Academia de Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie Revista Acadêmica

Academia de Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie Instalada em 02 de outubro de 1956

6ª Edição – Julho de 2017

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Índice

A Academia dos Estudantes e a Revista Acadêmica...... 05

Membros da Academia dos Estudantes...... 06 Conselho de Veteranos e Membros Honorários...... 07

Edital para novos membros...... 08

Textos...... 09

Fim...... 41

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A Academia dos Estudantes e a Revista Acadêmica

Academia de Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie nasceu em 02 de outubro 1956 por iniciativa dos estudantes da Faculdade de Direito que, unidos pela alma exploradora dos primeiros anos da Universidade, resolveram fundar uma entidade capaz de desenvolver o espírito literário dentro dos diversos cursos da instituição. Após as primeiras décadas, a Academia perdeu adeptos e acabou se tornando uma instituição sem membros ativos. Nesses anos, diversas ações foram executadas com o objetivo de reerguê-la, mas, apenas em 2012, por iniciativa do Centro Acadêmico João Mendes Jr., órgão de representação estudantil da Faculdade de Direito do Mackenzie, finalmente, a Academia de Letras dos Estudantes foi refundada. Atualmente, a Academia conta com 40 cadeiras, ocupadas exclusivamente por estudantes dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade. Após a formação, os membros compõem o Conselho de Veteranos, em número infinito. A finalidade da Academia de Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie é fomentar a produção e o debate literário dentro da Universidade, contribuindo para o desenvolvimento pleno dos estudantes e da literatura nacional. A Academia de Letras dos Estudantes tem como irmã a Academia Mackenzista de Letras, entidade fundada em 2015 por ilustres escritores vinculados à Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Desde 2015 a Academia de Letras dos Estudantes publica a “Revista Acadêmica”, um instrumento de divulgação, promoção literária e fomento intelectual.

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Membros da Academia dos Estudantes

Estudantes Membros - 1º Sem/2017 Cadeira Patrono Estudante 1 Dante Alighieri Thomas Pagano Brundo Gasparetto 2 Gregório de Matos Danilo Souza Costa (Direito) 3 Luis Gama Leonardo Ribeiro (Direito - Mestrado ) 4 Álvares de Azevedo Leonardo Spinola Alcântara 5 Augusto dos Anjos Cadeira Vaga 6 Ana Paula Ricco Terra (Direito) 7 Monteiro Lobato Cadeira Vaga 8 Fernando Pessoa Márcio José Silva (Educação, Arte e História da Cultura - M.) 9 Carlos Drummond de Andrade Danielli Morelli (Doutorado - Letras) 10 Mario Quintana Cadeira Vaga 11 Evandro Lins e Silva Bruna Bianca Brandalise Piva (Direito) 12 Leonardo Mariuzzo Plens (Direito) 13 Nelson Rodrigues Cadeira Vaga 14 Clarice Lispector Aidil Prado (Direito) 15 Antonio Carlos Jobim Cadeira Vaga 16 Vinicius de Moraes Jonathan Estevam da Silva Martins (Direito) 17 Otávio Coelho (Direito) 18 Mia Couto Cadeira Vaga 19 Cadeira Vaga 20 José Saramago Verimar Guimarães (Direito) 21 Noemi Macedo (Direito) 22 Luís Vaz de Camões Luiz Roberto Rodrigues Junior (Direito) 23 Carlos Mota (Direito) 24 João Guimarães Rosa ‎Breno Silva Oliveira (Direito) 25 João Cabral de Melo Neto Joao Carlos Lopes da Silva (Direito) 26 Cecília Meireles Luiza Paz da Cunha (Direito) 27 Miguel de Cervantes Saavedra Felipe Pereira Gallian (Direito) 28 Umberto Eco Cadeira Vaga 29 Alexandre Dumas Mariana Seminati Pacheco (Letras - Mestrado) 30 Gonçalves Dias Ayran Oliveira Michelin (Direito) 31 Lima Barreto Lucas Marques Silva (Direito) 32 Caio Fernando Abreu Felipe Batista (Direito) 33 Cora Coralina Clara Bressan (Direito) 34 Johann Wolfgang von Goethe Gabriella Cristine Escudero Vapsys (Direito) 35 Não definido Cadeira Vaga 36 Não definido Cadeira Vaga 37 Não definido Cadeira Vaga 38 Não definido Cadeira Vaga 39 Não definido Cadeira Vaga 40 Não definido Cadeira Vaga

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Conselho de Veteranos e Membros Honorários

Antiga Conselho de Veteranos - Formados 8 Fernando Pessoa Felipe Righetti Ganança (Direito - Formado - 2013) 7 Monteiro Lobato Karina Azevedo Simões de Abreu (Direito - Formada - 2014) 12 Jorge Amado Larissa Martinez Arten (Letras - Formada - 2015) 15 Antonio Carlos Jobim Wilson Victorio Rodrigues (Direito - Formado - 2016) 4 Álvares de Azevedo Arthur Fernandes G. Rodriguez (Direito - Formado - 2016) 5 Augusto dos Anjos Gabriel Possamai Boneto (Direito - Formado - 2015) 1 Dante Alighieri Aurélio Tadeu Luiz Barbato (Direito - Formado - 2015) 15 Antonio Carlos Jobim Vinicius Caruso (Engenharia Civil - Formado - 2017) 19 Manuel Bandeira Beatriz Campos (Direito - Formada - 2017) 7 Monteiro Lobato Sarah Machado Acuña (Direito - Formada - 2017) 28 Umberto Eco Guilherme Ferreira Leite Belmudes (Direito - Formado - 2016) 10 Mario Quintana Marco Antônio Ferreira Lima Filho (Jornalismo - Formado - 2017) 18 Mia Couto Mariana Santos Brito (Biologia - Formada - 2016)

Membros Honorários Guilherme Ramalho Neto Ex-Presidente da ABAMACK (2011/2013) Armando Iazzetta Antigo membro da Academia (1956) - Direito - Mackenzie Nelson Câmara Presidente da AML - Direito - Mackenzie

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Edital para novos membros

A Academia de Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie comunica a todo o corpo discente da Universidade que foi publicado o Edital para composição de 14 (quatorze) vagas abertas na Academia.

Art. 1º O processo para seleção dos 14 (quatorze) membros da Academia de Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie será conduzido por Comissão Especial indicada pelos atuais membros.

Art. 2º. Estão aptos para participar do processo seletivo os estudantes dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Art. 3º. Os candidatos deverão enviar, entre os dias 12/06/2017 a 09/07/2017, pelo e-mail [email protected] : I – Folha com nome completo, idade, curso, semestre, turma, número de matrícula, e-mail, telefone e nome do Facebook. II – Carta de motivação, de apenas uma página. III – 3 (três) textos de sua autoria, de qualquer natureza, com limite de 10 (dez) páginas cada (não há limite mínimo). IV – 1 (uma) crítica sobre qualquer livro de literatura, com limite máximo de 5 (cinco) páginas e mínimo de 02 (duas) páginas.

Parágrafo único. Todos os textos devem ser enviados em formado .PDF.

Art. 4º. A Comissão confirmará o recebimento de todos os e-mails enviados nesse período, a fim de confirmar a inscrição.

Art. 5º. A Comissão divulgará o resultado até o dia 30/07/2017, na página do Facebook da Academia e por e-mail aos selecionados.

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TEXTOS

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Leonardo Spínola Alcântara

Inundação

Sentimental chuva Semente de pensamentos pluviais Líquidos como alma tua Escorrendo entre meus dedos, oh doce lua Ver-te toda noite, ouvir-te cantar Distante, mas tão perto Rodopiando em teu olhar A doce lágrima se perde na chuva A chuva enche as ruas As pessoas As nobres, pobres almas Que não possuem a felicidade de te ver De dizer... Porque tão sortudo sou? De maneira sorrateira, fortuita a vida te trouxe E o tempo... Te trouxe E te trazendo me inunda Como a chuva que escorre pela janela ao som da cidade me inunda E inunda os olhos E inunda a inspiração E inunda...

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Beatriz de Campos

Análise do Conto “Terpíscore” de Machado de Assis

O conto “Terpsícore”, de Machado de Assis, inicia-se com uma cena matinal, em que os dois protagonistas interagem brevemente, logo após despertarem. Já nessa cena inicial, é possível vislumbrar a linha essencial do enredo: as dificuldades financeiras que assombram o casal. Sob a usual narrativa machadiana, ficamos sabendo de vários detalhes, lançados pelo autor ao longo do conto, acerca da mentalidade de Porfírio e de Glória quanto às formas de utilização de suas economias. Em uma narrativa em que os fragmentos dão ao leitor alguma noção do todo, ficamos sabendo que o casal atravessa um difícil período de penúria econômica, devido, em grande parte, à mentalidade de Porfírio em relação à forma de despender o parco dinheiro que recebe por meio de seu trabalho. Porfírio é apresentado como um personagem de bom coração, de formação religiosa, sem maiores falhas de caráter, mas essencialmente descompensado em relação a sua própria condição social e às possibilidades dela decorrentes. Seu casamento com Glória foi celebrado em festa exuberante, “com muitos carros e baile até de manhã”. Consta do conto que a festa “perdurou na memória de todos, e servia de termo de comparação para as outras festas do bairro, ou de pessoas conhecidas”. O dia seguinte, contudo, chegou rápido, e Porfírio, marceneiro, “voltou logo para a tarefa de todos os dias”. O ofício de marceneiro, contudo, não lhe rendia o necessário para que ostentasse o padrão de vida por ele desejado. De fato, as “alegrias da primeira fase trouxeram despesas excedentes, a casa era cara, a vida foi-se tornando áspera, e as dívidas foram vindo, sorrateiras e miudinhas, agora dois mil-réis, logo cinco, amanhã sete e nove.”. Uma reviravolta se dá quando o marceneiro ganha na loteria, o que dá ao leitor a esperança de ver os personagens vencendo a batalha que travam desde a primeira cena. Logo descobrimos os planos de Porfírio para utilizar o dinheiro ganho, que incluíam uma grande festa e um vestido de seda para Glória. O quadro que não se anuncia explicitamente é evidente: o dinheiro, novamente, ia se esgotando (e tudo sugere que em breve os protagonistas retornariam à condição anterior). O conto termina com uma cena da festa idealizada por Porfírio. Ele está feliz. Glória, ao que tudo indica, também. O “oficlide roncava alguma coisa, enquanto as últimas velas expiravam dentro das mangas de vidro e nas arandelas”. As obras de um artista são sempre, de certa forma, abertas. Os limites que podam a interpretação são imprecisos e, em alguns casos, há quem diga que sequer devem existir. O presente conto não traz consigo contornos que o distinguem do que há de essencial na obra machadiana. Como bem escreve o genial e festejado Antônio Cândido, a obra de Machado é repleta de “um senso profundo, nada documentário, do status, do

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duelo de salões, do movimento das camadas, da potência do dinheiro. O ganho, o lucro, o prestígio, a soberania do interesse são molas dos seus personagens...”. Mas essa característica se soma à outra, que, talvez, seja a maior responsável pela grandeza do autor. Queremos falar do que o estudioso supra referido denomina de “tom machadeano”, uma matriz formal por meio da qual “podemos compreender a profundeza e a complexidade duma obra lúcida e desencantada, que esconde suas riquezas mais profundas”. Nessa esteira, “os tormentos do homem e as iniquidades do mundo aparecem nele sob um aspecto nu e sem retórica, agravados pela imparcialidade estilística”. O conto, em sua condição de obra aberta, fez florescer em nós duas interpretações fundamentais. Ambas relacionam-se à identidade, mas a primeira diz respeito ao que Porfírio pensa de si mesmo segundo os olhos da sociedade e, a segunda, ao que Porfírio pensa de si mesmo segundo os olhos de sua esposa. O problema da identidade é recorrente na obra de Machado. As indagações fundamentais acerca de quem sou eu, em que medida eu existo por meio dos outros, de onde provém minha autenticidade, formam um conjunto de questões que, com certa frequência, são o substrato de muitos dos seus contos e romances. Porfírio é um personagem que constrói sua própria imagem a partir da imagem que os outros ostentam sobre ele (ou melhor dizendo, do que ele imagina que os outros pensam sobre si). Não seria um exagero afirmar que o Porfírio que conhecemos por meios dos fragmentos lançados pelo autor existe, em grande medida, por meio dos outros. O já citado Antônio Cândido, ao estudar um outro conto de Machado, denominado “O Espelho”, analisa, com sua habitual perspicácia, a questão da identidade em Machado. No aludido conto, “um moço, nomeado Alferes da Guarda Nacional (a tropa de reserva que no Brasil Imperial se tornou bem cedo um simples pretexto para dar postos e fardas vistosas a pessoas de certa posição), vai passar uns tempos na fazenda de sua tia. Esta, orgulhosa com o fato, cria uma atmosfera de extrema valorização do posto, chamando-o e fazendo que os escravos o chamem a cada instante “Senhor Alferes”. De tal modo que este traço social acaba sendo uma “segunda alma”, indispensável para a integridade psicológica do personagem”. Porfírio, a exemplo do Alferes da Guarda Nacional acima mencionado, também pretende ostentar um determinado traço social que lhe diferencie e atribua uma distinção que, de certa forma, lhe é essencial para a construção íntima de uma imagem que pretende ter de si mesmo. Em relação à autoimagem de Porfírio, sufragada pelo corpo social, destacam-se vários trechos do conto. Com efeito, já por ocasião dos preparativos do casamento, “A futura sogra propôs-lhe que fossem a pé para a igreja, que ficava perto; ele rejeitou a proposta com seriedade, mas em particular com a noiva e os amigos riu da extravagância da velha: uma coisa que nunca se viu, noivos, padrinhos, convidados, tudo a pé, à laia de procissão; era o caso de levar assobio.”. Sobre a festa, registra o autor que “foram bodas de estrondo, muitos carros, baile até de manhã. Nenhum convidado queria acabar de sair; todos forcejavam por fixar esse raio de ouro, como um hiato esplêndido na velha noite

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do trabalho sem tréguas. Mas acabou; o que não acabou foi a lembrança da festa, que perdurou na memória de todos, e servia de termo de comparação para as outras festas do bairro, ou de pessoas conhecidas.” Por detrás de uma narrativa que não traz consigo maior encantamento e que não deixa maiores vestígios sobre o tipo psicológico de Porfírio, encontramos aqui um trecho em que o narrador expõe a festa e sua repercussão, sempre sob a perspectiva da visão dos outros. Mesmo Porfírio, em sua rejeição da proposta da sogra, fala em “levar assobio”, referindo-se novamente não tanto ao que ele próprio poderia conceber da situação, mas sim ao que os outros conceberiam. Essa questão, não claramente anunciada, mas evidente nas entrelinhas lançadas por um escritor subterrâneo, que escreve sugerindo o não escrito e que nos faz encontrar no não anunciado o que há, na sua obra, de melhor, mais lúcido e mais afeito às características humanas existentes (ainda que improváveis), nos brinda, já após o ganho na loteria, com mais trechos que evidenciam essa forma utilizada por Porfírio para se compreender. De fato, Porfírio, ao promover a festa final, “queria festa de estrondo, coisa que desse o que falar”. E o faz, deixando antever o retorno dele e de Glória à miséria inicial. Quanto à imagem construída por Porfírio a partir da perspectiva de Glória, existem contornos, também não explicitamente anunciados, mas de extrema relevância para a compreensão do personagem. A começar pela primeira vez em que Porfírio a viu. Escreve Machado que “Nem foi pela cara que ele se enamorou dela; foi pelo corpo, quando a viu polcar, uma noite, na rua Imperatriz. Ia passando e parou defronte da janela aberta de uma casa onde se dançava. Já achou na calçada muitos curiosos. A sala, que era pequena, estava cheia de pares, mas pouco a pouco foram-se todos cansando ou cedendo o passo à Glória. (...) Da rua, Porfírio cravou nela uns olhos de sátiro, acompanhou-a em seus movimentos lépidos, graciosos, sensuais, mistura de cisne e de cabrita. Toda a gente dava lugar, apertava-se nos cantos, no vão das janelas, para que ela tivesse o espaço necessário à expansão das saias, ao tremor cadenciado dos quadris, à troca rápida dos giros, para direita e para esquerda. Porfírio misturava já à admiração o ciúme (...)”. A cena é primorosa e Machado, procedendo com uma digressão, tira de foco Porfírio para detalhar a sensualidade de Glória. O escritor, geralmente conciso em detalhes, oferece múltiplos fragmentos imagísticos ao leitor relacionados à beleza, à contundência, à graça da dança de Glória e à beleza e sensualidade do seu corpo. Tudo indica, aliás, que Glória fez brotar em Porfírio desejos profundamente carnais, o que se pode inferir da descrição que a caracteriza como mistura “de cisne e de cabrita”. É de se ver, ainda, que também nesta cena, muito embora o foco seja Glória, os sentimentos de Porfírio insistem em se construir levando em consideração a perspectiva dos outros. É precisamente essa forma de enxergar a cena que faz Porfírio ser invadido pelo ciúme já na primeira vez em que a viu. O conto, ademais, explicita que a sensualidade de Glória nunca deixou de inebriar Porfírio que, dias antes de ganhar na loteria, mas já muito esperançoso, a observou imaginando-lhe em trajes melhores “que mostrasse bem a beleza do corpo da mulher”. Novamente, Porfírio se constrói a partir da perspectiva dos outros acerca de sua mulher.

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Ao longo do conto, percebemos, como já dito, que Porfírio também desenvolve sua imagem a partir da imagem que a mulher tem dele. Não seria absurdo afirmar que, muito provavelmente, a mulher lhe instigue ainda mais os desejos de ser bem sucedido e ostentar distinção social. Uma hipótese razoável seria a de que a mulher, no imaginário de Porfírio, fosse e sempre tivesse sido muito para ele, não merecendo a condição social que se lhes impunha. Outra possível vertente de raciocínio envolve Glória como, a um só tempo, elemento determinante da autoimagem de Porfírio e instrumento de consecução da imagem dos outros sobre ele (sua beleza e graça como fatores que integram a visão que os outros podem conceber sobre ele próprio). Por fim, importante ressaltar que Glória assume, a todo tempo, papel menor, o que é perfeitamente compreensível, pois, como já dito, Machado explora bem as obsessões de Porfírio e são elas que determinam o futuro do casal. De qualquer forma, vê-se que a mulher, a todo tempo, oferece contraponto aos devaneios do marido, sugerindo que poupe dinheiro. Sua beleza talvez seja importante elemento na construção da autoimagem do marido, mas seus conselhos não são suficientes para modificá-las. Porfírio é um personagem que se identifica a partir dos outros, estando aí a origem de sua compulsão. Ele gasta seu dinheiro para os outros, a fim de construir sua imagem. Sua existência tem, de certa forma, essa base, daí podendo-se concluir que, mesmo que ganhasse uma quantia muito maior na loteria, despenderia da mesma forma, porquanto o dinheiro, aqui, não é concebido como meio de sustento, mas sim como meio de construção do próprio eu.

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Clara Bressan Corpo Roxo

-Agente Woodwork, você tem cinco minutos. - disse a enfermeira com uma prancheta na mão.

-Obrigado Eliza- o agente respondeu antes de ela sair. Sendo uma cidade pequena (aproximadamente 50.000 habitantes) era praticamente impossível não conhecer todos pelo nome.

A mulher deu um pequeno sorriso antes de abrir a porta e se retirar. O detetive Woodwork estava sozinho.

Com muito cuidado, ele abriu o plástico que envolvia o corpo. Ele abria devagar porque pensava que quanto mais demorasse para abrir, menos aquilo se tornaria realidade.

Mas eis que ele abriu tudo. E a primeira coisa em que seus olhos repousaram foi no seu rosto. O que antes era um rosto vívido, que transbordava alegria com seus olhos castanhos escuros e seus lábios grossos, agora era um rosto pálido, quase roxo pelo processo de putrefação do corpo.

O agente Woodwork já havia visto milhares de corpos nesse estado. Faz parte da rotina de sua profissão. Foi como ele veio para a cidade de Two Mountains: seu chefe em Nova York disse que ele deveria investigar o assassinato de uma jovem de 17 anos chamada Rebeca Cooper. E assim ele o fez. Três meses depois, ele descobriu o assassino e o prendeu. Seis meses depois, ele se apaixonou por uma mulher mais nova que ele, Emma Reddish. E, nove meses depois, eles se casaram e ela estava grávida.

Durante todo esse tempo na cidade, Woodwork conviveu com poucos assassinatos na cidade de Two Mountains. A maioria desses crimes ocorria nas cidades vizinhas e, algumas vezes, ele até ia para Nova York a mando de seu chefe.

Por isso que hoje, as 7:20 da manhã, quando ele recebeu um telefonema de que havia uma garota morta na floresta das montanhas, ele estranhou. E sua filha, Alice ainda não havia voltado para casa. Não demorou muito para ele ligar os pontos.

E agora ele estava lá. Olhando para sua filha. Ou melhor, o que restou dela. Ele começou a chorar de uma forma lenta. Não queria desperdiçar esses últimos minutos com ela chorando. Certamente não era como ela gostaria que ele passasse. Ela adoraria que ele lhe contasse uma de suas muitas histórias como detetive ou que lhe trouxesse um novo caso e eles tentassem resolve-lo. Ou que eles fossem pescar. Ela adorava pescar.

Mas ao lembrar dela foi inevitável. Ele começou a derramar lágrimas. Não chorar não tornaria aquilo menos real. Apenas prolongaria o sofrimento. Apenas demoraria mais para ele perceber que não haveriam mais cafés da manhã em

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que sua filha desceria correndo as escadas, pegaria um donut e uma xícara de café, daria um beijo nele e na sua mulher e sairia correndo com medo de perder o ônibus para a escola. Não haveriam mais aquelas noites em que ele sairia exausto da sua sala na delegacia apenas para encontrar sua filha na recepção tagarelando com a secretária. Não haveriam mais aquelas reuniões na escola em que a diretora chamava todos os pais e ele e sua mulher eram sempre elogiados pelo comportamento dedicado e responsável de Alice. Não haveriam mais aqueles dias em que ele estava simplesmente cansado de tudo ou se sentindo triste por nenhuma razão em particular mas ao olhar para o sorriso de sua filha ele imediatamente melhorava.

Ele se ajoelhou e tocou nas bochechas de sua filha, geladas e sem vida. Ele encostou a cabeça com cuidado no seu pescoço, procurando por algum milagre de que seu coração ainda estivesse batendo. Nada.

Ele estava chorando muito. Não conseguiu mais se segurar. Ele olhou de novo para o rosto de sua filha. Seus olhos fechados, seu nariz estático e sua boca levemente aberta como se ainda respirasse ou tivesse algo para falar.

Ele se inclinou sobre o rosto da filha e disse:

-Não se preocupe, minha querida. Eu vou achar quem fez isso com você. Ele vai pagar caro pelo que fez.

E assim, ele levantou e se retirou do quarto. Ele não precisava de mais tempo com a filha. Ele precisava de tempo para resolver esse caso. Para fazer justiça para ela.

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Felipe Pereira Gallian

Era uma vez um castelo

Em uma tarde ensolarada na zona leste de São Paulo, Pedrinho e seus amigos jogavam bola em um campo de várzea, na final do campeonato da rua. A oportunidade de empatar o jogo surgiu em um lance de bola parada, quando Clayton, que não vinha jogando muito bem na partida, sofreu uma falta grave que rendeu um cartão amarelo para Léo, que fazia uma partida exemplar. Quando Pedrinho posicionou a bola, pronto para realizar a cobrança a lá Juninho Pernambucano, o chão tremeu e todos os meninos que ali jogavam a pelada se desequilibraram e caíram no chão. Seria possível que aquilo fosse um terremoto? Em pleno dia útil no bairro da Mooca? Os garotos, que logo perderam o interesse pela partida que jogavam, foram averiguar a situação. Nunca saberemos quem ganharia a final da Copa da Rua. Pedrinho e sua turma correram pelo campo e logo viram algo bastante incomum. Lá embaixo, atrás do campo de várzea que jogavam bola, surgira um enorme edifício de pedra que não estava lá no dia anterior. Chegando mais perto, os meninos conseguiram visualizar direito a obra colossal que surgira diante deles. Era um castelo medieval gigantesco. De dentro da fortaleza saiu um homem velho, porém aparentemente com uma boa forma física. Ele vestia trapos rasgados e antigos e um capacete de metal na cabeça. A primeira coisa que os garotos ouviram do ancião foi: “Valete frates!”. O velho convidou Pedrinho e sua turma para se banquetearem dentro do castelo, dizendo que precisava se atualizar recorrentes sobre no mundo que acabara de chegar. Os meninos recusaram o convite do jantar (todos já haviam ouvido de seus pais que não se deveria aceitar convites de estranhos) porém aceitaram conversar brevemente com o homem misterioso, para contar o que acontecia de relevante no mundo atual. Depois de prestarem suas informações, Clayton, aquele que não jogava bem na partida mais cedo, exigiu ouvir um pouco sobre o velho, para que ele revelasse sua identidade. O ancião contou que seu nome era Sebastião de Avis, que ele havia sido um rei muito importante, porém teria se perdido durante uma batalha contra os turcos e nunca mais encontrou o caminho de volta para casa. Os garotos resistiram bastante para não começarem a rir da cara daquele lunático. Depois de algumas horas ouvindo sobre os erros que Sebastião havia cometido naquela batalha, e também uma ou duas ofensas aos os espanhóis, Pedrinho liderou sua turma de volta para casa, se despedindo ali mesmo do velho, prometendo que iriam voltar para ouvir mais histórias. Ao chegarem em casa, todos os garotos contaram a seus pais a história inusitada do velho que surgira junto com o castelo, afirmando este que era rei e que havia se perdido numa guerra. Os pais dos meninos ficaram perplexos e logo se reuniram com a vizinhança para comentar o causo. Decidiram averiguar o caso e se dirigiram ao local descrito por seus filhos. Ali encontraram o castelo e o velho, que juntava um monte de pedras junto às muralhas da fortaleza, como se quisesse montar uma barricada. Por mais que os pais tentassem discutir com Sebastião sobre os motivos em que ali ele decidira se instalar e, principalmente, como havia um velho conseguido construir um enorme castelo do dia para a noite, a conversa não se fazia produtiva. Foi ai que a polícia se envolveu no caso.

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Após um chamado, chegaram ao local 4 viaturas, fortemente armadas, para lidar com o velho caduco. Porém, Sebastião ainda assim ofereceu resistência, berrando desacatos medievais e afirmando que só estava lá pois possuía uma única missão que era salvar os herdeiros do grandioso povo do Reino de Portugal. Como já era de se imaginar, Sebastião foi preso, tanto por desacato quanto por resistência à ordem policial. Ainda assim, não se calou durante todo o trajeto na viatura. Chegando ao Departamento Policial, o rei perdido foi submetido à um exame de sangue (se acreditava fortemente que ele estava sob efeito de drogas) e logo após foi colocado em uma cela isolada. Durante muito tempo Dom Sebastião ficou ameaçando a todos em sua volta, afirmando que, quando retomasse seu trono, aqueles que o haviam encarcerado seriam os primeiros a serem punidos. Os policiais, que conheciam muito pouco sobre o mito de Dom Sebastião de Avis, ignoraram com certo receio as ameaças proferidas pelo velho louco. Todavia, naquela mesma noite a médica que realizava o exame de sangue de Sebastião, ouvia suas manifestações. Theresa, este era seu nome, imediatamente lembrou-se de suas aulas de história do colegial e assim conseguiu encontrar algum nexo entre os discursos proferidos pelo prisioneiro e com ele foi conversar. Dom Sebastião exaltou sua felicidade por ter encontrado pelo menos uma pessoa que reconhecia sua majestade. Falou com a médica durante toda a noite, relatando os mais minuciosos detalhes da batalha em que havia lutado e, posteriormente, desaparecido. Depois de ouvir toda a história e ter se emocionado com a narrativa, Theresa decidiu se despedir do senhor, pois começara a sentir pena do sujeito Como se sabe, foi necessário respeitar o prazo de 24 horas para a análise do exame. De manhã, quando Theresa foi procurar Sebastião em sua cela, este havia desaparecido! Procuraram em todos os lugares mas nada encontraram. Uma viatura foi conduzida até o local em que o castelo surgira, porém, para a surpresa de todos, a imensa construção também já não estava mais no mesmo lugar. As pessoas da vizinhança não relataram nenhuma atividade estranha, nenhum barulho de obras ou demolição. Pedrinho e seus amigos haviam reiniciado a Copa da Rua, sem nem mesmo terem se despedido do velho misterioso. Pelo que parecia, tudo voltara ao normal. No final, o caso foi dado como encerrado e o velho foi dado como morto. Pouco se falou sobre esses eventos nos dias que se seguiram dentro da delegacia, dentro de duas semanas, todos haviam esquecido sobre a existência daquele homem misterioso, menos Theresa. A médica voltou para casa desconcertada, sem saber muito bem em que pensar. Por um momento teria acreditado que finalmente as coisas se ajustariam em sua vida, que o universo havia concedido a todos uma solução totalmente inusitada para todos os problemas que o país vivenciava. Lembrou-se de seus tempos de escola, em que o mito despertava sua imaginação e lhe trazia, ainda que da forma mais bizarra que fosse, uma esperança, uma sensação de realização. Aquele passado havia se aproximado tanto dela na noite passada e agora havia escapado repentinamente. Às vezes, tudo o que se espera é um sinal do universo, um acontecimento que, de uma forma de outra, seria capaz de orientar e mostrar às pessoas o caminho correto, o caminho da salvação. Muitos acreditam que tudo seja uma grande superstição, uma grande brincadeira de mal gosto. Mas Theresa não. Após abrir

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os resultados dos exames de sangue a médica conheceu a verdade. “Ainda há tempo!” pensava junto ao seu travesseiro “Ainda acontecerá!”. Repetindo para si mesma estes pensamentos, a perita médica dormiu em paz. Valete Frates!

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Mariana Seminati Pacheco

Irmãs ou a Promessa da Cerejeira

Aquela linha ainda está lá, Guardada por soldados de ambos os lados, Entretanto me pergunto, Eles impedem que as pétalas rosas cheguem até você? Mesmo nessa primavera, Onde as armas nos são apontadas?

Querida irmã, por que faz isso? Sendo instável, fazendo birra, Fingindo ser forte, quando ainda chora Escondida, em seu quarto fechado Onde ninguém pode ver?

Sente aqui dentro da casa azul, e olhe-me de frente, Diga-me, lembra-se dos dias que enfrentamos? Lembra quando víamos o sol nascer das sacadas reais? Ou de como vencemos os exércitos de nossos primos? Foram tantas vezes que caímos, E nos escoramos para levantarmos.

Doeu, eu lembro As cicatrizes ainda existem. Quase esquecemos quem éramos, Nossas palavras, o que dizíamos? Nossos nomes, não reconhecíamos. As arvores regadas com sangue e lágrimas, Não floresceram aquele ano.

A guerra acabou, eu disse Você discordou, Eu lutei por nós, Mas você amou um homem Que disse que iria salvar-nos, E por aquelas palavras Aceitou nos separar.

Ainda o ama? Mesmo morto, ainda guarda esse sentimento? Ou é apenas fingimento? Ou tem medo? Me conte, querida irmã, E nos acertemos enfim. Chega de falsa paz!

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Querida irmã, aqui a luz brilha, Os muros dos palácios estão lá, Com os arranha-céus, As cerejeiras ainda crescem, E os jovens fazem suas juras Antes do alistamento, Por sua causa.

Lembra-se daquela primavera? O ano era 1949, antes de tudo acontecer, Me prometeu, embaixo de uma cerejeira Que iriamos ficar juntas, para sempre. Em 1950, cortamos essa árvore.

Quando vejo as flores fartas Sopradas pelo vento, Eu me esperanço em plantar uma nova árvore onde hoje tem essa linha branca.

Entretanto, nesse momento, Em que temo por nossa sobrevivência, Só me resta pedir que cada uma dessas pétalas Leve um pouco da saudade sentida no Sul Ao seu coração no Norte.

Ainda não é tarde...

*Porque precisamos falar das Coreias, do Norte e do Sul.

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Marcio da Silva

Candido, puro, Candido Antonio

Querido e amado professor, Anos tristes, anos sombrios. Como povo, ainda temos brio? Parece que só nos resta o temor.

Querido e amado professor, Que estão fazendo à nação? Demolem e destroem sem pudor, Àquilo que foi erguido com paixão.

Querido e amado professor, Há alguma virtude nesse país? Parece que todos viramos Alice. País das maravilhas, terra de horror.

Querido e amado professor, Você se foi, partiu. Nosso coração está em dor. Antonio Candido, candido educador

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Marcio da Silva

Habilidades para a vida: Pensamento crítico

Como podemos definir o que é crítica? Há uma grande confusão sobre isso. Alguns acreditam que a crítica é uma busca de defeitos em algo ou em alguém. Para ficar menos desagradável, alguns inventaram a expressão ‘farei uma crítica construtiva’ e destroem a pessoa com palavras duras, maldosas e sem fundamento. Então vamos à origem dessa palavra: crítica nasce de uma palavra (kritike), que significa a arte de discernir o valor das pessoas ou coisas depois de uma análise cuidadosa. Portanto, ‘crítica construtiva’ é um disfarce para algo que não é crítica. O pensamento crítico é essencial para vivermos bem porque nos ajudará a escolher amigos, evitar enganos, compreender as pessoas, aprender a perdoar, viver bem com as pessoas, ensinar as pessoas (especialmente filhos), sermos humildes e descobrirmos mentiras. O pensamento crítico seria natural das pessoas, mas somente os que têm autonomia conseguem praticar essa qualidade. Existem várias estruturas na sociedade para impedir que tenhamos pensamento crítico (CHAUÍ, 2001, p. 409-411). Qual a melhor maneira de retirar de alguém seu pensamento crítico? Colocando outras coisas em seu lugar ou produzindo uma ideologia, que parece crítica, e oferecendo a nós de tal maneira que imaginemos que não é necessário pensarmos ou que outras pessoas, por serem mais estudadas, por exemplo, podem pensar melhor que nós mesmos. Mas pense no seguinte: quem pode entender seus problemas ou dores melhor que você mesmo? Assim, o pensamento crítico deve ser produto da pessoa. (2011, p. 56), disse o que se faz às pessoas para desqualificá-las do pensamento crítico:

Eu acho que não houve fracasso algum nesta matéria, mesmo porque o principal requisito de sobrevivência e de hegemonia da classe dominante que temos era precisamente manter o povo chucro. Um povo chucro, neste mundo que generaliza tonta e alegremente a educação, é, sem dúvida, fenomenal. Mantido ignorante, ele não estará capacitado a eleger seus dirigentes com riscos inadmissíveis de populismo demagógico.

Darcy não disse que o brasileiro é chucro, mas que é mantido assim para que seja possível sua manipulação. Bem, isso é um problema mundial e suas consequências também. Aliás, Marx (2015, p. 74, 75) explicou que há três estruturas básicas da sociedade: a infraestrutura, que compreende as forças e relações de produção (condições de trabalho entre empregador-empregado, a divisão do trabalho e relações de propriedade, na qual as pessoas entram para produzir as necessidades e comodidades da vida); a estrutura, como a forma para produção social da vida, onde os homens estabelecem determinadas relações necessárias e independentes de sua vontade; e a superestrutura, que a cultura, instituições, estruturas de poder político, papel social, rituais e o Estado. Acontece que, a manipulação da superestrutura leva à produção da ideologia, a falsa impressão de que estamos rumando para algum lugar quando, na verdade, estamos patinando em chão de lama, ou seja, não vamos a lugar algum.

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Embora manipular a ideologia, de maneira individual, seja impossível, evitar ser manipulado por ela é possível se aprendermos a desenvolver o pensamento crítico. Um exemplo: a televisão fala sobre policiais mortos em serviço; nós ficamos muito tristes que esses nobres homens percam a vida trabalhando, não é justo. Mas veja como funcionará a ideologia: o 10° Anuário Brasileiro de Segurança (2015, p. 6) pública relara que, no ano inteiro, morreram 358 policiais militares, algo horrível. Mas a mídia ‘esquece’ que a polícia militar matou em 2015, por dia, nove pessoas, totalizando no ano 3.345 pessoas. Onde entrará a ideologia? Com a seguinte resposta: policiais mortos foram mortos por bandidos, os mortos pela polícia morreram porque eram bandidos. Qual prova você ou eu temos disso? Algum dos mortos pode contar o que realmente aconteceu? Na ideologia permanece a versão do que matou, não do que morreu. Como o pensamento crítico nos ajudará a avaliar esses fatos? Cada policial que morre é um absurdo, um crime bárbaro. Porém, nove pessoas morrerem por dia pela ação da polícia é algo muito pior. Por que? Se a polícia militar mata nove pessoas por dia, e não sabemos exatamente quem são, podemos também ser vítimas disso, sejam por uma ação abusiva contra nós ou contra algum familiar ou conhecido. O que é necessário, segundo o pensamento crítico? Parar imediatamente de cultuar a violência, deixar de pensar que existe um jogo de ‘polícia e ladrão’ e recordar que nossos impostos financiam a polícia militar para que nós tenhamos segurança pública, não medo. Todavia, o pensamento crítico não está preso à questão da segurança pública. Vamos a outro problema seriíssimo: a corrupção. Esse crime sempre é errado e prejudicial. Mas, quando eu sou o corrupto, será que considero algo tão sério assim? A propina do político é errada, isso é indiscutível. Mas quando eu pago a propina ao policial, funcionário público ou qualquer pessoa para obter uma vantagem ilícita, continuo pensando o mesmo sobre a corrupção? Ou estou eu acima da lei? Essas preocupações devem fazer parte das nossas vidas em cada momento. Para que tenhamos preocupação verdadeira e sincera sobre esses problemas da nossa sociedade, é fundamental que consigamos ter o pensamento crítico, relembrando kritike, capaz de discernir, julgar e avaliar. Como? Não há receita milagrosa. O pensamento crítico nasce do exercício do que ele é: pensar. Ao escutar, devemos pensar sobre aquilo, filtrar com perguntas como: isso é verdadeiro? Estão falando tudo que está envolvido? Quantas fontes sobre esse assunto estão disponíveis? O que os outros canais dizem? O que os outros pensam, incluindo as pessoas simples? Por que essa informação está sendo divulgada? Por que algumas informações são ocultadas? O que é revelado ou escondido, especialmente pelas autoridades? Fazer essas perguntas vai ajudar a estimular e desenvolver nosso pensamento crítico. Atreva-se!

REFERÊNCIAS

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 12ª. Ed. 4ª. Imp. São Paulo: Ática, 2001.

LIMA, Renato Sérgio de; BUENO, Samira (orgs). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2016. São Paulo, 2016

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015, p. 74-75.

RIBEIRO, Darcy. Ensaios Insólitos. : Batel, 2011.

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Guilherme Ferreira Leite Belmudes meus netas meus filhas

meus irmãs meus mães

meus avós

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Luiz Roberto Rodrigues Junior Poema 1 - Kariri

Água de sete pedras, Caboclo de selva. Macuxi, kariri. Dzubukuá! Xucurus-kuririn, Unidos por um fim: Sobreviver. Em dzubukuá, falar. Viva a nação, não só kariri. Vivas ao tambor: cantar! Pindorama, terra fértil. De Arara à Kaxinawa. Em dzubukuá, falar. E o tambor: celebrar!

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Ana Paula Ricco Terra

Memória

Queria Amar-te simplesmente e te ter assim tão perto que os perigos da memória não alcançassem o aconchego dos teus braços tão encaixados no meu

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Ana Paula Ricco Terra

Cançãozinha dramática

Eu que contigo sonhei queria ter-te perto

O meu amor chorou De triste, de tão triste Da distância que existe Sonhou inconsolado pelos beijos ausentes Até que se desfez

Triste muito triste Perdeu-se no vazio que não existe e dele me esqueci

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Ana Paula Ricco Terra

Pezinhos frios da Ana Cristina César

Cheiro de corpo Mofo Dobras Que escondem memórias No pé do ouvido O que foi vivido Desejo e morte Renascem forte Corte Na vida Vivida

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Gabriella Vapsys Prólogo no céu I. vem, novamente, indagar se passamos bem, antes que de nós só restem ecos de convulsivos risos; antes que os jardins de folhas estorricadas e ramos secos onde as abelhas suspiram e sucumbem seja um novo lar. (há em minha descrição uma peça falha; as voltas nos eixos foram tantas que duvidei de tudo!) se ainda pudesses rir, o faria, antes que de nós a natureza viva roesse a carne. e eu volto a ti, meu frio pai, meu frio louco pai, meu frio louco feerível pai. ora, é corriqueira a chuva na triste cidade de Poreyma; as mãos cegas tateiam o papel inundado, traçam na obscuridade da alma uma linha branda… mas o estalido do dilúvio está longe; a eternidade espera — faz-me maremal lamasal e eu me lanço, ó único, em teus braços. prometi que não reviveria quaisquer sentimentos que digam do amor a herança, perdida devoção. deixei cair a lucidez, quinquilharia desajeitada, e chutei-a depressa para debaixo da mesa. foi-se tarde como foi-se fria. disse: minha poesia será fato típico traduzirei Hegel para o tupi-guarani a abstração da realidade criará fortunas Ang sem Angst, potyra e ybá florescerão jamais mencionarei der Weltschmerz nada me será estranho, simplesmente grande viverei o imo de cada fato, flertarei com abismos — com a cabeça nas nuvens e os dois pés na terra.

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certa vez, acendi as luzes para sair do quarto bati a porta do apartamento e o baque me foi devolvido os olhos transbordaram e os raios do céu grisalho corriam juntos aos meus dedos pela poeirenta maçaneta como se pudessem sentir onde eu os tocava: criava formas monstruosas de ídolos cadavéricos anjos arruaceiros com louros nos cabelos desgrenhados nos breves momentos em que toquei a maçaneta pensei nos segredos que jamais revelaria e senti sono, como se nunca antes houvesse dormido. — anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.

II. era brasiliense, utopista e demente In jeden Quark begräbt er seine Nase! “acho que isto está rápido demais” mondarõ mbocai mondyia “acho que isto está rápido demais” Ja, es ist spät, mein Herr. e aqui está, como se outro sentido houvesse. seria outro em qualquer canto do mundo? talvez contasse os dias de trás para frente. escoe para fora, Você, escoe para fora qual criança infeliz invisível.

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Aurelio Tadeu Luiz Barbato

Nascimento

A humana aurora Não tarda em desposar Graça, Beleza e Encanto Para todos cativar.

Da mãe o amor, Do pai a ternura, Dos avós o esplendor A própria Candura.

Das primícias perfume. O embalo eterno carinhoso. Simples arrebatamento.

O triunfo do porvir, Alegria retumbante. Viva mais um nascimento!

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Aurelio Tadeu Luiz Barbato

Outono

Os ventos são patas De criatura feroz Que devora matas Como paciente algoz.

O verde fenece. O laranja ressalta. Perfume desaparece. Os animais afasta.

Folhas se soltam. Galhos estalam. E nua a árvore fica.

O frio se aproxima, Todos se calam, O outono se estica.

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Karina Abreu

A canção do oceano

Existe um segredo no fundo do oceano Em um lugar onde a luz não chega Em um lugar que você não vê Existe uma canção misteriosa Dos grãos de areias e dos restos de corais Das conchas e dos caramujos Existe um lugar sombrio Cheio de bolhas e peixes Cheio de tesouros esquecidos O segredo do fundo do oceano Junto com os cantos das sereias Foi, há muito, esquecido

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Karina Abreu

The day I fell in love with a complete stranger

It was late that day and I was on my way home. I was tired. No, it would be more accurately to say that I was exhausted — I could barely stand and my head was throbbing. My mind was still revisiting all the things I would have to face tomorrow — as if the fact that I had no alternatives wasn’t bad enough. So many things to do, so many issues popping out, so little time to solve it all. I just wanted to close my eyes and enjoy a few minutes of mental silence. I heard a noise — like someone get off foot — surprised. I involuntary lift my head and stared at her. She was tired and her hair was badly arranged in a messy bun. That was the first impression that I ever had of her. She was blushing and her strangely oversized bag was hanging on her shoulder — it seemed very heavy. She looked flustered. She pretended very hard it wasn’t her — that the weird noise had nothing to do with her. She closed her eyes and hugged her bag. It seemed that her shoes were hurting her feet, because she was switching her weight from foot to foot — she looked uncomfortable. Her clothes were so discreet that, at first glance, I didn’t notice at all — thinking more about it, she was hard to notice. It was as if she wasn’t there at all. I imagine she sensed someone staring at her, because she lifted her head and stared at me — her eyes were not angry, not embarrassed as I would’ve thought — she was curious. She seemed to have forgotten about the heavy bag and her sore foot. In the moment our eyes met, I could see her clearly. Her cheeks were still pink from the massive blush and she had her mouth slightly open — like she was going to say something, but the words have gotten lost somewhere in her head. Her earrings were small and round, in a matching pair with her necklace. She closed her mouth, but her eyes did not leave mine. She looked young, but I could sense she was not that much. She carried the tired and stressed look of someone coming from work and mentally preparing herself to make it home. Her hair was dark and looked smooth — for a second, I tried to picture her without that messy bun. She had bags under eyes — probably she hasn’t been sleeping very well. It was not easy, as I was painfully aware. Her eyes and her watch reflected the lights around us. In that moment, I could’ve pictured myself going to her side and offering to carry her bag. I would’ve tried to cheer her up, maybe tell a joke and pray that she would find it funny. I would’ve talk about the weather. I would’ve moved and gone to her side. Maybe that was some sort of destiny. Maybe that moment was relevant in the fabric of the universe for myself. Maybe I was thinking too much. But nevertheless I could see. I could imagine her laughing. I could entertain the notion of keeping her company after work — maybe we could have dinner some time. Maybe she would tell me about her family, work and dreams. Maybe she was sweet, caring and special. Maybe she could’ve been everything I would ever want. Maybe she would’ve gone with me to a new place, to conquer a new life, to see new places in new lights. Maybe she would’ve accepted to leave everything behind and start a new adventure. Maybe we. could’ve shared the rest of our lives.

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The train stopped and she blinked. She left and I started rummaging through my thoughts. It was late that day and I was on my way home — it was the day that I fell in love with a complete stranger that I would never ever see again.

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Karina Abreu

The reversed Alzheimer’s

Hello. My name is Brenda. It is a pleasure to meet you. If you do not want to read sad things, you may want to close this and go read something else. I have a condition, which, unfortunately, I do not expect find a cure. At least, not on my own. You see, I have the reversed Alzheimer’s. I remember other people — they do not remember me. My children now has their children. I have lived far more years than I have left. The songs I enjoyed during my sophomore year are considered old ones and the sweets I used to enjoy in my childhood do not exist anymore. The clothes are different and technology overwhelms me. My friends are mostly dead. I do not have anyone to address letters; properly written, with ink, with a proper envelope — how quaint. Nobody cares for letters these days. Nobody cares for little flower rings and small things. Maybe it is strange for young people to entertain the notion that we used to sit side by side just to watch sunrise. Maybe they do not have time for those small precious moments. I do wonder what could be more special than being with a dear one. I would do anything in my power to have that important someone by my side — just to watch the sunset. Maybe sunrise. Maybe just the stars. Maybe just to close my eyes and hear the sound of silence together. There is a crucial difference between being alone and being lonely. However, it is not mutually exclusive — you could be lonely with a lot of people by your side. In this sense, it is also possible to feel alone but not lonely. In this case, I am alone and lonely. At a certain point, you are bound to think about the things you sorely miss most. You mourn the joy you still remember but can not feel anymore. You feel depressed, distraught, dejected, but not dead. The past is cristal clear and memories come flooding back now and then. The present is gloomy, dreadful and a few glimmers of hope. The future holds just a fated and unavoidable event. They did not call. They did not visit. They are not here. They are already gone. You think of them. You miss them. You hope. It is not tragic — it is just sad.

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Ayran Oliveira Michelin

Afinal, racismo existe (?)

Para mim que sou branco e nunca passei por uma situação vexatória não existe racismo. Eu nunca fui barrado no detector de metais do banco, então para mim, que sou um jovem-branco, não existe racismo. Minha imagem não transmite uma imagem de ameaça para o status quo (que é branco). Tento ser mais claro: As poucas vezes que fui ao fórum, eu não tive que apresentar minha OAB (que não tenho, já que não sou advogado) para ser chamado de dr. O fato de eu estar de terno foi o bastante para eu ser tratado com o maior respeito e não ser questionado sobre nada. Para mim, que sou branco, usar terno é o bastante para ser tratado "como doutor". Por outro lado, recorrentes são casos em que advogados negros são obrigados a apresentarem sua carteira da OAB para comprovarem sua qualificação. O caso mais recente ocorreu no TRT e o advogado negro foi agredido e algemado por se recusar à situação vexatória de apresentar a carteira da Ordem. Para o dr. Flávio Cesar Damasco (o advogado negro em questão, que foi agredido e algemado pelos seguranças brancos do Tribunal, para os quais - assim como para mim - o racismo também não existe), vestir terno não é o bastante. Para ele, que é negro, vestir terno é sinal de que está ferindo uma regra social preponderante da sociedade brasileira (que é estruturalmente racista): ele não está se colocando no seu lugar, na condição subordinada da qual as expectativas sociais esperam que ele esteja, e por isso ele deve ser e será agredido. Se não com algemas, com olhares desconfiados. Ele atenta contra a ordem social, que é branca e estruturalmente racista. Para mim, que não vivencio o racismo no meu dia-a-dia - já que sou branco - e que não sou privado de nada em função da minha raça, o racismo não existe. Nós, brancos, não nos consideramos racistas, afinal não saímos por aí hostilizando negros em função da sua raça. No entanto, nós que somos brancos e não nos consideramos racistas, não nos incomodamos com o fato de termos quase certeza que, ao entrarmos na sala de audiência, todos os ali presentes serão pessoas brancas. E, pior, não nos incomodamos com o fato de que nos surpreenderemos se encontrarmos um juiz ou um promotor negro na sala de audiência. Mesmo assim, dizemos que não somos racistas... Talvez não sejamos racistas, mas somos - no mínimo - resignados com a segregação racial que existe na nossa sociedade. É como se fosse algo natural: cada raça no seu "devido lugar". E pensando por esse lado, podemos não ser racistas combativos (aquela espécie que publicamente denigre e ofende), mas sem dúvida somos uma sociedade de "racistas conformistas", aquele tipo que vê a exclusão racial e dá de ombros, naturaliza o fato e trata como se fosse algo normal. É um racismo velado, que perpetua as estruturas de privilégios que nos beneficia a nós brancos. Nesta breve reflexão-desabafo, citei alguns exemplos de privilégios que eu recebo em nossa sociedade: não sou obrigado a esvaziar os bolsos para ser liberado no detector de metais nem sou questionado sobre o porquê de eu estar de terno dentro do fórum esperando o elevador.

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Tenho uma imagem confiável perante a sociedade, afinal meu perfil jovem-branco não é estigmatizado pelo noticiário das 7 todos os dias. Isso não acontece com os jovens-negros da periferia, que por portarem tal "perfil" são vistos como potenciais criminosos, de moral duvidosa, usuários de droga, prováveis traficantes, e assim por diante. Para nós que somos brancos e que nunca sentiremos o racismo na pele, o racismo é algo que não existe na nossa realidade. Por isso é um tema irrelevante. Mas entenda que se você é, assim como eu, branco, não tem o direito de dizer que nossa sociedade não é racista, pois somos sim. Alimentamos um sistema de segregação e privilégios e estamos tão acostumados com isso que para nós, brancos, o normal é NÃO encontrar negros em fóruns, universidades, restaurantes caros. Somos resignados. E essa é a maior prova de que somos sim racistas. E do tipo mais cruel: o condescendente; aquele que vê a injustiça racial e julga normal, acha justa (“afinal, a meritocracia...”). Nossa condição privilegiada é também vergonhosa, pois nos faz naturalizarmos nossa maior injustiça histórica. Talvez o que precisamos é de começarmos a nos indignar com o apartheid velado que existe SIM no Brasil, nos indignarmos com a forma destoante com que somos tratados. Nos indignarmos quando vermos pessoas negras serem questionadas do porquê de estarem frequentando aquele ambiente. Se todos despertarmos, talvez algo comece a mudar.

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Breno Silva Oliveira

(In)completude

Faltam os homens das grandes utopias. Faltam os filhos que respeitam seus pais. Faltam os netos que almoçam com seus avós aos domingos. Faltam as mulheres não tão feministas. Faltam os homens não tão machistas. Faltam polêmicas. Faltam incertezas. Faltam governos incorruptíveis. Faltam professores que sejam mestres. Faltam alunos estudantes. Faltam amores mais puros. Faltam pessoas a perceberem as faltas. Faltam linhas neste poema. Faltam mesmo?

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