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Suplemento literário do Jornal A União

Julho - 2020 Ano LXXI - Nº 5 R$ 6,00 Exemplar encartado no jornal A União apenas para assinantes. Nas bancas e representantes, R$ 6,00

iViúva revela o economista na intimidade iArtigos passeiam pela carreira do paraibano iNovos livros reavaliam o pensamento do professor As lições de Nascido há 100 anos, ideias do paraibano permanecem necessárias no Brasil de hoje 2020: Ano Cultural , na Paraíba 6editorial

Celso Furtado, necessário e atual No dia em que esta edição Celebrar os pensamento de Furtado segue de julho ganha vida, neste atual. E necessário. 26 de julho de 2020, o mundo 100 anos de Aqui, propomos ao leitor lembra os 100 anos de Celso um passeio inicial pela vida Monteiro Furtado. Paraibano Celso Furtado é e obra deste paraibano que se nascido no Sertão, que migrou lembrar o país tornou nome de prêmio, cujas para o em bus- ideias são estudadas em mais ca de aprimorar seus estudos, que queremos, línguas do que ele próprio, po- Celso se tornou um ícone, um liglota, aprendeu a falar. nome de prestígio internacio- o que buscamos Aspectos biográficos, ar- nal, cuja voz ecoou ao redor do e, sobretudo, tigos de quem o conheceu de mundo, sempre com um pen- perto, uma entrevista exclusi- samento: como podemos me- como buscamos va com a viúva e guardiã do lhorar o mundo, em especial o seu legado, a jornalista Rosa Brasil, através de uma política um Brasil mais Freire D’Aguiar, e até mesmo econômica e social? próspero, a transcrição de um discurso Estudioso voraz, Celso que ele fizera para toda uma aprendeu a pensar, e pensan- com menos geração de futuros novos eco- do, colocou na mesa a proble- nomistas, em 1997, numa gen- mática dos países de Terceiro desigualdades tileza da equipe do projeto Mundo, etiqueta colada ao Editorial Cem anos de Celso Brasil nos anos em que o eco- Furtado, e que continua atua- nomista paraibano viajou o líssimo, são algumas das fer- mundo buscando apoios e so- ramentas que oferecemos para luções. Sobretudo para o Nor- que queremos, o que busca- lembrar que mais que funda- deste, seu berço, sua casa, que, mos e, sobretudo, como busca- mental, Celso Furtado é neces- sabia ele, era um Brasil ainda mos um Brasil mais próspero, sário em 2020. mais pobre e carente de estru- com menos desigualdades. Boa leitura! tura dentro de um outro Brasil. O material que você irá ler a Celebrar os 100 anos de Cel- seguir se propõe a mostrar, O editor so Furtado é lembrar o país mesmo que brevemente, que o [email protected]

6 índice , 29 @ 32 2 36 D 38 na própria voz clarisser reinaldo moraes Tema delicado Francisco Gil Messias Em sua coluna, a Na coluna Festas Em um ensaio de é um leitor voraz de professora Analice Pereira Semióticas, Amador Ribeiro Irani Medeiros, o biografias, cartas, diários reflete sobre a solidão na Neto analisa autor procura, à luz da e memórias. Aqui ele literatura, tanto do ponto 'Maior Que o Mundo', filosofia, da arte e do aborda as maravilhas de vista de quem lê, quanto novo livro do autor de pensamento grego, as desse material. de quem escreve. 'Pornopopéia'. razões para o suicídio.

SECRETARIA DE ESTADO DA COMUNICAÇÃO INSTITUCIONAL Empresa Paraibana de Comunicação S.A. Naná Garcez de Castro Dória DIRETORA PRESIDENTE William Costa Albiege Léa Fernandes DIRETOR DE MÍDIA IMPRESSA DIRETORA DE RÁDIO E TV Correio das Artes Uma publicação da EPC BR-101 Km 3 - CEP 58.082-010 Distrito Industrial - João Pessoa/PB : André Cananéa Paulo Sergio de Azevedo OUVIDORIA Gerente Executivo de Mídia Impressa DIAGRAMAÇÃO 99143-6762 Editor do Correio das Artes Domingos Sávio PABX: (083) 3218-6500 / ASSINATURA-CIRCULAÇÃO: 3218-6518 / Comercial: 3218-6544 / 3218-6526 / REDAÇÃO: 3218-6539 / 3218-6509 ARTE DA CAPA 6 capa

Há 100 anos, a Paraíba dava ao Brasil um porta-voz da realidade social e econômica do Nordeste

André Cananéa Editor do Correio das Artes

4 | João Pessoa, julho de 2020 celsofurtadoCorreio das Artes – A UNIÃO foto: Arquivo/AE

João Pessoa, julho de 2020 | 5 celsofurtadoA UNIÃO – Correio das Artes foto: Arquivo/AE Há exatos 100 anos, nascia em Pombal, no sertão da Paraí- Celso Furtado ba, um dos maiores pensadores (direita) durante da economia no Brasil, e um dos reunião da em Recife. mais prestigiados no mundo. Celso Furtado fez história: par- tiu do Sertão para o Rio de Ja- neiro, estudou, se formou e ga- nhou o mundo. Foi reconhecido em universidades de prestígio e, acima de tudo, atraiu os olhos de autoridades internacionais para o Nordeste, seu berço. Segundo de oito filhos do ca- sal Maurício de Medeiros Fur- tado, jovem advogado que se- guiria carreira na magistratura até se tornar desembargador, e Maria Alice Monteiro, moça vinda de uma próspera família de proprietários de terra, Celso Furtado veio ao mundo no dia 26 de julho de 1920. Passou boa parte da infância em Pombal, quando, aos sete colas públicas. Aos 19, desem- ciais da Reserva), quando foi anos se mudou com a família barcava no Rio de Janeiro para convocado para a Força Expe- para a capital, a então Cidade dar seguimento aos estudos. dicionária Brasileira, o que lhe da Paraíba. “Eu venho de um Foi lá, na então Capital Fe- deu uma passagem para Itália mundo que me parecia catas- deral, que cursou Direito e onde, com a patente de aspi- trófico. Pombal é das cidades ensaiou uma carreira de jor- rante a oficial, desembarcou na mais ásperas do sertão. Região nalista, escrevendo para a pres- Toscana. Lá, sofreu um aciden- seca, de homens secos. Muito tigiada Revista da Semana. Aos te durante a ofensiva final dos menino, eu olhava pela fresta 23 anos, foi aprovado no con- aliados no Norte da Itália, du- da janela a chegada dos canga- curso do DASP (Departamento rante a 2º Guerra Mundial. ceiros”, recordou certa vez. Administrativo do Serviço Pú- Não iria demorar para que o O seu aniversário de 10 anos blico) e, em 1944, fez o CPOR paraibano de Pombal que cres- teve mais que bolo. Enquanto (Centro de Preparação de Ofi- cera na efervescente primeira soprava velas, João Pessoa era metade do século 20 voltasse ao assassinado na confeitaria Gló- exterior, desta vez como o pre- ria, em Recife. Foi um aniver- miado vencedor do Franklin D. sário que ele nunca esqueceu. Roosevelt, promovido Instituto “O governador João Pessoa era Brasil-Estados Unidos. O ensaio tido como uma espécie de san- O ensaio “Trajetória “Trajetória da Democracia na to. Quando foi assassinado, as América”, que escrevera aos 26 pessoas saíram às ruas em pro- da Democracia anos de idade, carimbou o pas- cissões. Foi no dia 26 de julho saporte de Celso Furtado para a de 1930, em que eu completava na América”, que França, de onde enviava repor- dez anos. As empregadas da tagens para a Revista da Semana casa me levaram a essas mani- escrevera aos 26 e outras publicações brasileiras, festações cívicas, que mostra- enquanto cursava Economia. vam a revolta contida do povo”. anos de idade, Ao concluir o doutorado em Na capital, estudou no Liceu carimbou Economia pelaUniversidade da Paraibano, mas concluiu seus Sorbonne, em Paris, em 1948, estudos secundários no Giná- o passaporte de voltou ao Brasil, retomou seu sio Pernambucano, no Recife. expediente junto ao DASP e se Em 1936, aos 16 anos, já dava Celso Furtado tornou um dos economistas da aulas de geografia e português Fundação Getúlio Vargas. e dirigia cursos noturnos de es- para a França A virada dos anos 1949 para c

| João Pessoa, julho de 2020 6 Correio das Artes – A UNIÃO c o 1950 seria de muita agitação foto: reprodução este, chefe da delegação cuba- na vida do jovem Celso Furta- na à conferência de Punta del do, que iria se casar, ter seu pri- Este, discutiu com o paraibano meiro filho e assumir um lugar o programa da Aliança para o na Comissão Econômica para a Progresso), estiveram na pauta América Latina (Cepal), o que do gestor, que deixou a Sudene iria lhe levar a uma série de em 1962 para se tornar o pri- missões internacionais ao redor meiro titular do Ministério do do mundo, já como Diretor da Planejamento, agora no gover- Divisão de Desenvolvimento, no do presidente João Goulart. inclusive em universidades nos No ano seguinte, voltou para Estados Unidos. a Sudene. É quando, efetiva- É no início dos anos 1950 mente, implanta a política de que seu pensamento sobre eco- incentivos fiscais para os inves- nomia começa a se destacar. timentos na região. Mas com o Datado de 1952, “Formação Ato Institucional nº 1, publica- de Capital e Desenvolvimento do três dias após o golpe mili- Econômico” é seu primeiro arti- tar de 31 de março de 1964, os go de circulação internacional, direitos políticos de Celso Fur- traduzido para o International tado foram cassados, levando Economic Papers, da Associa- o paraibano a exilar-se no exte- ção Internacional de Economia. rior. E é como presidente do Grupo Entre 1957 e 1958, Depois de passar pelo Chile Misto Cepal-BNDE que elabora Celso Furtado e Estados Unidos, onde minis- um estudo sobre a economia trou algumas conferências e brasileira, com ênfase especial foi professor na deu aulas, o paraibano de Pom- nas técnicas de planejamento. bal se estabeleceu na França, O relatório se torna a base do Universidade em 1965, a convite da Faculdade Plano de Metas do governo do de Direito e Ciências Econômi- então presidente Juscelino Ku- de Cambridge, cas da Universidade de Paris, bitschek. onde ficaria por 20 anos. Lá, se Entre 1957 e 1958, Celso Fur- na Inglaterra, tornou o primeiro estrangeiro tado foi professor convidado no nomeado para uma universi- King’s College da Universidade onde escreveu dade francesa (por decreto do de Cambridge, na Inglaterra, general de Gaulle) e se tornou onde escreve seu mais famo- seu mais famoso titular da disciplina de Desen- so livro: Formação Econômica do volvimento Econômico. Brasil. De volta ao Brasil, é no- livro: 'Formação Celso Furtado passou os meado, por Kubitschek, inter- Econômica do anos seguintes viajando pelo ventor no Grupo de Trabalho mundo, em uma bem-sucedi- para o Desenvolvimento do Brasil' da carreira acadêmica volta- Nordeste. É quando desenvolve da à econômica. Só a partir de o estudo “Uma Política de De- 1979, quando votada a Lei da senvolvimento para o Nordes- Anistia, ele retornou ao Brasil te”, origem da criação, em 1959, a ponto de se reestabelecer na da Superintendência de Desen- pública do país. É por essa épo- volvimento do Nordeste (Sude- ca que ele se torna membro do ne), com sede no Recife. Diretório Nacional do PMDB e A Sudene marcaria a carrei- casa-se com a jornalista Rosa ra de Celso Furtado, da mes- Freire d’Aguiar. ma forma como o órgão seria É nos anos 1980 que Celso marcado pelo seu superinten- integra a Comissão do Plano de dente; é difícil pensar um sem Ação do Governo do recém-elei- o outro. Encontros com o então to presidente Tancredo Neves e presidente John Kennedy (na torna-se embaixador do Brasil Casa Branca, em Washington, junto à Comunidade Econômi- EUA) e com o então ministro ca Européia. Ainda na primeira Ernesto Che Guevara (quando metade dos anos 1980, ele integra c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2020 | 7 c a Comissão de Estudos Consti- O menino de Pombal, que tro, o imortal da Academia Bra- tucionais, presidida por Afonso viu a chegada dos cangaceiros sileira de Letras passou seus Arinos, para elaborar um projeto pela fresta da janela, que foi à últimos anos de vida no Rio de de nova Constituição. rua no aniversário de 10 anos Janeiro, cidade que o abraçou Já sob a presidência de José em meio a revolta que se es- ainda na terna idade. Sarney, Celso Furtado é no- tabeleceu pela morte de João Foi lá, em seu apartamen- meado ministro da Cultura, em Pessoa, que foi recebido pelo to em Copacabana, que Celso 1986. A gestão do paraibano se- presidente John F. Kennedy Furtado morreu, em 20 de no- ria marcada pela aprovação da na Casa Branca, que se tornou vembro de 2004, aos 84 anos de primeira lei de incentivos fiscais um dos maiores acadêmicos do idade, em decorrência de um à cultura. Mas passou pouco mundo, tendo seu pensamento colapso cardíaco. Seu corpo tempo no cargo: em julho de estudando em renomadas uni- foi enterrado, no dia seguinte, 1988, pediu exoneração da pas- versidades de todo o planeta, no Mausoléu dos Imortais da ta, retornando às atividades aca- que chegou a ser indicado pelo Academia Brasileira de Letras, dêmicas no Brasil e no exterior. Senado ao Nobel de Economia, no cemitério São João Batista, A partir dos anos 1990, vem que foi dois duas vezes minis- no Rio.I a consagração de um pensador econômico e social que brilhan- temente levou a problemática do Brasil para o mundo e, nele, buscou soluções para o país, so- bretudo o Nordeste. É nessa década que Celso Furtado participou de comis- sões políticas internacionais, integrou a Comissão Mundial para a Cultura e o Desenvolvi- mento (numa parceria entre a ONU e a Unesco) e foi celebra- do, em 1997, com o congresso internacional “A Contribuição de Celso Furtado para os Estu- dos do Desenvolvimento”, re- unindo especialistas do Brasil, Estados Unidos, França, Itália, México, Polônia e Suíça. Nesse mesmo ano, foi criado - pela Academia de Ciências do Terceiro Mundo, com sede em Trieste (Itália) - o Prêmio Inter- nacional Celso Furtado, con- ferido a cada dois anos ao me- lhor trabalho de um cientista do Terceiro Mundo no campo da economia política. Como se não bastasse, em agosto de 1997 foi eleito para a cadeira nº 11 da Academia Brasileira de Letras. Em 2003, ano anterior à sua morte, Celso Furtado também foi eleito para a Academia Bra- sileira de Ciências e, em no- ção: tonio ção:

vembro daquele ano, o Senado a aprovou a indicação da can- didatura do paraibano para o ilustr Prêmio Nobel de Economia, por suas teorias sobre os países André Cananéa é jornalista. Edita o Correio das Artes desde maio de 2019. Também é editor-geral do jornal A em desenvolvimento. União. Mora e trabalha em João Pessoa - PB.

| João Pessoa, julho de 2020 8 Correio das Artes – A UNIÃO 6 discurso “É necessário pensar com coragem”(1)

Celso Furtado

Fotos: reprodução

ranscrito pela pela equipe do projeto Editorial Cem Anos de Cel- so Furtado e revisado pela viúva de Celso, a jornalista Rosa Freire d’Águiar, a partir de uma gravação feita pelo IEE, Unicamp (SP), esta mensagem direcionada aos estudantes que participaram do 24º T Encontro de Estudantes de Economia (Eneco), realizado no Instituto de Economia da Unicamp, entre 20 a 26 de julho de 1997, permanece bastante atual.

Confira Desejo, em primeiro lugar, blemas desafiantes, problemas di- isso o compromete com valores. saudar os jovens congressistas fíceis, e as possibilidades de coo- O economista não pode ser agora reunidos em Campinas. peração internacional já não são apenas quem venda serviços. Ele É muito importante que os jo- as mesmas. Portanto, é necessário tem de ser alguém que transmi- vens compreendam que sua res- pensar, usar a imaginação, e pen- ta uma mensagem, baseada em ponsabilidade será muito grande. sar com coragem. O economista valores, em uma visão do social. Maior, talvez, do que foi a nossa, não é um profissional qualquer. Uma visão do país, como é o ob- a da minha geração. Porque o Ele tem uma participação num jetivo desse encontro de vocês. Brasil, hoje em dia, enfrenta pro- ponto sensível da vida social, e Um novo projeto para o Brasil. c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2020 | 9 Foto: arquivo a união ção era enorme. Esse foi o painel que apresentei 10 anos atrás. Hoje em dia me alegra muito saber que é uma geração nova O economista não que está pensando tudo isso. E que essa geração, com vocês, pode ser apenas está fazendo um congresso para “quem venda serviços. pensar um projeto novo para o Brasil. Nunca esqueçam de que o Ele tem de ser alguém Brasil é uma país em construção. que transmita uma Não é um país já feito, precisan- do só tocar nos detalhes. É um mensagem, baseada país onde há um grande desafio em valores, em uma que se apresenta aos economis- tas, porque ele é um país em fa- visão do social. bricação. O futuro deste país, qual será? É preciso pensar, primeiramente, o contexto internacional. Esse foi c Sem coragem, sem audácia, o método que adotei: primeiro sem capacidade, principalmen- ter em conta as forças globais que te, de arriscar, não se governa. atuam no mundo. Ora, se eu olho E essas virtudes são, sobretudo, hoje em dia para essas forças, da gente jovem. Por isso eu apelo vejo que nós estamos perdendo para a juventude brasileira, para terreno. É impressionante ver, que hoje construa o Brasil com por exemplo, quando se compara coragem, com audácia. Não se o quadro do comércio internacio- deixe limitar pelo temor ou pelas nal dos últimos cinco anos, e se dificuldades conjunturais, pelas situa o Brasil, que o Brasil não só dificuldades de arranjar empre- cresceu menos do que o comér- go, que hoje em dia são óbvias. cio internacional, como cresceu Desejo boa sorte a todos, e muito menos que o comércio dos que, acima de tudo, lembrem- países do Terceiro Mundo, dos -se de que são jovens e têm de chamados subdesenvolvidos. pensar de novo o Brasil, com as Nós perdemos terreno dupla- responsabilidades dos que vão vi um livro, publicado em 1959, mente. Como explicar isso se so- assumir o poder no futuro. que se chama Formação Econômi- mos um país que apresenta uma O desafio que vocês estão en- ca do Brasil. Nesse livro, se trata constelação riquíssimas de re- frentando neste congresso é o de de ligar a história do Brasil ao cursos? Somos um país com um pensar um novo modelo para o contexto internacional. O que é potencial enorme. Somos o úni- Brasil. Na minha geração, encon- de mais marcante no livro é essa co país do mundo onde há uma tramos um desafio idêntico. A percepção clara de que nada do fronteira agrícola aberta. Somo c batalha era a de convencer que que ocorre no país se entende não havia saída fora de uma po- plenamente se não temos uma lítica de desenvolvimento. Ou há percepção global do quadro in- um compromisso com o desen- ternacional, das forças que inter- volvimento ou não avançamos. E ferem lá fora. Essa é a mensagem mais ainda: não havia desenvol- que deixei nesse livro. vimento naquela época que não Posteriormente escrevi ou- passasse pela industrialização. tro livro que se chama Brasil, a Então havia que convencer de Construção Interrompida [1992]. Sem coragem, uma necessidade de industriali- Isso faz uns 10 anos, quando co- zação, para modernizar o Brasil. locávamos o problema de saber sem audácia, Isso foi o problema de uma cer- se havia no Brasil outra política “sem capacidade, ta época. Hoje em dia vocês es- viável de desenvolvimento. A tão dentro de uma problemática construção estava interrompi- principalmente, nova. Portanto, pensar um novo da no sentido de que não havia de arriscar, não modelo traz desafios novos. Não mais criação de empregos. E de é apenas pensar o que foi o Bra- que o setor dinâmico da econo- se governa. E sil. mia, que era o setor industrial, essas virtudes são, Eu contribuí com algo para estava parado. E as necessidades essa compreensão. Dediquei mi- da população Brasil estavam se sobretudo, da gente nha vida a explicar o que eram o agravando. A insatisfação social jovem. Brasil, seus problemas etc. Escre- era crescente. O desejo de inova-

| João Pessoa, julho de 2020 10 Correio das Artes – A UNIÃO c o único país com a possibilidade como a França ser colocado con- de um mercado interno conside- tra a parede, sob pressão, do sis- rável. Não é fácil encontrar um tema financeiro internacional. país com as potencialidades e De um dia para a noite saem US$ já com o capital humano de que Isso faz uns 10 anos, 50 bilhões de um país. Portanto, dispõe o Brasil. o poder real, hoje em dia, está in- Como explicar que tenhamos quando colocávamos ternacionalizado. E o Estado mo- passado 10 anos parados? Isso “o problema de saber derno atua com limitações que eu dizia já há dez anos atrás. E são reconhecidas aqui como nos hoje constato que não se modi- se havia no Brasil Estados Unidos. ficou muito a situação. Particu- outra política viável Isso é menos visível num país larmente no que diz respeito ao como os Estados Unidos porque nosso pouco dinamismo no setor de desenvolvimento. têm a possibilidade de se endivi- externo. Somos uma nação com A construção estava dar de forma ilimitada. Cada ano enormes possibilidades. Temos que passa os americanos se endi- um mercado em potencial am- interrompida no vidam em US$ 100 bilhões. Isso plíssimo. Mas temos que aceitar sentido de que não aí eles podem fazer porque emi- que somos a maior massa de mi- tem a moeda que é de circula- séria do hemisfério, a maior de havia mais criação de ção internacional. Mas os outros pobreza. empregos. E de que países, mesmo poderosos como a É evidente que a nova geração Itália, o Japão, e a Alemanha não terá que enfrentar problemas sé- o setor dinâmico da têm essa possibilidade. Portanto, rios e graves. Mas eu confio na economia, que era suas políticas estão condiciona- capacidade dessa geração nova, das por limitações que decorrem porque estou vendo as iniciati- o setor industrial, da preeminência do poder finan- vas que estão surgindo. A de vo- estava parado. E ceiro internacional. cês fazendo um congresso com a Não se trata de ignorar isso e coragem de colocar o problema as necessidades de imaginar que vamos fechar maior. Não se trata de seguir, se da população o Brasil novamente, que vamos trata de criar um projeto novo. E voltar ao passado, como quan- também o fato de que estão sur- Brasil estavam do o governo controlava as im- gindo publicações novas. Estão se agravando. A portações e exportações e o se- surgindo seminários. Estão sur- tor financeiro internacional era gindo, digamos assim, as inicia- insatisfação social era disciplinado, monitorado pelo tivas mais variadas, o que indica crescente. O desejo Banco Mundial, pelo Banco Inte- que existe uma grande insatisfa- ramericano. Nada disso. Temos ção, uma ansiedade por inovar. de inovação era que reconhecer que, no mundo E isso é, na verdade, uma coisa enorme. moderno, a tecnologia adquiriu muito positiva. uma autonomia muito grande Bem, mas precisamos ser rea- de processo tecnológico. E as listas. Não adianta querer sim- consequências disso são que as plificar os problemas. Eles não forças sociais já não têm a mes- vão ficar de mais fácil solução ma capacidade de ação. Porque, porque os simplificamos. Indu- no passado, a tecnologia também bitavelmente no Brasil, como em era importante. Mas havia um qualquer parte do mundo, hoje grandes. Vimos o que se passou contrapeso social. E esse contra- em dia o espaço ocupado pelo no México. A qualquer momento peso social, que eram as orga- governo se reduziu. O Estado na- pode haver mudança na conjun- nizações da sociedade civil, se cional tem uma área menor. Na tura internacional e nós sermos manifestava numa autonomia de minha época, o Estado brasilei- colocados contra a parede. Aí é ação. Todos os países da Europa ro dispunha de uma capacidade que veremos como temos pouco tinham uma política de bem-es- de poupança e de investimento comando sobre a nossa macroe- tar muito avançada e hoje em dia muito maior do que hoje. Por ou- conomia. Essa é a novidade do já não podem ter essa política de tro lado, nenhum Estado, no pas- mundo moderno, é que os Esta- bem-estar porque já não podem sado, se submetia a um processo dos nacionais já não têm a mes- financiá-la. de endividamento tão desorde- ma consistência com a mesma Nós aqui no Brasil tivemos nado como o que vemos hoje. capacidade de controle das ala- uma política de financiamento Hoje, realmente, os Estados, vancas de poder que tinham no de infraestrutura muito avan- como o brasileiro, se financiam, passado. çada com o BNDES e outras de preferência, no exterior. Cla- Já hoje em dia ninguém mais instituições de crédito oficiais. ro, as taxas de juros são mais pode imaginar, digamos assim, Hoje em dia não temos mais isso baixas lá fora, e existe liquidez se contrapor às forças das finan- porque nós dependemos do refi- internacional abundante, mas ças internacionais. Eu vivo na nanciamento internacional, que isso representa riscos muito Europa e já presenciei um país é controlado, digamos, de fora, c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2020 | 11 Foto: Arnóbio/a união c e nos obriga a aceitar um custo terão que reformar seu modelo muito grande financeiro, porque social. Eles terão que provavel- grande parte do que se produz mente redesenhar a semana de hoje no Brasil é para pagar juros. trabalho. E abrir espaço para a Não esquecer isso. E esses juros inventividade humana em áreas são ditados lá fora. E se o Brasil não convencionais. Quer dizer, não adota uma taxa de juros ele- é preciso inovar. Eles na Euro- vada, os capitais não vêm ao Bra- pa têm grandes dificuldades de sil. Eles saem daqui. E o próprio abandonar os padrões clássicos capital brasileiro escapa daqui e deles. Porque são economias já vai investir fora. E já não se tem muito desenvolvidas, com uma mais controle sobre isso. grande inércia. Nós economistas temos que Nós temos uma problemática ter percepção de tudo isso. Não grave, mas temos muito mais pos- adianta se autoenganar com fa- sibilidades. Primeiramente somos cilidades e simplificações. É ver o um país com a fronteira agrícola outro como ele é, realmente. Sem- aberta. Isso não existe no mundo. pre partindo do princípio de que E esse chamado Movimento dos o juiz final somos nós. Ou temos Sem-Terra, por exemplo, vem nos um projeto próprio, ou seremos alertar para o fato que há muito uma força inerme, um joguete, brasileiro querendo voltar para um joguete dos outros. E essa for- a agricultura. Isso não existe no ça nossa decorre não só de uma mundo. Isso de gente querendo compreensão dos nossos proble- voltar para a agricultura há mui- mas, mas de uma vontade políti- tos anos não se apresenta. Aqui, ca nossa. Os economistas são cha- existe. mados hoje em dia para exercer Os problemas deles Portanto, temos uma proble- uma missão inversa à do passado. (os europeus) são mática própria nossa. Não po- É de esclarecimento e de inovação demos ficar presos a modelos já no plano geral, não somente da “principalmente os estabelecidos, convencionais. Por economia, não. No plano da polí- da exclusão social. isso é que eu digo que os jovens tica! Não pensemos que se pode precisam voltar a ter influência, e separar política da economia ou a O sistema moderno exercer sua influência através da economia da política. Tenhamos não cria emprego. imaginação. Porque a juventude sempre em conta que a política, tem duas virtudes: o uso corajoso como se diz há muito tempo, é Vejam os países da da imaginação e pouco peso do a arte do que é possível. E o que Europa Ocidental. Já, passado. E é nesse sentido que eu é possível decorre das forças so- acho que vocês, da geração nova, ciais que estão atuando. E essas há muitos anos, eles estão chamados a um grande de- forças sociais são, em grande par- não criam nenhum safio. Vamos inventar um modelo te, comandadas de fora. É preciso novo para o Brasil. Que tenha em ter consciência das limitações que emprego. conta a necessidade de empregar, enfrentamos. mas tenha também em conta a Criticar é fácil. Eu digo, por necessidade de diversificar o ho- exemplo, que vemos o governo rizonte de possibilidades do ho- tomar tantas medidas que nos pa- mem. Criar uma sociedade mais recem suficientes e outras que nos humana. Um maior compromisso parecem erradas. Eu, que tenho o com os destituídos, com os pobres. sentido crítico e que olho de fora, E principalmente com as mulhe- que vivo, em parte, fora do Brasil, cional. E existe uma grande an- res, que ainda são excluídas na so- tenho percepção de tudo isso. Mas gústia, uma grande certeza com ciedade. E com as crianças. não me deixo levar pela facilidade relação ao futuro. Ora, os proble- Desejo um bom futuro e tenho de uma crítica simples. Eu sei que mas deles são principalmente os fé em que vocês vão aceitar esse os que estão no poder também es- da exclusão social. O sistema mo- desafio. Eu, com a idade que te- tão enfrentando limitações. derno não cria emprego. Vejam nho, com a experiência que vivi, Não se pode esquecer que pro- os países da Europa Ocidental. estou confortado. Sei que vocês blemas graves existem no mundo Já há muitos anos eles não criam vão sair daqui de Campinas com inteiro. Não é só o Brasil que en- nenhum emprego. Vivem acumu- a bagagem cheia, renovada, e frenta dificuldades para crescer, lando estoques de gente excluída dispostos a continuar a briga da para se adaptar à situação de re- e enfrentam o problema da exclu- construção do Brasil. volução tecnológica. Eu vivo na são social em escala crescente. E Muito obrigado. I Europa, fui 20 anos professor na França, nos Estados Unidos, na (1) Mensagens aos estudantes que participaram do XXIV Encontro de Inglaterra, e estou acompanhan- Estudantes de Economia (Eneco), realizado no Instituto de Economia da Unicamp do também a situação interna- de 20 a 26 de julho de 1997.

| João Pessoa, julho de 2020 12 Correio das Artes – A UNIÃO Foto: reprodução 6 entrevista

Rosa Freire d’Aguiar Jornalista e tradutora

Naná Garcez [email protected]

astante ativa na preser- vação da memória e do legado do marido, Cel- B so Furtado, a jornalista e tradutora Rosa Freire d’Aguiar privou da inti- midade do economista por 26 anos. Aqui, nesta entre- vista exclusiva ao Correio Rosa Freide d’Aguiar: desde que Celso das Artes, ela conta como faleceu, em 2004, ela tem se empenhado era Celso Furtado na vida para que a obra do economista esteja doméstica. disponível às novas gerações Ela revela que, para ele, o lazer era a leitura e que para além de Marx, Keynes e Karl Mannheim, célebres autores de ficção idade e conta como era conciliar gostava de Thomas Mann científica). sua carreira de correspondente e Aldous Huxley (o pri- Aborda, também, os reiní- internacional com a agenda de meiro, um dos maiores cios do paraibano quando, por Celso Furtado, sempre viajando romancistas do século 20; exemplo, teve seus direitos po- pelo mundo em conferências e o segundo, um dos mais líticos cassados aos 43 anos de compromissos de trabalho.

8 perguntas Ao se pesquisar sobre Celso Furtado, observa- pre ouvindo antes de falar. Nunca foi de ter muita -se que ele está mais em eventos técnicos, semi- “vida social” — pelo que hoje a expressão signifi- nários, palestras, solenidades, ou seja, em mo- ca. Seu lazer preferido era ler. Lia muito, em geral mentos formais. Como era a vida social, o lazer com música clássica tocando baixinho no rádio preferido? ou num CD. Também costumava trabalhar ou- Celso era uma pessoa reservada. Como, talvez, vindo música clássica. Mas os lazeres mudam ao os nascidos no sertão. Não que fosse tímido, nem longo da vida, como é natural. Quando foi para um pouco. Mas a primeira atitude era a de reser- o Rio, jovem de 19 anos, nos anos 1940, creio que va, de cerimônia. Aos poucos, ia se abrindo, sem- o principal lazer eram os concertos e óperas no c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2020 | 13 c Teatro Municipal, na Escola Na- mas se adaptou perfeitamente, da sede do BNDES, em 2018; a cional de Música. Nos anos em sempre muito interessado na mudança de nome do Centro que morou na França, no fim dos nova vida, na nova profissão, e Acadêmico de Estudantes de 40, descobriu o teatro e não per- mesmo na necessidade de mudar uma universidade e de um se- dia uma peça, do teatro clássico de idioma, ora lecionando em tor da Petrobrás lhe preocupou ao de vanguarda. Durante a vida francês, ora em inglês, quando e lhe motivou a mais e mais toda também íamos muito ao ci- esteve em Cambridge, na Co- enfatizar a relevância do pen- nema. Enfim, creio que os lazeres lumbia, na American, ora em es- samento de Celso Furtado para eram esses. panhol. o Brasil, em especial para uma camada mais jovem? O economista Celso Furtado Fiz uma visita ao Centro Inter- São situações diversas. O Cen- teve vários reinícios de vida. nacional Celso Furtado (CCCF) tro Internacional Celso Furtado Talvez a saída da Sudene e cas- e estive na biblioteca. O acer- teve muitos anos sua sede em sação dos direitos políticos, em vo bibliográfico dele era muito duas salas que o BNDES nos ce- 1964, tenham sido as mais du- grande. Quais os autores prefe- deu. Quando veio o governo Te- ras. Ele era uma pessoa amargu- ridos e como está este acervo? mer, a então presidente do banco rada? Como com os lazeres, essas nos pediu para sair, pois iam en- Não era amargurado. Em preferências foram mudando no tregar as várias salas (entre elas 1964, ele foi cassado por motivos correr dos anos, o que acontece as duas nossas) e transferir todos difíceis de se entender. Não es- com todos nós. Eu diria que ti- os funcionários para a sede anti- tava fazendo “agitação” política, nha suas preferências tanto na ga. Nós não éramos, nunca fomos não era de nenhum partido de área acadêmica como de litera- funcionários do banco. Saímos, esquerda que os militares tanto tura. Nas leituras de ciências hu- mas graças ao empenho do pre- perseguiram, nunca foi envolvi- manas e sociais (aqui incluindo a sidente do Centro, o ex-senador do — nem ele nem os sudenia- economia, a filosofia, a cultura) Saturnino Braga, conseguimos nos da época em que ele criou e ele tinha apego pelas obras de um ótimo espaço no prédio do dirigiu a Sudene — em nenhum Marx, Keynes, Karl Mannheim, Clube de Engenharia, no centro caso de corrupção. Rigorosamen- Max Weber, Sombart, Braudel, do Rio, onde estamos. O episódio te nenhum. Portanto, sua cassa- mas também Nietzsche e Platão, da mudança de nome do Centro ção deve ter obedecido a outros sendo que este o acompanhou Acadêmico foi uma decisão dos desígnios, talvez de certa classe a vida toda em seu leque de lei- próprios alunos. Evidentemente, política nordestina. Claro que, turas. Na literatura, eu citaria considerei uma descortesia, até aos 43 anos, ser privado de direi- Thomas Mann, Aldous Huxley, porque eles fizeram questão de tos políticos e civis, ter de partir Somerset Maugham, todos os rebatizar - como se fosse uma para o exílio, sem emprego, com grandes latino-americanos, Mal- “desforra” - o centro acadêmico família, ter de refazer a vida, raux, Camus. A lista é longa. Os com o nome de , sempre seria motivo para amar- arquivos de Celso, de que sou que, em outras épocas, foi amigo gura. No entanto, Celso foi pou- herdeira, doei-os ano passado de Celso, mas depois enveredou pado desse sentimento no nível para o Instituto de Estudos Bra- pelo neoliberalismo. Mas é uma pessoal. Muitas vezes o vi, sim, sileiros (IEB), da USP. A bibliote- decisão de estudantes. Quanto à amargurado, mas com o Brasil, ca, com cerca de 14 mil volumes, Termelétrica Celso Furtado, que com os rumos deletérios que tan- também doei ao IEB. Por ora, es- foi assim batizada algum tempo tas vezes nossos políticos toma- tão à espera de catalogação. depois da morte dele, foi uma ram (e tomam). manobra da Petrobrás, neste A retirada do Centro Cultural atual governo, para “desbatizar” c A capacidade técnica do parai- bano era sempre muito reco- l nhecida. Quando foi convidado a sso por universidades americanas, e foi notícia de jornal nos Estados rvo p rvo e c

Unidos. Aliás, recebeu convites a de diferentes instituições euro- oto: oto: peias e sul-americanas. Celso F Furtado se adaptava com rapi- dez às novas circunstâncias? Sim, perfeitamente. Saiu em 1964 e foi ser pesquisador na Universidade de Yale, onde ficou por um ano. Depois seguiu para a França, onde, na Universidade Rosa e Celso se conheceram na da Sorbonne (em que se douto- França, onde a rara anos antes), lecionou por 20 jornalista era anos. Nunca tinha sido propria- correspondente mente professor universitário, da revista IstoÉ

| João Pessoa, julho de 2020 14 Correio das Artes – A UNIÃO c a dezena de termelétricas que compatível com o cargo de Cel- O segundo livro que propus à homenageavam pessoas de es- so. Como mulher do ministro, Companhia das Letras é uma querda, como Celso, Mario Lago, eu conversava com a altíssima seleção da “Correspondência Rômulo Almeida e, até mesmo, cúpula em jantares, reuniões, intelectual de Celso Furtado”. Aureliano Chaves, que nada ti- tinha acesso a certas pessoas, a O livro está pronto, mas, tendo nha de homem de esquerda. O certas futuras decisões do gover- em vista a crise sanitária e o espantoso é que a Petrobras te- no que exigiam reserva: se eu as confinamento, vamos lançar só nha tempo a perder com o que publicasse num jornal, no dia se- no início do ano que vem. Sem tem todo o jeito de mesquinha- guinte, estaria faltando com esse modéstia (até porque as cartas ria. Alegaram que as famílias dever de reserva. E, se não as pu- não são minhas), posso dizer não teriam dado autorizações, o blicasse, seria má jornalista. Foi que o livro está um espetáculo. que feriria a Lei de Propriedade quando comecei a traduzir para Intelectual. Não é verdade: de- algumas editoras e me enfronhei No seu sentir, qual o grande le- mos, sim, autorização para uso no mundo editorial. Nesse ofício, gado de Celso Furtado? do nome. foi ainda mais fácil conciliar a Permito-me relembrar algo vida do casal. que escrevi uma vez sobre Cel- Foram 26 anos de casamento. so. Ele morreu aos 84 anos cerca- Você tinha antes uma ativida- Você organizou textos inédi- do de reconhecimento por seus de profissional – jornalista e tos, anotações de Celso Furtado aportes à teoria econômica, à tradutora -, e a manteve ao lon- e está em fase de conclusão das economia política, aos determi- go do tempo. Como conciliou correspondências que ele man- nantes e desafios do desenvol- as suas obrigações com a rotina teve com pessoas e instituições. vimento. Convergem as apre- dele, que ora estava no Brasil, O que de novo está por vir? ciações que o apontam como ora na Europa, em universida- Desde que Celso morreu, em autor indispensável nas áreas de des e cargos? 2004, propus-me a fazer um economia do desenvolvimento, Cada um manteve a sua roti- esforço para que sua obra es- teoria econômica, planejamen- na. Quando nos conhecemos, eu tivesse sempre disponível às to, economia brasileira, cultura, era jornalista, correspondente novas gerações. Senão toda, ao questão regional, capitalismo, na França da revista IstoÉ. Via- menos os livros que considero globalização. Gostaria de ressal- java muito, por toda a Europa, mais importantes, a começar tar quatro vertentes de sua obra, Oriente Médio. Celso, de seu pelo Formação Econômica do Bra- que considero que formam seu lado, também começava a ir mais sil. Fiz, nesses 16 anos, edições legado: (1) o teórico da proble- vezes ao Brasil, por temporadas definitivas de alguns títulos; fiz mática do subdesenvolvimento, mais longas. As viagens nunca também uma coleção chama- que é a ideia sintetizadora de foram problema, cada um fazia da “Arquivos Celso Furtado”, suas reflexões de economista: (2) as suas, profissionais, e nós dois para a qual preparei seis livros, o economista agindo como his- fazíamos as nossas, pela Europa, com arquivos dele nas áreas da toriador, que soube perceber a Ásia, Brasil. Claro que algumas Cultura, Planejamento, Sudene, importância dos processos his- viagens que fiz — como a cober- Atividades de Professor. Fiz, tóricos para explicar as raízes tura da guerra do Líbano, ou as ainda, duas coletâneas, uma e estruturas do subdesenvolvi- manifestações do movimento de que gosto muito chama- mento brasileiro; (3) as ações e pacifista em alguns países euro- da “Essencial Celso Furtado”, propostas em torno da questão peus — o deixavam muito preo- pela Companhia das Letras/ regional, por ele muito bem ex- cupado com a minha “seguran- Penguin. Com essa mesma edi- plicitada nos anos em que criou e ça”. Mas íamos nos adaptando. tora fechei dois livros para o esteve à frente da Sudene (1958- Viajamos muito, sempre. Vez por centenário. O primeiro lancei 64); (4) o teórico da dimensão outra, eu conseguia acompanhá- em novembro, e são os Diários cultural do desenvolvimento, -lo em suas atividades acadêmi- Intermitentes de Celso Furtado. É tema que ele foi um dos primei- cas fora de Paris. E ele, algumas um material inédito de extre- ros, senão o pioneiro, a estudar, vezes, me acompanhou em mi- ma riqueza, e cobre 65 anos de certo de que não é possível se fa- nhas viagens profissionais, como diários e anotações feitas por lar em enriquecimento cultural a festivais de cinema no sul da Celso. Vale lembrar que foi em com empobrecimento cultural. França. Quando Celso foi ser em- Tambaú, nos idos de 1937, que Esses são, a meu ver, os aspec- baixador do Brasil em Bruxelas, Celso, um belo dia, resolveu tos da obra de Celso que devem junto à Comunidade Europeia, começar um “diário”. Ele com- ser lidos, estudados, discutidos tive alguma restrição no meu prou um caderno grande, pau- pelas novas gerações. São o que trabalho de correspondente: pa- tado, e ali começou a escrever formam a permanência de Celso rei de cobrir política internacio- o que lhe parecia importante. Furtado. I nal (era o meu forte) e economia, para não criar conflitos. E, quan- do retornamos ao Brasil e ele as- Naná Garcez é jornalista, empresária e diretora presidente da sumiu o Ministério da Cultura, Empresa Paraibana de Comunicação - EPC, que engloba o Jornal, tive convites para continuar no a Gráfica e a Editora A União, o Diário Oficial do Estado da jornalismo, mas achei que era in- Paraíba e a Rádio Tabajara.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2020 | 15 6 artigo Celso Furtado, Paraibano, nordestino e cidadão do mundo1

fotos: Arquivo A União Clemente Rosas Especial para o Correio das Artes

atitude de Celso Furtado em relação à sua terra e à A humanidade é bem retra- tada em alguns versos do poeta Juan Ramón Jiménez, que ele usa como epígrafe em pelo menos dois dos seus livros: “Pie en la patria, casual o elegida; corazón, cabeza en el aire del mundo”. Os pés bem fincados no solo da pátria, seja aquela onde se nasceu, seja outra, que se teve de adotar (e quantos intelectuais latino-ame- ricanos a tal não foram forçados, para fugir à repressão, tangidos por essa “catapora” de ditaduras cruéis que, de tempos em tempos, assola o nosso continente!). Mas o coração e a cabeça abertos aos ares do mundo. Assim conduziu-se ele a vida inteira, preocupado, ao mesmo tempo, com o desenvolvimento da sua região e o futuro da espé- cie humana, com o destino do seu Celso Furtado teve sua país e as assimetrias e armadilhas trajetória marcada da globalização para todos os paí- pela preocupação, ses. simultânea, com o Cidadão do mundo, pelos tra- desenvolvimento do balhos que realizou em vários Nordeste e o futuro da espécie humana, pontos do planeta e pelas missões e o destino do seu que cumpriu, internacionalmen- país e as assimetrias te, jamais renegou, nem mesmo e armadilhas da no estilo, a condição de brasileiro, globalização para todos de nordestino, de paraibano, de os países sertanejo. De alma generosa e solidária,

(1) Contém trechos do pronunciamento feito de improviso, pelo autor, no debate sobre a obra de Celso Furtado, promovido pela Academia Paraibana de Letras no dia 20 de janeiro de 2005. c

| João Pessoa, julho de 2020 16 Correio das Artes – A UNIÃO Embora servindo-se a fundo c permaneceu “seco como um cac- da racionalidade econômica, Celso Furtado jamais se to”, segundo expressão dele pró- seus discípulos que “não se dei- xassem embair pelo brilho falso limitou aos jargões do prio, que articulistas da extirpe “economês” ou se deixou de Rubens Ricúpero e Roberto do monetarismo”. prender pelo cerco conceitual Pompeu de Toledo souberam tão Tendo aprendido, por expe- da disciplina bem glosar. riência própria, que, para bem Vivendo tantos anos no Rio, compreender os problemas do nunca foi afetado, em sua ma- subdesenvolvimento, havia que neira de falar, pelo acento me- descer da “atmosfera rarefeita tropolitano. Nem mesmo aquele das altas abstrações”, onde pai- “ti” chiado dos cariocas, cacoete rava então a teoria econômica que converte a consoante oclusi- estudada nos centros desenvol- va “t” em consoante fricativa (e vidos, logo percebeu também foi o maior dos absurdos. Pois ele muito nordestino de pouca per- nunca foi “político”, tomada a pa- sonalidade procura imitar) teve a multidimensionalidade dos o dom de contaminá-lo. fenômenos a analisar. Daí vem lavra no sentido de engajamento a Sem dúvida, a fidelidade às sua afirmação de que “jamais partidos, facções ou grupamentos suas raízes é apanágio dos gran- conseguiu ver um problema voltados para a conquista do po- des intelectuais, assim como dos como puramente econômico”. der. Nem quando ainda era estu- grandes artistas. Pois, na verdade, os problemas dante universitário, no que diver- econômicos são também socio- giu, porcerto, da maioria dos seus A ciência lógicos, psico-sociais, culturais, colegas intelectualizados. E mes- demográficos, ambientais, polí- mo após sofrer a injusta punição, econômica ticos. sua atitude não foi a de ligar-se multidimensional Foi essa visão abrangente que aos grupos de exilados e inconfor- lhe permitiu, junto a outros ino- mados com o novo regime que se Um sábio conselho do pen- vadores como Ragnar Nurkse, formaram naturalmente. Prefe- sador inglês Samuel Johnson Gunnar Myrdal, William Arthur riu o caminho do “lobo solitário”, a seu deslumbrado discípulo Lewis e Raul Prebisch, conceber segundo sua própria expressão. John Boswell é citado por Celso as categorias que vieram a com- Só com a anistia e o retorno dos Furtado em outro dos seus tra- por a teoria do subdesenvolvi- expatriados é que atendeu ao cha- balhos: “My dear friend, clear mento. E foi também o que deu mamento das forças populares your mind of cant”. Ele também, universalidade à sua obra. para o pleno restabelecimento do embora servindo-se a fundo da jogo democrático. racionalidade econômica, jamais O “lobo solitário” A dimensão política do seu tra- se limitou aos jargões do “econo- balho, no entanto, não é posta em mês”, jamais se deixou prender Sem dúvida, a cassação dos questão. Simplesmente, não com- pelo cerco conceitual da disci- direitos políticos de Celso Furta- porta rótulos. Nem comunista, plina. do, promovida pelos vitoriosos como o increpavam as vozes re- Ele também recomendou aos do Movimento Militar de 1964, trógradas que se opunham a seus c

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Celso Furtado jamais conseguiu ver um problema como puramente econômico c planos para o Nordeste, nem recidos sabem hoje que o libe- “burguês reacionário”, como ralismo radical é mero discur- o classificavam os esquerdis- so de conveniência. Quando tas ingênuos ou sectários. No as coisas apertam, os grandes entendimento de que os inte- empresários são os primeiros resses do Estado devem pre- a correr para a asa protetora O “profeta valecer sobre as ambições das do Estado, à procura de apoio, empresas multinacionais, era com o argumento do interesse secular” um nacionalista sem intransi- coletivo, do amparo à comuni- Celso Furtado foi convocado gência. dade dos empregados, do bom para conceber e executar o pro- Na convicção de que “o serviço aos consumidores. Al- jeto de recuperação econômica mercado é um mecanismo in- guns declaram-se, até mesmo, do Nordeste por Juscelino Ku- substituível, mas imperfeito” francamente, favoráveis à inter- bitschek, que desejava, ao final (expressão de José Guilherme venção do Estado, como o fez, do seu mandato, remover aque- Merquior), nunca teve uma há alguns anos, um presidente la nódoa de sua administração: proposta estatizante, mas sim, da Philips internacional, em uma extensa região do país e limpidamente, intervencio- entrevista à revista Veja, cuja entregue à penúria, indefesa nista. referência, lamentavelmente, diante de adversidades climáti- Para flanquear as questões perdi. cas recorrentes. Para isso, dele éticas envolvendo a atividade Celso Furtado sabia muito recebeu todo o apoio político produtiva privada, a “explora- bem que essa hagiologia do necessário, dirigindo, com ple- ção do homem pelo homem”, mercado, que andou em moda na autonomia, uma organização a apropriação da mais-valia por uns tempos é, no fundo, montada à margem das estrutu- do trabalho pelos capitalistas, ridícula. O mercado, deixado ras administrativas carcomidas conceitos marxistas de forte aos seus livres impulsos, acar- do Estado brasileiro à época, presença nos debates dos anos retará, mundialmente, o esgo- verdadeiros feudos das oligar- 1950 e 1960 do século passado, tamento dos recursos naturais quias regionais. afirmava, simplesmente, que não renováveis, levará a polui- Mas Juscelino foi substituí- a livre iniciativa era uma ma- ção ambiental a níveis incom- do na Presidência da República neira mais eficaz de organizar patíveis com a vida e, sobretu- por Jânio Quadros, candidato a produção. Para a surpresa do, nada fará para a redução da Oposição, de estilo e idéias de muitos, inclusive de quem das disparidades internacio- bem discrepantes. E enquan- escreve estas linhas, a Histó- nais e regionais de desenvolvi- to muitos executivos da admi- ria demonstrou que ele tinha mento, o que tem a ver, direta- nistração pública procuravam razão. mente, com o nosso futuro de aproximar-se do novo presiden- De resto, os espíritos escla- brasileiros e nordestinos. te, num esforço de composição, c

| João Pessoa, julho de 2020 18 Correio das Artes – A UNIÃO car nas esferas governamentais, preocupados apenas com o de- sempenho da economia no se- mestre, ou com a meta de inflação para o exercício, ele bem merece o título. Os outros, segundo a sua própria expressão desencantada, são apenas “táticos, sem visão do f ut u ro”.

Morte e vida de Celso Furtado Há duas maneiras de conside- rar o desaparecimento de nosso homenageado. A primeira ins- pira-se na reflexão de John Don- No campo da política, Furtado ne, o pensador inglês, que figura manteve-se acima dos partidos, como epígrafe no livro de Ernest c o Superintendente da Sudene via- devotado, essencialmente, à sua Hemingway, Por Quem os Sinos java pelo mundo. Surpreso, Jânio causa, de olhos postos no futuro Dobram: “No man is an island”. determinou a seu fiel secretário, “Nenhum homem é uma ilha... José Aparecido: “Convoque esse cada homem é um pedaço do homem. Quero vê-lo”. E o man- continente, uma parte do prin- teve no posto, talvez até com mais cipal; se um torrão de terra é ar- prestígio, pois lhe deu acesso per- sidentes, com perfis pessoais mais rancado pelo mar, a Europa fica manente às reuniões ministeriais. meritórios – um, intelectual reno- menor...; a morte de qualquer Com a destemperada renúncia mado, outro, retirante nordestino homem me diminui, porque faço de Jânio, assume o vice-presiden- e líder operário que soube elevar- parte da humanidade. Portanto te, João Goulart, representante de -se ao posto máximo da nação – não procure saber por quem os um terceiro partido, de matiz po- não alcançaram esse patamar de sinos dobram; eles dobram por pulista. Celso Furtado continua à descortino e dignidade. você”. Nesse sentido, e com mais frente da Sudene. E quando a di- A segunda conclusão, já ante- forte razão ainda, por tratar-se visão de poder imposta pelo par- cipada, é a da virtude e da gran- de quem se trata, com a morte de lamentarismo improvisado que deza do nosso homenageado, nos Celso Furtado, todos morremos se implantara no país já encoraja- planos cívico, intelectual e éti- um pouco. va as velhas raposas a tomar-lhe o co. Fiel aos três presidentes, não Proponho, no entanto, que posto, o que lhe diz Jango? “Que- cortejou nenhum deles, embora encaremos a situação com uma rem fazer da Sudene um balcão os considerasse amigos, como se ótica mais esperançosa, mais ilu- de emprego. Para que você saia pode perceber pelas referências minada, que melhor condiz com de lá será preciso duas assina- calorosas que, sem detrimento a personalidade do desaparecido. turas: a do primeiro-ministro e do juízo crítico, lhes faz, em suas Pensemos que ninguém morre a minha. E a mim me cortam a memórias. Manteve-se acima completamente se os seus tra- mão, mas eu não assino”. dos partidos, devotado, essencial- balhos permanecem, se as suas Que conclusões podemos tirar mente, à sua causa, de olhos pos- idéias se propagam e conquistam desses fatos? A primeira, contris- tos no futuro. E assim mereceu o outras mentes, se o seu exemplo é tadora, é a de que involuimos em respeito de todos. seguido. E recordemos, assim, a nossas práticas políticas. Temos Em missa que os veteranos da indagação desafiadora do apósto- visto aí três presidentes, de parti- Sudene, companheiros a quem lo Paulo: “Mors, ubi est victoriam dos, concepções e temperamentos chamou, na dedicatória de um tuam?” bem distintos, que não titubea- dos seus livros, de “peregrinos Celso Furtado vive: no coração ram em repelir interesses paro- da Ordem do Desenvolvimen- dos que participam desta cerimô- quiais ou conveniências eleitorei- to”, mandaram celebrar pela sua nia, na consciência dos discípulos ras, para conservar a colaboração morte, o oficiante, Dom Marcelo e companheiros de trabalho que de alguém que se impunha por Carvalheira, a ele se referiu como tanto aprenderam com ele, no sua autoridade técnica e moral. “um profeta secular”. Contras- compromisso, que todos temos Tido o primeiro, por muitos, como tando com a maioria dos econo- assumido, de fidelidade aos seus leviano e inescrupuloso, como mistas que hoje vemos pontifi- ideais e aos seus sonhos. E paranóico o segundo, como des- preparado e inseguro o terceiro, Clemente Rosas Ribeiro nasceu em João Pessoa, em 27 de setembro de 1940. assumiram eles, no entanto, com É formado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba e pós-graduado em Desenvolvimento Econômico. Foi Procurador-Geral da Sudene. Integrou o essa simples atitude, a dimensão grupo de poetas conhecido como “Geração 59”. Publicou Praia do Flamengo, 132 de estadistas. È melancólico cons- (memórias), Coco de roda (ensaios), Administração & Planejamento (artigos) e Lira tatar que nossos dois últimos pre- dos anos dourados (textos líricos). Mora em Praia Formosa, Cabedelo (PB).

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foto: arquivo a união

O Sétimo Paraibano na Academia Evandro Nóbrega

A Academia foi ara que existe uma “sociedade apenas mais um democrática”, aspiração máxima P do homem moderno, é necessário passo na trajetória que se produza a conjunção de portentosa de um uma economia de mercado com um sistema político aberto e homem que já participativo (...) A construção da sociedade democrática, horizonte escreveu cerca de utópico por que aspiram os homens 40 livros, traduzidos desde a época clássica grega, requer a conjunção de processos históricos para várias línguas engendrados por duas forças: o individualismo, alimentado pela economia de mercado, e a disciplina, que só as sociedades participativas e abertas engendram. – Celso Furtado ao fazer a crítica do livro ‘O Futuro do

Capitalismo’, de Lester Thurow, Utilize o QR Code acima para no Jornal de Resenha, da Folha baixar uma versão digital de São Paulo, 9 de agosto de 1997. do Correio das Artes de 2 de novembro de 1997 c

| João Pessoa, julho de 2020 20 Correio das Artes – A UNIÃO , , , Estaçao Memoria do a st e a c O paraibano Celso Fur-

tado (au grande complet, Agênci - lo e rc

Celso Monteiro Furtado) a enverga o fardão neste dia ssoM

31 de outubro de 1997, Ta

como “imortal” d Acade- foto mia Brasileira de Letras. É o sétimo paraibano a inte- grar o Petiti Trianon – em- bora, em recente conversa informal, alguém tenha sugerido, quem sabe fos- se, o oitavo (?!). Por mais que esfalfássemos, então, o cérebro – eu, Nonato Gue- des, José Octávio de Arru- da Mello, Sérgio de Castro Pinto, Wellington Aguiar, Chico Pereira et alii – não conseguimos listar outros nomes senão o de Pereira da Silva, Aurélio de Lyra Tavares, José Américo de Almeida, Assis Chateau- Celso Furtado, ao lado de briand, José Lins do Rego, Antonio Carlos Secchin e Ana e, final- Maria Machado mente, o próprio Celso Furtado. “Excessivamente Esquerdista”... Mas, para um pequeno Estado como a Paraíba, a Celso, 77, foi eleito para votou em Celso, tido como marca de sete acadêmicos ocupar a cadeira 11, na “excessivamente esquer- devidamente enfardados vaga deixada pela morte do dista” por alguns acadêmi- antropólogo . cos. com as vestes simbólicas O paraibano venceu o fi- Ele, que não se conside- da fechadíssima Casa de lólogo Leodegário de Aze- rada “homem de letras”, já é... vedo Filho por 22 votos a mas “homem de pensa- a glória! Aliás, como di- 15. O voto dos acadêmicos, mento”, convenceu-se, fi- zia Machado, Machado de certamente, é dos mais se- nalmente, a disputar uma Assis, “esta, a glória que cretos, mas até o dono das vaga na ABL por vê-la não fica, eleva, honra e con- Organizações Globo, jor- “uma casa de letras – mas sola”. O Governador José nalista , “uma casa de cultura”. Maranhão, entusiasta das coisas da Cultura, resol- Nobel de Economia? veu doar o fardão do novo Depois de sua eleição para ABL, é difícil, agora, pen- acadêmico, em nome da sar em homenagens maiores – a não ser o Prêmio Paraíba – e ordenou a edi- Nobel de Economia. E Celso é o brasileiro mais cotado ção deste número especial para receber a distinção, pelo conjunto de suas obras. do Correio das Artes, para A Academia foi apenas mais um passo na trajetória circular oportunamente portentosa de um homem que já escreveu cerca de 40 da posse de Furtado. livros, traduzidos para várias línguas, que é Doutor c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2020 | 21 , , , Estaçao Memoria

c em Economia pela Univer- anteriores explicaram e E assim por diante. sidade de Sorbonne, que ‘construíram’ o país do lecionou em importantes passado, a de Furtado ex- universidades, como as plicava e ‘construía’ o Bra- Entre os de Cambridge, na Ingla- sil dos seus dias: era con- Grandes terra, e Yale e Columbia, temporânea de sua própria Gilson Schwartz, da Fo- nos Estados Unidos, além ‘construção’”. lha de S. Paulo, diz bem ao da própria Sorbonne, que escrever que Celso Furtado exerceu também em seu Economista ou “é uma espécie de João Ca- país os cargos de ministro bral de Mello Neto do pen- do Planejamento (Governo Pensador? samento econômico”. Celso Goulart) e da Cultura (Go- Chamamos Furtado, aci- está entre aqueles grandes verno Sarney), que escreve ma, de pensador, ao invés economistas do Mundo para os principais jornais de tratá-lo por economista. que, entre outras coisas, do Brasil e para grandes Mas é o próprio Celso quem estudaram, no Pós-Guer- revistas especializas e de sustenta: “a Economia não ra, e de forma pioneira, os alcance mundial e, last but existe”. Com assim? Veja- problemas do Desenvolvi- not least, viveu o suficien- -se um depoimento seu, mento Econômico, dentro te para ver o seu nome ser bem recente, à imprensa: do binômio Norte-Sul For- transformado num prêmio - Quando, finalmente, aos ma, portanto, ao lado de internacional, “The Celso 26 anos de idade comecei a autores como Gunnar My- Furtado Prize”. estudar Economia de ma- rdal, Raúl Prebisch, Rag- neira sistemática, minha nar Nurkse, Hans Singer e No Kit do MEC visão do Mundo já estava poucos outros. Recentemente, a obra de definida, no fundamen- Sobre a globalização que Furtado foi incluída, por tal. Assim, a economia ocorre au galop em nossos uma “comissão de notá- não chegaria a ser mais tempos, Celso demonstra, veis” designada pelo presi- um instrumental que me mais uma vez, sua percu- dente FHC, dentre aqueles permitia com maior eficá- ciência no trato de proble- 98 livros que necessaria- cia tratar problemas que mas histórico-econômicos. mente serão lidos por alu- vinham da observação da “O processo da mundiali- nos e professores de toda História ou da vida dos ho- zação significa, também, a a rede de ensino público; mens em sociedade. Pouca globalização de problemas. no início dos ano letivo de influência teve a Econo- Somente um Estado que se 1998, as escolas com mais mia, portanto, na confor- volte para o social e que te- de 250 alunos irão receber mação do meu espírito. nha a formação de empre- kits com 300 livros de li- Nunca pude compreender go como prioridade pode teratura, dicionários e en- a existência de um pro- estancar o crescimento da ciclopédias, selecionados blema estritamente econô- massa de desempregados”. conjuntamente por aqueles mico. Por exemplo, a in- Este número especial do “notáveis” e por uma equi- flação nunca foi, em meu Correio das Artes enfeixa pe do FNDE/MEC. espírito, outra coisa senão razoável cópia de traba- O economista Francisco a manifestação de con- lhos, muitos deles inédi- de Oliveira afirmou, certa flitos de certo tipo entre tos, com vistas ao melhor vez, que a obra de Furtado grupos sociais. Da mesma entendimento da contri- vai mais além que outras forma, uma empresa nun- buição de Celso Furtado.E interpretações da realida- ca foi outra coisa senão a de brasileira, “não porque materialização do desejo Texto publicado origi- seja teoricamente superior, de Poder de um ou vários nalmente no Correio das senão porque foi escrita in Artes de 2 de novembro agentes sociais, em uma de 1997 actione. Enquanto as obras de suas múltiplas formas.

| João Pessoa, julho de 2020 22 Correio das Artes – A UNIÃO 6 dfdfdffg produção e foto: r foto:

sem deixar passar em brancas nuvens antigos enleios e desejos artísticos, justamente quando de sua adolescência. O Cinema Por oportuno, gostaria de citar aqui a expressão de um respeitá- vel cidadão do mundo, um reco- em Celso Furtado nhecido “expert” naquilo que fez e soube fazer muito bem em sua área de conhecimento, de longa atuação: “O talento está em saber se orientar entre essas possibili- Alex Santos dades tão variadas”, Celso Mon- Especial para o Correio das Artes teiro Furtado. c

mplo é o universo da cultura e da arte. Isso, se levar- mos em conta que a história dos povos é tão exten- sa e rica quanto seriam os seus matizes em toda sua Celso Furtado teve trajetória. Às vezes, difícil é incutir em cada pessoa a A amplitude de seus pendores criativos nesse universo sua relação com a multicultural. Mesmo em mentes privilegiadas, nas quais possa existir, de algum modo, um certo empo- sétima arte: chegou deramento a uma maior assimilação de conhecimen- tos e de produção. a cobrir a vinda de Há quem se questione, pelo fato de ser, ou não, um verdadeiro artista, de não ter inclinações para as artes, Orson Welles ao teatro, cinema... Entretanto, mesmo “in dubio”, esse mesmo “alguém” consegue, sim, enveredar por seg- Brasil e chegou a mentos outros, como política e literatura, por exemplo. Muitas vezes, seguindo os dogmas mais estatísticos da trabalhar com Paulo existência humana, na economia e seus inúmeros fas- cínios capitalistas, logísticos e de marketing. Mesmo Emílio Sales em Paris

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2020 | 23 c O “essencial da realidade” no Volto à cena não sob um uni- verso historiográfico, necessa- pensamento celsoniano riamente econômico ou político, Nascido na cidade de Pombal, da pelo governo Collor de Melo, mas com um mero enfoque cul- interior da Paraíba, no ano de que fez uma devassa cultural, tural sobre a trajetória de um dos 1920 – sendo agora lembrado em inclusive no cinema nacional, fe- paraibanos mais ilustres da nos- seu centenário –, Celso Furtado chando até a Embrafilme. Nessa sa história contemporânea: Celso foi para o Rio de Janeiro aos 19 época, o paraibano Ipojuca Pon- Furtado. anos de idade para cursar a Fa- tes era secretário de Cultura, o Mas, por que eu? O que tenho culdade de Direito. Formado em que lhe cabia, pelo menos, um eu a ver com política econômica, Direito pela Universidade Fe- pouco de resistência em defesa se minha área é deveras e sobre- deral do Rio de Janeiro, que na do cinema que fora, anterior- tudo comunicação social e cine- época se chamava Universidade mente, o seu “filho pródigo”. ma? Como vincular o nome do do Brasil, sabe-se que, segundo Mas, pelo que constam dos anais insigne economista aos ditames historiadores especializados, culturais cinematográficos da da arte-do-filme, se o próprio Celso Furtado foi um dos primei- Paraíba, essa resistência espera- Celso afirma que suas pretensões ros estudiosos a investigar uma da jamais aconteceu. Depois des- artísticas foram substituídas por relação estreita que existe entre se famigerado e sucedido retro- uma análise mais acurada sobre economia e as manifestações cul- cesso da cultura, inclusive com o o “essencial da realidade”? Aí é turais, não apenas no Brasil. Daí fechamento da Embrafilme pelo que está, realmente, o meu nó a sua presença como Ministro governo, no entanto, criou-se a cego a desatar... da Cultura, alguns anos depois, Lei Rouanet, trazendo o devido Mas esse nó, convenhamos, no comando do presidente José reconhecimento: “Restabelece os se desprende logo quando junto Sarney, entre 1986/1988, sendo princípios da Lei 7.505, de 2 de algumas peças do quebra-cabe- do próprio Furtado a afirmação: julho de 1986”. A rigor, fazendo ças, como a presença do próprio “Toda questão econômica é tam- uma forte referência válida à Lei Celso Furtado na nossa Acade- bém humana, ou seja, histórica, Sarney. mia Paraibana de Cinema, como Patrono da Cadeira 20, figura social e cultural”. Isso vai se ali- foto: reprodução nhar aos reais anseios do próprio retratada pela cineasta - governo de então, que demuda na Vânia Perazzo em seu docu- sua ideia em realidade, criando mentário Celso Depois do Milagre, por decreto a Lei Sarney, após tema extraído do livro O Lon- quase 20 anos de Ditadura Mili- go Amanhecer, editado em 1999. tar no país. Além da relação que teve com E não foi sem razão que, an- um grande nome do próprio ci- teriormente, o periódico Valor nema, Paulo Emílio Sales Gomes, em sua primeira vez estando em Econômico fez um artigo sobre Paris, já em 1946, quando Celso o paraibano, atribuindo a Celso Furtado ingressara no doutorado Furtado a real aplicabilidade das em Economia da Universidade expressões “economia criativa” e Sorbonne, curso concluído em “economia da cultura”, de direito 1948. e de fato. E que o próprio Celso Não obstante esse encontro publicou em livro (1978), sob o fora do Brasil com um grande título Criatividade e Dependência nome do cinema brasileiro, Cel- na Civilização Industrial, quase 20 so já tinha em mente algumas anos após ter criado a Superin- relíquias fantasiosas de meni- tendência do Desenvolvimento Celso Furtado, nice sobre a tão em voga forma do Nordeste – Sudene, em de- o Cinema e Paulo de entretenimento – o cinema. E zembro de 1959. isso se comprova a partir dos re- Durante a gestão do ministro Emilio Sales latos da escritora e viúva de Cel- Celso Furtado no MinC, seu Che- Levando em conta esse per- so, Rosa Freire d’Aguiar, em seu fe de Gabinete Ângelo Oswaldo diário Celso Furtado – Um Retrato Santos escreveu: “Se o governo sonagem brasileiro de tamanha envergadura, reconhecido que Intelectual. buscava um plano econômico, Segundo Rosa, “na infância é por uma página singular na buscava também um projeto cul- dele eram frequentes as incur- História e pelo seu grande feito tural. Por outro lado, havia a pro- sões de cangaceiros que ence- na economia brasileira, sou mais messa da chamada Lei Sarney, navam histórias de violência que era o projeto acalentado pelo uma vez desafiado pelo amigo e envolvendo gente próxima de presidente desde seus tempos companheiro de tantas batalhas sua família, violências que se de Senado, quando tenta propor culturais juntos, o historiador referiam a atos de arbitrarieda- uma legislação de benefícios fis- José Octávio de Arruda Mello, de, prepotência e crueldade que cais para a cultura.” para que o acompanhe em mais eram gestos de heroísmo à wes- Mas, em 1990, a lei foi elimina- uma de suas sagas “honorianas”. tern”. Situações essas que Furta- c

| João Pessoa, julho de 2020 24 Correio das Artes – A UNIÃO c do lembraria num texto autobio- De volta ao Brasil, em 1965 ele re- Em entrevista dada em julho gráfico escrito em seu exílio em solve retornar à Paris, onde fica de 2004, portanto cinco meses Paris. E não foi sem razão que, por 20 anos como professor da antes do seu falecimento, quan- em alguns dos seus trabalhos, própria Sorbonne. E é do próprio do foi questionado sobre suas ele analisa a formação da cultu- Celso a afirmação de que “im- aptidões em arte, o paraibano de ra brasileira, sua realidade e im- pressiona-me como esta cidade Pombal Celso Monteiro Furtado portância, justo no processo de vive dentro de mim...” disse claramente: “Eu me imagi- incremento nacional. Em Paulo Emílio Sales Go- nava ser um homem de letras. Ser Conforme Rosa Freire, Celso mes – O Cinema no Século, um um escritor de ficção. Mas, com o “Ganhou a vida, de início, como calhamaço de mais de 600 pá- tempo, pude perceber que o meu jornalista na Revista da Semana, ginas organizado e prefaciado forte não era a ficção, teatro ou publicação de largo prestígio à por Carlos Augusto Calil, pu- outras coisas, e que o importante época, para a qual escreveu so- blicado pela Cia. das Letras em era captar o essencial da realida- bre a atualidade cultural da Ca- 2015 – ano em que recebi o tal de. Então, percebi que no ensaio pital da República – a presença saltério como presente de ani- eu era muito mais forte.” de Orson Welles, por exemplo”. versário de minha querida filha Agora, se é possível usarmos Cineasta americano que, então, Patrícia Araújo, com carinhoso essa expressão “essencial da rea- filmaria a relação dos jangadei- verbete para que eu pudesse lidade” – da lógica afirmativa ros do Ceará com os mares nor- “voar ainda mais alto nas coi- de Celso Furtado –, poderíamos destinos, imagens que vão mo- sas do cinema” –, anotando a enveredar por reflexões outras, tivar, algum tempo depois, um “orelha” do livro Sérgio Augus- quiçá não muito precisas, mas documentário sobre o próprio to me dá uma dica sutil, porém ajustadas às “coisas” do próprio Welles, realizado pelo cineasta muito interessante sobre a liga- cinema: o registro documental, carioca Rogério Sganzerla. Este, ção de Celso Furtado com Pau- por exemplo. Sendo esse o re- que estaria depois comigo, jun- lo Emílio. Segundo Augusto, o gistro audiovisual do essencial tamente com o folclorólogo José interesse do crítico de cinema da vida, das pessoas e dos fatos Nilton da Silva e equipe, durante brasileiro pela arte-do-filme da nossa realidade, tudo repre- a realização de um fime curta- veio muito mais tarde: “Até os sentado pela Sétima Arte. O que -metragem de ficção intitulado vinte e poucos anos, Paulo Emí- vem a ser, sem mais ressalvas, Guaraobira – Vila de Independência, lio só teve olhos para literatura o documentário. Este, como de realizado nas cercanias de Gua- e política. O cinema foi a últi- pronto, uma categoria das mais rabira e pontos do centro da cida- ma das expressões intelectuais simbólicas e iniciais da nossa ci- de, na primeira gestão do prefei- artísticas a conquistar seu in- nematografia. to Zenóbio Toscano de Oliveira, teresse”. Daí o motivo da rela- Para muitos, uma possível em 1982. ção de Celso Furtado e Paulo indagação de que não terá sido Outro fato que nos leva a um Emílio, a partir de encontros no essa modalidade cinematográ- vínculo de Celso com o cinema Museu do Homem, na capital fica a trazer a verdade da vida está em ‘Celso Furtado, a Histó- francesa. e dos fatos quando mostrada? ria e a Historiografia’, um traba- Esse fato talvez justifique a re- Embora continuo com a convic- lho escrito por João Antônio de lação entre Paulo Emílio e Celso ção – a qual tenho defendido Paula para o Cadernos do Desen- Furtado, este que teve toda sua teoricamente havia muito, em volvimento, no qual o autor asse- formação inicial também pau- publicações e salas de aula, em gura que as circunstâncias da tada na literatura e na política, razão da própria gramática e escolha do tema da tese do brasi- inclusive estudando e se for- lógica do cinema – de que essa leiro, em 1948, foram então rela- mando em Paris, quando se en- “verdade” documentada jamais tadas por Celso Furtado em sua contra com Paulo Emílio, que lhe representaria uma realidade de obra autobiográfica, referindo-se aconselha a aproveitar as opor- caso. Pelo seu discutido víeis à figura extraordinária de Paulo tunidades, dizendo-lhe: “Não ideologicamente autoral expres- Emílio Sales Gomes, então tra- tome a coisa assim a sério. Hoje so em imagens, do simples olhar balhando no Museu do Homem o ‘rayonnement’ (influência) da através do visor de uma câmera. de Paris, dirigido por Paul Rivet. cultura francesa só consiste em Sem maiores discussões, virtua- Foi Paulo Emílio quem informou distribuir títulos aos estrangei- lidade essa quer seja filmada ou, a Celso Furtado sobre a excelente ros que passam por aqui. Como simplesmente, gravada. Coleção Brasiliana do Museu. E nós metecos (imigrados) não Contudo, seria essa uma outra que o próprio Celso reconhece: concorremos com eles, pois nem questão a ser fundamentada na “Logo pude comprovar que se Einstein conseguiu ser professor sociologia dos fatos, também em tratava de belíssima coleção de na Sorbonne, nos afogam em fa- seus instantes mais significati- livros sobre o Brasil, doação pro- cilidades.” (FO, p. 28) vos e peculiares. Quiçá... I vavelmente do governo brasilei- ro. Então, decidi-me de imediato. Estudaria a economia colonial Alex Santos é advogado (OAB 6076), jornalista profissional, Mestre em brasileira no período do açúcar, Comunicação Social e Cultura Contemporânea pela Universidade de Brasília, professor aposentado da UFPB, membro da Academia Paraibana de Cinema época em que ao Brasil coubera (Cadeira 05), autor de livros sobre cinema e televisão, realizador de filmes papel eminente”. Nesse tempo, inclusive premiados, casado, morando em João Pessoa-PB.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2020 | 25 6 Livros

fotos: divulg

‘Pensar o Mundo, Para ação Mudá-lo’ (E) é o mais novo título a se debruçar sobre a vida e obra de Celso Furtado; ‘Diários Intermitentes’ (D), traz o pensamento vivo do economista paraibano

Novas publicações lançam luz sobre o pensamento e a vida de Celso Furtado

André Cananéa Editor do Correio das Artes

rês novos títulos se debruçam sobre a vida e obra de Celso Furtado neste ano em que é celebrado o centenário do autor de Formação Econômica do Brasil. 'Pensar o Mundo, Para O primeiro deles saiu ainda no ano passado, Celso T Furtado Diários Intermitentes 1937 – 2002 (Compa- Mudá-lo' é fruto de nhia das Letras, 2019), compilação dos escritos ínti- mos que o paraibano colecionou a partir da adoles- uma parceria entre a cência, feito pela viúva de Celso, a jornalista Rosa Freire D’Aguiar. EPC, a jornalista Rosa “As primeiras anotações são feitas quando ele é um jovem que está estudando no Liceu Paraibano e vai passar alguns dias, durante o Verão, numa casi- Freire d'Aguiar, viúva nha de pescadores muito pobres, que a avó dele alu- gava em Tambaú”, declarou Rosa Freire D’Aguiar do economista, e a ao Jornal A União, quando veio lançar a obra, em João Pessoa, em novembro de 2019. Academia Brasileira Para a viúva de Celso Furtado, nas entrelinhas desses diários existe um perfil muito profundo de de Letras quem foi o economista e o que ele pensou, o que c

| João Pessoa, julho de 2020 26 Correio das Artes – A UNIÃO c ele agiu. “Então, eu acho que esse do: Pensar o Mundo, Para Mudá-lo um belo texto que escreveu para livro, de certa forma complemen- (Editora A União, 2020) e partiu a Revista Brasileira, publicação da ta, completa a obra autobiográfi- de uma iniciativa da direção da Academia Brasileira de Letras. ca de Celso, que é formada por EPC, organizado pela presiden- Tem também um texto do três volumes”, disse ela. te Naná Garcez, o diretor de economista Edmar Bacha, que Em parceria com a Empre- mídia impressa, William Costa, lembra os tempos em que foi sa Paraibana de Comunicação e o gerente da Editora A União, contemporâneo do paraibano na (EPC), da qual o Correio das Alexandre Macedo, após en- renomada universidade de Yale Artes, o Jornal A União e a Rádio tendimentos com a jornalista e (EUA), além de material valioso Tabajara fazem parte, a Universi- tradutora Rosa Freire d’Aguiar, dos paraibanos Zélia Almeida, dade Estadual da Paraíba (UEPB) viúva de Celso, e com o escritor Neide Medeiros Santos e José reuniu um time de pensadores e tradutor Marco Lucchesi, pre- Octávio de Arruda Filho. que fizeram uma “releitura” da sidente da Academia Brasileira “O objetivo desse livro é aju- obra de Celso Furtado. O resul- de Letras (ABL), que se tornaram dar a compor esse perfil, ainda tado é a trilogia Celso Furtado – A parceiros desta publicação. inacabado de Celso Furtado. Esperança Militante (EPC/UEPB, A obra atua em duas frentes: Afinal, Celso Furtado é uma 2020), que tem sido lançada, em em uma, reúne textos que Celso personalidade tão vasta que, por edições virtuais (ebook), desde Furtado publicou no site da ABL; mais que tenha sido publicados junho. na outra, textos, muitos inéditos, textos e estudos sobre ele, seu A conclusão desse projeto, ca- que resgatam memórias, avalia- perfil ainda não está completa- pitaneado pelos professores Ivo ções e pensamentos acerca da mente concluído. É um homem Marcos Theis (Fundação Univer- vida e da obra do economista pa- que se dedicou a pensar as es- sidade Regional de Blumenau), raibano. truturas políticas e econômicas José Luciano Albino Barbosa e Estão lá, por exemplo, textos das nações, mas também foi um Cidoval Morais de Sousa (ambos de Inácio de Loyla Brandão, que homem, na sua dimensão social da UEPB) e que levou cinco anos atualmente ocupa a cadeira de e espiritual, que se preocupava para ficar pronto, se dará justa- nº 11, que já foi de Celso Furta- com literatura, com a cultura, de mente no dia 26 de julho, quando do, e de Murilo Melo Filho, que modo geral, e com a economia, o terceiro volume vem à público, em uma das últimas ações em que era o forte dele”, avalia Wil- ainda no formato ebook – uma vida, autorizou a publicação de liam Costa. E edição impressa irá sair pela Edi- tora A União, em um box com os três volumes. Em declaração ao Jornal A União, o professor Cidoval Mo- rais detalhou a proposta de cada volume: “O primeiro é fazer re- leitura da obra de Celso Furtado, dialogando com a realidade con- temporânea. O segundo é insti- gar e provocar novas leituras de Celso Furtado, pois, embora te- nha sido um dos escritores mais publicados, se não se publicar sua obra ela ficará esquecida. O intuito é dialogar e a manter na agenda. E o terceiro objetivo é o de que o Brasil precisa de novos Furtados e, por isso, o apelo à i n st igação”. A coleção traz textos da pró- pria Rosa Freire d’Aguiar e de diversos economistas reconhe- cidos em todo o país, como Luiz Carlos Bresser-Pereira e Guido Em parceria com Mantega, dois ex-ministros, Ma- a EPC, trilogia da ria da Conceição Tavares e Can- UEPB tem saído em ebook e vai dido Mendes, além de dezenas ganhar caixa com de outros professores e pensa- obra impressa pela dores da política e da economia Editora A União brasileira. O terceiro e mais recente lan- çamento alusivo ao centenário de Furtado se chama Celso Furta-

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2020 | 27 POESIA Carlos Newton Júnior

ilustração: domingos sávio

Todas as cores do mundo Lição de otimismo Todas as cores do mundo Enquanto houver crianças, flores, aves, nas cores todas da pele; tudo vai bem. Não há o que temer. todos os tons, no profundo A alegria até pode arrefecer unidos, não se repelem. e a estrada se mostrar pouco suave.

Todos os dias na espera Que no âmago de si cada qual cave que o amor cresça e se revele, e plante ali o grão que faz nascer e que brindem nova era a divina esperança de viver, todas as cores da pele. a vela que, enfunada, empurra a nave.

Que o mundo não embranqueça Que os homens se reúnam num conclave todas as cores da pele, e decidam mudar — mas pra valer! e que na luta as mereça, Unidos poderemos, sim, vencer, por mais que o poema zele. forjando, de mãos dadas, nova chave.

Que entre nós a paz floresça, E em cada coração, que se destrave todos os povos imbeles; o ferrolho que o medo nos fez ver. e que o humano prevaleça, Sobram fios e mãos para tecer nas cores todas da pele. e ainda há crianças, flores, aves.

Num tempo justo e fecundo, todas as cores da pele Carlos Newton Júnior é poeta, ensaísta e farão colorido o mundo professor da Universidade Federal de Pernambuco. — todos os homens, mulheres. É autor de vários livros, entre os quais, Vida de Quaderna e Simão (romance) e Canudos - Poema dos Quinhentos (poesia) Mora em Recife (PE).

| João Pessoa, julho de 2020 28 Correio das Artes – A UNIÃO 6 ensaio

ilustração: tonio

As memórias dos outros

Francisco Gil Messias Especial para o Correio das Artes

á vorazes leitores de biogra- particular, no cotidiano, pou- depois. E sempre tenho uma fias, cartas, diários e memó- co ou quase nada me interessa preferência pelos períodos rias. Sou um deles. Nisto a vida alheia. O que sei sobre finais da vida dos persona- não há nenhum mérito, res- os outros, da aldeia ou fora gens-autores porque, nessa H salto, mas apenas uma certa dela, é o que leio em jornais, fase, as revelações já trazem disposição de espírito, um o que vejo na TV ou o que al- o acúmulo das experiências jeito particular de ser, que guém me conta sem que eu vividas, o sumo existencial, as levam a apreciar livros que, indague. Também não rejeito conclusões e os juízos defini- em maior ou menor medida, essas novidades indiscretas, tivos. Muitas vezes, por essa penetram na intimidade de e até as comento com humor, razão, começo lendo o livro personagens que nos atraem quando é o caso; apenas não de trás pra frente, fiel a essa existencial e intelectualmen- as persigo nem procuro, sim- preferência talvez mórbida te. No fundo, trata-se, talvez, plesmente porque me são, no que privilegia o fim e não o de mera curiosidade sobre a geral, indiferentes. começo. Os inícios, em regra, chamada natureza humana, Diários e memórias. Apre- não me atraem. As infâncias, não uma bisbilhotice de fo- cio. Porque neles é o persona- as adolescências, as juventu- foca, mas antes um desejo do gem-narrador falando de si, des, douradas ou não. Impor- intelecto de conhecer o outro com suas próprias palavras. ta-me a maturidade e, princi- em sua verdade mais íntima, Em tese, nada pode haver de palmente, a senectude, a vida para daí colher impressões, mais autêntico, sem esque- completa, sem praticamente reflexões e lições, porque sem- cer, é claro, as inautenticida- mais nada a se acrescentar. pre se aprende algo nesses des cometidas de propósito E, nessa fase derradeira, na- passeios memorialistas. O in- pelo autor, mas aí é a exceção, turalmente, o enfrentamento teressante é que, no meu caso quase sempre desmascaradas da morte, a perspectiva da c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2020 | 29 c extinção iminente, como cada O jornal literário de Ascendino seus pensamentos mais pessoais, um vive e sente sua finitude, as Leite é outro deleite fino. Com a revelando-os, raramente, apenas últimas preocupações, as últi- pitada a mais do fato de o autor à filha dileta, Alzira, para alguns mas vaidades, as últimas ilusões, ser paraibano, o que o aproxi- a maior brasileira de seu tempo. os últimos medos. Isso, sim, me ma mais de seus conterrâneos. Um diário de Carlos Lacerda, o atrai, com uma indiscrição e uma São muitos volumes a reclamar brilhante e contraditório Lacerda volúpia intelectivas quase que uma bela edição que os reúna, de de tantos episódios controversos impróprias. E creio que atrai tam- modo a garantir-lhes a posterida- de nossa política. Um do idoso bém um bom número de leitores, de que merecem. Sem demérito José Américo, nosso estadista, razão pela qual não me constran- para suas outras produções, esse homem reservado, cioso de sua ge escrever na primeira pessoa diário foi a grande obra literária privacidade, de pouco ou quase do singular, pois sei que aqui falo de Ascendino, construção de nenhum derramamento emotivo. por muitos. uma vida inteira, reconhecida O que não teria escrito e revelado, Sobre esses testemunhos pes- nacionalmente pelos mais reno- só para si, um homem de tama- soais, Gilberto Freyre escreveu, mados críticos. Parece-se muito nha estatura e de vida tão rica em com muita propriedade, ele que com os diários de Montello. Não vivências e acontecimentos. Sem sempre foi um leitor atento des- só em sua extensão, mas princi- falar num diário de Machado de sa literatura especial: “É material palmente no conteúdo, misto de Assis, principalmente o já madu- ótimo para a análise e interpreta- memorialismo, reflexões literá- ro, aquele que principia com Brás ção do caráter de um povo ou da rias e filosóficas, sem desprezar Cubas e termina com o Conse- fisionomia de uma época, através a mordacidade e a finura de co- lheiro Aires. Imagine-se o arqui- da personalidade ou simplesmen- mentários personalíssimos sobre vo de sabedoria que seriam essas te da pessoa que, ora pelo exces- contemporâneos ou não. Aqui páginas, sem falar no que seria, so de extroversão, ora pelo gosto também desfila o século passado, provavelmente, um dos mais au- de introspecção revela aspectos em pequenas doses, às vezes ape- torizados testemunhos da tran- interessantes ou traços profunda- nas um aforismo de uma linha, sição do Segundo Reinado para mente íntimos do seu tempo ou arquivo imenso e insubstituível os começos de nossa atabalhoada da sua gente. E não apenas de sua da vida cultural brasileira. República. própria e restrita intimidade indi- E há o diário de Gilberto Frey- Igualmente, dá para imagi- vidual. Traços de patologia social re, de Humberto de Campos, de nar o quanto seria revelador um e não apenas da pessoal”, e acres- Getúlio Vargas (não o dos últi- eventual diário de Millor ou de centou, ainda, o mestre de Apipu- mos anos, infelizmente), de Joa- , apesar de ambos cos, “O gosto pela leitura de tais quim Nabuco, de Herberto Sales, serem improváveis diaristas. documentos... não é, entretanto, de Drummond (O observador no Os personagens mais comple- um gosto comum e fácil. Ao con- Escritório), de Miguel Torga e de xos e menos expansivos é que trário: precisa, em geral, ser ad- tantos outros de que agora não certamente seriam os autores dos quirido. Adquirido aos poucos. É recordo. Que se saiba, muitas fi- mais interessantes diários. Por- um tanto como o gosto pelo uís- guras célebres não cultivaram que quanto a esses, os calados, é que e pela própria cerveja amar- diário, com a disciplina que se que avulta nossa vontade de sa- ga em relação com o entusiasmo exige para tal. O próprio Alceu ber os pensamentos íntimos, as fácil... pelo champanha doce e os Amoroso Lima, que não dormia impressões pessoais, as explica- vinhos de sobremesa”. sem antes escrever nem que fosse ções nunca externadas. As figu- Dos diários que li, um dos que uma linha, um pensamento que ras falantes, comunicativas, nor- se destacam é o de Josué Montello, lhe resumisse as experiências do malmente já se mostram no dia a dois robustos volumes em papel- dia, não deixou, entre suas obras dia, sem prejuízo, evidentemente, -bíblia da Editora Nova Aguilar, publicadas em vida, um diário daquelas que, sem deixar de falar em quase inacreditáveis três mil em sua forma tradicional. Talvez muito, reservam para o diário sua páginas. Todo o século 20 e seus as cartas que enviou por anos, intimidade mais profunda. Jus- principais atores desfilam nessas regularmente, à sua filha monja, celino não nos deixou um diário, páginas, sempre acompanhados hoje já publicadas, façam às vezes mas sim (Navegação dos comentários reflexivos e mor- do jornal que ficou nos devendo. de cabotagem), apesar de raso. dazes do autor. Reconheço que Fico imaginando a delícia que Na área das memórias também há quem não goste de Montello. seria, por exemplo, um diário há tesouros. Delas destaco as de Algumas restrições vão além do de Getúlio que abrangesse os de Melo Franco, escritor enquanto tal, para abran- dias que antecederam sua mor- uma das figuras importantes de ger a pessoa, sua suposta ideolo- te trágica. Quanta coisa não terá nosso século passado. Pura per- gia etc. Não entro nesse mérito, passado por aquela cabeça que sonificação do intelectual com- por falta de maiores informações. dominou o Brasil e hipnotizou os pleto, talentoso e produtivo em Entretanto, fico com a orelha em brasileiros por décadas. Quantas múltiplos aspectos, como jurista, pé e, com cautela, vou, dentro do reflexões, quantos julgamentos político e homem de letras. Autor possível, separando a obra do au- de fatos e de pessoas que fazem de obra vasta e relevante. Mem- tor para reter daquela o que im- parte de nossa história recente. bro de importante estirpe brasi- porta, a despeito da mão que a Getúlio, o homem enigmático, leira, que inclui escritores, polí- escreveu. a esfinge que guardava para si ticos e diplomatas, conviveu em c

| João Pessoa, julho de 2020 30 Correio das Artes – A UNIÃO c casa, desde cedo, com destacadas toda tragicamente dividido entre figuras brasileiras de sua época. o recolhimento dos claustros e a

Seu pai, Afrânio de Melo Franco, tonio ção: mundanidade da vida literária, a um dos líderes de 1930, foi minis- tudo transformando em escrita,

tro de Relações Exteriores do pri- ilustr obedecendo a máxima de Mallar- meiro governo de Getúlio. Arinos mé, segundo a qual “A vida acon- viajou a vida inteira, morou em tece para se converter em livro.”. Genebra e conheceu Roma como Nosso Chico Viana é um dos a palma da mão, chegando até a maiores conhecedores da produ- escrever um livro sobre a velha ção de Villaça, tendo-a escolhido urbe (Amor a Roma). Mas foi em para tema de sua dissertação de seu monumental A Alma do Tempo mestrado (Travessia do mosteiro), que ele rememorou sua caminha- no Rio de Janeiro. Mas aproveitou da pela vida afora, pintando um para conhecer e conviver com o mural que abrange todo o seu sé- autor, chegando a ouvir dele ver- culo, num estilo clássico de mes- dadeiras e íntimas confissões, in- tre da língua. Verdadeiro cidadão dispensáveis para uma fiel com- do mundo, homem civilizado até preensão de sua obra. nos menores gestos, Afonso foi, Villaça, o infatigável. O gordo sem nenhuma dúvida, dos maio- Villaça, quase sempre vestido res brasileiros de seu tempo. de preto, tal como o vi aqui, cer- Memórias deleitosas também ta manhã distante, no auditório são as de Augusto Frederico Sch- do CCHLA/UFPB. Conheceu midt, o poeta, o empreendedor, o praticamente todo mundo que amigo de Juscelino. Deixou dois importava em sua época. Conver- volumes memorialísticos: O Galo sou com Jacques Maritain e com Branco e As Florestas. Leituras Thomas Merton. Deu palestras prazerosas e tocantes, marcadas por esse Brasil afora. Esteve na fa- suavemente pela melancolia que zenda de Raquel de Queiroz, em sempre acompanhou o autor. Quixadá, interior do Ceará, fim Para os anais históricos, entrou de mundo árido, onde, ao chegar, sua narrativa de seu encontro verdes anos), as de Gilberto Freyre foi confundido pela empregada com Getúlio na véspera do sui- (De menino a Homem), as de Gore da casa com uma autoridade ecle- cídio do político, 23 de agosto de Vidal (Palimpsesto) e de muitos ou- siástica: “Dona Raquel, o bispo 1954. Provavelmente, foi a última tros mais. José Américo deu-nos chegou.”. Ele achou muita graça. audiência concedida a um parti- apenas suas memórias da infân- Esteve aqui em João Pessoa com cular pelo presidente já tocado cia (Antes que me esqueça), ficando José Américo, na famosa varanda pela morte. Falaram, inicialmen- a dever a continuação preciosa do Cabo Branco. Tudo registrado te, sobre questões econômicas que não houve. detalhadamente por escrito. E corriqueiras, assunto que, àque- E, se o leitor me permite, não depois repartido gostosamente la altura, certamente pouco im- poderia deixar de falar em meu com os leitores. portava a Getúlio. Mas, segundo preferido, o santo de minha mo- O já idoso Machado, em car- Schmidt, ele ouviu com atenção e desta devoção: Antonio Carlos ta a , escreveu fez perguntas a respeito. Até que Villaça, considerado por muitos que “O passado ainda é a melhor o poeta interrompe a conversa o maior memorialista do Bra- parte do presente.”. Pode parecer prosaica e vai direto ao drama en- sil. Uma vida inteira dedicada passadismo, mas não é. É ape- tão vivido pelo outro. Getúlio lhe aos livros e ao mundo literário, nas a consciência de que, se não responde tranquilamente, com a com seus personagens maiores possuímos o presente, que ainda serenidade dos que tomaram o e menores, os fatos pitorescos da estamos a viver, nem o futuro, destino na mão: “Já tomei minha vida dos escritores, as posses na que ainda está por vir, o que nos decisão”. No dia seguinte, pela Academia e no Pen Club, os ve- pertence com certeza e segurança manhã, como todos os brasilei- lórios, os enterros, as recepções, é somente o que já passou, aquilo ros, um surpreso Schmidt saberia os almoços e jantares íntimos e que não pode mais ser mudado qual tinha sido essa resolução. E festivos, as observações inteligen- (nem pelo onipotente Deus, afir- saberia também que, com aquela tes sobre os homens de letras do mam os filósofos), única matéria audiência no dia anterior, tinha, Brasil e do mundo, feitas com a ( puro pensamento) com que po- involuntariamente, entrado para autoridade de quem muito viajou demos tentar construir alguma a história do Brasil. e muito conviveu. Levou a vida coisa - e compreender . I Tantas outras memórias. As de Stefan Zweig (O Mundo Que Eu Francisco Gil Messias, paraibano de João Pessoa, onde reside, é bacharel em Vi), as de Raquel de Queiroz (Tan- Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e tos Anos), as de Osias Gomes (Ba- mestre em Direito do Estado, pela Universidade Federal de Santa Catarina ruque), as de Ledo Ivo (Confissões (UFSC). É membro da Academia Paraibana de Filosofia e do Instituto de Estudos Kelsenianos. Publicou os livros Olhares – poemas bissextos e A medida do de um Poeta), as de Zé Lins (Meus possível (e outros poemas da Aldeia). Contato: [email protected].

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2020 | 31 Analice Pereira [email protected]

A solidão devora

ato da leitura ilustra muito bem um estado de so- escritório, ao qual deu o nome de lidão. Walter Benjamin (Magia e Técnica, Arte e Po- “La Cueva de laMafia”. Lá traba- lítica, 1994, p. 213) diz isso de uma forma bastante lhava de oito a dez horas por dia poética, quando afirma que “o leitor de um romance em frente a sua máquina de escre- O é solitário. Mais solitário que qualquer outro leitor ver e, às vezes, ao final da jornada (pois mesmo quem lê um poema está disposto a diária, só lhe ocorria de ter escrito declamá-lo em voz alta para um ouvinte ocasional). um parágrafo. Nessa solidão, o leitor do romance se apodera ciosa- Reconhecer essas duas soli- mente da matéria de sua leitura. Quer transformá-la dões, necessárias às condições de em coisa sua, devorá-la, de certo modo. Sim, ele des- leitor e de escritor, auxilia na com- trói, devora a substância lida, como o fogo devora preensão de que a recepção esté- lenha na lareira. A tensão que atravessa o romance tica na literaturapode ser apre- se assemelha muito à corrente de ar que alimenta e ciadaa partir do lugar existencial reanima a chama”. de onde se lê somado ao lugar Num mesmo sentido, consideremos, também, o existencial representado naquilo estado da solidão no ato da escrita. Mario Vargas que se lê. A partir desses lugares Llosa (García Márquez: Historia de Undeicidio, 1971), e imbuídos de tudo o que os con- por exemplo, em sua tese de doutoramento sobre figura, acessamos representações Gabriel García Már- de complexidades humanas que, reprodução quez, descreve como uma vez acionadas na e pela re- “demônios de escri- cepção estética, definem, no leitor, tor” alguns elemen- o grau do gosto e da compreensão tos que acercam o da obra lida, bem como o modo de escritor colombiano, interpretá-la. Assim a literatura dentre os quais des- segue em sua função catártica. taca o “demônio da E neste fatídico ano de 2020, solidão”, que é, além dada a condição ainda mais mar- de condição para sua cante de ser leitor solitário, porque escrita, tema que o isolado socialmente, a leitura lite- perseguiu pela vida rária pode provocar ainda mais inteira. Para escrever reflexões sobre os significados de Cem Anos de Solidão, solidão e de seus temas afins. Des- Garcia Márquez pra- sa forma, é possível que a leitura ticamente se enclau- de uma determinada obra cau- surou durante um se muitas inquietações, devido ano e meio em seu ao momento existencial e/ou ao contexto histórico em que é lida como, por exemplo, ler O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018) Walter Benjamin, no Brasil, no ano de 2020. que cunhou a O romance conta a história de frase: “o leitor de Giovanni Drogo que, almejando um romance é notabilidade em sua carreira de c solitário” militar, aceita a incumbência de

| João Pessoa, julho de 2020 32 Correio das Artes – A UNIÃO 6 clarisser c assumir posto no Forte Bastia- nossa incapacidade de alcançar a ni. Na espera de uma guerra que dor do outro. E, para além dessa

nunca chega, o que pode parecer produção constatação, sentimo-nos solitá- e algo completamente sem senti- r rios porque nos apercebemos ór- do, Drogo é levado a viver a sua fãos de nossa pátria, exilados em “existência errada”, marcada, so- nosso próprio chão, pois a nossa bremaneira, pelo sentimento de solidão não recai apenas na pes- solidão que, sob a ótica de um soa, em seu caráter individual; narrador em terceira pessoa, é ela é também um caráter atual representado de forma oscilante: da nossa nacionalidade. No exer- ora pela sugestão de objetividade cício do amor, acessar a dor do e distanciamento, próprios desse outro se torna quase uma utopia tipo de narrador; ora pela onis- e, portanto, um projeto humani- ciência seletiva pela qual anuncia tário primoroso. sentimentos e pensamentos do Ler o romance de Buzzati protagonista, relacionados à sua num momento em que nos en- angustiada solidão. Então, ler esse contramos tão sozinhos e tão romance num momento em que solitários,ameaçados por um ini- o distanciamento das pessoas é migo invisível e a partir de um imposto por uma pandemia que Capa do livro de lugar social constituído por um acomete o planeta, resignificando Dino Buzzati: país completamente desgoverna- o valor da vida humana, é algo, no ‘obra-prima doé, no mínimo, aflitivo. É possí- mínimo, bastante provocador. insana’ criada vel, portanto, que o romance não Em resenha publicada no li- pelo ‘formalismo causasse o mesmo impacto se lido vro O Discurso e a Cidade (Editora militar’ num outro momento histórico e Duas Cidades, 1993), o crítico An- numa outra condição existencial? tonio Candido oferece uma chave Talvez. Porém o que importa aqui de leitura interessante quando não é apenas definir o tamanho afirma que O Deserto dos Tártaros do impacto, mas a sua própria na- “é a ‘obra-prima insana’ criada do daqueles que supõe amar,mas tureza, já que o romance nos ofe- pelo ‘formalismo militar’, gerando sobressaltado por reflexões que rece uma possibilidade de espe- uma atitude coletiva que parece instigam uma compreensão bas- lho quando podemos confirmar condicionada pela guerra iminen- tante interessante do que vem a em nós alguns aspectos da vida te. Mas como esta nunca vem, ela ser solidão para ele: “Aos poucos ficcional de Drogo. gira em falso no vácuo anódino a fé se enfraquecia. É difícil acre- Nessa relação especular, segui- que tem sido por séculos a vida na ditar numa coisa quando se está mos configurando a nossa soli- Fortaleza, onde o rigor das senti- sozinho e não se pode falar com dão, também, como a nossa “men- nelas, dos turnos de guarda, das ninguém. Justamente naquela sagem mais alta”, testemunhando senhas e contra-senhas se organi- época Drogo deu-se conta de que da nossa janela-muralhaos dias za em relação a nada”. os homens, ainda que possam se passarem, um, dois, cento e vinte Esse “vácuo anódino” a que os querer bem, permanecem sempre dias, limpando a casa, colocan- militares da fortaleza são lança- distantes; que, se alguém sofre, do a mesa, arrumando armários, dos assim se define porque eles a dor é totalmente sua, ninguém vestindo máscaras, enfim, nos- esperam pelo que não vem, por- mais pode tomar para si uma mí- sos afazeres que às vezes pare- que, supostamente, não existe. nima parte dela; que, se alguém cem meio sem sentido também. Suas vidas se restringem a uma sofre, os outros não vão sofrer por Talvez possamos, no movimento rotina de afazeres sem sentido isso, ainda que o amor seja gran- diuturno donascer e morrer do porque a nada eles são conduzi- de, e é isso o que causa a solidão sol, vislumbrar alguma mudança dos. Esse “nada” pode ser inter- da vida”. (BUZZATI, p. 172). no horizonte desse deserto que é, pretado como a própria solidão do A partir dessa reflexão, é pos- igualmente, nossa solidão e a do indivíduo, portanto, o seu deserto sível construir um entendimento nosso personagem em questão. íntimo, e que vem a ser, para Can- do sentimento de solidão a que Talvez essa “amiga das horas” nos dido, a “mensagem mais alta” do fomos submetidos neste ano de ajude a recordar os “duros prazos romance. Das muralhas do Forte 2020: nossa solidão atual não se da vida”, restando a nós oferecer Bastiani, Drogo vê passar, quase restringe a um estado físico/geo- a ela a companhia necessária de sem perceber, mais de 30 anos de gráfico por estarmos impedidos um romance, transformando, as- sua vida, observando diariamen- de nosso convívio social; pode- sim, a matéria lida em coisa nossa te as sentinelas que “semelhante mos compreender nossa “soli- edevorando essa matéria “como o a um movimento pendular, [...] dão da vida” como decorrente da fogo devora lenha na lareira”. I escandiam o caminho do tempo, sem romper o encanto daquela solidão que redundava imensa” Analice Pereira é professora de Língua Portuguesa e Literatura (BUZZATI, p. 24). Brasileira do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Em sua autoestima desgastada, Paraíba (IFPB). Escreve sobre literatura e, vez ou outra, aventura-se pela Drogo vive no Forte Bastiani isola- ficção. Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2020 | 33 6 polêmica

guns documentos a jornalista re- lativos ao inventário de seu avô, Fred Trump, pai do Presidente dos EUA. Susanne publicou re- Acordo portagem no NYT – que recebeu o Prêmio Pulitzer de 2019 - so- de confidencialidade bre a obtenção de vantagens tri- butárias no inventário de Fred e interesse público Trump, que renderam a seu filho Donald, ao menos 413 milhões de dólares. Gustavo Martins de Almeida Mary resolveu então escrever Especial para o Correio das Artes sobre o litígio judicial abran- gendo esse inventário, ocorrido entre 1999 e 2001, que terminou jornalista Susanne Craig, do jornal The New York Times, num acordo com cláusula de não imaginava o que obteria, quando, em 2017, foi pro- confidencialidade, de modo que curar Mary Trump, sobrinha de Donald Trump, para nada poderia ser publicado so- obter informações a respeito do seu tio. Arredia a prin- bre a família, salvo se todos os A cípio, a psicóloga acabou concordando em entregar al- signatários concordassem com a publicação. Mary se ressente da morte precoce de seu pai Fred Trump Jr., por alcoolismo, segun- ção

a do ela derivado das pressões so- fridas por seus familiares, prin- cipalmente o Presidente. O iminente lançamento do li- fotos: divulg fotos: vro Too Much and Never Enough, How My Family Created the World’s Most Dangerous Man (“Muito e Nunca Suficiente, Como Minha “Muito e Nunca Família Criou o Mais Perigoso Suficiente”: livro Homem do Mundo”), pela editora de Maryl L. Trump Simon & Schuster (ainda inédito chegou a ser vetado pela Justiça no Brasil), chegou a ser suspenso americana, mas foi temporariamente (“temporarily liberado dias depois restraining order”), no dia 30 de e sai, nos EUA, com junho pelo Juiz Hal Greenwald, c uma tiragem de 75 mil cópias

Livro escancara litígio envolvendo inventário do avô, que acabou rendendo a Donald Trump, mais de 400 milhões de dólares

| João Pessoa, julho de 2020 34 Correio das Artes – A UNIÃO foto: Pixabay

O argumento do magistrado foi: será que um acordo de confidencialidade c da Corte Superior do Estado de do por Mary, já que, ao celebrar o envolvendo relações familiares, imóveis e aspectos patrimoniais, Nova Iorque, que acatou um pe- contrato de edição, a autora afir- celebrado 20 anos atrás tem o mesmo dido de Robert Trump, irmão do mara peremptoriamente que não efeito no momento em que Trump se presidente, para sustar a edição, havia qualquer impedimento a torna uma pessoa pública? impressão ou distribuição do publicação do conteúdo do livro. livro de Mary S. Trump sobre a Relembre-se que a mesma edi- Família Trump, inclusive o presi- tora, Simon & Schuster, acaba de dente Donald Trump. publicar o livro de John Bolton, ma que, segundo o livro, Donald Porém, em 2 de julho, o Ma- ex-assessor de segurança nacio- teria pago um colega para fazer gistrado Alan D. Scheinkman, nal de Donald Trump, The Room seus exames de colégio, que sua de uma Corte Recursal de Nova where it Hapenned (em tradução irmã, a juíza federal aposentada York, reformou a decisão de sus- livre, “A sala onde tudo aconte- Maryanne Trump Barry, teria pensão temporária com relação a ceu”), que teve tentativa judicial dito, ainda segundo Mary, que o editora, e autorizou-a a publicar de proibição frustrada e já ven- irmão não teria condições de ga- o livro, mas não o fez em relação deu 780 mil exemplares em cinco nhar a eleição presidencial, e que a autora Mary Trump. semanas. teria cinco falências. Já a autora Assim, a editora pode publi- O caso envolve dois aspectos Mary, que é psicóloga, questiona car o livro – seria lançado em 23 fundamentais: o alcance de acor- o caráter narcisista do tio, que se- de julho, mas foi adiantado para do de confidencialidade, mesmo ria uma pessoa “tóxica”. 14 de julho - no entanto a autora que atinja fatos de interesse pú- Portanto, persiste a discussão não pode revelar o seu conteú- blico superveniente, e a boa-fé de sobre a possibilidade de divul- do. O argumento que ele usou editora que assinou contrato com gação de fatos privados em rela- foi bem semelhante ao que sa- autora, dizendo-se sem impedi- ção a pessoa pública! Fake news e lientei em outro artigo; será que mento para publicar um livro, e realidade são questões centrais um acordo de confidencialidade que parece não ter correspondi- atualíssimas, ligadas ao “info- envolvendo relações familiares, do à realidade. tainment” mundial, em que cada imóveis e aspectos patrimoniais, A liberdade de expressão e pessoa é receptora, mas também celebrado 20 anos atrás, quando liberdade contratual são os ve- produtora e emissora de conteú- Donald Trump estava longe de tores desse fato. Até que ponto o do. Liberdade de expressão mais ser candidato a presidente, tem acordo de confidencialidade, ce- que nunca em evidência, abalan- o mesmo efeito no momento em lebrado em 2001, quando aparen- do um ditado da vetusta política que ele se torna uma pessoa pú- temente não havia interesse de brasileira, segundo o qual o im- blica? Se efetivamente ocorrer a Donald Trump em se candidatar portante é a versão e não o fato. proibição, como serão compostos a Casa Branca pode ser desconsi- Em paralelo, a editora que as- os prejuízos suportados, relati- derado? Qual o alcance da vida sinou contrato de boa-fé, segundo vos à impressão, adiantamentos, privada de pessoa pública? consta, pode ser punida? A de- divulgação, venda de direitos O jornal inglês The Independent, manda judicial está apenas come- para outros países, etc. Os ori- em edição de 7 de julho1, infor- çando e o enredo promete. I ginais foram entregues em 7 de maio e, em 25 de junho, já come- 1 https://www.independent.co.uk/voices/ çou a produção, que está com 75 mary-trump-book-niece-summary-highlights- mil exemplares prontos e outros too-much-and-never-enougha9606671.html milhares sendo distribuídos. A editora sustenta que adqui- riu o livro num leilão com mais Gustavo Martins de Almeida é advogado, mestre e doutor nove concorrentes, que foi sur- em Direito, membro da Comissão de Direito Autoral, preendida com a notícia do acor- Entretenimento e Digital da OAB e IAB. Consultor do Sindicato Nacional dos Editores de Livros. Escreve para o site do de confidencialidade assina- Publishnews.com.br, Mora e trabalha no Rio de Janeiro

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2020 | 35 6 festas semióticas Amador Ribeiro Neto [email protected]

Reinaldo Moraes, romancista

einaldo Moraes (1950) é paulistano, formado em Se isto não interessa à feitura Administração pela Getúlio Vargas. Romancista, estética da linguagem da obra, roteirista, tradutor, contista, cronista, dramaturgo. sem dúvida dá um frisson à leitu- Como fotógrafo, é autor da bela e polêmica foto da ra. Máscaras e noves horas à parte, R capa do disco Todos os Olhos (1973), de Tom Zé. é sim um afago no ego de gregos e Em Maior que o Mundo (2018), seu mais recente paraibanos. Claro que é. romance, Reinaldo Moraes, como de costume, faz No novo romance, Kabeto é o do protagonista seu alter ego maeio acordado, meio espelho do escritor e, ironicamen- dormindo, como gosta de dizer. te, é um escritor com bloqueio cria- tivo. Vive na cidade de São Paulo. Na verdade, viver diz pouco da relação que Kabeto mantém com a

ção cidade. Ele respira em osmose com a a metrópole. Com um gravadorzi- nho K7 em punho, sobe e desce a c fotos: divulg fotos:

Reinaldo Moraes: como de costume, em ‘Maior que o Mundo’ ele faz do protagonista seu alter ego meio acordado, meio dormindo; abaixo, capa de ‘Pornopopéia’, obra-prima do autor

| João Pessoa, julho de 2020 36 Correio das Artes – A UNIÃO 6 festas semióticas c rua Augusta, zanza por Pinheiros, do púbico e crítica. Infelizmente Maior que o Mundo, é um ex-droga- Pompeia, Perdizes, Centro e algu- o país, literária e culturalmente, do, em crise com a criação, sem ter ma periferia. No ranger dos ovos, mudou menos que pensamos, nas sequer a ideia inicial para um ro- Kabeto e Sampa estão impregna- últimas três ou quatro décadas. mance. Começa a gravar falas pe- dos e amalgamados um no outro Dezessete anos se passaram las ruas de Sampa à cata daquela com tal intensidade que a própria para que o autor lançasse um novo que pode ser a frase que inaugura- linguagem reflete intrépida a im- título. O que desmente o papo con- rá seu romance. Acredita que um pregnação mútua. servador, careta e, quiçá, maledi- bom romance se abre com frase de Nem sempre Sampa esteve ar- cente de que R. Moraes descobriu efeito. Sem este abre-te Sésamo, raigada na narrativa de Reinaldo a fórmula do sucesso com drogas nada dará certo. Com ela, tudo Moraes. No romance de estreia, e obscenidades em seus romances. fluirá milagrosamente. Tanto Faz (1981), ela é um ponto de Mas foi depois de 24 anos que Assim, sob sol e chuva, lá está partida de Ricardo Mello (observe ele retomou o fio da meada deTan - Kabeto com seu gravadorzinho K7 que o protagonista tem as iniciais to faz ao publicar aquele que é con- tentando achar a frase shazam! A e o mesmo número de sílabas do siderado sua obra-prima: o roman- narrativa anda, vários persona- nome do autor), que vive em Paris. ce Pornopopéia (a pedido do autor gens surgem. Eles interferem na Aqui, o texto de Reinaldo Mo- o livro não usa a nova ortografia), vida de Kabeto. Coisa rara. Uma raes é marcado por uma lingua- que é, antes de mais nada, rigoro- novidade esta interação de Kabeto gem radicalmente fragmentada, samente bem escrito. E revela ser com outros personagens. Inclusive pleno de sexo, drogas e bebidas. escrito por um autor que conhece sua mãe, com quem tem uma rela- Tudo em excesso. E sem um eixo minuciosamente a língua portu- cionamento conflituoso no início direcionador. Todos os persona- guesa. Por isso, sabe tirar proveito da narrativa, agora passa a ter voz. gens que aparecem bebem, fazem dela em vários sentidos. Um deles, A tal ponto que, no final, a hostili- sexo, drogam-se e continuam, sem o humor. dade, ou ao menos a indiferença, dizer de onde vieram e para onde O narrador é um escritor/ci- se abranda, chegando a ser quase vão. Seus planos, destinos, objeti- neasta junkie. Este estado de du- ternura. vos. Quem sabe? Para que saber? pla imaginação lança a narrativa a, O próprio Kabeto passa de jun- Tudo ao léu. no mínimo, uma raiz quadrada de kie a ex-cocainômano. Assume Indo na contramão da literatu- todas as formulações fictícias que sua vida de solitário e passa a vi- ra engajada da época, o livro es- o leitor vai encontrar pela frente. ver assim, sem as drogas, as bebi- gotou três edições rapidamente. Isso já é matematicamente burles- das, o sexo incontrolável. Arruma Era o tempo da abertura política, co. Faz rir. Mas pode zombar. Ser o apartamento kitnet e planeja a luta pelas diretas. A inovação da delicado no sorriso. Ou gaiato na retomada do trabalho na editora. linguagem e a liberdade temática risada. Parceiro ou perverso. To- Reinaldo Moraes é um escritor de Tanto faz, consideradas por uns davia sempre riso. Nunca siso. coloquial, com grande domínio alienação, e por outros libertação, O livro, com suas quase 500 da língua portuguesa e que opera de fato oxigenaram a cena nacio- páginas, tem conquistado público um cruzamento dos códigos alto e nal. e crítica desde o lançamento em baixo da cultura popular e erudita Quatro anos depois veio Aba- 2009. O personagem Zé Carlos é com admirável desenvoltura e se- caxi (1985), romance linear da um cineasta fracassado que sobre- renidade. O leitor desliza por seu primeira à última linha. Uma li- vive de fazer vídeos promocionais texto com leveza e gostosura. Ler nearidade rigorosamente bem es- para empresas. Até que um dia qualquer um de seus romances é truturada, agarrando o leitor num isto se torna insuportável. Exauri- um entretenimento de sabedoria texto apaixonante. do, se lança no mundo das drogas brincante. É sentir aquele frisson- Nada de suspense, mas nova- e das bebidas. O sexo logo entra zinho gostoso de quando se ouve mente muito sexo, drogas e bebi- para completar a trindade das e se forrozeia ao som de Jackson das. E o mesmo coloquialismo de complicações que irão surgir. do Pandeiro ou ou linguagem, fazendo o texto fluir O texto, como sempre, enrique- ou Flávio José ou sem entraves. Quincas, o prota- ce-se com expressões de gírias Chico Cézar ou ou ou... gonista, passa uma temporada em próprias da época e das cenas e Maior que o Mundo é o livro Nova Iorque e depois desembar- performances do momento. O hu- inaugural de uma trilogia de Rei- ca no Rio onde vive uma grande mor e a decepção alternam-se no naldo Moraes. O segundo volume aventura de sex and drugs. vaivém da euforia e depressão. A está pronto e prometido para ser Se o tema insiste em bater na narrativa segue o ritmo dos pen- lançado desde o final de 2019. Por- mesma tecla, a linguagem ousa ir samentos de Zé Carlos, alterados tanto, a qualquer hora estoura por na direção do conhecido. E aí o au- pelas drogas, bebidas, suas fanta- aqui. Estamos a postos. Sanfona, tor demonstra o domínio da nar- sias. Seus quarenta e dois anos, o zabumba e triângulo na ponta da rativa. Diálogos vibrantes e uma sonho do cinema, o sonho da lite- agulha. Que venha. I sintaxe impecável. ratura. O próprio sonho, a vida. Os dois primeiros romances se Já Kabeto, protagonista de complementam de tal forma que acabaram sendo relançados num único volume. E não deixaram de Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico de literatura continuar encantando e assustan- e professor da Universidade Federal da Paraíba. Mora em João Pessoa (PB)

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2020 | 37 6 ensaio

Ilustração: tonio

Suicídio – a (in)transcedência

Irani Medeiros Especial para o Correio das Artes

filósofo argelino Albert Camus escreveu em o do desesperadamente por uma derradeira Mito de Sísifo que o suicídio era “problema fi- explicação, mas ao constatar a nossa solidão, losófico verdadeiramente sério”. Já Fernando porque todos dormem, desistimos de nossa in- O Pessoa disse assim: “Por que vivo, quem sou, tenção, pois como abandonar um mundo onde o que sou, que me leva? Que serei para morte? se pode ainda estar sozinho?” Para a vida o que sou? Cerca-me o mistério, a O filósofo romeno tinha uma propensão ilusão e a descrença. O meu pavor de ser, nada para um adeus provocado. Basta lermos sua há que te vença! A vida como a morte é o mes- obra, o Mau Demiurgo ou Encontros com o Suicí- mo ma l!”. dio. Dizia Cioran: “Faz bem pensar que a gente Colocamos aqui a visão de alguns pensado- vai se matar.” Em uma entrevista concedida res sobre o tema, tais como: Emil Cioran, Santo em 1995, declamou: “Na minha juventude, eu Tomás de Aquino, Jean-Jacques Rousseau. As- vivi todo dia com essa ideia do suicídio. Mais sunto controverso e muito delicado. tarde também, e até agora, mas talvez não “Por que não me mato?”. Essa pergunta foi como a mesma intensidade. E se eu ainda es- do filósofo romeno Emil Cioran (1911-1995), tou vivo é graças a essa ideia. Eu só pude su- que apesar disso não se suicidou, mas dese- portar a vida graças a ela, ela foi meu suporte: jou fazê-lo muitas vezes. Questionamentos ‘És mestre de tua vida, podes matar-te quando como esse são típicos da psicologia suicida. O quiseres’ e todas as minhas loucuras, todos problema do enfretamento da morte a pretex- meus excessos, foi assim que eu pude suportá- to de libertação, mais do que coragem, exige -los. E pouco a pouco essa ideia começou a se consciência de que tudo está perdido e não há tornar algo como Deus para um cristão, um mais saídas a garantir que a vida vale a pena apoio; eu tinha um ponto fixo na vida”. Cio- ser vivida. Os casos de suicídio são marcados ram não se suicidou, morreu de morte natural por um traço peculiar: a solidão. Suicidas são, aos 84 anos. amiúde, solitários e dão adeus ao mundo mer- O mundo hodierno, estigmatizado pelo gulhados na solidão; se não é assim, vejamos consumismo e imediatismo do sistema ca- o que nos diz Cioran do cenário propício ao pitalista, remete o ser humano a viver uma suicida. “Quando levantamos à noite buscan- vida desprovida de qualquer sentido ou a ter c

| João Pessoa, julho de 2020 38 Correio das Artes – A UNIÃO foto: divulgação um intento racional e não uma insanidade ou uma fuga gratui- ta, determinada por um evento trivial imposto pela vida. Daí te- rem os estoicos criado termo eu- logos exagogé – “saída racional” – deixando claro que a morte de si não é um evento banal, movido por uma emoção qualquer. Já Cí- cero interpreta a filosofia estoica assim: “A ideia de manter-se ou não na vida deve ser escrupulosa- mente analisada, pois, às vezes, o sábio, mesmo se feliz, deve aban- donar a vida, e o néscio, mesmo se infeliz, deverá continuar vi- vendo.” Para o estoicismo, a morte vo- luntária não é saída, como que- riam os epicurius, para os so- Emil Cioran: filósofo frimentos. O que se postula na c uma existência absurda, acompa- romeno dizia que se doutrina estoica é a resignação e nhada pelo asco, pela náusea, tal mantinha vivo graças a o desprezo de todo tipo de sofrer; idéia de se matar; morreu qual a de Roquentin, personagem de morte natural aos 84 entretanto se o sofrimento ou a de Sartre; ou ainda leva-o ao de- anos dor impedem o homem estoico de serto e vazio da alma. Essas são viver racionalmente, melhor dei- algumas das peculiaridades do xar esse mundo. mundo atual. O ser humano en- Ainda para os estoicos “o sui- tediado com tal cenário e decep- cídio é visto como um ato de ra- cionado com os seus problemas zão, cumprido após uma fria ava- insolúveis, o que lhe vem logo à seguirá escapar realmente à dor, liação dos pós e dos contras; um mente, sem dúvida, é aquela ideia à má sorte, ao absurdo, à ausência gesto lúcido, racional e consciente à que Emil Cioran se refere e que de sentido, à futilidade da felici- que permite abandonar uma vida Nietzsche enaltece: “A ideia do dade”. na qual o sofrimento, a desespe- suicídio é um poderoso consolo; Mas segundo os epicureus rança, a indignidade tornaram-se ela ajuda a passar mais uma noite (epicuristas), para quem a vida implacáveis tiranos.” ruim.” deve ser tomada sempre pelo pra- Por sua vez, Epicteto, modera- zer, não sendo desse modo, a me- damente, defende uma posição Coragem lhor saída é a morte, pondo um mais branda. Ele, inspirado no ponto final em todas as questões. exemplo de Sócrates, sustenta que ou Covardia. “Se a vida, ao invés de ser fonte só num caso muito particular a O suicídio não é coisa dos dias de felicidade e prazer, torna-se prática de tentar contra a própria atuais, remonta à antiguidade. dolorosa, mórbida, geradora pe- vida deve ser levada a cabo, qual Vamos lembrar o nome de Egésia, rene de sofrimentos e aflições, seja, em obediência a um sinal di- filósofo representante do hedo- não mais nada de natural e justo vino. nismo de característica cirenaica. que matar-se, saindo dela por li- Como se vê, o suicídio, ao me- Egésia tinha a alcunha de Peisi- vre decisão.” Portanto, conforme nos na concepção estoica, de certo thánatos, isto é aquele que per- Rossano Pecoraro, “apenas o sá- modo não é um ato de covardia, suade a morrer. Assim, por ser bio pode calcular o preciso mo- como sustentava Aristóteles e defensor aberto e incentivador mento de dar adeus ao mundo e Platão. Já da Idade Média, o suicí- do suicídio, foi proibido pelo Rei sair deste com honra quando a dio é raechaçado, implacavelmen- Ptolomeu de dar aulas, pois sua hora chegar.” Já no Fédon do qual te, sem nenhum tipo de incerteza. docência era tão convincente que Montaigne se utiliza nos Ensaios, O suicídio era um pecado imper- muitos de seus alunos encaravam qual seja, “filosofar é aprender a doável. Matar-se era uma afronta a morte como poucos encarariam, morrer.” a Deus, que deu o sopro de vida, fitamente, o sol do meio-dia. Para os estoicos, o tema da o animus, à materialidade huma- A posição de Egésia é uma das morte era uma questão natural, na. Daí Santo Tomás de Aquino mais radicais. Assim, no sentido pois a filosofia estoica assume afirmar que “suicídio é sempre em que cultua o suicídio, morrer uma postura de total indiferença pecado mortal, porque vai contra é libertar-se; portanto, para ele, “o e resignação a todos os reveses à caridade e à lei natural.” E verdadeiro fim da ação humana que a vida oferecer. Nesse plano, não é a satisfação do prazer, mas morrer é, antes de tudo, um ato a exclusão da dor, por quantos es- de conformidade com o logos, Irani Medeiros, poeta e filósofo forços, o homem faça, jamais con- em que a morte voluntária de ser paraibano.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2020 | 39 6 ao rés da página Tiago Germano [email protected]

Sobre livros e cabras

eu pai é zootecnista. Era mais fácil de explicar na infância, quando eu podia dizer simples- mente que ele vivia de cabras. M Da mesma forma que ele pode dizer hoje que o filho dele é es- Ilustração: tonio critor, e vive de livros. Óbvio que um escritor não vive apenas de livros. Como zootecnistas também não vivem somente de cabras. Mas, da mesma forma que eu nunca me arrisquei a perguntar, por exemplo, do que vivem os zootecnistas – ou mes- mo como vivem os zootecnistas, se já existem os fazendeiros, os frigoríficos e, sobretudo, os ve- terinários para viver das cabras –, meu pai nunca se arriscou a perguntar do que vivem os es- critores senão dos livros – ou como vivem os escritores, se já existem os editores, os distribui- dores e, sobretudo, as livrarias para viver disso também. Livros, obviamente, são mui- to diferentes de cabras. Para começo de conversa, livros são, convenhamos, bem mais fáceis de se encontrar do que cabras – embora não sejam tão fáceis de se vender. Um livro no Brasil custa, em média, R$ 30. Um es- critor ganha, geralmente, 10% do preço de capa do seu livro. Você não precisa ser um matemáti- co, tampouco um zootecnista c

| João Pessoa, julho de 2020 40 Correio das Artes – A UNIÃO 6 ao rés da página c ou um veterinário, para concluir Ilustração: tonio que não dá para viver disso. Sim, escritores são péssimos em mate- mática, mas não é esse o ponto: eles sabem que jamais consegui- rão vender, digamos, um livro por dia. E sabem também que, ainda que conseguissem, não dá para fazer, sequer, uma refeição no Brasil com R$ 3 no bolso. Eu não sei quanto custa uma cabra. Eu não sei quanto dinheiro um fazendeiro deve gastar nela, quanto de lucro ele consegue pelo seu leite, pelo seu couro ou pela sua carne, e quanto disso precisa ser investido em veterinários – e em zootecnistas, claro. Meu pai, entretanto, conseguiu susten- tar toda a sua família, eu e mais outros dois irmãos mais novos, junto com a sua esposa (que não é zootecnista, mas trabalhava jun- to com ele no lugar onde ele era). Uma criança custa muito mais que um livro – muito mais que uma cabra até. Cuidar de uma criança envolve, inclusive, o in- não sei exatamente o que pode o problema: ele toma a cabra de vestimento em livros e, depen- nos ensinar sobre a crise – não volta. dendo da intolerância à lactose aquela que meus pais enfrenta- Eu não sou zootecnista, sou ou da sensibilidade do paladar, ram nos anos 1980, quando toda escritor. É muito possível que, se o investimento em cabras (no seu esta história começou –, mas a substituíssemos a cabra por um leite, no seu couro, na sua carne). que a minha geração está enfren- livro, nesta história, ela terminas- Neste ponto não sei exatamente tando agora, quase 40 anos mais se da mesma forma, com a famí- para onde o raciocínio quer me tarde. O que sei é que tudo isso lia ainda muito pobre e com fome, levar, mas acho importante frisar me lembra uma outra história – mas sem um problema a mais em que, diferente dos meus pais, mi- que, não por acaso, li num livro sua vida (a cabra ou o livro, que nha esposa e eu somos um casal – que já tive a oportunidade de afinal ocupa muito espaço). Mas de escritores sem filhos, partidá- contar por aqui e que vou repetir, também é possível que, dentro rios da ética animal e um tanto porque sei que não foi muito lida. do livro, a família achasse uma resistentes à carne de buchada. Trata-se da anedota da famí- solução para um outro problema: Atualmente, contemplamos lia que, muito pobre e com fome, o do político que os ludibriou, ge- aturdidos (como meus pais, na pede a ajuda do político de uma rando um problema para fazê-los época deles, contemplaram) uma pequena cidade. O político, preo- esquecer do anterior. É possível, recessão econômica e uma revo- cupado com os seus votos e a sua também, que o político terminas- lução nas comunicações, uma cri- reputação, se dispõe a ajudar e se tomando o livro de volta (au- se que hoje não envolve apenas presenteia a família com uma ca- toridades costumam se intimidar a decadência do livro em papel, bra. A cabra, entretanto, começa quando descobrem o poder de mas de todo o nosso ganha-pão: a fazer sujeira na casa, destruir a um “amontoado de coisas escri- jornais, revistas, editoras, distri- plantação da família no quintal e tas”). Mas eis a principal diferen- buidoras e livrarias. Mais grave acabar com a pouca comida e o ça entre um livro e uma cabra: só que isso, contemplamos um fe- pouco sustento de que a família o primeiro rende um patrimônio nômeno político e social de des- dispunha. Eles voltam ao político que ninguém, jamais, conseguirá prezo a esta cultura analógica e a que, de novo, se dispõe a resolver te roubar. I apologia não de uma nova cultu- ra, digital, mas de uma incultura, que faz a cultura de massa pare- cer erudita, até. Tiago Germano é escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018) Eis, enfim, um parágrafo sem e do livro de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017), indicado ao cabras, numa pequena fábula que Prêmio Jabuti. Mora em João Pessoa.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2020 | 41 6 cantinho do conto Rinaldo de Fernandes [email protected]

O encontro

ão veio como ele, impetuoso, queria. Veio aos poucos, comedida. E, para além da amurada, tinha um rio com areias nas margens, os amarelos do pôr do sol. Podia dizer agora aquilo que o torturava. Podia anunciar-lhe a flor que trazia no bolso. Mas conteve-se. Observou o rio, a regra da corren- N teza. Que é seguir sem sustos – até a cachoeira. I

Ilustração: tonio

Rinaldo de Fernandes é escritor, crítico de literatura e professor da Universidade Federal da Paraíba. Mora em João Pessoa (PB).

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