DÉBORA FINKIELSZTEJN

Na guerra, nem mesmo a diáspora rompe os laços de sangue Romance ébora revela-se aqui uma alfaiate dentidade, essa palavra tão discutida na D das palavras, com perfeito acaba- I comunidade judaica, é a questão cen- mento e imensa delicadeza. Ela nos leva, tral de O alfaiate polonês. Se o nazismo pelas mãos, para dentro da história de desumanizou, transformando as histó- um Brasil dos imigrantes da metade do rias e os sentimentos das pessoas em século xx, uma terra “sem inverno”, des- números tatuados, Débora Finkielsztejn conhecida e desafiadora para poloneses concebe um personagem fictício, mas fugidos da Europa e para tantos outros muito real. que aqui aportaram. A busca de Avraham é entender quem A riqueza dos detalhes, os diálogos é. Sua identidade se divide em peças de e o profundo conhecimento sobre o um quebra-cabeça interno que, ao serem tema fazem desta leitura um deleite. São montadas, criam seu passado, seu pre- passagens cheias de surpresas, suspiros, sente e novas possibilidades de futuro. sorrisos... e lágrimas. Assim como a autora e muitos outros Misturando realidade e ficção, e dan- judeus brasileiros, minha família fugiu do (ou talvez, devolvendo) vida a um de perseguições antissemitas e veio para personagem muito especial, a autora o Rio de Janeiro. Eu, que moro em Israel ressalta aqui o que bem conhece: a im- desde 2011, senti na boca o gosto do portância da tradição, das raízes, da mate com biscoito Globo, a carioquice comunidade e da continuidade. da família já completamente adaptada Débora nasceu em uma família que, ao Brasil. O iídiche, o sotaque no por- há três gerações, respira música, pintura tuguês e as comidas de Chag (feriado e teatro. Em sua estreia na literatura, ela judaico) são tão familiares quanto as não só colabora com a memória dos que pessoas andando sem camisa no pós- viveram guerras, imigrações, perdas e -praia do carioca. reencontros, em qualquer época, em Este livro me emocionou, tocou em qualquer país, mas também toca o co- lembranças que não necessariamente são ração daqueles que não passaram por minhas, mas de tantas outras famílias nada disso. que vieram de longe refazer suas vidas.

tania menai mila chaseliov Jornalista e autora de quatro livros, Formada em Publicidade mora desde 1995 em Nova York pela eco/ufrj, é mestranda no Departamento de Estudos Românicos e Latino-Americanos na Universidade Hebraica de Jerusalém O ALFAIATE POLONÊS O ALFAIATE POLONÊS DÉBORA FINKIELSZTEJN

Na guerra, nem mesmo a diáspora rompe os laços de sangue A Avraham, que esteve ao meu lado nesta jornada.

A todos os que sofreram em guerras passadas e contemporâneas. SUMÁRIO

Apresentação, por Adriana Lisboa 9

1. BARUCH A BÁ, BEM-VINDO 11 12. O ACHADO 70

2. DESALINHO 15 13. CICATRIZES 79

3. QUANDO O DESTINO BATE À PORTA 20 14. O ALINHAVAR 92

4. UM GOLPE DE SORTE 26 15. TUDO FICA PARA TRÁS 104

5. FERIDAS ABERTAS 32 16. UMA NOVA CHANCE 114

6. NAVIO NO HORIZONTE 40 17. ARREMATES 123

7. MAIS UM ADEUS 43 18. ACABAMENTO FINAL 134

8. SALTO PARA A LIBERDADE 45 19. O TECIDO SOBRE A PELE 151

9. SEM RUMO 50 20. ENTRE IRMÃOS 158

10. O PESADELO JUDEU 56 21. PANO PARA MANGA 164

11. À DERIVA 65 22. O RETORNO 172

Agradecimentos 177 APRESENTAÇÃO

Lembrar. Não somente como testemunho e homenagem, mas como forma de construir quem somos e dar forma ao nosso futuro. Co- letivamente, somos responsáveis por inúmeros crimes, ao longo da história, contra a própria humanidade, outras espécies animais e o próprio planeta onde vivemos. Entre esses crimes, permanece próximo demais o Holocausto, e a inacreditável violência perpetrada contra os judeus e outros grupos socialmente indesejáveis ao regime nazista. Lembrar. Os personagens de O alfaiate polonês, romance de estreia de Débora Finkielsztejn, vêm nos colocar mais uma vez diante desse espelho. O tema das famílias judaicas destroçadas pelo Holocausto já rendeu muitos livros e filmes. Por mais que se fale do tema, contudo, ele nunca se esgota. É uma espécie de ferida aberta em nossa alma e em nossa consciência. Neste romance, que aborda a saga de uma família polonesa em sua fuga ao Brasil – espécie de Terra Prometida tropical – durante a Segunda Guerra, o leitor vai se comover, se indignar, sorrir e tor- cer muito pelo destino de Moishe, Fela e seus cinco filhos. Débora Finkielsztejn põe o coração na escrita desta história que fala de amor, amizade, resiliência e dor. De perda, separação e reencontro. Dos valores da liberdade, da integridade e das alegrias mais simples e cotidianas da vida em família, ainda mais preciosas quando um mundo inimigo as coloca em xeque. Em tempos como os que vivemos, quando tantos valores éticos parecem perigosamente comprometidos, é urgente lembrar. Dos nossos erros passados. Da nossa capacidade de resistir e amar. Da nossa obrigação de cuidar melhor do presente que ocupamos e do qual resultará o futuro que deixaremos de herança.

ADRIANA LISBOA Escritora e tradutora, nasceu no Rio de Janeiro. Viveu também na França e se mudou para os Estados Unidos em 2007, onde reside atualmente. É autora, entre outros, dos romances Sinfonia em branco (Prêmio José Saramago), Azul corvo e Hanói. Seus livros foram traduzidos em mais de vinte países 1. BARUCH A BÁ, BEM-VINDO

ela porta do avião sentiu um calor úmido, abafado, e uma lufada de ar que o empurrou para dentro da cabine. Em seguida veio P um ma­l-estar, mas logo se recuperou e forçou suas passadas escada abaixo, contra o vento. Procurou direcionar seus olhos no sentido contrário ao sol, respirou fundo e desceu lentamente, sol- tando as pernas um tanto quanto enrijecidas pelas muitas horas de voo. Dentro do aeroporto, aguardou até que sua pequena mala saísse da lenta esteira e foi à procura de um táxi. Ainda no Canadá, quando se preparava para esta viagem ao Rio de Janeiro, decidiu aprender algumas palavras em português, para não ter dificuldades ao se comunicar com aqueles que queria encontrar. Procurou um professor e acabou contratando o indicado pela embaixada do Brasil. Então descobriu que, para ele, a melhor forma de aprender uma língua era ler e anotar as palavras desconhecidas em seu caderno para depois buscar, no dicionário daquele idioma, o seu significado. Comprou também uma gramática para concluir, em seguida, que o português era bastante complexo e instigante. As horas que passava estudando eram como uma terapia, os bons momentos que dedicava somente a si próprio. Embora orientado a não fazê-lo, trocou um pouco de dinheiro no Canadá com um conhecido. Sabia que a taxa de câmbio era a pior pos- sível, mas precisava da moeda local para as primeiras horas na cidade. 12 DÉBORA FINKIELSZTEJN O ALFAIATE POLONÊS 13

Foi até o ponto de táxi, entrou no primeiro da fila e indicou o Estava muito cansado da viagem e extremamente ansioso. Sentia-se endereço de um hotel em Copacabana, bairro que conhecia de fotos ainda mais exausto quando pensava na missão que tinha pela frente. e músicas. No rádio tocava uma canção e, ensaiando suas primeiras Na recepção foram todos muito cordatos e gentis, e pôde reparar frases em português naquele país chamado Brasil, perguntou ao que a maior parte da equipe do hotel sorria. Ouvira falar da hospi- motorista quem estava cantando. O homem logo abriu um sorriso talidade e simpatia dos brasileiros, mas sentir o calor humano, num e respondeu contente: “Roberto Carlos!”. Como amostra da hospita- local onde a temperatura era tão alta, o deixava mais impressionado. lidade e simpatia, tentou explicar, parte em português, parte em um E suava sem parar. inglês sofrível, que a música falava de amizade, sobre ter um milhão Entrou em seu quarto, bastante simples, com uma cama bem de amigos e como aqueles versos davam força para que as pessoas arrumada, um banheiro limpo e com cheiro de eucalipto, uma pudessem seguir em frente. Explicou que aquele era um cantor de decoração neutra em tons pastéis, uma natureza-morta na parede. grande sucesso e muito querido. Pareceu um tanto frustrado por Abriu ainda mais as janelas para aproveitar o vento que soprava aquele passageiro não conhecer aquela voz, por nunca ter ouvido falar. suavemente sobre as cortinas. Apesar do dia quente, havia um O recém-chegado, por sua vez, considerou a música um presságio, frescor no ar. Consultou o relógio e viu que se aproximava do meio- um convite de boas-vindas e pediu que o rapaz escrevesse em um -dia. Sentia-se cansado e decidiu adiar o início de sua busca, pois papel o nome da música e do cantor. precisaria de muita energia para o que estava por vir. Então abriu O motorista era bastante simpático, mas o calor dentro do auto- sua pequena mala e arrumou metodicamente as roupas dentro do móvel tornava a conversa um grande esforço. O passageiro sentia armário, pendurando primeiro as camisas, depois as calças e, em muita sede e suava por todos os poros. Observou o rapaz e reparou seguida, as roupas de baixo. “Vou ter que passá-las em breve”, pen- que ele não suava. Talvez o calor que sentia não fosse apenas do sou ao olhar para os tecidos amarrotados. Arrumou os sapatos na mormaço quente que soprava pelas frestas das janelas do carro, mas parte de baixo do móvel, fechou a porta com cuidado e foi tomar também por toda a emoção que sabia estar por vir. uma longa chuveirada. Passou por algumas avenidas arborizadas e logo o táxi entrou Ainda envolto na toalha, deitou-se na cama e adormeceu em se- na mais larga de todas, pela praia. Foi quando abaixou completa- guida. Acordou, assustado, mas ao consultar novamente o relógio, mente o vidro da janela para poder sentir o cheiro da maresia em constatou que havia se passado pouco mais de vinte minutos desde seu rosto. O cheiro do mar penetrava em suas narinas, descendo que entrara no quarto. Decidiu colocar um pijama e descansar o pela garganta. Chegou a se engasgar e preferiu fechar a janela para quanto seu corpo desejasse. Era a primeira vez que saía para uma evitar qualquer situação constrangedora. O motorista o observava longa viagem desde que se radicara no Canadá, fazia mais de vinte pelo retrovisor, de tempos em tempos. Uma curiosidade fugaz e sem anos. Seu inglês era perfeito e era bom no francês, que falava sem maiores consequências. dificuldade, mas com pouca vontade. Aprendera línguas por necessi- Em pouco tempo chegaram à porta do hotel: um edifício pe- dade de sobrevivência, tinha facilidade com idiomas e isso o ajudara queno, simples e de aparência aconchegante. Não precisava de em diversas situações. muito requinte nem luxo, apenas um lugar limpo onde pudesse Quando novamente despertou já passava das 3 da tarde. Sentia ficar por um período, que não sabia quanto. Reservara um quar- um leve torpor, provavelmente causado pelas muitas horas dentro to para ficar dez dias. Depois disso, caso fosse necessário, veria do avião e pela diferença de fuso horário. Achou estranho não sentir como se ajeitar. fome, uma vez que sua última refeição havia sido no avião, de manhã 14 DÉBORA FINKIELSZTEJN

cedo. Levantou da cama, lavou o rosto com água da pia e vestiu uma roupa leve. Não fizera nenhum roteiro: não sabia o que fazer, como procurar nem por onde começar. Neste ponto lhe martelava a cabeça uma sensação de arrependimento misturada com angústia. Talvez devesse ter se programado melhor, entrado em contato antes, buscado outras formas de obter informações e não ter deixado tudo para aquele momento. Sentia-se incomodado consigo mesmo, ape- sar de saber que estava bem perto, tinha o nome de uma rua, que acreditava que não seria a atual, mas quanto ao nome das pessoas não tinha dúvida. Eram nomes que não pronunciava fazia muitos 2. DESALINHO anos. Não os pronunciava nem mesmo quando estava sozinho ou quando contava para alguém fragmentos de sua história. Jamais dizia aqueles nomes em voz alta. oishe saiu da pequena cidade de Siedlice, na Polônia, no início Olhou em volta do quarto e vasculhou a mesinha de cabeceira, dos anos 1930, quando seu filho mais velho estava com 14 anos. encontrando logo uma Bíblia e o que buscava: o catálogo telefônico. M Veio para o Brasil, sozinho, em busca de um trabalho que lhe Abriu numa página qualquer: “Meirelles, Meirim, Meirovitz”. Folheou permitisse sustentar sua numerosa família com cinco filhos, todos um pouco mais: “Nogueira, Nolasco, Nonnenberg”. Quanta fartura homens. Um primo veio primeiro e, logo na primeira carta, uma frase de sobrenomes, quantas origens distintas. Precisava se concentrar: lhe chamou a atenção: “Aqui não tem inverno!”. Estas palavras mági- “Luittermann”. Não havia muitos. E apenas um nome na chamada cas fizeram com que visualizasse um Paraíso se abrindo à sua frente. “rua Barata Ribeiro”, em Copacabana. Verificou o número do prédio Imaginou lagos maravilhosos, crianças se refrescando no mar, um e o telefone, anotando em seu caderno e verificando no mapa que calor morno aquecendo suas costas, o frescor da brisa da praia – que apanhara na recepção do hotel. Não devia ser muito longe dali. Ficou nunca havia visto, mas era bem capaz de imaginar – amenizando a olhando para aquela informação por alguns instantes. Respirou fundo. temperatura dos dias mais acalorados. Na Polônia, em sua casa de paredes frias, a calefação não era ade- quada. No inverno, as crianças se encostavam pelos cantos, buscando o calor da padaria, cujo forno ficava exatamente do outro lado. As noites eram terríveis e davam graças a D’us que as atividades de seu vizinho iniciassem às 4 da manhã. Antes que o forno começasse a funcionar, se viravam como podiam, tentando debelar o frio de vinte, às vezes trinta graus negativos. Ao receber a carta do primo, ocorreu a Moishe que aquela realidade poderia mudar em breve, e só dependia dele. Era quase um milagre. Despediu-se das crianças e da esposa um mês depois de receber a carta e se atirou ao desconhecido, seguindo naquele navio em direção ao que intimamente chamava de “Paraíso na Terra”. Acervo da autora

DÉBORA FINKIELSZTEJN nasceu em 1970, no Rio de Janeiro, onde vive. Formada em Economia pela ufrj, cursou gestão de pro- jetos na uc Berkeley, Califórnia. Já trabalhou em diversos setores, como marketing, software house e entretenimento. Ex-livreira, o uni- verso literário, bem como a escrita, sempre foram uma constante em sua vida. O alfaiate polonês é seu livro de estreia. “Débora Finkielsztejn põe o coração na escrita desta história que fala de amor, amizade, resiliência e dor. De perda, separação e reencontro. Dos valores da liberdade, da integridade e das alegrias mais simples e cotidianas da vida em família, ainda mais preciosas quando um mundo inimigo as coloca em xeque. Em tempos como os que vivemos, quando tantos valores éticos parecem perigosamente comprometidos, é urgente lembrar. Dos nossos erros passados. Da nossa capacidade de resistir e amar. Da nossa obrigação de cuidar melhor do presente que ocupamos e do qual resultará o futuro que deixaremos de herança.” Da apresentação de adriana lisboa

UMA FAMÍLIA. UMA GUERRA. UM NOVO DESTINO.

Moishe, o patriarca dos Luitermann, deixa a Polônia nos anos 1930 em busca de trabalho e proporcionar melhores condições para Fela, sua mulher, e seus cinco filhos. Parte para o Brasil, um país que “não tinha inverno”. Porém, antes que a família pudesse se reunir, Avraham e Shlomo, os dois filhos mais ve- lhos, são convocados para o serviço militar e suas vidas seguem rumos diferentes. O alfaiate polonês é um romance que retrata a trajetória de uma família apartada pela guerra, a busca pela sobrevivência e as dificuldades em um mundo destroçado por conflitos que marcaram o século xx.

ISBN: 978-85-66317-14-5

9 7 88566 31 7 1 4 5