de jovens músicos para o aprendizado do instrumento. Através de parcerias com a Prefeitura de Olinda, conseguiu realizar brincadeiras remuneradas, e como faltavam brincantes, foi ensinando e transmitindo a tradição oralmente. Assim, “Salustiano adaptou as relações tradicionais de patrão-empregado para o novo contexto de apresentações remuneradas” (MURPHY, 2008. p. 36 - 39).

Salu é uma liderança com raízes bem fincadas na zona canavieira, onde nasceu; e ao mesmo tempo é um ser urbano, capaz de uma ampla visão empresarial e administrativa daquilo que produz junção que, por exemplo, acabou levando seu maracatu a se destacar, embora este fosse mais novo do que muitos outros maracatus rurais que também se encontram ‘na ativa. O Mestre tem trânsito fácil entre os artistas populares, o governo, a mídia e o Movimento Mangue (MESQUITA, 2003.p. 81).

Apresentando uma nova roupagem para o folguedo, ampliou o publico consumidor, difundiu e sustentou a prática de rabeca e do Cavalo-Marinho distante dos canaviais. Exemplificando um importante mecanismo de hibridação, no que se diz respeito à formulação de estratégias de colocação das culturas populares.

Mestre Salustiano foi um mestre conhecido por muitos. Manteve contato com quase todos os grupos de Cavalos-Marinhos atualmente existentes. Alguns menos, outros mais, mas a grande maioria, em algum momento, teve contato com o mestre e/ou brincou em seu terreiro Casa da Rabeca, na Cidade Tabajara (PE). Muitos brincadores dos brinquedos da Localidade 2, trazem no seu jeito de brincar ensinamentos de Mestre Salustiano. Muitas características de passos dentro do magui (ou mergulhão) são traços marcantes do brinquedo Boi Matuto da família Salustiano. A conhecida “rasteira” ou os “chutes” são bem típicos deste brinquedo. Mestre Salustiano e sua família tornaram-se centro de referência para a divulgação do brinquedo do Cavalo-Marinho, construindo uma “ponte” entre a Zona da Mata e a capital, Recife (INRC, 2014. p. 37).

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Figura 16: Mestre Salustiano Fonte: Diário de Pernambuco, 2014.20

Tornando-se então uma referência nas brincadeiras de cavalo-marinho e maracatu na região metropolitana de Pernambuco, Mestre Salustiano fundou a Casa da Rabeca no ano de 2002, situada em Olinda (PE). O Local foi idealizado com o intuito de preservar e divulgar as manifestações tradicionais da região, como coco, ciranda, forró, maracatu e frevo. Com programação durante o ano todo, seu calendário fixo inclui a Festa de Reis (6 de janeiro), o Carnaval Mesclado (na segunda-feira de carnaval), o aniversário da Casa da Rabeca, O Forró de Salú (junho), O aniversário do Mestre Salú (novembro) e o Encontro de Cavalo Marinho (25 de dezembro).

Saudado por muitos como um dos principais nomes da música pernambucana, Mestre Salú (como também era chamado), agregou diversos títulos ao longo de sua carreira. Seja cantor, intérprete, compositor ou poeta, a influência de seu trabalho chegou até nos mangueboys dos anos 1990 como Chico Science, que incluiu a faixa Salustiano song no disco Da lama ao caos (1994) (DIÁRIO..., 2014).

20 BENTO, Emannuel. Diário de Pernambuco: Tributo a Mestre Salustiano agita Casa da Rabeca no sábado. Disponível em: Acesso: 30 jun. 2019.

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Além de inúmeras viagens feitas pelo Brasil e pelo mundo, Mestre Salú gravou quatro discos ao longo de sua vida, sendo eles: Sonho da Rabeca, As três gerações, Cavalo-Marinho e Mestre Salú e a sua rabeca encantada. Foi fundador do Maracatu Piaba de Ouro e um dos precursores do Movimento Manguebeat. Recebeu inúmeros títulos e prêmios ao longo de sua vida, dentre eles o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1965. Faleceu em agosto de 2008, por conta de uma arritmia cardíaca causada pela doença de Chagas, pouco depois de sua nomeação como Patrimônio Vivo de Pernambuco. Sua história reverberou nas gerações musicais seguintes, conforme veremos a seguir. É valido ressaltar que, junto a este primeiro processo de urbanização e modificação do meio de performance da rabeca pernambucana, houve o sucesso dos baiões e forrós de Luiz Gonzaga em meados de 1950, aos poucos muitos trios de forró, compostos originalmente para sanfona, zabumba e triângulo foram ganhando o acompanhamento rítmico e harmônico da rabeca.

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2. HIBRIDISMO E AS CULTURAS POPULARES

2.1 CONCEITO

Partindo do referencial teórico dado por Canclini em seu livro Culturas Híbridas (2006, p. 9), o hibridismo pode ser entendido por “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”.

Os estudos sobre narrativas identitárias com enfoques teóricos que levam em conta os processos de hibridação (Hannerz, Hall) mostram que não é possível falar das identidades como se se tratasse apenas de um conjunto de traços fixos, nem afirmá-las como a essência de uma etnia ou de uma nação (...) em um mundo tão fluidamente interconectado, as sedimentações identitárias organizadas em conjuntos históricos mais ou menos estáveis (etnias, nações, classes) se reestruturam em meio a conjuntos interétnicos, transclassistas e transnacionais (CANCLINI, 2006. p.XXIII).

Através deste conceito desenvolvido em diversas áreas do conhecimento, podemos notar que não apenas a história da rabeca no Brasil, mas da música brasileira em geral, caminha constantemente em um processo de hibridação.

A música brasileira, formada a partir do intenso hibridismo cultural decorrente da dominação portuguesa, do aporte da cultura africana e do encontro destas com o nativo indígena, apresenta diversas camadas que revelam a ocorrência de misturas ocorridas aqui, levadas para além-mar, e trazidas de volta em outro momento. (FIAMMENGHI, 2006. p. 61).

Canclini afirma que estas estruturas discretas mencionadas também são resultado de um processo de hibridação, sendo quase impossível encontrar uma fonte genuína e pura de conhecimento ou cultura.

Vou ocupar-me de como os estudos sobre hibridação modificam o modo de falar sobre identidade, cultura, diferença, desigualdade, multiculturalismo e sobre os pares organizadores dos conflitos nas ciências sociais: tradição-modernidade, norte-sul, local-global. Porque a questão do híbrido adquiriu ultimamente tanto peso se é uma característica antiga do desenvolvimento histórico? Poder-se-ia dizer que existem antecedentes desde que começaram os intercâmbios entre sociedades; de fato, Plínio, o Velho, mencionou a palavra ao referir-se aos migrantes que chegaram a Roma em sua época (CANCLINI, 2006, p. 17).

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O Brasil desde os primórdios de sua colonização passa por processos intensos de hibridação e de questões ligadas à identidade, regionalismo, nacionalismo e folclore. A partir do séc. XIX, a busca das correntes nacionalistas por uma identidade brasileira se intensificou, no entanto, essa tentativa de padronização embasada em moldes eruditos enfrentava o grande obstáculo de superar a pluralidade cada vez mais evidente destas manifestações culturais.

Diante da crescente pressão para se conhecer a nação, formá-la, integrá-la, os diversos discursos regionais chocam-se, na tentativa de fazer com que os costumes, as crenças, as relações sociais, as práticas sociais de cada região que se institui neste momento (séc. XIX), pudessem representar o modelo a ser generalizado para o restante do país, o que significava a generalização de sua hegemonia. A formação discursiva nacional-popular pensava a nação por meio de uma conceituação que a via como homogênea e que buscava a construção de uma identidade, para o Brasil e para os brasileiros, que suprimisse as diferenças, que homogeneizasse estas realidades. Esta conceituação leva, no entanto, a que se revele a fragmentação do país, a que seus regionalismos explodam e tornem- se mais visíveis (ALBUQUERQUE, 2011. p. 61)

Tendo por base que, a história do Brasil é carregada por preconceitos e estereótipos relacionados às tradições ditas de “raízes nordestinas” por parte de intelectuais até o final do século XX, esta pesquisa torna-se temerosa em tomar caminhos que despretensiosamente sejam paralelos a este. Então, é necessário enfatizar a importância do conceito híbrido descrito acima por Canclini como referencial teórico, uma vez que a análise histórico musical dos agentes interlocutores da rabeca é importante para o entendimento das vias atuais pelas quais ela seguiu. E não é de interesse desta pesquisa apenas descrever as misturas interculturais observadas na música de rabeca apresentada aqui, mas “dar-lhe capacidade hermenêutica: torná-la útil para interpretar as relações de sentido que se reconstroem nas misturas” (CANCLINI, 2006. p. XXIV). A rabeca chegou ao Brasil percorrendo um processo intenso de fusão e difusão com os povos que já habitavam o país e com os que foram se formando, tornando-se parte de manifestações como o Cavalo-marinho, Folias de reis, Brincadeiras de boi, Fandangos, além de manifestações com vias musicais globalizadas, adentrando também ao universo das canções, do forró, rock, jazz, hip- hop, expandindo-se através de meios fonográficos, midiáticos e da internet.

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Não é nosso intuito nesta pesquisa descrever detalhadamente os processos que se deram em cada vertente desta história, já que existem fontes específicas para cada caminho. Com isso, trataremos aqui a música de rabeca que foi tirada de seu cenário e transformada por intermédio de agentes, pessoas que delinearam um curso para sua música usando a rabeca como recurso instrumental, influenciando mais que uma geração ao longo das últimas décadas. Cada um desses agentes pertence a um universo estético exterior ao mundo da rabeca, sendo ela um elemento desse universo pessoal, onde o encontro com o instrumento pode até ter sido ocasional, mas a escolha de uma trajetória foi opcional.

Não é fácil examinar a reorientação dos principais agentes frente às transformações dos mercados simbólicos. São escassos os estudos empíricos na América Latina destinados a conhecer como artistas procuram seus receptores e clientes, como operam os intermediários e como respondem os públicos. Também porque os discursos com que uns e outros julgam as transformações da modernidade nem sempre coincidem com as adaptações ou resistências perceptíveis em suas práticas (CANCLINI, 2006. p. 99).

É válido ressaltar que tais agentes não se desenvolveram pela mesma ótica, cada um encontrou seu jeito de explorar os recursos da rabeca a partir de conhecimentos anteriores ao encontro com o instrumento, cada um pode enxergar na rabeca (tanto em seus aspectos históricos quanto sonoros) uma oportunidade de hibridação que resultaria em inovação. Conforme defende Travassos:

Uma vez que a relação entre artistas "cultos" e música folclórica é uma temática central nas ideologias da arte no Brasil, tendo rendido propostas teóricas e empreendimentos concretos importantes, desde o séc. XIX, a reflexão sobre a cena contemporânea pode ser instrutiva. A mudança na relação dos artistas com a música folclórica sugere o arrefecimento da postura vanguardista e alteração nas representações acerca da cultura popular e do povo (TRAVASSOS, 2014. p.90).

A partir deste recorte, podemos observar o surgimento de duas vias importantes que exemplificam casos de hibridismo nas últimas décadas. Sendo elas:

1. A sonoridade da performance de rabeca encontrada em centros urbanos - influenciada por uma vertente musical latente em Pernambuco e

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pelo movimento Manguebeat, através da banda Mestre Ambrósio, tendo em Siba a figura de agente urbanizador.

2. A teia entre Zé Gramani, Nelson da Rabeca, Zé Gomes e Thomas Rohrer:

- A inserção da rabeca nas universidades, o desenvolvimento de uma linguagem rabequiana com elementos da música antiga e a pesquisa de Gramani, que foi de encontro a Nelson da Rabeca.

- A produção fonográfica de Zé Gomes, que apresentou a rabeca à Thomas Rohrer e juntos criaram a ideia do projeto Tradição Improvisada, fundamentado na expansão sonora das possibilidades estéticas e técnicas do instrumento, por meio de recursos tecnológicos e experimentações, que também foi de encontro a Nelson da Rabeca.

Conforme confirma Silva,

No Brasil, as utilizações da rabeca estão se tornando muito diversas, apesar do dito popular da Paraíba: ‘Quem tem dinheiro toca violino, quem não tem toca rabeca”. Temos Siba, no Mestre Ambrósio, que explora a rabeca de uma forma próxima a sua origem nordestina, mas em estilo próprio, com captador, pedal e tudo mais, e que representa a fusão de inúmeras linguagens da música popular nordestina. Temos Antônio Nóbrega, que faz música com raízes nordestinas fortes, mas que é músico erudito de formação. Temos Thomas Rohrer, no Grupo A Barca, um suíço que transmite sua experiência e vivência musical europeia através das rabecas. E temos Zé Gramani, e este livro é prova disto, pois fala de construtores e de repertórios enraizados em nossa cultura, mas sob a ótica de um pesquisador, que antes de pesquisar rabecas, sempre pesquisou e produziu sons. Tanto que sua pesquisa gerou resultados sonoros no mínimo exóticos. Zé Gramani ousou fundir linguagens, instrumentos, mundos aparentemente à parte (SILVA, 2001. p. 36).

Neste ponto do trabalho achamos importante mencionar que não são categorias estanques os rabequeiros, rabequistas e tocadores, antes, são esses peças num processo dinâmico em que cruzam constantemente os limites imaginados entre um e outro território. Entre os antigos tocadores de rabeca que

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serviram de referência a um grande número de compositores e intérpretes no Brasil e os rabequeiros da nova geração, afinados a práticas modernas de composição e performance, há um artista que reúne todas essas vertentes, Nelson da Rabeca, que traz em si o presente e o passado. Haja vista a história antepassada destes dois casos, começaremos nossas análises a partir do Movimento Manguebeat e seus desdobramentos até os dias de hoje. Em seguida olharemos para a outra via, dada pela teia dos quatro músicos citados no segundo caso.

2.2. CASO 1

Para compreendermos a história da banda Mestre Ambrósio e quão importante foi a presença da rabeca neste grupo, é preciso observar, mesmo que resumidamente, um dos precursores deste movimento, o Manguebeat.

2.2.1 Manguebeat

O manguebeat é um movimento artístico e, sobretudo, musical desencadeado no Recife no início da década de 1990. Pode ser caracterizado por uma intensificação das fusões e combinações entre tradições musicais locais e músicas anglófonas de ampla circulação internacional (sobretudo punk, rock e hip-hop) (SANDRONI, 2009. p. 64).

Segundo Vargas (2007, p.17), a partir da mobilização de um grupo de jovens21 na década de 90, o Manguebeat buscou unir elementos da cultura pop e urbana ao vasto acervo musical cultivado por mestres e grupos de cultura tradicional22 da região de Pernambuco. A cultura popular tem merecido a discussão por diversos autores, áreas e correntes de pensamento. Questionamos as abordagens essencialistas sobre cultura popular, que a separam de modo estanque de outras construções culturais.

21 Fredi Zero Quatro, Chico Science, Renato Lins, Jorge Du Peixe, Helder Aragão (DJ Dolores), Herr Doktor Mabuse (Codinome de José Carlos Arcoverde) e Xico Sá (VARGAS, 2017. p. 17). 22 Conforme Siba, “isso que a gente chama no Brasil de Cultura popular são espaços coletivos que as pessoas elaboram para trazer suas heranças, geralmente heranças reprimidas, para um lugar com um mínimo de dignidade, não é a toa que de ciclos em ciclos o poder público faz um movimento de controle, porque nunca deixam a gente debater dignidade.” (SIBA, 2019).

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Também, questionamentos o viés objetivista de cultura popular que busca encontra- la em objetos ou praticas fixas, como observa Abreu:

Cultura popular não é um conjunto fixo de práticas, objetos ou textos, nem um conceito definido aplicável a qualquer período histórico. [...]. É algo que precisa sempre ser contextualizado e pensado a partir de alguma experiência social e cultural, seja no passado ou no presente; na documentação histórica ou na sala de aula (ABREU, 2003, p. 14).

De outra parte, entendemos, como Ginzburg (2002), que a circularidade é um aspecto a ser considerado na busca da definição da cultura popular, em suas imbricações com outros âmbitos, como a chamada cultura erudita. Elementos de circularidades que se observam, por exemplo, nos gestos culturais de Nelson da Rabeca e do Movimento Manguebeat. De certa forma, as relações entre as culturas gestadas por segmentos sociais são múltiplas, têm muitos pontos de intersecção e, assim, não é simples delimitar rigidamente a fronteira entre as diversas culturas do povo e as culturas das elites, como observa Burke (1989). Considerando, nossas preocupações com os embates sociais, ideológicos e políticos contidos no âmbito das culturas, entendemos que cultura popular é, como preconiza Thompson (1998), um campo de disputas, no qual interesses e conflitos, os mais dispares, se verificam. Em associação com nossas reflexões sobre o hibridismo, compreendemos como Canclini (1997), que não basta elencar os objetos populares – como provedores a priori de cultura, pois a cultura popular não é coleção de objetos populares –, mas buscar entender as mudanças das suas significações no bojo das interações sociais. Nas reflexões de nosso trabalho, contrastamos as ideias de moderno e tradicional, como uma ferramenta para análise, mas sem opô-las radical e diametralmente. Assim, valorizando a rica herança cultural a que tinham acesso, artistas da capital pernambucana, foram à fonte destas manifestações para incorporar referências rítmicas, melódicas e instrumentais (através das alfaias, mineiros, ganzás, entre outros) às referências da música contemporânea de massa. Encontraram uma sonoridade híbrida inovadora para a época, que se tornara a maior característica do Manguebeat. Segundo Vargas, essa sonoridade resultava “em um ‘envenenamento’ dos ritmos regionais com amplificação, mais timbres graves, baixo e guitarra” (VARGAS, 2007. p.17), expandindo o território das tradições.

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Isso não significou tratar os ritmos regionais como se fossem guardiões da ancestralidade e da essência da cultura local. Não havia a intenção de fossilizar essas músicas, mas que elas pudessem se relacionar com a cultura pop, seja pelo apoio à divulgação desses artistas tradicionais pelas cooperativas e por meio de festivais criados em Recife. Optaram assim, por outro tipo de relação com a tradição musical pernambucana (VARGAS, 2007. p. 18).

Teve grande reverberação o propósito inicial de encontrar novo espaço para músicas e ritmos, que valorizassem a cultura regional pernambucana, por outra via além do folclore, alcançando novos públicos. O Manguebeat deixa reflexos até os dias de hoje na música brasileira, tornando-se uma vertente musical híbrida à cultura popular nordestina, que influencia uma grande quantidade de músicos e artistas no decorrer desses quase 30 anos, ecoando no cinema, moda, artes plásticas dança e literatura, além da música (VARGAS, 2017. p. 17). É importante ressaltar que a forma de se cantar ciranda, coco, maracatu e cavalo marinho nas comunidades em que se inseriram continuou seguindo seu curso natural, com suas transformações relativas à realidade local, porém com maior visibilidade, confirmando que “o desenvolvimento moderno não suprime as culturas populares tradicionais” (CANCLINI, 2006. p.15).

As investidas dos músicos urbanos no universo das tradições populares lançavam luz sobre expressões musicais que poderiam simbolizar o estado de privação do povo, mas ao mesmo tempo seu ânimo para a luta. As produções recentes, por sua vez, celebram a abundância cultural, a diversidade de sons, gestos e crenças religiosas, o ethos festivo e a permanência das tradições (TRAVASSOS, 2014 p. 112).

E, por mais discutível que seja o uso comercial de bens folclóricos, a mídia ampliou em grande escala a visibilidade de tradições locais. Pois, ao se ampliarem elas se fortalecem e principalmente, “só se mantém viva(s) através da produção de artesãos, músicos, bailarinos e poetas populares, interessados em manter sua herança e renová-la” (CANCLINI, 2006. p. 17). Conforme explica Siba,

A gente sempre quando fala de cultura popular no Brasil, tem uma força muito grande esse senso comum que joga tudo o que é cultura popular para obra do coletivo e do passado, mas do coletivo, de um monte de gente que sabe fazer mas não sabe bem porque faz, e que

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vem aquele folclore que não tem autoria, que é de todo mundo ali que tem uma origem e tal, quando na verdade, como qualquer coisa da vida e do tempo presente, tem pessoas e cada pessoa é uma pessoa sempre (SIBA, 2019).

E Mesquita:

Através da cultura massiva, a cultura popular vem experimentando um momento de recriação, onde o tradicional e o moderno, juntos, passam a reafirmar uma identidade, a pernambucanidade, por assim dizer um sentimento complexo que vem merecendo estudos e que não pode ser reduzido à condição de modismo ou de entretenimento pré-fabricado (MESQUITA, 2003. p. 81).

Figura 17: Matéria do Jornal “O Globo” Fonte: Jornal O Globo23

23 Jornal O Globo. O Caldeirão do Recife, 09/03/1998. Disponível em: . Acesso em: 06 jun. 2019.

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O artigo acima relata os reflexos do movimento iniciado por Chico Science seis anos antes, o interesse das gravadoras pelas bandas que estavam dando continuidade ao movimento e intitula esse momento de Pós Manguebeat:

Amadurecida, talentosa e enraizada nas tradições regionais, a geração Pós Manguebeat (...) está saindo do gueto para o mundo, chamando a atenção das grandes gravadoras. (...) O Mestre Ambrósio entra em estúdio dia 10 de abril para gravar seu segundo CD, desta vez pela Sony Music. O primeiro, independente, chegou a marca de 15 mil cópias vendidas. Em 1996 o grupo excursionou pela Europa e tocou em festivais de World Music. O vocalista Helder Vasconcelos dá os créditos de tudo o que aconteceu a Chico Science (O GLOBO, p. 1, 1998).

2.2.2 Mestre Ambrósio

Segundo Sandroni (2009), em 1990-1991 Siba (Sérgio Veloso), guitarrista e estudante de música da Universidade de Pernambuco, foi assistente de pesquisa do etnomusicólogo John Murphy que estava fazendo pesquisas de campo na Zona da Mata para sua tese sobre o cavalo-marinho. Lá conheceu a rabeca e iniciou seus estudos no instrumento, passando a frequentar constantemente a região e a criar relações estreitas com mestres e brincantes, como Mestre Batista, líder dos grupos de cavalo-marinho e maracatu Estrela de Ouro de Aliança, Luiz Paixão e Mestre Salú, rabequeiros de referência não só para Siba mas para o contexto da música de rabeca. Conforme contou em uma aula show ministrada no SESC Consolação em fevereiro de 2019:

E essa foi a minha escola de rabeca, eu nunca fui violinista, na verdade eu era guitarrista, já me envolvia com a cultura popular da minha cidade, Recife e também do Pernambuco em geral. Conheci o cavalo-marinho e através da rabeca e como músico que eu já era, consegui uma entrada em uma cultura que é bem mais abrangente, é a cultura de toda uma região que envolve não só esse teatro mas uma festa de rua muito importante pra mim que é o Maracatu de Baque Solto. O fato é que a rabeca foi o meu instrumento de começo profissional, com o aprendizado da rabeca eu formei minha primeira banda, que é o Mestre Ambrósio, uma banda que teve a sorte de percorrer um caminho razoavelmente longo, viajava muito e também para outros países, e a rabeca foi sempre meu instrumento principal (SIBA, 2019).

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Siba, nascido em 1969 na cidade de Recife e criado no subúrbio de Olinda, foi o primeiro filho de classe média urbana de sua família, que vinda do agreste, tinha seus pais como primeiros graduados nessa história. Mesmo sendo incentivado a ouvir música e tocar quando criança, era posto que deveria fazer uma faculdade que lhe oferecesse estabilidade financeira pelos caminhos convencionais, por isso, teve de quebrar muitas barreiras em sua família para assumir a profissão de músico e poeta. E conforme conta também em sua aula show, foi à Zona da Mata procurando se aprofundar e aprender sobre a cultura da região a fim de inseri-la em seu trabalho como músico.

Ao me assumir artista com 18 pra 19 anos, tinha uma clareza muito grande de que eu vivia num lugar que tinha uma riqueza que fazia parte de mim desde sempre e que aquilo era ponto de partida de um campo muito vasto como artista. A grande inspiração sempre foi, desde essa época, a música popular urbana, (...) a música cubana, toda a música que se forma na África dos anos 50 em diante, pois tem nela esse processo de um conflito entre a herança do colonizador com uma matriz cultural local muito viva, muito intensa. E ali se gera uma coisa nova, recorrente em todos os países da África, são mil histórias, e não cabe aqui muito discutir isso, mas eu tinha essa referência, me interessava muito pela cultura pop africana e via que aquilo de algum modo aparecia em Recife também, já tinha essa ligação e a partir desse momento ela foi consciência de uma música. E então sai percorrendo a cultura popular a que eu tinha acesso, e eu tinha uma ligação muito forte com a poesia e cantoria já. Quando cheguei na Mata Norte eu já tinha essa clareza, e lá foi o lugar que eu consegui um campo de me desenvolver, porque tinha uma tradição viva, é onde tá talvez o ponto de inflexão, onde eu poderia ter seguido um caminho mais de pesquisador, um caminho mais prático da coisa, já que ele pega o material, organiza e reformula de uma maneira lógica. Já eu naquele momento, tinha clareza que eu era um artista, então a parte de pesquisa era muito mais bagunçada, eu nunca fiz pesquisa de fato, fiz pesquisa como artista, com vivência e processamento das notas e informações simbólicas (SIBA, 2019).

O Mestre Ambrósio, cujo nome faz referência ao mestre de cerimônias do cavalo-marinho da Zona da Mata Norte de Pernambuco, teve seu primeiro disco independente lançado em 1996. A banda era composta por Siba na guitarra e rabeca, Eder "O" Rocha e Maurício Alves na percussão, Helder Vasconcelos nos teclados, percussão e fole de oito baixos, Mazinho Lima no baixo elétrico e triângulo e Sérgio Cassiano percussão e voz.

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Sua sonoridade específica extrapolou os limites da rabeca da Zona da Mata pernambucana para além dos bancos de cavalo marinho e dos grupos de maracatu, levando-a a grandes palcos, junto a instrumentos elétricos, amplificadores, abrindo caminho para outras possibilidades rítmicas, melódicas e harmônicas. Conforme explica Linemburg:

Na música popular urbana, a rabeca atingiu visibilidade nacional e internacional, em meados da década de 1990, integrando o instrumental do Grupo Mestre Ambrósio, de Pernambuco. Nas mãos do multi instrumentista e compositor Sérgio Roberto Veloso de Oliveira, mais conhecido como Siba, a rabeca foi empregada num contexto diferenciado, incomum para o instrumento, como por exemplo, ao lado da guitarra elétrica, amplificada e em grandes palcos. O produto da fusão de elementos tradicionais (ritmos e instrumentos) a outros da cena pop foi descrita pelos integrantes da banda como “música urbana de sentimento rural” (LINEMBURG, 2015, p.37).

Segundo Sandroni (2009, p.66) “em novembro de 1996, todos os integrantes do Mestre Ambrósio mudam-se para São Paulo. Siba e seus amigos assinam com a Sony Music, e em 1999 aparece seu segundo CD (Fuá na casa de Cabral). O grupo se dispersa pouco depois do lançamento do terceiro CD em 2001 (Terceiro samba).”

Figura 18: Matéria do Jornal O Globo Fonte: Jornal O Globo24

24 Jornal O Globo. Coco,maracatu e baticum eletrônico. 19/5/1999 - Segundo Caderno, p. 5. Disponível em: Acesso em: 06 jun. 2019.

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Sandroni também conta que, este segundo CD foi gravado em São Paulo e mixado em Nova Iorque, e embora não tenha correspondido às perspectivas de sucesso almejadas pelo grupo, que buscava maior acesso às rádios, tornou-se uma referência neste determinado campo da música de rabeca (SANDRONI, 2009. p. 66). Pode-se notar ainda na reportagem acima, a relevância da produção musical de Mitar Subotić (Suba), sérvio radicado no Brasil que foi um dos produtores mais conceituados nos anos 90.

Mesmo com sua morte prematura em 99, aos 38 anos, em pouco mais de 20 anos Suba construiu uma carreira interessante e foi um artista essencial para tratar a harmonia de criações que juntam o folclórico e o local com bases e ambientações que se criam no eletrônico tornando a experiência musical extremamente sensorial (BLOG DO JOAQUIM, 2013).

Este álbum aponta a profundidade do processo de hibridação em ação, revelando inúmeros agentes, estruturas e práticas na construção de um produto para o consumo urbano. A ligação do Mestre Ambrósio com as brincadeiras de Cavalo-Marinho foi de grande relevância, tanto para o folguedo quanto para a banda, conforme comenta o INRC:

No campo musical, trouxe ao público nacional e internacional a rabeca e músicas com ritmos inspirados no Cavalo-Marinho, incluindo, no primeiro CD, como música incidental [0:32], a toada da figura Pisa Pilão tocada por um banco de Cavalo-Marinho, e iniciando o seu segundo CD Fuá na Casa de Cabral (1998) com a faixa Trupé (queima carvão) [1:25] com participação especial de Mestre Biu Alexandre (voz), Luis Paixão (rabeca), Manoel Deodato (pandeiro), Biu Roque (bage e voz), Manoel Roque (bage e voz), Sidrak (mineiro), Borba (Mateus, bexiga), Miço (Bastião, bexiga), grandes músicos e toadeiros dos Cavalos-Marinhos pernambucanos. No mais, o grupo Mestre Ambrósio também divulgou a dança e as figuras do brinquedo, trazendo na capa do seu primeiro CD a imagem de uma máscara, artefato indispensável das figuras do Cavalo-Marinho (INRC, 2014, p. 141).

Em 2001, Siba muda-se de São Paulo para Nazaré da Mata e, através de fundos públicos revertidos para a cultura, grava o seu CD “Fuloresta do Samba”. Diferentemente da última produção, este álbum foi gravado em uma usina de cana- de-açúcar desativada na zona rural, com um estúdio móvel adaptado e músicos da região. O repertório segue as linhas de coco, ciranda e maracatu rural, e conta com

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instrumentos de percussão tradicionais da região (mineiro, bombinho e caixa) e metais (trompete, tuba, saxofone e trombone). A inovação deste disco se deu pela inserção de tuba e saxofone neste tipo de repertório (SANDRONI, 2009. p. 67). Lima discorre que Siba conseguiu levar a música de rabeca a outros segmentos da sociedade, “sua música é consumida por uma faixa expressiva de jovens de classe média urbana, e a atividade deste músico vem deixar claro que é possível inserir a rabeca no circuito da música pop urbana e nos conjuntos com instrumentos eletrônicos.” (LIMA, 2001. p. 2). Assim como a rabeca pode ser inserida em um conjunto de música de câmara erudita, como fez José Gramani, ou em outros desdobramentos do universo musical, como fazem Thomas Rohrer, Filpo Ribeiro, Renata Rosa, Antônio Nóbrega e tantos outros rabequeiros. Sobre a relação de Siba com a música tradicional, o surgimento do Mestre Ambrósio e toda a influência que essa banda provocou até os dias atuais, podemos citar Canclini:

Como a hibridação funde estruturas ou práticas sociais discretas para gerar novas estruturas e novas práticas? As vezes, isso ocorre de modo não planejado ou é resultado imprevisto de processos migratórios, turísticos ou de intercâmbio econômico ou comunicacional. Mas frequentemente a hibridação surge da criatividade individual e coletiva. Não só nas artes, mas também na vida cotidiana e no desenvolvimento tecnológico. Busca-se reconverter um patrimônio (uma fábrica, uma capacitação profissional, um conjunto de saberes e técnicas) para reinseri-lo em novas condições de produção e mercado (CANCLINI, 2006. p. 22).

Assim, Chico Science e Siba, embora diferentes em alguns aspectos, são reconhecimentos nacional e internacionalmente como representantes do Manguebeat, bem como da cena recifense que influenciou tantos músicos e rabequeiros, como veremos no decorrer da pesquisa, pois “além de terem começado suas carreiras na mesma cidade e no mesmo período, isso se relaciona com sua compartilhada vontade de fazer música com as ‘raízes locais’ e a ‘modernidade internacional’ ao mesmo tempo.” (SANDRONI, 2009. p. 68).

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2.2.3 Desdobramentos - A rabeca pernambucana na cultura popular urbana

Para fundamentação deste trabalho, busquei fazer um levantamento das produções musicais atuais com rabeca nos meios fonográficos a fim de estabelecer um panorama geral da posição da rabeca na música urbana. Encontrados alguns nomes dentro deste recorte, busquei por meio de entrevistas e pesquisas, desvendar o caminho destes músicos até a rabeca, bem como fatores determinantes para embasar suas performances com o instrumento. São poucos os trabalhos acadêmicos sobre os rabequeiros contemporâneos que se encontram em plena atividade, difundindo o instrumento e continuando sua história. Estes rabequeiros trazem em sua performance uma gama de características consideravelmente distintas em relação aos mestres pesquisados por Gramani, Murphy, Daniella Gramani e outros. A escolha dos músicos documentados se deu por conta da visibilidade que os mesmos conquistaram no meio musical atual, tendo suas carreiras estabelecidas, com agenda de shows, participações em gravações de diferentes projetos, e trabalhos autorais em desenvolvimento. Todos estão diretamente envolvidos nessa geração da rabeca urbanizada por morarem em grandes centros e trazerem em suas performances aspectos que vão além da música tradicional, como outras referências sonoras, ou por fazerem uso de recursos tecnológicos, adaptações modernas no instrumento e buscarem inovações todo tipo para a solução de questões ligadas à criatividade e à composição. A princípio foram selecionados os seguintes rabequeiros para realização de entrevistas: Cláudio Rabeca (Recife), Marcelo Portela (Florianópolis), Jeferson Leite (Goiânia), Filpo Ribeiro (São Paulo), Thomas Rohrer (São Paulo) e Nelson da Rabeca (Alagoas). Além da análise de performance dos instrumentistas Marcos Moletta e Maciel Salustiano. Durante a pesquisa, pudemos constatar a grande influência que a música pernambucana tem sobre a performance de jovens rabequeiros de norte a sul do Brasil, pois com exceção de Nelson da Rabeca e Thomas Rohrer (que correspondem a uma segunda parte deste trabalho), os instrumentistas relataram ter

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sofrido influência da banda Mestre Ambrósio em algum momento de sua história com a rabeca, além de carregarem elementos do forró em suas músicas. Conforme observamos até aqui, segundo Murphy (2007. p. 37) um dos primeiros processos de aparecimento da rabeca na zona urbana de Pernambuco, se deu por Mestre Salustiano, que em 1964 mudou-se da Zona da Mata Norte para Recife, transformando as performances de cavalo-marinho em uma fonte de renda, passando a apresentá-las com um formato reduzido por diversos lugares da metrópole. Conforme conta Siba:

Mas falando do meu tempo de convivência, a gente observou um processo muito intenso nesses 20 anos né, com o Mestre Salú em Olinda fazendo os encontros todo ano, fazendo os grupos, com uma certa visibilidade que a cultura do teatro popular passou a ter. Então a juventude ela abraçou muito o cavalo-marinho em Pernambuco, a juventude da periferia e do interior (SIBA, 2019).

Mais diretamente ligado a esta geração de rabequeiros contemporâneos no contexto urbano, exerceu forte influência sobre um grande número de músicos o trabalho do grupo Mestre Ambrósio, que ao inserir elementos musicais do Cavalo- marinho e de outras manifestações da Zona da Mata num contexto musical urbano, articula um dos importantes exemplos de urbanização da rabeca, incorporando elementos do Manguebeat. (LIMA, 2001. p. 86). No contexto atual da rabeca urbanizada das grandes metrópoles, nota-se que o Mestre Ambrósio vem se tornando um ponto de partida para a criação de novos sons. Conforme explica Lima,

Observa-se que as atividades musicais dos jovens rabequeiros não constituem uma ruptura com a dos rabequeiros tradicionais. Apresentam, sim, mudanças e também dão continuidade às atividades e músicas anteriores. Em suas atividades esses jovens rabequeiros não são de uma mesma geração. Há muitos rabequeiros atualmente, mas há alguns deles começaram tocar há vinte anos antes desses atuais rabequeiros. São os casos de Siba e Maciel Salustiano (PE) e Luizmário Machado e Canindé (RN). Foram eles que inseriram a música de rabeca no ambiente dos shows, em discos, teatros e bares, estimulando outros jovens a estudar o instrumento (LIMA, 2015. p. 3).

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Citado por Lima, Maciel Salú é neto de João Salú e filho do Mestre Salustiano, rabequeiros importantes no Recife, sendo hoje também uma referência na música de rabeca contemporânea.

Foi graças a desenvoltura com a rabeca que na década de 90, no auge do manguebeat, Maciel Salú foi convidado a integrar a banda Chão e Chinelo. Foi nessa época que ele começou a cantar, compor e experimentar a fusão entre o popular e o contemporâneo. Essas experimentações ganharam ainda mais força a partir de 2002, quando reuniu seu vasto repertório popular e adentrou no mundo da música eletrônica junto ao DJ Dolores, Fábio Trummer, Jam da Silva e Isaar, formando a Orchestra Santa Massa. (MACIEL SALÚ, s/d).

Maciel lançou cinco discos solos ao longo de sua carreira, os CDs Baile de Rabeca (2016) e Liberdade (2019) são duas produções recentes que demonstram o contexto sonoro que buscamos apresentar nesta pesquisa.

No Baile de Rabeca, Maciel Salú enaltece o instrumento que o acompanha desde o começo da sua carreira musical no início dos anos 1990. Presente em todas as 10 faixas do CD, a rabeca ganha novos timbres em cada uma delas. É possível passear entre o som cru e barroco da rabeca popular e o contemporâneo quando o artista faz uso dos efeitos eletrônicos de seus pedais. Assim Maciel Salú traz o conhecimento do passado e da contemporaneidade sem perder nem ferir a sua identidade (MACIEL SALÚ, 2016).

Nas músicas Que balão é esse, Tempo que não volta mais e Laços de amor, nos deparamos com timbres de rabeca alterados por efeitos sonoros realizados através de pedais. E, expandindo o universo rítmico de Maciel, o samba Vendedor Ambulante conta com uma banda de acompanhamento composta por cavaquinho, violão de sete cordas e voz. O segundo álbum em questão, intitulado Liberdade não tem presença de rabeca em todas as músicas, como o anterior. E traz em sua temática histórias da vida contemporânea de Pernambuco, apontando críticas sociais e fatores cotidianos. Maciel, junto a Siba é um dos pioneiros nesta expansão dos limites timbrísticos a músicas da rabeca em Pernambuco, deixando consideráveis reflexos na performance dos rabequeiros que atuam no meio urbano atual. Durante as entrevistas realizadas para elaboração desta pesquisa foi curioso observar que as pessoas que resolveram encarar o ofício de rabequeiro tiveram seu primeiro

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encontro com o instrumento por diversas vias, mas ao buscarem aprofundamento, se identificaram com a sonoridade encontrada na banda Mestre Ambrósio. Um relevante representante do hibridismo dado por referências territorialmente distantes é o rabequeiro Filpo Ribeiro, que conviveu com a rabeca fandangueira até os 18 anos de idade e hoje em seu repertório é predominante o estilo nordestino, embora tenha herança caiçara em sua técnica e interpretação.

Meu primeiro contato com o instrumento foi no litoral sul de São Paulo, na Ilha do Cardoso, Cananéia/SP, aos 3 anos. Cresci entre a tradição regional desta região (Fandango caiçara, Folia de reis e Folia do Divino), e referências discográficas como Quinteto Armorial, Pena Branca & Xavantinho (em músicas com o rabequeiro Zé Gomes). Na adolescência, nos anos 90, vieram referências do movimento Manguebeat como os grupos Mestre Ambrósio, Chão e Chinelo e grupos de forró como Forróçacana. Comecei a tocar efetivamente o instrumento aos 18 anos, nos anos 2000, com os mestres fandangueiros da região de Cananéia. Toquei em muitos bailes tradicionais durante uns 3 anos, quando formamos o grupo Jovens Fandangueiros do Itacuruçá (na ilha do Cardoso). Voltando pra São Paulo, por volta de 2003, comecei a tocar forró na rabeca em pequenas festas. Mais tarde conheci pessoalmente o pessoal do Mestre Ambrósio, Chão e Chinelo e outros rabequeiros pernambucanos como Murilo Silva, Adriano Salhab, Rafa da Rabeca, Luiz Paixão e Cláudio Rabeca. A partir daí tive contato com a cultura do cavalo-marinho, coco e forró de rabeca. O aprendizado sempre se deu de forma intuitiva e através da oralidade e observação (RIBEIRO, 201825).

Em 2017 Filpo e a Feira do Rolo lançaram o CD Contos de Beira d’água, produção independente com a maioria das composições sob autoria de Filpo, que conta com elementos do forró - desde os ritmos utilizados (xote, baião, arrasta-pé) até a instrumentação (zabumba, triângulo) - misturados a criatividade de Filpo.

Sobre suas rabecas, Filpo conta:

Tenho usado duas rabecas: uma feita por Wilfred Amaral, de Goiana/PE. Tem tamanho de um violino, molde padrão do luthier, afinação em La-Mi-Si-Fa# (um tom acima do violino), cavalete curvado, arco de rabeca (de crina), com microafinador, cordas de viola caipira e violão de aço. A outra foi feita por Nelson da Rabeca, de Marechal Deodoro/AL. Tem tamanho bem grande, molde característico do construtor, mas as medidas nunca são padrão,

25 Filipo Ribeiro em comunicação pessoal.

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afinação em Do-Sol-Re-Mi, cavalete curvado, arco de rabeca (de crina), com microafinador, cordas de viola de arco (RIBEIRO, 2018).

Outro entrevistado foi Marcelo Portela, contando que seu primeiro contato se deu através do Rabel que conheceu na divisa de Portugal com a Espanha. Ao retornar ao Brasil e procurar sobre a rabeca, conheceu a sonoridade do Mestre Ambrósio e passou a guiar seus estudos por essa linha.

Rabequeiros cantadores contemporâneos como Siba e Maciel Salú são de grande influência na minha forma de tocar, pois trazem elementos experimentais apoiados em uma linguagem tradicional, com uma sonoridade ímpar (PORTELA, 201826).

Já o rabequeiro Jeferson Leite, atuava como violista na Orquestra Sinfônica de Goiânia e ao conhecer a rabeca numa turnê em Natal (RN), buscou aprender o instrumento e desenvolver seu repertório através de memórias do subconsciente e de sonoridades de sua terra natal, Fortaleza (CE). Seu repertório conta com forrós tradicionais, choros e composições próprias ou de amigos. Além de shows e gravações, Jeferson trabalha em um grupo de música medieval e também faz trilhas sonoras para peças de teatro e dança, tocando músicas autorais, improvisações e experimentações com texturas. Histórias como estas demonstram a pluralidade alcançada pelo instrumento ao longo de sua trajetória, que com a ajuda dos caminhos proporcionados pelas mídias fonográficas, teve uma grande reviravolta em seu jeito de chegar às novas gerações, onde a então tradicional aprendizagem oral, que pode ser encontrada em documentos até o meio do séc. XX dada por um Mestre ao seu discípulo vem sendo cada vez menos determinante para a formação dos rabequeiros atuais, como exemplificada em partes da história de Cláudio Rabeca, rabequeiro de destaque na cena atual recifense. Nascido no Rio Grande do Norte e influenciado pela sonoridade do Mestre Ambrósio, Cláudio Rabeca foi ao Recife para aprender o instrumento e teve aulas iniciais com o Mestre Salustiano, após um primeiro período de apresentação, também seguiu seus estudos baseado em pesquisas, observações de shows de

26 Marcelo Portela em comunicação pessoal.

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outros Mestres e tocando no cavalo-marinho do Mestre Biu Alexandre. Conforme conta na entrevista dada para esta pesquisa:

Fiz cinco aulas e aprendi, acho que dois baianos de cavalo marinho e umas três toadas, com esse pouco aprendizado foi que eu fui convidado pra tocar no Cavalo Marinho de Mestre Biu Alexandre e comecei a tocar sem saber tudo, porque o cavalo marinho dura oito horas, é muita toada, muita coisa. Aprendia na hora, tirando de ouvido o que o toadeiro cantava, eu falava “vai na frente que que vou atrás” aí eu tirava de ouvido, tirei muita coisa de ouvido assim na hora. Então meu aprendizado foi esse, Mestre Salustiano e o ouvido, em casa também tirando muita música de ouvido. Posteriormente o que eu considero aula também foi por exemplo assistir show de outros rabequeiros, como Luiz Paixão, Maciel Salú e outros rabequeiros aqui da região, como Murilo, Beija-flor; outros rabequeiros que foram importantes na minha formação não só de fazer aula, mas de vê-los tocando, isso era bem importante (CLÁUDIO RABECA, 201827).

Em 2019, Cláudio Rabeca lançou o CD Rabeca brasileira. Extrapolando as referências da música de sua região, a produção conta com um arranjo do choro Receita de Samba para rabeca e violino, a canção Upa Neguinho de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, além de canções de sua autoria.

É um CD que eu vou tentar mostrar as várias possibilidades do instrumento, justamente gravando vários estilos diferentes, como frevo, choro, forró e até canções de música popular brasileira. Vou regravar o Receita de Samba, que é um choro de Jacob do Bandolim, vou gravar um frevo de minha autoria e assim, eu gosto de tocar na rabeca o que eu gosto de ouvir, então como eu sou um cara muito eclético e escuto música do mundo todo, cada vez mais eu venho querendo abrir o horizonte do meu instrumento pra tocar as coisas que eu gosto. E ai venho me influenciando por muita coisa, inclusive o rock, a música do mundo, música africana. Nesse meu CD vai ter um pouco dessas influências em algumas músicas (CLÁUDIO RABECA, 2018).

Os três últimos rabequeiros citados, usam em suas rabecas a afinação pernambucana (si-mi-lá-ré), e mesmo com elementos parecidos em sua trajetória, a sonoridade destes artistas em questão é muito variada, contanto com elementos de diversas referências musicais, como choro, samba, MPB, rock e jazz. Assim como é

27 Cláudio Rabeca em comunicação pessoal.

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predominante à personalidade de cada músico, também ligada ao contexto em que vivem.

Figura 19: Artigo Cláudio Rabeca Fonte: Diário de Pernambuco28

Neste processo de expansão das possibilidades sonoras em que a rabeca se encontra, bem como em toda a sua história, surge a cada dia um detalhe novo. Podendo ser, o aparecimento de uma corda a mais, ou de um tipo de corda diferente, a implementação de captadores no corpo do instrumento, arcos de tamanhos e formatos irreverentes, cavaletes, desenhos do corpo do instrumento e etc. Como por exemplo, o instrumento adaptado por Marcelo Portela, chamado EnRabecador, uma rabeca que possui espaço para acoplar uma caixa acústica,

28 Diário de Pernambuco: Novo Álbum de Claudio Rabeca quer mostrar que o instrumento é universal, 2019. Disponível em: . Acesso em: 26 jun. 2019.

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abrindo possibilidade para que ela seja de diversos materiais, como latas, garrafas d'água ou tamborim (fig. 20).

Figura 20: EnRabecador Fonte: Print de tela do vídeo EnRabecador29

No decorrer da pesquisa foram raras as vezes em que um rabequeiro não relatava a invenção ou uso de um elemento novo. Outro aspecto que buscamos apontar foi a questão do uso de pedais controladores de timbre, afinação e harmonia na rabeca (pedais muito usados na guitarra), o que pode ser considerado por muitos, um paradoxo ao se tratar de um instrumento rústico que carrega consigo tamanha simplicidade e linguagem marcante. De certa forma, pude encontrar a ocorrência de pedaleiras em algum momento da performance de quase todos os rabequeiros pesquisados. Conforme afirma Lima:

De um modo geral, não há como negar que atualmente as ferramentas tecnológicas no campo da engenharia de produção e manipulação eletrônica de sons terminam, de algum modo, afetando o campo geral da produção musical em nossa cultura. Afetando esta produção em todos os setores, seja no espaço da música popular urbana, da música de concerto das orquestras sinfônicas ou das músicas de tradição oral – espaço este onde até a mínima interferência de um pesquisador com seu gravador pode ser elemento de influência nas atitudes cotidianas de produção musical (LIMA, 2001. p. 81).

No caso da rabeca, essa intervenção da tecnologia tem ido muito além de um simples equipamento equalizador, embora tenha sido essa a motivação inicial

29 EnRabecador, 2017. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=UzVSXH2c5BY>. Acesso em: 05 mai. 2019.

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para seu uso, pois muitos dos rabequeiros entrevistados afirmam que o uso de um set de pedais procura evitar uma possível equalização mal realizada pelo técnico de som dos lugares em que vão tocar. Pedais de delay, wah-wah e reverb auxiliam na criação de sons que o instrumento não faria sem estas tecnologias, ou seja, não são genuínos da linguagem da rabeca. Conforme contam Jeferson Leite,

Uso uma captação de contato, transmissor sem fio e Ipad como processador de efeitos. Estou estudando para lançar um trabalho solo onde usarei samplers, máquinas de ritmo, linhas de baixo e processador de efeitos eletrônicos (LEITE, 201830).

Marcelo Portela,

Fiz um set que anda sempre comigo, usando umaantiga caixa do meu clarinete. Consiste num alimentador de Phantom Power (48V) para o microfone que uso, passando depois por um afinador e depois num pedal de volume e expressão (PORTELA, 2018).

Claudio Rabeca,

E de acessórios tecnológicos, digamos pedaleiras, eu uso sim, já uso há bastante tempo, eu tenho um set que é uma pedaleira que tem muitos efeitos, uma pedaleira de guitarra da marca Line 6, um tipo de pedaleira top de linha, uma das maiores e melhores, eu uso esse tipo de pedaleira que chama Pod Hd que é digital, que tem vários efeitos, tem um wah wah anexado a ela, que eu gosto bastante de usar uma vez ou outra. Uso um pedal analógico oitavador da marca Electro Harmonix chamado Micro Pog, onde a nota que a gente toca ele dá uma oitava abaixo e uma oitava acima, aí você regula a intensidade dessa oitava para mais ou para menos, também gosto de usar bastante (CLÁUDIO RABECA, 2018).

E Filpo Ribeiro

Uso um case de pedais grande, mas o uso maior é de pedais de correção e potencialização do som (equalizadores, mesa de som pequena, afinador, etc). Por vezes uso o wah-wah, reverb e delay (RIBEIRO, 2018).

É comum que esse tema seja objeto de certa polêmica, em que favoráveis e contrários opinam apaixonadamente em defesa de seus pontos de vista, uns em defesa da continuidade outros em defesa da experimentação e inovação, todavia entendemos ser inevitável que, principalmente novas gerações de

30 Jeferson Leite em comunicação pessoal.

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rabequeiros, busquem recursos de todo tipo na solução de questões ligadas à amplificação, criatividade e na lida composicional.

2.3 CASO 2

O estabelecimento de uma linha do tempo para o segundo caso já é mais complexo, pois há de um lado Nelson e Gramani, em uma troca mútua de saberes e conhecimento, e de outro Zé Gomes e Thomas Rohrer num processo muito parecido. Gramani e Zé Gomes, dois agentes póstumos, são lembrados na música do presente, resultante da parceria de Thomas e Nelson, que contém importantes elementos das histórias passadas e de suas próprias histórias para compor o Tradição Improvisada. Portanto, continuaremos a contar como foi até agora, um por um, até os encontros e seus desdobramentos.

2.3.1 José Eduardo Gramani

Nascido em Itapira, interior de São Paulo em 1944, Gramani começou a aprender violino aos sete anos de idade com um relojoeiro trombonista de sua cidade, aos nove ele passou a ter aulas com a filha dele, que era pianista e acordeonista. Já por esse começo pode-se entender a singularidade de sua personalidade artística. (FIAMMENGHI, 2008. p.189). Após esta iniciação musical, Gramani foi para São Paulo continuar seus estudos com o professor Moacir Del Picchia e passou a atuar como músico profissional. De 1975 a 1983 foi integrante da Orquestra Sinfônica de Campinas como concertino, spalla e solista, após esse período passou a se dedicar ao seu trabalho como professor de rítmica e percepção musical na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), e a atuar como arranjador, músico de câmara, compositor e pesquisador (FIAMMENGHI, 2008. p. 179) até o final de sua vida, em 1998. Encontrou na universidade um lugar onde pode extrapolar parte de suas inquietações em relação à formalidade da música trazida pelos moldes de conservatórios e pela supervalorização da técnica racionalizada, algo que era muito diferente do que via como arte. Em suas aulas de rítmica buscava encontrar

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maneiras de estimular a sensibilidade dos músicos através de recursos não convencionais de ensino, utilizando principalmente elementos presentes na música brasileira.

Figura 21: José Eduardo Gramani Fonte: O Inesperado som da rabeca31

A partir de suas vivências em salas de aula e do amplo processo pedagógico, em 1996 lançou o livro Rítmica Viva, que segundo Fiammenghi, “deve ser a porta de entrada para que o universo das rabecas em Gramani seja melhor compreendido” (Fiammenghi, 2008, p. 185).

A busca de novas sonoridades que pudessem quebrar os padrões da “regularidade polida dos instrumentos modernos” foi também um impulso que moveu Gramani em direção aos “inesperados sons” das rabecas. Antes de chegar às rabecas, Gramani já tinha se aberto para a descoberta do violino barroco e todos os satélites que compõem o universo da música antiga (...). Seria reducionista, portanto, pensar no interesse pelas rabecas como um retorno a uma ruralidade ingênua, ou um refluxo nacionalista puro e simples (Fiammenghi, 2008. p. 193).

31 O Inesperado Som da Rabeca, 2002, p. 13.

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Então, antes de conhecer as rabecas, Gramani já via com bons olhos movimentos alternativos aos moldes engessados da formação tradicional violinística, alimentando interesse pela inserção do violino em músicas populares ou pelo violino barroco, consagrado pelo movimento de interpretação histórica. Em 1986, quando participou do Grupo Anima32, ganhou de Ana Maria Kiefer por intermédio da flautista do grupo, uma rabeca de três cordas construída pelo Mestre Davino Aguiar, de Cananéia. Na época, sem saber qualquer informação sobre a origem da rabeca, Gramani começou a compor para ela de acordo com os recursos que esta lhe proporcionava (Fiammenghi, 2008. p. 199). Nesta primeira rabeca, Gramani utilizou a afinação em quintas do violino com exceção da corda mi, ausente na rabeca de três cordas. Por sua caixa de ressonância alta, que resultava em um timbre cheio e encorpado, a rabeca conquistou o interesse de Gramani com sua sonoridade contralto, próxima à viola. Como conta Fiammenghi:

Essas qualidades foram logo percebidas e apreciadas por Gramani que, a julgar pela escrita virtuosística de sua primeira música feita para esta rabeca – Festa na Roça, escrita em 28/12/91, segundo anotação no manuscrito - imediatamente dominou os mecanismos que envolvem a complexa utilização de mudanças de posição da mão esquerda e a virtuosidade de escalas e arpejos ascendentes e descendentes. Além da grande extensão melódica que exige o uso até da 4.a posição, outro recurso explorado nesta peça é o uso de grandes saltos envolvendo mudanças de cordas não vizinhas, em uma linguagem instrumental típica da escrita barroca, como, por exemplo, nas suítes para violoncelo solo de J. S. Bach ou nas fantasias para violino solo de Telemann. Gramani conhecia de perto esse repertório, tanto como intérprete quanto como pedagogo, pois ambos faziam parte do material utilizado com seus alunos de violino e viola. Evidencia-se, portanto, que desde o seu primeiro contato com a rabeca, a transferência de recursos técnicos advindos principalmente do estilo barroco de escrita para cordas, que foram largamente utilizados como material composicional para esse “novo” instrumento, caracterizando de imediato um estilo em suas composições que poderíamos chamar de transbarroco. (p. 205) A linha da rabeca é, por sua vez, sobretudo melódica. Deve ao choro e à modinha seus contornos melódicos básicos, acrescentados de um especial senso de instrumentalidade característicos dos autores/instrumentistas. Em Festa na Roça já está claro também que

32 Grupo de Câmara iniciado na cidade de Campinas - SP com o intuito de se tocar música antiga européia - medieval, renascentista e barroca - aos poucos sua performance se direcionou para a música brasileira de tradição oral e popular (Gifoni, 2008. p. 8).

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a forma recorrente nessas peças será a tradicional forma utilizada nos choros, ou seja, AA/BB/AA/CC/AA/ coda, onde os contrastes das seções são acentuados pela modulação harmônica maior/menor, menor/relativo maior, ou tônica/subdominante/dominante (FIAMMENGHI, 2008, p. 206).

Parafraseando Vargas, “só um conceito como o hibridismo pode dar conta de mesclas complicadas e de produtos culturais identitários mestiços e variáveis como esses e conseguir operar suas semioses e gramáticas” (VARGAS, 2007. p. 30). Segundo Fiammenghi, Gramani compôs mais de 80 músicas para rabeca em diversas formações, mas predominante em duo e trio, por conta do grupo de câmara que formara para tocar suas músicas. O Trio Bem Temperado era composto por cravo, rabeca e voz, formação que proporciona uma gama de possibilidades timbrísticas, rítmicas e harmônicas. Por anos o impulso criativo de Gramani se deu pelos recursos que os instrumentos que chegavam até ele o ofereciam, junto a sua técnica já desenvolvida no violino, assim, o músico utilizava de sua intuição para avaliar quais seriam os parâmetros para a performance de cada rabeca, que muitas vezes não eram os mesmos da técnica violonística. Opostamente à história de Siba, que só conheceu a rabeca quando chegou à Zona da Mata, a princípio Gramani não foi até os Mestres para buscar as rabecas e conhecer a tradição da qual elas vinham, as rabecas chegavam às mãos dele e serviam de ponto de partida para suas composições, como conta Fiammenghi:

Estas músicas foram compostas a partir de um universo simbólico próprio, que não remetem necessariamente à mesma tradição de onde provém a rabeca. O impulso criativo era dado pelo instrumento e pela descoberta de novos caminhos interpretativos a partir destes, o que aproxima a sua abordagem da prática fenomenológica, representando um desvio da concepção de obra musical como uma criação autônoma (FIAMMENGHI, 2008. p. 200). Logo, O encontro de Gramani com as rabecas foi, portanto, fruto direto de suas inquietações como artista. Todo seu contato com esses instrumentos foi sendo construído a partir da praxis: do músico que procura novos caminhos para criação musical, despindo-se de seus preconceitos para incorporar, em sua paleta de cores, novas técnicas ou recuperar outras antigas. Nesse movimento dialético entre novo x antigo, urbano x rural, erudito x popular, arte x artesanato, obra x interpretação e finalmente violino x rabeca, a força das oposições é

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diluída por uma força maior que sobrepõe esses conceitos de forma a permitir a permeabilidade entre eles, pois já estão de antemão resolvidos na alma do artista (FIAMMENGHI, 2008. p. 181).

Quando Gramani conheceu as rabecas de Nelson dos Santos (Nelson da Rabeca), sua forma de composição passou a ter um direcionamento, a afinação desses instrumentos era incomum, e eles só soavam de forma viva quando na afinação correta33. Gramani visitou Nelson diversas vezes em sua casa em Marechal Deodoro (Alagoas) e as composições para estas rabecas permeiam a sonoridade do universo da música nordestina, com muitos traços de escalas da música Armorial, como a música Deodora, composta para a rabeca de Nelson que ganhou o mesmo nome.

Figura 22: Gramani e Nelson da Rabeca Fonte: Acervo de Gramani34

Assim como a maioria dos compositores do período barroco, Gramani não exercia sua função de compositor desconectada de uma função como instrumentista, tendo em mente sempre a instrumentalidade do que escrevia. A consideração das particularidades de cada rabeca era, de fato, o início da criação, que surgia do próprio instrumento e não de um padrão externo. Esta postura não impediu, obviamente, que procedimentos técnicos pouco ou nada usuais para determinado instrumento fossem incorporados, via transposição de técnicas vindas de fora. Ao contrário, uma das

33 As alturas de referência variam para atender às características acústicas de cada instrumento, porém a relação intervalar de 3M, 4J, 5J permanece. 34 GRAMANI, 2002. p. 71.

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riquezas do trabalho único de Gramani é justamente a transposição de fronteiras entre os instrumentos populares e eruditos, evidenciando a fragilidade dos conceitos que colocam a rabeca como um instrumento incapaz de rivalizar em potencialidade musical com o violino (FIAMMENGHI, 2008. p. 223).

Com o tempo Gramani passou a se interessar mais pela origem das rabecas no Brasil e ao buscar informações sobre as diferentes manifestações populares em que se encontrava rabeca, encontrou pouco material e percebeu quão defasada era esta área de pesquisa. Por conta disso e de sua inerente curiosidade, tornou-se pesquisador, indo a campo com a finalidade de documentar todos os saberes que já haviam chegado até sua mão e expandir a área de pesquisa acadêmica. Esse movimento foi de extrema importância não apenas para a academia, mas para a difusão da música de rabeca e de seus Mestres, Gramani se tornou referência dentro e fora da universidade, impulsionando músicos e pesquisadores a adentrarem no universo da cultura popular através de seu trabalho, conforme conta Fiammenghi:

De fato, muita coisa mudou desde que, por volta de 1995, Gramani começou a considerar a possibilidade de ampliação de suas fronteiras de pesquisa, indo a campo para documentar os processos de construção das rabecas que já haviam sido incorporadas ao seu acervo de performance. Àquela altura, pouca coisa havia sido publicada sobre rabeca (...) No curto espaço de aproximadamente uma década, esse panorama mudou consideravelmente e o impulso que Gramani trouxe certamente contribuiu para colocar em evidência novos conceitos sobre a leitura da cultura popular, e retirar o véu de preconceitos que existia sobre a rabeca. O mero exame da qualidade e da quantidade de publicações recentes, que focalizam a rabeca e seus praticantes dentro de um contexto não-assistencialista e tão pouco guiado por uma visão hegemônica da cultura, deixando, portanto, falarem os seus atores, assim como Gramani soube ouvir e permitir a expressão da voz das rabecas, é revelador da mudança de parâmetros ocorrida nos últimos anos, da qual Gramani foi um dos precursores (FIAMMENGHI, 2008. p. 224).

Nelson é o quarto rabequeiro descrito no Livro O Inesperado som da rabeca, e embora seja hoje uma referência na música de rabeca, a pesquisa de Gramani ainda é a maior fonte acadêmica que podemos encontrar sobre ele, onde constam, além de aspectos históricos do artista, fotos com suas técnicas de construção do instrumento, informações sobre seu trabalho de luthier e composições de Zé Gramani explorando a sonoridade destas rabecas.

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O encontro de Gramani com Nelson da Rabeca foi um ponto importante nessa história de hibridismos e caminhos que buscamos contar, segundo Fiammenghi (2002, p. 73), Zé Gramani foi o primeiro músico a incorporar os instrumentos de Nelson em seu arsenal de criação, tocando músicas para a rabeca apelidada Deodora no CD Trilhas, em 1994. Essa exposição proporcionou maior visibilidade para Nelson e seus instrumentos, para além do seu comércio regional, que até então concentrava-se na venda de rabecas na Praia do Francês, a partir daí, muitos músicos se interessaram pelos instrumentos e Nelson foi ganhando cada vez mais reconhecimento pelo seu trabalho musical. Com isso, percebemos a intensidade pela qual se deu este caso de hibridismo em específico, a partir de Nelson, Gramani mudou sua forma de se relacionar com a prática de rabeca, compor e pesquisar, do mesmo modo que Nelson incorporou elementos deste encontro em seu trabalho, abrindo portas para os próximos capítulos dessa história. Segundo Silva (2001, apud GRAMANI, 2002. p. 39) José Eduardo Gramani tornou-se referência nacional em se tratando de rabeca. Pois buscou conhecê-las em seus mais minuciosos detalhes, vislumbrando o potencial sonoro e riqueza simbólica deste instrumento, unindo-as às suas produções artísticas como intérprete e compositor, “Estava dando o passo inicial de um ‘movimento’ em defesa da rabeca, não uma revolução silenciosa, mas era feita de sons, e ainda por cima de repercussão nacional”. Através do seu trabalho de pesquisa e composição, Gramani expandiu o ofício e auxiliou no reconhecimento de rabequeiros e construtores que até então não eram valorizados.

2.3.2 Zé Gomes

Logo quando cheguei no Brasil, em São Paulo no ano de 1995 eu conheci o Zé Gomes, através de um percussionista, o Fábio Freire. Ser apresentado ao Zé foi crucial pra mim, infelizmente ele ainda é pouco conhecido, e eu busco sempre falar do Zé porque ele é uma figura importante, não tem muita coisa gravada mas ele foi um dos primeiros, fora Nóbrega e Gramani, que começou a tocar rabeca fora desses tocadores tradicionais. Ele tem um pouco de herança gaúcha, mas ele além de violonista erudito, tinha sempre um grande interesse pelo improviso na tradição popular. Então quanto você escuta violino ou rabeca na MPB dos anos 80/90 normalmente é ele tocando, seja Almir Sater, Renato Teixeira, gravou o Ao vivo em Tatuí, também com Elomar, Xangai, ele colaborou com muitas pessoas, no nome

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dele tem um disco que eu gosto especialmente que chama ‘Palavras querem dizer’, gravado pelo selo Kuarup (ROHRER, 201935).

José Bonifácio Kruel Gomes, Zé Gomes, nasceu em Ijuí (Rio Grande do Sul) no ano de 1935. Passou a dedicar-se profissionalmente à música aos 14 anos através do violão, mas autodidata em violino e rabeca, teve grande reconhecimento na música popular brasileira através destes instrumentos ( BARULHO…, 2017).

Figura 23: Zé Gomes Fonte: José Kléber. Acervo do Silo Cultural José Kléber36

Em Porto Alegre integrou os grupos tradicionais Tropeiros da Tradição e Os Gaudérios, em 1958 criou o Curso de Violão José Gomes, que em uma década teve mais de 1500 alunos, neste período também foi integrante da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre e palestrante em seminários culturais. Mudou-se para São Paulo nos anos 70, onde além de ser regente e arranjador de orquestras das TVs Record e Tupi, compôs trilhas para teatro, cinema e formações de câmara. Trabalhou durante 20 anos como músico do cantor Almir Sater, com quem também cavalgou 1000 km pelo Pantanal em 1983 a fim de pesquisar a música da região e gravar o filme “Comitiva Esperança” com apoio da Funarte, também faziam

35 Thomas Rohrer em comunicação pessoal. 36 Disponível em: . Acesso em: 05 mai. 2019.

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parte do projeto Wagner Carvalho, Geraldo Espíndola, Paulo Simões Zuza Homem de Melo e Raimundo Alves37. Zé Gomes foi referência na música de rabeca dentro da MPB, gravando com mais de 200 músicos, dentre eles, Arthur Moreira Lima, Chico Buarque, João do Valle, Heraldo do Monte, Elomar, Pena Branca e Xavantinho, Diana Pequeno, Grupo Tarancón, Renato Teixeira, Paulinho Pedra Azul, Marluí Miranda e Alzira Espíndola. (DICIONÁRIO…, 2019). Segundo Ney Arruda (2007) Zé Gomes lançou seu primeiro disco solo em 1995, intitulado Palavras querem dizer. Produzido por Renato Teixeira, Zé Gomes toca hinos mineiros, música nativista gaúcha, milongas, chamamés e leituras prodigiosas do estilo do rasqueado cuiabano em duos de viola de cocho e rabeca predominantemente.

Esses instrumentos são muito antigos e semelhantes entre si. Eles têm o mesmo processo de fabricação, o que denota quase a mesma origem para ambos... A musicalidade deles, por ser antiga, traz elementos musicais únicos, os quais trabalho, misturando-os com a música popular brasileira, sem fazer com que resultem em músicas folclóricas, mas em músicas que utilizam elementos folclóricos (FOLHA…, 1998).

Ainda em 1995, Zé Gomes conheceu Thomas Rohrer, que recém chegado ao Brasil, se encantou pelo mundo das rabecas apresentado por Gomes. É importante ressaltar que não foi encontrada nenhuma fonte acadêmica que falasse sobre Zé Gomes, por isso, todas as informações aqui contidas são provenientes de artigos de jornais e entrevistas, infelizmente não foi possível descobrir como Zé Gomes conheceu as rabecas, apenas sabe-se que ele é autodidata no instrumento.

Mas aí a rabeca entrou através do Zé, eu ia pra casa do Zé fascinado pelas rabecas, acho que ele tinha três instrumentos, uma feita por ele, outra de três cordas do litoral de São Paulo, muito bonita, com talhagem fina e um som anasalado… e ele me emprestava a rabeca (ROHRER, 2019).

37 CARVALHO, Wagner. Comitiva Esperança. Disponível em: Acesso em: 30 jun. 2019.

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Dois anos depois, junto ao seu filho André Gomes, lança o disco A idade dos homens:

Obra aberta, que mostra a avidez pelo aprendizado, a troca constante, entrelaçando sons que vão do deserto ardente aos picos gelados; do Oriente à Europa; do medievo ao moderno, harmonizando instrumentos aparentemente díspares: chocalhos metálicos, violino, teclado, tablas, viola de cocho, baixo, sitar, darbouka, bodrán, rabeca, saltério, violão, guitarra midi,etc. (SERTÃO PAULISTANO, 2009).

Zé Gomes ainda produziu mais dois álbuns, dentre eles, o CD Tempos Interiores (2000), onde toca violino, violoncelo, viola e violão. O CD teve apoio da Lexmark e não foi distribuído comercialmente, mas Enio Squeff conta que:

Constam dessa gravação a aproximação com os clássicos no sentido estrito da palavra e toda gama de informações (musicais) ao longo dos séculos. Assim, percebemos evocações a Villa, a Baden Powel; o bem humorado e irrequieto diálogo do violino com a viola caipira de Almir Sater na célebre Doma. Na faixa Veia Messina, tema baseado num texto de Saulo Laranjeira, num esforço para buscar autenticidade, recorre a uma singela rabequinha, de onde extrai o som que nos conduz, ‘visualmente’, às aldeias medievais, aos terreiros de dança do interior do Brasil, repletos de humor, nostalgia, alegria (SERTÃO ..., 2009).

Assim como Gramani, a formação inicialmente erudita foi naturalmente a prática de Zé Gomes, haja vista sua gravação da Modinha nº 5 de Heitor Villa Lobos transcrita para rabeca solo lançada em 1987 pelo CD Villa Lobos por Solistas (Kuarup Music) (GOMES, 1987). E em parceria com o músico Thomas Rohrer, gravou o CD Rabecas, reafirmando esses tantos hibridismos que Zé carrega em sua carreira. O álbum não foi lançado, mas foi gravado no estúdio caseiro dirigido pelo filho de Zé, na Serra da Cantareira (SP). Além deste CD, Thomas conta que tem muitas gravações de encontros que aconteciam habitualmente. Juntos também fizeram alguns shows que partiam da herança de música tradicional para a liberdade improvisatória.

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2.3.3 Thomas Rohrer

Foi Zé Gomes quem apresentou o universo das rabecas para Thomas Rohrer, que por anos estabeleceu uma parceria com o músico. Nascido em Aarau (Suíça) no ano de 1968, estudou violino dos 9 aos 17 anos mas por não conseguir a liberdade improvisatória que buscava na música, e achar o violino um instrumento muito ligado a rigidez erudita conservatorial, recorreu a flauta doce e posteriormente ao saxofone para se aperfeiçoar. Estudou na Faculdade de Jazz de Lucerna por dois anos e em 1995 mudou-se para São Paulo.

Eu vinha assim querendo ser músico, mas eu era um músico no começo de um caminho. Desde sempre eu tive interesse em música instrumental, música improvisada, então isso era uma coisa que se tocava na Europa também e que mais me interessava, não era tanto Jazz, era o improviso. Procurava duas coisas aqui: músicas que trabalhavam com improviso e músicas tradicionais daqui (ROHRER, 2019).

Quanto a partir do encontro com Zé Gomes, Thomas começou a tocar rabeca, foi possível alcançar a liberdade das partituras que não encontrava no violino e, junto às técnicas de improvisação livre que trazia em sua bagagem, possibilitou-se uma expansão de horizontes providencial na carreira de Thomas. Os dois passaram a fazer shows juntos e tocavam músicas que partiam da herança tradicional para a liberdade, ainda em um contexto predominantemente tonal. A sonoridade que remete ao sul ponticello38 muito característica na música de Thomas, se dá por frases repletas de harmônicos, com notas ligadas em longos arcos que caminham livremente sobre o corpo do instrumento, improvisando e produzindo efeitos, pode ser reconhecida em diversas gravações de músicas brasileiras. Thomas conta que sua primeira grande viagem referencial de música tradicional foi em 1998, em uma turnê pelo nordeste com Zeca Baleiro, neste momento ele há havia incorporado o instrumento no seu fazer musical e neste show tocava rabeca, violino e saxofone. Thomas conta que até o ano de 1999 usava uma pequena rabeca feita por Mané Pitunga ao filho dele, dado este momento, ganhou o CD Música das

38 Efeito originário dos instrumentos de corda eruditos, que se dá quando o instrumentista toca com o arco em uma região muito próxima ao cavalete.

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Alagoas, que dentre várias músicas continha duas faixas de Nelson da Rabeca. Ao ouvir o timbre potente e aberto de Nelson e suas rabecas, ficou impressionado e começou a procurá-lo.

Depois que eu comprei essas duas primeiras eu aposentei a rabeca do Mané Pitunga porque eu me identificava muito com esse timbre das rabecas do Nelson, por elas serem mais robustas e me darem a vantagem de usar muitas preparações diferentes, fazia muito mais sentido trabalhar com preparação nessas rabecas grandes, e eu podia usar o corpo como caixa de ressonância pra as vezes colocar algumas coisas em cima, que em uma rabeca mais frágil não daria pra fazer. A partir daí, sempre quando eu ia ao nordeste procurava ficar mais tempo perto de Maceió para passar uns dias com o Seu Nelson, e comecei a gravar também e essa troca e tornou mais intensa (ROHRER, 2019).

Os encontros com Nelson passaram a acontecer com maior frequência, hora em eventos, hora em viagens até sua casa. Um momento importante foi quando no final do ano de 2004, Thomas viajou com o grupo A Barca por nove estados brasileiros, do Pará a São Paulo. O grupo registrou cerca de 40 comunidades e artistas populares, nesta ocasião Thomas conseguiu fazer as primeiras gravações com Nelson da Rabeca e pode tocar bastante tempo junto com ele. “Foi reunido um acervo com 300 horas de áudio e vídeo, além de 6 mil fotos. Em 2006 o grupo lançou a coletânea de três CDs Trilha, Toada e Trupé e um documentário em DVD, todos frutos do Projeto Turista Aprendiz.”39 Thomas conta que sua área de atuação com a rabeca é muito variada, trabalhando com gravações de trilhas sonoras para cinema, teatro e comerciais, além de fazer participações em álbuns e shows de outros músicos, em teatros e espaços independentes. Também é integrante dos grupos Ponto Br, A Barca, Coletivo Abaetuba e Tradição Improvisada.

Trabalhou com músicos como Célio Barros, Zé Gomes, Nelson da Rabeca, Marcio Mattos, Maurício Takara, John Russell, Alexandra Montano e Yusef Lateef. Excursionou em turnê diversas vezes pelo Brasil, Estados Unidos e pela Europa. Quando residente em Londres integrou a London Improvisers Orchestra, além de se apresentar com vários improvisadores locais. Realiza também trabalhos de interação

39 Disponível em Acesso em: 30 jul. 2019.

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musical com cinema, teatro, dança, performance e instalação (COLETIVO…, 2019).”

Thomas encontrou nas rabecas um universo receptivo às suas criações. Este foi um fator importante para nortear a trajetória do rabequeiro e suas escolhas musicais com o instrumento. Sua performance baseia-se na improvisação, sendo este um marco em seu trabalho, pois, com maior ou menor grau de liberdade a improvisação é sempre presente.

O que eu tinha muito forte desde quando comecei a tocar rabeca era que a rabeca é uma máquina de produzir som, e muito menos, eu que vim da Suíça não tinha nenhuma pretensão de querer tocar parecido ou copiar alguém dos tocadores tradicionais (ROHRER, 2019).

Figura 24: Set de Thomas Rohrer utilizado no Show Tradição Improvisada Fonte: Acervo pessoal

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Embora tenha costume de pesquisar diferentes afinações nas rabecas, Thomas adota predominantemente a afinação em quintas da viola erudita (Do, sol, ré, lá), e busca constantemente novas formas de performance com o instrumento, através de experimentações timbrísticas e preparações com objetos, conforme conta:

Eu não uso muitos pedais mais, tive épocas que usei mais, agora uso o pedal de volume que não altera o som, as vezes eu uso o green modulater, que é um pedal que acrescento uns harmônicos estranhos e soa muito interessante na rabeca. Fora isso eu uso mais possibilidades de timbres mesmo, só com o arco buscando sons e timbres do instrumento, seja passando no cavalete, no estandarte, batendo no corpo do instrumento, ou esfregar a crina em lugares diferentes, com arcadas diferentes nas cordas. Tem um monte de possibilidades… ou interferindo diretamente no instrumento com objetos nas cordas, sejam madeiras (que podem ser friccionadas ou percutidas), ou outros vários, como metais, parafusos, pedras, baquetas, alumínio, isopor (para ser tocado com o arco - fazendo como um segundo cavalete), diferentes motores pequenos, que uso com cordas ou molas, ou até falantes de bluetooth, que posso jogar uma onda senoide no tampo da rabeca… tem muita coisa que dá pra fazer. Outro recurso que eu uso bastante é a microfonia controlada, com a rabeca ligada em um amplificador (ROHRER, 2019).

2.3.4 Tradição Improvisada

Sons rudes vão estabelecendo contatos gentis, festivos, como se um convidasse outro a abrir a carranca e aproveitar a vida (...) As músicas também falam de encontros, amor e amizade. Um desses encontros é o da cultura popular com a improvisação livre: duas formas de resistir à homogeneização da música pela indústria cultural. (Thiago Mesquita. Texto de apresentação do álbum Tradição Improvisada).

O Tradição Improvisada é um projeto antigo, que teve suas origens ainda no tempo em que Thomas fazia seus primeiros shows com Zé Gomes e acabara de conhecer Nelson da Rabeca. A inspiração veio através das primeiras vivências de improvisação incorporadas às músicas de heranças tradicionais experienciadas através da parceria com Zé.

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Thomas conta que Zé Gomes trocava gravações por correio com um baterista americano de free jazz chamado Warren Smith, uma figura importante na história do estilo. Então nesta época, escreveu um projeto para a Petrobras com a ideia de juntar Zé Gomes, Warren Smith, Nelson da Rabeca e ele para um show, porém a proposta não foi aprovada, em seguida Zé Gomes faleceu, e a ideia ficou adormecida. Conforme apresentado, em 2004 o contato entre Thomas e Nelson se tornou mais estreito, os dois fizeram as primeiras gravações e experimentações juntos. A partir daí, os encontros foram acontecendo com maior frequência, e revisitando a ideia de anos atrás, Thomas enviou o projeto Tradição Improvisada para o edital Rumos, do Itaú Cultural. “Eu era mais forrozeiro, mas através dele eu já tô tocando muita música diferente sem ser o forró” (NELSON DA RABECA, 2018)

Eu ia lá e ficava tocando junto as músicas dele, e ele desde o começo era bem curioso, tinha até mais vontade de escutar coisas não tinham supostamente a ver com o mundo dele, então eu mostrava gravações com as rabecas dele e ele achava interessante. E o que ele se empolgava mais mesmo eram as coisas que soavam totalmente diferentes. Então ele logo entendeu isso, que eu faço som assim e ele faz o som dele, que são coisas diferentes que podem dialogar também (ROHRER, 2019).

Figura 25: Nelson e Thomas - Show Tradição Improvisada Fonte: Centro de Pesquisa e formação: Nelson da Rabeca e Thomas Rohrer - Tradição Improvisada40

40 Disponível em: Acesso em: 16 mai. 2019.

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Em 2014, o projeto foi contemplado com o prêmio, que proporcionou shows, oficinas e a gravação de um minidocumentário da Série +7041. Neste primeiro momento, o show circulou por Fortaleza (CE), Itapipoca (CE), Maceió, Rio de Janeiro (RJ) e São Paulo (SP). Com aproximadamente duas horas de duração, a proposta de apresentação original se divide em três partes: na primeira, seu Nelson toca seu repertório de xotes, forrós e marchas acompanhado pela voz de Benedita; na segunda, Thomas improvisa ao lado do percussionista Antonio Panda Gianfratti42; e no final o encontro dos quatro de fato acontece, com a tradição de Sr. Nelson visitando o improviso de Thomas, e vice-versa. Além da rabeca de Nelson tocada por ele e por Thomas, Antonio Panda Gianfratti toca instrumentos de percussão convencionais e objetos adaptados por ele, Benedita canta diversos temas e em alguns shows Célio Barros toca uma rabeca-baixo (rabecão). O repertório do show é composto por forrós, composições de Nelson da Rabeca e Benedita, e improvisações conjuntas. Através da transcrição da primeira frase da música “Segredo das árvores”, baseada na gravação do show ao vivo realizado no SESC Pinheiros em 2016, pode- se notar que a dupla de rabequeiros tem um estilo muito livre de tocar, aonde um vai acompanhando o outro conforme a performance do momento, neste caso foi notória uma diferença de tempo para a execução da mesma nota, que tradicionalmente seria em uníssono.

41 Disponível em: . Acesso em: 15 mai. 2019. 42 Antonio Eugenio Taranto Gianfratti, percussionista contemporâneo que se dedica a improvisação livre musical. Fundador do Coletivo Abaetuba, seu trabalho consiste no desenvolvimento timbrístico através do uso de arco em pratos em cima de tambores, vibrafone preparado e violoncelo assim como nos instrumentos que projeta ou transforma (COLETIVO ABAETUBA, 2019).

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Figura 26: Transcrição do tema principal de O segredo das árvores

Thomas conta que o show acontece de forma muito fluída e constantemente os momentos programados para solos se misturam, pois cada vez mais Nelson se dispõe a improvisar desde o início do show.

Ele ficou observando essa coisa com preparações, com o tempo ele começou a ficar instigado e como tem uma mente altamente criativa, decidiu ir também… Desde o começo quando o encontrei, queria sair disso de eu tocar junto com as músicas dele, o que é legal, mas eu queria puxar ele pra vir pro meu lado também, claro que sem forçar isso, queria que isso acontecesse naturalmente e foi assim. Uma hora ele começou a querer improvisar, foi muito natural e hoje em dia ele pode terminar um forró e no próximo momento ele começa a puxar uma coisa de texturas bem solta, as vezes ele usa até preparações entre as cordas (ROHRER, 2019).

É nítido no show que tudo é muito verdadeiro e espontâneo, desde a vertente contemporânea de Nelson, onde ele utiliza elementos de técnica estendida, como produção de sons no corpo do instrumento, atrás do cavalete, ou através de preparações criadas por ele mesmo, até a performance de Benedita, que num timbre rasgado canta suas canções com potência e presença.

Então é muito delicado as vezes de tocar junto com isso de uma forma que faça sentido, mas ao mesmo tempo é bonito duas rabecas tocando juntas por si só, e acho que no decorrer dos anos, fomos tocando muito juntos e conseguimos criar uma coisa que não é própria também, não sou eu imitando ele ou o contrário. Mas é um desafio sempre, é um desafio fazer esse shows que são muito improvisados mesmo, tem uma estrutura muito solta, e não da pra influenciar muito (ROHRER, 2019).

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Durante a temporada de shows, mais precisamente em 30 de Abril de 2015, o grupo dedicou-se a realização gravações no Estúdio El Rocha (SP), incentivando Thomas a buscar recursos para o álbum Tradição Improvisada43. Este dia resultou em dezessete, das vinte e três faixas do CD, lançado em junho de 2018 pelo Selo SESC. Além dos integrantes do grupo, Nelson da Rabeca, Benedita, Thomas Rohrer e Panda Gianfratti, o disco conta com a participação de Célio Barros, Cícero Alves, Alcino Alves, Rosa Quadros e Rossi Meridional. As outras gravações para além das feitas no estúdio foram realizadas em diferentes momentos ao longo dos anos, há dois registros ao vivo de um show no SESC Paraty em 2015 e cinco faixas gravadas na casa de Nelson (a mais antiga data 2008) através de gravadores convencionais.

Isso é uma coisa que eu acho ótima no disco, as gravações dele tocando em casa com os aparelhos dele, que nos outros CDs dele, não tem. (...) e esse som dele ligando a rabeca naquele amplificador antigo é bem interessante. É meio como essas bandas africanas que tem uma estética em volta, que o som combina com isso e não tem como polir, então as sujeiras todas fazem parte desse universo sonoro dele assim. Por isso é legal ele tocando com o Cícero lá na casa deles do jeito que eles tocam, a dona Benedita junto, que já tem uma voz bem distorcida... é meio rock'n roll (ROHRER, 2019).

A primeira faixa do CD Tradição Improvisada é uma fala de Nelson gravada no ano de 2012 por Thomas através do gravador Zoom H4. Com vozes de crianças e músicas ao fundo, Nelson diz:

As músicas novas é assim: o gravador; a gente precisa ter um gravador em casa, porque aí a gente faz aquela música… a gente repete e ela não sai boa, né… gravou, escutou, não sai boa… então, toca de novo e segue acertando. Quando acerta pode tocar desafobado por onde tiver. O gravador é que nem um professor, ele ensina a gente a fazer a tocada (NELSON DA RABECA, 2012).

A segunda faixa reúne as músicas Rabequiê e Pense meu filho.

43 Disponível em: . Acesso em: 15 mai. 2019.

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Junto à introdução monofônica da rabeca de Nelson, Benedita fala: “Essa música é da autoria da Benedita, esposa de Nelson da Rabeca”. Em seguida, Nelson toca uma nova introdução e Benedita passa a cantar. Ambas as músicas possuem as mesmas características estruturais, pois começam com uma introdução de rabeca em quatro compassos repetidos e seguem com a voz, que têm a melodia dobrada pela rabeca, onde se sobressaem os baixos em cordas duplas ritmados com semicolcheias quando há notas longas na melodia principal. Por conta dos acentos predominantes no acompanhamento, o ritmo nos remete as vertentes do forró.

Figura 27: Transcrição - Rabequiê (faixa 2 - Tradição Improvisada)

Como num salto estilístico, a música Saudade da Rabeca (faixa 3), gravada no ano de 2015, é caracterizada por uma sonoridade áspera, resultante da junção entre um pedal de distorção, um gravador de celular que captou o som e a intensidade do arco de Nelson ao friccionar as cordas. Com rítmica cíclica guiada por semínimas, colcheias e rápidos ornamentos, os elementos do forró característicos da música de Nelson se misturam a ideias que remetem uma sonoridade provinda das guitarras de rock. Sobre esta música, Thomas conta que em uma de suas viagens a Marechal Deodoro (AL), levou o pedal de distorção para que Nelson conhecesse, no mesmo instante ele passou a experimentar temas e se propôs a gravar.

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Caranguejo Danado é a quarta faixa do disco e a primeira em que as rabecas de Nelson e Thomas se encontram. Gravada no SESC Paraty ao vivo em 2016, o forró instrumental é caracterizado pelo timbre grave da primeira rabeca, que carregada de harmônicos provenientes das trocas de direção do arco, apresenta o tema acompanhada por um instrumento de percussão (não especificado no álbum) e pela segunda rabeca (de Thomas), que surge discretamente com acentos percussivos no contratempo e aos poucos passa a permear a melodia com comentários melódicos, denotados pelo som metálico consequente da fricção do arco próximo ao cavalete do instrumento. A sonoridade desta versão de Caranguejo Danado é distinta da mesma gravada para o CD Música de Rabequeiros (produzido por LIMA, 2005), que é uma das músicas mais conhecidas do repertório de Nelson. Nesta gravação mais antiga, a rabeca de Nelson destaca-se por apresentar sonoridade aguda e “limpa”, acompanhada apenas por zabumba e triângulo. Ainda seguindo o estilo rítmico e harmônico similar as primeiras faixas do disco, Dança Pé Maneiro é um duo de rabecas com participação vocal de uma criança ao fundo. Esta é a gravação mais antiga, realizada na casa de Nelson em 2008 por meio de um gravador Zoom H4. O forró apresentado por Nelson é acompanhado por Thomas em pizzicato, que a partir do primeiro minuto, passa a brincar com melodias monofônicas, remetendo uma dança. O primeiro tema apresentado por Nelson se repete em forma cíclica e naturalmente torna-se acompanhamento para os temas improvisados por Thomas, que explora tessituras mais agudas da rabeca e sons menos ruidosos. Após uma fala de Nelson sobre a beleza de duas rabecas tocando juntas, o álbum chega a um novo momento sonoro, dado pela música O segredo das Árvores. O tema que também é antigo na história de Nelson, ganha tratamento sonoro de estúdio, que proporciona maior descrição dos ruídos escutados até então em outras faixas. Um grave rabecão e outra rabeca com sonoridade aguda permeiam a melodia trazendo potência e movimento. Ainda na mesma faixa, a música Vanessa reafirma este novo momento, o tema curto é tocado pelas duas rabecas em oitavas, que delimitado por pausas nos contratempos impares, apresenta com precisão rítmica uma escala maior descendente em anacruse. Na sequência a mesma escala desenvolve-se em tremolos e cita elementos rítmicos de forró por quatro compassos consecutivos. Esta forma se repete quatro vezes, com a

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rabeca de Nelson mantendo a melodia, enquanto Thomas altera os intervalos da mesma e improvisa em alguns momentos. O Segundo silêncio (faixa 8), segue a mesma linha tonal de O segredo das árvores, iniciado em uníssono, o primeiro tema se desenvolve com características que remetem a contrapontos barrocos e tons solenes. As improvisações livres são evidentes nas músicas Briga das Rabecas (faixa 9), Improviso (faixa 11) e Deodoro (faixa 19). Embora apresentem estilo similar, cada faixa tem características específicas e abordagens diferentes em relação à harmonia, timbre e performance. Briga das Rabecas é um registro ao vivo da improvisação realizada no SESC Paraty em 2016. Ecos, harmônicos e texturas agudas compõem a música junto a um pedal grave, presente na maior parte dos dois minutos e onze segundos de gravação. Também é evidente a manipulação de sons feita por Thomas, que provoca pausas abruptas e altera o timbre de sua rabeca. Em Improviso, não há definição de harmonia, apenas texturas geradas por Thomas no saxofone, Nelson na rabeca e Antonio Panda na percussão, apresentando células rítmicas rápidas. Opostamente a Improviso, Deodoro possui andamento lento e harmonia aparentemente estática, as notas longas sobrepostas em texturas, vão compondo camadas ao longo da música, o timbre “limpo” do saxofone se opõe aos ruídos provenientes da rabeca e da percussão, que se desenvolve através da fricção do arco em um prato suspenso. Além destes momentos, o disco conta com cinco faixas (Penerado, Pra você, Xaxa do Forró/Fulô da Palmeira, Peleja do Forró e Saudade de viajar) que possuem estrutura similar, forrós tocados apenas por Nelson. Caracterizadas por linhas melódicas que se misturam a harmonias dadas pelas colcheias ininterruptas provenientes das cordas graves, cada música é composta por três a quatro temas de quatro compassos com repetição, esta forma se repete também de três a quatro vezes em cada música. O encontro destes dois últimos estilos de performance citados, se dá nas faixas Andorinhas, Cajueiro Pequenino e Obrigado Seu Nelson encerrando o álbum. A primeira, que ficou famosa na voz do Trio Parada Dura em 1985, retrata as influências de cada via através da voz de Benedita e da harmonia em notas longas sustentada pelas rabecas, fugindo ao padrão rítmico esperado. E agora com o grupo completo, o forró improvisado das músicas Cajueiro Pequenino e Obrigado Seu

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Nelson, se faz presente com a potência timbrística de cada instrumento. Unidos por meio das tradicionais semicolcheias de Nelson, da especifica voz rasgada de Benedita, dos improvisos de Thomas e do timbre percussivo de Antonio Panda, retratam genuinamente a Tradição Improvisada.

Obrigado seu Nelson pela sua rabequinha Essa rabeca é sua mas depois pode ser minha Esta rabeca ela alegra muita gente Foi Deus que deu de presente E que botou em nosso caminho

É fabricada pelo Nelson da Rabeca Todo mundo dá valor Que ele sempre merece

(Obrigado Seu Nelson - Benedita dos Santos e Nelson da Rabeca).44

Figura 28: Encarte do CD Tradição Improvisada

44 Faixa 23 do CD Tradição Improvisada, 2018. Selo SESC.

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3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conceito de tradição é testemunho vivo do fato de que as funções, do inovar e do conservar, só podem ser exercidas conjuntamente, já que continuar sem inovar significa apenas copiar e repetir, e inovar sem continuar significa fantasiar no vazio, sem fundamento. (PAREYSON, 2001, p. 137).

Histórias como as que vimos aqui puderam demonstrar o panorama de uma das diversas vertentes que a rabeca seguiu em sua história no Brasil. Um instrumento que por muitos anos viveu no ostracismo, finalmente ganhou reconhecimento para além de seus lugares de origem dentro das manifestações que integrou no passado. E atualmente, vem ganhando os palcos e integrando bandas compostas por instrumentos elétricos que exploram os mais variados estilos, contemplando desde linguagens tradicionais a experimentações sonoras, o que acaba por integrar as raízes da linguagem da rabeca ao contexto musical dos centros urbanos. Este hibridismo cultural é cada vez mais presente e valorizado no cenário atual, onde estilos variados se fundem e sons novos aparecem em diversos ambientes, como defende Fiammenghi:

A rabeca brasileira viveu à margem do mundo musical oficial por muito tempo. Os últimos anos testemunharam, no entanto, um forte impulso no interesse pela rabeca, que juntamente com seus pares instrumentais que formam o depositário das tradições musicais mais profundas ainda existentes no Brasil – como a viola caipira, os pífanos, e toda família dos instrumentos de percussão – ganhou os palcos e espaços urbanos, revelando a integridade de personalidades musicais como Nelson da Rabeca, Mestre Salustiano, Luís Paixão, Siba Veloso, Cláudio Rabeca, Gramani, e muitos outros. Esses músicos colocaram em evidência o ofício do rabequeiro, anteriormente associada à imagem de incompletude e atraso, tendo como parâmetro o violino e a cultura erudita. Desafiando esses parâmetros, esses músicos mostraram que a rabeca tinha muito a falar, na sua própria língua, e que o seu dialeto poderia acrescentar novas faces para a imensa variedade já existente na música brasileira. (FIAMMENGHI apud SANTOS, 2011, p.32).

A cena de rabeca nos centros urbanos encontra-se em crescente desenvolvimento, despertando o interesse de músicos e pesquisadores pela prática do instrumento. São recorrentes os casos em que essa prática se dê a partir de sua

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linguagem tradicional em direção à expansão de horizontes, por meio de diferentes detalhes sonoros que podem estar relacionados aos instrumentos acompanhadores, à utilização de harmonias não convencionais, aos locais de performance ou à inserção de estilos musicais modernos, onde o uso de recursos tecnológicos se faz presente. Não obstante, o cenário em que esse processo se dá é muito mais amplo, transcendendo os grandes centros urbanos, em locais distantes das práticas tradicionais da rabeca, movido por um crescente interesse no instrumento que circula na mídia, e como que numa rede alternativa, influenciando músicos e leigos por todo o país. Exemplo vivo disso é o comentário recorrente que escuto ao mencionar essa pesquisa: “ah na minha cidade também tem rabequeiro”, o que nos permite vislumbrar a dimensão desse universo. Outro aspecto que merece atenção é o fato de que mesmo nos centros urbanos esse processo é muito abrangente, passando pelas mãos de profissionais da música até amadores e entusiastas, todos a seu modo utilizando a rabeca como ferramenta sonora em diferentes contextos musicais.

Não é por acaso que um dos aspectos que mais chamou a atenção de J. E. Gramani em relação às rabecas foi a não padronização destes instrumentos. Cada rabequeiro, uma rabeca. Cada rabeca, uma música. Cada música, uma interpretação. O “Inesperado som da rabeca” é uma ode à não padronização, o que estava perfeitamente de acordo com a sua percepção do mundo. A rabeca como desvio, violino violado que não violenta a tradição, e tampouco busca a permanência de alguma tradição. Apenas expressa o protesto de um artista cuja voz retoma o canto perdido de um Orfeu ancestral e para isso, tanto mais efetivo é o seu canto, quanto mais longe do verniz está a porosidade de sua arte. Técnica sim, mas não como congelamento de algum procedimento mecânico (FIAMMENGHI, 2008. p. 51).

Como exemplo da intensa cena pernambucana, citamos o autor Neto:

O surgimento de novos rabequeiros no contexto da música pop, entendida assim como a música veiculada em CD's, sites da rede de computadores e programações específicas em rádios e casas de forró no Pernambuco tais como a Casa da Rabeca é bastante significativo, a ponto de justificar a gravação de mais um álbum, intitulado "Rabequeiros do Pernambuco" do ano de 2011, produzido por Cláudio Rabeca (Cláudio Sérgio R. Correia), onde se encontram mestres da tradição como Luiz Paixão, Antônio Teles, Zé de Bibi, mestre Araújo, Biu de Dóia, Pedro Côra e Manoel Pereira,

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juntamente com novos representantes dessa música como Alberone, Renata Rosa, Murilo Silva, Zé Cafofinho, Nylber da Silva, Aglaia Costa, Gustavo Azevedo, Maciel Salú, Rafa da Rabeca, Adriano Salhab, Dinda Salú, Claudio Rabeca, Siba, Sônia Guimarães, Antulio Madureira, Márcio Viana e Salatiel da Rabeca, dentre os quais, alguns egressos da escola erudita e quase todos com carreira estabelecida. (os nomes foram grafados conforme o encarte do CD) (NETO, 2016. p. 46).

Desde esses oito anos do lançamento do CD Rabequeiros de Pernambuco até o presente momento, a cena se expandiu ainda mais, e além dos rabequeiros citados acima, podemos encontrar muitos outros com trabalhos relevantes, como: Beto Lemos, Bruno Menegatti, Carla Raiza, Carolina Umbelino, Catarina Rossi, Daniel Carvalho, Daniel Souto, Esdras Rodrigues, Fabiano de Cristo, Fabiano Formiga, Felipe Gomide, Felipe Miyake, Filpo Ribeiro, Guilherme Bedran, Gutcha Ramil, Hans Santos, Isildinha Oliveira, Jeferson Leite, João Lobo, Jorge Linemburg, Kika Brandão, Léo Terra, Letícia Corrêa, Lineu Gabriel Guaraldo, Maísa Arantes, Marcelo Portela, Marcos Moletta, Maria Carolina Fernandes, Marlon Cardozo, Nelson da Rabeca, Rafael Gandolfo, Rannier Venâncio, Renato Macedo, Rodrigo Bis, Rodrigo Nasser, Samuel Furtado, Sidália Maria, Thiago Emanoel Martins, Thomas Rohrer, Tiago Gusmão, Tiquinha Rodrigues, Tito Mendes, Xande da Rabeca, Zé Pereira e outros. Haja vista uma pesquisa45 iniciada em 2016 pelo rabequeiro Jeferson Leite, que buscando fazer um levantamento de rabequeiros e luthiers no Brasil, criou uma lista aberta a ser preenchida via uma rede social e atualmente estão cadastrados 125 jovens rabequeiros. Bem como, o grupo de WhatsApp chamado Rabeca Livre Brasil, que conta com 156 participantes. Em nossa pesquisa buscamos apontar os caminhos que levaram a rabeca para cultura popular urbana, resultando em uma linguagem musical mista que incorpora elementos de vertentes distintas. Assim, foram analisadas produções fonográficas com presença da rabeca neste contexto sonoro e selecionadas

45 LEITE, Jeferson. Rabequeiros e Luthiers no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 01 jul. 2019.

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algumas performances46, datadas de 2014 a 2019. Dentre os trabalhos de maior relevância, encontram-se:

. Liberdade - Maciel Salú / 2019

. Rabeca Brasileira - Cláudio Rabeca / 2019

. Baile de Rabeca - Maciel Salú / 2018

. Tradição Improvisada - Thomas Rohrer e Nelson da Rabeca / 2018

. Umbando vol. 2 - Participações de Jeferson Leite / 2018

. Música Macumangê - Marcelo Portela / 2018

. Contos de Beira d’água - Filpo Ribeiro e a Feira do Rolo / 2017

. Múltiplo - Marcos Moletta / 2014

Em todos estes trabalhos, é possível notar nuances que demonstram a continuidade da trajetória da rabeca, que por diversas vias interpretativas ou estilísticas, representam este momento pelo qual a rabeca passa, que tem ganhado visibilidade e seguidores nas cidades. A partir destas vias, pode-se encontrar alguns pontos em comum nos trabalhos pesquisados, sendo eles:

1. A rabeca não compõe todas as faixas dos CDs.

Como em Múltiplo, de Marcos Moletta, que toca rabeca apenas nas músicas Cipó, Espumante e Debaixo do cajueiro. Porém, nestas três músicas é notória uma pequena história da trajetória da rabeca, que começa apresentando elementos da música árabe, passa a se encontrar com a sonoridade de Cavalo- marinho, expandindo-se através de experimentações melódicas e efeitos com reverb e harmônicos. Esta questão também é encontrada nos CDs, Contos d’areia de Filpo Ribeiro onde mesmo com maior incidência, a rabeca não aparece em todas as músicas; e em Liberdade, de Maciel Salú, álbum de grande representatividade da música híbrida de rabeca por carregar características urbanas para além da

46 Playlist disponível em: . Acesso em: 06 ago. 2019.

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sonoridade, fazendo críticas sociais e relatando nas letras temáticas atuais e cotidianas da cidade do Recife, deixa de tocar rabeca em 40% das músicas do álbum. 2. Todos os rabequeiros são multi-instrumentistas, cantores em sua maioria.

3. A instrumentação que acompanha as músicas de rabeca é muito variada, mas guitarras, baixos e percussões aparecem constantemente.

4. A utilização rabeca não se detém apenas à performance de forrós ou músicas de referência tradicional, mas também a composições dos próprios rabequeiros, em que apresentam elementos do universo da canção, rock, experimentação, milonga, salsa, música popular brasileira, choro, mangue beat.

Contextos em que essas funções se desempenham são tão vastos que as estruturas sonoras podem ser tão variáveis quanto às estruturas sociais correspondentes (...) o grau de flexibilidade [de um sistema] corresponde em geral ao tipo de ideologia do grupo social (LIMA, 2001. p. 105).

Como na versão da música Receita de Samba (Jacob do Bandolim), choro tocado por Cláudio Rabeca e Nicolas Krassik, em que o contraponto de violino e rabeca é acompanhado apenas pelo pandeiro. No samba Vendedor ambulante, de Maciel Salú, ou ainda na música Mundareu (Kleber d’Abreu), que tem em sua introdução efeitos harmônicos de rabeca e momentos rítmicos que perpassam do maracatu ao rock, no decorrer da música Jeferson Leite utiliza efeitos de pedais analógicos.

5. É constante o uso de recursos sonoros modernos, desde pedaleiras a efeitos produzidos em mesa de som, ou a adaptações no corpo do instrumento para mudança na sonoridade.

Como os efeitos produzidos por Thomas Rohrer no show Tradição Improvisada; o instrumento criado por Marcelo Portela, chamado EnRabecador; a rabeca de cinco cordas de Cláudio Rabeca, adaptadas da guitarra para a rabeca; os recursos de Ipad de Jeferson Leite e os reverbs utilizados por Marcos Moletta em Cipó. Efeitos esses que aparecem em mais diversas músicas dessa pesquisa, como

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em Estrela Sertã (Cláudio Rabeca), Tempo que não volta Mais e Laço de amor (Maciel Salú).

6. Todos os álbuns estão disponíveis em meio digital e se expandem por esta via. Em consonância com a pesquisa de Lima, a seguinte tabela é referente a um artigo47 produzido para a ABET, cujo objetivo do pesquisador foi demonstrar que processos de continuidade e mudança se entrelaçam na consolidação atual dessa música.

47 LIMA, 2015. Mudança e continuidade na música de rabequeiros.

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Área de abrangência da pesquisa: Paraíba, Recife e Rio Grande do Norte. Objetos de estudo: Rabequeiros tradicionais e jovens atuantes em folguedos, forró e música popular urbana

Tradicionais Contemporâneos

PERFIL  Homens mais velhos, humildes  Homens e mulheres jovens

REPERTÓRIO  Música de proveniência rural: folguedos  Forró (a partir de Luiz Gonzaga), recortes de - boi de reis, cavalo marinho folguedos, canções, trilhas sonoras, músicas híbridas  Forró, baião, xote e rancheira

LOCAIS DE  Zona Rural, cidades do interior /  Centros urbanos: shows, discos, teatros e bares ATUAÇÃO periferia dos centros urbanos - através de Folguedos  Meio virtual: canais do youtube, páginas e sites de streaming musicais

 Pouca participação em folguedos

APRENDIZAGEM  Oral / intuitiva, segundo a necessidade  Referências da música tradicional de ensino oral, do grupo de folguedo mas com ausência de mestre

 Orientados por Mestres rabequeiros  Através da iniciação musical em violino ou viola

 Transmissão musical se dava através  Processo de execução através de notação escrita da observação, memorização e tentativa  Aprendizagem se pauta na escrita e leitura de sinais / partitura

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JUSTIFICATIVA  Lazer  Carreira artística DE PRÁTICA  Aumento da comunicação entre  Trabalho pessoas da mesma comunidade

PÚBLICO  Local, regional  Heterogêneo - público abrangente, devido a incidência da música se dar em grandes centros e no meio virtual

FAZER MUSICAL  Rabeca como instrumento principal do  Rabequeiros que tocam para se acompanhar no folguedo canto

 O rabequeiro tocava os temas principais  Música em forma de canção das brincadeiras e era considerado bom músico quando memorizava uma  Rabequeiros compositores / arranjadores grande quantidade dos temas.  Multi-instrumentistas  Improvisação em alguns momentos da brincadeira  Práticas musicais tradicionais inseridas no repertório (que demonstram a continuidade da  Pouca incidência de composição / forte história) valorização do ritual da música, por isso, pouco era alterado o repertório

 Ausência de canto por parte do rabequeiro

SONORIDADE  Cordas duplas  Melodias em uma corda, busca por som “limpo”

 Melodias ritmadas  Preocupação maior com harmonia por conta da presença constante de outros instrumentos

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 Dobras da melodia vocal harmônicos

 Maior densidade sonora (por conta da  Uso de microfones e captadores falta de microfonação e da acústica de lugares abertos).  Pode haver uso de pedaleiras

 Afinação varia de acordo com  Afinação varia, mas tem muita influência do violino rabequeiro e contexto e da viola (normalmente em quintas)

INSTRUMENTO  Rabeca ou violino de fábrica  Rabeca

 Cavaletes retos para possibilitar o uso  Cavalete curvo para possibilitar melodias de cordas duplas monofônicas

 Uso de cordas de cavaquinho - para  Cordas de viola ou guitarra para sonoridade timbre “estridente” “aveludada”

 Instrumento de diversos tamanhos -  Tendência para uso de rabecas pequenas - maior diversidade de timbres resultando em homogeneidade timbrística

FORMAÇÃO DE  Formação de folguedo: pandeiro,  Formações diversas, incluindo instrumentos como CONJUNTO rabeca, voz, reco- reco, ganzá guitarra, baixo, piano e etc.

 Formação de forró: rabeca, triângulo e  Conjuntos de rabecas zabumba Tabela 2: Mudança e continuidade na música de rabequeiros de acordo com LIMA (2015).

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Embora estes rabequeiros tragam em suas performances uma herança evidente dos mestres e tradições do passado, buscam sua própria linguagem, que é encontrada não só na individualidade de cada um, mas no contexto urbano em que vivem. Conforme explica Lima:

Um outro aspecto importante na elaboração da identidade destes jovens é a consciência de que possuem um estilo próprio de tocar. Porém, eles não negam a influência que tiveram de alguns rabequeiros mais antigos (...) Já se observou que eles são executantes da música de rabeca nos cavalos-marinhos e compositores nos seus grupos. Mas a composição deles não consiste, apesar disto, numa fusão entre duas fontes musicais, e sim na objetivação de um tipo de música que não se limita apenas à combinação entre conteúdos tradicionais e de música urbana (LIMA, 2001. p. 110).

Portanto, é possível descrever alguns dos motivos pelos quais essa música tem se transformado, sendo dois dos principais a profissionalização da música de rabeca e formação de público. Sobre isso, Lima discorre que:

O público que consome a música destes novos rabequeiros, implicitamente exige e solicita delas uma postura problemática em relação à criação musical. Qual seja a de lhe fornecer objetos musicais novos, e com caracteres próximos à sua cultura urbana, e, ao mesmo tempo, que eles lhe alimentem com conteúdos da música tradicional de rabeca. Eles são obrigados a proceder criativamente a partir destas limitações e exigências; a serem inovadores e portadores de um estilo antigo e novo de música e toque da rabeca. Isto acontece porque este público, ao mesmo tempo em que busca uma ligação com aspectos da tradição da rabeca, também busca uma música com uma roupagem menos rústica. Processos como este parecem sempre ocorrer de modo sutil ou explícito nos rituais de passagem de um instrumento ou música de um contexto para outro – principalmente nos casos em que se trata de uma inserção no ambiente urbano de shows, ambiente este que é sempre carente e exigente de novidades (LIMA, 2001. p. 109).

Podemos observar claramente como o movimento de urbanização, ainda que à primeira vista pareça dar novos rumos ao instrumento, em um segundo momento também é responsável por retomar os traços fiéis à própria tradição. Conforme conta Lima:

A presença de rabequeiros em atividades musicais como bailes de forró, cavalo-marinho, boi-de-reis, teatro de mamulengos e cantorias

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foi registrada por diversos autores e é mencionada pelos atuais rabequeiros. Algumas destas formas de atividade eram mais comuns, como os conjuntos de folguedos e bailes com rabeca, e outras não resistiram ao tempo, como foi o caso dos bailes com rabeca nas comunidades rurais e a presença deste instrumento nos teatros de mamulengos e nas cantorias (...) Se poucos são os relatos de rabequeiros repentistas ou cantadores de romances. De outra parte, muitos rabequeiros citam que com a popularização da sanfona no interior do Nordeste, a rabeca foi gradativamente perdendo seu espaço nos bailes de forró. Isto demonstra que a especialização dos rabequeiros aqui no Nordeste do Brasil foi, gradativamente, tornando-se a de músicos participantes de conjuntos instrumentais que fazem a música de alguns folguedos (LIMA, 2001. p. 8,9)

E Siba:

Como eu falei, se tocou muito forró de rabeca lá em Pernambuco, mas quando aprendi a rabeca esse era um discurso de saudade. O pessoal não tocava mais forró, os rabequeiros sabiam tocar forró mas não tocavam mais, eu nunca vi forró de rabeca acontecendo lá, a não ser com a geração jovem, de Rafa, de Cláudio, de Maciel Salú (SIBA, 2019).

Por fim, este trabalho buscou analisar a posição da rabeca no cenário musical brasileiro da atualidade, procurando entender seus movimentos em direção à modernidade com relação à sua tradição, num processo em que o novo revisita o passado, seguindo adiante conforme as transformações do tempo. A rabeca, protagonista, nas mãos de agentes que valorizam todo o seu universo e que buscam não só sua preservação, mas sua expansão, guiados pelas luzes da espontaneidade.

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Nos antigos rincões da mata virgem Foi um sêmen plantado com meu nome A raiz de tão dura ninguém come Porque nela plantei a minha origem Quem tentar chegar perto tem vertigem Ensinar o caminho, eu não sei Das mil vezes que por lá eu passei Nunca pude guardar o seu desenho Como posso saber de onde venho Se a semente profunda eu não toquei?

Esse longo caminho que eu traço Muda constantemente de feição E eu não posso saber que direção Tem o rumo que firmo no espaço Tem momentos que sinto que desfaço O castelo que eu mesmo levantei O importante é que nunca esquecerei Que encontrar o caminho é meu empenho Como posso saber de onde venho Se a semente profunda eu não toquei?

Como posso saber a minha idade Se meu tempo passado eu não conheço Como posso me ver desde o começo Se a lembrança não tem capacidade Se não olho pra trás com claridade Um futuro obscuro aguardarei Mas aquela semente que sonhei É a chave do tesouro que eu tenho Como posso saber de onde venho Se a semente profunda eu não toquei?

Tantos povos se cruzam nessa terra Que o mais puro padrão é o mestiço Deixe o mundo rodar que dá é nisso A roleta dos genes nunca erra Nasce tanto galego em pé-de-serra E por isso eu jamais estranharei Sertanejo com olhos de nissei Cantador com suingue caribenho Como posso saber de onde venho Se a semente profunda eu não toquei?

Como posso pensar ser brasileiro Enxergar minha própria diferença Se olhando ao redor vejo a imensa Semelhança ligando o mundo inteiro Como posso saber quem vem primeiro Se o começo eu jamais alcançarei Tantos povos no mundo e eu não sei Qual a força que move o meu engenho Como posso saber de onde venho Se a semente profunda eu não toquei? E eu Não sei o que fazer Nesta situação Meu pé... Meu pé não pisa o chão. (Sêmen, Mestre Ambrósio).

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4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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