PARTE XII DTI I2 História da Comunicação e dos Meios

Revista do Brasil e a Primeira Guerra Mundial: retratos de um conflito Magazine of the Brazil and the First World War: portraits of a conflict

A n a R eg i n a R êg o 1 R a n i e l l e L e a l 2

Resumo: A imprensa de todo o mundo voltou os olhos para o conflito que acon- teceu na Europa entre 1914 e 1918 e os modos de tratar a notícia e apresentar as “verdades” sobre os acontecimentos divergiam potencialmente entre os periódi- cos de cada um dos lados do conflito, deixando visível a fragilidade da instituição jornalística e seu pretenso estatuto de verdade. No Brasil as coisas passaram-se de forma similar, assim cada veículo revelava seu lado e suas posições sempre que apresentava notícias sobre a guerra. A Revista do Brasil apesar de tratar o tema de forma amena, também deixava transparecer o que pensavam e de que lado se posicionavam seus idealizadores. Este texto procura então analisar como a guerra foi retratada pela revista em pauta. Para tanto, utilizamo-nos de pesquisa qualitativa realizada através de uma análise de conteúdo histórica. Palavras-Chave: Revista do Brasil; Primeira Guerra; Jornalismo

Abstract: The press from around the world turned its eyes to the conflict that took place in Europe between 1914 and 1918 and the ways to treat the news and present the “truths” about the events potentially differed between the periodicals of each side of the conflict, leaving visible the fragility of journalistic institution and its alleged status of truth. In Brazil things happened in a similar way, so each vehicle revealed his side and their positions whenever presented news about the war. The magazine of Brazil despite addressing the issue of gently, also let on what they thought and what side were standing their creators. This text so analyzes how the war was portrayed by the magazine in question. For this, we use us qualitative research carried out in a historical content analysis. Keywords: Magazine of the Brazil; First World War; Journalism.

INTRODUÇÃO PRIMEIRA GUERRA mundial foi um marco na adoção de técnicas de manipulação das notícias, exatamente em um momento em que o estatuto de verdade do jorna- Alismo se consolidava e, portanto, se credibilizava como um discurso de verdade. Todos os lados envolvidos no conflito foram notórios em se utilizar de métodos de

1. Doutora em Comunicação, Coordenadora do PPGCOM-UFPI, email: [email protected] 2. Mestre em Comunicação, Doutoranda em Comunicação PUC-RS, email: [email protected]

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Ana Regina Rêgo • Ranielle Leal censura e direcionamento da imprensa para passar a cada povo a sua verdade sobre a guerra, ressaltando as características positivas de seu país e transformando os adversários em símbolos da maldade humana. O momento político vivenciado então pelas sociedades europeias, em que a eco- nomia e a crescente aquisição de direitos se fazia presente, terminou por exigir dos governantes um apoio incondicional de cada povo, sem o que era impensável se entrar em guerra. “ En 1914 la mayoría de los políticos y de las autoridades militares reconocían que una guerra de gran envergadura necesitaba del apoyo de la opinión pública, pero ni la globalización ni la democratización hacían impensable la ruptura de las hostilidades” ( Stevenson, 2014:54). A intervenção dos governos na imprensa foi muito comum tanto nos países aliados das Potências centrais, como nos aliados da Tríplice Entende. A ideia era manobrar a construção discursiva nos veículos de comunicação credibilizando suas falas sobre a guerra e manipulando, ao final da cadeia, a opinião pública, que, sensibilizada, terminava se colocando favorável a intervenção de seu país no conflito. Todavia, se por um lado a censura atuava impondo o tom a ser tratado nas notícias sobre a guerra em cada país, por outro, a cooptação de formadores de opinião nos meios jornalísticos, literários e artísticos era constante em todos os países. Na conjuntura abordada, no entanto, a própria imprensa, ávida por notícias que nem sempre chegavam com a periodicidade devida, passou a criar e a inventar versões dos fatos para manter o público atento ao desenrolar dos conflitos. Esse comporta- mento, comum aos alemães, franceses, ingleses e tantos outros, maculou e abalou a imagem do jornalismo, que trabalharia duro posteriormente, para se recuperar como instituição credível. É necessário ainda pontuar que a guerra se desenvolveu em um contexto deno- minado de expansão da sociedade de massas em que conviviam, nos grandes centros urbanos, populações heterogêneas que não possuíam laços de pertencimento sólidos, muito menos identificação comunitária. Tratava-se de uma sociedade fragmentada que havia deixado para trás seus valores mais caros. Esse sentimento de ligação comunitária era, no entanto, necessário para unir o povo de cada país no esforço de guerra que ora se empreendia. Foi, portanto, em um cenário de conflito de proporções mundiais que Júlio de Mesquita planejou, em 1915, o lançamento de uma nova revista voltada para o segmento cultural que deveria se denominar Cultura, mas que foi lançada em janeiro de 1916 com o título de Revista do Brasil. Considerando o complexo contexto de guerra em que nasceu a publicação, talvez seja necessário ponderar que a verdade sobre a verdade não existe, é, portanto, utópica. Real e verdadeiro não conseguem se encontrar para compor uma totalidade ou um absoluto, posto que a verdade sobre o real é discurso e como tal, não consegue apreender todas as nuances do real. Foucault (1996) ao analisar as relações entre verdade e poder nos dá indicativos de como essas instâncias se encontram no discurso jornalístico no momento de construção da ideologia da transparência pública (SODRÉ, 2012).

Para darmos consecução ao nosso objetivo adotamos como metodologia a pesquisa

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Ana Regina Rêgo • Ranielle Leal qualitativa realizada através de uma análise de conteúdo histórica3 com base documental composta por livros e periódicos. Vale ressaltar que a pesquisa qualitativa tem como foco o compartilhamento de informações de modo profundo, procurando tornar visíveis significados que só se tornam perceptíveis a partir de uma atenção direta e sensível (Chizzotti, 2006:28). As pesquisas qualitativas são revestidas de compromisso com a contextualização histórica, política, econômica e social objetivando situar os objetos pesquisados em seu tempo e em seu espaço. A pesquisa qualitativa utiliza métodos de coleta humanísticos e se configura como interpretativa e holística (Rossman e Rallis apud CRESSWELL, 2007). As técnicas de análise em pesquisas qualitativas podem ser variadas podendo ter aporte na análise de conteúdo ou análise de discurso, dentre outras. Vale ressaltar que as pesquisas qualitativas tratam com a não-generalização, nesse sentido, o pesquisador adota um ponto de vista particular amparado em referencial teórico- -metodológico com o intuito de analisar o objeto sem a preocupação de apresentar uma conclusão definitiva e abrangente que possa valer para casos similares. É necessário esclarecer ainda que o processo metodológico mencionado acima foi por nós embasado em alguns pressupostos e escolhas guiadas pelo olhar de historiadores e filósofos. O primeiro deles refere-se à consciência de nosso lugar social (Certeau, 2011)4 situado no campo da comunicação e do jornalismo, o que nos permite formular pergun- tas distintas às do historiador sem, no entanto, fugir das imposições que a distância temporal do objeto e as fontes disponíveis nos impõem. Nesse contexto, pretende-se formular um discurso que possa trazer à tona uma narrativa histórica formulada a partir de uma intriga que se coloca e que clama por uma explicação acerca do comportamento da imprensa brasileira durante a primeira grande guerra mundial, sobretudo, no que concerne a atuação de formadores de opinião como escritores, jornalistas e demais intelectuais, considerando, neste ínterim, e nos apropriando de um discurso situado no passado, através do qual passamos a construir um discurso sobre o passado5. Nesse processo, o nosso modo de operar e, posteriormente, traduzir através de um discurso a intriga que se nos apresenta, pretende articular na perspectiva de Ricouer (2010) a narratividade e a temporalidade, e, portanto, a experiência e a consciência, con- siderando que estamos distantes 100 anos do acontecimento analisado e não podemos incorrer no risco de praticarmos uma história teleológica; para tanto, priorizamos a ação em seu tempo. Vale lembrar que Ricouer defende que o discurso da história situa-se

3. A Análise qualitativa de conteúdo histórica é indicada para um caso particular precedente. O pesquisador baseia-se em um quadro teórico explícito para elaborar um roteiro sobre a situação em estudo (LAVILLE e DIONNE, 1999). 4. Toda pesquisa historiográfica se articula como um lugar de produção socioeconômico, político e cultural. Implica um meio de elaboração circunscrito por determinações próprias: uma profissão liberal, um posto de observação ou de ensino, uma categoria de letrados etc. Ela está, pois, submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em uma particularidade. É em função desse lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhes serão propostas, se organizam ( CERTEAU, 2011, p. 47) 5. O discurso sobre o passado tem como estatuto ser o discurso do morto. O objeto que nele circula não é senão ausente, enquanto o seu sentido é o de ser uma linguagem entre o narrador e os leitores, quer dizer, entre presentes. A coisa comunicada opera a comunicação de um grupo consigo mesmo pelo remetimento ao terceiro ausente que é o seu passado. O morto é a figura objetiva de uma troca entre vivos. Ele é o enunciado do discurso que o transporta como um objeto, mas em função de uma interlocução remetida para fora do discurso, no não dito ( CERTEAU, 2011, p. 41).

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Ana Regina Rêgo • Ranielle Leal no campo da narrativa, contudo, entende que o mesmo se configura como um tipo especial de narrativa que procura unir explicação e narração. Este autor ao finalizar a análise sobre corrolários que acentuam o corte entre história e narrativa, afirma: “[...] a história não poderia romper todo o vínculo com a narrativa sem perder seu caráter histórico. Inversamente, esse vínculo não poderia ser direto ao ponto de a história poder ser considerada uma espécie de gênero “story” (Ricouer, 2010:294). No que concerne à amostra analítica, investigamos as notícias e charges veiculadas em nove exemplares da Revista do Brasil publicados no ano de 1916.

Revista do Brasil e os sinais da guerra No momento em que o mundo assistia o prolongamento da primeira guerra mundial com o acirramento dos mecanismos de violência impulsionados pelas novas máquinas bélicas, em São Paulo, Júlio de Mesquita começa a planejar o lançamento de um novo periódico. A sua ideia era lançar uma revista voltada para o segmento cultural que deveria se denominar Cultura. A conjuntura de então, não era favorável ao lançamento de novos periódicos, consi- derando que o mundo estava em guerra e que o preço do papel, por exemplo, estava “nas alturas”, no entanto, Júlio de Mesquita que já acumulava uma experiência de mais de trinta anos no mercado editorial brasileiro, sobretudo, à frente do jornal O Estado de São Paulo que havia se firmado como um dos periódicos mais importantes do Brasil; tinha em mente não só uma revista cultural/literária, mas um novo produto que pudesse atender a um público segmentado, formado, notadamente por intelectuais. Favorável à sua ideia, o momento de expansão tecnológica pelo qual passava à imprensa que poucos anos antes tinha passado por um esforço modernizador que atingia a todas as empresas do mercado e que “trouxe consigo significativa queda no preço dos jornais, melhoria da qualidade gráfica, dinamização da distribuição, aumento contínuo do número de páginas e da tiragem” (DE LUCA, 1999:38). A primeira guerra, no entanto, transformou-se inicialmente, em uma barreira para o crescimento que experimentava a imprensa brasileira, pois como dito, o investimento em papel tornou-se elevado demais e isto provocou uma crise no setor. No que concerne ao O Estado de São Paulo e a Júlio de Mesquita o “inconteste apoio do periódico à causa aliada indispôs o jornal com a colônia alemã. O Diário Alemão, seu porta-voz, manteve acirrada polêmica com O Estado, acusando o periódico de receber subvenção inglesa” (DE LUCA, 1999:39). Todavia, o gestor do periódico mencionado, vislumbrou outras oportunidades de negócios com a guerra e em meados de 1915 quando a Itália entrou na guerra, Júlio de Mesquita lançou uma edição noturna do O Estado de São Paulo que se destinava a noticiar o conflito que se passava na Europa, com intencional destaque da cobertura para a Itália, considerando que havia em São Paulo uma grande colônia de italianos. Nesse ínterim, o projeto da revista Cultura estava em andamento e seus assessores Plínio Barreto e José Pinheiro Machado Júnior tratavam de criar e estruturar a empresa, e coube ainda a Plínio Barreto conseguir a adesão de escritores, jornalistas e intelectuais que deveriam compor o corpo de colaboradores.

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A seu pedido Nereu Rangel Pestana, colega de redação que se encontrava no Rio de Janeiro, conversou a respeito do assunto com Olavo Bilac, Graça Aranha, Alcides Maya, Alfredo Valadão, João Kopke, Felix Pacheco e José Veríssimo, que manifestaram sua aprovação. Outros que responderam favoravelmente à consulta foram: Nestor Vitor, Roquette Pinto, Oliveira Vianna, João Ribeiro, Assis Brasil, Oliveira Lima, Silvio de Almeida, Basílio de Magalhães, Valdomiro Silveira e Medeiros de Albuquerque (DE LUCA, 1999:42). Vale lembrar que como explanado anteriormente, o Brasil vivia uma época de explosão de um sentimento nacionalista, impulsionado pela guerra que se passava do outro lado do oceano. O movimento em prol do serviço militar obrigatório e a criação da Liga de Defesa Nacional, já mencionada, contaminava o país e tinham o apoio do grupo empresarial d’O Estado . Talvez por isso, os gestores da revista tenham modificado o título do novo período de Cultura para Revista do Brasil. Lançada em janeiro de 1916 sob a direção de Júlio de Mesquita, Alfredo Pujol e Luís Pereira Barreto e tendo Plínio Barreto como chefe de redação, a revista se manteria com essa diretoria até maio de 1918 quando foi vendida para Monteiro Lobato. De Luca (2011) divide a trajetória da Revista do Brasil em cinco fases pontuando suas múltiplas faces e seus vários proprietários. A primeira fase engloba tanto o período em que Júlio de Mesquita foi seu proprietário (1916- 1918), quanto os anos em que Monteiro Lobato geriu a mesma (1918-1925). Nessa fase foram publicados 113 números. Posterior- mente, a revista foi vendida a Chateaubriand que a colocou no mercado em diferentes ocasiões, entre 1926 e 1927, considerada pela autora como a segunda fase, em que circu- laram somente nove edições; relançando onze anos depois, 1938 e 1943, terceira fase, em que foram postos em circulação 56 números, e, por último em 1944, quarta fase, com somente três números. A revista ressurgiria em 1984 e perduraria até 1990, quinta fase, com a publicação de 12 números, nesse período estava vinculada a Darci Ribeiro.

Figura 1: Revista do Brasil ( nº 2, Ano 1, fev. 1916)

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Naquele ano a Revista do Brasil manteve um padrão gráfico em todas as edições, com poucas variações. Apresentava inicialmente ensaios que tratavam assuntos diversos, indo de história às medidas sanitaristas que estavam sendo adotadas naquele momento. Havia ainda espaço para a literatura com veiculação de poesias, romances e contos. Além disso, existiam os editoriais que abordavam problemas do país em várias áreas, inclusive, a pobreza no nordeste brasileiro. Depois vinha a Resenha do mês que se compunha de artigos de jornais, notícias, conferências, críticas de livros, críticas de exposições, etc. .Ao que parece a resenha tinha a intenção de atualizar o leitor sobre os acontecimentos do momento.

A variedade de temas abordados era enorme. A seção abria amplos espaços para deter- minadas questões, sendo mesmo possível afirmar que nela foram encetadas verdadeiras campanhas. Nesse âmbito mereceram especial destaque a Liga de Defesa Nacional, cujas atividades, atuação dos dirigentes- especialmente Bilac- e objetivos sempre foram acolhidos nas suas páginas; a segunda candidatura Rui Barbosa; a defesa do direito à uma língua própria; as discussões a respeito da qualidade étnica do povo brasileiro; as propostas rela- cionadas aos problemas higiênicos e eugênicos do país ( DE LUCA, 1999, p. 49).

Dentre inúmeros temas, vamos localizar na Resenha do mês artigos, fotos e charges sobre o conflito na Europa e várias matérias abordando o movimento artístico cultural de então. Nesse sentido é que nas edições 01, 02, 03, 04, 05,06, 07, 09 e 10, todas veiculadas em 1916, vamos localizar tanto matérias, como charges, notas e notícias que abordam temas relacionados aos conflitos e que passamos a analisar nas próximas páginas. Na primeira edição da Revista do Brasil publicada em janeiro de 1916 a guerra já aparece em diversos textos e imagens. O envolvimento dos escritores e intelectuais italianos com o conflito é ressaltado na matéria de Domenico Oliva, que ao destacar o envolvimento dos literatos daquele país no conflito, defende a prática de uma arte enga- jada. A replicação do artigo publicado inicialmente na revista Minerva, pelos editores da Revista do Brasil em cujo corpo de colaboradores encontravam-se um grande número de escritores, tinha como objetivo sensibilizá-los para o engajamento, objetivando a for- mação de uma opinião pública em prol da entrada do Brasil no conflito. Além disso, já reflete o contrato6 que a Revista do Brasil buscava consolidar com a colônia de italianos e seus descendentes em São Paulo.

OS LITERATOS ITALIANOS E A GUERRA Os literatos italianos são pela guerra. São poucas as exceções. Tais, por exemplo, na Itália, os senadores Benedetto Croce e Barzellotti, um por princípios filosóficos, outro por estar imbuído de germanismo. Mas a grande massa dos literatos é pela guerra. Não são poucos os que se acham no campo de batalha, de onde escrevem impressões ardorosamente patri- óticas. Outros que, pela idade, não podem combater e escrevem em prol da causa comum.

6. Tomamos emprestado da AD-Análise de Discurso a noção de Contrato a partir da concepção de Charaudeau para enfatizar o diálogo que a revista tenta manter com seus leitores italianos, componentes do público para quem a revista se posicionava no mercado paulista. Para Charaudeau (2009, p.50), “a noção de contrato pressupõe que os indivíduos pertencentes a um mesmo corpo de práticas sociais estejam dispostos a aceitar as mesmas representações de linguagens dessas práticas sociais”.

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É uma maneira de combater também. Não há nenhuma retórica no que escrevem porque a verdade, dos seus escritos é agora diretamente trágica e heroica e formidavelmente colorida e dramática.

Há muito vinha desaparecendo o dissídio entre a literatura e a vida pública. A torre de marfim já se desmoronou e a arte pela arte já começava a ser considerada uma fórmula avelhentada e vazia de toda significação. Revista( do Brasil, n.1, ano 1, vol. 1, jan. 1916, p.74-75).

Ainda na mesma edição encontramos um artigo sobre o articulador das alianças da Tríplice Entende que o destaca como um grande estadista. O texto reflete bem a posição assumida pela revista, qual seja: favorável a guerra e do lado dos ingleses e franceses. Outro tema importante levantado pelo texto é sobre a justiça que o tempo (Cronos) e a memória (Mnemosyne) darão, na visão do autor, ao personagem que articulou a importante aliança entre os países da Europa que se opunham às potências centrais. Articulação essa, realizada a partir de manobras diplomáticas e em prol das posições do seu país, a França, e das ambições que esses países tinham frente ao hemisfério sul do ponto de vista econômico.

O ORGANIZADOR DA TRÍPLICE ENTENDE

Quando se escrever a história da época presente, a página consagrada a Delcassé será das mais curiosas. Na política, como nas letras, nas ciências e nas artes, há protagonistas cuja influência ime- diata é singularmente exagerada pela atmosfera que souberam criar em trono de si, pela habilidade em tirar o partido das paixões desencadeadas e dos interesses em jogo, pela flexibilidade em adaptar-se às circunstâncias. Mas à medida que os fatos recuam para o passado, os elementos secundários vão desapa- recendo. Perante a posteridade o homem não vale senão pela ideia que o inspirou. Delcassé nada tem que temer do discurso do tempo, o qual destacará melhor os traços de sua personalidade. Ele tem direito ao respeito da história e à lembrança das gerações futuras, pois, modificando profundamente a orientação da política externa da república francesa, foi dos que traçaram a diretriz em que esse país se lançou resolutamente no início do século XX. Delcassé é um tipo de lutador digno do papel que desempenhou, servido por uma inte- ligência de escol. Desde o início de sua carreira como redator da Republique Française até o momento em que assumiu a direção da política exterior da França, [...]. De 1898 a 1905, Delcassé foi ministro dos Negócios Estrangeiros, nso gabinetes sucessivamente organizados por Brisson, Charles Dupuy, Waldeck Rousseau, Combes e Rouvier. Um inci- dente esteve a pique de destruir-lhe a obra, _ quando a esquadra do almirante Rodjesvensky bombardeou umas chalupas inglesas. A forma porque foi liquidado esse incidente, por meio de uma comissão internacional de inquérito em Paris, foi por ventura o ato capital da carreira de Delcassé, tendo o resultado inesperado de uma melhoria nas relações anglo-russas. Foi nesse momento que ele preparou o novo agrupamento da Tríplice Entende, suprema garantia da manutenção do equilíbrio da Europa. (Revista do Brasil, n.1, ano 1, vol. 1, jan. 1916, p.75)

Ainda na primeira edição vamos encontrar charges que tinham como motivação para os artistas, a guerra. As imagens e as legendas traziam normalmente alguma crítica,

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Ann a Regi a Rêgo • Ranielle Leal

quando não, sátira ao conflito e aos envolvidos, ou como vimos antes, aos países que como o Brasil, haviam se declarado neutros. É bom ressaltar no entanto, que as charges e caricaturas veiculadas mensalmente na Revista do Brasil eram, geralmente, replicadas de outros periódicos, como podemos conferir na próxima figura.

Figura 2: Charge de J. Carlos publicada inicialmente em Cigarra. Revista do Brasil, n.1, ano I, vol. 1, janeiro de 1916

No mês de março de 1916, a terceira edição da revista apresenta um texto de Achille Loria sobre as consequências graves que o conflito iria imprimir ao mundo que ensaiava os caminhos para a globalização. A análise lúcida alerta para os perigos do prolongamento do conflito, assim como, analisa uma possível tendência de mudança de rumos da imigração italiana que segundo o autor deveria se voltar para a França, deixando os países da América em segundo plano. O socialismo também entra na pauta do autor do texto, mas de modo superficial, como podem conferir.

CONSEQUÊNCIAS DA GUERRA

A tremenda guerra atual está destinada a suprimir grande parte da simbiose internacional que formava uma das mais belas conquistas da sociedade moderna e o segredo dos seus maiores triunfos. Doravante, não haverá mais o livre e fácil acesso em todos os países do globo, pelos cidadãos de outras pátrias, que levavam consigo a contribuição preciosa da sua tradição diversa, de diversos costumes ou formações intelectuais diferentes. Graças a isso, tinham já duas: desaparecido os preconceitos locais e nacionais, e nós nos considera- mos cidadãos do mundo. Agora, voltaremos ao círculo antigo, tornaremos à limitação dos recintos medievais, e cada um de nós se sentirá prisioneiro do estreito horizonte nativo. [...]. Pode desde já prevê-se além disso que a guerra dará a lograr um aumento notável da

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emigração italiana para a França, onde os claros ocasionados pela morte nessa população exigua e infecunda, terão que ser preenchidos. Assim, a imigração italiana além oceano, decrescerá, aumentando a emigração para a França. Isso, porém, não trará grandes benefí- cios para a Itália, porque a França se mostrou sempre hostil à emigração italiana, e porque a afinidade de italianos e franceses faz com que alguns percam a sua nacionalidade em favor deste e em detrimento da Itália. [...] Outra consequência da guerra: a transformação do socialismo. O socialismo não morrerá, mas terá necessidade de se transformar, voltando às suas origens, que não tinham nada e parlamentares, e à sua qualidade puramente econômica que formam toda a sua razão e toda a sua essência. (Revista do Brasil, n.3, ano 1, vol. 1, mar. 1916, p.352)

Ainda na edição de número 3 da Revista do Brasil o debate sobre selvagens e civilizados toma corpo embora disfarçado em um texto que procura nas nuances do cientificismo esconder seu principal propósito. Nesse momento é que a imprensa dos países aliados da Tríplice Entende procura desqualificar os alemães taxando-os de bárbaros. O texto do Dr. A. G. Mayer publicado inicialmente na Popular Science Monthly é replicado pela revista em pauta objetivando municiar os veículos de comunicação dos Mesquitas na querela já instalada contra a imprensa alemã, porém, não de forma direta.

SELVAGENS E CIVILIZADOS Entre os selvagens e o homem civilizado não há uma diferença de capacidade intelectual, mas uma diferença dos objetos sobre os quais essa capacidade se exerce. Os habitantes das Ilhas Fiji representam, aos nossos olhos, o que há de mais baixo, de mais cruel, de mais repulsivo, na escala humana. Entretanto, eles são mais sóbrios e morigerados do que muitos povos civilizados; e o estrangeiro, mesmo há 15 anos podia sentir-se mais seguro em qualquer parte das ilhas onde entretanto se conhece o sabor da carne huma- na...), do que nas grandes cidades da Europa ou da América. Os homens mais abjectos não são procurados nas florestas da África, da Austrália ou da Nova Guiné, mas nas cidades populosas. E não há característica do homem selvagem que se não encontre, em maior ou menor grão, nos mais cultos dentre nós. Uma diferença existe, todavia, entre os selvagens e nós, civilizados: é que, enquanto o civilizado muda continuamente o sistema do pensa- mento e da vida, avançando sempre, o selvagem prefere ficar preso à cultura da sua idade há muito tempo transcorrida, vivendo assim num mundo de superstições e de prodígios, de que é um escravo [....]. Evidentemente, para vergonha das nossas belas instituições liberais, do nosso aperfeiçoa- díssimo sistema de instrução, da devoção que milhares de nós professamos pelos ideias da mais alta cultura_ para vergonha disso tudo ainda há na nossa sociedade, selvagens. E não é só: dentro de cada de um de nós se alparda, pronto a surdir, o obscuro instinto do bruto, o espírito hereditário do gorila e do selvagem. Em toda nossa grande e esplêndida cultura ainda há traços da barbárie. É inútil pois esperar que algumas décadas de contato com a nossa raça, bastem a civilizar o selvagem [...].( Revista do Brasil, n.3, ano 1, vol. 1, mar. 1916, p.352-353)

No que concerne a economia que estava engolida ou cujos processos e fluxos esta- vam sendo paulatinamente ou abruptamente modificados pelas imposições da guerra,

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Ana Regina Rêgo • Ranielle Leal a Revista do Brasil aborda volta e meia temas correlatos. Na edição de número 3 trata sobre a composição dos metais que são usados para construção do arsenal bélico desde os tempos da pré-história. Na edição de número 4 de abril de 1916 um artigo de quatro páginas fala sobre os problemas da dependência energética que o Brasil mantinha com a Inglaterra e como o atraso em se realizar investimentos no setor deixavam o Brasil vulnerável naquele momento.

IMPREVIDÊNCIA E PARADOXO “Londres, 1_ O ministro do Brasil, nesta capital, sr. Dr. Fontoura Xavier, procurou hoje sr. Eduardo Grey, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, com quem teve uma longa conferência. Nessa entrevista, que foi demorada, o sr. Fontoura Xavier pediu que sr. Grey permitisse que voltassem ao Brasil com carregamento de carvão os vapores “Royal Sceptre” e “Ouro Preto”, já requisitados. Reclamando com essa autorização, o sr. Fontoura Xavier demonstrou ao ministro inglês que o carvão que deve seguir nos dois vapores é de urgente necessidade para a iluminação pública das cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, onde está iminente o perigo da ilu- minação pública ser interrompida por falta absoluta de carvão. Demonstrando isso, o sr. Fontoura Xavier declarou que o seu governo fazia sentir muito profundamente ao sr. Eduardo Grey as consequências desastrosas que poderiam advir, se o Rio de Janeiro e São Paulo se vissem forçados a ficar às escuras. Parece, segundo corre nas rodas diplomáticas que o governo inglês vai permitir a saída do “Royal Sceptre” e do “Ouro Pretto”, carregados de carvão para o Brasil”. É exata a notícia, apesar da data do telegrama -1º de abril, dia dos “santos inocentes”. Foi confirmada posteriormente, embora de modo indireto, por uma nota oficial em que se deram a conhecer as negociações entaboladas entre a legação britânica e o nosso ministério afim de ser garantido um mínimo de exportação, pelos portos carvoeiros, correspondente às necessidades “indispensáveis” do país. [...]. Até quando, porém, se estenderá a garantia concedia, admitindo que realmente o fosse? Até o fim da guerra? É mais do que duvidoso, dada a marcha dos acontecimentos. Até quando, então?... Quem poderá responder a semelhante pergunta? O certo e o positivo é que estamos na dependência de circunstâncias, alheias à nossa vontade, para assegurar o fornecimento de um produto que se tornou tão necessário à vida e segurança da população como a água e a luz. Dá-nos a ameaça a possibilidade de prelibar as delócias do que nos proporcionaria o bloqueio, por uma potência inimiga, dos nossos dois portos principais [...]. (Revista do Brasil, n.4, ano 1, vol. 1,abril 1916, p.422-425)

A campanha nacionalista foi fartamente abordada pela revista além de apoiada pela diretoria do periódico. No exemplar de número 10, veiculada em outubro de 1916, encontramos um artigo de 4 páginas com detalhes da campanha em várias partes do Brasil. A principal preocupação dos redatores da revista é com os rumos que a campanha toma no momento, quando existe consenso sobre sua necessidade, mas total dissenso sobre os rumos que a mesma deve seguir. O discurso de Pedro Lessa é replicado pela revista que afirma deixá-lo arquivado para sempre em suas páginas.

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Ana Regina Rêgo • Ranielle Leal

CAMPANHA NACIONALISTA Não há duas opiniões sobre a campanha nacionalista que se faz, neste momento, em quase todo o Brasil. É geral a convicção ou, pelo menos, o sentimento de que ela responde a uma necessidade incoercível. Variam as opiniões, apenas no que toca aos aspectos dessa campanha. Para uns o empenho do país, nesta hora, deve ser o aperfeiçoamento do seu aparelho militar; para outros, a difu- são do ensino; para alguns a remodelação do pacto constitucional; para diversos, a proteção dos sertanejos e para um ou dois a... descompostura nos que cogitam destas coisas. [...]. A variedade de opiniões não é porém um sintoma de anarquia mental. A anarquia mental só se denuncia quando cada opinião sem força para vencer sozinha, em vez de aguardar tranquila a sua hora, procura embaraçar a marcha das outras. Ainda não chegamos a esta situação perigosa. Temos receio, porém de que, se não abrimos os olhos, a ela, dentro em breve, chegaremos. Algumas nuvens já apontam no céu claro e um ou outro raio já põe no horizonte, aqui e ali, um traço de fogo. Urge que os homens superiores que orientam o país com a palavra e com a ação, especialmente os que tem uma influência direta no espírito da mocidade, coordenem os esforços e, em vez de provocar hesitações e dúvidas com as divergências de opinião, tirem dessas divergências o melhor argumento para demonstrar a necessidade em que cada um de nós está de empregar as energia, sem desfalecimento ou sem contemporizações, no combate comum. Ninguém deve menoscabar da ação e da opinião do vizinho pra impor a própria. O problema divide-se em várias partes e cada parte exige, pela sua natureza e pelo seu feitio, obreiros especiais. O dever de cada um é tratar da parte que elegeu sem perturbar os que elegeram partes diversas. Com um raio só ou com os raios dora da cambas, não há roda que se mova com eficácia e duração [...]. Realizou-se há dias, no Campo de São Cristóvão, no Rio, a cerimônia de compromisso dos voluntários de manobras. Por essa ocasião, o sr. Dr. Pedro Lessa pronunciou, em nome da Liga da Defesa Nacional, um discurso que pela nobreza de ideias e pela autoridade moral do orador, merece ficar arquivado nas páginas desta Revista [...]. (Revista do Brasil, n.10, ano 1, vol. 3, out. 1916, p.199-202)

Na mesma edição uma notinha sobre Olavo Bilac dá continuidade à temática da Campanha nacionalista.

Olavo Bilac prossegue no Rio Grande do Sul o seu apostalado de civismo e patriotismo. Cada passo do grande poeta é assinalado por um novo triunfo. É significativo o êxito dessa propaganda. Explica-se em grande parte a sedução pessoal do propagandista que é imensa, mas não o explica por completo. O resto da explicação só pode ser encontrada na perfeita consonância de ideias e aspirações entre o apostolo e os auditórios que lhe bebem as palavras. [...]. (Revista do Brasil, n.10, ano 1, vol. 3, out. 1916, p.202)

Ainda na décima edição a ideia de uma aliança entre os países americanos liderados pelos Estados Unidos é abordada. O texto de Raul Villaroel publicado inicialmente na Revista de Filosofia de Buenos Aires é veiculado na Revista do Brasil com o intuído de conseguir adeptos à causa que parece simpática ao autor e aos editores do periódico brasileiro.

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Ana Regina Rêgo • Ranielle Leal

HOMENS E COISAS ESTRANGEIRAS (Americanismo) ( Poder militar continental) Cresce dia a dia o movimento de ideias tendentes a assegurar a defesa dos interesses ame- ricanos contra as consequências de lutas exteriores, estranhas ao continente, movimento esse determinado pela repercussão na América da atual guerra europeia. De um artigo publicado em 3 de dezembro último no Times, de Shevreport, nos Estados Unidos, assinado pelo sr. Gilson Gardener, verifica-se que se cogita uma aliança política de todas as nações do continente americano, para unificar as suas forças militares, navais e terrestres, a fim de o defender contra agressões monárquicas. Já se deram mesmo alguns passos para negociações de um tratado com a Argentina, Brasil e Chile. O embaixador Naón tomou a iniciativa dessa empresa e há quem diga que os seus passos são apoiados pelo presidente Wilson. As propostas do embaixador visam o estabelecimento de um convênio, pelo qual as três repúblicas sul-americanas se comprometeriam a fornecer 800 mil homens devidamente dis- ciplinados para qualquer medida defensiva necessária à manutenção da forma republicana de governo no hemisfério ocidental. Os Estados Unidos em troca desse adjutório fornece- riam os apetrechos de guerra necessários para armar e equipar esse número de homens e cederia, em caso de ataque a qualquer daqueles três países, o apoio da sua esquadra. A combinação da esquadra americana com as esquadras daqueles três países formaria uma força naval que só poderia ser superada pela da marinha britânica. [...] (Revista do Brasil , n.10, ano 1, vol. 3, out. 1916, p.210)

A Revista do Brasil procurava portanto, abordar os temas relacionadas à guerra com certa contumácia, trazendo uma opinião bem definida do que deveria ser a posição do Brasil no conflito. Diferentemente dos jornais diários, não se dedicou, durante o ano de 1916, ao noticiário sobre a guerra que apresentava-se muitas vezes manipulado.

Ilação Diante do exposto, pudemos visualizar que apesar de ser definida pelos historiadores ( DE LUCA, 2011) como um periódico de cunho literário, a Revista do Brasil aponta muito mais para o caminho de uma revista pluritemática com abordagens que vão de economia, política, cultural, guerra, artes e literatura, dentre outros temas localizados. No que concerne à guerra do início do século XX, a revista procurou abordar o tema sob diversos prismas e sempre se apoiando em formadores de opinião para se posicionar. Entre os intelectuais brasileiros no entanto, travou-se uma guerra de papel, ini- cialmente e de um lado, com o próprio governo brasileiro, procurando pressioná-lo para que o mesmo aderisse à guerra. Os literatos que gozavam de grande visibilidade e reputação incontestável trabalhavam em prol de um consenso nesse sentido e tanto criaram a Liga de Defesa Nacional, como deflagram a Campanha Nacionalista com o intuito de formar um sentimento civilista e brasilianista que pudesse fomentar a ideia de corpo nacional entre os brasileiros. A Revista do Brasil refletia nesse contexto, os ideais de seus diretores e editores paulistas, assim como, da maioria do grupo de colaboradores literatos de que dispunha.

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Ana Regina Rêgo • Ranielle Leal

Esse periódico procurava abordar os temas correlatos à guerra de forma amena e às vezes indireta, mas sempre procurando plantar ideias favoráveis a adesão do Brasil ao conflito. Os textos veiculados no periódico em pauta durante o ano de 1916, que aqui analisamos, talvez não se configurem como balas de papel, como a maior parte das matérias veiculadas nos jornais do período, mas manifestam claramente a ideologia do grupo que geria o periódico.

REFERÊNCIAS CERTEAU, Michel (2011): A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense, 2011. CHARAUDEAU, Patrick (2009): Linguagem e Discurso. São Paulo: Editora Contexto. CHIZZOTTI, Antonio (2006). Pesquisa qualitativa em ciências humanas e sociais. Petrópolis: Vozes. CRESSWELL, John W. (2007). Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. 2. d. Porto Alegre: Artmed. DE LUCA, Tania Regina (2011): Leituras, Projetos e (RE) VISTA(S) do Brasil: 1916-1944. São Paulo: Ed. Unesp. DE LUCA, Tania Regina (1999): A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Fundação Editora da UNESP. FOUCAULT, Michel. 1996 LAVILLE, Christian e DIONNE, Jean. A construção do saber: manual de metodologia da pes- quisa em ciências humanas. Porto Alegre: Editora Artes Médicas Sul; Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999. RICOUER, Paul (2010): Tempo e Narrativa: a intriga e a narrativa histórica. V.1. São Paulo: Martins Fontes. SODRÉ, Muniz (2012): A Narração do Fato: notas para uma teoria do acontecimento. Petrópolis, RJ: Vozes.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7039 Revistas ilustradas brasileiras e a narrativa da 1 ª Guerra Mundial Illustrated magazines brazilian and the narrative of World War

M ar i a lva Barb o s a 1

Resumo: O objetivo do texto é analisar de que maneira as revistas brasileiras Careta (1908) e Fon-Fon! (1907) noticiaram a I Guerra Mundial, tornando visível o processo de dessacralização da imagem que se instaurava nos espaços públicos da capital do Império desde o século XIX. A introdução de uma linguagem que se pretendia moderna e dinâmica resulta em estratégias comunicativas, das quais o uso dos recursos das linguagens literárias e visuais se destacam. Para melhor particularizar como a I Guerra aparece representada nessas revistas, faz-se uma quantificação das imagens publicadas (fotografias, charges e dese- nhos), para num segundo momento analisar algumas das fotografias publicadas nesses dois periódicos. Palavras-Chave: Revistas – Fon-Fon! – Careta – Público – Guerra.

Abstract: This paper to analyze how the Brazilian magazines Careta (1908) and Fon-Fon! (1907) reported the First World War, making visible the process of image that was established in the public spaces in Rio de Janeiro sincee the nineteen- th century. The introduction of a language that was intended to modern and dynamic results in communication strategies, including the use of resources of literary and visual languages stand out. To better individualize as World War I appears represented in these magazines, it is a quantification of the published images (photographs, cartoons and drawings), for a second time to analyze some of the photographs published in these two journals. Keywords: Magazines - Fon-Fon! - Careta – Public – War.

INTRODUÇÃO PROLIFERAÇÃO DE revistas ilustradas nos últimos anos do século XIX e nos primeiros do século XX faz parte de um processo de expansão das visualida- Ades, mediadas por aparatos tecnológicos, que capturaram o olhar do público na direção de novos formatos impressos que passaram a mediar o mundo que era vivido do que era percebido através de imagens. Inventos capazes de se antepor ao olho humano, criando uma espécie de nova realidade, tornaram possível a explosão visual nas revistas que passaram, já no início do século XX, a se constituírem como uma segunda tela dos acontecimentos que mudavam a face do mundo.

1. Professora titular da UFRJ.

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Mas para que essas visualidades fossem o modo dominante de revistas nesse momento foi preciso percorrer um longo caminho de educação do olhar em direção a esses aparatos que distinguiam o mundo de suas representações. O século XIX assistiu a dessacralização da imagem que se industrializava. A imagem a todo o vapor, como as máquinas que construíam a nova ordem capitalista, permitiu a edição de publicações, nas quais fotografias, ao lado de desenhos e caricaturas, passam a complementar o texto, tornando-se possibilidade decifradora das letras impressas (BARBOSA, 2013). Para Kossoy, a “civilização da imagem” começa a se delinear no momento em que a litografia “ao reproduzir uma série de obras produzidas pelos artistas (...) inaugurou o fenômeno do consumo de imagem enquanto produto estético e documental” (2001, p. 136). As técnicas fotográfica e litográfica passam a ocupar o centro da narrativa visual desde meados do século XIX. Dezenas de revistas ilustradas aparecem, a partir de 1860, e com elas o uso da imagem passou a ser parte preponderante da narrativa. Assim, as revistas ilustradas podem ser consideradas como o primeiro suporte comunicacio- nal destinado a um público que se pretendia mais vasto (BARBOSA, 2013). A imagem constitui-se como fenômeno industrial e, em consequência, criam-se novas práticas de leitura caracterizadas pela rapidez do olhar e por uma percepção capaz de decifrar “imagens multiplicadas e justapostas num mesmo lugar” (SALGUEIRO, 2003, p. 17). Assim, quando surgiram, já no início do século XX, as modernas revistas ilustradas, adotando um novo padrão visual e editorial em relação às publicações do gênero do século XIX, o olhar do público já estava domesticado para a explosão visual que elas sedimentariam. Apesar da importância dessas publicações, lideradas por quatro principais títulos – O Malho, Careta, Fon-Fon e Revista da Semana – poucos são os estudos que se dedicam a explorar e interpretar o fenômeno da expansão das revistas no cenário de modernização da imprensa brasileira nos primeiros anos do século XX. Essas publicações, ricamente ilustradas, se diferenciavam das que as precederam no século XIX, não só em função da inclusão das novas tecnologias de impressão que permitiram a explosão das fotografias, a reprodução mais nítida das imagens e a expan- são das tiragens a partir do funcionamento nas oficinas das modernas impressoras Marinonis. Também do ponto de vista do conteúdo, houvera muitas transformações. Tendo na crítica aos costumes o centro de seus textos muitas vezes irônicos e que faziam da contestação e da descrição do cotidiano o padrão editorial dominante, publi- cavam ao lado dos textos sempre muitas imagens: das charges que reproduziam critica- mente cenas políticas ou mundanas até as fotografias que procuravam mostrar aspectos das cidades e das paisagens de um mundo em transformação. A rigor, desde as últimas décadas do século XIX, as revistas proliferavam no país, tornando-se gênero preferencial em função de diversos fatores: facilidades dos processos de impressão, com a adoção de novas tecnologias gráficas; possibilidade de condensação de assuntos num mesmo suporte; difusão de textos literários, entre os quais, o folhetim; construção de um amplo espaço para a produção literária e demanda por publicidade. Ao lado de tudo isso, a profusão das ilustrações e caricaturas, mas, sobretudo, das fotografias, foi decisiva para o sucesso dessas publicações (MARTINS, 2005, p. 248).

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Nas primeiras décadas do século XX, a imprensa brasileira passava por um processo de transformação que alterou a face visível do jornalismo. O desenvolvimento de jornais diários com tiragens expressivas e com a inclusão de signos da modernidade em suas páginas permitiu a explosão editorial de publicações que chegaram a imprimir 60 mil exemplares diários, como foi o caso do Jornal do Brasil, em 1905. Como mostra Mônica Veloso (2006), foi a articulação entre as elites empresariais e intelectuais que tornou muitos desses projetos possíveis. As revistas se configuravam, então, como lugar de estruturação de redes de sociabilidade, nas quais desempenhavam papel estratégico os intelectuais e artistas que ali tinham lugar para criar e experimentar novas linguagens. Caricaturas, gravuras, crônicas literárias, poesias, novos anúncios publicitários e projetos gráficos eram experimentados, na busca de um público que transformava as imagens e os textos em signos de reconhecimento da nova comunicação que tomava o espaço público. Monica Veloso (2006) destaca ainda o papel das revistas na construção, veiculação e difusão do ideário moderno. O objetivo desse texto é analisar de que maneira algumas principais revistas ilus- tradas brasileiras do início do século XX2 noticiaram a I Guerra Mundial explorando, sobretudo, a edição ilustrada. Para melhor particularizar como a guerra aparecia repre- sentada, analisaremos duas dessas publicações: Fon-Fon! e Careta. Metodologicamen- te faz-se primeiro uma quantificação das imagens publicadas (fotografias, charges, desenhos e mapas) em algumas edições e, na sequência, sintetizamos as temáticas e analisamos algumas das fotografias publicadas. As imagens da I Guerra são vistas por essas revistas como artefatos de comunicação, tecnologias inovadoras do início do século XX e, ao mesmo tempo, como possibilidade de construção de uma memória em migalhas da guerra, em que cenas perpetuam fatias do passado como se fosse a totalidade.

CARACTERIZANDO AS REVISTAS Quando a 1a Guerra explodiu na Europa, o Rio de Janeiro definitivamente “civilizara- se”, pelo menos no dizer dos cronistas da época. O footing na Avenida Central, no centro do Rio de Janeiro; as festas na Beira Mar, avenida que ligava o centro a bairros nobres, habitados pelos abastados, como Botafogo; os torneios que reuniam as elites mundanas e as paisagens de cidades de vários estados tinham sempre espaço nas publicações. A quantidade de publicidade – ocupando habitualmente as primeiras e últimas páginas, além dos anúncios que se distribuíam ao longo de toda a publicação – indica um público ávido por consumo e modernidade (BARBOSA, 2007, p. 57). Na revista Fon-Fon!, por exemplo, ou reclames, como se dizia na época, chegavam a ocupar as 20 primeiras e as 20 últimas páginas do periódico. Semanais, destinadas ao grande público, deixavam evidente a ideia de modernidade existente no cotidiano, procurando inserir o leitor nos processos de transformação que mudavam as relações de tempo e espaço. Nas múltiplas configurações do moderno, agressividade e crítica faziam par nessas publicações com atualização e moderação reflexiva (VELOSO: 2006, p. 324).

2. Entre as principais revistas ilustradas do início do século XX estavam Revista da Semana (1900), O Malho (1902), Fon-Fon! (1907) e Careta (1908).

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Para isso recorriam a muitas estratégias comunicativas, usando recursos literários e visuais. Entre essas, destaca-se a criação de símbolos que começavam já no nome escolhido para o periódico. Em Fon-Fon!, o recurso onomatopaico do título pretendia acionar o som das buzinas dos automóveis, construindo uma imagem memória para um leitor que reconhecia no nome a intenção crítica e humorística do periódico. Seu subtítulo – Semanário alegre, político, crítico e esfuziante – já deixava clara a proposta editorial. Custando 400 réis na capital e com assinatura anual de 20$000 podia ser considerado um periódico barato3.

Queremos fazer rir, alegrar a tua boa alma carinhosa, amado povo brasileiro, com a pilhe- ria fina e a troça educada, com a glosa inofensiva e gaiata dos velhos hábitos e dos velhos costumes, com o comentário leve às coisas da atualidade, definiam o propósito no primeiro número (Fon-Fon!, ano 1, n. 1, 13 de abril de 1907).

Criada em 1907, por Jorge Schmidt, Fon-Fon! circulou ininterruptamente até dezembro de 1945, se constituindo numa das mais importantes revistas brasileiras do século XX. Publicava matérias sobre moda feminina e infantil, ao lado de textos literários e charges políticas, procurando registrar a vida mundana das cidades, explorando as notas sociais e marcando posição na descrição da modernidade almejada pelas elites políticas e intelectuais4. Já Careta tinha em seu título, segundo C. Loredano (2002, p. 41), uma espécie de “eco do semanário argentino Caras y Caretas”, que circulou entre 1898 e 1941, definindo-se como “semanário festivo, literário, artístico e de atualidade (...) combinando humor, a crítica e a seriedade intelectual”. Ao elegerem o nome procuravam reiterar a linha editorial e acionavam o reconhecimento do público pela “visagem, momice, trejeito do rosto ou caraça”, sinônimos apresentados na língua portuguesa para careta, e que simbolizavam a contestação e a crítica (GARCIA, 2005, p. 32).

Aí vai a nossa Careta. Lançando à publicidade esse semanário, é preciso confessar, e contri- tamente o fazemos, que a Careta é feita para o público, o grande e respeitável público, com P grande! Se tomamos esta liberdade foi porque sabíamos perfeitamente que ele não morre de caretas. Longe vai o tempo em que isso acontecia. Todavia, nossa esperança é justamente que o público morra pela Careta, afim de que ela viva Careta( , n. 1, 6 jun. 1908, p. 9).

A revista que começou a circular em junho de 1908, foi fundada pelo mesmo Jorge Schmidt criador de Fon-Fon! (e que também lançara a revista Kosmos, que durou de 1904 a 1909), e se extinguiria somente em novembro de 1960, circulando ininterruptamente por mais de 50 anos. Lançando mão da sátira, de textos críticos, fazia das charges e das caricaturas expressões narrativas de seu humor político e de crítica social. Com recursos

3. No mesmo período um número de jornal diário custava 100 réis, o mesmo valor da passagem do bonde, na cidade do Rio de Janeiro. 4. Jorge Schmidt nasceu no Rio de Janeiro em 15 de março de 1879 e faleceu também no Rio em 26 de outubro de 1926. Estudou na Inglaterra (1887-1889) e mora também por um período na Bélgica (1892). Regressando ao Rio, abre uma tipografia na rua da Alfândega e passa a fazer parte da roda literária e boêmia do centro do Rio. Por achar que havia no Brasil falta de revistas literárias, funda a Revista Kosmos, cara para a época e com público reduzido. Em função do pouco sucesso editorial do periódico, Schmidt funda Fon-Fon! e na sequência Careta, ambas com um projeto editorial mais popular (DIMAS, 1983, p. 4).

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7043 Revistas ilustradas brasileiras e a narrativa da 1ª Guerra Mundial Marialva Barbosa visuais abundantes, usando a imagem como expressão de aproximação com o público desenhava em traços e em fotografias a sociedade do início do século XX. Publicada semanalmente, circulava aos sábados, tendo o formato original de 18,5 x 26,7 cm. Foi impressa em papel couché até 1916, quando em consequência das dificuldades impostas pela 1a. Guerra Mundial foi forçada a adotar o papel jornal (GARCIA, 2005, p. 30). Ao copilar a produção periódica brasileira nas três décadas iniciais do século XX, Ana Luíza Martins (2003) chama a atenção não apenas para o grande número de publi- cações, mas também para a variedade de intenções editoriais existentes, mostrando um segmentação expressiva das revistas. Em 1912, existiam, no Brasil, 882 periódicos qualificados pela pesquisadora como noticiosos e 118 literários. Havia ainda os religiosos (84), os científicos (58) e os humorísticos (57). Excetuando-se os da primeira categoria – noticiosos – as revistas certamente era o formato dominante entre os que ocupavam as outras classificações. A produção periodística do Brasil, naquele ano, chegava a 1.377 publicações (MARTINS, 2003, p. 65).

A GUERRA ILUSTRADA Observando as edições que abordam a eclosão do conflito na Europa, percebe-se que Careta priorizou, ao lado das imagens, longos textos impressos. As imagens que nessas primeiras edições tratam do conflito reproduzem retratos de alguns personagens chaves ou paisagens das cidades aonde estava se desenrolando a guerra. Ao lado de cenas mostrando o aparato bélico, as esquadras navais prontas para o ataque, os soldados nos campos de batalha, destacavam também prédios, praças e vistas aéreas de muitos lugares de toda a Europa. Fon-Fon! na edição de 15 de agosto de 1914, o segundo número a tratar do conflito, edita inúmeras fotografias nas páginas nas quais a rubrica “O assunto em foco” mostra que a temática dominante seria a guerra. Também Careta cria a sessão “A conflagração europeia” para agrupar as notícias sobre o assunto. Mas apesar do destaque, a maioria das páginas, sobretudo em Careta, continua repleta de temas relativos à vida elegante das cidades: as conferências literárias, a moda e os artistas do momento, a movimentação dominical no Derby-Club. Nas edições do início de agosto de 1914, as revistas passaram a inserir com mais destaque textos e imagens que falavam de um mundo marcado pelo conflito, pela morte e pelo sangue. Nesse primeiro momento a guerra era um assunto palpitante para o público, mas distante, não só espacial, como também simbolicamente. E talvez o mais representativo sintoma dessa apropriação particular de um tema que devia ser noticiado, mas que não pertencia ao universo cultural do público, seja a capa de Fon-Fon! de 15 de agosto de 1914. Uma paisagem tropical, com uma bananeira em primeiro plano e uma montanha ao fundo sobre a qual reproduzem de maneira discreta o título do periódico. No pé da página, ao lado do título, as indicações do número e da data de publicação. Nada faz lembrar, na página, que uma guerra mundial eclodira. Já Careta, ao contrário, reproduz na capa da edição de 8 de agosto de 1914 uma cari- catura que faz referencia explícita à guerra e a ela dá o mesmo título da rubrica das pági- nas que trarão as notícias dos acontecimentos que sacudiam a Europa: “a conflagração

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7044 Revistas ilustradas brasileiras e a narrativa da 1ª Guerra Mundial Marialva Barbosa europeia”. Nela, o imperador austro-húngaro Francisco José lava numa tina suas insíg- nias e a legenda acrescenta: “Para lavar minhas insígnias só todo o sangue europeu”. Mas no interior de ambas as publicações, o tema ganha destaque. O artigo de fundo daquele número de Careta, sob o título A hora da guerra, procurava explicar as conse- quências desastrosas do conflito, profetizando que milhares de homens iriam perecer frente ao “emprego dos mais terríveis meios de destruição”. E continuavam: “vai ser, pois, terrível, esta lúgubre passagem tumultuaria da morte pelo velho solo da Europa. A morte aperfeiçoou todos os seus aparelhos belicosos; já não fica a flor da terra ou a flor das águas; sobe as longes alturas azuleas das nuvens, – é o aeroplano, desce às obscuras profundidades oceânicas, – é o submarino”. (Careta, n. 320, 8 ago. 1914, p. 7). Fon-Fon! dedicou muitas páginas ao conflito no número de 15 de agosto de 1914. Fotografias de soldados, ilustrações de fábricas de armamentos, dos modernos artefatos bélicos, páginas duplas mostrando os acampamentos militares e imagens das tendas e das cozinhas de campanha, ou seja, do cotidiano do conflito ilustravam a revista. Na mesma edição, sob a rubrica A Guerra, publicou textos e ilustrações rememorando conflitos anteriores ou fotografias das cidades personagens centrais na guerra em páginas inteiras. De fato, a guerra tornava-se desde o primeiro momento um tema palpitante e deveria ser jornalisticamente tratado como tal.

- Ora, apesar de tudo, bendita seja a guerra! - Pelo amor de Deus, não diga isso... Então, o senhor não sabe as terríveis consequências que todo o mundo sentirá, que todo o mundo está sentindo! - Apesar de tudo, meu ilustre, eu desejo que a Europa se amortalhe em sangue e em cinza... - Mas porque! O senhor endoideceu! - Porque. Porque me diverte essa agitação de longe.... A vida que estamos vivendo, neste momento, é excepcional, tremula de emoções desencontradas, sinistras e contentes... Parece que somos outros... até o frio veio ter conosco... A cidade não dorme... A população anda frenética... Os jornais ganham popularidade e dinheiro... E isso principalmente me envai- dece o patriotismo... - Não entendo... - A guerra foi o único jeito de fazer com que os brasileiros lessem... todos leem, agora... Portanto, e apesar de tudo, bendita seja a guerra. Vou publicar um livro sobre a Conflagração Europeia! Vou arranjar uma fortuna... - Se consente, eu posso ser o editor... (Fon-Fon!, 15 ago. 1914, p. 20).

No texto, com alta dose de humor, publicado no rodapé da página, enfatizam o interesse que o tema despertava no público, fazendo com que os jornais ganhassem mais leitores e, em consequência, aumentassem suas receitas. Nas entrelinhas, há uma espécie de lamento pelo pouco valor que a população dava à leitura e a transformação desse cenário com a publicação em série do conflito europeu. A foto publicada na edição 32 da revista Fon-Fon!, reproduzindo a aglomeração à porta do Jornal do Brasil para ler as últimas informações nos jornais que eram fixados nas paredes do edifício sede do jornal, induz a pensar não apenas no interesse que as notícias sobre o conflito europeu despertava, mas também nas formas de leitura.

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PEGADAS DO PÚBLICO... Nas publicações pode-se observar, portanto, lendo as entrelinhas dos textos e procurando significações plurais, práticas de leitura que existiam na sociedade naquele momento. Percebendo as revistas não como fontes evidentes para a história, mas como textos capazes de prefigurar múltiplas interpretações, sobressai nas imagens maneiras como os leitores se relacionavam com os impressos nas primeiras décadas do século XX. Para tornar palpável o interesse que a Guerra despertava, Fon-Fon! publicou em agosto de 1914 uma fotografia em que mostra uma prática comum no universo cultural do público: a de ler em pé diante das portas das publicações as últimas notícias sobre um aconte- cimento extraordinário, os acontecimentos monstruosos de que fala Pierre Nora (1979). A multidão que se formava na porta dos periódicos mais populares para tomar conhecimento dos fatos extraordinários daquele mundo mostra não apenas a forma como se lia, mas que muitos ali aglomerados liam não efetivamente por fazerem os gestos do alfabetismo (KLEIMAN, 1995), mas sobretudo para fazerem parte da comunidade de leitura que ali se formava. Os que se localizavam na última fileira certamente sequer enxergavam as letras miúdas na porta do jornal, mas eram igualmente leitores por parti- ciparem daquele instante em que pelos periódicos se podia ler (e ver) imagens da guerra.

Fig. 1: “O povo à porta do Jornal do Brasil, em busca de notícias sobre os acontecimentos da Europa”. Fon-Fon!, n. 32, 8 ago. 1914, p. 51. Acervo Fundação Biblioteca Nacional.

Homens de paletó e gravata, misturavam-se a um público que pela maneira de vestir podemos induzir pertencer aos grupos populares. O boné no lugar do chapéu ou mesmo a cabeça desnuda indica a condição social de muitos dos que se aglomeravam. Mas na fotografia, a imagem de uma mulher com um turbante na cabeça e chinelos nos pés chama particularmente a atenção. Entre aqueles que buscavam informações sobre o tema que mais produzia naquele momento a inclusão do extraordinário nas páginas das publicações havia leitores que pertenciam claramente ao universo do povo simples e comum. Diante das páginas dos jornais, liam em pé, junto com outros, não só pelos

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7046 Revistas ilustradas brasileiras e a narrativa da 1ª Guerra Mundial Marialva Barbosa olhos, mas também pelos ouvidos, já que ali, em grupo, os comentários também eram parte integrante das leituras. Também Careta reproduziu, sob a forma de charge, o mesmo movimento registrado por Fon-Fon! do interesse que as notícias da guerra produziam. Na edição de 29 de agosto de 1914, sua capa mostra igualmente a multidão de leitores na porta das publicações em busca de informações sobre a guerra da Europa. A frase “Daremos 2a edição” colocada sobre a fotografia do público-multidão materializava o gesto comum na imprensa de publicar em edições sucessivas notícias daquele conflito que produziam sem cessar “informações sensacionais”. Mais uma vez o público-multidão podia conhecer os últimos acontecimentos por múltiplos modos de leitura. A leitura feita ao lado de outro na porta do jornal induzia à partilha do comentário ou {a leitura daquele que sequer conseguia ver a publicação, mas que igualmente fazia parte da comunidade-leitor. Comentando, gesticulando, olhando em direção à fachada do jornal, talvez esperassem pacientemente até a fixação de novas informações sobre o conflito mundial. O leitor se aproximava espacial e temporalmente de lugares aonde a guerra cons- truía uma unidade que só existia pelos modos narrativos. O tema produzia interesse em um público amplo, o que induzia a construção de novas redes textuais, a publicação de novas informações, fazendo com que, com sentido crítico, o autor do texto pilhérico, reproduzido anteriormente, se propusesse mesmo a fazer um livro sobre o conflito. Com ele, a certeza da venda. A guerra era um tema, de fato, palpitante. Mas o que despertava a atenção: a informação sobre as novidades de um mundo em crise ou a forma como as publicações narravam o conflito?

Fig. 2: Edição de Careta, n. 323, 29 ago. 1914, p. 1. Acervo Fundação Biblioteca Nacional.

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IMAGENS DE UM MUNDO EM CRISE Para melhor particularizar como a guerra aparecia representada nas revistas, faremos uma breve análise dos temas das fotografias publicadas em Fon-Fon! e Careta nos cinco primeiros números que tiveram a 1a. Guerra Mundial como tema. Em função de não haver na Biblioteca Nacional do Brasil a edição 322 da revista Careta, optamos por incluir os quatro números de agosto de 1914 e também o primeiro de setembro daquele ano. Em relação à Fon-Fon! todos os números de agosto de 1914 foram encontrados e serão analisados. Sistematizando as imagens que ilustravam a guerra, observamos que tanto Fon- Fon! como Careta valorizavam, sobretudo, a edição de fotografias. Em Careta, ocupava a segunda posição na interpretação da guerra dezenas de charges que faziam alusão direta ou indireta ao conflito, enquanto Fon-Fon! preferia a edição de desenhos. Do ponto de vista editorial, percebe-se o valor da crítica em Careta, através de ima- gens jocosas editadas sob a forma charge, enquanto o valor artístico era dominante em Fon-Fon!, com desenhos a bico de pena cuidadosamente elaborados e que procuravam reproduzir as cenas mais extraordinárias do teatro bélico e que não poderiam ter sido capturadas. Os desenhos funcionavam como fixação da ruptura extraordinária produ- zida pelo conflito, transfigurando-se em imagens expressas como imaginação sobre o teatro da guerra.

Tabela 1. Tipologia das imagens da guerra em Careta/Fon-Fon – agosto/setembro 1914

Careta Fon-Fon Desenhos 1 21 Mapas 9 2 Charges 24 6 Fotografias 103 108 TOTAL 132 137

Fonte: Careta, n. 320, 322, 323, 324 e 325 de 8 ago. 1914 a 12 set. 1914;

Fon-Fon, n. 31, 32, 33, 34 e 35 de 1 ago. 1914 a 29 ago. 1914.

Comparando-se a temática das fotografias publicadas nas duas revistas observa- se um padrão editorial comum, certamente decorrente das imagens que os editores tinham à sua disposição. Assim, há uma nítida supremacia de imagens frias: retratos dos personagens, reis e rainhas, arquiduques e duquesas, generais e outras autoridades, ao lado de cenas bucólicas das cidades, destacando-se as suas construções arquitetônicas. Paisagens de um tempo em que reinava a paz para ilustrar a guerra. Nas tabelas a seguir, observa-se que do total de 103 fotografias sobre o conflito publicadas por Careta, 26 retratavam autoridades europeias, enquanto em segundo lugar vinham as cenas das cidades. A mesma supremacia existia também em Fon-Fon!: os personagens são retratados em 29 fotografias, enquanto as cenas das cidades aparecem 42 vezes.

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Tabela 2. Narrativas fotográficas da guerra – Careta – agosto/setembro 2014

320 322 323 324 325 Total Personagens 4 7 12 3 26 Cenas de cidades - 4 11 5 - 20 Artefatos tecnológicos bélicos - 6 - - 9 15 Desfile de tropas - 5 5 5 15 Tropas em manobras 2 1 4 3 10 Soldados em ação 4 4 8 Cotidiano 1 1 Ruinas das cidades 4 4 Feridos e Mortos 4 4 Total 4 24 25 18 32 103 Fonte: Careta, n. 320, 322, 323, 324 e 325 de 8 ago. 1914 a 12 set. 1914

Descontando-se a excepcionalidade dos números 324 em Careta e 35 em Fon-Fon!, cuja morte do Papa Pio X levou a editar de maneira secundária as notícias da guerra, observa-se que no terceiro número dedicado aos acontecimentos europeu Fon-Fon! publicou o dobro de fotografias, produzindo um painel multifacetado sob a forma de imagens. Enquanto Careta se contentava em editar fotografias frias de paisagens de paz e retratos de personalidades da guerra, Fon-Fon! abria espaços para cenas de soldados em ação, para os artefatos tecnológicos do mundo em crise, para as tropas em manobra por todos os lados. As consequências da guerra aparecem pela primeira vez retratadas nas ruinas das cidades. A guerra com todas as suas consequências visíveis só apareceria nas fotos de Careta duas edições mais tarde, em setembro de 1914, quando publicaram imagens de ruínas, pequenas fotos de feridos e um cortejo levando um corpo para o enterro presumido.

Tabela 3. Narrativas fotográficas da guerra – Fon-Fon! – agosto de 2014

31 32 33 34 35 Total Personagens 15 11 1 2 29 Paisagens 18 20 4 42 Artefatos tecnológicos bélicos 4 7 11 Desfile de tropas 2 2 Tropas em manobras 1 4 5 Soldados em ação 14 14 Cotidiano 3 1 4 Ruinas das cidades 1 1 Feridos e Mortos - Total - 15 52 32 6 108 Fonte: Fon-Fon, n. 31, 32, 33, 34 e 35 de 1 ago. 1914 a 29 ago. 1914.

As imagens da 1a. Guerra Mundial publicadas devem ser vistas numa dupla perspectiva. São artefatos de comunicação, tecnologias inovadoras do início do século XX, que permitiram a fixação de uma memória duradoura, construindo uma memória histórica, sobre uma guerra que parecia exterminaria a humanidade. A fotografia

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7049 Revistas ilustradas brasileiras e a narrativa da 1ª Guerra Mundial Marialva Barbosa produziu, por outro lado, uma memória em migalhas, em que cenas perpetuam fatias do passado como se fosse a totalidade. Quem é o soldado da cena? Quem está entrincheirado, quem são aqueles que vemos ao longo nos campos de batalha que constituem o teatro da guerra? Erick Hobsbawm (1995), um dos maiores historiadores que o mundo já conheceu, afirma que a I Guerra Mundial inaugurou a era do massacre. Matou mais de um milhão de pessoas em combate; os franceses perderam mais de 20% de seus homens em idade militar e os britânicos uma geração de meio milhão de homens com menos de 30 anos. Na memória dos britânicos e franceses, segundo Hobsbawm (1995), esta teria sido uma guerra muito mais violenta do que a 2a. Guerra Mundial. De tal forma, que para os que viveram e cresceram antes de 1914, havia uma distinção tão dramática em relação aos tempos anteriores que se recusavam a estabelecer qualquer continuidade com o passado. Paz significava, para eles, antes de 1914. Depois disso veio algo que não merecia mais este nome (HOBSBAWM, 1995, p. 29) No caso dos registros fotográficos da guerra nas revistas Fon-Fon! e Careta outro destaque era a reprodução dos artefatos de uma guerra que colocava no campo de batalha máquinas tecnológicas de enfrentamento humano. Navios e dirigíveis, canhões e submarinos estavam entre as muitas tecnologias que ganhavam destaque, mostrando para o leitor que a modernidade contraditória também se acoplara às possibilidades destruidoras humanas. Reproduzindo imagens dos artefatos tecnológicos da primeira guerra do século XX, as revistas não só informavam o seu público, como construía em torno desses aparatos um discurso unânime sobre a modernidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Mas porque registrar com tanto destaque a dor, a morte, o conflito, a irracionalidade humana? Podemos ensaiar possíveis interpretações. O século XX inaugurou uma ruptura grandiosa em relação aos tempos anteriores. Desloca-se para o conflito humano a caracterização da vida e a violência torna-se também massiva, como a emergente vida mundana nas maiores cidades do mundo. Os tempos de paz definitivamente ficaram para trás. Era necessário mostrar a nova faceta do mundo. Corpos insepultos, figuras macabras, ao lado de cidades destruídas e aglomerados humanos em torno da dor passam a ser objetos de visualidades, expressas em revistas que deixam ver o mundo em conflito. O mundo se esfacelava e os meios de comunicação, auxiliados pelas tecnologias da imagem, multiplicavam a face mais estarrecedora da humanidade. Mostrando que não era apenas o homem responsável pelo conflito, as revistas deviam destacar máquinas que tornavam possível a morte em massa. Nesse sentido, os artefatos tecnológicos bélicos se transformavam em signos de morte publicados com frequência. Há que se considerar ainda que olhar o mundo em conflito significava fazer parte de uma mesma encenação, incluindo-se como expectador de um acontecimento que era mostrado graças às novas possibilidades tecnológicas dos meios de comunicação. Encurtava-se o tempo e o espaço: o distante tornava-se próximo e tinha-se a sensação de viver num mundo global, ainda que despido de sua própria humanidade.

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Mas os meios de comunicação de então, as revistas ricamente ornadas de desenhos e fotografias e os jornais que graças às agências internacionais de informação publica- vam os últimos acontecimentos das horas imediatas dos dias anteriores, não serviam apenas para amplificar as imagens do mundo. Construíam-se como memória viva de um tempo que, mesmo longínquo, continua se fazendo presente um século depois. Ou seja, a característica de se construir como documento para o futuro é marca dominante desses impressos. E com esse sentido eram editados e multiplicavam pelo mundo as imagens de um tempo de crise. Mas tinham igualmente a tarefa de mostrar em detalhes lugares e personagens que localizavam espacialmente um conflito que se efetivava pela ação daqueles que naquele presente se transformavam em personagens da história. Dai a proliferação de imagens de terras até então desconhecidas. Era preciso igualmente personalizar a guerra: dai a insistência em fixar os rostos dos atores políticos que se constituíam naquele presente estendido como personagens de uma história futura. No futuro, folheando essas revistas, cada uma dessas imagens nos faz ingressar novamente naqueles cenários. Cenas esmaecidas se constituem em arquivos da memória de um tempo marcado, hoje, pela diferença. E pela diferença experimentamos gerações que existiram antes de nós e tentamos perceber elos que nos conectem a um momento e lugar que só se fazem presentes, no futuro, via processos comunicacionais. A marca do futuro é tão presente nos meios de comunicação que suas tecnologias são sempre construídas tendo em vista o devir. Essa mesma marca produz as características mais constantes em suas narrativas: imortalizar o presente como passado numa aceleração exponencial do tempo em direção ao futuro.

REFERÊNCIAS Barbosa, M. (2007). História Cultural da Imprensa. Brasil 1900-2000. Rio de Janeiro: MauadX. Barbosa, M.(2013). História da Comunicação no Brasil. Petrópolis: Vozes. Dimas, A. (1983). Tempos eufóricos. Análise da Revista Kosmos: 1904-1909. São Paulo: Editora Ática. Garcia, S. (2005). Revista Careta: um estudo sobre humor visual no Estado Novo (1937- 1945). Dissertação de Mestrado em História. Assis: Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Paulista Júlio de Mesquita Filho. Hobsbawm, E. (1995). A era dos extremos. O breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras. Kleiman, A. (Coord.) (1995). Os significados do letramento. Campinas: Mercado das Letras, 1995. Loredano, C. (2002). O bonde e a linha. Um perfil de J. Carlos. São Paulo: Editora Capivara. Machado Jr, C. (2006). Fotografias e códigos culturais: representações da sociabilidade carioca pelas imagens da revista Careta (1919-1922). Dissertação de Mestrado em História. Porto Alegre: PUCRS. Martins, A. (2003). Da fantasia à História: folheando páginas revisteiras. História, São Paulo, 22 (1), p. 59-79.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7051 Revistas ilustradas brasileiras e a narrativa da 1ª Guerra Mundial Marialva Barbosa

Martins, A. (2005). Revistas na emergência da grande imprensa: entre práticas e repre- sentações (1890-1930). In: ABREU, Márcia e SCHAPOCHNICK, Nelson (orgs.). Cultura letrada no Brasil. Objetos e práticas. São Paulo: Mercado das Letras/FAPESP. Nora, P. O retorno do fato (1979). In: LE GOFF, J.; NORA, P. História: novos problemas. 2 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. p.179-193. Sussekind, F. (1987). Cinematógrafo das Letras. Literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. Veloso, M. (2006). Percepções do moderno: as revistas do Rio de Janeiro. In: Neves, L.; Morel, M.; Ferreira, T. (orgs.). História e Imprensa. Representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A/FAPERJ. Veloso, M. (2008). Sensibilidades modernas: as revistas literárias e de humor no Rio da Primeira República. In: LUSTOSA, Isabel (org.). Imprensa, história e literatura. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7052 A vida secreta das revistas ilustradas: um réquiem The secret life of ilustrated magazines: a requiem

Ita l a M a d u e l l Vi e i ra 1

Resumo: Resultado de levantamento exploratório relacionado a pesquisa mais ampla em nível de Mestrado sobre jornalismo cultural, o trabalho concatena reflexões sobre a evolução histórica de empresas, tecnologias e públicos da comu- nicação nos EUA e no Brasil; bem como sobre a história da comunicação através dos meios audiovisuais, a partir do filme A vida secreta de Walter Mitty (EUA, 2013). Tendo como contexto a reconfiguração da revista americana Life, referência no fotojornalismo que em 2000 deixou de circular para se tornar on-line, o enredo do longa-metragem se equilibra nas tensões geradas pela ascensão da mídia on-line frente à impressa, pelo avanço tecnológico que decretou a obsolescên- cia da fotografia analógica; pela passagem a novos regimes de visibilidade do homem comum em lugar do herói com o viés político-estético da visibilidade dos anônimos; e por uma reflexão sobre as representações do cotidiano. Segue-se aqui o rastilho de considerações que o filme suscita sobre comunicação, cinema, fotografia, prestando-se ao debate sobre arte e vida, imagem e invisibilidade, banal e extraordinário, prosaico e poético na cultura das mídias, constituindo- -se num réquiem da era das revistas ilustradas e, em certa medida, da própria imprensa escrita, ou do que restava de artesanal em seu processo de produção. Palavras-Chave: Jornalismo. História. Comunicação. Audiovisual. Meios.

Abstract: In the context of the reconfiguration of American’s Life Magazine, refe- rence in photojournalism which stopped circulating to become online in 2000, the plot of the movie The secret life of Walter Mitty (USA, 2013) balances the tensions between the rise of online media and the technological developments that led to the obsolescence of analog photography; the transition to new regimes of visibility of the common man instead of the hero and the politico-aesthetic bias visibility of anonymous, marked by cultural and political practices; a reflection on the representations of everyday life. The purpose of this article is to follow the trail of considerations that the film – a requiem of illustrated magazines age and, someway, of the press itself, at least of what was left of artisanal in its production process – raises about cinema, photography, communication, art, stablishing a debate about art and life, image and invisibility, banal and extra- ordinary, poetic and prosaic in media culture. Keywords: Journalism. History. Communication. Audiovisual. Midia.

1. ECO-UFRJ/PUC-RIO (Brasil).

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7053 A vida secreta das revistas ilustradas: um réquiem Itala Maduell Vieira

UMA BREVE APRESENTAÇÃO M 2000, foi publicada a última capa da revista Life, que deixou de circular para se tornar Life Online. Este é o contexto de que parte o filme A vida secreta de Walter EMitty (The secret life of Walter Mitty, Estados Unidos, 2013). A proposta deste trabalho é seguir o rastilho de considerações que o filme suscita sobre práticas do jornalismo e do fotojornalismo analógico e on-line. O protagonista é o gerente do Setor de Negativos da revista, onde trabalha há 16 anos. A partir de seu modesto porão repleto de caixas empilhadas em corredores-estantes, Mitty é o responsável pelas imagens que construí- ram a imagem da Life em sucessivas edições. Na figura nada original de Mitty, centra-se um enredo que se equilibra nas tensões geradas pela ascensão da mídia on-line frente à impressa, pelo avanço tecnológico que decretou a obsolescência da fotografia analó- gica; pela passagem para novos regimes de visibilidade do homem comum em lugar do herói e pelo viés político-estético da visibilidade dos anônimos, marcado por práti- cas culturais e políticas; por uma reflexão sobre as representações do cotidiano. Neste sentido, A vida secreta de Walter Mitty presta-se ao debate sobre arte e vida, o prosaico e o poético na cultura das mídias, “o mundo verdadeiro que afinal tornou-se fábula”, de que falou Nietzsche. Até meados do século XX – quando então a TV assumiria esta função –, era pelo cinema ou por revistas ilustradas como a Life, ou ainda a francesa Paris Match e a Cruzeiro, no Brasil, que se “via o mundo”: o slogan da revista americana, grafado numa parede da sede da empresa, era “To see the world, things dangerous to come to, to see behind walls, to draw closer, to find each other and to feel. That is the purpose of life” (“Para ver o mundo, para enfrentar perigos, para ver através das paredes, para chegar mais perto, para achar um ao outro e para sentir. Este é o propósito da vida/Life”). Fundada como revista de variedades em 1886 e reformulada em 1936, tornando-se referência do fotojornalismo mundial, a Life circulou semanalmente até 1972, sempre com grandes reportagens. Foram às bancas imagens como a da menina nua correndo após um ataque de napalm no Vietnã, a chegada dos aliados à Normandia e as bombas da Segunda Guerra Mundial, produzidas por uma equipe de colaboradores que incluía Robert Capa (1913-1954) e Henri Cartier-Bresson (1908-2004). A vida secreta de Walter Mitty expõe caricaturalmente o processo de “incorporação” (como se diz no mundo corporativo) da tradicional revista na virada do século, por um grupo econômico voltado para a otimização dos processos e dos lucros, seguindo cartilhas de consultores de reengenharia empresarial e estratégias de downsizing: redu- ção de pessoal e custos fixos, aumento de produtividade, imposição de novas culturas corporativas. No enredo do filme, o prestigiado fotógrafo Sean O’Connell é um medalhão do naipe de um Cartier-Bresson ou um Capa, que viaja o mundo atrás de cliques extraordinários, e manda ao novo chefão da Life um telegrama com orientações sobre a foto que deve ser a última capa da revista impressa. Classifica a imagem como the“ quintessence of life” – a quintessência da vida, particularmente a quintessência da revista. Aquilo que é essencial, o principal, seu último apuramento. O fotógrafo considerava Mitty um parceiro especial, por revelar seus cliques sempre da melhor maneira ao longo de todos estes anos de trabalho. Ao encaminhar

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7054 A vida secreta das revistas ilustradas: um réquiem Itala Maduell Vieira o rolo de negativos a Mitty, manda também um presente e um bilhete, como prova de reconhecimento: “Soube que a Life acabou. Queria agradecer. Dê uma olhada dentro. Um presente pelos anos de trabalho duro. A 25 é a melhor foto, a quintessência da vida/ Life. Sei que você vai levá-la para onde precisa ir”. Mitty, entretanto, não costuma ir a lugar algum – pelo menos não na vida real. É um sujeito opaco, de existência banal. Morreria de tédio se não fosse frequentemente arrebatado de sua vida flácida por pensamentos, viagens mentais, delírios, como Mada- me Bovary pelos livros na obra de Flaubert. Em seus lapsos, imagina situações extra- -ordinárias. Dentro de sua cabeça, ele é inteligente, sagaz, magnético. Teletransporta-se para um programa de auditório em que tudo o que diz é aplaudido. Enquanto isso, no mundo real, emudece diante do interlocutor, comprometendo o fluxo de registros e emissão de sinais próprios do processo comunicacional. Walter Mitty é um produtor sistemático de ruídos. É um bug. Michel de Certeau atribui à linguagem um lugar central, linguagem entendida em sentido amplo – gestos, comportamento, “tudo aquilo que produza comunicação e sentido” (1998). Tomando a noção de que esta se dá por meio de dispositivos cognitivos e práticos que orientam a atribuição de sentido às situações e guiam a ação, como numa dança, Walter Mitty causa um descompasso, incapaz que é de permanecer na cena – pelo menos externamente. Se a participação em um quadro significa ajudar a montá-lo, sendo força dinâmica na sucessão de fases, Mitty negligencia seu papel neste processo. Se, como afirma Mead, é no curso da ação que conhecemos nossa própria mente, e “somos sempre surpreendidos por nossa própria ação” (CEFAÏ; QUERÉ, 2006, p. 26), Mitty toma consciência das suas ações, mas dentro da própria mente, a que o outro não tem acesso. Em sua viagem particular, o desenrolar da interação se dá internamente. Sem aviso ou intenção, traz o interlocutor para dentro de si – único espaço onde a ação se dá integralmente. Por outro lado, se seu peculiar jeito de ser cria isolamento e incomunicabilidade com os que o cercam, em especial com os que deseja ter por perto, por outro resulta numa tática de sobrevivência frente às estruturas de controle e poder, personificadas na figura do novo gestor da Life. Mitty continua sonhando sabendo que se sonha (Niet- zsche, 2001); aproveita-se de sua insignificância e invisibilidade, em pequenos golpes, vitórias ocasionais no tabuleiro da dominação que se impõe no ambiente de trabalho; antes invisível, passa a desaparecer de propósito, e a promover pequenas resistências (Certeau, 1998). Funcionário exemplar e meticuloso, que conhecia de cor o conteúdo do gigantesco arquivo, Mitty perde justamente aquela que seria a foto da sua vida. Como não encontra o fotograma indicado por O’Connell, Mitty, para não trair a confiança do fotógrafo e salvar seu emprego, se lança numa jornada que foge radicalmente de sua rotina, a fim de, ironicamente, cumprir sua rotina: publicar a foto indicada na capa da revista. A suposta falha profissional promovida pela perda o leva do pensamento à ação. Nesta jornada, recupera o espírito jovem que deixara guardado no fundo de si, como a mochi- la empoeirada entre os guardados no sótão da mãe. Como os negativos com os quais trabalha, Mitty se limitava a guardar as imagens, sem sair dos bastidores. Dominava, mas não tomava parte do processo de decisão, ou de poder, ou de visibilidade. Erving

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Goffman afirma que a rotina/normalidade são representadas pela invisibilidade do ambiente: “The normal is unmarked, unnoticed, unthematized, untheorized” (Brighenti, 2007). Ou ainda, como observa Rancière (2012a, p. 16), a partilha do sensível faz ver quem toma parte no comum, em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce, “define o fato de ser ou não visível num espaço comum, dotado de uma palavra comum”. Por força do ofício, pela imaginação ou pela mágica do cinema, Mitty explora terras distantes (Groenlândia, Islândia, Afeganistão, Himalaia) tal qual um Marco Polo; pula de um helicóptero no mar com tubarões; intenta fuga espetacular de um vulcão em erupção. O negativo ganha vida, movimento. É a democracia da ficção, que permite a mobilidade de papéis identificada por Rancière. Estabelece-se um contraste entre a grande história, os feitos, os cenários extraordinários dignos de capa de revista; e o cotidiano. Um entrelaçar entre o nome da revista e a própria vida, vida e arte em trocadilho.

ORIGENS E VERSÕES O filme de 2013, dirigido e estrelado por Ben Stiller, com roteiro de Steve Conrad, é a segunda adaptação para o cinema de um conto do escritor e cartunista James Thurber (1894-1961), um dos principais colaboradores da revista americana The New Yorker entre os anos 1930 e 40. Originalmente publicado na revista em 1939 e editado em livro em 1942, o conto The secret life of Walter Mitty retrata um sujeito acanhado que vive num mundo fantástico e cheio de aventuras dentro da própria mente, válvula de escape de seu ordinário cotidiano. O conto foi levado às telas pela primeira vez em 1947 (O homem de oito vidas, no Brasil), no qual Mitty (Danny Kaye) é revisor (mais um profissional fadado à obsolescência) na editora de revistas Pierce, em Nova York. Devaneia nas histórias publicadas, e nestas “viagens” se transporta para um mundo irreal no qual é heroico, equilibrado, seguro e dono do seu destino. A história, portanto, migrou de suporte ao longo de décadas – primeiro em revista, depois em livro, levado então às telas em duas versões. Muitas vezes, como observou Bazin (2001), o cinema se apropriou de personagens e aventuras que, embora oriundos da literatura, extrapolaram o universo literário, fazendo parte de uma memória ficcional mais ampla, “de uma espécie de mitologia que se tornou independente do texto original” (apud Figueiredo, 2010, p. 17). Embora o mote não seja propriamente original – Baudelaire já havia descrito os devaneios de um homem em A sopa e as nuvens, de seus Pequenos poemas em prosa (1821- 1867) –, Walter Mitty fez sucesso a ponto de se tornar expressão corrente no cotidiano norte-americano. O nome foi incluído em dicionários de língua inglesa como sinônimo de “pessoa comum, tímida, dada a devaneios de aventura e auto-engrandecimento ou planos secretos, como forma de exaltar a vida monótona”. Aquele abilolado que sonha ser soldado é chamado de Walter. E mesmo Snoopy, o cãozinho sonhador criado em 1950 por Charles M. Schulz, é descrito como um beagle com complexo de Walter Mitty. Benjamin observara, ainda nos anos 1930, em O autor como produtor, o processo de fusão de formas literárias e, com os jornais, o nascimento do leitor moderno e de um novo tipo de escrita, decorrente da circulação acelerada dos textos e da propagação da leitura extensiva. No universo de James Thurber, como pontua o crítico Marcelo Coelho

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(2014), a ficção impressa ainda era o que fornecia o ópio imaginativo do personagem, num tempo em que o cinema já reinava na cultura americana. O cinema surge no final do século XIX fruto de avanços técnicos que abriram caminho para um novo mercado de narrativas visuais. No entanto, quando começa a se consolidar, nas primeiras décadas do século XX, o regime estético das artes está totalmente estabelecido. A relação arte/mercado já havia sido questionada e continuava sendo colocada em debate pelas vanguardas das demais artes. A inocência épica tinha se perdido, e a representação era um dos principais alvos de combate das vanguardas históricas:

A literatura não era apenas um repositório de histórias e técnicas narrativas a que o cinema poderia recorrer, mas possibilitava alcançar um outro patamar de “dignidade cultural”, como arte mais antiga e por estar afastada tanto das narrativas populares quanto da incipiente cultura de massa sujeita à lógica do mercado (Figueiredo, 2010, p. 16).

A resenha crítica do filme na Folha de S.Paulo cai na tentação de comparar as versões, e toma partido do filme dirigido e estrelado por Ben Stiller, afirmando ter este “uma riqueza de conotações e uma exuberância imaginativa que o simpático e curtíssimo conto de James Thurber não consegue alcançar”. Da mesma forma, o crítico aponta a dúvida que paira a respeito do que é real e o que é imaginação, na medida em que tudo se passa no ambiente onírico dos filmes de Hollywood: “O espectador pode se perguntar se esse novo personagem é de fato ‘verdadeiro’ ou simplesmente uma nova, e mais elaborada, ilusão” (Coelho, 2014). Pouco importa. Danto (2010) lembra que os artistas, desde os tempos de Platão até os dias de hoje, têm a ambição de resgatar a arte para a realidade, e defende que teria sido a cultura de massa a diluir as fronteiras entre arte e vida – no entanto sem a utopia proposta pelas vanguardas. A interlocução entre cinema e literatura mereceu conjunto de textos reunidos por Figueiredo em 2010. Para compreender melhor esse entrelaçamento, como bem diz José Carlos Avellar na apresentação, talvez seja possível imaginar um processo em que os filmes buscam nos livros temas e modos de narrar que os livros apanharam em filmes; em que os escritores apanham nos filmes o que os cineastas foram buscar nos livros; em que os filmes tiram da literatura o que ela tirou do cinema; em que os livros voltam aos filmes e estes aos livros, numa conversa jamais interrompida (Figueiredo, 2010, p. 9). Não cabe aqui debate mais extenso sobre o tema, mas é obrigatório registrar minha concordância com a autora, ao entender que todas as artes conversam, e que a relação entre cinema e literatura vai muito além de adaptações ou transposições.

ALGUMAS QUESTÕES SOBRE IMAGEM Na era moderna, a ênfase aos sentidos da visão e da audição têm marginalizado os sentidos de proximidade do olfato, tato e paladar. Em A obra de arte na era da sua repro- dutibilidade técnica (1935), texto de referência sobre as transformações na percepção das obras de arte e o cinema, Walter Benjamin realiza um inventário histórico da arte na modernidade e defende a tese de que as formas de exposição da fotografia e do cinema modificaram a arte e sua recepção: no caso da fotografia, pela reprodução ampla de obras existentes (reprodução), bem como pelas imagens de uma realidade que não pode

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7057 A vida secreta das revistas ilustradas: um réquiem Itala Maduell Vieira ser captada a olho nu (o inconsciente óptico). No século XIX, a reprodução técnica atin- giu tal grau que não só abarcou o conjunto das obras de arte existentes e transformou profundamente o modo como elas podiam ser percebidas, mas conquistou para si um lugar entre os processos artísticos (Benjamin, 2012, p. 11). Como destaca Lissovsky, tanto a Pequena história da fotografia como A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica buscam recolher e transcender, do ponto de vista estético e político, um debate sobre a essência da fotografia – sua especificidade – que envolveu os produtores de imagens técnicas durante a “fase heroica” da vanguarda fotográfica alemã, particularmente nos anos 1920 (1995, p. 31), apogeu da fotografia que, como Benjamin mesmo aponta, coincide com suas primeiras duas décadas de existência como técnica pré-industrial e arte de feira ([1931] 1994, pp. 91-92). Mais tarde, Daniel Boorstin (1992) usa a Revolução Gráfica (1850) como marca temporal para sua análise da imagem como guia dos pseudoeventos nos Estados Unidos, e indica a mídia como a raiz do problema, ao instaurar o poder de criar imagens. Na visão de Boorstin, a Revolução Gráfica não apenas criou a chance de produzir a imagem, como deixou à mostra que esta é fabricada. A imagem não é mais testada pela realidade; é a realidade que passa a ser testada pela imagem, é a verificação da imagem já conhecida pelo filme, pela foto. Enquanto em países não industrializados, como lembra Sontag, as pessoas se sentem apreensivas ao ser fotografadas, suspeitando tratar-se de algum tipo de transgressão, um ato de desrespeito, “um saque sublimado da personalidade ou da cultura”, em países industrializados, ao contrário, muitos procuram até ser fotografados – “sentem que são imagens, e que as fotos os tornam reais” (Sontag, 2004, p. 177-178). Observa-se no filme um jogo de aproximações e distâncias, de familiaridade e exotismo. No fragmento de um piano, no close de um dedo masculino, nas viagens da casa da mãe aos extremos do planeta, no estar muito próximo para enxergar. Em 1921, Jean Epstein atribuía ao dispositivo técnico cinematográfico o poder de diluir a oposição entre sensível inteligível, por permitir ver o que o olho humano não vê: a dimensão íntima, imaterial da realidade, constituída de partículas, ondas e vibrações em movimento contínuo (1974, apud Figueiredo, 2010, p. 17). Sontag, por sua vez, aponta que a fotografia, que tem tantos usos narcisistas, é também um poderoso instrumento para despersonalizar nossa relação com o mundo; e os dois usos são complementares. Como um par de binóculos sem um lado certo e outro errado, a câmera torna próximas, íntimas, coisas exóticas; e coisas familiares, ela torna pequenas, abstratas, estranhas, muito distantes (Sontag, 2004, p. 183-184). Além do poder de criar imagens, a mídia ao mesmo tempo tem o poder de fabricar heróis como os que Mitty ajusta na capa da revista, até se revelar, ele próprio, autor de feitos extraordinários. Como apontou Boorstin (1992), a notoriedade deu vez às celebridades, personagens não mais notórios por sua grandeza, mas eleitos para a fama, lugar de distinção não conquistado, mas atribuído pela mídia, por revistas como a Life. O livro As origens do fotojornalismo no Brasil: um olhar sobre O Cruzeiro, 1940/1960, publicado pelo Instituto Moreira Salles, busca apontar razões do sucesso das revistas ilustradas: na Europa e nos Estados Unidos, o surgimento destas revistas esteve intimamente relacionado aos aperfeiçoamentos tecnológicos, que permitiram a inclusão da fotografia nas páginas dos periódicos, à industrialização da imprensa, à

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7058 A vida secreta das revistas ilustradas: um réquiem Itala Maduell Vieira comercialização da notícia e à expansão da publicidade. No Brasil, não foi diferente, mesmo com a defasagem em relação às indústrias culturais do exterior. A revista ilustrada foi a grande vitrine do fotojornalismo moderno, estampando na capa de O Cruzeiro índios do Amazonas olhando fascinados para os “pássaros de fogo” (aviões) pelas lentes de Jean Manzon ou o périplo de Sebastião Salgado para descobrir e revelar povos ainda sem contato com a civilização. “O gosto pelo exótico e a curiosidade pelo diferente, por exemplo, vão promover a produção e a difusão de fotografias de intenção documental de locais distantes e de paisagens” (Sousa, 2000, p. 27). É Sontag novamente quem vai propalar a enorme diferença entre observação e vivência: “Mediante máquinas que criam imagens e duplicam imagens, podemos adquirir algo como informação, e não como experiência” (2004, p. 172). Mitty é a quintessência da falta de experiência vivida: o mais longe que esteve foi em Phoenix. Mas esta concepção vai tomar especial forma em outra cena, na qual O’Connell, no meio do deserto, faz paciente tocaia para flagrar um leopardo das neves, conhecido como o gato fantasma, por nunca se deixar ser visto. Finalmente, o animal aparece, por alguns segundos. E o fotógrafo, que por todo o tempo ficou de olho na lente, abdica do registro em nome da experiência real. E justifica: “Coisas lindas não pedem por atenção. Às vezes não fotografo. Se gosto de um momento, gosto de ver pessoalmente, não gosto da distração da câmera. Só quero ficar bem aqui”. Nas palavras de Benjamin,

a natureza que fala à câmera não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente. Percebemos, em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda que em grandes traços, mas nada percebemos de sua atitude na exata fração de segundo em que ele dá um passo. [...] Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional (Benjamin, [1931] 1994, p. 94).

É Benjamin, ainda, quem lembra que não foi imitando as maneiras da arte que a fotografia tornou-se arte. David Octavius Hill entrou para a história não por suas grandes composições picturais, mas por introduzir figuras anônimas em lugar dos retratos, estes já velhos conhecidos da pintura:

Surge algo de estranho e novo: na vendedora de peixes de New Haven, olhando o chão com um recato não displicente e tão sedutor, preserva-se algo que não se reduz ao gênio artístico do fotógrafo Hill, algo que não pode ser silenciado, que reclama com insistência o nome daquela que viveu ali, que também na foto é real, e que não quer extinguir-se na “arte”. (Benjamin, 1931, p. 93)

A ideia está presente também na categorização de Sorlin (2004), ao sistematizar as representações pela imagem em três categorias cronologicamente lineares. A imagem síntese, que antecedeu a analógica e posteriormente a digital, seria um resumo ou condensação de valores capazes de dar conta de uma informação essencial, na qual podem se agrupar tempo, ação, movimento e espaço diversos e não necessariamente presentes no fato para que certo conceito se construa na visualidade. A diferença entre a imagem sintética e a analógica é que esta “[...] capta el tiempo, está en condiciones de detenerlo, hacerlo regresar a su fuente o acelerarlo” (Sorlin, 2004, p.15).

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7059 A vida secreta das revistas ilustradas: um réquiem Itala Maduell Vieira

Como lembra Rancière (2012b), vários autores contemporâneos opõem a imagem que remete a um outro; e o visual, que só remete a si mesmo. Williams observa que a metáfora do reflexo tem uma longa história na análise da arte e das ideias, e que não devemos esperar encontrar realidades sociais “refletidas” diretamente na arte, já que estas, com frequência, têm seu conteúdo modificado num processo de mediação – não como deformação ou disfarce, mas num sentido positivo, contribuição da Escola de Frankfurt: “A mediação está no objeto em si, não em alguma coisa entre o objeto e aquilo que é levado” (Adorno, 1967). Assim, “a arte não reflete a realidade social, a superestru- tura não reflete a base diretamente: a cultura é uma mediação da sociedade”. Uma outra questão a pensar é se o roteiro do filme propõe, como desfecho, o des- locamento do homem comum para um outro lugar – a transfiguração do banal em excepcional, em capa de revista, em algo digno de culto, como a caixa de sabão Brillo de Andy Warhol – ou a reivindicação do banal, como argumenta Jost (2012). A meu ver, o que há mesmo é uma tentativa de reivindicação, mas que resulta em transfiguração do banal. Em síntese, como provoca Danto (2010), coisas são obras de arte porque são espelhos, e não apesar de serem espelhos, especialmente no sentido de que revelam coisas sobre nós que não sabíamos. Muitas vezes, pela identificação com um personagem, a arte permite que possamos viver como pessoas excepcionais. Por fim, ou consequentemente: a grandeza da obra está na grandeza que a obra materializa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Desde Cruzeiro, nos anos 1930 a 1950, até as grandes informativas lançadas a partir dos anos 1960/70, como Veja, IstoÉ e, mais recentemente, Época, o Brasil tradicionalmente foi um mercado importante para revistas. Entre 1990 e 1996, a circulação de revistas no país aumentou à taxa média anual de 4,1%, apesar do aumento de 57% no preço médio unitário dessas publicações2. Mas, ainda que persista a força de Veja (1,167 milhão de exemplares) e de outros títulos semanais como Época (390 mil), IstoÉ (322 mil) e Caras (264 mil)3, o número de publicações vem sendo sistematicamente pulverizado. É crescente a oferta de títulos, mas as tiragens totais são cada vez mais baixas, como se verifica nos balanços da Associação Nacional das Editoras de Revistas. O número de títulos mais que dobrou, de 2.625, em 2002, para 5.801, em 2013, mas no mesmo período a circulação total de revistas no país encolheu de 435,3 milhões para 382 milhões de exemplares. Com a circulação total em queda, grandes empresas do setor reveem suas estratégias. A editora Abril, responsável por Veja e mais de 70 outros títulos, fechou, desde 2011, seis de suas revistas de menor rentabilidade: Alfa, Bravo!, Gloss, Lola, Quatro Rodas Moto e Info Dicas. Ao todo, 167 pessoas foram demitidas. No mesmo período, o grupo fez investimentos em versões digitais das revistas da editora e de outras empresas, com o lançamento da plataforma de vendas Iba.4

2. Pesquisa do BNDES sobre a Indústria Gráfica Nacional. Disponível em: (http://webcache.googleusercontent. com/search?q=cache:OoJ3rGTDpfUJ:www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/ Galerias/Arquivos/conhecimento/relato/grafica.pdf+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br). 3. Dados referentes ao período de janeiro a setembro de 2014. A Aner, criada em 1986, divulga balanços anuais auditados desde 2002 http://aner.org.br/dados-de-mercado/circulacao/. 4. Cf. http://portal.comunique-se.com.br/index.php/destaque-home/76660-mais-de-150-demissoes-e-6-

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7060 A vida secreta das revistas ilustradas: um réquiem Itala Maduell Vieira

Desde meados do século passado, as antigas configurações do jornalismo impresso recuam inexoravelmente diante de crises econômicas, das altas do preço do papel, da perda de assinantes, de constantes inovações tecnológicas. Nesse sentido, A vida secreta de Walter Mitty é um réquiem da era das revistas ilustradas e em certa medida da própria imprensa escrita, pelo menos do que restava de artesanal em seu processo de produção. Mitty tem seu emprego duplamente ameaçado: a revista será fechada; e não há mais negativos de que cuidar, com a fotografia digital tendo suplantado a analógica. Nesta elegia, nem o novo gestor, nem o experiente gerente de negativos cogitaram questionar a indicação do fotógrafo, que, de seu lugar de “artista”, elegeu determinada imagem, desconhecida, para a capa da derradeira edição, aquela que entraria para a história. A habilidade retórica (Danto, 2010) está presente no discurso do fotógrafo, que, como estrela, impõe seu desejo. A indicação ocorre de maneira contundente, e apelan- do para conceitos ligados à arte e seu culto. Move-se o mundo então para fazer valer sua vontade – tanto Mitty, o “operário”, como o gestor, “o homem da grana”, se curvam diante do artista. Da mesma forma, nem a estética tem precedência no esquema tático das publicações que resistem, nem há mais artistas reconhecidos ou com poder decisório nos bastido- res. Basta pensar no derrame de fotos e textos de leitores que tomam os veículos de comunicação. Na era da instantaneidade e da cultura selfie – um celular na mão e uma ideia a compartilhar na cabeça –, qualquer um é o autor da capa, escolhida mais por seu poder de audiência que por valor artístico. Este lugar ocupado por O’Connell – se é que, algum dia, algum fotojornalista de carne e osso o ocupou – está declarado vago, ou melhor: a vaga foi congelada. Se “um fenômeno cultural só adquire sua plena signi- ficação quando é considerado como uma forma (conhecida, conhecível) de processo ou estrutura social geral”, como afirma Raymond Williams, esta é mais uma das situações do filme que transitam no limiar do atual para o ultrapassado, e pode mesmo nem ser compreendida por gerações mais novas de jornalistas e leitores:

Nenhuma das teorias dualistas, expressa como reflexo ou mediação, e nenhuma das teorias formalistas e estruturalistas, expressas em variantes de correspondência ou homologia, pode ser plenamente levada à prática contemporânea, já que de modos diferentes todas elas dependem de uma história conhecida, de uma estrutura conhecida, de produtos conhecidos (Williams, 1979, p. 108).

Ao defender que o que define a arte é o regime estético, Rancière vai problematizar a questão ao inverter a fórmula – “porque o anônimo tornou-se tema artístico, sua gra- vação pode ser uma arte” – e ao afirmar que, “para que as artes mecânicas possam dar visibilidade às massas, ou antes, ao indivíduo anônimo, precisam ser primeiro reconhe- cidas como artes, e não como técnicas de reprodução e difusão. Assim, estabelece como condição que “o anônimo seja não só capaz de tornar-se arte, mas também depositário de uma beleza específica, é algo que caracteriza propriamente o regime estético das artes”, e que este não só começou bem antes das artes da reprodução mecânica, como revistas-fechadas-o-saldo-de-fabio-barbosa-no-comando-da-abril.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7061 A vida secreta das revistas ilustradas: um réquiem Itala Maduell Vieira foi ele que, com sua nova maneira de pensar a arte e seus temas, a tornou possível (Ranciére, 2012b, p. 47). Para Rancière, a revolução técnica é posterior à revolução estética, ou seja, esta é pictural e literária, antes de ser fotográfica ou cinematográfica. De qualquer forma, e antes de tudo, “a revolução estética é a glória do qualquer um” (p. 48). Crítico ainda da ideia de dispositivo técnico, reconhece o valor do trabalho, dá ênfase na operatividade artística – tal como os personagens Mitty e O’Connell fazem reciprocamente. Outra rica contribuição do autor é atribuir à literatura e à ficção o pioneirismo na condução deste sujeito do que chama de “nova história”:

Passar dos grandes acontecimentos e personagens à vida dos anônimos, identificar os sintomas de uma época, sociedade ou civilização nos detalhes ínfimos da vida ordinária, explicar a superfície pelas camadas subterrâneas e reconstituir mundos a partir de seus vestígios é um programa literário, antes de ser científico (Rancière, 2012b, p. 49).

Com novos regimes de visibilidade, a arte se volta para o banal, a representação do homem anônimo assume o lugar antes ocupado pela figura do herói e os temas “nobres”. O homem comum está nos jornais, na fotografia, no cinema. Na sua busca, decifrando pistas, palavras incompreensíveis em línguas estranhas de países exóticos, Mitty torna- se excêntrico, tanto no sentido do senso comum como propriamente afastado do centro. Estava perto demais para ver. Quando se afasta, ganha grandeza. É a circularidade resultante deste ir-e-vir que vai convergir para um personagem singular, um anônimo ilustre, a quintessência da Life. O réquiem das revistas em A vida secreta de Walter Mitty não está exatamente no suposto ou temido fim de uma mídia ou da era do impresso, mas no ocaso de certo modo de produção do jornalismo e do fotojornalismo, e do seu poder de representação. Está no sentido da perda da partilha do comum, da experiência cotidiana compartilhada por um grupo de leitores.

Este artigo é dedicado à memória de Luiz Claudio Marigo (1950-2014), fotógrafo brasileiro que registrava a natureza no intuito de despertar nosso interesse em observá-la a olho nu.

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7062 A vida secreta das revistas ilustradas: um réquiem Itala Maduell Vieira

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7063 Revista Atlantida: cultura e comunicação em revista entre Brasil e Portugal na Primeira República

G u t e mb e rg M e d e i r o s 1

Resumo: O presente trabalho visa estabelecer uma análise de um dos mais arrojados empreendimentos editorias verificados no início da implantação do moderno jornalismo informativo de matrizes norte-americana e francesa. A revista “Atlantida: mensario artistico, literario e social para Portugal e Brazil” foi projeto editorial editado por dois entre os principais jornalistas de ambos os países, João do Rio e João de Barros (1915 a 1920) sob o patrocínio dos respectivos governos. Esta proposta visa levantar elementos de história da imprensa e da cultura e dos meios de comunicação. Como o jornalismo diário dá uma guina- da priorizando o aspecto mais informativo, as revistas emergem como espaço também dedicado a veicular opinião e outros objetos. Como experiência e ino- vação metodológicas, da historiografia nacional e internacional especificamente na história da imprensa, história da cultura e dos meios de comunicação. Esta revista se insere em profunda discussão sobre a identidade nacional brasileira, especialmente em resposta ao antilusitanismo crescente que alcança clímax em 1922. Para tanto, vamos descrever elementos constitutivos da revista em relação ao seu momento histórico. Palavras-Chave: Revista Atlantida, João do Rio, João de Barros, história do jor- nalismo, identidade nacional.

Abstract: This text aims to provide an analysis of one of the boldest editorial ventures checked early in the deployment of modern information journalism American and French matrices. The magazine Atlantida: mensario artistico, liter- ario e social para Portugal e was edited by two of the leading journalists of both countries, João do Rio and João de Barros (1915-1920) under the auspices of the respective governments. This proposal aims to raise elements of the press and culture and the media history. As the daily journalism takes a turn prioritiz- ing the most informative aspect, magazines emerge as space also dedicated to vehicular opinion and other media. As methodological experience and inno- vation, national and international historiography specifically in the history of printing, history of culture and the media. This magazine is inserted in-depth discussion on the Brazilian national identity, especially in response to the grow- ing “antilusitanismo” reaching climax in 1922. Therefore, we will describe the constituent elements of the magazine in relation to its historical moment. Keywords: Atlantida Magazine, João do Rio, João de Barros, history of journalism, national identity.

1. Gutemberg Medeiros é doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e pesquisador no Núcleo de Estudos do Livro e Edição (ECA/USP).

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7064 Revista Atlantida: cultura e comunicação em revista entre Brasil e Portugal na Primeira República Gutemberg Medeiros

A Atlântida, continente submerso, qualquer que seja a origem histórica da lenda, permanece no espírito dos homens, à luz dos textos inspirados a Platão pelos egípcios, como símbolo de uma espécie de paraíso perdido ou de cidade ideal. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant

NDEPENDENTE DA latitude, longitude e cronologia, esse nome remete a Utopia, o não lugar, o que vive nos sonhos dos seres humanos. Platão a visava como a perfei- Ição materializada em termos de organização política e social. Sinônimo de Idade de Ouro, pode-se encontrá-la no início ou ocaso de civilizações. Pois dois jornalistas e escritores começaram a construir, na Lisboa de 1909, um sonho. O de trazer a lume a terceira margem entre dois países separados por um oce- ano, mas unidos por uma língua e parte de culturas e gentes. E foi sob este mito feito em revista que João do Rio e João de Barros iniciaram um dos projetos editoriais mais ousados já vistos. O simbolismo tem tradução específica nesse empreendimento editorial. Em pri- meiro lugar, o Brasil era visto como potência em devir no século XX e Portugal um reino em declínio neste século que explodia as revoltas das colônias que restavam no mundo. As relações entre os dois países estavam cada vez mais abaladas em processo de desgaste deste a independência brasileira em 1822. A nossa identidade nacional foi construída aos poucos via imprensa e literatura a partir de uma negação básica a tudo que era lusitano. Em contrapartida, havia um movimento de restabelecer melhor relacionamento entre os dois países, e não apenas entre a colônia portuguesa crescente no Brasil. Mas entre brasileiros mesmo, ou que queriam reatar laços com sua ancestralidade ou alimentados por ideários de ordem racial que imperavam na época, Pois o Brasil mais e mais se apresentava como a terra de miscigenação racial – primeiro entre portugueses, brancos e índios – somados pelos grandes fluxos migratórios iniciados no século XIX incluindo árabes das mais variadas procedências e japoneses entre outros povos. Logo a tensão que se afigura a partir do final do século XIX entre lusófonos e susófobos toma conta toma o procênio e só foi aumentado à medida que chegavam os festejos do centenário da independência, quando a aversão a tudo que é português chegou a altos níveis. Semelhante embate deu-se particularmente no espaço midiático, entre jornais e revistas. Para firmar um lugar nesse conflito que surgiu a Revista Atlantida: mensario artistico, literario e social para Portugal e Brazil em parte financiada por ambos os governos e em parte por anúncios da iniciativa privada reunindo intelectuais de ambas as nacionalidades e dirigida por João do Rio e João de Barros. A revista manteve-se por cinco anos, de 1915 a 1920, em 48 exemplares com periodicidade mensal até março de 1918 e flutuante nos outros dois anos, mantendo média de 100 páginas por edição em 26 cm X10 cm cada. Ou seja, massa de texto que supera as 5 mil páginas. Entre os colaboradores brasilófilos – do lado português – estavam Álvaro Pinto, Jai- me Cortesão, José Osório de Oliveira, Julio Dantas e Ricardo Severo. O time de lusófilos

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7065 Revista Atlantida: cultura e comunicação em revista entre Brasil e Portugal na Primeira República Gutemberg Medeiros contava com Afrânio Peixoto, Coelho Neto, Elísio de Carvalho, Gilberto Freyre, Joaquim Nabuco, Olavo Bilac, Medeiros e Albuquerque, Ronald de Carvalho e Tristão de Ataí- de. Um caso curioso foi um dos principais historiadores literários, Silvio Romero, que passou quase 20 anos atacando Portugal e mudou de lado em 1902 em conferência no carioca Gabinete Português de Leitura, intitulada “O Elemento Portuguez no Brasil”. Para contar um pouco dessa história, iniciamos com elementos da construção dessa identidade nacional e do jornalismo da época. Para logo detalharmos aspectos dos dois Joãos envolvidos na construção desse continente de letras, passando pela lusofobia len- tamente construída no século XIX e começo do XX até detalhes específicos da revista. Acreditamos assim firmar nos estudos de história do jornalismo um capítulo que não pode ser esquecido. Pelo menos, para mostrar um entre vários momentos em que a chamada globalização, bem mais antiga do que se pensa. Especialmente na imprensa.

IDENTIDADE CULTURAL E JORNALISMO O filósofo alemão Jürgen Habermas estabelece as balizas modernas de formação do que chamamos hoje Estado, Nação ou Estado Nacional na Modernidade. Para a sua construção, se engajaram sobretudo juristas, diplomatas e oficiais que se empe- nharam em erguer uma burocracia eficaz. Somando-se a este movimento, “escrito- res, historiadores e jornalistas anteciparam-se aos esforços diplomáticos e militares” (HABERMAS, 2000, p. 299). É neste ambiente que surge um elemento fundamental, a identidade nacional “cristalizada em torno da história, língua e cultura comuns, somente a consciência de pertencer a uma mesma nação, faz com que as pessoas distantes, espalhadas por vastos territórios, sintam-se politicamente responsáveis umas pelas outras” (HABERMAS, 2000, p. 302). A narrativa da identidade nacional é essencialmente construída por escritores e jornalistas. Com destaque para a formação da grande imprensa, a partir da Revolução Francesa. Aqui e ao longo dos séculos XIX e boa parte do XX temos o imbricamento entre dois segmentos de atuação. O jornalismo e a literatura. De um lado, a mão de obra que compõe as redações jornalísticas é de escritores – pois a formação e qualificação do jornalista só passam a se concretizar longamente a partir dos anos 10 do século passado. Por outro, a literatura tem, em maior ou menor grau nesta faixa de tempo, o papel de pensar criticamente o seu tempo e espaço. Justamente, contribuindo com a tessitura da identidade nacional. Isso aconteceu nas mais variadas partes do mundo, seja no Brasil, EUA, Europa e Rússia. Determinadas fases e objetos midiáticos apresentam-se sob miscigenação entre Jornalismo e Literatura – estando nesse lugar a Revista Atlantida. Entre 1915 e 1920, época em que foi publicada Atlantida, verifica-se no Brasil um princípio de sedimentação de uma mentalidade republicana após os vários conflitos verificados desde 1889 em revoltas em várias partes do país. A partir da primeira década do século o país vive um momento de mutação nas mais diversas áreas – especialmente na modernização extrema da imprensa brasileira com novos parâmetros de ordem informativa de matrizes norte-americana e europeia. Vive-se a vertigem da era da máquina – tanto material quanto discursivamente. Quase um “manifesto” dessa nova imprensa encontramos em matéria publicada em

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Gazeta de Notícias, em 1907, “Como se faz um jornal hoje”. Esta matéria inicia afirmando que o repórter era o mais importante na linha de produção da notícia – já autodenominada indústria – mas, na verdade, o grande privilégio era das novas tecnologias de impressão. Não à toa, este jornal traz em seu cabeçalho, logo abaixo do seu próprio nome, módulo com a importante informação: “Impresso nas machinas rotativas de Mariconi” (13/11/1908) e, posteriormente, “Stereotypada e impressa em machinas e rotativas de Albert C. Frankenthal (Alemanha)” (13/03/1910). Tanto o repórter era o menos importante na linha de produção que João do Rio aderiu ao movimento de profissionalização do setor que resultou na fundação da Associação Brasileira de Imprensa, em 1908. Movimento este que priorizou melhores condições de trabalho e de salários (MEDEIROS, 2009, p. 6). A matéria “Como se faz um jornal de hoje” não tem assinatura, logo é uma página de cunho institucional da Gazeta de Notícias – um dos maiores jornais diários do início do século XX e onde João do Rio atuou por vários anos e colaborou ao implantar o modelo mais bem acabado de reportagem no país. Publicado em 2 de agosto de 1907, chega-se a desenhar um compromisso com a objetividade e a imparcialidade, mesmo não usando estes termos, o que viria a ser a chamada regra de ouro no jornalismo norte-americano implantado no Brasil 40 anos depois da publicação do texto em ques- tão. “A redacção, propriamente, a responsabilidade que harmonisa todas as opiniões e impersonalisa um typo único, todos os temperamentos, o jornal, é do redactor-chefe que dá a opinião”, assim, são determinados os papéis a serem exercidos na fabricação cotidiana de textos jornalísticos. Este texto é importante para visualizar uma mudança gradativa e vital na imprensa da época, em que se inicia a mudança do jornalismo opinativo que se verificava até então para maior teor informativo. Nesta mudança, lenta que se encaminha por anos, o lato mais opinativo vai migrando para as revistas – sejam elas as ilustradas ou com maior volume de texto. Justamente nesse enclave, em que a formação dessa identidade nacional muda gradativamente de lugar, é que se encontra o advento de Atlantida. Mas antes, temos que detalhar um pouco mais esse jornalismo que se unge dessa missão civilizatória de formar nações. Como amostragem dessa realidade, João do Rio definiu aspectos da imprensa em discurso para a associação de jornalistas de Buenos Aires, em discurso voltado para os seus pares. Afirma que tudo é transitório no “movel areal da opinião. Só fica de pé sempre, firme, definitivo, cada vez maior e mais formidavel o jornalismo, pastor das almas” (RIO, 1917, p. 63). Para, logo adiante, estabelecer que “Surjam idéas de diamante, apareçam á luz solar creações admiraveis [...] Se o Jornal não as quizer ver [...] é como se não existisse”2 (RIO, 1917, p. 64) O parceiro de João do Rio na formação de Atlantida, João de Barros, faz eco a estas posições do colega brasileiro e explica aos patrícios lusos que o jornalismo

é um dos grandes poderes sociais do Brasil, sendo, ao mesmo tempo, um viveiro sempre fecundo de talentos [...] Não há questões importantes para a nacionalidade, que aos jornais não mereçam estudos documentados e discussões sérias. Orientam o público, com consci- ência segura da missão que desempenham. (BARROS, p. 126).

2. Este trecho lembra o mote publicitário das extintas revista e TV Manchete até os anos de 1980 que dizia: “Aconteceu, virou Manchete”. Ou seja, o sue duplo negativo é “se não virou manchete, não aconteceu”.

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Para seus colegas jornalistas, João do Rio lembra o papel da imprensa em relação à opinião pública. A imprensa é “o folhetinista da vida, e principalmente o esculptor dessa coisa vaga, amorfa, poderosa, terrivel que se chama – Opinião Pública [em itálico no original]” (RIO, 1917, p. 64). Este é um dos propósitos não apenas da Atlântida, mas de outras revistas lusobrasileiras ao interagir com uma visão de identidade nacional e que surgiram entre o fim do século XIX e o passado, a exemplo de Águia, Orpheu, A Baixa e Terra do Sol.

DOIS JOÃOS NO CONTINENTE DE LETRAS João Paulo Alberto Coelho Barreto (1881-1920) – mais conhecido na imprensa carioca como João do Rio – ingressou em 1903 em A Gazeta de Notícias onde permanece por 12 anos, notabilizando-se como o primeiro repórter da imprensa nacional com grandes reportagens temáticas, a exemplo de A alma encantadora das ruas, As religiões do Rio e O momento literário. Um aspecto importante ao longo da vida de João do Rio são suas gradativas e constantes relações com a colônia lusitana carioca, esta que estava presen- te nos mais diversos ramos de atividades econômica da capital federal, inclusive, nas empresas jornalísticas. Evidência disso está na sua atuação na Gazeta de Notícias, no qual um dos diretores era o português Henrique Chaves: “O jornal estava, através dele, muito ligado aos portugueses” (MAGALHÃES JUNIOR, 1978, p. 56) e, naturalmente, aos seus interesses. O seu colega na Atlantida, João de Barros (1881-1960) foi escritor, jornalista, histo- riador tendo dedicado parte substancial a temas brasileiros, incluindo as suas relações com Portugal. Tanto que a sua obra mais considerada na historiografia lusa é a História da colonização portuguesa no Brasil financiada pela colônia portuguesa no Brasil para comemorar o centenário da independência. O ano zero de Atlantida pode ser localizado em 1909, quando João do Rio faz a sua primeira viagem a Portugal. Lá ele conhece o jornalista e historiador João de Barros, quando expressa a sua vontade de fazer uma revista binacional promovendo o estrei- tamento de relações entre Brasil e Portugal. O brasileiro encontrou um ouvinte ideal, pois Barros também era um estudioso de temas brasileiros e logo foi simpático à ideia. Ambos só puderam concretizá-la em 1916, após idas e vindas e negociações até conse- guirem o apoio de ambos os governos. A admiração mútua está patenteada em coletânea de artigos de Barros, entre outros momentos de sua vasta produção. Na introdução, ele lembra que “Paulo Barreto ama perdidamente Portugal: – e os seus livros e os seus numerosos artigos em vários jornais do Rio e S. Paulo manifestamente o demonstram3” (BARROS, 1915, p. XIX) Já em texto dedicado ao brasileiro, afirma que João do Rio “se bateu quasi sozinho na imprensa brasileira (exceptuando, é claro, os jornalistas de origem portuguesa)” (BARROS, 1915, 56). Em 2013, a pesquisadora Cristiane D’Avila organizou a publicação da correspon- dência entre o brasileiro e o colega português, onde há momentos reveladores sobre a caminhada de elaboração da revista.

3. João de Barros refere-se especialmente às publicações Fados, canções e danças de Portugal (Garnier, 1910), Portugal d’agora (Garnier, 1911) e Sésamo (Francisco Alves, 1917).

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Em carta de João do Rio (sem data, mas de 1915) sobre a nova revista já propõe seu lançamento em novembro e afirma ter muitas colaborações prometidas. “A colaboração será de artistas e políticos e escritores de maior relevo no Brasil”. Para, na sequência, propor como modelos as prestigiadas revistas Mercure de France, Deux Mondes e Esfera” (D’AVILA, p. 187). O brasileiro festeja o recebimento do primeiro exemplar em carta de novembro de 1915, aludindo “a impressão impecável da revista é de fato magnífica. Nunca se fez em Portugal-Brasil coisa parecida” (D’AVILA, 2013, p. 198). Interessante observar que João do Rio sabia de sua popularidade no Brasil, tanto que comenta com João de Barros que era “tão conhecido como o Pão de Açúcar” em carta de 27 de dezembro de 1915 (D’AVILA, p. 2013, 216). Isto não era um acesso de megalomania do autor, pois era até alvo de caricaturas de J. Carlos e Calixto nas principais revistas ilustradas nas duas primeiras décadas do século passado, como Careta e O Malho. Dificuldades para manter o empreendimento não faltaram. As principais vieram quando a Alemanha declara guerra a Portugal em 11 de março de 1916, o que difi- cultou a comunicação entre Brasil e Portugal. Já em carta de 30 de maio de 1916, João do Rio relata a Barros como não conseguem agenciador para vender anúncios de um lado e, do outro, os anunciantes refugam ao ver a grande hiato de tempo entre o ato de compra do espaço publicitário e a chegada do veículo impresso. Além de reclamar da colônia portuguesa no Brasil, que conta com muito menos assinantes do que pode- ria ter. Realmente, a revista ao longo de sua trajetória foi deficiente na captação de anúncios – sendo a maioria constituída de “calhaus” sem receita para a editora como anúncios de lançamentos de livros de colaboradores. João do Rio também alertou para os custos da revista aqui no Brasil, ao alcançar o mesmo preço de um livro – o que desestimulava a venda.

Fiz o meu primeiro dever de diretor de Atlantida: a primeira festa em favor da C. V. Portuguesa4 foi realizada sob o patrocínio de Atlantida e eu fiz uma conferência delirante [...] A festa rendeu uns dinheiros mais de 500 escudos (D’AVILA, 2013, p. 237).

Esta comunicação tem especial importância não apenas por João do Rio falar na condição de diretor de Atlantida e ser um evento promovido pelo órgão. Mas a confe- rência intitulada “Portugal-Brasil” – realizada em 15 de novembro de 1917, publicada em francês no exemplar da revista de no. 25 na coletânea Sésamo no mesmo ano –­ traz sintetizado o ideário de Atlântida. A revista, a partir desse exemplar, passa a ser bilíngue com a entrada no quadro editorial de Graça Aranha a partir de Paris. Não há referência ao veículo na fala, mas para quem a ouviu no Rio de Janeiro havia a pressuposição da forte presença de todo o órgão de imprensa. Para tanto, ele cita Euclides da Cunha – conhecido por seu Sebastianismo ­–: “Preci- samos pensar, escrever, fazer propaganda! Cada vez ha mais estrangeiros na nossa terra. Assim desaparece a raça: assim desaparece a lingua. Só ha uma salvação: mandar vir mais gente de Portugal!” (RIO, 1917, p. 157). Para, logo após em suas próprias palavras, defender retomada das ligações afastadas entre Brasil e Portugal, traçando um quadro calcado em premissas raciais da época.

4. Cruz Vermelha Portuguesa

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Nenhum dos senhores ignora que o Brasil presentemente não é uma escola de patriotismo. A rapidez dos progressos, o appetide dos prazeres, a facilidade da vida, a mistura das raças, turbilhões de estrangeiros, as influencias de expressões de alguns paizes deram-nos uma geração, sem dúvida, elegante, mas talvez mais estrangeirada aqui que nos Estados Unidos, do “far-west” a Nova York, e em Paris, da “rive gauche” aos cafés do “boulevard”. (RIO, 1917, pp. 158-159)

Entre os intelectuais brasileiros que mais se destacavam na aproximação política e cultural de Brasil e Portugal no início do século passado estavam Olavo Bilac, Afrânio Peixoto e Graça Aranha. Já os temas mais abordados pela revista estavam na publicação de poesia e prosa, história, política, relações entre os dois países, biografias e arquitetura. Havendo primazia na veiculação de produção literária entre contos, poemas e até pequenas peças de teatro. Mudança significativa no layout gráfico da revista dá-se apenas no exemplar duplo 29/30 de 29 de março e abril de 1919, quando sai de cena a capa comum e começam a ilustrá-la com reproduções coloridas de quadros em papel couche colado sobre o car- tonado da mesma. Este procedimento gráfico durou até o exemplar 37 (abril de 1919) quando muda o subtítulo “Mensário artístico, literário e social para Portugal e Brasil” para “Órgão do pensamento latino no Brasil e em Portugal”. Na mesma ocasião, passou a ser gerida por três diretores, incluindo Graça Aranha sediado em Paris. O exemplar 38 passa a adotar o tradicional design de capa especialmente em maga- zines franceses com a relação dos principais textos na capa e a redação e administração passa a ser da lisboeta Livraria Bertrand. A página 131 deste número ainda traz nota explicativa ao leitor de que a revista alastra seu raio de ação para trabalhar “em honra da cultura mediterrânica” ao trazer colaboradores italianos, franceses e espanhóis a exemplo de Gabriel d’Annunzio, Trilussa e Pedro Blanco, evidentemente para tentar vencer a crise financeira e atrair mais leitores. Para expressar tal mudança, traz ensaio de 15 páginas (tamanho muito maior do que o comum) de Edmond Jaloux – destacado crítico literário colaborador dos principais veículos franceses de 1900 a 1949 – sobre o poeta norte-americano Walt Whitman. Também é neste número que são publica- dos anúncios mais expressivos em termos de rentabilidade para a revista, como o do parisiense “Banque Française pour Le Brésil” do “Banque Française & Itallienne pour l’Amérique Du Sud”. Além de um tradicional “calhau” anunciando lançamento da obra de João de Barros Aproximação Luso-Brasileira e a Paz. Ou seja, como espalhado na maioria dos exemplares da revista, propagandas de lançamentos de colaboradores da casa sem rendimento para a publicação. Atlantida é realmente um enorme manancial que pode ser abordado das mais varia- das maneiras. Mas, para efeito desse trabalho, destacamos como amostragem talvez de um dos mais representativos exemplares da história do veículo, cuja metade é dedicada a um dos mais importantes escritores e cronistas brasileiros da época: Olavo Bilac (no. 6, 15 de abril de 1916). Ele foi a Portugal em viagem custada pela revista e lá recebeu uma série de homenagens, dos quais os textos e fotos deste exemplar reportam. Encontram-se aqui matérias jornalísticas sobre a estadia de Bilac em Lisboa; seu discurso realizado em banquete promovido pela direção de Atlantida com a presença

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7070 Revista Atlantida: cultura e comunicação em revista entre Brasil e Portugal na Primeira República Gutemberg Medeiros de escritores, jornalistas, políticos, ministros entre outras celebridades do país. Além de outro discurso de Bilac na Academia de Sciencias de Lisboa. Incluindo mais dois discursos do escritor brasileiro e outros de escritores de destaque como Jayme Cortesão e do anfitrião João de Barros. Talvez o escritor brasileiro mais citado ou com trabalhos publicados em Atlantida foi Bilac.

LUSOFOBIA E LUSOFONIA No contexto praticamente de conflito entre susófobos e lusófonos que tomou o Brasil no século XIX e primeiras décadas do XX se dá o surgimento da revista Atlântida apoiando este último grupo. Este cenário é levantado em detalhes no estudo dos mais densos sobre o as relações culturais entre ambos os países talvez se encontre em Brasil e Portugal: a imagem recíproca: o mito e a realidade na expressão literária do pesquisador norte-americano Nelson Vieira. Faz-se necessário que o retrospecto deste cenário a partir da literatura é fundamental, dada a intensa ligação entre esta modalidade de atuação e o jornalismo até, pelo menos, a década de 1950. Pois a mão de obra dos jornais era composta de escritores e a construção da identidade nacional faz-se a partir tanto do jornalismo quanto literatura, o que é nevrálgico nesse trabalho. A lusofobia tem início logo com a independência no Brasil e se ramifica ao longo do século XIX na literatura e jornalismo sob o viés do nacionalismo. De um lado, intelectuais que buscavam construir uma narrativa de identidade nacional a partir da negação das raízes lusitanas. De outro, os brasileiros que mantinham orgulho de suas origens. Vieira destaca importante artigo do escritor Gonçalves de Magalhães e considerado como o manifesto da escola literária romântica em Nitheroy: revista brasileira (Paris, 1836). O documento estabelece “sentimentos antiportugueses explícitos [...] atitude que nacionalistas estimularam através de ensaios, história, crítica literária e romances” (VIEIRA, 1991, p. 103). Seguindo-se os romances O Guarany (1857) e A Guerra dos Mascates (1873-1874) e a peça O Jesuíta (1875) de José de Alencar. Traços evidentes de lusofobia também estão impressos no romance pícaro Memórias de um Sargento de Milícias (1854-55) de Manuel António de Almeida. Como atesta Vieira, é um “documento para o estudo do retrato do português na literatura brasileira, [com] perfil jocoso e derrisório dos ‘lusitanos’”. E prossegue:

Curiosamente, esta representação irónica coincide com a atitude geral manifestada pela maioria dos escritores portugueses para com os brasileiros nativos e ‘o brasileiro’, o desig- nativo usado pelos portugueses para chamar a atenção àqueles torna-viagens que fizeram a sua fortuna no Brasil. (VIEIRA, 1991, p. 108)

Os lusófobos também contaram com Aluízio de Azevedo, Adolfo Caminha, Raul Pompeia entre outros. Importante lembrar o quanto a literatura e o jornalismo estavam simbioticamente ligados no século XIX e mesmo nas primeiras décadas do século XX. Sendo Pompeia um dos protagonistas da lusofobia na imprensa por meio da “campanha contra os portugueses até 1895 com a bandeira do nacionalismo brasileiro. “Jornais como O Nacional e O Jacobino incentivaram programas de xenofobia, com ataques verbais contra os portugueses” (VIEIRA, 1991, p. 126). No outro lado da trincheira, estava o poeta Olavo

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Bilac ao atacar esta lusofobia em A Cigarra, semanário mantido pelos brasileiros que apoiavam laços de amizade com Portugal. No Brasil da primeira década do século passado, o jornalista Paulo Barreto, que escreveu sob o pseudônimo João do Rio, escreve na qualidade de grande amigo de Portugal ao defender melhores relações entre os dois países nos jornais e revistas onde atuou. Um dos resultados desse movimento é justamente a fundação de revista Atlân- tida. Este engajamento lusófono e a homofobia que o meio intelectual lhe devotava foi o responsável pelo total silenciamento da obra após a sua morte, em 1921. Para se ter uma ideia do nível a que nos referimos, o jornalista Antonio Torres por anos polemizou com João do Rio e deixou registrado em livro, em 1922

Paulo Barreto foi uma das criaturas mais vis, um dos caracteres mais baixos, uma das larvas mais nojentas que eu tenho conhecimento. Não tinha senso moral. Não tinha sentimentos cavalheirescos. Não tinha a menor noção de brio. Nunca poude apprender a significação da palavra dignidade. Além de um talentozinho secco e phosphorescente, o que elle possuia era uma instrucção muito falha e uma grande avidez de dinheiro. Por dinheiro era capaz de commetter as maximas ignominias. Melhor ainda. Delle se póde dizer o que de Mirabeau dizia de Rivarool: Por dinheiro seria capaz de praticar até uma bôa acção. (TORRES, 1925, p. XXV)

FALAM OS DIRETORES É tradicional na história do jornalismo um veículo trazer no seu exemplar de lan- çamento um artigo de fundo em que se explicitam as metas do mesmo. As suas bases ideológicas e o lugar que pretende ocupar no cenário editorial – entre outros fatores. Com Atlantida não foi diferente. Como a publicação era binacional, trouxe dois artigos de fundo, do diretor em Portugal João de Barros e do colega brasileiro João do Rio. Barros é mais objetivo ao narrar o surgimento da revista e o lugar que pretende ocupar. Já o segundo é mais etéreo, mas entrando em concordância ao seu modo com o primeiro. O primeiro exemplar da revista, lançado em 15 de novembro de 1915 em Lisboa, comemorando o aniversário de proclamação da república brasileira, contou com breves palavras de apoio dos principais patrocinadores da empreitada dos respectivos governos, do Ministros das Relações Exteriores do Brasil Lauro Müller e de Portugal Manoel Seabra (dos Negócios Estrangeiros) e Manuel Monteiro (do Fomento). Seguido dos editoriais dos diretores explicitando o papel da nova revista, sobre os quais nos detemos nos principais aspectos de ambos. Barros lembra a sua primeira viagem ao Brasil três anos antes e sua admiração pelo país de data mais longa ainda. Alude logo aos principais elementos constitutivos do mito que exprime o nome da revista, “que toda a sorte de interesses, dos moraes ao econômicos, dos espirituaes aos praticos, faziam de Portugal e do Brasil uma comu- nidade perfeita, com o mesmo ideal latino, com a mesma inteligencia de alma, com a mesma perfeita sensibilidade social” (BARROS, 1915, p. 6). Ele lembra que foi em 1909, em Lisboa, em longas conversas com João do Rio – “velho e constante amigo de Portugal – sendo simultaneamente, um patriota sincero em tudo e por tudo que diz respeito á sua terra” (BARROS, 1915, p. 07) – a ideia de estruturar a revista e sendo a mesma advinda do brasileiro.

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Alega dificuldades várias para efetivar o projeto nesse hiato de tempo, mas sentia plena receptividade entre escritores, artistas, políticos, homens de ciência, industriais e comerciantes de ambos os lados do oceano. Ainda localiza uma questão central: “Portu- gal não se fazia conhecer como devia; e de que o Brazil se magoava por não encontrar em Portugal aquele conhecimento e preço que merece o seu admiravel surto de progresso, o seu prodigioso desenvolvimento material e intelectual” (BARROS, 1915, p. 07). Ou seja, em termos mais contemporâneos, entreviu uma demanda de mercado. Inclusive aponta que este quadro era prejudicial não apenas aos dois países, mas ao “papel que qualquer das duas Republicas teem de desempenhar na vida internacional e do globo” (BARROS, 1915, p. 7). Este desenho geopolítico é sintetizado na afirmação que “Portugal tem de ser para o Brazil, – tudo o indica! – o seu porto de ligação com a Europa” (BARROS, 1915, p. 08). Vemos nessa colocação praticamente a razão de existir dessa revista, em ser facilitado- ra dessa movimentação intercontinental. Através da veiculação do que era produzido entre ambos os países – de textos literários a ensaios sobre economia e negócios – uma ponta de lança de um continente misto em língua portuguesa para ocupar um lugar mais destacado no plano internacional. Além da questão geopolítica, talvez um dos textos que mais realizou uma vocação de aproximação entre os dois países foi o ensaio historiográfico “Programa de politica comercial do Brasil” por Veiga Simões (1888-1954 – pesquisador, jornalista e diplomata dos mais destacados de Portugal no exemplar duplo 44/45, antepenúltimo do magazi- ne. Em 66 páginas (talvez o mais longo texto publicado pela revista em sua existência) traça um perfil analítico das relações comerciais entre Portugal e Brasil. Inicia o ensaio com a afirmação “Portugal continúa ainda a viver do Brasil” (SIMÕES, 1919, p. 05). A diferença, segundo ele, era que antes o ouro vinha pelo braço do negro e em 1919 pelo “emigrante, que a miseria expulsou de Portugal”. Para prosseguir em detalhada análise da economia de ambos os países pelos séculos XIX e início do XX pelos mais variados ramos de atividade para se deter em aspectos da balança comercial lusa. O seu propósito é argumentar e levantar elementos para melhorá-la o aproveitamento das possibilidades de Portugal ante o Brasil, não como “país caduco, sem expressão, sem aspiração, como um pai arruinado e inútil” (SIMÕES, 1919, p. 70). Isto, é bom lembrar, na interrelação das identidades nacionais de ambos os países. Barros termina o artigo em tom grandiloquente lembrando traços da literatura deca- dentista da época. Ao não duvidar que os destinos de Atlantida, “será como uma grande voz, de multiplos echos, a vibra a mesma palavra de amor sobre as duas margens dis- tantes do vasto Oceano, que a leva cantando, e cantando a faz voar d’onda em onda” (BARROS, 1915, p. 09). O artigo de fundo do diretor brasileiro João do Rio tem um cunho mais etéreo, não tão preciso em intenções quando de seu colega Barros. Também alude, ao seu próprio modo em divagação, o mito que nomeia o veículo. “Como é remota a idéa da ilha da felicidade! Como é antigo o sentimento de que é preciso viajar e andar muito por mar para encontral-a!” (RIO, 1915, p. 11) Ele enumera as várias versões de possíveis locali- zações geográficas do continente perdido em diversas tradições, além de aspectos do mito. Para, após essa digressão, alinhavar o mito de Atlântida com o sonho da América. Então, sintetiza a revista na enumeração:

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Atlantida é a ilha onde está o pomo d’oiro da felicidade; Atlantida é a terra abstrata do conhecimento, do saber, da adivinhação; Atlantida é o élo dos sentimentos que se harmo- nizam á musica onde as nove musas se debruçam para o sorriso da humanidade, o grande abraço mental entre a Europa e a America (RIO, 1915, p. 15).

Interessante observar que, a exemplo de Barros mas ao seu modo peculiar, João do Rio também vê como um dos principais predicados da revista o de lançar ideários e realizações comuns de ambos os países no contexto internacional. Para concluir que a revista pretende realizar e sentir a “ilha do dialogo de Platão, o desejo do entendimento dos continentes – Atlantida, grilhão que liga o querer unido das raças novas em marcha para o futuro, para a felicidade, para a perfeição...” (RIO, 1915, p. 15). Podemos observar que os dois artigos, como adiantamos logo antes, está em diálogo direto com a palestra de João do Rio intitulada “Portugal-Brasil”. Mas o que ficou de Alantida nestes 100 anos de fundação? A sua massa de texto de mais de 5 mil páginas é um continente que expressa momentos dos mais pertinentes à história destes países. Além disso, promoveu o intercâmbio de autores entre ambos os países não apenas durante a sua existência, mas com efeito mais duradouro. Para o pesquisador português Arnaldo Saraiva, o último exemplar da revista poderia fazer um balanço dos mais positivos, pois “através dela se tinha procedido ao levantamento de problemas fundamentais das sociedades portuguesa e brasileira, em si ou entre si: problemas de ordem literária e artística de natureza histórica, política, econômica, social” (SARAIVA, 2004, p. 129). Saraiva aponta como pontos negativos ter publicado mais autores lusos; muitos “colaboradores medíocres” e sobrevalorização de outros acadêmicos ou conservadores, em contraste ao surgimento da modernista Orpheu de Fernando Pessoa e Ronald de Carvalho, também em 2015. O que fica é esse continente de letras e pensamento que, apesar de vários trabalhos acadêmicos tendo-a como tema, ainda tem muito a ser explorado não apenas para a história da literatura ou do jornalismo, mas a outros segmentos em Ciências Humanas.

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7075 José Veríssimo: A função intelectual na nova imprensa da República José Veríssimo: The intellectual function at the new Republican press

R ac h e l B e r to l 1

Resumo: O trabalho objetiva analisar a adesão do crítico José Veríssimo a três periódicos, com atenção para sua participação no período inicial de cada um deles: Jornal do Brasil, fundado em 1891; Correio da Manhã, em 1901; e O Imparcial, em 1912. Veríssimo possuía uma linguagem crítica pessoal. Por um lado, seus escritos traziam preocupações ideológicas, como a busca da afirmação da nacionalidade, o ceticismo em relação à República e a defesa da educação; por outro, eram marcados por análises de rigor estético e formal sobre literatura. Mas o teor dos ensaios também estava em sintonia com a linha das publicações e o público que se buscava atingir. Nos três veículos, seus artigos eram editados com destaque, em geral na primeira página. Esboça-se, assim, o estudo comparativo da função intelectual nesses periódicos. A função intelectual será fundamental para a constituição de legitimidade dos periódicos como forças oposicionistas. As peculiaridades da visão de Veríssimo contribuem de forma relevante para tal configuração. Palavras-Chave: José Veríssimo. Jornal do Brasil. Correio da Manhã. O Imparcial. Crítica literária na imprensa.

Abstract: The work aims to analyze the work of the critic Jose Verissimo at three newspapers, with special attention to the initial period of each of them: Journal do Brasil, founded in 1891; Correio da Manhã, in 1901; and O Impartial, in 1912. Verissimo had a personal style of criticism. In one hand, his writings show ideological concerns, as the defense of nationality and education and skepticism towards the new Republic; in the other, they were marked by aesthetic rigor and formal analyzes about literature. But Verissimo was also aware of the editorial profile of each newspaper. Keywords: José Veríssimo. Jornal do Brasil. Correio da Manhã. O Imparcial. Literary criticism.

O INÍCIO do século XX, na chamada belle époque tropical, nos primeiros anos da nascente República brasileira, quando houve amplo desenvolvimento da Nimprensa e dos públicos, a crítica literária ocupava bastante espaço nos jornais, tratada em meio aos grandes e urgentes temas da política e da economia nacionais.

1. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ, Rio de Janeiro, com bolsa da CAPES, e Doutoranda Visitante na Universidade de Princeton (setembro de 2014-fevereiro de 2015), com bolsa da Faperj. [email protected]

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A função intelectual dos críticos literários no jornal é prestigiada. Certamente, cumpriram papel de destaque para a valorização de muitos novos jornais criados na época. Um dos críticos de mais evidência nessa época foi José Veríssimo (1857-1916), personagem que destacamos neste estudo. Por que Veríssimo? Autores como Brito Broca (Vida literária no Brasil – 1900, 1956) nos contam sobre a centralidade que o crítico ocupava sobretudo na primeira década do século passado. Veríssimo, conforme reitera Broca em sua obra clássica, oferecia um rigoroso instrumento de controle da qualidade das obras literárias publicadas na época. Nicolau Sevcenko, em A literatura como missão (2003), destaca que, ao lado de autores tão díspares entre si quanto Lima Barreto e Euclides da Cunha, que seriam os mais importantes do período, Veríssimo formava um “triângulo indissociável”. O crítico, reitera Sevcenko, seria o “mestre tutelar” de ambos, tendo lhes transmitido sobretudo seu forte ceticismo e desencanto em relação aos rumos da República brasileira em seus primeiros anos. Sevcenko ainda observa que os escritos de Veríssimo funcionam como “um prisma” da vida cultural no período. O historiador, no entanto, embora forneça pistas contundentes de uma atuação significativa, não se alonga a respeito da trajetória do crítico. Se Broca nos lembra, por exemplo, sobre a importância atuação de Veríssimo no Correio da Manhã, jornal fundado em 1901 e do qual foi o primeiro crítico literário (e ser o primeiro costuma encerrar uma função simbólica inaugural), Sevcenko apenas diz que Veríssimo teve atuação destacada no Jornal do Commercio, o mais importante periódico do tempo. Até hoje, o mais amplo trabalho sobre Veríssimo continua sendo o de João Alexandre Barbosa, que em 1970 defendeu na Universidade de São Paulo (USP), sob orientação de Antonio Candido, a primeira tese de teoria literária no Brasil, justamente a respeito da obra do crítico. Em 1974, a tese foi publicada em livro com o título A tradição do impasse. Novamente, temos na figura de Veríssimo outro simbolismo relativo aos inícios. Se Veríssimo reuniu em livro muitos dos seus escritos (como nas séries de Estudos de Literatura Brasileira, publicadas entre 1901-1907, e Homens e coisas estrangeiras, entre 1902- 1910), seu trabalho foi realizado sobretudo na imprensa. Muitos textos – provavelmente a maioria – não entraram nos livros. Alexandre Barbosa resgatou dos jornais da época boa parte desses escritos, em amplo panorama que nos oferece sobretudo na primeira parte de seu livro, denominada “Mapa da obra”. Não se trata de um mapa descritivo, mas de um vívido apanhado sobre a trajetó- ria de Veríssimo em meio às principais correntes de pensamento de seu tempo. Sobre como aderiu, primeiramente, e integrou a chamada Geração 1870, em que se destacam nomes como Sílvio Romero e Tobias Barreto. O sopro de “ideias novas” que inspirava as novas gerações nos anos que precederam a Abolição da escravatura e a Proclamação da República também contagiou o jovem intelectual na província. Os primeiros livros de Veríssimo foram lançados no Pará, onde fez incursões pela ficção (como em Cenas da vida amazônica, 1886) e pela etnografia. Aos 22 anos, participou de congresso de etnografia em Portugal, onde conheceu um de seus amigos de toda a vida, o futuro diplomata Oliveira Lima (na época com apenas 12 anos). O crítico ligado a nomes como Oswaldo Goeldi (na Academia Brasileira de Letras há exemplares de cartas trocadas entre eles) foi um dos fundadores da Revista Amazônica

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(1883-1884), onde teve destacada atuação e cujo objetivo era produzir ideias locais (“não basta produzir borracha”, afirmava o editorial inaugural da revista sobre o devir do território amazônico). Também na província Veríssimo iniciou-se numa atividade que marcará fortemente sua trajetória: a de educador. Tendo atuado em colégios locais, ele foi diretor de instrução pública do Pará e em 1890 publicou seu livro mais importante do período, A educação nacional (sobre este, Candido irá observar que apresentava ideias avançadas para o tempo, aproveitadas no Brasil somente décadas depois). É sob o impacto do lançamento desse livro que Veríssimo chega ao Rio e se insere no debate intelectual como voz de prestígio. Se Alexandre Barbosa realiza uma análise detida da linguagem crítica de Veríssimo (por dentro desta), em todo o seu livro há uma frase (apenas uma) que abre, no caso deste estudo, uma porta que leva a um vasto pátio inexplorado. Diz ele que as críticas de Veríssimo (além de suas características próprias, sobre as quais se debruça) respondiam às linhas editoriais dos diferentes jornais e revistas para os quais escreveu. Em nenhum momento, porém, ele busca analisar como um lado dialogava com o outro. A exceção seria o caso da Revista Brasileira, que Veríssimo editou (entre 1895 e 1899) – portanto, ele próprio seria o responsável pela linha editorial, analisada por Barbosa. Foi a partir da Revista que se formou o grupo que inaugurou a Academia Brasileira de Letras (ABL), com Machado de Assis à frente. No caso das demais publicações, Barbosa não realizou esse exercício. Para tal, seria necessário atentar para a história dos periódicos (o que fez apenas para a Revista) e sobre como os textos de Veríssimo eram publicados no interior de cada um. Teria sido um exercício monumental para um analista tão rigoroso quanto Alexandre Barbosa realizar numa única tese. Mas, a partir da escavação inicial que nos legou, pode-se agora vislumbrar essa possibilidade. Ler o livro de Barbosa tendo em mente algo da história da imprensa no Brasil nos primeiros anos da República nos faz reparar num fato que os pesquisadores ainda não levaram devidamente em conta. Em três momentos diferentes de sua vida, o respeitado crítico do Jornal do Commercio, fundador da ABL, arriscou seu prestígio em novos jornais da República, todos com fortes características oposicionistas (o que certamente não era o caso do Jornal do Commercio). Foi assim em 1891, quando, recém-chegado ao Rio, começou a colaborar para o Jornal do Brasil, de Rodolfo Dantas, que conta com o apoio de nomes como o de Joaquim Nabuco e defendia correntes monarquistas na novíssima República. Na 91a edição do jornal, com grande espaço na primeira página, Veríssimo inicia no periódico a publi- cação de uma série de seis artigos sobre educação nacional, em que critica o ministro Benjamin Constant e suas medidas na área. Com a série, ele se torna colaborador ativo do jornal na época. Dez anos depois, em 1901, Veríssimo parece não hesitar em se juntar ao combativo Correio da Manhã, do advogado gaúcho Edmundo Bittencourt, ligado a nomes como o de Ruy Barbosa e que realiza forte oposição às diretrizes do governo Campos Sales. O crítico começa a escrever para a publicação em sua 18a edição. Lá assinará a primeira crítica publicada na imprensa de Os Sertões, de Euclides da Cunha, tendo marcado de maneira significativa a recepção à obra.

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Tal informação (sobre a crítica inaugural de Os Sertões), resgatada em anos recen- tes por estudos como o de Roberto Ventura (2003), é uma das que Alexandre Barbosa não conseguiu obter em seu levantamento (no livro, ele nos diz que Veríssimo não fez a primeira crítica da obra de Euclides)2. Trata-se de exemplo que pode indicar a difi- culdade do pesquisador para perceber o conjunto da sua obra, pelo fato de esta ter se desenvolvido em diferentes jornais ao longo de muitos anos, nem sempre contínuos, ou seja, de forma extremamente fragmentária. Em 1912, cerca de quatro anos depois de ter deixado a militância na imprensa coti- diana com a crítica literária, Veríssimo volta a aceitar o desafio de se juntar a outro novo jornal, O Imparcial, de Macedo Soares (no futuro, o jornal irá se transformar no Diário Carioca, pelo qual, ironicamente, serão introduzidas no Brasil, nos anos 1940 e 1950, algumas das mais modernas técnicas do jornalismo narrativo do século XX, importa- das dos EUA, que irão desempenhar papel preponderante na imprensa brasileira). No Imparcial, Veríssimo vai publicar textos contundentes do ponto de vista político e social. Sua atuação nos leva a perguntar de que modo a função intelectual, representada por uma figura como a de Veríssimo (que não era o único a desempenhá-la), foi impor- tante para a afirmação desses novos jornais perante os leitores? E se observamos os impasses da linguagem crítica de Veríssimo apontados por Alexandre Barbosa, como os periódicos fornecem elementos que criaram (ou podem ajudar a explicar) tais impasses? Não imporiam eles exigências das quais o crítico não tinha como se esquivar para se preservar naquele espaço? Procura-se analisar a contribuição de Veríssimo na divulgação da crítica literária a partir dos fragmentos das críticas encontrados nos jornais em seus primeiros dias, e os circuitos comunicativos estabelecidos entre os diversos leitores e produtores comunicati- vos. O conceito de circuito de comunicação foi formulado por Robert Darnton (2010) para analisar as inter-relações entre produtor, impressor, distribuidor e leitor, pois todos eles realizam o intercâmbio de experiências e práticas que influenciam na questão do gênero, do estilo, nas relações deste sistema com outros de natureza política, econômica, social. A pesquisadora Marialva Barbosa (2007) considera que, no circuito de comunicação, os produtos midiáticos são envoltos em textualidades – texto, visualidade, sonoridade, discursividade e testemunho histórico –, cuja escritura se dá em uma longa duração. Mais do que uma representação de uma dada realidade, eles estabelecem uma intrínseca relação do texto com o seu referente. Destaca-se o fato de Veríssimo não praticar a crítica literária no sentido em que é contemporaneamente conhecida, como atividade especializada. A crítica surge em meio à discussão sobre questões políticas e sociais prementes. Tal exigência – respondendo às demandas do espaço jornalístico como contexto inicial para aquele determinado texto – é indicativa do espaço da própria literatura na sociedade e marca, decerto, a linguagem crítica e a abordagem estética do autor. Se em muitos estudos de crítica literária costuma-se “anular” a função do jornal, ou seja, a relação da crítica com relação ao meio em que foi primordialmente publicada

2. Sevcenko tampouco destaca a ligação de Lima Barreto com o Correio. Entrentanto, o autor chegou a trabalhar no jornal como reporter e, em seu romance de estreia, Recordações do Escrivão Isaias Caminha, retrata de forma mordaz a redação do jornal.

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(Castro Rocha (2011) critica o viés que chama de “endogâmico” dos estudos de crítica), tal postura nos remete à pergunta clássica de Gramsci (1967): “São os intelectuais um grupo social autônomo e independente, ou todos os grupos sociais possuem suas pró- prias categorias de intelectuais especializados?”. Nesse sentido, o crítico literário da belle époque surge imerso no “permanente movimento de pressões e contrapressões entre grupos de indivíduos organizados, visando à produção do consenso, ou seja, a aceita- ção do projeto de um desses grupos por todos os demais” (BARBOSA, 2007, p. 109-110). A partir de Gramsci (citado por Barbosa), tal concepção inclui a “ideia fundamental de direção intelectual”, sendo que a “hegemonia deve ser lida tendo em conta a contra- hegemonia” (2007, p. 110).

‘JORNAL DO BRASIL’ ( 1891) Lançado em 9 de abril de 1891, menos de dois anos depois da Proclamação da República, o jornal teve sua criação articulada por Rodolfo Dantas (1855-1901) em meio a “interesses e simpatias ligadas ao regime extinto (que) movimentam-se, agrupam- -se” (SODRÉ, 1999, p. 293). Um dos trunfos do novo jornal foi a contratação, por parte de Dantas, de Joaquim Nabuco, que aceita ser correspondente de Londres, enviando cartas – “como vinha fazendo para o Jornal do Commercio” (idem) – e notícias, por 35 libras mensais. O diretor é Henrique de Velleneuve, um dos sócios que havia vendido o Jornal do Commercio no ano anterior. Seu nome aparecerá desde o primeiro número no cabeçalho da primeira página como o responsável principal do jornal. Veríssimo é citado por Sodré como fazendo parte da equipe inicial – “O Jornal do Brasil começava a ocupar um lugar especial na imprensa: José Veríssimo, como Sainte- Beuve, faz a crítica literária nos rodapés das segundas-feiras” (p. 205). Se o crítico literário francês era de fato um modelo para a atividade crítica nos jornais brasileiros (se não na linguagem crítica, pelo menos na forma de atuação na imprensa), Veríssimo, porém, não escrevia no rodapé, espaço até então reservado aos folhetins (assim como acontecia no Constitutionnel, para o qual escrevia Sainte-Beuve algumas décadas antes). O início da atuação do crítico no jornal, inclusive, não se dera pela crítica literária. Recém-chegado do Pará, Veríssimo começa a escrever para o jornal na sua 95a edi- ção, em 12 de julho de 1891. Nesse dia, assina o primeiro artigo de uma série de seis, que serão publicados em diferentes dias, até o dia 8 de agosto do mesmo ano. O título é “A República e a Educação Nacional”, com diferentes aspectos relacionados ao tema na República recém-criada e críticas e análises de medidas do governo na área. Em diferen- tes ocasiões, no seu período de colaboração no jornal, irá tratar do tema da educação. Na segunda edição de Educação Nacional, de 1906, editada pela Livraria Francisco Alves, o próprio Veríssimo recupera textos que havia publicado sobre o tema no Jornal do Brasil. Na nova introdução, dá destaque aos comentários que faz das reformas promovidas por Benjamin Constant (1836-1891) enquanto ministro. “O mérito dessas reformas era discutível, e o autor deste livro o discutiu no Jornal do Brasil do primeiro semestre de 1892 (sic), encetando nesta cidade a sua existência de jornalista, sob a esclarecida e generosa direção do saudoso Rodolpho Dantas” (VERÍSSIMO, 1906, p. VII). Até então, as críticas literárias do Jornal do Brasil eram assinadas, desde pelo menos a terceira edição (11 de abril de 1891), por M. Said Ali.

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Trata-se de período marcado por crises políticas e institucionais sucessivas. Quando Veríssimo se muda para a capital, assiste ao início do período “financialista” – expressão usada pelo próprio crítico (BARBOSA, 1974, p. 129) para descrever a situação – iniciado pelo decreto de 17 de janeiro de 1890, em que Rui Barbosa institui a política financeira do Encilhamento. Desde as primeiras medidas, cria-se uma desilusão com a República que propicia tentativas de restauração monárquica e leva a um crescente ceticismo ago- ra não apenas em relação ao passado, mas ao próprio futuro da República. Ceticismo torna-se uma das marcas da linguagem crítica de Veríssimo.

‘CORREIO DA MANHÃ’ (1901) Se participa da primeira fase do Jornal do Brasil, Veríssimo, entre 1895 e 1899 torna-se editor da Revista Brasileira – base para a fundação da Academia Brasileira de Letras – e, a seguir, intensifica, já como crítico literário consolidado na capital, a sua atuação no estabelecido Jornal do Commercio. Porém, quando o Correio da Manhã foi fundado, em 15 de julho de 1901, pelo advogado gaúcho Edmundo Bittencourt, Veríssimo prontamente começou a colaborar na nova publicação, que conquistou “glória instantânea”, “no primeiro dia talvez”, conforme destaca Francisco Assis Barbosa, o primeiro biógrafo de Lima Barreto (2012, p. 195). Naquele que seria o “mais desabusado” jornal da época, e que desde o início firma- -se como fortemente oposicionista em relação ao governo de Campos Sales, Veríssimo começa a colaborar na 18a edição, na primeira página também, na coluna nobre do jor- nal, no alto da página à esquerda – espaço reservado também a eminentes articulistas políticos e ao próprio dono do jornal (ou seja, não se tratava de rodapé). Até o fim de sua colaboração com o Correio, é sempre nesse espaço que irá publicar suas críticas – mas, assim como ocorreu no Jornal do Brasil, sua inserção no jornal não se dá pela crítica literária, mas com artigos sobre política internacional. Veríssimo foi o primeiro a tratar do tema naquele espaço. A “glória instantânea” destacada por Assis Barbosa foi obtida pela série de reporta- gens realizada sobre os protestos na cidade contra o aumento das passagens de ônibus que tomaram a cidade justamente na semana de lançamento do jornal. Posicionando-se fortemente contra medidas de Campos Sales e da maior autoridade policial da capital na época, Hermes da Fonseca (futuro presidente), o jornal – com uma linguagem que descrevia de forma vívida as manifestações – conquistou leitores populares, ao mesmo tempo em que angariou a simpatia de jovens estudantes universitários com posiciona- mento crítico em relação ao regime político. No Correio, Veríssimo escreverá críticas históricas, como a primeira resenha surgida na imprensa sobre Os Sertões, de Euclides da Cunha, no dia 3 de dezembro de 1902. Até hoje, a resenha é referência para o debate sobre a obra. Sua última resenha no jornal surgiu em 26 de janeiro de 1903, com o texto “França e Alemanha: uma influência espi- ritual” – ou seja, sem abandonar os temas de política internacional. De que maneira um período como o Correio da Manhã, em seu período inicial, pode ter influenciado a linguagem crítica de Veríssimo na fase em que para lá colaborou? Em que medida a linha do jornal teve impacto em suas análises estéticas? A crítica do livro de Euclides seria um bom indício. Foi considerada corajosa, pois, ao defender o

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7081 José Veríssimo: A função intelectual na nova imprensa da República Rachel Bertol autor, um estreante, Veríssimo “arriscava todo o seu prestígio” (BROCA, 2004, p. 242). E o livro se tornou um best-seller para os padrões da época depois da sua aprovação. Poucos meses antes (10 de maio de 1902), o crítico havia dado no mesmo jornal amplo espaço – embora não tão destacado – a outro estreante, Graça Aranha, que acabara de lançar Canãa. Ou seja, sua aliança com os novos autores, que ele elogiava pela maneira como retratavam o país, certamente encontra ambiente propício no novo jornal, que buscava romper com os padrões da imprensa até o momento e buscava se engajar em novos parâmetros de crítica social e política para o país. A visão política de Veríssimo, altamente engajado em discussões sobre política internacional, com uma crítica especialmente forte em relação às intenções imperialistas dos Estados Unidos nas Américas (preocupação que já se faz presente desde Educação Nacional, de 1890), se faz presente igualmente nas críticas que realiza a respeito das obras de autores da região. De acordo com José Alexandre Barbosa, ao mesmo tempo em que se mostrava arguto crítico social, porém, o crítico fazia determinadas ressalvas à forma de escrever dos novos autores que, em sua visão, indicavam uma duplicidade de sua própria linguagem crítica, que não reconhecia as soluções formais encontradas pelos autores para lidar com as novas demandas da realidade que se configurava.

‘O IMPARCIAL’ (1912) Quatro anos antes de sua morte e cerca de quatro anos depois de ter deixado a militância da crítica literária na imprensa cotidiana, José Veríssimo lança-se em outro novo empreendimento de risco: a participação, que seria constante, no novo jornal de José Eduardo Macedo Soares, O Imparcial, criado por ele em 1912. O jornal se alinhava à oposição ao governo de Hermes da Fonseca já praticada por jornais como Correio da Manhã e A Noite. Uma das suas marcas, desde os primeiros números, seria, “além da natureza essencialmente política”, a linguagem “irônica e irreverente” (RIBEIRO, 2007, p. 108). Em 1928, o Diário Carioca, que seria fundado pelo mesmo proprietário no lugar de O Imparcial, herdaria tal característica. Além disso, apresentando-se como “Diário Ilustrado do Rio de Janeiro”, foi o primeiro jornal carioca a publicar ilustrações (PECHMAN, in Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, CPDOC). O primeiro texto de Veríssimo no jornal surge em 15 de agosto de 1912 com o título “Literatura Regional”. Com a publicações de imagens na primeira página – prática que começa, sobretudo com o uso de fotografias, a ser praticada pelos jornais brasileiros na segunda metade da década inicial do século XX – os textos mais longos de cunho crítico passam a ser publicados na página 2, caso das colaborações de Veríssimo (ainda não se constituindo em rodapés). Se continuará a escrever sobre literatura, no jornal de Macedo Soares – certamente acompanhando a linha combativa e mais solta da publi- cação – Veríssimo publicará alguns de seus mais contundentes textos de teor crítico em relação aos rumos da política e sociedade brasileira. Acentuam-se, nessa última fase, suas preocupações em relação a temas latino- americanos, em geral discutidos a partir da obra de autores dos diferentes países vizinhos ao Brasil. “Os artigos publicado no Imparcial (e não “em jornais do tempo”, como afirma Anna Flora Verissimo (filha do crítico) na advertência (de coletânea organizada pela família postumamente) dão a medida de uma atualidade desde que pensados em termos mais

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7082 José Veríssimo: A função intelectual na nova imprensa da República Rachel Bertol amplos do que simplesmente ‘literários’” (BARBOSA, 1974, p. 185). Dessa fase, pode-se observar “o autor interessado na existência política nacional e internacional, tomando parte intensamente na reflexão acerca dos nossos destinos de nação sul-americana, usando mesmo das análises de obras de ficção sul-americanas para investir contra o subdesenvolvimento nesta parte do Novo Mundo, e o autor empenhado em julgar as obras de então segundo os critérios utilizados para a compreensão daqueles fatos de ordem social e política” (idem, p. 186). Ou seja, se sua linguagem é marcada por uma duplicidade – entre uma avançada crítica social e a rejeição, muitas vezes, a soluções de linguagens dos novos autores –, esta duplicidade seria ainda mais aguda, de acordo com João Alexandre Barbosa, nessa última fase. Em 1914, Macedo Soares foi preso junto com diretores de outros jornais (como Edmundo Bittencourt do Correio da Manhã, Irineu Marinho, de A Noite e diretores de publicações como Época e O Malho). A imprensa oposicionista havia noticiado a crise aberta na República com a intervenção federal no Ceará, depois que políticos aliados ao líder religioso Cícero Romão Batista enfrentaram a manutenção do “coronel” Franco Rabelo na presidência do Estado. Em 7 de junho de 1913, o texto “A comédia política”, não poupa críticas à situação política. A seguir, breve trecho:

Grave? Não creio. Não sei que jamais tenha havido no Brasil situação grave, isto é, que não se resolvesse sem grandes alterações. Não o foi a Independência, que sendo em toda a América motivo de lutas sangrentas e guerras demoradas, não passou aqui de uma briga de família que não chegou sequer a escandalizar o bairro. Não o foi a Abolição da Escravidão, que ia custando aos Estados Unidos a sua unidade e lhes custou uma guerra civil de cinco anos. Não o foi tampouco a substituição da Monarquia pela República, feita com passeata de tropas, discurseira, palmas e vivório. Ninguém deu sequer pela separação da Igreja e do Estado, medida que tem alvoroçado todos os povos onde foi realizada ou simplesmente tentada. Podíamos continuar essa ladainha, mas é desnecessário demonstrar o axioma de que no Brasil não há nada grave.

CONSIDERAÇÕES FINAIS José Veríssimo participava de uma série de tramas comunicacionais envolvendo alguns dos principais debates de seu tempo. A crítica literária era o principal instrumento de que dispunha par impor sua voz. Ao longo do século XX, se a crítica perde espaço no contexto de predomínio do jornalismo narrativo, também será considerada menor no contexto da crítica teórica. Pelos dois lados, é derrotada. Há, portanto, um duplo simbolismo envolvendo a crítica e sua derrota (ou seja, um simbolismo ambíguo). Nem sempre, entretanto, ela é ana- lisada como sendo esse ponto de interseção. Derrotada (nocauteada) duplamente, a crítica literária na imprensa seria o ponto de interseção de duas linhas vitoriosas – ou supostamente vitoriosas. Na atualidade, uma série de debates ainda busca entender o papel da crítica. Trata- se de debate que se relaciona a novas formas de circulação da cultura na globalização. O papel da crítica continua sendo requisitado, de múltiplas formas.

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A própria crítica, intrinsicamente, seria uma linguagem ambígua (basta atentar para os impasses apontados por João Alexandre Barbosa). E o espaço informativo é marcado pela disputa constante entre diferentes tipos de linguagem. Como a trajetó- ria de Veríssimo na imprensa, ou seja, a partir do caso brasileiro conectado às “coisas estrangeiras”, contribui para que se analisem os diferentes jogos de linguagem conti- nuamente em disputa?

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7084 José Veríssimo: A função intelectual na nova imprensa da República Rachel Bertol

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7085 A censura no Governo Vargas: antes, durante e depois Censorship under Vargas: before, during and after

M ar i a C r i s t i n a C a s t i l h o C o s ta 1

Resumo: O trabalho tem como objetivos mostrar: a) resultados da pesquisa que vem sendo realizada pelo Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (OBCOM-USP), a partir do Arquivo Miroel Silveira (AMS/ECA-USP), sobre censura aos meios de comunicação e à produção artística; b) relembrando os 60 anos do suicídio de Getúlio Vargas, a sua atuação no controle sobre a imprensa e a produção artística; c) a censura moral ou estética como subterfúgio para controlar a produção simbólica e impedir a crítica e a dissidência; d) como a extinção dos órgãos oficiais de censura não evitou que outros meios continuassem a controlar meios de comunicação e manifestações artísticas, impedindo a livre expressão. Isso será feito através da análise dos documentos de censura prévia da peça Ben-Hur, de 1943, que deveria estrear em São Paulo. Palavras-Chave: Liberdade de expressão. Censura. Arquivo Miroel Silveira. Ben-Hur. Getúlio Vargas

Abstract: The article has as objectives: a) to portray the results of the research on censorship over the media and the artistic production developed by the University of São Paulo’s Observatory for Communication, Censorship and Freedom of Expression (OBCOM-USP), based on the Miroel Silveira Archive. The subject of freedom of expression has been increasingly relevant for communication studies lately; b) to approach Getúlio Vargas’ administration in the matter of controlling and intervening over the press and the artistic production, on the proximity of the late president’s 60th death anniversary; c) to show that aesthetical or moral justifications for censorship shadow the true intention of all censorship action, which is to control symbolic production and stop all criticism and dissent. In that sense, we analyze the documents enclosed in the previous censorship process number 268, dated from 1943, regarding the playwright for Ben-Hur, which should have debuted in São Paulo at the time; d) to demonstrate that the extinction of official agencies for censorship, the so called “classic” form of censorship, does not prevent its other indirect, plural, particular and governmental forms of controlling the media and the artistic production from blocking free expression. Keywords: Freedom of expression. Censorship. Miroel Silveira Archive. Ben- Hur. Getúlio Vargas

1. Professora Livre-docente da Escola de Comunicações e Artes da USP e Coordenadora do Núcleo de Apoio à Pesquisa Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura, da mesma Universidade. E-mail: [email protected].

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INTRODUÇÃO CENSURA TEM sido tema raro e difícil nas Ciências da Comunicação. Como recurso político de monitoramento e interdição da produção simbólica, ela é Aquase sempre associada aos governos ditatoriais e aos regimes de força. Neste ponto, sem dúvida, ela se torna mais perniciosa e evidente. Isso porque, nos regimes autoritários, a comunicação e a produção artística tendem a assumir um papel pre- dominantemente crítico e de resistência. A censura surge, então, como o mecanismo mais disponível e eficiente para conter a dissidência e a revolta. O embate entre os produtores, comunicadores e os mecanismos de poder tornam-se evidentes, como o foram durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985). Nesses períodos, entretanto, a crítica aos mecanismos censórios é indireta, sutil, pois também a imprensa e a pro- dução científica ficam sob o controle e sob a mira dos mecanismos de repressão. Isso sem contar a dificuldade para chegar às fontes e aos documentos que elucidam sobre os processos ditatoriais e, inclusive, sobre a censura. Robert Darnton, em seu livro Os best-sellers proibidos da França pré-revolucionária (1998), estuda e analisa a importância da produção, distribuição e consumo de livros considerados “proibidos”, “não permitidos” ou “piratas” na França do século XVIII. Nessa classificação, reuniam-se obras de maior ou menor interdição, que os livreiros distribuíam entre os interessados, chamando-as de “matéria filosófica”, ou seja, livros proibidos pela monarquia por serem considerados subversivos. Em outro livro, A revolução impressa (DARNTON, 1996), o mesmo autor mostra como a Polícia dos Livros organizou-se à medida que a impressão de livros se tornou mais expressiva. Chegou a haver, no início do século XVIII, uma divisão especial na polícia de Paris destinada a controlar tudo que era impresso (ibidem, p.39). Mas, já naquela época, tentava-se ocultar a determinação e a cotidianidade da censura. Mesmo por que, era sabido que nada promovia mais a procura de uma obra do que a fogueira em que ela era queimada pelas autoridades. Esses estudos nos mostram como é difícil, em tempos de autoritarismos, falar, discutir ou estudar a censura. O tema é tratado, muitas vezes, por historiadores que, passados os “anos difíceis”, abrem arquivos e vasculham documentos atrás de registros da censura. Outro exemplo dessa prática e desse interesse é a obra de Eduardo Friero (1957) sobre a biblioteca do cônego Luis Vieira, considerada prova do caráter subversivo da atuação do religioso na Inconfidência Mineira. A relação em seu poder de livros proi- bidos faz parte do processo de acusação que resultou em sua extradição para Portugal. Mas também sabemos que, mesmo passados os períodos de maior autoritarismo, o tema da censura dificilmente se torna assíduo. Isso por que arquivos permanecem sigilosos e muitos documentos são destruídos na fase de transição entre ditadura e redemocratização, restando poucos vestígios do trabalho da censura. Além disso, toda a ambiguidade que circunda os processos censórios ajuda a dificultar os estudos – são documentos divergentes, contradições em depoimentos, processos pouco elucidativos e registros não esclarecedores. Soma-se, ainda, a constatação desagradável do obscu- rantismo que emerge dessas pesquisas. Por tudo isso, quando, em 2000, tivemos conhecimento da existência do Arquivo Miroel Silveira, na Biblioteca da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, não hesitamos em formar um grupo de pesquisa que se debruçasse sobre os

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6137 processos de censura prévia ao teatro, em São Paulo, registrados entre 1930 e 1970. Miroel Silveira era um homem de teatro – produtor, diretor, ator, bailarino, tradutor, além de poeta, escritor e professor. Foi dele a iniciativa de, finda a censura de Estado oficial, resgatar essa documentação que pertencia à Divisão de Censura do Departa- mento de Diversões Públicas do Estado de São Paulo (DDP-SP) e levá-la íntegra para a ECA, onde lecionava. Na universidade, ela poderia ser objeto de pesquisa científica e de discussões procedentes sobre a censura ou sobre as difíceis relações entre o poder e a produção simbólica. Há 14 anos, mais de cinquenta pesquisadores, entre filósofos, historiadores, comunicadores, historiadores, sociólogos, linguistas e artistas, têm estu- dado esse arquivo, um dos únicos existentes no Brasil de forma completa e disponível à consulta da forma como foram organizados. Em torno dele formou-se o Núcleo de Apoio à Pesquisa Observatório da Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da Universidade de São Paulo, que mapeia os processos de censura no Brasil e no mundo na atualidade, comparando os processos censórios contemporâneos àqueles presentes no Arquivo Miroel Silveira, referentes ao século XX.

BEN-HUR Em 1880, o general Lew Wallace, político e militar norte-americano, tendo atuado na Guerra de Secessão, lutando contra o México e chegando a ser senador e governador do Estado do Novo México, publicou o livro que seria um dos grandes sucessos nacionais e internacionais da produção literária norte-americana – Ben-Hur, a história de Cristo2. Além do sucesso literário, o apelo da história de um herói judeu na Palestina promoveu bem sucedidas versões teatrais e cinematográficas. Qual terá sido a razão de tanto sucesso? A intenção de Wallace era escrever uma história cristã que atestasse sua crença em Deus e em Jesus Cristo. Para isso, situa sua história nos primórdios da Era Cristã, na Palestina, onde nasceu Jesus Cristo, dominada pelo Império Romano, durante censo ordenado por Roma. Mais ou menos nessa mesma época, dois garotos – o judeu Ben-Hur e o romano Messala – iniciam profunda amizade que, passados os anos, passaria por sérias dificuldades. Vinte anos depois, Messala torna-se general romano e, Ben-Hur, um ferrenho defen- sor da liberdade de seu povo. O conflito entre os dois se instala quando o jovem judeu recusa-se a provar sua fidelidade ao amigo de infância denunciando compatriotas que tramavam contra Roma. A partir de então, o romano passa a perseguir o antigo amigo e sua família. Ben-Hur sofre inúmeras injustiças, mas, depois de muitas agruras, aca- ba vencendo Messala numa corrida de bigas em que o vilão morre. O drama, enfim, termina com a mãe e a irmã de Ben-Hur sendo curadas da lepra pelo próprio Cristo. Assim, a crença na justiça divina parece se justificar para o autor e para seu grande número de leitores. Desde o século XIX, quando o livro foi adaptado para o teatro, a corrida de bigas emocionou plateias. Em 1899, no Broadway Theatre, em Nova York, a encenação contou com oito cavalos apresentados no palco, os quais, graças a mecanismos ilusionistas de

2. O texto referente à análise do processo 268 foi publicado na Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, v. 29, n. 1, jan.-jun. 2006, pp. 143-157.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7088 A censura no Governo Vargas: antes, durante e depois Maria Cristina Castilho Costa produção, davam a impressão de galoparem. O sucesso levou a peça para outras cidades dos Estados Unidos e para o exterior, tendo sido apresentada na Europa e na Austrália. A última apresentação desse espetáculo foi em 1921, depois de seis mil apresentações e de vinte milhões de espectadores. Muitas outras adaptações, entretanto, foram realizadas mundo afora, inclusive no Brasil, onde o texto ganhou os palcos paulistas em 1938. O processo de número 268 do Arquivo Miroel Silveira atesta que os proprietários do circo- teatro Politeama François solicitaram aprovação da censura para a encenação pública de Ben-Hur – o príncipe de Hur, adaptada por Hilário de Almeida. Em 1926, na primeira versão cinematográfica oficial, as filmagens começaram em Roma, sendo as cenas de uma batalha naval rodadas em Livorno. Nessa época já se contrapu- nham, como na Palestina bíblica, correntes políticas bastante divergentes: o nazifascismo nacionalista e populista de Itália e Alemanha, o liberalismo inglês e o comunismo que se tornara vitorioso com a Revolução Russa de 1917. A associação da Roma imperial com a Itália de Mussolini foi inevitável, uma vez que o próprio ditador fazia questão de usar essa estratégia como propaganda política. Em vista disso, conta-se que as centenas de extras que participavam da produção começaram a se desentender – fascistas e não fascistas passa- ram a tomar posição em relação às questões romanas levantadas pelo enredo. Chegou-se a temer que um verdadeiro motim se desencadeasse na hora em que os soldados romanos deveriam ser atacados pelos piratas macedônios. Uma série de incidentes também acabou por estimular o boato de que Mussolini desejava atrapalhar as filmagens. Cada vez mais, identificava-se a Roma de Messala com a de Mussolini, por sua arbi- trariedade, repressão e perseguição aos opositores. Até mesmo a saudação dos oficiais romanos, com o braço erguido – utilizada não só em Ben-Hur, mas também em Spartacus e Cleópatra –, era, na verdade, de inspiração fascista, não tendo suas raízes no que se conhece do Império Romano antigo. Assim, embora Ben-Hur seja um texto de fé cristã, ele se prestava a uma crítica política nitidamente anti-imperialista e antirracista. Nele, Roma se tornava símbolo de autoritarismo, arbitrariedade, discriminação e injustiça, enquanto os judeus eram apresentados como povo resistente, defensor de sua autonomia e identidade. Em vista disso, entende-se que a obra tenha alcançado tanto sucesso, pois, além de se tratar de uma história bem contada, agradava tanto aos cristãos como aos judeus e a todas as minorias étnicas, religiosas e políticas da passagem do século XIX ao XX, período his- tórico de grandes intolerâncias. Também se torna fácil compreender que os Estados Unidos, recebendo grandes contingentes de pessoas vindas de diversas partes do mundo pelas mais variadas razões, estivessem estimulados a promover a convivência e tolerância através de obras de fácil apelo popular, destinadas à educação das massas. Era a isso que se propunham, quase na mesma época, os estúdios Disney, eles também de forte inspiração cristã e protestante. Mais crítico, Marc Ferro afirmou, em entrevista recente concedida a Sheila Schvarzman (2004) para a Folha de S. Paulo, que

os filmes históricos americanos feitos nos anos 50, glorificam a marcha para o Oeste ou mos- tram o triunfo do Ocidente. Sansão e Dalila, Ben-Hur legitimam o imperialismo americano primitivo, ou seja, a conquista do oeste e o cristianismo que vai junto.

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É interessante notar, entretanto, como a evocação política do texto foi se tornando cada vez mais acentuada à medida que os acontecimentos da primeira metade do século XX foram se desenrolando, especialmente com o advento do nazismo e do fascismo, a perseguição dos judeus e a organização das grandes ditaduras europeias. Os incidentes ocorridos na Itália, em 1926, atestam esse tensionamento do teor político da história. A censura prévia realizada pelo Serviço de Censura do Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda (DEIP) havia sido instituída pelo governo Vargas desde a década de 30. Depois de analisadas, as peças eram vetadas, liberadas ou liberadas com cortes. As vetadas não poderiam vir a público, tendo o produtor que arcar com os gastos que porventura tivesse feito com ensaios, figurino e cenário. As peças com cortes eram devolvidas ao produtor para que substituísse as palavras proibidas por outras, digamos, menos comprometedoras. Nesse caso, marcava-se um ensaio geral com a presença dos censores para que eles pudessem verificar, ao vivo, se as marcações haviam sido obedecidas. Quando liberadas com cortes ou com restrição à faixa etária dos espectadores, a peça recebia um certificado com validade de três a cinco anos. Passado esse tempo, o produtor deveria reencaminhar a peça ao Serviço de Censura para uma revisão. Esse foi o caso do processo relativo a Ben-Hur. Hilário de Almeida, autor da adaptação da peça com dois atos e doze quadros, pedia a revisão da censura realizada cinco anos antes. Para entendermos o processo de censura da peça, temos que levar em consideração o cenário político da época (1943). A II Guerra Mundial estava em curso, mas a Itália capitulava e os Estados Unidos e a União Soviética intervinham decisivamente em favor dos aliados. A derrocada do Eixo parecia próxima. O então Presidente da República e chefe do Estado Novo, Getúlio Vargas, pressentia que com ela viria, também, a falência dos regimes ditatoriais. Fazia-se necessário dissociar sua imagem em relação à de ditaduras periclitantes e renunciar à afinidade demonstrada em relação ao Eixo durante a década de 1930, alinhando-se aos Estados Unidos, com quem o Brasil estreitava relações. Essa reviravolta, entretanto, não se fazia apenas no campo da política externa. Internamente, uma campanha contra os imigrantes japoneses, italianos e alemães estava em curso, obrigando-os a adotar nomes brasileiros, a se batizarem e a abandonarem o idioma nativo. Passavam, também, a ser alvo de vigilância e arbitrariedade. Podemos imaginar o constrangimento do censor Jason Barbosa de Moura – cujo nome aparece em nada menos do que 152 processos da década de 1940 pertencentes ao Arquivo Miroel Silveira – ao analisar uma peça que, ao mesmo tempo exalta o poder de Roma e mostra os romanos como vilões capazes de toda e qualquer arbitrariedade. Os cortes do censor parecem não fazer sentido, pois as palavras Roma e romanos são vetadas em diferentes falas: naquelas que louvavam Roma e exaltavam os romanos, como, por exemplo, em “O romano é o farol da humanidade”, assim como naquelas em que parecem impiedosos o Império e seus súditos, “Quem poderá dentre os romanos ser amigo de um judeu?”. Afinal, de que lado estava o censor, o que desejava ele? Parece que a censura não se preocupou muito com o sentido de cada fala ou de cada palavra, seu principal emprenho era desviar de Roma o foco dramático da peça. Que o público pensasse se tratar de um conflito entre militares e súditos num local distante e em uma época perdida no passado, ou da encenação de uma passagem bíblica, mas que

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7090 A censura no Governo Vargas: antes, durante e depois Maria Cristina Castilho Costa não interpretasse a peça como uma metáfora para os conflitos da época, como haviam feito os figurantes nas filmagens norte-americanas realizadas na Itália, em 1926. Essa análise dos cortes impostos à peça Ben-Hur no ano de 1943 diz muito a respei- to da situação política da época e, principalmente, da prática da censura. Ao contrário do que se apregoa até hoje, quando a maioria dos órgãos de censura já foi extinta no Ocidente, a censura jamais se impõe com objetivos éticos ou em defesa do bem comum, nem para salvaguardar a sociedade de abusos ou para resguardar a pureza da infância e dos corações puros. O processo nos mostra que a censura visa à defesa dos interesses ideológicos do poder, ao emudecimento da crítica e à manipulação do público. Um texto sobejamente conhecido das plateias e inúmeras vezes apresentado em telas e palcos é mutilado em trechos absolutamente inofensivos do ponto de vista dramatúrgico, sim- plesmente porque essa intervenção interessa à política desenvolvida e defendida pelo governo. Não estivesse a Itália de Mussolini tão desacreditada na época, o Império Romano poderia ter sido homenageado nas falas dos personagens de Ben-Hur. Poucos processos censórios deixam tão claras as motivações que movem os lápis vermelhos dos censores, tornando risíveis as justificativas baseadas na defesa da moralidade e dos bons costumes, da paz e da segurança social, sempre apresentadas na defesa de intervenções censórias.

CENSURA NO GOVERNO GETÚLIO VARGAS Como dissemos anteriormente, a primeira metade do século XX foi marcada pelo confronto de ideologias das mais contraditórias, de um lado, o liberalismo defendido por nações como a Inglaterra; de outro, doutrinas centralizadoras e militaristas: o comunismo liderado e propagado pela União de Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e o nazifascismo que se alastrava pela Europa (Itália, Alemanha, Espanha, Portugal) e América. Combatendo-se mutuamente, essas propostas políticas implantaram sistemas bastante repressores de propaganda e monitoramento da produção simbólica como forma de engajar as populações envolvidas e calar a dissidência e a crítica. Nesse processo, a censura tinha especial função, especialmente em um período histórico marcado pelo desenvolvimento e expansão dos meios de comunicação. O Brasil, onde a República foi tardiamente proclamada, debatia-se numa estrutura econômica e política herdada dos tempos coloniais – dominância de velhas oligarquias agrárias que se sucediam no poder, defesa incessante da monocultura agroexportadora e presença de grandes desigualdades sociais vindas da escravidão. A instabilidade política que abalava a Europa e os Estados Unidos, agudizada pela crise da Bolsa de Nova Iorque de 1929, abria brechas para que esse cenário de imobilismo, ainda colonial, fosse superado. Assim irrompe a Revolução de 30, liderada por Getúlio Vargas, político experiente em nível regional e nacional e capaz de liderar as massas . Ele será a grande figura da chamada Nova República, período que vai de 1930 a 1945, também conhecida como Era Vargas, período de autoritarismo, militarismo e centralização do poder (COSTA, 2010). E, embora, como já vimos, o governo Vargas tenha oscilado em suas posições políticas, o que se assistiu, de uma maneira geral, foi à implantação de uma ditadura de extrema direita que tinha nos regimes nazifascistas europeus sua inspiração. De influência portuguesa foi o nome Estado Novo dado ao seu governo

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7091 A censura no Governo Vargas: antes, durante e depois Maria Cristina Castilho Costa depois do golpe de estado de 1937, quando, sob justificativa de combater o comunismo, suspendeu a Constituição (COSTA, 2010). Esse regime ditatorial só cedeu em 1945, com a derrota dos países do Eixo pelos Aliados, pondo fim à II Guerra Mundial, caindo por terra as ditaduras de direita no Ocidente. Como todos os regimes ditatoriais dessa época, Vargas fez do uso propagandístico e do controle dos meios de comunicação e da produção simbólica um dos principais pilares de seu governo. Desde o início da década de 1930, o combate à imprensa de oposição foi intenso, como contou Nelson Rodrigues:

Em 1930 houve a Revolução e empastelaram o jornal do meu pai. Houve até um assassinato. Do meu irmão, por causa do meu pai. Meu pai não tinha culpa nenhuma, não tinha nada com o peixe. Aquilo me deu um horror da opinião pública... (RODRIGUES, 1981, p. 130)

Para regularizar as relações com a imprensa, criou, em 1931, o Departamento Ofi- cial de Publicidade (DOP), órgão que devia controlar mais de 1500 jornais e espalhar redes nacionais de difusão radiofônica pelo país. Vinculado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, o DOP representava ideologicamente o governo. Foi o órgão criador do programa radiofônico diário (ainda existente) A voz do Brasil. Pelos conflitos criados em sua política governista, o DOP foi extinto em 1932, não sem antes inspirar a criação do primeiro decreto instituindo um serviço regular de censura, o decreto n.21.240, de 4 de abril daquele ano. Em 1934, Vargas cria um novo órgão, o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC), ligado ao Ministério da Justiça, que passava a regularizar não só a imprensa e o rádio, como o cinema. O controle dos meios de comunicação deixava a alçada do Ministério da Educação para ficar subjugado, decididamente, à pasta da segu- rança nacional. Nesse órgão já se destacava Lourival Fontes, homem de confiança do caudilho. Fontes não era um intelectual, pouco lia livros ou jornais, mas deu assessoria a Vargas no controle das comunicações. Foi ele o nome importante que acompanhou o acirramento da ditadura, tornando-se diretor geral do mega órgão de controle da pro- dução cultural e artística do Estado-Novo, o Departamento de Imprensa e Propaganda (o DIP), criado em 1937. Mentor da política das comunicações e da produção artística até 1942, Fontes dirigiu o DIP dividido em cinco divisões: Rádio, Turismo, Imprensa, Cinema e Teatro. Ele foi substituído por um coronel de nome Coelho dos Reis, um burocrata que pouco entendia de artes e literatura. Cada vez mais, o controle da produção simbólica se tornava questão de Estado. Assim, explica Maria Luiza Tucci Carneiro:

O governo estadonovista buscava, como a maioria dos regimes autoritários, o singular ou seja, a homogeneidade em todos os níveis, de forma a facilitar a dominação, o controle. E, nesta direção, múltiplos discursos foram articulados, oferecendo interpretações de mundo e da realidade brasileira, criando novos significados. (...) No caso de reações em contrário, acionava-se um discurso estereotipado e carregado de estigmas que, propagado através dos principais meios de comunicação da época, contribuíam para fortalecer o arsenal negativo edificado contra alguns grupos tradicionalmente excluídos (CARNEIRO, 2002, p. 31).

Além do órgão central, sediado no Rio de Janeiro, o DIP mantinha sucursais em alguns estados da federação, entre os quais São Paulo, onde passou a funcionar o

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DEIP-SP, ligado diretamente à Interventoria Federal, na gestão de Adhemar de Barros. O Arquivo Miroel Silveira é proveniente da ação deste órgão, que submetia à censura qualquer espetáculo público ou texto que devesse ser distribuído para a população, fosse ele impresso ou em versão radiofônica ou cinematográfica. Entregue para análise, o texto era examinado por três censores que deveriam opinar sobre sua pertinência. Esses censores estaduais, assim como os federais que serviam no Rio de Janeiro, eram geralmente políticos ou parentes de correligionários que viam com bons olhos ganhar um dinheirinho extra para censurar ou liberar as obras artísticas. Além de não preci- sarem permanecer nas instalações da Divisão de Censura, podendo levar para casa os processos para julgamento, ainda gozavam de outros privilégios – conhecer de perto os artistas no ensaio geral que lhes era apresentado antes da estreia, e ter assento gra- tuito nos espetáculos durante toda a temporada em que o espetáculo ficasse em cartaz. Tudo isso fazia do censor uma atividade com certo glamour. Esse modelo de censura não foi inventado por Getúlio Vargas, ele o copiou de outros governos autoritários da Europa, especialmente do Estado Novo de Salazar, com o qual, nessa época, o Brasil manteve relações especialmente próximas. Pudemos constatar essa afinidade política em pesquisa de pós-doutoramento realizada na Universidade de Coimbra, entre 2006 e 2008, quando comparamos os arquivos existentes na Torre do Tombo com os brasileiros, além de examinarmos a troca de correspondências entre Brasil e Portugal. Os resultados dessa pesquisa foram publicados no livro Teatro e censura – Vargas e Salazar (COSTA, 2010). Outras pesquisas demonstram que na Espanha franquista, assim como na Itália de Mussolini, o procedimento censório era muito semelhante. Vargas também não criou a censura brasileira. Nós tivemos censura desde o início da nossa história, antes de termos teatro, imprensa, bibliotecas ou cidadania. Como parte integrante do colonialismo, as ordens religiosas, que introduziram as manifestações artísticas nos primeiros séculos de nossa história, assim como os governadores que administraram a colônia, foram os responsáveis por disciplinar as formas de expressão de maneira rigorosa como, por exemplo, impedindo a instalação da imprensa até o século XIX. Depois da Independência e durante a Monarquia, não foi diferente. Mas, se Vargas não inventou a censura brasileira, tornou-a burocrática e sistemática, uma rotina da prática do poder. Tão rotineira que, muitas vezes, passou despercebida pela produção artística, sendo muito raro que se fale sobre esses obstáculos nos estu- dos sobre a arte brasileira. Muitos artistas entrevistados pelo grupo de pesquisa do Arquivo Miroel Silveira referiam-se à censura minimizando seus estragos ou achando graça das estratégias para liberar uma peça ou uma apresentação pública. O processo referente à peça Ben-Hur – o príncipe de Hur mostra, entretanto, que a censura nada tem de inofensiva ou de meramente disciplinar. Ela interfere na obra, modifica o sentido, dá novo significado a personagens, situações e falas. E faz isso em favor dos interesses politico-ideológicos do poder estabelecido a quem ela serve. Se a censura que se instalou no país como procedimento burocrático de vigilância e monitoramento da produção artística, impondo a autocensura, a contenção e o alinhamento ideológico, foi obra de Getúlio Vargas e do DIP, não terminou com o fim do governo Vargas, do Estado Novo e nem com a extinção daquele megaórgão. Depois de 1945, a censura passou a ser atribuição do Departamento Nacional de Informação,

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7093 A censura no Governo Vargas: antes, durante e depois Maria Cristina Castilho Costa subordinado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Em 1946, é criado o Serviço de Censura do Departamento de Diversões Públicas, que passa a limitar a censura prévia aos espetáculos públicos classificados, a partir de então, como diversões públicas, designação que reunia teatro, programas de rádio, cinema e jogos de azar, assim como shows de variedades e strip-teases. Imprensa escrita e livros passaram a gozar de mais liberdade, ficando isentos de exame prévio. Por isso, muitos autores afirmam equivocadamente que, com a queda de Vargas, acaba a censura prévia no Brasil. Estão se referindo somente à imprensa, pois, como atesta o Arquivo Miroel Silveira, a censura à produção artística continuou a existir em São Paulo, sob as mesmas regras, até 1968, quando o AI-5 a federaliza, passando a ser exercida por militares em Brasília. O novo modelo proposto pela Ditadura Militar – mais rígido e persecutório – durou até 1988, quando foi derrubado, finalmente, pela Constituição que extinguiu os órgãos de censura no Brasil e definiu como constitucional a liberdade de expressão.

E AGORA? Sabemos que a Ditadura Militar conservou, militarizou e radicalizou os aparelhos de repressão do país. A censura se tornou opressiva e deixou saudades de suas formas mais antigas, brandas e burocráticas. Atuou, principalmente, no que Frances Saunders (2008) chamou de Guerra Fria Cultural, ou seja, a perseguição a artistas, intelectuais e autores alinhados com o pensamento de esquerda por parte dos governos capitalistas, concomitantemente ao monitoramento e expurgo da produção liberal ou de direita pelos governos comunistas. Essa Guerra Fria Cultural, que ocupou quase todo o século XX, teve o patrocínio de grandes agências envolvidas na defesa da política dos diferentes países como a KGB, na URSS; a CIA, nos Estados Unidos e a Stasi, na Alemanha Orien- tal. No Brasil, foi o Departamento de Ordem Pública e Social (DOPS), com o apoio do Serviço de censura, então já sediado em Brasília, que perseguiu os comunistas e vetou o movimento cultural de contracultura, a oposição e a resistência contra a Ditadura Militar. Mas, na década de 1990, com o fim da URSS e a derrubada do Muro de Berlim, essa Guerra Fria Cultural, que sustentava o monitoramento e a interdição na produção cultural, deu lugar, na maioria dos países ocidentais, à extinção dos órgãos de censura, em nome da liberdade de expressão e da cidadania. Contribuíram para essa abertura político-cultural, a Globalização e o desenvolvimento das mídias digitais que, no final do século XX, deram à produção cultural uma amplitude jamais pensada, com recursos de interatividade e participação dialógica do público. Entramos no século XX pensando em um mundo sem censura, mas aqui e ali brotaram mecanismos censórios que permitiram tomar ciência de novas formas de coibir a crítica e perseguir os que ousam enfrentar as forças hegemônicas das ideologias dominantes. Para estudar esses novos fenômenos, o grupo de pesquisadores que se organizou em torno do Arquivo Miroel Silveira, na Escola de Comunicações e Artes, criou o Núcleo de Apoio à Pesquisa Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da Universidade de São Paulo (NAP/OBCOM-USP), com a finalidade de monitorar os processos censórios da atualidade. Através de metodologia interdisciplinar e amplo uso das redes mundiais de computadores, temos registrado processos de interdição pelo

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7094 A censura no Governo Vargas: antes, durante e depois Maria Cristina Castilho Costa mundo afora, percebendo que os mecanismos censórios da atualidade são múltiplos, indiretos, internacionais, sutis e de grande eficiência. As pesquisas que vimos realizando nos mostram que as estratégias censórias são diversificadas – processos judiciais abertos por instituições privadas que se sentem prejudicadas por determinadas notícias ou publicações; a inflação dos preços dos espetáculos artísticos, limitando a possibilidade de apresentação de grupos amadores ou menos comerciais; a concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucas empresas, diminuindo o poder de crítica dos pequenos; dificuldade de acesso aos meios de financiamento e patrocínio para produções artísticas não ortodoxas ou não convencionais. Esses são os mecanismos mais utilizados na atualidade para o controle da dissidência e da oposição, preservando-se o pensamento hegemônico, qualquer que ele seja e onde quer que seja. Tendo muitas vezes um caráter particular e privado, esses expedientes censórios passam despercebidos da população em geral, principalmente quando justificados por princípios que parecem eticamente inquestionáveis, como a defesa da infância, das minorias, da segurança nacional e até mesmo da liberdade de expressão. Alguns exemplos nos mostram a falácia e o particularismo desses procedimentos. Em 3 de setembro de 2013, uma equipe de jornalistas que cobria um movimento estudan- til na Colômbia teve seus equipamentos tomados por policiais uniformizados quando os repórteres registravam a agressão a alguns estudantes. A notícia foi publicada no site da Federación Internacional de Periodistas. A rede social Facebook tem censurado as postagens de seus assinantes através de processo criptográfico que elimina palavras e imagens. Cenas de mulheres amamentando e, mesmo danças de grupos indígenas, foram retirados da rede por serem considerados, pelo programa em questão, obscenas3. Também fotografias mostrando uma mulher em trabalho de parto, do fotógrafo Jacob Aue Sobol, foram cortadas da rede sob mesmo motivo. Isto não é um filme é o título de documentário no qual atua o diretor iraniano Jafar Panahi, apresentado no Festival de Cannes de 2013, mostrando como ele vive em sua residência no Irã, condenado à prisão domiciliar pelo governo e proibido de filmar. Diz ele sobre a experiência: “Não posso filmar, escrever roteiros nem dar entrevistas, mas ninguém me impediu de atuar ou de ler roteiros”4. Por outro lado, o diretor de cinema Lars Von Trier foi proibido de participar do mesmo Festival por ter, em 2011, expressado ideias consideradas suspeitas. Trier teria dito que entendia (embora não apoiasse) Hitler. Policiais armados, no Brasil, em Amaralina (Bahia) proibiram a exibição do documentário Menino Joel, sobre a morte, por policiais, de uma criança do bairro. O documentário, dirigido pelo italiano Max Gaggino, trazia depoimentos de familiares do garoto morto. O argumento para a interdição foi de que o objetivo da apresentação era incitar a população contra os policiais5.

3. “Dia da Livre expressão da nudez no facebook”. Blogspot Viva Babel, publicado em 12 mar. 2013. Disponível em: http://vivababel.blogspot.com.br/2012/03/dia-da-livre-expressao-da-nudez-no.html. Acessado em: 22 jan. 2015. 4. “Isto não é um filme: Jafar Panahi cria arma contra o totalitarismo”. Site da Revista Veja. Disponível em: http://vejasp.abril.com.br/materia/isto-nao-um-filme-jafar-panahi-cria-arma-contra-totalitarismo. Acessado em: 04 ago. 2014. 5. “Polícia censura exibição de filme em bairro brasileiro”. Global Voices. Disponível em: h t t p :// pt.globalvoicesonline.org/2013/08/05/policia-censura-exibicao-de-filme-em-bairro-brasileiro/. Acessado

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7095 A censura no Governo Vargas: antes, durante e depois Maria Cristina Castilho Costa

No Museu Meadows, de Dallas, nos Estados Unidos, o catálogo da exposição do pintor espanhol Joaquín Sorolla foi objeto de interdição: a pintura Niños corriendo por la playa, mostrando duas meninas vestidas, perseguidas na beira da praia por um garoto nu, só pôde ser exibida cortando-se a figura do garoto. Os editores americanos do catálogo julgaram que a fotografia, dessa que é uma das obras mais importantes do pintor, poderia ser mal recebida pelo público. Só as meninas vestidas aparecem na publicação6. Essa pequena mostra de interdições da atualidade evidencia que a censura ainda vigora em diferentes partes do mundo, realizada contra diversas formas de expressão e sob justificativas variadas. Muitas outras matérias dão conta da resistência, diversidade e persistência da censura que, hoje, já não se dá de forma atrelada ao Estado, nem com a cotidianidade do passado. Mas, como no passado, as justificativas se apresentam de forma tão universal, quanto inquestionável e, como antigamente, tendem a defender a ordem, o status quo, contra a crítica e a renovação. Como na censura de Ben-Hur, o Príncipe de Hur, o que se deseja é intervir, manipular, proibir que o pensamento crítico e que a liberdade de expressão se manifestem. E, se a Constituição não é suficiente para garantir nossos direitos, que as pesquisas, os debates e as publicações sirvam de espaço para a abordagem dessas questões.

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em: 05 ago. 2013. 6. “Dallas censura una pintura de Sorolla por un niño desnudo”. Levante: El Mercantil Valenciano. Disponível em: http://www.levante-emv.com/cultura/2013/11/06/dallas-censura-pintura-sorolla-nino/1048323.html. Acessado em: 06 nov. 2013.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7096 A censura no Governo Vargas: antes, durante e depois Maria Cristina Castilho Costa

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7097 Jornalismo sob censura: o cerceamento da liberdade de imprensa através dos tempos

M a r i a E l i s a b e t e A n to n i o l i 1

Resumo: Este trabalho pretende oferecer uma reflexão sobre a censura imposta aos jornais e jornalistas, tendo como ponto de partida a instalação da imprensa no Brasil em 1808. O desenvolvimento do jornalismo no país nesses 207 anos de existência é marcado por longos períodos em que a censura foi imposta a veícu- los e seus profissionais de uma maneira branda ou truculenta, mas sempre com o objetivo de ocultar fatos ou distorcer a realidade. Assim, foram considerados, neste trabalho, três tipos de censura que comumente ocorreram em diferentes períodos governamentais da história brasileira ou ainda ocorrem hoje em dia: a censura instaurada pelo Estado nos regimes autoritários, a censura instaurada pelo Judiciário no regime democrático atual e a autocensura determinada por veículos em ambos os regimes. O presente estudo resulta de uma investigação inspirada no método histórico-crítico, baseado em fontes bibliográficas e documentais. Palavras-Chave: Censura. Imprensa. Jornais. Jornalismo. Jornalistas.

Abstract: This work aims to offer a reflection on the censorship imposed on newspapers and journalists, having as its starting point the installation of the press in Brazil in 1808. The development of journalism in the country in these 207 years of existence is marked by long periods in which the censorship was imposed on media and its professionals on a milder or rougher way but always aiming to hide facts or distort reality. This way three types of censorship that commonly occurred or still occur nowadays in different governmental periods of Brazilian history were considered: censorship established by the State in authoritarian regimes, censorship established by the judiciary in the current democratic regime and self-censorship determined by media in both regimes. This study is the result of an investigation inspired by the historical-critical method, based on bibliographic and documentary sources. Keywords: Censorship. Press. Newspapers. Journalism. Journalists.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS JORNALISMO BRASILEIRO teve a presença da censura nos diversos períodos de seu desenvolvimento no país, tendo como referência a chegada da imprensa O no ano de 1808. Nos regimes autoritários, a presença da censura ocorreu pelas mãos do Estado. Já, no regime democrático atual, é a vez da censura do judiciário que interfere em jornais e na ação de jornalistas. No tocante à autocensura, assinala-se sua

1. Maria Elisabete Antonioli é doutora pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP. É coordenadora e professora do curso de Jornalismo da Escola Superior de Propaganda e Marketing – ESPM-SP. E-mail [email protected].

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7098 Jornalismo sob censura: o cerceamento da liberdade de imprensa através dos tempos Maria Elisabete Antonioli presença em qualquer regime, pois ela é derivada dos interesses estritamente vinculados aos veículos de comunicação. A delimitação e discussão dessas três ocorrências (censura do Estado, censura do Judiciário e autocensura) resulta de uma investigação inspirada no método histórico- -crítico, baseada em fontes bibliográficas e documentais. Na opção pela investigação do método histórico-crítico considera-se o estudo de Tereza Lúcia Halliday (1993), quando diz que esse método é utilizado principalmente para analisar e avaliar atos de comu- nicação pública depois de ocorridos. Possui uma particularidade temporal e também implica em analisar contextualmente o que está sendo pesquisado. No tocante às fon- tes bibliográficas, verifica-se a importância que elas têm nos estudos históricos para o conhecimento de fatos passados. Da mesma forma, as fontes documentais trazem grande contribuição para o resgate do que já ocorreu, com a diferença de que o material analisado ainda não recebeu tratamento analítico. A partir do levantamento das fontes bibliográficas, optou-se por referenciar alguns autores que contribuem para os estudos sobre a história do jornalismo brasileiro e que nortearam a presente pesquisa. Assim, aqueles que, por meio de suas obras, funda- mentaram este trabalho são: José Marques de Melo, Juarez Bahia, Marialva Barbosa e Nelson Werneck Sodré. Entretanto, isso não significa que são os únicos pesquisadores que ofereceram aporte para a pesquisa. Outros autores também foram consultados, na medida em que a pesquisa foi desenvolvida e conforme a necessidade de mais infor- mações que pudessem enriquecer o cenário apresentado. Deve ser observado, ainda, que este trabalho não tem a pretensão de discutir essas três ocorrências em profundidade, mas apenas, situar, a título de reflexão, em que momentos e locais elas são facilmente detectadas. Nesse sentido, pretende-se, também, que essas ocorrências sejam sempre discutidas e jamais esquecidas, pois é dever do jor- nalista lutar radicalmente contra qualquer possibilidade de cerceamento da informação e liberdade da imprensa.

CENSURA DO ESTADO, CENSURA DO JUDICIÁRIO E AUTOCENSURA O Brasil, sob o domínio da colônia, foi rigorosamente cerceado nas tentativas de processos de impressão. Marialva Barbosa (2013) reflete sobre esta questão ao afirmar que a possibilidade de imprimir livros ou quaisquer outros papeis significava a possibilidade de difundir ideias de maneira extensiva. Essa é uma das razões que fez com que a imprensa chegasse tardiamente no Brasil e, mesmo quando ocorreu, conviveu por muito tempo com a falta de liberdade. Hipólito da Costa, ao editar no ano de 1808 em Londres o jornal Correio Brasiliense, só conseguia fazê-lo chegar ao Brasil por vias clandestinas. Já a Gazeta do Rio de Janeiro, jornal que também começou a circular em 1808, com a chegada da Família Real ao Brasil, tinha o papel de representante oficial dos assuntos da Corte, embora como Barbosa (2013, p. 41) afirma:

Se de um lado havia os papeis oficiais que ali eram divulgados, havia também relatos múl- tiplos dos acontecimentos que sacudiam a Europa e Portugal, informações variadas sobre o que se divulgavam pelas gazetas no mundo, descrições minuciosas sobre comemorações

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7099 Jornalismo sob censura: o cerceamento da liberdade de imprensa através dos tempos Maria Elisabete Antonioli

e festas que tomavam as ruas da nova Corte, anúncios que o público fazia publicar, infor- mando sobre produtos à venda, necessidades de serviços os mais variados, entre inúmeras outras possibilidades.

O jornalismo crítico, presente no Correio Brasiliense, por intermédio das ideias de Hipólito da Costa, que vislumbrava o fim do trabalho escravo, a liberdade de opinião e reformas no País, sofreu censura e apreensão e, conforme José Marques de Melo (2012) somente no século XXI ele foi proclamado patrono da imprensa brasileira. Além de Hipólito da Costa, muitos outros liberais foram alvo de perseguições, prisão ou morte em diversos períodos. Tudo em nome da liberdade de expressar informações e opiniões. Logo na fase inicial, nomes como Gonçalves Ledo, do Revérbero Constitucional (1821); Cipriano Barata, do Sentinelas da Liberdade (1823); Líbero Badaró, do Observatório Constitucional (1830), pagaram um ônus alto por seus propósitos políticos expressados em páginas de jornais. Um jornalismo opinativo, escrito por homens ousados, que não hesitaram em escrever e divulgar informações, mesmo sob condição de iminente risco. De 1808 até a República a expressão do pensamento e a liberdade de imprensa sofreram enfrentamentos durante diversos períodos do reino português, por meio da criação de mecanismos legais que procuravam protegê-lo das ameaças dos seus opositores que faziam valer suas posições nos jornais. Marques de Melo (2012) menciona esse cerceamento no período que vai principalmente de D. João VI a D. Pedro I. De acordo com o pesquisador, foi durante o Segundo Reinado que a imprensa viveu seu melhor período de liberdade, garantido por Pedro II. Para Bahia (1990, p.84) a imprensa de 1808 a 1880 compreende um período de pelo menos quarenta anos de ininterrupta atividade panfletária:

É um período em que a influência de um jornal não é medida pelo seu tamanho, pela sua qualidade ou pelo seu prestígio. O que faz a medida é a força da opinião, e esta tanto pode aparecer em uma página como em várias páginas. Não é o título o que conta. Tampouco a tradição, o peso econômico. Prevalece a ideia. O que se imprime é o que vale.

Entretanto, não foi apenas durante o período colonial que o governo podou a liber- dade de expressão. No surto legislativo que marcou o início do novo regime político, em 1889, cria-se um decreto que afirma o direito de uma junta militar julgar quem conspirasse contra a República e seu governo por “palavras, escritos ou atos”. Não por acaso, foi chamado de “Decreto Rolha”. (ROMANCINI, LAGO, p. 76-77, 2007). O governo do Estado Novo de Getúlio Vargas, a partir de 1937, por exemplo, foi con- duzido por uma série de atos autoritários e repressores. O Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP, criado pelo Decreto-Lei n. 1.949, de 30 de dezembro de 1939, controlava as ações da imprensa, cinema, teatro e diversões públicas, rádio e propaganda. Sodré (2011, p. 558) comenta que, “os jornais passaram, assim, por gosto ou a contragosto, a servir a ditadura”, lembrando que em 1940 a polícia militar ocupou a redação do jornal O Estado de S. Paulo, acusando os proprietários e diretores de terem armas escondidas no local. Segundo ele, o jornal foi tomado e reapareceu diretamente subordinado ao DIP, sob a direção de Abner Mourão, que veio do Correio Paulistano. Apenas no ano de 1945 o jornal foi restituído ao seu proprietário Júlio de Mesquita Filho.

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Anos difíceis, também, ocorreram no período da ditadura militar no Brasil que foram considerados “anos de chumbo para a imprensa”, e a todos os que se opuseram ao sistema governamental truculento instalado em 1964 e que se intensificou com o AI5 em 1968. Jornais e jornalistas foram perseguidos sem tréguas durante esse período, a imprensa foi totalmente controlada, e censores foram colocados nos veículos de comunicação. De acordo com Gaspari (2002), após o AI 5 a imprensa foi controlada e os veículos de comunicação foram ocupados por censores recrutados na polícia e na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais. Bernardo Kucinski (p. 39, 1991) diz que “O AI 5 sinaliza às elites dominantes a etapa de consolidação da ditadura” e, ainda, que as condições para o exercício do jor- nalismo crítico na imprensa convencional foram modificados. Para ele, há uma rápida adaptação da grande imprensa à nova situação, com a demissão de seus jornalistas mais combativos e críticos. O autor informa que entre 1964 e 1980 nasceram e morreram cerca de 150 periódicos que mantinham posição intransigente ao regime militar. Os alternativos seguiam diversas linhas editoriais e entre os mencionados estão o boletim clandestino O Guerrilheiro, de Marighela, que conclamava a luta armada e o jornal Libertação, da Ação Popular. Conforme Kucinski, que a maioria dos vespertinos desapareceu e a circulação dos diários caiu em meio milhão de exemplares nos anos de 1960, enquanto o mercado se concentrava num número cada vez menor de empresas cada vez maiores. Sobre os períodos de repressão à liberdade do pensamento, Bahia (1990, p. 234-235,) menciona o Estado Novo e o regime militar de 1964:

Na história política brasileira, desde 1822, nenhum outro período de exercício de ilegalidade se sobrepõe ao Estado Novo e o regime militar. São estes dois períodos os que mais negam a liberdade e a democracia no país e os que mais ofendem a consciência nacional, na ten- tativa de domínio fascista, a começar pela negação da livre manifestação do pensamento. São, igualmente, anos em que o jornalismo e outras formas de expressão, como o livro, o teatro, a música etc., sofrem censura prévia, ocupação militar e civil, violência moral, física e material com prisões, perseguições, cassações, torturas, exílio, confinamento.

No século XXI em pleno estado democrático de direito, a Constituição Brasileira, de 1988, assegura ampla liberdade de expressão para os profissionais da imprensa, embora ocorram tentativas de coibição de divulgação de determinados fatos por indivíduos que se sentem ameaçados quando seus atos passam a ser conhecidos pela sociedade. Para impedir que isso aconteça é usual a busca de mecanismos jurídicos que procuram impedir a divulgação da informação, contrariando o interesse público. Assim, o cerceamento da informação pode ocorrer por meio de diversas formas e nos mais variados níveis. A impetração de liminares com objetivo de censurar previamente uma informação tem sido utilizada comumente nos últimos tempos no País. Um caso que ganhou notoriedade no Jornal O Estado de S. Paulo foi o de Sarney Filho, que por intermédio desse recurso, conseguiu no ano de 2009 suspender a publicação de informações sobre uma investigação da Polícia Federal em que estava envolvido. O Programa Fantástico, da Rede Globo de Televisão, também foi vítima desse tipo de recurso, quando uma ação impetrada por deputados estaduais de Rondônia impediu a transmissão, em ní­vel estadual, da reportagem veiculada pelo programa em 15 de maio de 2005, que versava sobre denúncias de corrupção no estado.

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Em casos como esses, o jornalismo e a sociedade ficam à mercê do judiciário que passa, dessa forma, a determinar o que pode ser publicado, atuando em favor de interesses pessoais e contrariando o interesse público, ao impor censura ao veículo e indo de encontro a Constituição Brasileira. Judith Brito (2011, on line), lembra que essas decisões judiciais de censura prévia, são decorrentes de solicitações de políticos e autoridades públicas que não querem a divulgação do fato. Comenta, ainda, que alguns juízes acatam esses pedidos e determinam multas pesadas caso o veículo de comunicação divulgue as informações que tem em seu poder. No início de 2011, o jornal O Estado de S. Paulo (on line) divulgou que no primeiro semestre do ano anterior o Google recebeu 398 pedidos de retirada de material divulgado em seus servidores, sendo 270 foram atendidos e destes 177 por ordem judicial. Ainda conforme o jornal, nem todos os textos tratavam necessariamente de material jornalístico e muitos se referiam a conteúdos abusivos ou ilegais. Mas, mesmo assim, o número é elevado e, conforme o jornal “nenhum outro país no mundo teve tantos pedidos no mesmo período.” Em 2013, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) divulgou em seu site que, de acordo com levantamento da Associação Nacional de Jornais (ANJ), no ano de 2012 ocorreram onze decisões judiciais que impediram veículos de divulgar certa informação. Conforme a Abraji, “foram onze casos de censura, prática típica de regimes autoritários e que não condiz com a democracia brasileira. Ainda consta no site da associação: “é extremamente preocupante que seja o judiciário a fazer uso desse expediente e privar a sociedade do direito à informação”. Nilson Lage (2002, on line) levanta outra questão, acerca das novas formas de controle, segundo ele mais sutis e cita a “transformação no mecanismo de reparação por danos causados, pela veiculação de notícias consideradas falsas e ofensivas a alguém”. Lage argumenta que, “se antes prevaleciam as figuras do Código Penal (injúria, calúnia, difamação); agora, aplicam-se de preferência as do Código Civil”. Segundo o jornalista, hoje quem está sob ameaça é a empresa jornalística e as multas aplicadas pelo juiz, dependem de fatores também subjetivos. Advogados percorrem as páginas dos diários e gravam em fita programas de televisão em busca de algo que possa motivar uma ação reparatória, lucrativa tanto para a vítima quanto para eles. É a versão contemporânea da tradicional advocacia de porta de xadrez (Lage, 2002, on line). Nesse caso, ainda conforme o pensamento pesquisador, fica reduzida a autonomia de quem produz a informação, pois a responsabilidade recai no veículo como empreendimento financeiro, o que acaba em um controle de conteúdo ampliado pela empresa. Sobre esta questão, deve ser observado, ainda, que embora não haja censura, muitas vezes a imprensa é pressionada por órgãos do Estado. Eduardo Lins da Silva (1991) lembra as tentativas de intimidação sofridas pela Folha de S. Paulo no governo Collor. Houve invasão policial e processos judiciais. Segundo ele, o governo Collor chegou a aprender livros no ano de 1990, em um dos muitos atropelamentos que praticou contra a Constituição. Tão importante quanto, outra consideração a ser levantada neste trabalho, diz respeito às ocorrências nos bastidores dos meios de comunicação. A censura muitas vezes é estabelecida pelo próprio veículo, ou seja, a autocensura é um procedimento presente, tendo em vista interesses particulares que acabam se sobrepondo ao dever de relatar o fato, que deve ser o objetivo precípuo do jornalismo. Ao discutir a incidência

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7102 Jornalismo sob censura: o cerceamento da liberdade de imprensa através dos tempos Maria Elisabete Antonioli de desvios éticos no jornalismo, Kucinski (2002, on line) afirma que nas redações há uma rendição generalizada aos ditames mercantilistas ou ideológicos dos proprietários dos meios de informação. Para ele, a liberdade de informar e o direito de ser informado, canonizados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e erigidos em ideologia dos códigos de ética jornalística nos mais diversos países, tornaram-se letra morta. Por meio de uma forte crítica ao mercado, Kucinski (1998, p. 17-18) afirma:

A atuação do jornalista no Brasil é constrangida por um modo autoritário de controle da sua produção, falta de garantias à liberdade de expressão jornalística e dimensões restritas do mercado de trabalho. Enquanto nas democracias liberais a busca objetiva da informação e da verdade a serviço público se constitui na ideologia justificadora da atividade jornalística, no Brasil predominam entre os jornalistas autocensura, a descrença na democracia e uma visão instrumentalizadora do que seja o interesse público.

O pesquisador Felipe Pena ao tratar da Teoria Organizacional aponta o jorna- lismo como negócio e destaca o setor comercial como o mais importante da empresa jornalística. Para começar, o espaço para a publicidade é reservado na página antes das notícias. Os jornalistas só preenchem o que ficou vazio. E se vier um anúncio de última hora, qualquer notícia pode cair, ou seja, deixar de ser publicada (PENA, 2005, p. 136). Eugênio Bucci (2009, p. 33) relata que o diretor de Time, Walter Isaacson, afirmou em editorial publicado no ano de 1996, que sempre houve, como existe atualmente, proprietários de mídias que pressionam seus jornalistas a fazer reportagens tendenciosas, quando há interesses empresariais e sempre houve, também, aqueles que são menos imediatistas e que percebem o óbvio: “é da independência editorial de seus veículos que vem o lucro”. Nessa perspectiva, é interessante reafirmar que não é possível deixar que interesses econômicos prevaleçam, em detrimento ao interesse público, o único que necessariamente é o norteador do fazer jornalístico. O Estado deixou de ser autoritário, mas a hierarquia presente na estrutura dos meios de comunicação e muitas vezes a utilização de uma postura de coibição, por parte de escalões mais altos, gera um jornalismo reducionista. Assim, a conduta ética e as questões relativas à autocensura, discutidas sistematicamente por professores e alunos nas escolas de jornalismo, é que deverá fazer a diferença na atuação do jornalista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O resgate da trajetória da imprensa no Brasil, nesses dois séculos de existência, aponta para períodos que oscilaram entre a possibilidade de livre arbítrio e expressão do pensamento e de censura da informação, por intermédio de mecanismos inibidores às vezes mais moderados e outras vezes mais intensos, mas sempre com objetivos restritivos. A censura deixou de existir há quase trinta anos, em função de uma Constituição democrática. A manifestação do pensamento é livre. A informação jornalística em qualquer veículo de comunicação também não deve sofrer nenhum embaraço. É possível resguardar a fonte quando for necessário ao exercício profissional. A todas as pessoas é assegurado o acesso à informação. Todas têm, ainda, o direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral e

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7103 Jornalismo sob censura: o cerceamento da liberdade de imprensa através dos tempos Maria Elisabete Antonioli o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder. A Carta Magna assegura, dessa forma, a todos os cidadãos a livre expressão do pensamento e, ao jornalista, o direito do relato factual, de acordo com o interesse público. Mas para que o processo ocorra naturalmente é imprescindível a transparência dos órgãos públicos, sem a presença de articulações com objetivos políticos, pois o direito à informação é um direito fundamental e legítimo da sociedade. A imprensa, por sua vez, deve fornecer não apenas uma mera informação, mas uma informação de qualidade e apurada pelo profissional de forma independente, idônea, com rigor técnico e balizada por uma conduta ética. Tão importante quanto os procedimentos transparentes dos órgãos públicos, devem ser os procedimentos das empresas privadas e do terceiro setor. A imprensa necessita exercer uma ininterrupta fiscalização sobre as ações dos órgãos para que interesses políticos, mercadológicos e de poder não estejam acima do interesse da população e o jornalista possa desempenhar o papel de agente colaborador para a transformação da sociedade. É preciso, ainda, que os próprios cidadãos estejam atentos à imprensa e cobrem uma postura ética de seus profissionais. Não há dúvida que, o exercício da cidadania é um instrumento capaz de modificar as atitudes daqueles que ainda não perceberam o quanto é importante a liberdade da informação e a conduta do jornalista no processo de legitimação da democracia. Assim, este profissional tem um papel fundamental junto ao estado democrático, ao levar a informação jornalística à sociedade, que a cada dia passa a ter mais acesso a ela, tendo em vista o célere crescimento das tecnologias de informação e as possibilidades de acesso e consumo pelos cidadãos. Hoje, no momento em que o Brasil passa a limpo sua história, principalmente com a disponibilização de documentos oficiais, pela Lei que regula o acesso às informações e com o relatório emitido pela Comissão da Verdade, urge a necessidade não somente de discutir os procedimentos que tentam cercear a informação no século XXI, mas também, trazer sistematicamente à discussão os enfrentamentos ocorridos durante os dois séculos de jornalismo brasileiro. São os fatos do jornalismo e do Brasil que precisam ser resgatados, apresentados e discutidos para que não sejam jamais esquecidos pela sociedade e possam constar nos anais da nossa história.

REFERÊNCIAS ABRAJI rechaça novo episódio de censura judicial. Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. 26.08.2013 . BAHIA, Juarez. Jornal, História e Técnica - História da Imprensa Brasileira. 4. ed. São Paulo: Ática, 1990. BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa. Brasil – 1800 -1900. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010. ______. História da Comunicação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2013. BRITO, Judith. Censura Judicial: o indivíduo versus a sociedade. 22.11.2011. . BUCCI, Eugênio. A imprensa e o dever da liberdade. São Paulo: Contexto, 2009.

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7105 Jornalismo de Resistência - A ditadura em preto e branco Resistance Journalism - The dictatorship in black and white

Vi n i c i u s S o u z a 1

Resumo: O artigo analisa, por meio das Teorias do Jornalismo, duas fotografias- -chave na representação imagética da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) e da Revolução dos Cravos (1974) na imprensa de Brasil e Portugal. O principal foco é a análise da fotografia de um manifestante correndo da polícia em uma manifestação contra a ditadura publicada na primeira página do Jornal do Brasil de 22 de junho de 1968. De autoria do fotojornalista Evandro Teixeira, a imagem é uma das mais conhecidas e reproduzidas até hoje sobre aquele período. Em seguida, o artigo traça paralelos entre a fotografia de Teixeira e uma foto de 1974 do francês Henri Bureau, premiada no World Press Photo, retratando a prisão de um suposto agente da PIDE, a polícia política da ditadura portuguesa, por soldados do Movimento das Forças Armadas – MFA. Ambas cumpriram os ritos dos processos jornalísticos para sua primeira publicação, mas sua capacidade de narrar imageticamente, e dramaticamente, os eventos garantiu sua sobrevida no tempo e sua inserção no imaginário coletivo, de modo que seguem sendo reproduzidas tanto nas mídias tradicionais como nas digitais e nas sociais. Palavras-Chave: Fotojornalismo. Teorias do Jornalismo. Narrativa visual. Ditadura no Brasil. Revolução dos Cravos.

Abstract: The article analyzes, through the Theories of Journalism, two key photos in the imagery representation of the Brazilian civic-military dictatorship (1964-1985) and the Carnation Revolution (1974) in the press of both Brazil and Portugal. The main focus is the analysis of the photo of a student running from the police in a demonstration against the dictatorship, published in the first page of Jornal do Brasil in June 22nd, 1968. The picture by photojournalist Evandro Teixeira is one of the best known and most reproduced photographs even to this day about that period. After that, the article traces parallels between Teixeira’s photograph and a photo of 1974 by the French Henri Bureau, prizewinning in the World Press Photo, portraying the arrest of a supposed PIDE (the political police of the Portuguese dictatorship) agent, by soldiers of the Armed Forces Movement (MFA). Both fulfilled the rites of the journalistic processes for their first publication. But their capacity of narrating imagetically, and dramatically, the events granted their survival through time and their insertion in the collective imagination, in such a way that they keep being reproduced as much in the traditional medias as in the digital and social ones. Keywords: Photojournalism, Theories of Journalism, Visual narrative, Dictatorship in Brazil, Carnation Revolution.

1. Vinicius Guedes Pereira de Souza. Jornalista (1992), mestre em Comunicação pela Unip (2010); doutorando em Comunicação pela Universidade Paulista – Unip – São Paulo Brasil, e bolsista Capes (processo 99999.006350/2014-03) na Universidade Fernando Pessoa – Porto – Portugal. E-mail: [email protected].

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COBERTURA DE CONFLITOS E O PONTO DE VISTA DOS JORNALISTAS HISTÓRIA DA imprensa escrita e dos meios de comunicação em geral mostra que o tal “jornalismo isento” é um mito. Nascido opinativo, o jornalismo, de acordo A com Marcondes Filho (2009), só começa a reclamar para si a áurea de objetividade pura com as revoluções burguesas, a partir de 1830, para consolidar esse mito, através do marketing, com a criação as grandes empresas jornalísticas voltadas ao lucro, por volta do ano 1875, e com a dependência cada vez maior dos anunciantes depois da virada do século. Em regimes ditatoriais que permitem uma imprensa externa à máquina do gover- no, em geral os meios de comunicação são censurados e/ou fazem parte do complexo de apoio ideológico do sistema político vigente, do contrário, sofrem o risco de serem “empastelados”. A censura prévia de textos escritos, no entanto, é muito mais simples de ser realizada por burocratas, que recebem listas de palavras e temas proibidos, do que as narrativas visuais. Assim, por meio, por exemplo, de fotografias, os jornalistas têm uma flexibilidade maior de fazer um jornalismo de resistência em regimes de força e mostrar fatos importantes do cotidiano que de outra forma ficariam longe dos olhos da população.

O CONTEXTO DOS CONFLITOS NOS ANOS 1960 E 1970 E A FORÇA DAS FOTOGRAFIAS Nas décadas de 1960 e 1970, no auge da Guerra Fria, com a consolidação do regime comunista em Cuba, a crise dos mísseis russos, os golpes militares na América Latina, as guerras coloniais na África, o Maio de 1968 na França e a Primavera de Praga, o mundo estava em plena ebulição. A televisão ainda não havia se tornado o meio onipresente que seria a partir do final dos anos 1970 e a maior parte dos agentes políticos (para não falar do público em geral) tinham nos veículos impressos talvez sua principal fonte de informação. Ora, as fotos de violência, especialmente de conflitos, guerras, golpes e revoluções, são certamente algumas das que ganham mais atenção do público2 e têm um enorme poder de construir uma narrativa visual, e portanto emotiva e até mesmo dramática, dos gran- des acontecimentos, induzindo a opinião pública a compreender os fatos de acordo com uma determinada perspectiva, que pode ser, inclusive, diferente da do poder dominante.

Como muito do texto que acompanha as fotos não é processado pelo leitor, é lícito e razo- ável assumir que as fotografias por vezes podem ser uma das principais representações que alguns observadores têm dos acontecimentos que ocorrem no mundo e que as fotos na imprensa têm efeitos de agenda-setting3, isto é, influência na construção do temário da agenda do público (Sousa, 2000, p.4).

2. Sousa (1997) analisando as imagens premiadas como “foto do ano” no concurso internacional World Press Photo entre 1956 e 1996, observa que com exceção de uma única fotografia, todas as outras se referem direta ou indiretamente à violência, sendo que 37,5% retratam contextos de conflitos bélicos. O tema da violência nas fotos, aliás, também se faz presente em obras como Diante da Dor dos Outros, de Susan Sontag (Editora Schwarcz, 2008), The Cruel Radiance, de Susie Linfield (The University of Chicago Press, 2010) e About to die: How news images move the public (Oxford University Press, 2010), entre outras. 3. Sousa (1999) analisa as várias teorias do jornalismo, incluindo o agenda-setting, ou agendamento, que seria a capacidade que a imprensa tem de pautar, de maneira não intencional, os temas em discussão na sociedade. Elaborada dessa forma por McCombs e Shaw (1972), a teoria, segundo Sousa, foi discutida em outros estudos anteriores e posteriores. Atualmente, entende-se que a imprensa usa também intencionalmente esse poder, mas não controla totalmente os resultados e efeitos desse agendamento. Os temas podem ser pautados pela imprensa, mas não necessariamente as opiniões sobre esses temas. Afinal, os estudos de recepção posteriores mostraram que as populações têm a capacidade de usar as informações dos meios de comunicação em massa de formas e com objetivos diferentes dos propostos pela imprensa.

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O GOLPE NO BRASIL, A CENSURA E A SEXTA-FEIRA SANGRENTA Um exemplo claro disso é a fotografia de um estudante correndo da polícia em uma manifestação contra a ditadura civil-militar no Brasil, publicada na primeira página do Jornal do Brasil de 22 de junho de 1968 (figura 1). De autoria do fotojornalista Evandro Teixeira, a imagem é uma das mais conhecidas e reproduzidas, até hoje e inclusive nas mídias sociais, sobre aquele período histórico que tantas semelhanças têm com o atual momento da política e das manifestações no País e no mundo. A Anistia Internacional, por exemplo, usou essa imagem em 2014, quando se completaram 50 anos do golpe, numa campanha (figura 2) pela responsabilização penal dos agentes do Estado que, conforme a Comissão da Verdade concluiu no mesmo ano, teriam participado de crimes contra como tortura, assassinato, ocultamento de cadáveres, etc, e jamais foram julgados.

Figura 1. Sexta-feira sangrenta na cidade. Evandro Teixeira, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21 de junho de 1968. O golpe militar de 31 de março de 1964 que depôs o presidente João Goulart teve grande apoio editorial e de cobertura favorável da maior parte dos jornais brasileiros4. Teixeira trabalhava desde 1962 no Jornal do Brasil (que passou a fazer oposição mais aberta ao golpe em 1968 e deixou de ser impresso em 2010), para quem já havia produzido as primeiras imagens das ações militares, ao fotografar um soldado sob a chuva na contraluz durante a tomada do Forte de Copacabana, em 31 de março de 19645. Em 1968,

4. A esse respeito, vale a pena ler o artigo do jornalista Altamiro Borges, diretor do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé em http://altamiroborges.blogspot.com.br/2011/03/midia-e-o-golpe- militar-de-1964.html (acesso em 20/03/2015) mostrando trechos dos editoriais de apoio ao golpe, incluindo vários do jornal O Globo (que daria origem durante a ditadura ao maior império midiático do país até hoje) e também do Jornal do Brasil, chamando de “revolução democrática” a deposição de um presidente legitimamente eleito. 5. A foto pode ser visualizada em http://www.iphotoeditora.com.br/photochannel/wp-content/ uploads/2012/06/1964-evandro-teixeira-golpe-forte-copacabana-1024x678.jpg . Acesso em 20/03/2015.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7108 Jornalismo de Resistência - A ditadura em preto e branco Vinicius Souza com a publicação do Ato Institucional nº 5 – AI56, que endureceu de vez a ditadura, o aumento na organização dos grupos de resistência ao regime e a rápida escalada na repressão7, o fotógrafo já havia tido vários entreveros com o governo.

Figura 2. Campanha online da Anistia Internacional usa slideshow com fotos jornalísticas do período da ditadura, sendo várias de Evandro Teixeira, para pedir a condenação de torturadores do regime. Fonte: http://ativismo.anistia.org.br/50dias. Acesso em 7 de abril de 2014. Ele chegou a ser preso e apanhou várias vezes, mas nunca teve fotos apreendidas e nem o equipamento quebrado, entre outras coisas porque “corria muito” (Boni, 2005). Uma de suas detenções aconteceu por ter tirado, com a Leica escondida sob a roupa, fotos de um general que era também censor do Jornal do Brasil. O militar estava de pijama, na cama, esperando um jornalista colega de Teixeira por quem tinha, aparentemente, uma “quedinha”. Em outra ocasião foi repreendido pelo próprio presidente, o General Costa e Silva, devido à opção do editor em usar na capa do jornal uma foto de duas libélulas8 pairando sobre baionetas ao invés de um retrato do presidente militar, mesmo Teixeira tendo entregue as duas: a “oficial” do evento e a outra metafórica da leveza sobre a força bruta que ele havia observado na fileira dos soldados em continência.

“O senhor não me respeita, não é mesmo?” Eu levei o maior susto, e perguntei: “Senhor presidente, o que foi que eu fiz?” E ele: “Como é que você publica uns besourinhos na pri- meira página e a fotografia do presidente lá dentro, pequenininha?” Eu pedi desculpa e

6. O AI% vigorou por dez anos e teve como uma de suas primeiras consequências o fechamento do Congresso Nacional, escancarando de vez a ditadura. Veja mais em http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/ FatosImagens/AI5. Acesso em 20/03/2015. 7. Há uma antiga discussão entre políticos e historiadores sobre qual lado foi o responsável pela escalada da violência. Atualmente a visão mais aceita é de que a formação de grupos guerrilheiros para uma eventual luta armada contra o regime só começou a partir do aumento das prisões, torturas e assassinatos de estudantes, políticos e outros atores sociais que se manifestavam pacificamente contra a ditadura. 8. A foto pode ser visualizada em http://cleaecia.com.br/o-olhar-de-ge/ditadura-pelas-lentes-de-evandro- teixeira/#lightbox/3/ . Acesso em 20/03/2015.

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tentei justificar dizendo que era uma questão de edição, ao que ele prontamente respondeu: “Edição é o raio que o parta. Isso foi safadeza mesmo.” E ordenou ao chefe de serviço que tirasse “esse moleque da minha frente”. (Boni, 2005, p.240)

Como se pode ver, Teixeira sabia na prática, e na teoria, o poder de narrativa das imagens para burlar a censura da imprensa. No documentário Evandro Teixeira: Instantâneos da realidade (2002), ele descreve em detalhes como os militares cortavam e destruíam tudo de ruim que pudesse ser publicada a respeito do governo e da repressão. As fotografias, contudo, muitas vezes eram poupadas:

A fotografia superava isso porque os militares não sabiam fazer a leitura visual das ima- gens. E a gente conseguia mostrar aquilo que o pessoal do texto não conseguia porque eram mutilados. No dia seguinte, aí eles esbravejavam, reclamavam, e você era obrigado a desaparecer do cenário por pelo menos uma semana. Mas foi uma época gloriosa para a fotografia brasileira. (Evandro... 2003, 19:22 a 20:00 min)

Logo na sequência, Teixeira conta como foi a chamada “sexta-feira sangrenta” e o momento da foto famosa:

Tudo começou na embaixada americana, na Rua México. Começaram a atirar na gente. Aí corremos para a Cinelândia e eu fiz aquela foto do estudante caindo, que era um estudante de medicina. E ele ali ficou morto, deu um berro, uma coisa horrorosa, e ficou estirado mor- to ali no chão. [...] Realmente foi uma guerra. [...] Aquele dia foi realmente uma sexta-feira sangrenta. (Evandro... 2003, 20:00 a 21:20 min)

Como quase toda foto de ação, a imagem em alta velocidade do obturador captura um momento muito breve, congelando no ar o estudante e o soldado à esquerda do quadro. Os óculos lançados longe do rosto estão fixos na altura do braço esquerdo do jovem enquanto a outra mão ainda aperta uma pedra. Teixeira contou com o forte sol carioca a iluminar a cena, marcando firme as sombras no asfalto e garantindo uma pequena abertura do diafragma para o foco à meia distância. Os cassetetes em riste confirmam a violência do ato sob o olhar quase incrédulo de um transeunte no segundo plano, o único que parece não correr.

TEORIAS DO JORNALISMO, IDEOLOGIA E A AÇÃO DOS JORNALISTAS Sousa (1999, p.3), afirma que “existe uma acção ideológica que se faz sentir sobre as notícias; estas, além do mais, segundo me parece, têm efeitos ideológicos”. Sob o ponto do vista das ações que motivam as notícias, a foto de Teixeira, se enquadraria no terceiro nível (Acção Ideológica), em interação com o sexto (Acção Histórica), por estar dentro do contexto dos conflitos em Paris e Praga. Apesar de salientar que “os estudos mais recentes parecem indicar factores ‘ambientais’, ‘ecossistemáticos’, como deadlines, o espaço e as políticas [...] como o factor crítico para a construção da notícia” (Sousa, 1999, p. 25), ele lembra, que o próprio criador da metáfora do gatekeeper9, White

9. A teoria pela qual a informação jornalística é selecionada por “porteiros” que escolhem o que é e o que não é relevante para ser publicado de acordo com a qualidade do material e as políticas internas dos veículos, seus processos de produção e ainda pressões externas como o Estado ou os anunciantes.

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(1950), em estudos mais antigos já apontava o papel decisivo dos repórteres, incluindo os fotojornalistas, e editores na construção das notícias. Para Sousa, “os jornalistas são, provavelmente, o elo mais relevante [no processo como a notícia é construída]” (ibidem p.30) e “um fotojornalista “participativo”, contrariamente a um que se imagina “neutro” diante dos fatos, “poderá procurar deliberadamente um ponto de vista, usando outros ângulos como o ‘picado’ (tendencionalmente desvalorizante do motivo) ou o ‘contrapicado’ (tendencionalmente valorizante do motivo)” (ibidem p. 27), e conhecendo bem os ‘ecossistemas’ e gatekeepers do veículo, teria mais chance de emplacar uma ou mais fotos na primeira página. Me parece ser essa exatamente a ação de Teixeira durante a “sexta-feira sangrenta”: “Você tinha de mostrar, senão a coisa ia ficar perdida, você não ia saber de nada. O Jornal do Brasil às vezes saía sem nada. Saía em branco porque era totalmente censurado. Uma loucura!” (Evandro... 2002, 21:20 a 21:41 min). Na entrevista dada ao pesquisador Paulo Boni, da Universidade Estadual de Londrina, para a revista Discursos Fotográficos, Teixeira explicita ainda mais esse seu lado ativista e a importância do fotojornalismo para o registro da história:

Paulo Boni – Em termos de criatividade, de produto, de resultado, de ousadia, você acha que o Golpe Militar de 1964 e o AI-5 foram bons para os fotojornalismo?

Evandro Teixeira – Para o fotojornalismo, foram maravilhosos […], primeiro, instigaram a criatividade, a busca de brechas para não só os repórteres fotográficos, mas todos os jorna- listas, manifestarem subliminarmente seu inconformismo com o regime militar; segundo porque tivemos oportunidade de registrar um período conturbado da história do Brasil e deixar um legado para a sociedade, para essa garotada alienada que está aí estudando. […] Ou seja, a fotografia tem esse papel fundamental, pois ela é um registro, um documento de época. O Arquivo Nacional acabou de fazer uma mostra fotográfica sobre o Brasil. Para essa mostra, recuperou coisas importantes de jornais que estavam presas, escondidas. (Boni, 2005, p.248).

A IMPRENSA EM PORTUGAL NOS ANOS 1970, OS CORRESPONDENTES ESTRANGEIROS E O WORLD PRESS PHOTO Se a imprensa no Brasil em meados dos anos 1960 era, em geral, apoiadora do regime, em Portugal, na primeira metade da década de 1970, ela era quase que totalmente cooptada por uma ditadura que já durava décadas. Sousa (1999, p.15) define a imprensa portuguesa da época como seguindo o Modelo Autoritário de Jornalismo, ou seja, sujeita ao controle direto do Estado e tendo os correspondentes estrangeiros como ameaça.

Em 1975, os meios de comunicação social de impacto nacional, tanto ao nível de chefias como ao nível de redactores, encontravam-se fortemente comprometidos com o jogo político e ideológico, o que contribuiu para a acentuada má qualidade dos produtos jornalísticos. (Sousa, 2003, p. 21)

Desse modo, quando estourou o Movimento das Forças Armadas – MFA, formado por oficiais descontentes com os rumos do país e com a insanidade das guerras coloniais na África, detonando a chamada Revolução dos Cravos, na madrugada de 25 de abril

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7111 Jornalismo de Resistência - A ditadura em preto e branco Vinicius Souza de 1974, a imprensa local estava totalmente despreparada e não sabia como cobrir os acontecimentos. Mas com as sedes das grandes agências de fotografia, como a Gamma, a Sipa e a Magnum, a apenas duas horas de avião de Lisboa, o anúncio da queda do regime levou a uma revoada de fotojornalistas para a capital de Portugal, incluindo “Salgado, Le Querrec, Gilles Peress ou Jean Gaumy” (Carvalho, 2004). Entre eles estava o fotógrafo francês Henri Bureau, co-fundador da Agência Sygma. É ele o autor da imagem que mostra o momento da prisão de um suposto agente da Polícia Internacional de Defesa do Estado - PIDE (a polícia política da ditadura portuguesa) por soldados revolucionários do MFA (figura 3). A imagem recebeu o primeiro prêmio na categoria Spot News pelo World Press Photo10, uma das mais importantes competições do fotojornalismo mundial, e segue sendo reproduzida e divulgada por diversos meios, especialmente em Portugal.

O fotojornalismo é uma atividade que poderá ser melhor compreendida e descrita através do estudo das fotografias premiadas nos concursos nacionais e internacionais. Como o júri desses concursos é seleccionado entre os fotógrafos e editores que adquiriram proeminência no meio profissional e como os resultados são sancionados através da sua divulgação em jornais e revistas, exposições e livros, é possível intuir que as fotografias vencedoras reflec- tem, de algum modo, as qualidades percebidas como desejáveis na fotografia jornalística. (Sousa, 1997, p.5).

Figura 3. Um suposto membro da PIDE, sendo preso por soldados no Largo do Carmo. Henri Bureau/Sygma/Corbis, Lisboa, 25 de abril de 1974.

10. Veja em http://www.archive.worldpressphoto.org/search/layout/result/indeling/detailwpp/ form/wpp/q/ishoofdafbeelding/true/trefwoord/year/1974/trefwoord/photographer_facet/Henri%20 Bureau?limit=20 Acesso em 20/03/2015.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7112 Jornalismo de Resistência - A ditadura em preto e branco Vinicius Souza

A DRAMATIZAÇÃO DA REVOLUÇÃO A Revolução dos Cravos foi um golpe militar sui generis na história. Para começar, não consta que tenha havido um único tiro na derrubada do governo, contrastando enormemente, por exemplo, com a queda de Salvador Allende, no Chile, no ano ante- rior, morto sob intenso bombardeio do palácio presidencial11. As primeiras atitudes dos militares durante o chamado Processo Revolucionário em Curso – PREC, que durou até o início da normalização democrática, em 25 de novembro de 1975, com a escolha de um governo civil, foram no sentido de derrubar a censura aos meios de comunicação e libertar os presos políticos. O fim das colônias portuguesas na África, com a indepen- dência de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, foi outra consequência paradoxal para um movimento militar. Sem combates nas ruas era preciso, portanto, construir uma narrativa visual que explicasse ao público, especialmente o europeu, as características do movimento revolucionário. Era preciso definir as forças beligerantes e mostrar o conflito além das flores enfiadas nos canos dos fuzis. A perseguição de militares e populares aos agentes da polícia política era o mais próximo visualmente do que se esperaria de uma revolução.

Para existir, o “processo revolucionário” precisa de ser visível aos olhos da sociedade que o sancionará e, finalmente, decidirá do seu destino. Mas também, a ideologia que sustenta esse processo precisa de ser visível, sob pena de ele fracassar. Veremos como nas revoluções, e não só, o discurso dramático cria e sustenta a visibilidade. (Sousa, 2003, p. 15)

A foto de Bureau, com dez militares de armas automáticas em punho e dedos no gatilho cercando e ameaçando um homem de jaleco branco, serve bem a esse propósito. Diferente da foto de Teixeira analisada acima, com a câmera posicionada pouco abaixo do civil agredido, dando-lhe destaque e dignidade, o fotógrafo francês usa um ângulo levemente “picado” (de cima para baixo), desvalorizando o motivo principal, que está de costas. Os soldados não são agressores. Na narrativa dramatizada, são os salvadores da população.

O discurso dos media, e mais particularmente o das notícias, detém propriedades que o aproximam do discurso do drama. São as propriedades decorrentes do facto de estar- mos diante de situações de comunicação directa, que exigem dos emissores – jornalistas e actores – a produção de uma mensagem facilmente captável pelos receptores – leitores e espectadores. Nomeadamente, a importância do tempo presente, a simplificação do discurso inerente à necessidade de clareza, o carácter apelativo deste discurso (muitas vezes por via afectiva), a presença de narrativas que concentrem a acção em torno de um pequeno núcleo de personagens. (Sousa, 2003, p. 31) FOTOJORNALISMO E NEWS VALUES Além disso, tanto a foto de Teixeira como a de Bureau, possuem diversos valores- notícia, ou news values, elementos que consciente ou inconscientemente os jornalistas

11. Uma autópsia recente do corpo do presidente deposto pelo golpe, que aliás também foi coberto por Evandro Teixeira que conseguiu imagens únicas de presos torturados no Estádio Nacional de Santiago, apontou que o líder chileno teria se suicidado durante o ataque e não morrido em decorrência do bombardeio. De qualquer forma, ninguém ignora qual seria o seu destino sob o governo do General Pinochet.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7113 Jornalismo de Resistência - A ditadura em preto e branco Vinicius Souza e editores observam nos produtos jornalísticos, incluindo as fotografias, para definir se são ou não notícia e que destaque terão nas edições. Entre eles, como elencado por Sousa (1999), estão características como a própria violência da cena (sangue sempre vendeu jornal), o ineditismo (a forte repressão política no Brasil estava no seu início e pouca gente sabia em Portugal sobre a movimentação das tropas para a derrubada do governo), o caráter de longo prazo dos acontecimentos a partir daquele momento (duas verdadeiras mudanças de rumo nos países), a oportunidade da captura do “momento decisivo” da ação em movimento, a dramatização (especialmente no caso da foto do suposto agente do PIDE, como vimos anteriormente), o conflito (evidente), a novidade, etc. No caso da fotografia brasileira, havia ainda a grande a possibilidade de identificação do leitor com as personagens da cena (podia ser você ou um parente seu naquela situação). Já na foto portuguesa, existe o valor-notícia da suposta proeminência social da personagem central, que seria um agente da PIDE, a temível polícia política da ditadura. Se bem que, “por ironia, o homem de gabardina era tão-só um cromo de Setúbal que gostava de se fazer passar por agente da alta autoridade bufa” (Carvalho, 2004). Mas esse fato não é de grande importância, já que:

Num âmbito muito mais lato, aparentemente desenvolve-se uma civilização onde as frontei- ras entre o real e o “virtual”, ou simplesmente o imagético, se esbatem por via das técnicas capazes de impor imagens como realidade, num jogo que os actores sociais aceitam, mais ou menos conscientemente, por via da sedução. (Sousa, 2003, p. 32)

CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise das fotografias acima mostra que elas de fato cumpriram todos os ritos dos processos jornalísticos para sua primeira publicação. Além da qualidade estética, ambas possuem os atributos de valores-notícia tradicionalmente exigidos pela imprensa. Bureau e Teixeira também conhecem os mecanismos internos de seus meios, garantindo que as imagens passarão pelos gatekeepers e terão destaque nos jornais. Mais do que isso, sua capacidade de narrar imageticamente, e dramaticamente, os eventos permitiu sua sobrevida no tempo e sua inserção no imaginário coletivo, de modo que seguem sendo reproduzidas tanto nas mídias tradicionais como nas digitais e nas sociais. São, sem dúvida, dois bons exemplos de fotografias jornalísticas que resistiram e venceram fortes estruturas de censura da época para se firmarem como imagens-referência de eventos de enorme impacto na história dos países onde ocorreram e mesmo na da imprensa em língua portuguesa.

REFERÊNCIAS Boni, P. C. (2014). A fotografia a serviço da luta contra a ditadura militar no Brasil: entrevista com Evandro Teixeira. Discursos Fotográficos, 8(12), 217-252. doi: 10.5433/1984-7939.2012v8n12p217 /issn.1808-5652.v8n.12p217-252 Carvalho, F. (2004, 24 de abril). Portugal Abril de 1974: Enviado a Portugal. Expresso. Lisboa. Recuperado em 20 de dezembro, 2015 de http://desenvolturasedesacatos.blogspot. pt/2013/05/recordar-e-viver-portugal-abril-de-1974.html

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7114 Jornalismo de Resistência - A ditadura em preto e branco Vinicius Souza

Evandro Teixeira: Instantâneos da realidade. Direção Paulo Fontelle. Documentário, 76 min. Canal Imaginário, Rio de Janeiro, 2003. Marcondes Filho, C (2009). Ser Jornalista: O desafio das tecnologias e o fim das ilusões. São Paulo: Editora Paulus. Sousa, J. B. (1997). News values nas “fotos do ano”do World Press Photo: 1956-1996. Recuperado em 20 de dezembro, 2015 de http://www.bocc.ubi.pt/pag/sousa-pedro-jorge-news- -values.pdf. Sousa, J. B. (2000). As Notícias e os Seus Efeitos. As teorias do jornalismo e dos efeitos sociais dos media jornalísticos. Coimbra: Edições Minerva Coimbra. Sousa, P. D. (2003). A dramatização na imprensa do “PREC”. Coimbra: Edições Minerva Coimbra.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7115 O posicionamento político do jornal O Piauí em meio à Ditadura Vargas The political positioning of the newspaper O Piauí in the Ditadura Vargas

Th amy r e s S o u s a d e O l i v e i ra 1

Resumo: Essa pesquisa tem como objetivo identificar o posicionamento político do periódico O Piauí, levando em consideração o período em que o mesmo ressurgiu em setembro de 1945 até a derrocada da ditadura Vargas, em outubro do mesmo ano. Trata-se de uma pesquisa exploratória e documental que se utilizou da análise de conteúdo como técnica de análise. Com o intuito de facilitar o entendimento da conjuntura em que o jornal foi reativado, realizou- se, inicialmente, uma contextualização abordando como foi configurado o Estado Novo e quais suas relações com a imprensa. À posteriori, apresentou-se um breve histórico de O Piauí que facilitou o entendimento de sua linha editorial. Por fim, concluiu-se que O Piauí apresentou posicionamento político divergente do que a ditadura Vargas propunha, posto que o Estado era sempre citado com tom pessimista nos textos, o que deixa implícito o enfraquecimento dos órgãos de controle da imprensa já no final do Estado Novo . Palavras-Chave: 1. Jornal 2. O Piauí 3. Estado Novo

Abstract: This research aims to identify the political positioning of the newspaper O Piauí, take into account the period in which it resurfaced in September 1945 until the overthrow of the Vargas dictatorship, in October of that year. This is an exploratory and documental research that used content analysis in the analytical technique. With the intention of to facilitate the understanding of the environment in which the newspaper was reactivated, was held, initially, a contextualization about the configuration of the Estado Novo and what their relationships with the press. Then, presented a brief history of O Piauí which facilitated the understanding of its editorial line. Finally, it was concluded that O Piauí presented divergent political positioning than the Vargas dictatorship proposed, the state was always quoted with pessimistic tone in texts, this leaves implicit the weakening of the press control agencies already at the end of New State. Keywords: 1. Newspaper 2. O Piauí 3 Estado Novo

1. Universidade Federal do Piauí/Programa de Pós Graduação em Comunicação da UFPI (Brasil).

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7116 O posicionamento político do jornal O Piauí em meio à Ditadura Vargas Thamyres Sousa de Oliveira

INTRODUÇÃO JORNALISMO OCUPA papel importante na esfera social. Essa posição permite que o mesmo tenha forte influencia na memória coletiva da população, pois, frequen- Otemente, os indivíduos recorrem às notícias jornalísticas para obter informações ou complementar o que já sabem do acontecido. Devido a essa notoriedade atribuída à atividade jornalística alguns regimes ditatoriais como o Estado Novo recorreram à intervenção na mesma para garantir apoio e destaque para as suas ações. Durante o Estado Novo, o jornalismo foi visto como uma fonte confiável, portanto, mediadora da verdade e teve sua posição de poder reafirmada. Apesar de ocupar um lugar de destaque, o jornalismo exercido durante esse período encontrava dificuldades com relação ao material escasso (papel), à circulação, recursos financeiros e também com a maneira de escrever, pois frequentemente os órgãos censores interferiam no que poderia ser noticiado. No Piauí, estado conforme Celso Pinheiro (1972, p.199), as ativi- dades da imprensa até 1945 foram restritas a assuntos rotineiros e escassas. A censura fazia com que os periódicos desaparecessem. Porém o regime estado novista não se comportou com o mesmo vigor durante toda a sua atuação. As alianças estabelecidas pelo mesmo após sua entrada direta na Segunda Guerra Mundial, em 1942, proporcionaram grandes modificações na conjuntura, sobretudo, na produção jornalística de então. Tendo em vista tal contexto, esse trabalho visa identificar o posicionamento político do jornal piauiense O Piauí que após o seu fechamento em 1937 ressurgiu já em 1945, ano em que a ditadura Vargas passava pelo enfraquecimento que culminou com a sua derrocada. Para isso, utilizou-se a análise de conteúdo com uma amostra composta por 10 exemplares. A pesquisa apresenta caráter exploratório quanto aos objetivos, uma vez que recor- reu-se ao estudo bibliográfico para se compreender mais sobre o período e também possui caráter documental, pois envolve fontes que ainda não receberam tratamento analítico, os jornais. O trabalho estrutura-se da seguinte forma: inicialmente, buscou-se fazer uma con- textualização do momento para que se obtivesse um entendimento das idéias difun- didas pelo Estado Novo e de sua relação com a imprensa. Posteriormente, fez-se uma breve apresentação do Jornal O Piauí que contribuiu para a análise de como o jornal se posicionou politicamente em 1945.

CONTEXTUALIZANDO: A CONFIGURAÇÃO DO ESTADO NOVO E SUA RELAÇÃO COM A IMPRENSA No Brasil, os conflitos sociais marcaram as três primeiras décadas do século XX, no entanto as relações políticas não se modificaram e o Estado ainda se posicionava de modo ferrenho e centralizador, pouco ampliando os direitos políticos da população. Após a revolução de 1930, aconteceram mudanças no país. Com Getúlio Vargas no poder, inicia-se uma modificação nas relações entre Estado e sociedade, privilegiando- -se o aparelho estatal. Visando sua consolidação e conquistar mais adeptos à política implantada, o Governo Vargas apoiou grupos políticos de outrora como os grandes cafeicultores, mas

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7117 O posicionamento político do jornal O Piauí em meio à Ditadura Vargas Thamyres Sousa de Oliveira buscou se aproximar de novos grupos específicos como os trabalhadores, beneficiados pela Constituição Trabalhista de 1934. Nessa conjuntura, o Estado criou órgãos como o Ministério do Trabalho da Indústria e do Comércio (1930) e, paulatinamente, interferia nas atividades dos estados e municípios. O estado autoritário de 1937 também conhecido como Estado Novo ou ditadura Vargas teve o seu estopim em 10 de novembro de 1937 e foi resultante de uma série de modificações que se estenderam desde a revolução de 1930 , ecoaram pelos governos Provisório (1930-1934), Constitucional (1934-1937) e culminaram com o Estado Novo . Conforme Barbosa (2007, p. 105), o Governo começava a traçar um programa que deveria atingir a todos por meio da educação e até mesmo através da massificação de informa- ções. Para isso, investia-se no fortalecimento das instituições estatais que pretendiam por meio de um processo político nacionalista governar a população. Porém deve-se ressaltar que as ideias de centralização do poder, hierarquização e massificação não estiveram presentes somente na ditadura Vargas. Na conjuntura global, também se desencadeavam movimentos antidemocráticos e pró-ditatoriais, totalitários e semi-totalitários que se expandiam da Europa para os outros continentes. Essas ideologias exerceram influências sobre o regime estado-novista implantado no Brasil e através do processo de globalização acarretaram interferências em âmbito político, econômico e social. Nessa conjunção, o Governo criou órgãos como o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) criado, por meio do Decreto- Lei nº579, de 30 de julho de 1938, a fim de supervisionar o trabalho de interventores e controlar a administração pública e o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP)2 que, conforme o Decreto-Lei de nº 1.915, de 27 de dezembro de 1939 ficava responsável pela vigilância das produções do cinema, teatro, rádio, turismo, divulgação e imprensa, realizando um controle ideológico e estimulando publicações favoráveis ao Estado Novo. Segundo Barbosa (2007, p. 105), tornava-se responsabilidade do Governo por meio dos aparelhos burocráticos criados no período desempenhar funções complexas, inclusive a de orientar o povo, considerado pelo Estado massa amorfa e indiferenciada. Em Teresina, a administração municipal, liderada por Lindolfo Monteiro, criou até mesmo um Código de Posturas do Município com o intuito de disciplinar, ordenar e orientar essa população tida como desestruturada. Dentre as proibições, estavam dar gritos à noite sob pena de multa e a proibição da publicação de anúncios sem a licença da prefeitura e o devido pagamento. É importante ressaltar que a imprensa foi uma das organizações que o Estado Novo buscou aproximação com o intuito de promover sua imagem e educar a população ao regime instalado. A constituição de 1937 já dispunha no artigo 122 parágrafo 15 restrições e normas para o funcionamento da imprensa no país. Por meio desse parágrafo, ficava explícito o caráter público da imprensa e a intervenção do Estado com suas práticas de censura, tais como a proibição do anonimato. Além do controle exercido pelo DIP,

2. É interessante se colocar que antes da criação do DIP já existiam outros órgãos que desenvolviam trabalho semelhante ao desses órgãos. Segundo Silva e Carneiro (1983, p. 57), antes da criação do DIP, Getúlio Vargas utilizou o Departamento Oficial de Propaganda DOP (1930) e o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC) para promover sua imagem.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7118 O posicionamento político do jornal O Piauí em meio à Ditadura Vargas Thamyres Sousa de Oliveira estabeleceu-se o Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda (DEIP), órgão que desempenhava função semelhante à do DIP na instância estadual, auxiliando assim no cerceamento da imprensa. No Piauí, nomes como João Soares da Silva, Bonifácio Carvalho de Abreu e Robert Wall de Carvalho estiveram à frente do órgão que contava com o apoio da polícia para o desempenho de suas funções. A busca do apoio da imprensa de modo amigável e em alguns casos até mesmo compulsório pode ser justificada pelo poder exercido pela mesma na sociedade. Como bem afirma Rêgo e Moura (2011, p.4) a imprensa e, sobretudo, o jornalismo ocupa uma posição de poder que faz com que o mesmo paute o público, forme opiniões e influen- cie o imaginário simbólico coletivo. Tendo em vista esse poder ideológico, o Estado se aproximou dos meios de comunicação durante o Estado Novo e através do decreto nº 910 de 30 de novembro de 1938 regulamentou a profissão de jornalista. Ainda sobre o poder e a importância do jornalismo, conforme Ciro Marcondes Filho (1989, p. 11) o jornalismo atua junto a grandes forças econômicas e sociais que querem dar às suas opiniões subjetivas e particularistas o caráter objetivo que, muitas vezes, é associado ao jornalismo. Considera-se que esse foi o caso do Estado Novo, que buscou suporte nos meios de comunicação para legitimar seu ideário e como bem afirma Barbosa (2007, p. 108), viabilizou uma ampliação da fala política nos meios de comunicação distanciando a fala do público que aparecia sempre dissociada do momento político que o país vivia. Nessas condições, a imprensa e, sobretudo, a notícia configurou- se como mercadoria, uma vez que, em troca de verbas publicitárias e apoio para o funcionamento muitos jornais se submeteram à produção de notícias que divulgavam os ideais varguistas e barravam informações que não eram convenientes para o Estado . É interessante ressaltar que no século XX, no qual se situa o período em estudo, a sociedade passava por um constante processo de modernização que começava a atingir as produções jornalísticas e primava por um jornalismo mais informativo, semelhante ao norte-americano (RIBEIRO, 1994, p.30). De certo modo, esse estilo de produção jornalística favoreceria o regime que começava a ser implantado no Brasil, uma vez que afastava-se o gênero opinativo dos periódicos, evitando assim, a incitação de críticas ao período de cerceamento que o país enfrentou. Em meio ao aparato de repressão criado pelo Estado, ligações telefônicas ordenando a queda de pautas ou textos prontos e até mesmo a presença de censores nas redações foram elementos utilizados para intimidar a imprensa da época. No Piauí, as determinações de censura apareciam até mesmo explícitas nos jornais. O interventor estadual, Leônidas Melo, exercia a função de mediador do discurso varguista e ordenava a postura que deveria ser adotada pela imprensa do estado.

O Sr Governador, usando da palavra tratou da campanha que os nossos jornais, e os dire- tores daquelas fábricas deviam desenvolver contra o comunismo, - aqueles publicando, obrigatoriamente, em todas as suas edições, qualquer coisa condenando o credo vermelho [...] e disse que a censura à imprensa continuava a cargo do Sr Chefe de Polícia (GAZETA, 26 de novembro de 1937, p. 1).

Porém não se pode afirmar que o posicionamento dos veículos jornalísticos, nesse período, generalizou-se à aceitação da ditadura Vargas. Alguns jornalistas se utilizavam

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7119 O posicionamento político do jornal O Piauí em meio à Ditadura Vargas Thamyres Sousa de Oliveira das entrelinhas para deixar mensagens de protesto. A matéria “Farpa não entra na fila”, produzida por Edgar Morel é considerada um texto em que ficavam implícitas algumas insatisfações do período. A notícia denunciava o fato de uma égua ser alimentada com quatro litros de leite no momento em que o Brasil sentia os reflexos da Segunda Guerra Mundial e tinha que consumir pouco leite. O texto estimulou contestações e fez com que a população saísse às ruas e reivindicasse o descaso, posto que, enquanto a mesma era obrigada a disputar por um litro de leite, alguns animais poderiam até mesmo desperdiçar (MORAIS, 1994, p. 421). A postura do Estado Novo não foi uniforme e algumas influências que se davam na esfera internacional contribuíram para o enfraquecimento do Governo e de suas áreas de atuação. De acordo com Sodré (1983, p. 386), a participação da União Soviética na Segunda Guerra Mundial junto aos aliados, grupo apoiado pelo Brasil, foi um fator que interferiu no esvaziamento do Estado Novo, uma vez que tal apoio exigia a suspen- são da propaganda anti-comunista no Ocidente e estimulava o combate ao nazismo e fascismo. Devido a essas alianças, a aversão ao comunismo e algumas características do nazismo e fascismo que estavam presentes no ideário do Estado Novo tiveram que ser atenuadas descaracterizando assim alguns aspectos que compunham a carga ide- ológica do mesmo. Com o enfraquecimento da ditadura Vargas, a imprensa começava a conseguir brechas e divulgar informações que no início do Estado Novo não eram permitidas, tais como a publicação de problemas particulares e econômicos. Porém, a censura não havia sido, totalmente, rompida (SODRÉ, 1983, p. 386). Considerando as especificidades da configuração histórica das mídias regionais e locais, esse trabalho se volta para o estudo de uma mídia piauiense o jornal O Piauí, que foi um dos periódicos que circulou durante o Estado Novo e tinha como diretor – presidente o comandante Helvécio Coelho Rodrigues que possuía influências políticas no estado.

HISTÓRICO DO JORNAL O PIAUÍ A atuação jornalística de O Piauí pode ser dividida em cincos fases. Além da diferença cronológica, tais fases carregam os reflexos da conjuntura, sobretudo, política em que o estado se situava, uma vez que as influências políticas e partidárias sempre fizeram parte das discussões locais. A primeira fase do jornal se estendeu de 3 de maio de 1867 a 29 de dezembro de 1873 (BASTOS, 1994, p. 276), ainda no período imperial, e teve como fundador Antonio Coelho Rodrigues, que como parte dos jornalistas do período desempenhava também funções jurídicas e políticas. Devido a orientação partidária de seu fundador, o veículo atuava como propagador das ideias do Partido Conservador. Após essa fase, o jornal passou quase três anos sem circular retomando apenas em 8 de março de 1876, o que configurava a sua segunda fase que foi até 22 de junho de 1916 (BASTOS, 1994, p.277). Não tardou para que o jornal saísse de circulação novamente, porém o mesmo retomou no mês seguinte, em julho de 1916, constituindo assim a sua terceira fase que foi até dezembro de 1930 (BASTOS, 1994, p.298).

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7120 O posicionamento político do jornal O Piauí em meio à Ditadura Vargas Thamyres Sousa de Oliveira

Em 1937, ano em que se inicia o Estado Novo, o jornal tenta retomar, porém devido a divergências ideológicas do novo proprietário, Helvécio Coelho Rodrigues, com o regime político de então a quarta fase do jornal foi logo interrompida e o veículo jornalístico retomou apenas em 22 de setembro de 1945, na quinta e última fase do mesmo que se prolongou até 15 de maio de 1954. Apesar da diferença do contexto em que se davam essas fases de O Piauí, no pri- meiro número do jornal, em sua quinta fase, o mesmo afirma que permaneceria, tradi- cionalmente, orientado pelo primeiro periódico que fora redigido por Antonio Coelho Rodrigues, pai do então proprietário de O Piauí (O PIAUÍ, 22 de setembro de 1945, p. 1). Porém, tal informação não nos permite afirmar que o jornal passou todas as fases no domínio de apenas uma família. Na 5ª fase, sobre a qual se detém o corpus dessa pesquisa, O Piauí recebia o slogan de jornal político e de interesse coletivo e conforme Bastos (1994, p. 298) pertencia à União Democrática Nacional (UDN), mantendo assim a cultura de servir a partidos políticos já executada na primeira fase do jornal. Nesse momento, o jornal tinha oficina própria que funcionou na rua Coelho Rodrigues e, posteriormente, na rua Álvaro Mendes. Além do diretor-presidente, Helvécio Coelho Rodrigues nesse jornal também atua- ram jornalistas como José Epifãnio de Carvalho e Francisco Cunha e Silva, que também trabalharam em outros periódicos. Esse breve histórico sobre o jornal em estudo atua como um suporte para o enten- dimento de como o periódico se posicionou, politicamente, nesse momento em que a ditadura Vargas declinava.

ANÁLISE DO POSICIONAMENTO POLÍTICO DE O PIAUÍ EM 1945 Com o intuito de identificar o posicionamento político do jornal O Piauí, no ano em que a ditadura Vargas passava por um processo de enfraquecimento, realizou-se uma pesquisa exploratória. Conforme Santos (2008, p.27), esse tipo de pesquisa é adequada a temas sobre os quais se tem pouco conhecimento. Como é o caso do período em que vigorou o Estado Novo, sobre o qual se tem poucas publicações no Piauí. A pesquisa também possui caráter documental, uma vez que, recorreu-se a jornais , material que ainda não passou por um processo analítico e que se tornou fonte documental devido a modificações na historiografia e outras áreas de estudo. O corpus da pesquisa foi composto por 10 exemplares, que circularam no ano de 1945, e contemplam tanto o período de retomada do jornal quanto os últimos meses em que, do ponto de vista político e institucional, o país fora regido pelo Estado Novo. A técnica de análise executada foi a análise de conteúdo. Técnica que, conforme Bardin (1977, p. 133), fornece informações suplementares ao leitor crítico de uma mensagem fazendo com que o mesmo possa se distanciar da sua leitura aderente e saber mais sobre o texto. Para viabilizar o processo de análise, usou-se a análise de conteúdo temática que segundo Fonseca Júnior (2005, p. 298) possui critério de categorização semântico e as categorias são construídas de acordo com os temas que emergem dos textos. Para atender a identificação do posicionamento político do referido jornal, utilizou-se três categorias de análise: temáticas abordadas, relação de O Piauí com o Estado e seus aparelhos ideológicos e utilização de mecanismos para contrapor a ordem instalada.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7121 O posicionamento político do jornal O Piauí em meio à Ditadura Vargas Thamyres Sousa de Oliveira

TEMÁTICAS ABORDADAS No que se refere às temáticas abordadas pelo jornal O Piauí nota-se que no mesmo predominavam as discussões partidárias. Apesar de também discutir questões que envolviam economia, saúde e sociedade, as informações apareciam acompanhadas de críticas ao momento político que o país vivia.

Texto 1: O Momento , órgão oficial do desgoverno do Estado , cujo o ingresso pelo linguajar obsceno está proibido em muitos e respeitáveis lares piauienses houve por bem publicar na sua edição de 20 do mês em curso um artiguete ameaçador e terrível contra a União Democrática piauiense[...] Preliminarmente , devolvemos ao escritor social democrático todas as descomposturas. [...] Contra as misérias é que reformulamos nossas acusações. Seríamos felizes se pudéssemos ao menos uma vez registrar um elogio ao Sr Leônidas de Castro Melo. Mas sempre a impossibilidade nos está pela frente, sempre o interventor fora da ordem da verdade e da lei. [...] Também no Brasil há um homem superior, um homem que não tem a egolatria de um Vargas, mas o heroísmo puro nunca duvidoso para os seus próprios inimigos- Eduardo Gomes (O PIAUÍ, 26 de setembro de 1945, p. 1).

Por meio do texto 1, percebe-se que a disputa pela consolidação de novos poderes políticos refletia-se no periódico, o que aponta um enfraquecimento dos ideais propostos pela ditadura Vargas. O jornal fazia severas críticas à conjuntura política do período atingindo tanto a esfera federal quanto a local e o período em estudo fora caracterizado até mesmo como um “desgoverno”, ou seja, uma desordem. É interessante ressaltar que as batalhas pelo poder político fortaleciam-se até mesmo através dos embates entre os jornais, o que torna notório que as grandes forças políti- cas recorriam ao estatuto do jornalismo para dar credibilidade e notoriedade ao seu discurso. As páginas de O Piauí continham verdadeiros duelos partidários e deixavam implícitas uma autorreferenciação do jornal que queria apresentar-se como um jornal íntegro e de caráter denunciativo como se observa na expressão “Contra as misérias é que reformulamos nossas acusações”. A temática economia também foi identificada no jornal, no entanto não apresentou-se isolada da situação política do país. No texto “Preços extratosféricos”, publicado no dia 21 de outubro de 1945, o jornal anuncia um problema econômico, a inflação dos gêneros alimentícios e ao final demonstra a existência de um problema político.

Texto 2: O feijão subiu 207 por cento; o arroz, 181 por cento; a farinha , 100 por cento; os ovos 316 por cento, o açúcar , 50 por cento [...]A lista não acabaria mais...Isso foi o que a Ditadura fez pelo Brasil. Será possível que o povo conscientemente, honestamente, livremente, dê seu voto para a continuação desse descaso ( O Piauí, 21 de outubro de 1945, p. 2)

Ao publicar uma matéria jornalística relatando tal caos econômico o periódico se distanciava das imposições da censura estabelecidas no início do Estado Novo, pois a veiculação de notícias que sugerissem ou mostrassem descontentamento ou oposição ao regime, assim como a publicação de temas relativos a problemas econômicos eram vetadas (CAPELATO, 1999, p. 175). Por meio desse texto fica explícito o enfraquecimento do regime, dos seus aparelhos de controle da imprensa e o posicionamento contrário do jornal em relação ao Estado Novo, uma vez que o mesmo após elencar a série de

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7122 O posicionamento político do jornal O Piauí em meio à Ditadura Vargas Thamyres Sousa de Oliveira aumentos que o país sofreu atribui culpa à ditadura Vargas e convoca a população para uma reflexão sobre a causa durante o período eleitoral. As temáticas saúde e sociedade foram outros eixos debatido pelo jornal que também apareciam associadas a entraves que o estado enfrentava. Em texto que circulou no dia 21 de outubro de 1945, O Piauí apontou deficiências no sistema de saúde do estado associando-as a uma acusação de má administração política.

Texto 3: O grande hospital do Sr Leônidas Melo só está ao alcance dos milionários, que infe- lizmente são poucos no Piauí. O comum dos mortais que tem a desdita de precisar dos seus serviços é escorchado sem dó nem piedade. [...] a verba é insuficiente ou é mal empregada, pois a assistência hospitalar em Teresina vai de mal a pior (O PIAUÍ, 21 de outubro, p. 3).

Através do texto 3 percebe-se que o periódico além de ressaltar um problema de saúde, as dificuldades na assistência hospitalar, deixa também explicito um problema social: a desigualdade. Ao mencionar que “O grande hospital do Sr Leônidas Melo só está ao alcance dos milionários, que infelizmente são poucos no Piauí”, a publicação destaca os desníveis de classes sociais do estado e faz também uma crítica aos seus representantes, uma vez que, apresenta o interventor como um empreendedor no setor de saúde, mas que por outro lado comporta-se como mau gestor dos recursos destinados para custear a saúde dos piauienses.

RELAÇÃO DE O PIAUÍ COM O ESTADO E SEUS APARELHOS IDEOLÓGICOS Com a categoria Relação com o Estado e seus aparelhos ideológicos reforça-se o enten- dimento de que o jornal apresentava uma relação de distanciamento do Estado e seus representantes, posto que as referências do veículo a esse setor da sociedade eram sempre dadas através de comentários pejorativos e sátiras.

Texto 4: Não é para admirar que queiram nos responsabilizar pela imprestabilidade do servi- ço de água e luz, pelo fracasso do Hospital Getulio Vargas e nos dar a culpa da incapacidade do prefeito, do nevoeiro mental do caçote da lagoa do Havre de Graça, da microcefalia do sotero, do mal sagrado do Diogo e até da mão ruim do interventor. A gente do Governo está positivamente ensandecida ( O PIAUÍ, 7 de outubro de 1945, p. 1).

Observa-se por meio do texto 4 que o jornal constrói o texto como se dialogasse com o leitor a respeito de ameaças que o mesmo enfrenta por parte do Estado e denuncia a opressão que o aflige. Ao elencar problemas como a “imprestabilidade do serviço de água e luz” e o “fracasso do Hospital Getulio Vargas”, O Piauí emite críticas aos órgãos estaduais e, em especial, a gestores de maior notoriedade como Lindolfo Monteiro, então prefeito de Teresina e o interventor Leônidas Melo, uma vez que cabia a eles a articulação junto aos demais e a busca pela qualidade de vida da população. O primeiro é chamado de “incapaz”, ou seja, aquele que não é capaz de exercer determinada função e o segundo é chamado de “mão ruim”, expressão que no Piauí costuma caracterizar pessoas más e não produtivas. As sátiras a esses gestores eram frequentes como exemplo tem-se a matéria “O circo esteve em Esperantina”. No texto, o prefeito de Teresina, Lindolfo Monteiro, e sua equipe são comparados a profissionais circenses ao realizarem viagens em busca de apoio político para o Partido Social Democrata (PSD)

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7123 O posicionamento político do jornal O Piauí em meio à Ditadura Vargas Thamyres Sousa de Oliveira

Texto 5: Integravam o circo sob a orientação do palhaço Otávio Melo, o Lindo Olfo, o gaulater Ney Von Baumman, o genro Machado e o Leão das Areias um tanto contrafeito naquele ambiente. Após o desfile do elenco, o famoso clow Otávio Melo iniciou a arenga despejando sobre sua reduzida platéia uma das suas mais ridículas e despudoradas oratórias (O Piauí, 14 de outubro de 1945, p. 3).

Considera-se que ao descrever Lindolfo Monteiro e sua equipe como “circo” o jornal quis caracterizá-los como indivíduos dignos de riso, características que quando atribuídas a gestores deixam margem para a concepção de que o mesmo não desenvolve um trabalho sério e ético. O texto 5 esboça também que apesar das rivalidades políticas existentes entre o Governo e os proprietários do jornal, o periódico costumava acompanhar a agenda do Governo e seus representantes, no entanto a cobertura era permeada por comentários críticos . Identifica-se também esse comportamento em matéria veiculada em 26 de outubro de 1945.

Texto 6: Depois de haver favorecido o estado com sua bendita ausência, regressou ontem, aviatoriamente, do Rio de Janeiro o ilustre interventor Leônidas Melo, criador da omissão de água e luz de Teresina e personagem de grande vulto no gichet pagador (O Piauí, 26 de outubro de 1945, p. 1).

Por meio do texto 6, reforça-se a aversão de O Piauí à Leônidas Melo, na expressão “Depois de haver favorecido o estado com sua bendita ausência” a publicação enfatiza que o trabalho do referido interventor é irrisório para o Estado . É interessante ressaltar que a agenda do governador tornava-se apenas um pretexto para que o jornal elencasse problemas que o estado sofria. Porém, as aversões ao Estado Novo também atingiam a esfera federal em O Piauí e evidenciavam a relação de distanciamento entre os mesmos.

Texto 7: A chamada lei dos interventores que antecipou as eleições de governadores e assembleias estaduais constitui sem dúvida mais um golpe tramado e desferido na cons- ciência democrática brasileira pelo conluio Vargas- Agamenon Magalhaes ( O PIAUÍ , 14 de outubro de 1945, p.1).

Através do texto 7 avalia-se que o jornal caracteriza Getúlio Vargas e sua equipe técnica como golpistas, imagem que no auge do Estado Novo poderia acarretar penalidades, uma vez que não era interesse desse regime autoritário ser apresentado como golpe. A utilização de tais termos para se referir a líderes do Estado Novo refletem o período de reformulação política que se aproximava e o enfraquecimento do regime.

UTILIZAÇÃO DE MECANISMOS PARA CONTRAPOR A ORDEM INSTALADA Com relação à categoria Utilização de mecanismos para contrapor a ordem instalada, considera-se que o jornal O Piauí se utilizou de alguns artifícios para contrapor a ordem. O período em que o jornal voltou a circular em 1945, já no final do Estado Novo, proporcionou ao mesmo mais liberdade de escrita, pois o regime já passava por uma espécie de esvaziamento ideológico que afetava, inclusive, os órgãos de censura. Por meio da localização de críticas ao Governo, principalmente, em áreas de grande visualização do jornal, analisa-se que O Piauí se utilizou de áreas privilegiadas como

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7124 O posicionamento político do jornal O Piauí em meio à Ditadura Vargas Thamyres Sousa de Oliveira a capa dos jornais para contrapor o momento, pois com frequência eram divulgadas nessas páginas notícias contra o Governo. Conforme Travassos (2011, p. 117), o produtor da capa de um jornal é fiel a uma organização padrão com a qual os leitores do jornal já estão familiarizados e busca através de componentes linguísticos e visuais atrair o leitor funcionando como uma espécie de vitrine do jornal. Desse modo, observa-se que ao realizar publicações dessa natureza os jornalistas de O Piauí chamavam a atenção do leitor para arbitrariedades que o mesmo afirmava serem cometidas pelo Estado e até mesmo pautavam o público, pois os temas destacados poderiam fazer parte dos ciclos de conversas que os leitores participavam. Como exemplo pode-se referenciar a capa de 14 de outubro de 1945, na qual o periódico se utilizou como manchete principal o seguinte texto “Novo Golpe contra o processo de democratização do país”. A matéria além de constar na capa situa-se na zona principal ou primária do jornal, do lado superior esquerdo, o que lhe confere melhor notoriedade ainda.

Figura 1: Capa de O Piauí em 14 de outubro de 1945. Fonte: Projeto Memória do Jornalismo

A disponibilização de espaços para que população falasse também foi outro meca- nismo utilizado pelo jornal para contrapor a ordem instalada, uma vez que conforme Barbosa (2007, p. 108), nesse período era comum um distanciamento da fala do público dos meios de comunicação e o aparecimento do mesmo em meio a uma atmosfera de glamour e fantasia, distante das discussões políticas. Esse contraste pode ser observado no texto 8.

Texto 8: Sr redator, As usinas elétrica e elevatória de água dessa capital estão, indubitavel- mente, num lastimável estado de conservação. O seu abandono, o seu péssimo funciona- mento, estão de modo claro e positivo, aos olhos de toda a gente: O diretor geral de obras públicas e o diretor técnico das instalações só vivem agora em automóveis oficiais queimando gasolina caríssima em correrias à procura de pequenas cidades e povoados para deitarem de falação de propaganda política, embora a reduzido número de pessoas (O PIAUÍ, 26 de setembro de 1945, p. 2)

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Ao oferecer espaços ao público tais como o apresentado pelo o texto 8, O Piauí se diferenciou do estilo de produção jornalística acolhido pelo Estado Novo. No momento da triagem de quais falas seriam publicadas, o mesmo pode ter deixado aspectos referentes à subjetividade dos jornalistas e à sua linha editorial influenciarem na filtragem dos textos. Conforme Rossi apud Melo (2006, p.39), a objetividade é impossível, pois o jornalismo é mediado por um jornalista que possui sua formação cultural, background pessoal e opiniões a respeito do que está testemunhando, ou seja, ocupa uma posição de poder na escolha do que é noticiado. Devido a essas subjetividades que afetam o universo jornalístico, a seção “Escreve nos o povo” era sempre composta por denúncias que o jornal informava que eram enviadas pelo povo. É também pertinente ressaltar que o jornal se eximia da responsabilidade por esses textos. Com as informações “A Direção não assume responsabilidade pelos artigos assinados” e “Previnimos aos que nos enviam colaboração não solicitada que os originais não serão devolvidos, quer sejam ou não publicados”, a direção de O Piauí resguardava-se de penalidades que poderia enfrentar e muitas vezes se utilizava da fala de terceiros para expressar sua discordância das ações do Governo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Tendo em vista a discussão apresentada, considera-se que o posicionamento político de O Piauí fora avesso aos ideais divulgados pela ditadura Vargas no início de sua atuação. O Estado era sempre citado com tom pessimista nos textos. Esse comportamento deixa implícito que já no final do Estado Novo houve um enfraquecimento do controle da imprensa que viabilizou a publicação de textos que criticavam o regime. Apesar da temática política ser a mais notória no jornal , a mesma não veio acompanhada da fala do Estado, fonte primária em boa parte dos veículos que circularam durante esse período. A abordagem política de O Piauí não se dava com o intuito de divulgar as “boas ações” desempenhadas pelo Estado Novo, como exigiam o DIP e o DEIP no início de suas atuações, mas com o empenho de questioná-las e sugerir uma mudança de poderes. A veiculação de temas que envolviam saúde, economia e sociedade não foi isenta dos questionamentos em relação à política. A maneira como o jornal se relacionou como o Estado e seus representantes também trouxe reflexos de suas inquietações com o período. O Piauí se referia ao Estado e aos que desempenhavam cargos no Governo utilizando uma linguagem agressiva, posição que deixa nas entrelinhas o não recebimento de subsídios da ditadura Vargas para que o periódico colaborasse na divulgação de suas ideias. É interessante enfatizar que no período em estudo o regime autoritário de 1937 já se encontrava tão esfacelado que a contraposição ao mesmo poderia ser facilmente identificada pelo leitor, seja nas capas ou em outras áreas do jornal. Por fim, constatou-se que o posicionamento de O Piauí discordou da linha editorial adotada pela maioria dos veículos, no início do período estado-novista, e rompeu alguns paradigmas impostos à imprensa, tais como a exigência de se associar ao Estado. É evidente que o período em que o jornal voltou a circular foi totalmente propício a esse posicionamento, posto que a ditadura Vargas já se encontrava em processo de decadência e os seus órgãos de controle da imprensa já não possuíam tanto vigor.

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7127 Publicidade, Propaganda e Política Advertisement, Propaganda and Politics

A ryova l d o d e C a s t r o A z e v e d o Ju n i o r 1 Fab i o C a i m Vi a n a 2

Resumo: propaganda pode ser definida como a ferramenta de difusão de men- sagens de caráter ideológico com a finalidade de influenciar o comportamento da sociedade. Publicidade tem por objetivo tornar conhecido um produto, um serviço ou uma marca, despertando o interesse pelo consumo de produtos e ser- viços. No marketing político contemporâneo há uma evidente fusão entre ideias propagadas e elementos comerciais, unindo o conteúdo ideológico à formatação publicitária com o intuito da construção das identidades dos políticos que, em última instância, tornam-se marcas construídas, somatório de ideologias pro- fessadas, ações realizadas e comunicação efetivada aos eleitores-consumidores (cidadãos). Neste artigo, abordaremos conceitos e características presentes na comunicação integrada de marketing (CIM) como forma de propagar a ideo- logia dominante, caracterizando a comunicação como uma forma complexa de relacionamento entre o Estado e os cidadãos demonstrando que embora a nomenclatura seja recente, os conceitos existem, pelo menos, desde o início do século XX. Palavras-Chave: Publicidade, Propaganda, Marketing Político, Entretenimento, Comunicação de Massa.

Abstract: Propaganda can be defined as the diffusion of ideological mes- sages in order to influence society´s behavior. Advertising aims to make known a product, service or brand, arousing the consumption interest. On contemporary political marketing there is a fusion between commercial and ideological elements, turning the marketing communication into a mixed process of them, in order to make ideological content and selling proposition to act together to build brands in politics. In this article, we discuss concepts and features about Integrated Marketing Communication as a way to spread the dominant ideology by the use of mass media associated to marketing strategies in order to influence citizens´ behavior. This has been used since last century and now it´s an important approach to influence population to follow political ideas used by the State itself. Keywords: Advertising, Propaganda, Political Marketing, Entertainment, Mass Communication.

1. Professor adjunto e vice coordenador do curso de graduação do Departamento de Comunicação da UFPR, Doutor em Multimeios pelo IAR/UNICAMP. [email protected]. 2. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, Mestre em Comunicação e Mercado pela Casper Líbero, Publicitário, Psicanalista, professor do Centro Universitário Belas Artes e da Facamp. [email protected].

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7128 Publicidade, Propaganda e Política

Aryovaldo de Castro Azevedo Junior • Fabio Caim Viana

INTRODUÇÃO S CONCEITOS de Propaganda e Comunicação de Estado têm sido associados de modo quase orgânico à construção da marca nazista como representação da Oautocracia que dominou a Alemanha a partir de 1933, com a ascensão do parti- do nacional socialista ao poder, até sua derrocada, em 1945, com a vitória dos Aliados no final da Segunda Guerra Mundial. Esta simplificação acaba por conotar à palavra propaganda um caráter simbolicamente pejorativo, sendo que esta simplificação não representa sua amplitude e utilização para a construção de marcas de governos através do uso da comunicação integrada de marketing. Este artigo busca atualizar conceitos usados, pelo menos, desde o início do século XX e que ganharam proeminência com a eficácia da máquina de propaganda nazista. Para tanto, inicialmente, vamos entender alguns conceitos elementares que permeiam este artigo: Marketing é o processo que estimula o consumidor a comprar produtos e serviços que lhe proporcionem algum tipo de benefício. Quanto maior a percepção de qualidade que o consumidor tem de determinada marca, maior o valor pelo qual ele está disposto a pagar para possuí-la (Kotler, 2006). Em política, podemos associar este conceito com a competência em propor, implementar, executar e comunicar programas que reflitam os interesses do eleitorado. Neste sentido, mais do que preocupações ideológicas, os concorrentes ao governo identificam necessidades latentes e desejos dos consumidores (eleitores) para definir as características programáticas a fim de oferecer soluções que gerem voto. Estas diretrizes são expostas no período eleitoral e devem permanecer na comunicação governamental, pós-eleitoral, quando a situação deve apresentar as realizações das promessas eleitorais. Para tanto, a comunicação governamental deve publicizar as ações implementadas para estimular a percepção da capacidade administrativa e de governança, de modo a atender às expectativas geradas no período eleitoral ou justificar a impossibilidade de realizar parte delas. Este conjunto de ações e impossibilidades de ações, se trabalhado de modo consistente, pode gerar uma percepção popular de competência e, consequentemente, criar uma imagem de marca positiva do governo. No modelo tradicional de comunicação de marketing, a identidade de marca seria a mensagem no instante em que é emitida pelo emissor (governo), e que faz uso de seus elementos de identificação, como slogan, símbolos, cores e demais identificadores, enquanto a imagem de marca seria a mensagem assim que esta atinge o receptor (cidadão) e ele a interpreta. Quanto maior a intersecção entre ambas, mais próxima de um posicionamento de marca consistente (PINHO, 1996). Marca é um sistema de valores que engloba rótulos, nomes, design, símbolos, slogans, jingles, know-how, patentes e relações comerciais ou, em outras palavras, é o atestado de idoneidade, origem, qualidade e respeito de uma corporação / linha de produtos / produtos (MARTINS & BLECHER, 1997).

As marcas estabelecem ou reforçam a identidade e o amor-próprio dos consumidores, que nelas procuram âncoras funcionais/racionais (praticidade, performance, qualidade, ren- dimento, durabilidade) e simbólicas/emocionais (conferir status, visibilidade, alavancar autoestima e encorajar autoexpressão) (SCHWERINER, 2011, p.77)

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Aryovaldo de Castro Azevedo Junior • Fabio Caim Viana

Cabe à Comunicação Integrada de Marketing identificar projetos de relevância e realçá-los positivamente através do destaque de suas qualidades inerentes, com a apresentação de resultados e de como isto se reflete na qualidade de vida da população ou na construção de um caminho de sucesso para a nação. A comunicação da marca precisa ser consistente em todas as etapas de sua relação com o consumidor e a avaliação da sua performance e credibilidade é permanente, pois a experiência do cliente está em todos os pontos de contato entre ambos (touchpoints), daí a relevância entre o que uma marca promete e o que ela realmente entrega. Em política não é diferente. Como pôde ser notado na última campanha presidencial, com a exposição maciça entre promessas de campanha e realizações de governo, tanto de Dilma quanto de Aécio, a necessidade da demonstração de ações de sucesso é fundamental na busca de apoio popular no período eleitoral. Não basta informar ao cidadão, o governo deve dialogar com ele, num processo permanente e planejado do composto de comunicação de marketing: publicidade e propaganda, assessoria de imprensa, eventos, relações públicas, marketing digital, marketing direto e quaisquer outras formas de gerar pontos de contato com o potencial consumidor. Além das limitações da legislação quanto ao uso da comunicação oficial de governo, nota-se também que o tempo da política interfere fortemente na busca de relacionamento com os cidadãos. Os governos existem com prazo de validade e, buscando estender esta validade, muitas vezes desenvolvem ações que não valorizam o relacionamento permanente com a sociedade, focando os períodos eleitorais que se repetem a cada quatro anos. Para associar a comunicação política com a construção de identidade de marca, serão comparadas as estratégias de comunicação empregadas por Franklin Roosevelt (EUA), Adolf Hitler (Alemanha) e Getúlio Vargas (Brasil), que utilizaram variadas ferramentas de comunicação de marketing para difundir suas ideias, com o uso de branded contente em cinema, rádio, revista e jornal; produção de eventos, uso de assessoria de imprensa e relações públicas, moda, publicidade e propaganda, etc. e, através desta análise, cotejar com o ferramental de marketing atual, comprovando que a comunicação integrada, independente de nomenclaturas, é fundamental no marketing político para a propagação de ideias e para influenciar as percepções sociais.

Os EUA de Franklin D. Roosevelt Os EUA foram o primeiro país a criar um órgão de propaganda institucionalizado - Comitê de Informação Pública (CPI) - com o intuito de vender a entrada dos EUA na I Guerra Mundial na luta pela democracia. Claro que a motivação era econômica: garantir o investimento feito com a Inglaterra e França enquanto refreava o expansionismo alemão na busca por novos mercados (PEREIRA, 2012 p.169). Em decorrência da guerra, os EUA se tornaram o país mais rico do planeta, sendo os maiores produtores de milho, trigo, comida enlatada, aço, máquinas, automóveis, petróleo, carvão, etc. Nos dez anos seguintes a economia norte-americana continuou em crescimento exponencial, interrompido em 24 de outubro de 1929, a Quinta-Feira Negra, dia em que a Bolsa de Nova Iorque sofreu a maior baixa da história. A quebra da bolsa afetou o mundo inteiro, pois a economia norte-americana era a alavanca do capitalismo mundial.

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Neste contexto, Franklin D. Roosevelt foi eleito presidente dos EUA com uma plata- forma eleitoral batizada de New Deal. Com ela, o Estado passou a fiscalizar o mercado; criou leis sociais que protegiam os trabalhadores e os desempregados; controlou a pro- dução agrícola para evitar a superprodução; criou empresas estatais responsáveis por um amplo programa desenvolvimentista, com a construção e manutenção de estradas, praças, canais de irrigação, escolas, aeroportos, portos e habitações populares. Este con- junto de ações do New Deal alcançou bons resultados para a economia norte-americana. O desemprego diminuiu e o consumo voltou a crescer. Entretanto, um programa tão amplo e ousado precisava de um aparato de propaganda para conquistar o apoio popular. Para tanto, Roosevelt valeu-se fortemente do rádio e do cinema, com a propagação de mensagens positivas para a nação, construindo uma marca baseada na ousadia, eficiência e transparência, associadas à sua imagem, numa relação metonímica entre presidente e Estado.

Rádio Na década de 1930 o rádio era o meio mais importante na comunicação com o público. Ciente do potencial desta mídia, o presidente Roosevelt pronunciou-se em pelo menos trinta oportunidades no período de março de 1933 a junho de 1944. Os temas variavam de questões internas como as políticas econômicas do New Deal até o progresso militar americano durante a Segunda Guerra Mundial (History.com Staff, 2010). Pelo rádio, o programa Fireside chats, com uma audiência estimada em cerca de sessenta milhões de americanos, renovava a esperança no sistema democrático de governo, um tanto abalado pela depressão generalizada e, estimulava o patriotismo e o engajamento durante II Guerra Mundial. Isto aumentou a confiança do público e certamente se refletiu nas taxas de aprovação do seu governo, o que, sem dúvida, contribuiu para suas sucessivas reeleições, fato sem precedentes na história dos EUA (PEREIRA, 2012 p.278). Nos Fireside chats Roosevelt usava uma linguagem simples e direta, com exemplos concretos e analogias que davam um ar coloquial aos pronunciamentos, de modo a ser claramente entendido pelo maior número cidadãos. Ele começava os bate-papos noturnos com a saudação “meus amigos”, e referia-se a si mesmo como “eu” e ao ouvinte, o povo americano, como “você”. Em muitos dos discursos, Roosevelt citava figuras inspiradoras do passado da América e apelava para Deus ou Providência. No final de seus discursos, incitava o povo a enfrentar as tarefas difíceis com paciência, compreensão e fé. O hino nacional encerrava o programa, estimulando o patriotismo (History.com Staff, 2010).

Cinema A produção cinematográfica norte-americana consolidou-se na década de 1930, base- ada no oligopólio de grandes estúdios, nas celebridades hollywoodianas e na autocensura. O sistema de estúdio padronizou a produção e ajudou a consolidar gêneros (western e musicais, por exemplo) através do efeito didático de tal categorização, bem como forjou o controle de toda a cadeia produtiva: produção de conteúdo, distribuição e exibição. No sistema de estrelato, atores encarnam a representação da vida privada no cinema. E em sua vida privada encarnam a vida de celebridade. Aproveitando este nicho publicações especializadas divulgavam este estilo de vida, que azeitava o funcionamento da indústria

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Aryovaldo de Castro Azevedo Junior • Fabio Caim Viana cinematográfica, tornando a audiência atenta e cativa ao universo de Hollywood. Para manter padrões de comportamentos aceitáveis à sociedade americana os estúdios de cinema, através de sua associação, a Motion Pictures Association of America (MPAA) opta- ram pela autocensura prévia, o Código Hays, que consistia em diretrizes que visavam retratar uma América idealizada, na qual violência, sexo, drogas e vícios deveriam ser evitados ou minimizados, temas religiosos deviam ser retratados de modo respeitoso e as relações inter-raciais entre brancos e negros, ignoradas (PEREIRA, 2012 p.205).

New Deal e Segunda Guerra Mundial Os filmes da época da Depressão manifestavam o otimismo na política do New Deal, a confiança na democracia e na iniciativa individual e a crença de que o povo triunfaria sobre a hipocrisia, o egoísmo e a corrupção dos políticos e magnatas, temas propícios para o período. As mulheres eram retratadas como profissionais ascendentes ou garotas ricas que descobriam a importância da democracia. Os homens, normalmente vindos de pequenas cidades, passavam por provações que ressaltavam os padrões éticos e morais do verdadeiro homem norte-americano. São exemplos filmes como: Mr. Deeds Goes to Town (Frank Capra, 1936); Mr. Smith Goes to Washington (Frank Capra, 1939); The Grapes of Wrath (John Ford, 1940) e Meet John Doe (Frank Capra, 1941). No período da Segunda Guerra Mundial, a interação entre governo e Hollywood tornou-se mais explícita quando a Secretaria de Informação de Guerra (OWI) criou o manual para a indústria cinematográfica com diretrizes que ressaltavam a luta pela democracia com as nações aliadas contra as forças fascistas, representadas por lideranças ditatoriais que escravizavam o povo; a importância do front interno, retratando o fun- cionamento normal da sociedade mesmo em tempos de guerra e; as forças de combate, mostrando o treinamento e os batalhões multiétnicos das forças aliadas (PEREIRA, 2012 p.611). O uso de estereótipos, fundamentais na linguagem audiovisual, mostravam os fascistas caracterizados por lideranças autocráticas com interesses imperialistas, fomentando guerras e disseminando o ódio racial e religioso. São exemplos, filmes como: The Great Dictator (Charles Chaplin, 1940); Der Fuehrer’s Face (Walt Disney, 1942); Casablanca (Michael Curtiz, 1943); Guadalcanal Diary (Lewis Sailer, 1943); Behind the Rising Sun (Edward Dmytryk, 1943). No somatório da produção cinematográfica americana é notório que a construção da identidade de defensores da democracia e justiça, reconhecedores do esforço premiado com o consumo, ganhou o mundo principalmente após a Segunda Guerra Mundial e tornou-se o padrão do capitalismo global.

Alemanha de Adolf Hitler Em 1918, ao fim da Primeira Guerra Mundial, a Alemanha derrotada foi submetida a humilhações e cobranças por parte dos países vencedores. A população ficou marcada por vários efeitos da guerra, que se refletiam em todos os setores: econômico, social, cultural etc. Sua reorganização política, conhecida como a República de Weimar, foi caracterizada por forte polarização à direita (Nazismo) e à esquerda (Comunismo). Do ponto de vista econômico, a Alemanha conseguiu resultados satisfatórios entre os anos de 1924 e 1929, principalmente por conta de investimentos estrangeiros, sobretudo dos

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Estados Unidos. Entretanto, com a Quebra da Bolsa em 1929, a economia alemã naufragou com a de seu principal investidor. O Partido Nazista cresceu gradativamente, elegendo representantes no parlamento da República de Weimar. Em 1933, após o parlamento alemão ter sido criminosamente incendiado (e o crime ter sido reportado aos comunistas), Hitler e os nazistas ascenderam ao poder e iniciaram a ditadura nazista, consolidada em 1934 quando Hitler agregou os títulos de chanceler, de presidente e de “führer” (FERNANDES, 2012). A ideologia instituída no poder, dentre outras coisas, pregava um forte intervencionismo estatal na economia, o que eliminou o desemprego e provocou o rápido desenvolvimento industrial; o antissemitismo; centralização do poder e estado policial; corporativismo; expansionismo geográfico. As mensagens e imagens veiculadas pela máquina de propaganda nazista somente obtiveram êxito na conquista da sociedade alemã por haver terreno fértil e uma predisposição do povo em aceitar as ideias que eram cultivadas (PEREIRA, 2012, p.102). A ditadura nazista foi o primeiro regime de governo que se utilizou de modo pleno dos instrumentos tecnológicos para dominar o seu próprio povo, com o uso ostensivo da propaganda e de produtos culturais para a difusão ideológica através de mídias de massa como o rádio e o cinema (além das mídias impressas, promoção de eventos, exposições e o uso da incipiente televisão), além dos Aparelhos Ideológicos (igrejas, escolas, família, legislação, partido político, sindicatos, cultura, informação) e os Aparelhos Repressivos do Estado (polícia, forças armadas, aparatos especiais, etc.).

Governo e Propaganda O conjunto de elementos da indústria cultural, como mídia, imprensa, críticos de cine- ma, exibidores, formadores de opinião, dentre outros, influenciados pelo Estado Nazista, funcionava como ferramenta de condicionamento social. Os nazistas elaboraram uma síntese de todas as técnicas de manipulação da opinião até então existentes, incluindo desde elementos da mitologia germânica e da liturgia católica, até as técnicas modernas de agitação comunista, publicidade comercial americana e do estudo da psicologia de massas. Tudo, somado ao controle estatal dos meios de comunicação de massa (MCM), possibilitou condicionar o povo alemão à doutrina nazista (PEREIRA, 2012, p. 64). O Ministério Nacional para o Esclarecimento Público e Propaganda, comandado por Joseph Goebbels, controlava toda a produção cinematográfica nacional, apoiando com verbas os roteiros que se enquadrassem na ideologia nazista e proibindo filmes com teor contrário ao regime. Os estúdios cinematográficos deviam ser fábricas de sonhos, com filmes de entretenimento nos quais o cidadão comum buscava lazer, não politização. Para Goebbels, a boa propaganda era aquela que passava despercebida, abordando temáticas cotidianas:

Estes problemas penetrarão na vida sentimental dos alemães e de outros povos tão eficaz- mente quanto mais naturalmente forem tratados. É geralmente uma característica essencial para a eficácia da propaganda, que ela jamais apareça como se desejada. No instante em que a propaganda se torna consciente, ela é ineficaz. Mas do momento em que ela perma- nece como tendência, como caráter e como atitude ao fundo e aparece somente através do tratamento da narrativa, da trama, da ação e dos conflitos humanos, torna-se totalmente eficaz em todos os aspectos (PEREIRA, 2012, p. 93).

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Através de aparatos culturais como imprensa, rádio, cinema, literatura, teatro, música, artes plásticas, arquitetura, revistas, livros educacionais, exposições, concentrações públicas, etc., o Estado Nazista difundiu para o povo alemão mensagens de culto ao líder (Adolf Hitler); pureza da raça superior; nacionalismo; coletivismo e cooperativismo; valorização da família; o homem novo e a sociedade perfeita e; estereótipos dos inimigos da nação, com o comunismo representando a ameaça aos valores ocidentais e os judeus com planos de dominação mundial (PEREIRA, 2012, p. 102).

Olimpíadas, Propaganda e Cinema O partido nazista sempre valorizou a linguagem imagética para a veiculação de ideologias e conquista das massas, principalmente com o uso do apelo emocional; a limitação e repetição de conteúdo e; o uso de imagens na construção de mensagens ideológicas. Neste sentido, os Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim, foram utilizados para mostrar ao mundo a eficiência da administração nazista e minimizar os boatos que começavam a surgir sobre perseguições a algumas minorias. A grandiosidade do evento, nunca antes nesta monta, a gentileza e a organização presentes em Berlim funcionaram como uma grande ferramenta de propaganda. Aliás, como os Jogos Olímpicos continuam sendo tratados até hoje para a construção de identidades nacionais (KOTLER, 1997). O filme documentário Olympia (1936) mostra o evento olímpico em cenas que exaltam o imaginário nazista, com a glorificação do corpo de atletas comparados a super-homens; desfiles e celebrações coletivas que reforçam a disciplina popular e a grandiloquência do evento. Vários elementos transformam este documentário num marco estético da cinematografia nazista, sob direção de Leni Riefenstahl. Não por acaso, a mesma diretora do filme icônico da propaganda cinematográfica nazista,O Triunfo da Vontade, documentário que retrata o 6° Congresso do Partido Nacional Socialista, realizado em Nuremberg (1934) e que destaca elementos como liderança, lealdade, unidade, força e germanismo. A construção imagética e edição são impecáveis na construção do mito do líder e da unidade nacional em torno dos ideais nazistas (PEREIRA, 2012, p. 264). A construção ideológica da política racista que fundamentava o nazismo tinha duas faces: a primeira, construtiva e destinada a promover a família, o povo e a raça; a segunda, destrutiva, visava eliminar os indivíduos declarados indignos de viver na Alemanha nazista. O maniqueísmo da mensagem, opondo o bem e o mal, facilitava a compreensão das massas, o que seria uma das razões do êxito da propaganda nazista: o predomínio da imagem sobre a explicação, do sensível sobre o racional. Para tanto, valeu-se fortemente do uso de estereótipos. Para o pensador norte-americano Walter Lippmann, o poder do mito ou do estereótipo era capaz de aumentar o entusiasmo popular. E a máquina de propaganda nazista se valia disso na difusão de sua ideologia para a sociedade alemã. No universo cinematográfico, além do formato documentário, presente nos cinejornais semanais e nos filmes das campanhas militares A( Campanha da Invasão da Polônia, 1939; Batismo de fogo, 1940 e; Vitória no Ocidente, 1941); destacaram-se filmes ficcionais (musicais, romances, dramas e aventuras) e filmes de reconstituição histórica. Segundo o livro Nationalsozialistiche Filmpolitik (Gerd Albrecht) dos 941 filmes da época do regime nazista, 295 eram melodramas e biografias, 123 eram policiais ou épicos de

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Aryovaldo de Castro Azevedo Junior • Fabio Caim Viana aventura e, aproximadamente 523 comédias e musicais. Merecem destaque as produções com nítido caráter antissemita, como: Os Rothschilds; Judeu Suss; O judeu eterno (todos de 1940); O Führer doa uma cidade aos judeus (1944) e, anticomunistas, como Frísios em Perigo (1935); Cidade atacada pelos vermelhos (1941) e G.P.U. (1942). No somatório da produção cinematográfica alemã é notório que a construção da identidade do novo homem alemão é contraposta às imagens dos inimigos da pátria, de modo que no plano superestrutural, com o conjunto de aparelhos ideológicos do estado e do uso integrado aos meios de comunicação de massa, não havia como escapar da influência ideológica da máquina de propaganda nazista.

O Brasil de Getúlio Vargas Durante os governos de Getúlio Vargas ocorreram diversas transformações nacionais: a industrialização progrediu de forma substancial, as cidades cresceram, o Estado se tornou forte, interferiu na economia e foi instaurada uma nova relação com os trabalhadores urbanos. Enquanto permaneceu no poder, Vargas foi chefe de um governo provisório (1930-1934), presidente eleito pelo voto indireto (1934-1937), ditador (1937-1945) e presidente eleito pelo voto direto (1950-1954). A Era Vargas foi um período de modernização da nação brasileira, mas também foi um período conturbado por fatos variados: Revolução de 1930, Revolução Constitucionalista de 1932 e as Constituições de 1934 e 1937; a polarização ideológica entre direita, da Ação Integralista Brasileira (AIB) e esquerda, da Aliança Nacional Libertadora (ANL); transformação social e política trabalhista com a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT); criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP); Segunda Guerra Mundial e a decadência do Estado Novo; ascensão e crise do segundo Governo de Vargas (1950 – 1954). Todavia, para fins deste artigo o foca se dá no período do Estado Novo, entre 1937 e 1945. Nem fascista, muito menos comunista, Getúlio Vargas tinha uma característica autoritária que se valia de sua popularidade construída com o apoio da mídia e com o uso de elementos populistas, como variadas marchinhas de carnaval que o citavam de modo positivo e eram propagadas pelas rádios. Por outro lado, Getúlio governava com a Constituição suspensa, o Judiciário cerceado e o Congresso fechado. A demonização da política e dos políticos profissionais era uma das marcas mais fortes de seu governo e ele soube explorar a indignação popular contra os congressistas e em seu proveito pessoal.

Estado Autoritário O sistema nacional-socialista da Alemanha era fonte de inspiração a membros do governo de Vargas. O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) brasileiro era baseado no Ministério da Propaganda alemão e tinha quatro competências básicas: estudar a utilização do cinema e do rádio como meio de difusão e publicidade governamental; estimular a produção e exibição de “filmes educativos” por meio de “prêmios fiscais”; classificar e censurar as obras cinematográficas e; orientar a cultura física. A submissão das manifestações audiovisuais e radiofônicas a uma orientação cívica e nacionalista passava a direcionar a produção da cultura (através de fomentos) aos interesses do Estado. A realização de eventos nacionalistas, captadas em películas

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Aryovaldo de Castro Azevedo Junior • Fabio Caim Viana cinematográficas para uso pelo DIP transformava cerimônias cívicas em propaganda ufanista. O carnaval carioca, por exemplo, passou a ser subsidiado para louvar ações ufanistas, tornou-se a festa máxima da brasilidade (NETO, Lira, 2012, p.312/3). A imprensa era estimulada (pressão política e econômica) pelo governo a fomentar o receio anticomunista, com matérias que falavam do perigo vermelho. A mídia em geral, cooptada pelo Catete, amplificou de tal modo o terror comunista que justificou ao Estado o uso da força para extirpar este mal quando os integralistas, base de apoio do governo, forjaram o Plano Cohen, suposta tentativa dos comunistas, com apoio soviético, para a dominação do país. Em 30/09/1935 o programa de rádio A Hora do Brasil – instituído pelo DIP – divulgou trechos selecionados do fictício plano, depois repercutido pela imprensa e que culminou com a aprovação do estado de guerra pelo Congresso, dando poderes especiais para Vargas combater o comunismo (NETO, Lira, 2012, p.304/6). A partir de então, os jornais foram completamente subjulgados aos interesses da ditadura. Simplesmente reproduziam textos vindos do DIP. Em caso de discordância, além da simples censura, o jornal poderia perder isenções fiscais para a compra de papel, tornando-se inviável economicamente. No plano internacional o governo se valia da pressão econômica para corromper órgãos da imprensa estrangeira.

Propaganda e Estado Novo Apenas nos dois primeiros anos do Estado Novo, de 1937 a 1939, o serviço de divul- gação do governo imprimiu e distribuiu retratos, cartões postais e pôsteres de Vargas, além de um total de 45 livros doutrinários, com tiragens médias de 50 mil exemplares cada. Em 1938, saíram pela editora José Olympio os cinco volumes em capa dura de A nova política do Brasil, reunião de discursos de Vargas desde a formação da Aliança Liberal e a chegada ao poder, em 1930. A propaganda governamental unificava o discurso em torno de premissas básicas: patriotismo; responsabilidade financeira; modernização da máquina pública e; combate às injustiças sociais. Para forjar a ideia de identidade nacio- nal, o DIP aproveitou a política oficial de interiorização do país, iniciada em 1940, e que incentivou a migração interna com criação de colônias agrícolas, construção de estradas e estímulo à agropecuária, conhecida como Marcha para o Oeste, para retomar o mito do bandeirante. Os desbravadores intrépidos mitificados pelos paulistas na Revolução de 1932, contra o governo Vargas, foram transformados em construtores da unidade brasi- leira pelo DIP em favor de Vargas. A percepção da importância de construção de imagem do presidente Vargas era digna de um consultor de marketing político contemporâneo:

É preciso não esquecer que o espírito popular reage negativamente diante das situações e espetáculos que pela repetição, pela continuidade, acabam dando a sensação de monotonia, de cansaço, de envelhecimento. A necessidade de mudar, de ver caras e coisas diferentes, ou que pareçam diferentes, não ocorre só na vida individual (NETO, Lira, 2012, p.451).

Este tino de infotretenimento que Getúlio Vargas passava a entender, no sentido de tornar a propaganda mais dinâmica e atraente, deixando de lado a enfadonha burocracia estatal e buscando criar situações que reverberassem socialmente, alçou o DIP ao status de Ministério, subordinado diretamente à Presidência da República e expandiu consideravelmente o controle do Estado sobre as comunicações, ao contar com cinco

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Aryovaldo de Castro Azevedo Junior • Fabio Caim Viana divisões específicas: Divulgação; Radiodifusão; Cinema e Teatro; Turismo e; Imprensa. Um sexto departamento (Serviços Gerais) movimentava um orçamento de verbas secretas, destinado a subornar jornalistas, escritores, artistas, fotógrafos e intelectuais cooptados pelo regime. O controle de informação estava ficando mais complexo, ampliando a área de ação na construção da imagem do Estado Novo. Com a iminência da Segunda Guerra Mundial e sob influência do governo dos EUA e sua política de pan-americanismo, uma extensa matéria da revista Time (12/08/1940) fez um quadro realista do regime de Getúlio Vargas falando de seu caráter autocrático, mas com clara preocupação em defender os interesses do Brasil. Indicava que o país não almejava ampliar seus territórios, mas necessitava de proteção e investimento estrangeiro para se desenvolver. Destacava semelhanças entre o New Deal de Roosevelt e os objetivos sociais do Estado Novo. E finalizava com a conclusão de que o Brasil precisava dos EUA como os EUA precisavam do Brasil para defender o Atlântico Sul (NETO, Lira, 2012, p.380). Em Agosto de 1941 Walt Disney veio ao Brasil para produzir a personagem Zé Carioca, numa clara intenção de levar a política de “boa vizinhança” dos americanos ao eixo sul do continente. Também, tornou-se comum a presença de astros e estrelas de Hollywood para produzir ou lançar filmes nos países aliados, levando consigo o american way of life (NETO, Lira, 2012, p.397). Em Janeiro de 1942, na III Conferência Extraordinária dos Ministros das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas o Brasil aderiu à proposta de pan-americanismo. Com isto, o país assumiu sua posição ao lado dos EUA, colhendo benefícios militares e econômicos. Em contrapartida, torna- se inimigo dos países do Eixo, que passam a afundar navios comerciais destinados ao país, o que culmina com a declaração de guerra do Brasil e seu ingresso ao lado dos países Aliados depois de uma verdadeira comoção nacional com o afundamento de navios brasileiros próximo à costa, o que demonstrava a vulnerabilidade do país em se defender e a dependência do apoio norte-americano, que culminaria na instalação da base aérea de Parnamirim/RN (NETO, Lira, 2012, p.404/5). Com a guerra se encaminhando para a vitória dos Aliados, a partir de 1944 Getúlio Vargas passa a estimular um eventual apoio à continuidade de seu governo. Coube ao DIP desenvolver materiais variados que contribuíram para a construção da iconografia que acompanhava o Pai dos Pobres:

a) Palestras gravadas em discos (veiculadas em rádio), com ênfase na necessidade da ordem, realizações do Estado Novo, combate à demagogia e apelos patrióticos; b) Filmes nacionais sob o titulo “O que o presidente realiza”, para divulgar o país antes, durante e o legado de Vargas; c) Folhetos para distribuição popular com o titulo “Em louvor de nossa Constituição” escrito em linguagem simples / leiga, mostrando sua importância; d) Cartazes com objetivos laudatórios (NETO, Lira, 2012, p.458/9).

Porém, o Estado Novo estava com os seus dias contados, não sendo suficientes os esforços olvidados neste final de governo para constituir um apoio significativo à permanência do ditador. Em contrapartida, solidificava-se a imagem de um líder que pavimentou o caminho do Brasil rumo ao desenvolvimento e que ressurgiu com força nas eleições de 1950, quando Getúlio Vargas voltou ao poder por meio do voto popular.

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CONCLUSÃO Embora esteja bastante associada à construção e difusão da ideologia nazista, a propaganda teve forte impulso na primeira metade do século passado com o apare- lhamento do Estado realizada pelo governo norte-americano, que buscava difundir o american way of life para dentro de suas fronteiras e, posteriormente, para o restante do planeta. O nazismo, em decorrência de facilidades administrativas características das autocracias, teve mais opções e amplitude para implementar seu uso. No caso brasilei- ro, isto é notório no período do Estado Novo de Vargas. O uso integrado do que hoje chamamos de ferramentas de comunicação de marketing para a construção de marcas governamentais, ou transmissão de ideologias teve início neste período citado acima, com o uso de meios de comunicação de massa que foram evoluindo com o tempo. Comum as três propostas ideológicas dos governos citados há o desenvolvimento de um conceito, que talvez se possa identificar como um conceito criativo-ideológico que seriam: american way of life (EUA); Estado Novo (Brasil) e Superioridade do povo alemão (Alemanha). A centralidade destes conceitos na construção estratégica de identidades e imagens de marca justifica e consolida a relação com a Comunicação Integrada de Marketing, já que uma ferramenta é capaz de impulsionar por sinergia as interpretações da outra ferramenta, desde que elas estejam divulgando o mesmo conceito, com as devidas adequações às suas linguagens. Sendo assim, mediantes os exemplos trabalhados, identifica-se que no cenário atual, com o incremento das tecnologias digitais e diversidade de medias, torna-se ainda mais necessário um planejamento integrado para que os conteúdos sejam unificados em todas as plataformas midiáticas, possibilitando aos governos a conquista dos corações e mentes da população para a implementação das políticas a que se propõe. Como fizeram de modo eficiente os governos de Roosevelt, Hitler e Vargas.

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7138 A representação da homossexualidade na teledramaturgia na década de 1970 The representation of homosexuality in teledramaturgy in the 1970s

G u i l h e rm e M o r e i ra F e r n a n d e s 1

Resumo: Este artigo apresenta a homossexualidade retratada nas telenovelas na década de 1970 da Rede Globo, principal produtora de telenovelas no Brasil. Partimos de uma contextualização história sobre o papel da telenovela durante a referida década, a ação da censura, e como a homossexualidade foi vivenciada. Na sequência realizamos estudo exploratório das seguintes tramas: “Assim na Terra como no Céu”, “O Rebu”, “O Grito”, “O Astro”, “Dancin’Days”, “Marron Glacé” e “Os Gigantes”, apresentando seus personagens homossexuais. Concluímos que a representação da homossexualidade, embora não consonante com os preceitos sociais da década, representou avanços temáticos, especialmente pela inclusão de dois protagonistas com orientação homossexual. Palavras-Chave: Homossexualidade. Telenovela. Rede Globo. 1970.

Abstract: This paper presents homosexuality represented in telenovelas in the 1970s Rede Globo, the largest producer of telenovelas in Brazil. We start from a background story about the role of the telenovela during that decade, the action of censorship, and how homosexuality was experienced. Following conducted exploratory study of the following screens: “Assim na terra como no céu”, “O Rebu”, “O Grito”, “O Astro”, “Dancin’Days”, “Marron Glacé” and “Os Gigantes”, with its gay characters. We conclude that the representation of homosexuality, although not in line with the social teachings of the decade, represented thematic developments, especially by the inclusion of two protagonists with a homosexual orientation. Keywords: Homosexuality. Telenovela. Rede Globo. 1970.

INTRODUÇÃO DÉCADA DE 1970 é conhecida como a década de ouro da teledramaturgia Brasileira, marcada por sua fase de modernização, que teve início a partir da veiculação de A“Beto Rockfeller”, de Bráulio Pedroso, pela TV Tupi de São Paulo, em 1968. No âmbito da Rede Globo, foco de nossas análises, a modernização coincide com a saída da cubana Glória Magadan da chefia de teledramaturgia da emissora e o início da era Daniel Filho. Os pontapés iniciais foram dados pelo casal Dias Gomes e Janete Clair.

1. Doutorando em Comunicação e Cultura pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor substituto da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: [email protected]

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7139 A representação da homossexualidade na teledramaturgia na década de 1970 Guilherme Moreira Fernandes

Ele, no horário das 22h com “Verão Vermelho” (1969) e ela, às 20h, com “Véu de Noiva” (1969), a novela verdade, como refletia seu slogan. A partir deste momento, o Brasil passou a ser o cenário dos acontecimentos, o que possibilitou um maior sentimento de projeção/identificação dos telespectadores, mesmo em época de forte censura às diver- sões públicas. Contudo, mesmo com a ação da DCDP (Divisão de Censura às Diversões Públicas) importantes representações sobre a identidade homossexual foram mostradas em telenovelas e seriados da Rede Globo.

A TELENOVELA, A CENSURA E A DÉCADA DE 1970 A historiografia da telenovela brasileira revela que as tramas mais importantes para o desenvolvimento e consolidação do gênero telenovela foi representada na década de 1970, a grande maioria com a assinatura de Janete Clair. Kehl (2005) aponta a existência de duas décadas nos anos 1970, sendo que a primeira começou com a promulgação do Ato Institucional nº 5, o AI-5, 1968, coincidentemente o ano que marca o início da modernização da telenovela brasileira. O AI-5 foi responsável por fechar o congresso nacional e junto com a Lei de Segurança Nacional instituía a censura à imprensa. A outra década apontada por Kelh diz respeito tanto a ascensão da televisão como principal meio de comunicação, com também ao advento de uma contracultura com modificações no comportamento, costumes e modos de vida, especialmente dos jovens de classe média urbana e universitária, como ressalta a psicanalista. A respeito da ascensão da televisão, Hamburger (2005) argumenta que apesar do veículo ter sido inaugurado oficialmente em 1950, seus primeiros 20 anos foram inci- pientes, já nos anos 1970 “sob censura e contando com infraestrutura técnica fornecida pelo regime militar, a televisão se viabiliza como atividade lucrativa, umbilicalmente ligada ao desenvolvimento de ramos econômicos relacionados, como a publicidade e a pesquisa de mercado, e de mercado consumidor forte” (Hamburger, 2005, p. 47). A pesquisadora ainda explica que a teleficção se consolidou como carro-chefe de uma indústria cultural com características próprias. Sacramento (2012b) também aponta o papel do regime militar frente à televisão, apresentando que se por um lado a TV se beneficiou do desenvolvimento tecno-industrial (a criação da Embratel em 1975, a Tv em Cores em 1973, a redução do preço do aparelho receptor, etc), por outro ela sofreu imposição de criar uma nova imagem para o brasileiro: “La orientación de la televisión debería fortalecer la moral conservadora hegemónica: la consolidación de la imagen idílica de una sociedad basada en los valores cristianos, adictos a la familia, civilizados y modernos, aboliendo el ‘bajo nivel’ que había dominado las estaciones” (Sacramento, 2012, p. 59). Mesmo com essas “orientações” podemos perceber alguns avanços temáticos, especialmente no universo da (homo)sexualididade, reproduzidos via ficção seriada. Hamburger (2005) e Lopes (2009) apontam a telenovela (a partir de 1970) como respon- sável por narrar a nação e apresentar ao brasileiro desterritorializado (reflexo do êxito rural e da migração nordestina para o sudeste) uma imagem glorificada, o que se traduz no processo de identificação e projeção identitária, para uma realidade menos crua. Já Barbosa (2013, p. 328) considera o telejornalismo como o responsável pelo projeto de integração nacional: “será o jornalismo que desempenhará papel-chave na construção da lógica simbólica de um país uno e indivisível”. Entendendo o telejornal como o

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7140 A representação da homossexualidade na teledramaturgia na década de 1970 Guilherme Moreira Fernandes responsável por informar a população, é a telenovela que vai transportá-lo para uma realidade muitas vezes não palpável, como argumenta Ramos (1986, p. 64) mostrando que os abismos entre as classes sociais são abreviados na telinha. Uma rápida análise sobre as telenovelas exibidas durante a década de 1970 nos mostra que diversos temas “controversos” foram mostrados, mesmo em época de forte censura. No universo da censura é importante ressaltar que a censura a imprensa, agravada com o AI-5 é diferente da censura à telenovela, classificada como diversão pública. A censura às diversões públicas é anterior ao regime militar. A legislação que serviu de base foi promulgada em 19462 (decreto nº 20.493/46), após a queda do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) de Getúlio Vargas. Neste período, não faltaram assuntos que ferissem um ou mais pontos. Dias Gomes, por exemplo, discutiu o celibato, o amor livre e o uso de drogas em “Assim na Terra como no Céu” (1970), já em “Bandeira 2”(1971) o jogo do bicho foi o foco da narrativa, inclusive o personagem de Paulo Gracindo (Tucão) teve forte aceitação entre os banqueiros do bicho. O coronelismo e a corrupção foram uma das tônicas de “O-Bem Amado” (1973). “Os Gigantes” (1979) de Lauro César Muniz mostrou a eutanásia, discutiu os problemas causados pelas multinacionais e exibiu cenas de sincretismo religioso. Isso sem falar na homossexualidade, apresentada em 07 telenovelas exibidas na década.

A (HOMO)SEXUALIDADE E A DÉCADA DE 1970 Se compararmos com as décadas anteriores, conhecida como “anos dourados”, percebemos que ao menos para uma parcela da população (sobretudo jovens de classe média urbana e universitários) a sexualidade deixou de ser um tabu. A década de 1970 ficou conhecida como o período de “liberação sexual”, como relembra Kehl (2005). Sendo a industrialização dos anticoncepcionais um forte motor.

Beneficiou-nos, mas não deixou de cobrar o seu preço. Foi muito bom para as moças da minha geração perder a virgindade sem culpa, fora do casamento. Foi bom poder diversi- ficar a experiência sexual, ter parceiros diferentes, aprender, perder preconceitos, perder o medo e, para as mulheres, saber que o primeiro homem não tem de ser necessariamente o definitivo. Mas tentamos abolir a posse e o ciúme das relações amorosas e com certeza não conseguimos; não reprimíamos a atração que sentíamos pelo amigo que dormia no quarto ao lado [...]. (Kehl, 2005, p. 36).

Embora Kehl não aborda a questão da homossexualidade, sabemos que ela também estava presente nesse processo de liberação sexual, já não precisa ser escondida com clubes e guetos como acontecia nas décadas anteriores. Essa juventude foi a tônica de Dias Gomes na telenovela “Assim na Terra como no Céu”, outro (bom) retrato foi produzido por Antônio Calmon no filme “Nos Embalos de Ipanema”, de 1978; este já trazendo a homossexualidade como destaque. O primeiro estudo científico sobre a homossexualidade no Brasil foi realizado por José Fábio Barbosa Silva, no final dos anos 1950, tendo como corpus a cidade de São Paulo.

2. Além do decreto 20.493/46, fazem parte da base legal da censura às diversos públicas os decretos 56.510/65 e 61.123/67, além da Lei nº 5.536/68. (ver Fagundes, 1974; especialmente o capítulo XV).

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7141 A representação da homossexualidade na teledramaturgia na década de 1970 Guilherme Moreira Fernandes

Defendida como monografia de especialização, sob a orientação de Florestan Fernandes, o trabalho só foi publicado em 2005. As análises de Silva, sobre a homossexualidade em São Paulo, nos chama a atenção por descrever características da sociabilidade homosse- xual na década de 1950, bem diferente do que encontramos em etnografias realizadas nas décadas seguintes. De acordo com Silva:

Uma observação ligeira da visibilidade do homossexual poderia indicar a existência de um número reduzido de indivíduos isolados que manifestam comportamentos sociais tidos como homossexuais. Essas observações casuais não são, no entanto, suficientes para tornar visível toda a complexidade do grupo minoritário, em que a maior parte dos membros não evidencia características de comportamento compatíveis com o estereótipo [efeminado] majoritário da figura homossexual. (Silva, 2005, p. 76).

A razão diagnosticada por Silva é justamente a marginalidade social do grupo. Desta forma, a grande maioria dos homossexuais apresentavam comportamentos sociais tidos como masculino e a vivência da homossexualidade era restrita a alguns pontos da cidade, em especial o entorno da Praça da República. Silva ainda aponta que na maior parte do ano o grupo se restringe a guetos, contudo há uma visibilidade dos homossexuais em épocas como o carnaval, o baile do Teatro João Caetano e do Recreio, no Rio de Janeiro – “é a partir da observação dessas situações isoladas que a maioria começa a perceber a importância numérica e atuante do grupo minoritária” (Silva, 2005, p. 77). Foi a partir da década de 1970 que os homossexuais começaram a sair do gueto e a adquirir outros espaços de sociabilidade e visibilidade em cenários midiáticos, conforme atesta MacRae (2005), em texto originalmente publicado em 1983.

Talvez tenha sido no início da década de 1970, com a volta da Europa de Caetano Veloso e ano ênfase que os antigos tropicalistas passaram a dar à androgenia, que o comportamento homossexual começou a sair dos recintos fechados para tornar-se público. Surgiram depois os Dzi Croquetes e o conjunto Secos e Molhados, com o cantor Ney Matogrosso borrando as linhas demarcatórias entre os sexos. Somem-se a isso notícias vindas da Europa e dos Estados Unidos falando sobre a “revolução gay” que estaria acontecendo nesses lugares. Em fevereiro de 1976, começou a sair no Última Hora de São Paulo uma coluna editada por Celso Curi, a “Coluna do Meio”, com informações, fofocas e piadas sobre o mundo gay, além de um “correio elegante”. [...]. O grande marco mesmo foi a aparecimento do jornal Lampião, cujo número experimental circulou pela primeira vez em abril de 1978. (MacRae, 2005, p. 293-294).

Além dos aspectos mencionados por MacRae, temos outros indícios para mostrar a importância da homossexualidade no decorrer da década de 1970. No universo cinematográfico, recorremos a pesquisa de Moreno (2001) que encontrou 127 títulos de filmes brasileiros que trazem personagens homossexuais, em um levantamento concluído em 1996. Os títulos foram assim divididos por décadas: 1920 (1 título), 1930 (nenhum), 1940 (três títulos), 1950 (três títulos), 1960 (treze títulos), 1970 (sessenta e um títulos), 1980 (quarenta e quatro títulos), 1990 (até 1996, três títulos). Deste levantamento foram excluídos documentários (inclusive os de longa-metragem), curtas-metragens e filmes de sexo explícito. O levantamento nos mostra que mais de 48% dos filmes

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7142 A representação da homossexualidade na teledramaturgia na década de 1970 Guilherme Moreira Fernandes que apresentam personagens homossexuais foram produzidos na década de 1970. Algo similar também pôde ser verificado analisando o teatro. Em matéria publicada no jornal “Lampião”, como recorda Lima (1983), deparamos com a seguinte manchete “O teatro é uma arte gay?” – “perguntou, menos com surpresa e mais com satisfação, o título de uma longa matéria do “Lampião” [...] ao término de um semestre em que 11 dos 25 espetáculos teatrais exibidos no eixo Rio-São Paulo apoiaram na temática homossexual” (Lima, 1983, p. 129).

A produção nacional de textos homoeróticos para o teatro é igualmente expressiva, com tendência a ser ampliada, não obstante de qualidade discutível. Alguns, na verdade, são de baixo nível, grotescos e ridículos. [...]. Não falta, portanto, produções nem quem a con- suma até com voracidade. As peças homossexuais lotam os teatros e o público, que, anos 60, se manifestou selvagem na repulsa ao beijo que Leonardo Vilar deu na boca de Miguel Carrano, em “Panorama Visto da Ponte”, é o mesmo que, hoje, acompanha com tensão lúbrica as simulações de sexo explícito entre os que protagonizam papéis gays e lésbicas. “Muitos pares de homens e mulheres entram no teatro bem comportadinho, veem a peça e saem em meio às mais ternas manifestações de carinho. A temática homoerótica ajuda muita gente a assumir a homossexualidade” – comentou, irônico, Pedro Paulo Cava, inteligente diretor de espetáculos teatrais em Belo Horizonte. (Lima, 1983, p. 129-130).

Música, cinema e teatro também são diversões públicas, logo precisavam passar pelo crivo da censura. Contudo, a lógica das produções são diferentes das veiculadas pela televisão, que adentra, sem pedir licença, na casa das pessoas. Sendo assim, as cenas explícitas de afeto homossexual, veiculadas pelo cinema e pelo teatro, não tiveram eco na telinha. Contudo, importantes papéis foram direcionados aos homossexuais, foco de nossa análise neste texto.

A HOMOSSEXUALIDADE NAS TELENOVELAS Nos anos 1970 homossexuais começaram a habitar o universo televisivo com maior frequência, porém sem grandes destaques na narrativa afetiva e erótica. Neste momento, sob forte pressão da Censura Federal, havia muita dubialidade e muitos homossexuais sequer foram percebidos. Os programas humorísticos também passaram a realizar caricaturas de homossexuais conduzidas pelas estrelas principais, como as diversas paródias em “Os Trapalhões” e personagens fixos como “Painho” de Chico Anysio e “Capitão Gay” de Jô Soares. Se nos programas humorísticos a situação ficava mais clara, até porque, em alguns momentos, foi ridicularizada, o mesmo não aconteceu com as telenovelas. Como já escrevemos anteriormente (Fernandes e Brandão, 2013) na década de 1960 três telepeças apresentaram personagens homossexuais. “Calúnia” e “Entre Quatro Paredes”, veiculadas pelo TV de Vanguarda da TV Tupi de São Paulo e “O caso Maurizius”, exibido no Grande Teatro Tupi do Rio de Janeiro. Contudo, a repercussão foi praticamente nula. A partir dos anos 2000, com a polêmica envolvendo a beijo homossexual não veiculado (embora gravado) na telenovela “América” de Glória Perez, muito se falou que o primeiro beijo homossexual na televisão fora protagonizado por Vida Alves e Geórgia Gomide no teleteatro “Calúnia”, admitido pelas atrizes e registrado nas biografias lançadas pela Imprensa Oficial de São Paulo.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7143 A representação da homossexualidade na teledramaturgia na década de 1970 Guilherme Moreira Fernandes

No âmbito das telenovelas, o primeiro registro que encontramos foi em “Assim na Terra como no Céu”, de Dias Gomes, exibida às 22h de 20 de julho de 1970 a 23 de março de 1971, totalizando 212 capítulos. O personagem homossexual em questão é carnavalesco e costureiro Rodolfo Augusto, o Gugu, interpretado por Ary Fontoura. A narrativa foi centrada da juventude de Ipanema, como registra o autor da trama

Uma crônica de um certo estilo de vida de um determinado grupamento humano da Zona Sul carioca – República de Ipanema, Território Livre do Leblon, Selva de Copacabana e adja- cências -, com sua fauna conhecida de paqueras, vigaristas, boas-vidas, garotas-de-Ipanema e homossexuais. (GOMES, 1970, p.78 apud PIQUEIRA, 2010, p. 11) Aparentemente Gugu foi inspirado no carnavalesco carioca Clóvis Bornay, idealiza- dor do baile de gala com concurso de fantasia no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. O principal hobby de Gugu era criar fantasias para o tal concurso. Em uma de suas criações, denominada de “Mistério Amazonense” trouxe trezentas vitórias-régias, duas cobras vivas e duas mil penas de pavão e acabou perdendo o concurso para Evandro de Castro Lima3, que além de ter sido um grande carnavalesco, era o principal rival de Bornay. Inclusive, Bornay em 1970 era carnavalesco da Portela e ganhou o carnaval do Rio de Janeiro com o enredo “Lendas e mistérios da Amazônia”, o mesmo nome da fantasia de Gugu. Bornay era assumidamente homossexual. Sobre Gugu, não podemos ter certeza absoluta, até mesmo porque ele chegou a casar-se com Maria Regina (Vera Ibrahim) uma aspirante a atriz que queria seu lugar ao sol. Acreditamos que o casamento tenha sido de fachada e com fins publicitários4. Na telenovela, Gugu era costureiro e amigo íntimo da fútil Danusa (Heloísa Helena) e foi um dos suspeitos da morte de Nívea (Renata Sorrah). Em nossa pesquisa não encontramos registros concretos da vivência da homos- sexualidade por parte do personagem, embora o ator tenha destacado em entrevista ao projeto Memória Globo (Fernandes, 2012, p. 162) que seu personagem era assumidamente homossexual. A ligação com o carnaval nos faz lembrar da pesquisa de Silva (2005), a respeito da homossexualidade na década de 1950. Embora Dias Gomes tenha inserido a juventude de Ipanema da época, fazendo assim uma trama contemporânea, a única inserção da homossexualidade ficou ligada ao mundo do carnaval, lugar em que ela é mais aceita. No campo estético, podemos afirmar que o personagem era camp, confor- me as observações de Lopes (2002) – “o camp pode ser comparado à fechação, à atitude exagerada de certos homossexuais, ou simplesmente à afetação” (Lopes, 2002, p. 95). Outra presença camp aconteceu na telenovela “O Bofe” (1972) de Bráulio Pedroso. Contudo a mesma não apresentou um personagem homossexual, mas chocou o público com um personagem travestido. O grande ator Ziembinski deu vida à tia Stanislava, que se embriagava de xarope e sonha com um príncipe trapezista. Na telenovela seguinte de Bráulio Pedroso, Ziembinski viveria um importante personagem homossexual, o primeiro inserido no núcleo protagonista. Trata-se de “O Rebu”, uma ousada telenovela policial exibida às 22h de 04 de novembro de 1974 a 11 de abril de 1975, totalizando 112 capítulos. Além do personagem de Ziembinski, o Corand Mahler, a telenovela também inovou ao trazer um casal de lésbicas.

3. Embora a Rede Globo não possua mais os scripts de “Assim na terra como no céu” em 1971 a editora Burguera lançou uma adaptação da telenovela, realizada por Noberto Natalício, em livro de bolso. 4. Registra-se que Bornay casou-se com sua empregada com a finalidade de doar seus bens.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7144 A representação da homossexualidade na teledramaturgia na década de 1970 Guilherme Moreira Fernandes

Mahler é um importante banqueiro que organiza uma gesta em sua mansão, na Floresta da Tijuca, para recepcionar uma princesa italiana. Durante a festa acontece um crime. Logo na primeira cena do folhetim (inspirada no filme “Crepúsculo dos Deu- ses” de Billy Wilder) aparece um corpo boiando na piscina. A telenovela foi narrada em três tempos. O período da festa, o dia seguinte com as investigações policiais e a lembrança dos personagens em flashback. Mahler é um solitário que vive em função de seus negócios. Em um jogo de polo conhece o jovem Cauê (Buza Ferraz) que sofre um acidente. Mahler convida Cauê para se recuperar do acidente em sua mansão. O que era para ser passageiro, acabou durando anos. Mahler pretendia fazer de Cauê seu único herdeiro. A sinopse da trama e as matérias jornalísticas, classificavam Cauê como um filho adotivo de Mahler, mas é possível fazermos uma leitura homossexual da relação dos dois. Há indícios no roteiro de que Mahler era claramente homossexual, contudo o mesmo não podemos afirmar em relação a Cauê, que sabia das intenções de Mahler. O velho, com a intenção de manter Cauê por perto, tramou um casamento do garoto com a princesa italiana, porém Silva (Bete Mendes) atrapalhou seus planos. Sílvia, esperta como Mahler, também sabia manipular o garoto. Se até o início da festa Cauê havia aceitado a proposta de Mahler, nas horas seguintes foram fundamentais para a modificação da percepção do garoto (e não somente dele, todos os participantes se modificaram durante o período em que estiveram na festa). No 14º capítulo, em cena de flashback, o telespectador tem a certeza da dependência de Mahler em relação a Cauê: “eu era um homem à espera da morte, um homem sem a coragem da sua vida pessoal... eu vivia apenas para os meus negócios... agora, quando eu termino o meu trabalho há uma razão para voltar a esta casa... há uma razão para minha vida continuar” (O Rebu apud Fernandes, 2012, p. 229). A imprensa não se curvou em retratar o relacionamento de Mahler e Cauê. Separemos três fragmentos. O primeiro de Bittencourt, colunista da revista Amiga, o segundo de Artur da Távola, colunista do jornal O Globo e também da revista Amiga e o terceiro da crítica de TV, Helena Silveira, do jornal Folha de S. Paulo.

O relacionamento do velho Mahler e o personagem Cauê é chocante. Inclusive, não existe – a gente nota – nenhuma preocupação do autor da novela O Rebu em disfarçar esse rela- cionamento amoroso. Novela é cultura? (Bittencourt, 23/04/1975, p. 27)

Homossexualismo latente ou óbvio? Carne gritando pelo filho que não teve? Carência de juventude gasta na tragédia da guerra e na compensação da frustração existencial através dos negócios? Homem que atinge o pretendido e só então se pergunta por que e para quê? Qual a resposta? Não sei e nem interessa. Cada um dê a sua. Sei que é justamente nas perguntas possíveis a partir de um personagem assim concebido e de um desempenho magistral, eu disse magistral, de Ziembinski que podemos sugerir tantas facetas, todas variadas e contraditórias como o ser humano. Posso afirmar, temerariamente: Ziembinski é um velho ator. Já fez tudo na Polônia e aqui. Mas seguramente poucos personagens levam a um nível tão profundo, sutil, transcendente, extra texto e com tantas mensagens para- lelas como este velho Mahler. Quem acompanhou a novela pode entender e dimensionar a grandeza e a profundidade de seu trabalho. Maduro, profundo, implosivo: arte maior! (Távola, 10/04/1975, p. 36).

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7145 A representação da homossexualidade na teledramaturgia na década de 1970 Guilherme Moreira Fernandes

No primeiro exemplo, não podemos de deixar de notar uma série de preconceitos destilados pelo colunista, que chega até a questionar se a novela é cultura por exibir um romance homossexual. Triste é lembrar que críticas semelhantes foram postadas na semana em que redigimos este texto, motivadas por um beijo trocado entre as atrizes Fernanda Montenegro e Nathália Timberg no primeiro capítulo da telenovela “Babilônia” (2015). Távola apresenta uma série de característica de Mahler e argumenta a não possibilidade de encontrar uma simples definição. De certa forma, não é necessário uma única resposta, pois eles se complementam. A homossexualidade de Mahler era latente e óbvia sim! Mesmo que não demonstrada em gestos e palavras. Cauê representava mais do que o filho que ele não teve. Mas que um simples namorado, caso queiram dar essa interpretação. Cauê simbolizava a juventude de Mahler. A liberdade que lhe foi tirada quando teve que deixar Viena às pressas. As dificuldades nos anos iniciais de sua vida no Rio de Janeiro e a forma como conquistou seu império. A vida que Mahler não teve seria transposta a Cauê. Contudo, condições se faziam necessário. Entre eles: lealdade e fidelidade. Já apontamos em outro momento, mas gostaríamos de frisar novamente que a relação Mahler-Cauê-Sílvia representam os arquétipos amorosos. Há um pouco de Tristão e Isolda, Abelardo e Heloísa, Romeu e Julieta e Cinderela nesse conturbado relacionamento.

Difícil, no capítulo da interpretação estabelecer os que levam os louros do melhor desem- penho. Muito difícil. Em muitas cenas, parece que o velho Zimba ultrapassou-se. Não é possível ir além do que ele foi: humanamente falho, mau, pusilânime, deplorável como um herói de Fernando Pessoa assumindo sua sujeira, seu mau caráter e, não obstante, ponto lágrimas nos olhos dos telespectadores, quando desnuda sua mórbida sensibilidade ferida. (Silveira, 1º/03/1975, p. 36).

Silveira foi profunda ao caracterizar Mahler. Conseguiu mostrar que apesar de toda sua falha de caráter, associada ao crime que comentera, ele foi sensível e despertou compaixão no público. A referência ao herói de Fernando Pessoa não foi em vão. O herói de Fernando Pessoa é atemporal, abstrato, mítico (que não existe, mas se supõe). Ele é uma representação carnal do mito. É mais humano, real, mas sem perder a grandiosidade de herói. É sedutor e sofredor. É mais próximo das vivências comuns a toda a sociedade e mostra comportamentos e ações que criam novos caminhos que o vão desviando das outras personagens e dos valores delas. O adjetivo “pusilânime”, utilizado pela crítica, por vezes é utilizado para denominar homossexuais com características efeminadas. Como não era este o caso de Mahler, possivelmente Silveira valeu-se do significa literal, de covarde. O herói se aproximando das vivências humanas (covardia, sujeira, mau caráter, etc.). Foi Mahler quem cometeu o crime. Matou Sílvia por ciúme de seu relacionamento com Cauê, um crime passional. Contudo, essa não foi a única morte apresentada na narrativa. No último capítulo, Cauê também morre, da mesma forma que Sílvia. Cauê vai até a piscina na mansão e vê o fantasma de Sílvia vestida de noiva, pula na piscina e morre afogado. Mahler assiste a tudo. Outros importantes personagens também participaram deste rebu. Queremos des- tacar Roberta (Regina Viana) e Glorinha (Isabel Ribeiro). Pelo enredo, percebemos que Roberta é uma lésbica com ideias feministas. Mantém um casamento de aparência com o

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7146 A representação da homossexualidade na teledramaturgia na década de 1970 Guilherme Moreira Fernandes médico David Godoy (Felipe Wagner). Ao que tudo indica, Roberta e David mantinham um relacionamento aberto. Ele sabia das aventuras homossexuais dela e ela sabia que o marida mantinha relações com diversas mulheres. O processo de conquista de Roberta era baseado em argumentos pseudo-feminista, desvalorizando os homens e dizendo que uma mulher somente poderia ser feliz ao lado de outra. Sílvia, inclusive, foi uma das amantes de Roberta. Ao perceber a decepção de Glorinha em relação a Álvaro (Mauro Mendonça), este apaixonado por Sílvia, Roberta se aproxima e no desenrolar da festa se tornam amigas e confidentes. Participam, inclusive, do roubo da proposta de Mahler para a compra do Banco Reunido. Um plano de Glorinha para vingar-se de Álvaro. No dia seguinte, Glorinha, ainda magoada com o marido, vai dormir na casa de Roberta. Inicia-se, então, um romance, o único happy end da trama. A última cena das duas no folhetim de Pedroso apresenta uma metáfora de um beijo, selado quando as duas partem para uma viagem de Iate pela costa brasileira5. “O Grito”, de Jorge Andrade, também exibido às 22h, no período de 27 de outubro de 1975 a 30 de abril de 1976 trouxe Agenor (Rubens de Falco) um complexo e huma- nizado personagem. A telenovela valeu-se do tempo diegético e seus 125 capítulos são na verdade apenas seis dias, estratégia similar a utilizada por Pedroso em “O Rebu”. Contudo, em “O Grito”, o público só descobriu essa questão no último capítulo. A história era centrada no edifício “Paraíso”, vizinho ao elevado Costa e Silva, o famoso “minhocão” de São Paulo. Neste prédio moraram famílias de diversas classes sociais. Agenor é filho de Sebastião (Castro Gonzaga) e Branca (Ida Gomes) e viviam no interior. Sebastião deseja retornar à vida na fazenda, mas antes precisava “encaminhar” o filho, já com 40 anos. A grande preocupação de Sebastião é que o filho já estava atingindo a maturidade e nunca havia frequenta uma “zona” de meretrício e tão pouco havia se envolvido com qualquer mulher. Sebastião, então, vende algumas propriedades e compra boa parte de um banco e faz de seu filho um dos diretores. Junto com o filho e a esposa vão morar em São Paulo. Durante o trabalho Agenor se vestia de maneira impecável e durante a noite saía com roupas extravagantes e vagava pelas ruas Ipi- ranga e São João, na região central (República) da capital, com alta concentração de homossexuais. Anzuategui (2012) informa que Agenor utilizava camisa justa com uma echarpe de plumas. Não é possível, contudo, afirmar que Agenor era transgênero ou crossdresser, pois certamente o rapaz não utilizava roupas absolutamente femininas. O roteiro mostra o personagem como voyeur e logo no primeiro momento da narrativa fixa os olhos no romance de Marina (Françoise Fourton) e Rogério (João Paulo Adour) e o amor alheio lhe causava frustração. Anzuategui (2012) também tece comparações entre a personalidade de Agenor e do próprio Jorge Andrade, com base no romance autobiográfico “Labirinto”, por isso fica no ar a questão se realmente Agenor foi ou não um homossexual. Sebastião, ainda com o intuito de arrumar uma mulher para o filho, convence Kátia (Yoná Magalhães) a se aproximar do rapaz. Kátia também não era uma mulher convencional, era divorciada, exuberante, tida por alguns como amoral e vivia o conflito da tragédia do incêndio no edifício “Joelma”, já que era uma das sobreviventes.

5. Outras informações sobre o romance entre Glorinha e Roberta estão no artigo que publiquei recentemente. (Ver: Fernandes, 2014a).

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7147 A representação da homossexualidade na teledramaturgia na década de 1970 Guilherme Moreira Fernandes

O fato de ambos serem diferentes criou uma empatia. Kátia e Agenor tiveram uma noite de amor e no dia seguinte ele comunicou aos pais que iria se casar na próxima semana. Fica a dúvida, proposital do roteiro, se o casamento seria por conveniência e para dar uma resposta à sociedade ou se realmente estavam apaixonados. Em sua análise da telenovela “O Grito”, Anzuategui utiliza o termo “androgenia” para caracterizar Agenor. Maria Helena Dutra, crítica do Jornal do Brasil, assim resumiu o final da telenovela, no tocante ao personagem de Rubens de Falco

ao seu lado caminhava um homossexual latente – esperamos que seja esta a definição correta porque o problema era tratado com vitoriana sutileza – vivido por Rubens de Falco, que mais parecia sofrer de dispneia do que qualquer outra coisa e que teve seu drama de 40 anos resolvido em apenas uma noite de amor (DUTRA, 1976, apud FERNANDES, 2012, p. 171)

A homossexualidade de Agenor se expressava mais pelos diálogos entre Branca e Sebastião do que nas falas de Agenor. É importante ressaltar que o personagem se trancava no quarto, se mostrava solitário e seu consolo eram as horas que passava ao telefone com a atendente do Centro de Valorização da Vida (CVV), contudo o teor das conversas não eram exibidas na trama, portanto não sabemos se o personagem se referia a uma possível crise de identidade de orientação sexual. Até o momento, todas as três narrativas que trouxemos neste trabalho foram exibidas às 22h, um motivo para a censura aceitar tais personagens. A pesquisa de Marcelino (2004) mostra que a censura não permitiu personagens efeminados em telenovelas das 20h, como “Pecado Capital” (1975) de Janete Clair, e a totalmente censurada “Roque Santeiro” (1975) de Dias Gomes. No horário das 20h, o primeiro homossexual que encontramos foi o Henry (José Luís Rodi) da telenovela “O Astro” de Janete Clair e exibida de 6 de dezembro de 1977 a 8 de julho de 1978. Henry era o cabeleireiro de Clô (Thereza Rachel) e, ao que tudo indica, era apaixonado por Felipe (Edwin Luisi). Dado momento da narrativa, Clô, mesmo casada com Salomão Hayala (Dionísio Azevedo), tinha um caso com Felipe. Felipe, junto com Henry e os amigos Mara Célia (Marília Barbosa), Niltinho (Betinho), e Dado traficavam entorpecentes e faziam pequenos furtos. Não houve na telenovela nenhum diálogo que marcasse a sexualidade de Henry, contudo Arturzinho sempre que implicava com o cabeleireiro o chamava de “marica” e Samir (Rubens de Falco) o denominava de “esse tipo”. Henry esteve envolvido diretamente com a morte de Salomão e foi o responsável por dizer a verdade ao delegado, o que levou Felipe à prisão. Os gestos efeminados e a maneira de vestir nos ajudaram a deduzir a homossexualidade de Henry. O personagem também foi responsável por momentos de comicidade, típicos de programas humorísticos. Em 2011, a Rede Globo produziu um remake de “O Astro” assinado por Alcides Nogueira e Geraldo Carneiro. No remake Felipe (Henri Castelli) é bissexual e se envolve com Henri (João Boldasserini), que não foi tão efeminado com o personagem de Rodi. Outros homossexuais também foram apresentados, como os hilários Clayton (Frank Menezes) e Pablo (Pablo Sanábio). Felipe e Henri, nesta versão, não tiveram participação na morte de Salomão (Daniel Filho), sendo o crime praticado por Clô (Regina Duarte).

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A estética camp retorna ao horário das 20h em “Dancin’Days” de Gilberto Braga exibida entre 10 de julho de 1978 e 27 de janeiro de 1979. Braga deu vida a Everaldo (Renato Pedroso) e iniciou uma série de mordomos gays, ligados à estética camp, nas telenovelas brasileiras. Everaldo era o copeiro de Yolanda Pratini (Joana Fomm) e foi o responsável pelos diversos momentos cômicos da narrativa. Everaldo referia-se a sua patroa com certa divindade, estratégia essa repetida recentemente em “Fina Estampa” (2011) de Aguinaldo Silva na relação entre o mordomo Crô (Marcelo Serrano) e a patroa Tereza Cristina (Christiane Torloni), sendo Crô uma radicalização de Everaldo, como já apontamos em trabalho anterior (Fernandes, 2012 b). A principal diferença entre os dois estava justamente a questão afetiva/sexual. Enquanto na telenovela de Silva vimos que Crô tinha uma vida sexual ativa, nesta trama de Braga o mesmo não aconteceu. Assim como nas telenovelas anteriores, a identidade de orientação sexual não foi discutida e apresentada em nenhum momento. Sabemos que Everaldo era homossexual em virtude de seus gestos, maneiras e forma de falar. O personagem, que aparecia esporadicamente, vai ganhando espaço na trama. Everaldo era um copeiro muito dedicado, sabia como ninguém as regras de etiqueta e se aborrecia quando alguém não as seguia corretamente. Havia trabalhado em casas de famílias importantes, sabia algumas palavras em francês (era neste idioma que ele se referia a Yolanda) e era culto, um profissional exemplar. Por isso, Alberico (Mário Lago), na tentativa de se recuperar financeiramente, decide abrir uma escola para copeiros e contrata Everaldo como um dos instrutores. Everaldo ficou comovido com o convite, mas só aceitou após a permissão de Yolanda. Ficou tudo acertado entre eles, no intervalo entre o almoço e o jantar, Everaldo dava suas aulas aos aspirantes a copeiros. Contudo, como em outros projetos de Alberico, a escola não vai adiante. Imerso em dívidas, ele se vê obrigado a desistir do projeto. Yolanda que se mostrava fria, fútil e calculista, tem verdadeiros momentos de compaixão ao seu funcionário. Uma das cenas mais marcantes entre os dois foi na noite de Natal, em que Yolanda convida Everaldo para participar da ceia com ela e pede ao copeiro que conte novamente o final do filme “A Rainha Cristina”, estrelado por Greta Garbo, a segunda diva de Everaldo. Outra marcante telenovela que apresentou mais um personagem homossexual em papel cômico foi “Marron Glacé” de Cassiano Gabus Mendes, exibida às 19h entre os dias 06 de agosto de 1979 e 1º de março de 1980. A novela-comédia de Gabus Mendes passava-se em um bufê e retratava o cotidiano dos funcionários, entre eles - le grand chef de cuisine – Pierre Lafont (Nestor de Montemar), o homossexual desta história. Pierre Lafont, ou melhor, Joaquim da Silva, como é o seu nome, pela sua aparência e maneira, demonstra ser homossexual. Como já era de se esperar, a sexualidade de Pierre/Joaquim não é debatida na trama e ele, logo ele, não apresenta nenhum par romântico. A presença constante de homossexuais, ligados à estética camp, chamou a atenção do jornalista JNRJ, que escrevia críticas sobre Marron Glacé na coluna “A novela, ontem” do jornal Folha de S. Paulo. Ao se deparar com o cozinheiro da trama de Gabus Mendes, JNRJ escreveu “Ontem, mais um personagem foi apresentado. Trata-se do novo integrante de muitas novelas: o homossexual. Nessa história ele se chama Joaquim, mas só atende por “Pierre”” (JNRJ, 16/08/79, p. 38).

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Exibida entre 20 de agosto de 1979 e 02 de fevereiro de 1980, com 147 capítulos, “Os Gigantes” de Lauro César Muniz foi uma das mais audaciosas e incompreendidas entre as telenovelas brasileiras, e a última que iremos retratar aqui. O enredo de “Os Gigantes” tinha como eixo a figura de Paloma (Dina Sfat). Ao saber da gravidade da doença do seu irmão gêmeo Freddy, Paloma, que era correspondente internacional na Itália, retorna ao Brasil. Ao chegar em Pilar (pequena cidade fluminense) abala a vida dos “amigos” Chico (Francisco Cuoco) e Fernando (Tarcísio Meira), antigos namorados. Fernando é casado com Vânia (Joana Fomm) e Chico noivo de Helena (Vera Fischer). Paloma recebe uma fita (e também livros sobre eutanásia) com gravações de Freddy lamentando o seu estado de saúde e diz que não quer continuar a viver e pede que a irmã desligue os aparelhos que o mantém vivo. Paloma atende o pedido do irmão e comente o crime da Eutanásia. Veridiana (Susana Vieira), sua cunhada, abalada com a morte do marido perde o filho que estava esperando. Algum tempo depois, descobre as gravações de Freddy e acusa Paloma de ter matado o próprio irmão. Inicia, aí, a batalha judicial entre as duas que vai se desenvolver até a última semana do folhetim. Uma das grandes polêmicas do folhetim foi alçar sua protagonista à condição de lésbica/bissexual. A intenção do autor foi a de desenvolver um romance entre Paloma e a jovem veterinária Renata (Lídia Brondi). Tal medida causou desconforto nas atrizes e também no público. Foi então que o Lauro decidiu atenuar a “amizade” entre Paloma e Renata e a relação homossexual ficou apenas em uma troca de anéis. De qualquer forma, foi a primeira vez que tivemos uma protagonista tão livre que se permitia um romance com outra mulher6.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Em meio ao endurecimento do regime militar e a crescente censura (às diversões públicas e também à imprensa) a década de 1970 deixou outras marcas em quem teve a possibilidade de vivenciá-la. Os anos 1970 ficaram marcados nas artes, seja no universo musical, no cinematográfico (mesmo com as críticas à pornochanchada), no teatral e também no televisivo. Prova disse é que as telenovelas produzidas nesta época despertam a curiosidade e motivam remakes. De fato, os estudiosos da mídia que elegeram a telenovela como objeto de estudo são mais prejudicados que os que estudam outras mídias. A grande parte das mesmas não foram preservadas pelas emissoras, ou sofreram com alguns dos incêndios, uma lástima. No âmbito da Rede Globo, ainda achamos algumas perolas, como os scripts originais. Graças ao apoio do projeto Globo Universidade que recebemos no momento em que fizemos nossa dissertação de mestrado (Fernandes, 2012) conseguimos tecer essas considerações. Outro fonte importante para nós que estudamos telenovela, são os escritos jornalísticos, com as publicações especializadas e as de cunho geral, que publicam críticas e resumos. A pesquisa que desenvolvemos na Biblioteca Nacional (Fernandes, 2013) nos permitiram ampliar nossas conclusões e tecer comentários a cerca do processo de recepção. Em nossa tese de doutorado, vamos ampliar ainda mais este processo, percebendo a lógica da censura, tanto no viés dos censores como também na produção.

6. Sobre a telenovela “Os Gigantes” discutimos recentemente a homossexualidade de Paloma. (Ver: Fernandes, 2014b).

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Recuperar a historiografia da década de 1970, no tocante à homossexualidade, nos permite deparar com um mapa. As sete telenovelas globais nos mostra um conjunto variado de representações. Mesmo reconhecendo a importância dessas representações, ao confrontarmos com a realidade do homossexual na década de 70 (e logicamente, base- ando nas etnografias das décadas anteriores) percebemos que ela na verdade representa o homossexual dos anos 1950. A sexualidade dos personagens não foi explorada em nenhuma narrativa. Tivemos a impressão que o homossexual não saiu do armário. Com exceção do happy end entre Glorinha e Roberto, d’O Rebu de Bráulio Pedroso, não vimos outras cenas de afetividade, talvez essa tinha sido uma das intenções de Muniz em “Os Gigantes”, mas o romance entre Paloma e Renata não passou de uma troca de olhares. A fuga da homossexualidade rumo à heterossexualidade compulsiva, foi a tônica de alguns personagens, como o Gugu de “Assim na Terra como no Céu” e do Agenor de “O Grito”. Outros personagens camp, como Pierre (Marron Glacé) e Everaldo (Dancin’Days) se quer cogitaram a hipótese de vivenciar um romance. Algo que poderia ter estado no imaginário de Mahler (O Rebu) e Henry (O Astro), mas, na prática, “never again”. Temos ainda que fazer o registro que a homossexualidade foi tônica de dois episódios do seriado “Malu Mulher” (1979-80), foco de nossos próximos estudos. As décadas seguin- tes, graças ao espaço conquistado nos anos 1970, trouxeram personagens homossexuais com vivência de afetividade. A partir da telenovela “Mulheres Apaixonadas” (2002) apenas uma trama do horário das 20/21h não apresentou personagens homossexuais. A partir de “Amor à Vida” (2013) o “beijo gay” deixou de ser uma polêmica, um tabu, e foi mostrado nas tramas seguintes.

REFERÊNCIAS Anzuategui, S. (2012). O grito de Jorge Andrade: a experiência de um autor na teleno- vela brasileira dos anos 1970. Tese (Doutorado em Meios e Processos Audiovisuais) – Programa de Pós-graduação em Meios de Processos Audiovisuais, Universidade de São Paulo (ECA-USP). Barbosa, M. (2013). História da Comunicação no Brasil. Petrópolis: Vozes. Bittencourt, S. (1975, 23 de abril). Vê se pode? Amiga TV Tudo. p. 27 Fagundes, C. (1974). Censura & Liberdade de expressão. São Paulo: Record. Fernandes, G. M. (2012). A representação das identidades homossexuais nas telenovelas da Rede Globo: uma leitura dos personagens protagonistas no período da censura militar à televisão. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Programa de Pós-graduação em Comunicação, Universidade Federal de Juiz de Fora. Fernandes, G. M. (2012b). A Homossexualidade na telenovela Dancin’Days: a estética camp e o “mordomo” na telenovela. Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Intercom (35) 1-15, Universidade de Fortaleza. Fernandes, G. M. (2013). A homossexualidade de personagens protagonistas das telenovelas da Rede Globo: uma leitura a partir dos periódicos gerais e especializados do acervo da Biblioteca Nacional. Relatório Final de Pesquisa. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Fernandes, G. M. (2014a). Lésbicas na telenovela O Rebu: O romance entre Glorinha e Roberta. Ação Midiática (8), 1-18. Issn: 2238-0701. V8ilp1-18.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7151 A representação da homossexualidade na teledramaturgia na década de 1970 Guilherme Moreira Fernandes

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7152 Telenovela: do romance às cenas domésticas cotidianas

R o m i l s o n M ar c o d o s Sa n to s 1

Resumo: Demostraremos, em um percurso diacrônico, como a telenovela abandonou a base temática das adaptações dos romances folhetinescos para sofrer transformações e chegar à eleição dos relatos das cenas cotidianas. Palavras-Chave: Cultura 1. Telenovela 2. Interação 3 Base Temática 4. Espacialidade Televisual.

Abstract: Will demonstrate , in a diachronic route , as the soap opera abandoned the thematic basis of the adaptations of novels folhetinescos to undergo changes and get to the election of the accounts of everyday scenes . Keywords : Culture 1. Soap 2. Interaction 3 Theme Base 4. spatiality Televisual.

S TELENOVELAS se transformaram, no decorrer dos anos, para atender à neces- sidade de se tornarem atrativas aos olhos dos telespectadores. Essas transforma- Ações estão relacionadas ao modo através do qual se organizaram para conseguir entreter os telespectadores, responsáveis pelas flutuações dos índices de audiência e pela tabela de preço de inserção de peças publicitárias na programação. Se os telespectadores não consideravam atraente aquilo a que estavam assistindo, os índices de audiência declinavam, juntamente com o faturamento da emissora. É evidente, desse modo, que as emissoras precisaram modificar suas telenovelas para atender às expectativas daquele telespectador. O modo de apresentar as telenovelas estava relacionado às suas bases temáticas eleitas e à modificação da sua estrutura narrativa. É necessário, portanto, entender como as telenovelas se transformaram no produto que vemos hoje. A seguir, será demonstrado, em um percurso diacrônico, como a telenovela abandonou a base temática das adaptações dos romances folhetinescos para, ao longo dos anos, sofrer transformações e chegar à eleição dos relatos das cenas cotidianas as quais dominam as telenovelas atuais. Muito embora se saiba que o folhetim engendrou grandes obras da literatura, busca- se nesta pesquisa verificar o modo pelo qual a televisão o engendrou como telenovela. Portanto, o folhetim será analisado como obra para a televisão. Assim sendo, sabe-se que as referências iniciais das telenovelas foram os romances- folhetins. Segundo Meyer:

1. Doutor em Comunicação e Semiótica PUCSP, Professor do curso de Comunicação Social UNIS-MG,e- mail: [email protected]

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No rodapé do jornal vão se sucedendo as fatias de romance-folhetim traduzidas dia após dia do Francês, introduzindo angústia e suspense com o fatídico “continua-se”. (...) Entre 1839 e 1842 os folhetins-romances são praticamente cotidianos no Jornal do Comércio (Brasil)...) (1996, p.283).

Essas publicações tiveram uma clara razão de ser: “As declarações, reclames, o afã em preencher o famigerado rodapé indicam claramente a imprescindível necessidade do pasto ficcional para alimentar a curiosidade do leitor e rechear o bolso dos donos de jornal, já que o negócio se estende à republicação em volumes” (MEYER, 1996, p. 288). Desse modo, parece-nos que, já naquela época, a preocupação foi promover divertimento. A fruição daquele produto não estava no que aconteceu, mas, sobretudo, no modo como se narrou o que aconteceu.

E, com o tempo, esse universo romanesco, pelo habitual caminho de jornais recortados e fascículos, lidos ou contados oralmente, teria alcançado aquelas classes subalternas, as historicamente exploradas e sofridas massas da América Latina. Não é de espantar, por- tanto, a fácil aclimatação nesses países, onde “a desgraça pouca é bobagem”, de um gênero romanesco que, além de cativar auditórios e leitores pelas engenhosas tramas, tematiza- va subcondições de vida e exacerbadas relações pessoais e familiares. (...) Uma literatura romanesca despudoradamente expressiva, o que vinha ao encontro daquela já mencionada tradição, que também é ibérica do gosto pelo excessivo gestual e empolado da palavra que compõem a oratória, tão apreciada pelas populações. Reflexo paroxístico de sua secular desgraça e permanente aspiração a um universo moral no qual finalmente reinasse a justiça. E o amor (MEYER, 1996, p. 383, 384).

Todo esse universo romanesco invadiu as radionovelas. “Folhetim-melodrama matriz da radionovela” (MEYER, 1996, p.385). O Direito de Nascer “já havia sido sucesso no rádio” (FERNANDES, 1987, p.51). E esse sucesso invadiu a atmosfera da televisão também. “Com a primeira grande gestão da integração latino-americana, do rádio para a televisão, de Cuba ‘para o mundo’ veio O Direito de Nascer” (MEYER, 1996, p.386). Daí ser possível afirmar a convergência e a diferença entre o rádio e a televisão no modo de contar histórias. Com a televisão, o público pôde ouvir e ver as histórias. Segundo Meyer:

Um produto novo, de refinada tecnologia, nem mais teatro, nem mais romance, nem mais cinema, no qual reencontramos o de sempre: a série, o fragmento, o tempo suspenso que reengata o tempo linear de uma narrativa estilhaçada em tramas múltiplas, enganchadas no tronco principal, compondo uma “urgidura aliciante”, aberta às mudanças segundo o gosto do ‘freguês’, tão aberta que o próprio interprete, tal como na vida, nada sabe do destino de seu personagem. Precioso freguês que precisa ficar amarrado de todo jeito, amarrado por ganchos, chamadas, puxado por um suspense que as antecipações anunciadas na impren- sa especializada e até na cotidiana não comprometem, na medida em que a curiosidade é atraída pelo “como” quanto pela expectativa dos diversos reconhecimentos que dinamizam as tramas (1996, p.387).

Nessa medida, uma profissional definiu o modo de produzir telenovela no Brasil. Falamos de Glória Magadan.

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Uma senhora cubana que viveu nos Estados Unidos e ganhou notoriedade como grande conhecedora dos mistérios que transformavam uma telenovela em sucesso absoluto. Sua especialização, no entanto, estava intimamente ligada aos folhetins, já bastante conhecidos de nossos autores. Portanto, não trouxe nenhuma contribuição prática. Ao contrário, o estilo Magadan recheava os lares brasileiros de condes, duques, ciganos, vilãs sem qualquer lógi- ca, mocinhas ingênuas e galãs totalmente comprometidos com a bondade ( FERNANDES, 1987, p.67).

Magadan determinou a primeira base temática das telenovelas. Com o sucesso de suas escolhas, a telenovela tornou-se um elemento estratégico, ao tentar prender a atenção do telespectador, diariamente. E foi nessa perspectiva que Walter Clark, então diretor da TV Rio, pensou: “Com o formato diário, começaram a fazer muito sucesso e eram ótimas para fixar uma grade de programação, porque mantinham o telespectador ligado na emissora todos os dias (1991, p.140). Por conseguinte, a telenovela funcionou como uma estratégia mercadológica de audiência e faturamento. E Clark foi além, ao explicar a lógica de exibição da telenovela - O Direito de Nascer.

Nesse momento, aproveitando a viagem de Dercy ao México, encarregamos David Raw de contatar o procurador de Felix Cagnet, o famoso novelista cubano, e comprar os direitos de suas histórias, (...) e trouxe três novelas, pela módica quantia de 20 mil dólares, financiadas pela Lever, através da Lintas: O Preço de uma vida, O Direito de Viver e a celebérrima O Direito de Nascer. Ela havia sido um enorme sucesso no rádio, e nós apostávamos que conseguiría- mos repetir a dose na TV. Uma novela forte, com muita audiência, era o que precisávamos para amarrar a nossa programação (1991, p.140,141).

De fato, em pouco tempo, “O Direito de Nascer se transformou no maior sucesso da telenovela desde o início da televisão. (...) Com o Direito de Nascer, que ficou um ano e meio no ar, conseguimos estabilizar a queda da TV Rio e recuperar a liderança. A novela funcionava tanto que puxava a audiência para toda a estação” (CLARK, 1991, p.146). Esse fato comprova o que já foi relatado: tal qual no folhetim nos jornais, as emissoras também estiveram interessadas no potencial de audiência e faturamento que a telenovela podia propiciar. Portanto, desde o início, a telenovela diária surgiu não como um produto ingênuo de contar histórias, mas, sobretudo, como um produto altamente rentável e estratégico de comunicação de massa. Em decorrência disso, surgiu a primeira base temática das telenovelas - a adaptação dos clássicos melodramáticos da literatura. De fato, as primeiras telenovelas, tão logo se consolidaram como diárias, visualizaram um padrão da maneira como selecionar a base temática, e as adaptações surgiram como fator de certeza de audiência. Essa base temática contemplou a apresentação de algo que proporcionou um mundo de fantasia, ilusão, ou mais comumente, um melodrama, com o qual se buscou contaminar a audiência, envolvendo-a na atmosfera de catarse e sedução do drama narrado. É necessário, portanto, demonstrar como essa base temática determinou a estrutura narrativa das telenovelas. Desse modo, deve-se observar a telenovela O Direito de Nascer, exibida em 1964. Nota-se, na sequência narrativa, a permanência de uma trama central do início ao fim da telenovela. Poucas tramas paralelas e todas subordinadas à trama

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7155 Telenovela: do romance às cenas domésticas cotidianas Romilson Marco dos Santos principal. Isso, em virtude de a televisão ter uma audiência dispersa e desatenta, diante da qual, a configuração da narrativa permitiu uma rápida retomada do que estava acontecendo, além de uma redundância nos acontecimentos. Observou-se, também, a busca de uma sequência narrativa linear, com os acontecimentos se desenvolvendo em linha coerente, até o desfecho da trama. Uma forma de criar um entendimento lógico, para que o receptor acompanhasse a telenovela, como a um folhetim. Aqui, encontra-se a utilização da técnica da narrativa folhetinesca, como estratégia de tentar provocar a curiosidade e assegurar que o telespectador acompanhasse, no dia seguinte, o que aconteceria na trama. É evidente, desse modo, que a narrativa televisual buscou entreter a audiência com dramas, estruturando-se de forma a condicionar quem assistia a ela, a querer saber como aquelas personagens se comportariam no dia seguinte. Esse condicionamento girou em torno dos sofrimentos e dramas pelos quais se atraía a atenção para as personagens que, na dramaticidade da trama, escapavam do ficcional para atingir o cotidiano. Segundo Alencar:

Tinha sido dada a saída de um verdadeiro delírio, este de proporções nacionais. Todas as noites, de 21h30 às 22 horas, o país parava (inclusive com acentuada queda no uso da rede sanitária; os banheiros das casas não eram usados durante o horário de O Direito de Nascer) porque as pessoas estavam acompanhando as peripécias daquele emocionante drama da paternidade perdida, num tempo em que o DNA ainda não tinha entrado em cena no palco da vida real (2004, p.18)

Analisando com maior cuidado, vê-se, nessa configuração, um reflexo da utilização de uma temática, tal qual o sucesso na radionovela e entendido como fator fundamental para a estruturação da narrativa televisual. Ressalta-se que as emissoras apostaram em adaptações cujos enredos foram sucessos consagrados, como O Direito de Nascer. Em 1966, por exemplo, estreou a telenovela Eu compro essa Mulher. Na TV Rio, estreou, no mesmo ano, Ana Karenina. Essa telenovela “tinha dado 50 pontos. (...) A novela (Eu compro essa mulher) foi escalando a audiência, até atingir 45, 50 pontos. Um estouro. A partir daí, a Globo começou a ganhar dinheiro” (CLARK, 1991, p.182). Outras telenovelas vieram. Surgiu O Sheik de Agadir, ambientada na África. Esses desenhos das tramas, no decorrer dos anos, configurou uma ingênua afirma- ção de valores culturais irreais, através do duvidoso abuso de estereótipos que, certamen- te, por si sós, indicavam conteúdos de alto valor, mas que, em razão das transformações sociais, perderam, em grande parte, a sustentação da qual se nutriram. Tramas que, na maioria dos casos, assumiram, já em 1968, um sabor de equívoco. Depois de quase duas décadas, havia uma movimentação de vários setores das telenovelas, para terem uma representação nacional através das narrativas. Pode-se dizer que a adaptação literária foi uma forma encontrada, pela televisão, para contar histórias em audiovisual, como primeira base temática. É bom lembrar que, muitas vezes, a narrativa se tornou lenta e monótona, porque as histórias eram muito parecidas a fim de que não se corresse o risco de um fracasso. Por isso, as adaptações sempre repetiram a configuração do sucesso vigente e habitual.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7156 Telenovela: do romance às cenas domésticas cotidianas Romilson Marco dos Santos

Dessa forma, destaca-se a segunda base temática das telenovelas - a sociedade brasileira, que explode com uma multiplicidade de racionalidades “locais” – minorias étnicas, sexuais, religiosas, culturais ou estéticas em contraposição à ideia de que só existia uma única forma de contar uma história, com base na literatura. A libertação de uma narrativa de contexto distante permitiu apresentar a diversidade da sociedade brasileira, embora a estratégia foi apresentar algo de fácil reconhecimento e do contexto da população brasi- leira. Nota-se que o objetivo dessa base foi explorar os acontecimentos dos espaços públicos da sociedade brasileira. Logo, essa modificação na base temática promoveu também uma transformação na estrutura narrativa das telenovelas. Como consequência das transformações ocorridas na base temática, observou-se a seguinte modificação na estruturação das narrativas: a implantação de outras tramas como principais. Portanto, a telenovela não se edificou mais em uma única trama prin- cipal. Dessa maneira, buscou-se ampliar o leque de opções, para atender aos interesses de quem assistia à telenovela e adequar a atração àquela nova base temática. De fato, para manter o interesse do telespectador, as telenovelas inseriram outras histórias, a fim de que fosse possível atender à variedade de interesses, ao mesmo tempo em que se poderia evitar que a telenovela ficasse enfadonha. Esse potencial estava atrelado à possibilidade de narrar o modo de viver em ambientes distintos. O telespectador pôde assistir a histórias que ocorreram em bairros populares, assim como em bairros nobres. Essa diversidade de ambientes funcionou como um elemento de curiosidade, ao menos na medida em que o telespectador considerou interessante conhecer o modo como um rico vivia, por exemplo. Nota-se que esta nova base temática esteve relacionada ao fato de manter a telenovela como um produto atrativo aos olhos do telespectador. Beto Rockfeller (1968), na TUPI, foi a telenovela representativa dessa mudança. “Surge Beto Rockfeller, o anti-herói que passa a ocupar o lugar dos personagens íntegros, monolíticos, absolutamente sensatos, absolutamente honestos, absolutamente puros, absolutamente tudo, e que se coloca mais próximo das pessoas comuns”. (SIMÕES, 1986, p. 84). Conforme a nova configuração das narrativas, a trama dessa personagem oscilou entre ambientes da classe privilegiada e aqueles desprovidos financeiramente, o que permitiu a exibição de várias cenas com potencial de atrair a audiência, uma vez que somente o público conhecia a condição suburbana de Beto.

Um dos truques de Beto Rockfeller foi brincar com o público consumidor de novelas, colo- cando-o no vídeo. Assim o dia a dia dos telespectadores – tão cheio de dramas e conflitos quanto o dos condes e ciganos de Glória Magadan – provocou a reação positiva que absorveu toda a televisão. E todos seguiram o mesmo rastro (FERNANDES, 1987, p.106).

De fato, as narrativas acompanharam o sucesso de Beto Rockfeller, seguindo seu desenho que se insinuou como um padrão a ser copiado, ao menos na medida em que tentava se aproximar do público brasileiro. A Globo, muito mais organizada, “contando com departamento de pesquisa, vale-se de métodos eficazes de apuração do gosto popular e suas determinantes, desenvolve critérios e prioridades que reduzem sua margem de erro – pelo menos no que concerne às telenovelas – a uma taxa ínfima” (SIMÕES, 1986, p.85). Conforme esses resultados, buscou-se uma telenovela que refletisse o gosto popular, como um espelho

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7157 Telenovela: do romance às cenas domésticas cotidianas Romilson Marco dos Santos antropológico da sociedade. Foi necessário, então, entender a sociedade brasileira, como ela se organizava, o que faziam as pessoas, como eram as práticas sociais, utilizando esses elementos como atrativo para o telespectador. As tramas permitiam um leque de opções suficientemente eficazes, entre as quais os telespectadores podiam selecionar aquelas com as quais queriam se identificar, entreter e divertir. Nessa seleção, permitiam-se mudanças radicais e o anti-herói surge como prota- gonista. A eleição desse tipo de personagem permitiu a liberdade, também, na organi- zação da estrutura narrativa. As tramas estiveram atreladas ao perfil transgressor da personagem. Ou seja, essa forma de narrar permitiu inserir tramas das personagens em ambientes distintos do seu contexto original. De fato, esse tipo de organização não era permitido na base temática anterior, pela rigidez hierárquica da trama e, como consequência, da própria estrutura narrativa. É evidente, desse modo, que colocar um suburbano em um ambiente da alta sociedade criava, por si só, um conflito que instigava o público a acompanhar as aventuras daquela personagem. Ao fazer essa mudança, a telenovela proporcionou uma aproximação com o telespectador, porque ampliou as opções de tramas que se estruturaram de forma a colocá-lo como cúmplice daquelas subversões da personagem. Tanto que se verifica a reprodução dos diálogos tal como essas pessoas se expressam. Nota-se que essa reprodução conferiu maior realismo à base temática, ocasionando mais um elemento de subversão e transformação na estrutura narrativa da telenovela. De fato, ao romper com os moldes clássicos da literatura, toda a estrutura narrativa se rompeu. Essa ruptura possibilitou à telenovela se configurar a partir da necessidade de entreter e envolver o telespectador em várias tramas de aven- turas com as personagens.

A principal mudança de Beto Rockfeller – que inspirou o futuro da telenovela – foi a agili- zação dos diálogos e o seguimento livre da história, libertando-se radicalmente do estilo até então. O gosto popular, que aceitava os dramalhões grandiloquentes, passou a ser duvidoso, antigo, fora de moda. Assim, o mesmo público passou a se interessar e a se divertir com as trapaças criadas por Beto Rockfeller (Luiz Gustavo) - o personagem-protagonista, que se infiltra na alta sociedade paulista para tirar proveito próprio. A linguagem, obviamente, também mudou. As velhas declarações de amor foram substituídas por formas de expressões mais coloquiais, num reflexo fiel do nosso modo de falar. Até a gíria passou a ser saudada como bem-vinda. (FERNANDES, 1987, p.106)

Faz-se necessário observar que a modificação na relação dos diálogos objetivou ser mais um elemento de atração dos telespectadores e abriu precedente para provocar uma contribuição para o universo do telespectador, com a introdução dos famosos bordões e expressões populares que tornaram a telenovela cada vez mais atrativa para diversos públicos.

As frases feitas e grandiloquentes, que marcavam até então os diálogos, ficam substituídas por expressões coloquiais. O resultado foi o melhor possível em termos de audiência. Trouxe para a frente da TV gente que até então permanecia totalmente alheia ao aparelho. Interessou os setores mais jovens, mas nem por isso escapou da derrapagem comprometedora: foi

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alongada demasiadamente e, com isso ficou menos interessante. De qualquer forma, o fato não chega a diminuir a sua importância como marco decisivo, como instante de superação de uma tradição bolorenta, cultivada inclusive pelos anunciantes (SIMÕES, 1986, p.82, 83,84).

Tudo isso deixou claro que essa base temática promoveu um vínculo comunicativo familiar com o telespectador, a partir dos desenhos das personagens, das relações entre os diálogos e da sequência narrativa. Entretanto, não se pode iludir com essa aproximação entre os desenhos sociais que Beto Rockfeller apresentou. Existia ainda um abismo entre os desenhos apresentados na telenovela e o que, efetivamente, ocorria nos espaços públicos da sociedade brasileira. Existiu, é claro:

uma nova galeria de personagens, mais ajustados aos novos padrões de vida na metrópole, onde a mulher e o jovem participam ativamente do mercado de trabalho, tornando-se não só consumidores como também agentes desestabilizadores do controle familiar e, dentro dele, da autoridade da figura paterna. No mundo em que a mulher ocupa gradativamente espaços exteriores ao lar (e a telenovela é dirigida preferencialmente a ela), fica difícil aceitar os estereótipos tradicionais. O bem e o mal absolutos, polarizados nas telenovelas na figura da freira e da dançarina cigana, por exemplo, ficam inviabilizados. A mocinha virginal, discreta, passiva, bondosa, suave vira uma chata. Por outro lado, herói não é mais Demian, o justiceiro que na calada da noite deixa escrito - “Demian esteve aqui”. Nada disso. Agora ele chega no seu possante automóvel personalizado e dá três buzinadas, o sinal combina- do para que uma moça vestida esportivamente saia correndo do saguão do edifício em direção ao carro. A polarização, relativizada, se dá entre o bem-sucedido e o mal sucedido. E entre os últimos estão os negros, os índios, que só aparecem para dançar e brincar; quase nada de gente feia, suja ou pobre. Uma redundância, pois se excluem das imagens os já socialmente excluídos, cuja aparição fica na dependência de expressarem alguma exceção ou exemplaridade tipo operário-padrão (SIMÕES, 1986, p.93).

Nessa base temática há, sobretudo, uma tentativa de apresentar a telenovela como uma sugestão do modo de viver. Elegeu uma base conservadora da sociedade e inaugurou uma pedagogia inusitada, mostrou ou demonstrou como deve ser a vida de uma pessoa para ascender socialmente e ser bem sucedida. O choque que a telenovela Beto Rockfeller provocou nas emissoras, aliado a uma profissionalização cada vez mais incisiva, propiciaram novos paradigmas temáticos. Com a proliferação de profissionais de prestígio nacional e de “esquerda”, a TV Globo estabeleceu uma nova base temática para as telenovelas. A terceira base temática concentrou-se na crítica de núcleos de personagens representativos da sociedade brasileira. Essa base permitiu explorar e criticar determinados segmentos da sociedade, possibilitando à telenovela, traçar um desenho moralizador. Porém, visto que essa mudança procurou envolver a audiência, não se pode iludir com esse desenho moralizador, pois ele só permaneceu porque atraía a atenção do telespectador. Por conseguinte, a telenovela passou a promover uma dramaturgia crítica, ao menos na medida em que buscou tor- nar a telenovela um produto questionador, mesmo que de forma sutil, em virtude da ditadura vigente.

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Um dos profissionais que implantou esse modo de fazer telenovela foi Dias Gomes, autor de várias telenovelas, dentre elas, O Bem Amado (1973) e Saramandaia (1976). Surgia uma base temática promovida por um grupo de profissionais de “esquerda”, embora esse fator não retire o objetivo da telenovela de gerar lucro. O que a televisão fez foi: se as reivindicações da “esquerda” podem expandir o faturamento, vamos colocá-las no horário nobre. A consequência está justamente na remissão aos interesses comerciais da emissora. Nota-se que até questões políticas e ideológicas são úteis na busca para estabelecer contato com a audiência. Todavia, essas questões estabeleceram um contato também com a imprensa, ao menos na medida em que a telenovela apresentou discussões que serviram de pauta para a própria imprensa. Do mesmo modo como a imprensa exerceu sua função ao levantar questões sociais relevantes, a telenovela se apresentou como produto socialmente responsável, como estratégia para se promover:

Só que agora estes velhos sentimentos estão agora expostos ao sol, tornaram-se públicos na imagem ambígua e tosca de Roque Santeiro. Enquanto o sociólogo Muniz Sodré chegava até a falar de ‘injeção de civismo’ e assinalava a maneira como o público vivia sua relação com a novela àquela como vivera a relação semirreligiosa com seu presidente, Tancredo Neves, o escritor Roberto Drummond avançava, por sua vez: “Roque Santeiro está discutindo o que deve ser discutido na Constituinte”. (...) Se preciso fosse, aí teríamos uma vez mais a prova do espaço desmedido que ocupa o dispositivo televisivo num país como o Brasil. Esta competência exorbitante faz com que se possa legitimamente ter a impressão de que um determinado Brasil exige hoje de sua televisão bem mais do que ela estruturalmente pode oferecer; e ainda, que a televisão se encontra invadida por pedidos e desejos demasiados incomensuráveis para sua condição de instituição do espetáculo com as características políticas, econômicas e técnicas inerentes (MATTELART, 1989, P.130-131).

De fato, em determinados momentos, a telenovela assumiu o papel da imprensa, no ato de contaminar a sociedade com discussões político-sociais relevantes para o desenvolvimento do país. Nesse contexto, os núcleos das tramas das personagens foram decisivos nessa função. A fim de melhor compreender como essa base temática modificou a narrativa tele- visual, tivemos que nos concentrar nos núcleos das tramas das personagens, a partir dos quais a telenovela se organizou. Cada grupo de personagens assumiu suas próprias histórias. Elas se relacionavam com outros núcleos, a partir de um tema ou situação comuns. Nota-se que a estrutura narrativa tentou envolver o telespectador no maior número possível de histórias com as quais passou a ter contato. Portanto, a telenovela distanciou dos romances folhetins, na medida em que se transformou em uma coletânea de histórias sem a obrigatoriedade de estar atrelada a uma trama principal: a telenovela se pluraliza. Por exemplo, em Roque Santeiro, o tema principal foi a vida cotidiana de uma cidade que viveu do culto ao mito de um Santo. Nos núcleos das personagens, tivemos o núcleo da equipe de filmagem, cujo tema foi como fazer um filme sobre Roque Santeiro, sofrendo os abusos e desmandos dos políticos e dos poderosos da cidade; o núcleo religioso consistiu em como manter a moral e os bons costumes na cidade de Asa Branca; o núcleo familiar de Zé das Medalhas apresentou uma mulher frustrada no casamento e um marido ambicioso que só pensava em dinheiro. Desse modo, mais

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7160 Telenovela: do romance às cenas domésticas cotidianas Romilson Marco dos Santos uma vez a telenovela ampliou o leque de elementos com potencial para atrair e manter a atenção do telespectador, ou seja, as histórias das personagens foram estruturadas com questões políticas, sociais e econômicas com grande potencial para promover discussões na própria sociedade. Essa pluralidade de núcleos esteve diretamente relacionada ao modo como a telenovela tentou atrair públicos distintos. De fato, sendo a telenovela do horário nobre composta por uma gama plural de telespectadores, esses núcleos buscaram ser um elemento suficientemente atraente para chamar a atenção de públicos distintos. Verificamos, em 1989, com O Salvador da Pátria, uma valorização do trabalhador honesto que, ao ocupar um espaço significativo na narrativa, acaba por sugerir uma moralização da sociedade. Nota-se que a telenovela se estruturou com histórias que valorizaram o comportamento conservador e moralmente aceito pela sociedade. As tramas visaram a colocar as personagens em situações de conflito entre a impunidade e a punição. Quando as personagens com os estereótipos do mal foram punidas, sur- giu uma relação de cumplicidade com o telespectador, mostrando a ele que o mal não compensa. Nota-se a valorização do conhecido recado moral de prêmio e castigo que poderia roteirizar o padrão de uma sociedade mais justa. A punição exemplar, na tele- novela, resgatou uma espécie de esperança no telespectador. Essa punição, também, o envolveu e o levou a manter-se atento, a fim de encontrar, na telenovela, uma expansão da sua possibilidade de atuação social. Sendo assim, cada núcleo de personagens fez um revezamento de posição de destaque com os outros núcleos. A eleição de vários núcleos polêmicos, exóticos ou até mesmo banais determinou que as telenovelas se estruturassem de modo a permitir ao telespectador uma variedade de opções com as quais pudesse se identificar. Essa forma de narrar funcionou como um modo de mensurar os núcleos, que mais agradaram ao telespectador, estabelecendo, portanto, uma hierarquia. Verifica-se a importância cada vez mais pertinente do telespectador na gestão das telenovelas. Isso é comprovado com a reportagem de capa do caderno Mais da FOLHA DE SÃO PAULO DE 2003, através da qual se discutiram as razões que levaram milhares de brasileiros a rejeitar, em 1991, o início da novela O Dono do Mundo.

Pois bem, logo nos primeiros dias da novela, de grande sucesso, como era de esperar, ela se completa com o desligamento em massa e uma comoção da opinião pública, que vai acossar fortemente o seu autor nas semanas que se seguiram ao imprevisto apagão. (...) Imediatamente após o acontecimento dramático, político e sexual, ainda durante o capítulo, o ibope des- penca: enquanto nos dois dias anteriores a novela perdera quatro pontos de audiência em relação aos 48 pontos da sua estreia na segunda-feira, apenas no fatídico quarto capítulo a novela perdeu nada menos do que nove pontos de audiência, em um fenômeno jamais visto em semelhantes casos. O melhor produto realizado pela televisão brasileira em sua história teve uma queda de 13 pontos de audiência em seus primeiros quatro dias de exibição. (...) Impacientes, os espectadores, alguns ofendidos, outros humilhados, desligaram o apare- lho antes mesmo de o episódio terminar. Ainda me recordo de que nos dias seguintes a empregada doméstica de minha mãe, com seu radinho de fofocas, fazia coro com uma boa parte da elite carioca sobre o desrespeito (a quem?), a pouca-vergonha, como dizia em seu baixo moralismo impotente, proporcionada a todos pela perversa novela. (SABER, 2003, p.7).

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7161 Telenovela: do romance às cenas domésticas cotidianas Romilson Marco dos Santos

Esse fato demonstrou que a configuração das telenovelas teve que levar em consi- deração um forte elemento externo a ela, ou seja, quem assistia a ela. O telespectador se tornou uma espécie de cogestor da telenovela, uma vez que sua opinião sobre o rumo tomado pelo tema na estrutura narrativa se manifestou através do poder de mudar de canal ou até mesmo de desligar a televisão. Daí decorreu a necessidade e a preocupação de as telenovelas trabalharem em função da manutenção da relação com esse gestor. Portanto, para que essa relação não se tornasse um conflito entre a eleição de uma base temática e o desejo do que efetivamente o telespectador desejasse ver, as telenovelas abandonaram a eleição de uma base temática. Nota-se, portanto que, para se estabelecer como um produto de entretenimento e consolidar-se como comunicação de massa, a telenovela teve que se transformar mais uma vez e sua gestão, obrigatoria- mente, teve que ser compartilhada com outros gestores como o telespectador, a direção da emissora, a imprensa. Nesse contexto, a existência de uma base temática devia ser refeita/revista constantemente. De fato, se antes a base temática era determinada em comum acordo entre autor e direção da emissora, nesse contexto, esses dois agentes precisaram respeitar o poder de veto de um terceiro agente, que era o telespectador. Dessa maneira, as telenovelas passaram a se sustentar com relatos das cenas cotidianas, com forte apelo atrativo. É nesse sentido que se detecta uma transformação que foi fruto da nova atmosfera que passou a se sustentar em relatos das cenas do cotidiano doméstico dos telespectadores. Essa estrutura consistiu em eleger cenas de indivíduos no seu cotidiano doméstico, ou seja, enquanto a base temática anterior explorou espaços e pessoas públicas da sociedade, aqui surgiu a exploração dos ambientes privados do próprio telespectador. A consequência foi a transformação das telenovelas em retalhos resgatados no dia a dia, que teve como base as histórias individuais dos personagens/telespectadores. Foi nesse sentido que a telenovela relatou a vida dos próprios telespectadores, como forma de estabelecer uma interação. De fato, cada vez mais a telenovela adentrou o universo do telespectador, para resgatar possíveis estímulos e os reelaborar em forma de relatos audiovisuais. Por conseguinte, as telenovelas passaram a ser uma extensão da vida dos telespectadores, estabelecendo com eles um nível de intimidade que desencadeou uma cumplicidade, ao mesmo tempo em que estabelecia um vínculo afetivo. A partir de 1997, houve várias telenovelas que passaram a se estruturar com essa configuração. Examinando a história de Helena (Regina Duarte), em Por Amor, constata- se a manipulação do amor materno, para estabelecer um vínculo com as mulheres, já que a telenovela possui uma grande parcela de mulheres como telespectadoras. Manoel Carlos queria mostrar uma mãe que se sacrificasse de maneira radical por um filho, ou uma filha (AUTORES, 2008, vol.2, p.66). Além disso, aquela telenovela buscou, no espaço comezinho do próprio telespectador, outros relatos que pudessem ser atraentes para satisfazer as expectativas variadas. Não surpreende, portanto, que, a partir do momento em que essa configuração conseguiu atrair a atenção, passou a se consolidar como estrutura básica das telenovelas e foi confirmada pela repercussão desencadeada na imprensa pelas telenovelas posteriores. Em janeiro de 2001, a revista Veja (10/01/2001) mostrou o triunfo dessa estruturação das telenovelas. A manchete de capa dizia: Nos laços da novela. Por que 32 milhões de

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7162 Telenovela: do romance às cenas domésticas cotidianas Romilson Marco dos Santos brasileiros assistem à novela das 8 da Globo, o maior sucesso da televisão nos últimos anos. E a revista dedica oito páginas para explicar o sucesso de público da telenovela Laços de Família e relata:

Manoel Carlos, por sua vez, é o artífice das tramas em que a grande protagonista é a classe média. Em suas novelas não há uma disparidade grande entre ricos e pobres. Todos são mais ou menos remediados, mais ou menos parecidos com o grosso dos telespectadores das novelas da Globo. ‘O sujeito que acompanha as minhas tramas gosta de reconhecer ali situações parecidas com as que ele vive e personagens semelhantes aos seus próprios parentes’, diz Manoel Carlos. (...) os personagens aparecem indo à padaria, abrindo uma conta no banco ou dirigindo o carro para ir ao trabalho. A pesquisa qualitativa sobre Laços de Família, encomendada pela Globo, demonstra que o autor acerta em cheio ao aproximar a novela do cotidiano mais comezinho. Segundo esse levantamento, uma das maiores razões para o sucesso do folhetim é o fato de o espectador achar a trama verossímil e os persona- gens críveis.(LIMA, 2001).

O próprio título da telenovela - Laços de Família, já seria motivo para ratificar esse modo de estruturar as telenovelas que visou relatar os acontecimentos do espaço doméstico do telespectador. A busca em ser fiel a esses fatos atinge o nível de as doenças serem apresentadas tão verossímeis quanto na vida real. O drama da personagem Camila (Carolina Dickmann) exemplifica bem esse modo de organizar a telenovela. Em uma cena, não há diálogos, apenas a enfermeira, Camila e uma trilha sonora. Essa cena rendeu à TV Globo um pico de audiência de 61 pontos (Revista VEJA, 10/01/2001). A telenovela buscava não apenas representar a vida real dos telespectadores, mas ser a própria vida real. Nota-se que toda a estruturação da telenovela buscou envolver o telespectador em uma atmosfera de simulação. Segundo Baudrillard

Dissimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem. O primeiro refere-se a uma presença, o segundo a uma ausência. Mas é mais complicado, pois simular não é fingir: “Aquele que finge uma doença pode simplesmente meter-se na cama e fazer crer que está doente. Aquele que simula uma doença determina em si próprio alguns dos respectivos sintomas” (Littré). Logo fingir, ou dissimular, deixam intacto o princípio da realidade: a diferença continua a ser clara, está apenas disfarçada, enquanto que a simulação põe em causa a diferença do ‘verdadeiro’ e do ‘falso’, do ‘real’ e do ‘imaginário’. O simulador está ou não doente, se produz ‘verdadeiros’ sintomas? Objetivamente não se pode tratá-lo nem como doente nem como não doente. A psicologia e a medicina detêm-se aí perante uma verdade da doença que já não pode ser encontrada. Pois se qualquer sintoma pode ser produzido e já não pode ser aceite como um fato da natureza, então toda a doença pode ser considerada simulável e simulada e a medicina perde o seu sentido, uma vez que só sabe tratar doenças verdadeiras pelas suas causas objetivas (1991 p.9-10).

Muito embora, as telenovelas sejam obra de ficção, é necessário analisar que essa forma de estruturar as telenovelas rompeu com a distinção entre o que é ficção e o que é não ficção, ao menos na medida em que as cenas são uma simulação e se apresentam como a própria realidade do telespectador. Logo, a telenovela se torna a própria vida real.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7163 Telenovela: do romance às cenas domésticas cotidianas Romilson Marco dos Santos

De fato, ao se tornar vida real, a telenovela estabeleceu um elo de confiança entre as pessoas na tela e as pessoas que assistiam a ela. De que forma? Apresentando os dramas e conflitos mais íntimos das personagens que, na verdade, passaram a ser os mesmos de quem assiste. A telenovela funcionou e funciona como um grupo de ajuda ou reabilitação psicológica. Cada novela levava o telespectador para o seu íntimo e lhe propiciou a confidência de todos os seus segredos. Como as cenas foram simulações do que ocorreu no cotidiano desses mesmos telespectadores, despertou-se a curiosidade sobre o modo como aqueles personagens resolveriam uma situação, que já acontecera ou poderia vir a acontecer, nos mesmos espaços dos indivíduos que assistiam. Em Mulheres Apaixonadas (2003), o público adentrou os quartos, banheiros, cozinhas e ficou conhecendo todos os dramas e conflitos relatados. Nesses ambientes, presenciaram- se as simulações das próprias ações dos telespectadores na tela. No entanto, foram simulações com forte apelo catártico, como comprova a revista VEJA (ed ição de 9/07/2003), que destacou quatro picos de audiência: 14 de abril – Pico de 53 pontos(média 41 pontos) – Cena: Surra que a personagem Dóris ( Regiane Alves) leva do pai por humilhar os avós; 21 de maio – Pico de 58 pontos(media 46 pontos) – Cena: Heloísa (Giulia Gam) ataca Sérgio com uma faca; 9 de junho – Pico de 51 pontos(média de 47 pontos) – Cena: Raquel (Helena Ranaldi) apanha do marido ( Dan Stulbach) com uma raquete de tênis; 2 de julho – Pico de 56 pontos (média de 50 pontos) – Cena: Paulinha ( Ana Galda) xinga Clara ( Aline Moraes) de “sapatona”. Ambas se atracam. São cenas que se destacaram por simular situações com forte carga emocional e funcionaram como momentos para desenvolver reflexões das atitudes dos próprios telespectadores. Outro ponto importante dessa telenovela foram os vários tipos femininos simulados como personagens: a mulher obsessiva, a espancada, a outra, a liberada, a romântica, a alcoólatra, as lésbicas, a órfã, a assanhada e a malcriada. Em consequência, as pessoas ficam íntimas e se tornam cúmplices do que ocorreu com aquelas mulheres. Sendo a própria vida que se apresentou, as personagens ficcionais perderam sua função, ao mesmo tempo em que o cotidiano assumiu a posição de protagonista no comando da seleção temática e do modo de organizar a telenovela. A telenovela colocou-se como um espelho do cotidiano doméstico atuando na tela. Assim, os elementos de diálogos estão impregnados, em toda sua diversidade, da unidade da cultura cotidiana. Por trás das mais fantásticas imagens, desenharam- se acontecimentos reais, figuraram pessoas reais. Essa simultaneidade e similaridade com o cotidiano permitiram à telenovela simular um modo de vida que propiciou o consumo, enquanto provocou uma sensação de intimidade entre novelista, personagens e telespectador. Por conseguinte, se a proposta foi simular a vida cotidiana como elemento estruturador, faz-se necessário observar a representação detalhada e fiel do fato imediato desejando “parecer verdadeiro”. Isso, porém, se efetivou com um mergulho nas mediações desse mesmo cotidiano do telespectador brasileiro, nos seus usos e costumes, para apresentar algo verossímil, uma simulação da crônica cotidiana brasileira.

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REFERÊNCIAS ALENCAR, Mauro. A Hollywood brasileira. Panorama da telenovela no Brasil. 2ª Ed. – Rio de Janeiro: Ed. SENAC Rio, 2004. AUTORES: História da Teledramaturgia. Livro 2. Memória Globo. São Paulo: Ed. Globo, 2008. BAUDRILLARD, Jean. Simulação e Simulacro. Lisboa Portugal: Edições 70, 1991. CLARK, Walter; PRIOLLI, Gabriel. O Campeão de audiência. Uma autobiografia. São Paulo: Editora Best Seller, 1991. FERNANDES, Ismael. Telenovela Brasileira. Memória. São Paulo: Brasiliense, 1987. LIMA, João Gabriel de; CAMACHO, Marcelo. A novela que hipnotiza o país. Revista VEJA - 10 de Janeiro de 2001. P.86-93. MATTELART, Armand e MATTELART, Michele. O carnaval das imagens. A ficção na TV. São Paulo: Brasiliense, 1989. MEYER, Marlyse. Folhetim. Uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. SIMÕES, COSTA, A.H., F. I., KEHL, M.R. Um país no ar (história da TV brasileira em 3 canais). São Paulo: Brasiliense FUNARTE, 1986. p.323.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7165 Do “Imagens do Dia” ao “Hora Um”: um panorama histórico do telejornalismo nacional From “Imagens do Dia” to “Hora Um”: a historical overview of the national television news

L i a n a Vi d i g a l R o c h a 1 E d n a d e M e l lo Si lva 2

Resumo: O objetivo deste trabalho é colocar em debate a produção jornalística de televisão, assinalando as marcas históricas do fazer jornalístico televisivo, desde o primeiro telejornal brasileiro Imagens do Dia, exibido pela TV Tupi de São Paulo, em setembro de 1950, até o lançamento do mais novo noticiário da Rede Globo de Televisão, o Hora Um. Para tanto, o artigo apresenta um breve histórico da implantação da televisão do Brasil com o enfoque na produção jornalística de televisão no início dos anos de 1950. Traz um panorama das principais produções de telejornalismo nos últimos anos da Rede Globo de Televisão e discute a atual fase do telejornalismo nacional que se desdobra em múltiplas plataformas como tablets e smartphones. Sintetiza os principais resultados da pesquisa que descreve o cenário histórico do telejornalismo nacional. Palavras-Chave: Telejornalismo; História da televisão; TV Tupi; Rede Globo.

Abstract: The objective is to put in debate journalistic television production, noting the historical brands of TV journalism, since the first Brazilian television news Imagens do Dia, displayed on TV Tupi of São Paulo, in September 1950, until the release of the newest news on Globo Television Network, Hora Um. Therefore, the article presents a brief history of the establishment of television in Brazil with a focus on journalistic production of television in the early 1950s. Brings an overview of the main productions of television journalism in recent years of Globo Network and discusses the current phase of the national television news that unfolds in multiple platforms such as tablets and smartphones. Summarizes the main results of the research that describes the historical setting of the national television news. Keywords: TV journalism; History of television; TV Tupi; Globo Network.

1. Doutora e Mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, jornalista diplomada, professora-adjunta do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Tocantins (UFT - Palmas). Líder do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Multimídia (CNPq). E-mail: [email protected] 2. Jornalista, professora Adjunto do Colegiado de Comunicação Social da Universidade Federal do Tocantins, membro do Grupo de Pesquisa Jornalismo Multimídia (CNPq), coordenadora da Rede de Pesquisadores de Telejornalismo da SBPJor e vice-coordenadora do Grupo de Telejornalismo da Intercom. E-mail: prof. [email protected].

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Liana Vidigal Rocha • Edna de Mello Silva

INTRODUÇÃO M 2015, a televisão brasileira estará em festa. Serão comemorados os 65 anos da implantação da televisão no país e os 50 anos da TV Globo, a principal emissora Enacional em termos de audiência e de produção de conteúdos. Ao longo das últi- mas seis décadas e meia, novas tecnologias foram incorporadas, diversos formatos de programas foram criados, mas o jornalismo televisivo manteve-se como sinônimo de legitimidade e credibilidade para as emissoras de televisão. Uma característica marcante da televisão brasileira é pautada pela sua origem no modelo comercial. O empresário Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados – um dos mais importantes grupos de comunicação do país à época – investiu cinco milhões de dólares na compra de equipamentos da RCA Victor, empresa americana associada ao canal NBC. Oficialmente, a televisão brasileira nasceu a 18 de setembro de 1950, embora tenham ocorrido experiências de transmissão anteriores. A TV Globo entraria no ar 15 anos depois, em 26 de abril de 1965, fruto de um acordo com a empresa norte-americana Time-Life, que facilitou o investimento em novos equipamentos importados dos Estados Unidos, além de pessoal especializado e cerca de cinco milhões de dólares. A proposta deste artigo é resgatar elementos da história do jornalismo de televisão no Brasil, destacando os programas mais importantes em cada período nestes últimos 65 anos. A pesquisa é qualitativa com abordagem descritiva e a metodologia da pesquisa incluiu a revisão de literatura sobre o tema. Conhecer a história do telejornalismo nacional é também conhecer a história da sociedade brasileira.

TV NO BRASIL: O PIONEIRISMO DE CHATEAUBRIAND O empresário Assis Chateaubriand já havia testado anos antes, em 1947, sua capaci- dade persuasiva na captação de recursos para a criação do Museu de Arte de São Paulo, cuja primeira sede foi no prédio dos Diários Associados, no centro da capital paulista. Chateaubriand já era um empresário de sucesso, dono de uma cadeia de jornais em quase todos os estados brasileiros, revistas e de uma rede de 25 emissoras de rádio. Neste contexto, a chegada da TV no Brasil foi uma grande aventura do capital privado, tal como ocorreu nos EUA, de quem adquiriu a tecnologia para implantação da nova emissora. O apoio das empresas que patrocinaram o novo negócio de Chateaubriand foi bastante valorizado. Um exemplo desta ação foi a escolha de Rosalina Coelho Lis- boa, poetisa, como “madrinha” da Televisão. Rosalina era esposa de Antonio Larragoti Júnior, proprietário da Sul América Seguros que viria a patrocinar muitos programas da TV de Chateaubriand. A chegada dos equipamentos, em janeiro de 1950 foi amplamente divulgada pelos jornais e nos rádios, criando um clima de expectativa para a novidade. Uma pré-estreia da televisão ocorreu em 04 de julho de 1950 para um seleto grupo que esteve presente nas cerimônias de inauguração formal do Museu de Arte de São Paulo e do Edifício Guilherme Guinle, sede dos Diários Associados, na Rua Sete de Abril, região central da cidade. Na ocasião foram instalados dois monitores de televisão, um no saguão do edifício e outro do lado de fora do prédio, a poucos metros de distância, na esquina das ruas Sete de Abril e Bráulio Gomes. Durante o evento, ao final dos discursos das

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Liana Vidigal Rocha • Edna de Mello Silva autoridades houve a apresentação do frei José Francisco de Guadalupe Mojica, que cantou seus sucessos. (MORAIS, 1994, p. 498). A cerimônia oficial de inauguração da televisão brasileira só foi acontecer em 18 de setembro de 1950. A solenidade, realizada nos estúdios do Alto do Sumaré onde a emis- sora de TV foi instalada, contou com uma missa com a bênção dos equipamentos e com a transmissão do programa inaugural TV na Taba. A nova emissora de TV foi chamada de PRF-3 TV Tupi de São Paulo. Eram poucos os televisores disponíveis na cidade, por isso muitas pessoas se aglomeraram diante das vitrines de lojas e dos aparelhos que foram espalhados pelo centro da capital. Quatro meses depois de estrear em São Paulo, Assis Chateaubriand decide inaugurar uma segunda emissora, desta vez na capital do país, o Rio de Janeiro. Em janeiro de 1951, a cidade maravilhosa passa a receber as primeiras imagens da televisão através da TV Tupi. No final da década, o país já contava com as seguintes emissoras: Tupi, Record e Paulista, em São Paulo; Tupi, Rio e Excelsior, no Rio de Janeiro e Itacolomi, em Belo Horizonte (PATERNOSTRO, 1999, p. 20).

IMAGENS DO DIA E O SEU REPÓRTER ESSO: PRIMÓRDIOS DO TELEJORNALISMO BRASILEIRO A primeira exibição de um telejornal no Brasil aconteceu no dia seguinte à estreia da televisão no país, em 19 de setembro de 1950, quando o telejornal Imagens do Dia noticiou o desfile cívico-militar pelas ruas de São Paulo. O programa tinha notícias locais lidas pelo locutor Ruy Rezende, que era também produtor e redator do telejornal. Encontramos roteiros que fazem menção a Ewaldo Dantas Ferreira como um dos apresentadores. As imagens eram produzidas em filme 16 mm, preto e branco, pelos cinegrafistas Jorge Kurkjian, Paulo Salomão e Alfonso Zibas. Na época, a programação da TV Tupi de São Paulo começava a partir das 20 horas e o telejornal não tinha um horário certo para ser veiculado, pois dependia da pro- gramação a ser exibida antes. Todos os programas eram feitos ao vivo. Os relatos de memória dos pioneiros da televisão brasileira dão conta de que o telejornal Imagens do Dia reproduzia em grande parte o modelo de noticiar herdado do rádio. O locutor lia as notícias em quadro (notas ao vivo). As imagens filmadas pelos cinegrafistas (quando existiam) eram apresentadas enquanto o locutor, ao vivo, narrava os acontecimentos (ALVES, 2008; LORÊDO, 2000). É importante destacar que nesta fase pioneira do telejornalismo brasileiro, em que o apuro técnico não supria todas as exigências para se traduzir com boas imagens os acontecimentos elencados para serem noticiados, o apresentador ocupava um lugar de destaque no noticiário. A imagem do locutor de notícias trajado com terno e gravata, e principalmente a sua voz, eram utilizados como recursos retóricos e legitimadores, funcionando como ferramentas de persuasão que convenciam o telespectador de que a notícia era verdadeira. Tratava-se de um telejornal que era apresentado de forma bastante simples: uma bancada com um locutor de notícias em quadro, que lia as notícias ao vivo e que trazia às vezes imagens do fato noticiado. Do ponto de vista técnico, no Telejornal Imagens do Dia, as notícias eram apresentadas no formato de nota ao vivo (nota seca) e

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Liana Vidigal Rocha • Edna de Mello Silva nota coberta (voz do locutor a narrar as imagens). Resguardadas as devidas proporções e limitações técnicas é algo bem parecido ao que podemos encontrar ainda hoje nos telejornais locais com poucos recursos. O Telejornal Imagens do Dia ficou no ar mais de um ano, de setembro de 1950 a dezembro de 1951. Em janeiro de 1952, foi substituído pelo Telenotícias Panair, apresentado por Toledo Pereira, às 21 horas. O noticiário radiofônico, Repórter Esso, estreou no dia 28 de agosto de 1941. Foi o primeiro programa de radiojornalismo do Brasil, veiculado pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Produzido pela agência de publicidade McCann-Erickson e patrocinado pela empresa norte-americana sediada no Brasil, Standard Oil Company of Brazil, o Repórter Esso se especializou em divulgar o “american way of life” e principalmente fazer propaganda das políticas interna e externa dos Estados Unidos para todo o mundo. Várias gerações nasceram, cresceram e formaram suas famílias ouvindo as notícias do Repórter Esso pelo rádio ou as assistindo pela televisão. No rádio, o noticiário ficou por quase 30 anos no ar e presenciou os principais eventos históricos – e as consequentes transformações sociais e políticas do país e do mundo entre os anos 40, 50 e 60. Para o ouvinte comum a credibilidade do radiojornal era muito grande, tornando-o uma refe- rência de informativo jornalístico por muitas décadas, com elevados níveis de audiên- cia. Na televisão, o programa foi chamado O seu Repórter Esso e estreou em 04 de maio de 1952, na TV Tupi do Rio de Janeiro (canal 6), sempre com transmissões ao vivo. Em dezembro de 1970, após quase de 18 anos de exibição, o programa deixou de ir ao ar. É possível localizar referências à presença do programa na TV Tupi de São Paulo, a partir de 1953, e na TV Paulista. A vinheta de abertura de programa na TV reproduzia o áudio dos acordes dos clarins e tambores que identificavam o programaRepórter Esso do rádio, enquanto era exibida a imagem de um globo terrestre rodeado por nuvens, em tons de cinza, preto e branco. O cenário do estúdio era simples, formado por bancada, cortina ao fundo com a logomarca do patrocinador e um microfone. O enquadramento era fechado no locutor-apresentador, figura principal da cena, quando este apresentava as notícias em tom solene. No Rio de Janeiro, o apresentador Gontijo Teodoro esteve à frente do telejornal e se tornou seu símbolo principal. Na apresentação do programa em São Paulo, a liderança foi de Kalil Filho, muito embora outros locutores tenham passado pela bancada paulista. Um dos segredos do programa que cativou o público e conquistou a credibilidade foi o compromisso com a pontualidade. O programa começava sempre no mesmo horá- rio, tinha sempre a mesma duração, com o mesmo tipo de organização de reportagens e apresentação. Souza (1984, p. 38) analisa que “na televisão, o esquema do “Repórter Esso” não diferia muito do modelo radiofônico. Havia um locutor só, matérias afins reunidas em blocos, ou segmentos, e a principal notícia do dia, a “manchetona”, lida em tom vibrante, quase dramático, no encerramento do programa”. Em relação ao conteúdo jornalístico do Telejornal “O Seu Repórter Esso” podemos afirmar que havia a predomi- nância de assuntos internacionais nas reportagens apresentadas. Uma das possibilidades de explicação desse resultado pode ser o fato de que a Agência de Notícias UPI tenha sido uma das parceiras do telejornal.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7169 Do “Imagens do Dia” ao “Hora Um”: um panorama histórico do telejornalismo nacional

Liana Vidigal Rocha • Edna de Mello Silva

A CONSOLIDAÇÃO DO JORNALISMO NA TELEVISÃO Na tentativa de romper com os padrões impostos pelo esquema radiofônico, surge o Jornal de Vanguarda, em 1962, na TV Excelsior. Idealizado por Fernando Barbosa Lima, o jornal trouxe para a televisão uma nova linguagem, que introduzia no estúdio vários locutores e comentaristas e visual dinâmico com bonecos em movimento. Para Priolli (1985, p. 08- 09), o diferencial do programa era ser produzido e apresentado por jorna- listas: “Era a primeira vez que os jornalistas deixavam a redação de seus jornais para entrar num estúdio de telejornal”. Com a mesma proposta de inovação, a TV Excelsior, lança também um programa jornalístico, chamado Show de Notícias. O ano era 1963 e o programa seguia as normas do padrão norte-americano, que se preocupava, sobretudo, com o visual e a controvérsia. O Show de Notícias foi o pioneiro na utilização de comen- taristas especializados. A década de 60 consolidou a TV no Brasil, pois foi nessa época que chegaram ao país os primeiros equipamentos de videoteipe que iriam revolucionar a forma de fazer televisão. A TV Tupi de São Paulo foi a primeira emissora a utilizar o videoteipe, gravando a festa de inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960 - e exibindo a gravação em várias cidades (PATERNOSTRO, 1999, p. 30). Em meados dos anos 60, surge a emissora que nas próximas décadas iria liderar a audiência no país: a TV Globo. Pertencente ao jornalista Roberto Marinho, proprietário das Organizações Globo (composta na época pela rádio Globo, o jornal O Globo e a Editora Rio Gráfica), a emissora carioca entrou no ar no dia 26 de abril de 1965. No final de 1970, saia do ar o Repórter Esso. O seu estilo de noticiário estava obsoleto, e como consequência desse desgaste, sofreu uma queda brusca na audiência. Segundo Squirra (1993, p. 106), o principal motivo da retirada do Repórter Esso foi o fato que a TV Tupi não conseguiu acompanhar o ritmo do desenvolvimento e os custos da implan- tação dos programas de telejornalismo nacionais. Claro que outras razões também contribuíram para o final do telejornal, entre elas a chegada da Rede Globo que trouxe novas formas de organização do processo de produção dos telejornais e principalmente princípios do mercado, que não aceitavam mais o programa ser patrocinado por um único anunciante. De acordo com Luiz Guilherme Duarte (1995, p. 39), “até 1976/1977, existiam apenas duas redes de TV no Brasil: Globo e Tupi. Foi apenas em 1977, quando a Rede Bandeirantes abriu uma nova estação no Rio de Janeiro – TV Guanabara – que veio a se tornar a terceira rede de TV no país”. Ainda não década de 1970, a TV Bandeirantes veiculou o telejornal Titulares da Notícia, que ficou marcado pelo fato de uma dupla sertaneja – Tonico e Tinoco – apresentarem as notícias referentes ao interior de São Paulo. “Dirigido por Gabriel Romeiro, o telejornal privilegiava depoimento popular e valorizava o trabalho do repórter, atribuindo-lhe, independente dos requisitos de aparência e voz bonita, a tarefa de divulgar as notícias” (REZENDE, 2010, p. 60-61). Já a TV Tupi, na tentativa de substituir o Repórter Esso, lançou a Rede Nacional de Notícias, que “era transmitido para várias capitais do país”. O diferencial do telejornal era mostrar os locutores em primeiro plano e “o ambiente de uma sala de redação” (REZENDE, 2010, p. 61). Algo que seria mais bem explorado pelas emissoras brasileiras duas décadas mais tarde. De acordo com Rezende (2010, p. 61), no final dos anos de 1970, tem início o processo de abertura política no Brasil e, como consequência, houve um enfraquecimento da

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Liana Vidigal Rocha • Edna de Mello Silva censura. Já os anos de 1980 trouxeram também novas modificações no jornalismo eletrônico. A Tupi, emissora pioneira do país, tem a sua concessão cassada pelo governo devido a graves problemas financeiros. Suas emissoras são divididas e dois novos grupos surgem no cenário televisivo: em 1981, a TVS (logo em seguida passa a integrar o SBT - Sistema Brasileiro de Televisão), pertencente a Sílvio Santos e em 1983, Rede Manchete de Televisão, do empresário Adolfo Bloch. Com objetivos bem definidos e completamente opostos, o SBT se destaca pela pro- gramação nitidamente popular, atingindo bons índices de audiência. Mesmo assim, no final da década, lançou o Telejornal Brasil, cujo formato trazia a figura do âncora tão popularizada no telejornalismo norte-americano. Boris Casoy era a “peça principal de todo um processo de eliminação da pieguice e mau gosto que imperavam no jornalis- mo da Rede até aquela data” (SQUIRRA, 1993, p. 139). Na contrapartida estava a Rede Manchete, que apostava em produções independentes e diferenciadas, como o Conexão Internacional e o Jornal da Manchete. “Em face do amplo domínio nos índices de audiência que a Globo preservava, o grupo Bloch optou por uma programação de qualidade que atingisse as classes A e B” (REZENDE, 2000, p. 122). Nos anos de 1990, a Bandeirantes volta a investir no jornalismo através do jor- nalista Paulo Henrique Amorim, que durante anos foi correspondente da Globo no escritório de Nova Iorque. No comando do Jornal da Band, Amorim exerceu as funções de apresentador, repórter e editor-chefe, inaugurando uma nova fase do jornalismo na emissora paulista. A característica principal do telejornal era o ‘estilo forte e opinati- vo’, contando com ‘informações exclusivas e ao vivo’ (PATERNOSTRO, 1999, p. 37). Foi também nessa década que o SBT lançou o Aqui Agora, telejornal popular inspirado no modelo argentino Nuevediario, que tinha como marcas a forte linguagem radiofônica e a utilização do plano-sequência “para dar mais realismo e suspense às histórias que narrava” (REZENDE, 2000, p. 131). No final dos anos de 1990, a televisão começa a se ver ameaçada por outras formas de entretenimento, entre elas a TV por assinatura e a internet. Telejornais, como o Jornal Nacional, que desfrutavam de ampla audiência, veem seus índices caírem consideravelmente. “Segundo boletins do Ibope, o JN perdeu, nesse período, 23 pontos de audiência, caindo de 60 para 37” (REZENDE, 2010, p. 73). Apesar da queda, as emissoras continuaram a investir em telejornalismo, criando canais segmentados com transmissão 24 de notícias, como Globo News, Band News e Record News. Inclusive a Band e a Record entram na briga pela audiência e lançam a 2ª edição de seus telejornais, respectivamente o Jornal da Band (com Roberto Cabrini) e o Jornal da Record (com Paulo Henrique Amorim). “Para fugir do padrão global e conquistar novos telespectadores, cada telejornal adotava estratégias diferentes. Cabrini, em corpo inteiro, transmitia suas notícias caminhando pelo estúdio. Amorim recorria à internet para dar as informações em tempo real” (REZENDE, 2010, p. 74). O século XXI trouxe mais modificações na área do telejornalismo principalmente no que diz respeito aos apresentadores. Em 2004, Celso Freitas deixa a Rede Globo e se transfere para a Rede Record. Em seguida, é a vez de Ana Paula Padrão sair da emissora carioca e assumir o comando do Jornal do SBT. Na visão de Hoineff, “pela primeira vez na história as quatro grandes redes comerciais de televisão no país (SBT, Band, Globo

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Liana Vidigal Rocha • Edna de Mello Silva e Record) ostentam telejornais de grande qualidade no seu horário nobre”3. É tam- bém nesse período que a disputa pela audiência entre as emissoras fica mais evidente, sobretudo entre Globo e Record. Rezende (2010, p. 76) afirma que “a competição entre os dois telejornais” fez com que as emissoras adotassem “práticas de apuração em busca de furos de reportagem”, investindo na espetacularização da notícia. Para acirrar mais ainda a concorrência, as emissoras abertas apostaram em formatos diferenciados, como boletins diários, programas segmentados e/ou voltados para a comunidade e para o entretenimento. Um exemplo foi a Band que investiu no noticiário policial Brasil Urgente e no CQC, um formato híbrido de informação e entretenimento. Já a Record apostou no telejornalismo matinal com o Fala Brasil e na revista eletrônica semanal Domingo Espe- tacular. No caso do SBT, a novidade veio com o Notícias da Manhã e o inusitado Jornal da Semana SBT transmitido aos domingos entre 5h e 6h30 da manhã e que traz um resumo do que aconteceu no Brasil e no mundo durante a semana. Por sua vez na Rede Globo, foram criados o Globo Notícia, o Radar, o Profissão Repórter e recentemente o Hora Um.

50 ANOS DE TELEJORNALISMO DA REDE GLOBO A TV Globo, canal 4, entrou no ar no dia 26 de abril de 1965. Segundo Prado (1996, p. 16), a inauguração TV Globo só foi possível devido a um acordo com a empresa norte- americana Time-Life, que facilitou o investimento em novos equipamentos importados dos Estados Unidos, além de pessoal especializado e cerca de cinco milhões de dólares. Tal associação era proibida pela Constituição brasileira, que impedia a participação de capital estrangeiro em empresas nacionais de comunicação. Contudo, o governo militar da época foi tolerante, pois recebia em troca o apoio da emissora que, com os recursos internacionais, ia se transformando na voz forte do país. O primeiro telejornal a ser transmitido pela nova empresa foi o Tele Globo, que contava com profissionais oriundos das redações do jornalismo impresso e sem experiência em televisão. Como os equipamentos eram importados e de última geração, a emissora decidiu criar um curso de preparação para os seus profissionais. Tanto os técnicos quanto os jornalistas tiveram uma série de aulas sobre os aspectos mais elementares de televisão. O telejornal era exibido em duas edições diárias com meia hora de duração: a primeira às 12h30 e a segunda às 19h, de segunda a sábado. Segundo a página do Memória Globo4, “a primeira edição tinha um tom leve, com destaque para os temas culturais e de entretenimento” enquanto que a edição noturna veiculava assuntos considerados “mais sérios”. No ano seguinte, a emissora criou novos programas jornalísticos: A cidade contra o crime (boletim informativo); Ultranotícias (cuja principal fonte de informação eram os filmes da CBS News); Jornal da Semana (destacava os assuntos ocorridos durante a semana); Jornal de Vanguarda (os apresentadores encarnavam personagens e se apresentavam de forma não convencional); Ibrahim Sued Repórter (o colunista do jornal O Globo informava os fatos relacionados à sociedade, à política, ao meio artístico e empresarial); Show da Cidade (boletim informativo que reunia elementos jornalísticos e

3. HOINEFF, Nelson. Quatro bons telejornais, quem diria? Disponível em: . Acesso em 7 fev 2015. 4. Informações obtidas no Memória Globo. Disponível em: . Acesso em: 7 fev 2015.

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Liana Vidigal Rocha • Edna de Mello Silva variedades); Manchete (informava sobre as principais notícias do dia de maneira rápida) e Jornal de Verdade (seguia a fórmula do Jornal de Vanguarda com tom informal, vários locutores, comentaristas especializados e humor). Em 1967, a emissora criou o Domingo Urgente, um “noticiário dominical, exibido às 22h, que apresentava uma cobertura completa das notícias mais importantes ocorridas durante o dia, através de reportagens externas e entrevistas em estúdio5”. O programa teve vida curta, ficando apenas quatro meses no ar, de setembro de 1967 a janeiro de 1968. Na época, a TV Globo contava com um grupo de profissionais que, divididos em funções específicas, permitia que a emissora se destacasse no cenário televisivo do país. Walter Clark, um homem especializado em marketing, coordenava a área de vendas. A produção e a administração ficavam sob a responsabilidade de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, e o setor jornalístico era dirigido pelo jornalista Armando Nogueira. Havia ainda Joe Wallach, assessor técnico, designado pelo Grupo Time-Life para supervisionar os trabalhos da empresa (HERZ, 1989, p. 138). Com a equipe trabalhando em sintonia, a TV Globo parte para um projeto mais ousado: a implantação do esquema de network (rede) no Brasil. Para que o plano se tornasse realidade, era necessário comprar ou firmar contratos de parceria (afiliadas) com emissoras espalhadas pelo país que tivessem interesse em retransmitir a programação da emissora carioca. Segundo Paternostro (1999, p. 31), esse projeto começa a ser concretizado a partir da constituição da Embratel (Empresa Brasileira de Telecomunicações) que vai interligar o Brasil através de linhas básicas de microondas e aderir ao consórcio internacional para utilização de satélites de telecomunicações, o Intelsat. A TV Globo foi a responsável pelo lançamento do primeiro programa em rede nacional no Brasil, o Jornal Nacional, em setembro de 1969, que era produzido no Rio de Janeiro e retransmitido via Embratel para as demais emissoras que compunham a rede (PATERNOSTRO, 1999, p. 31). Segundo José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, a ideia de colocar no ar um telejornal em rede não era original, pois, nos Estados Unidos, ela já havia sido implantada. Para Carlos Eduardo Lins da Silva (1985, p. 38) o Jornal Nacional “inaugura um novo estilo de jornalismo na TV brasileira”. Primeiro, por iniciar a era do jornal em rede nacional até então inédito por aqui, segundo por consolidar um modelo de “timing” da informação, terceiro por consagrar um estilo de apresentação visual requintado e frio, pretensamente objetivo e finalmente “pela extensão dos assuntos abrangidos, com a instalação de escritórios no exterior” (LINS DA SILVA, 1985, p. 38). Em menos de quatro anos, o Jornal Nacional assumiu a liderança absoluta de audiência, antes dominada pelo famoso Repórter Esso. Para Carlos Eduardo Lins da Silva (1985, p. 14) a liderança nos índices de audiência alcançada pela TV Globo, chegou ao ponto de transformá-la numa espécie de um ministério extraoficial da informação no País. “O Jornal Nacional ignorava os problemas nacionais. A censura do governo existia, mas, muitas vezes, a da própria casa, através dos diretores, e a autocensura de repórteres, copidesque e editores davam conta do recado” (LINS DA SILVA, 1985, p. 35). Com o JN consolidado, a emissora pôde investir em outros formatos, como o Globo

5. Informações obtidas no Memória Globo. Disponível em: . Acesso em: 7 fev 2015.

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Liana Vidigal Rocha • Edna de Mello Silva em Dois Minutos, um telejornal de serviços com duração de cinco minutos que trazia informações sobre a cidade com enfoque no jornalismo comunitário, além do Última Edição, “boletim informativo que apresentava comentários sobre os principais fatos nacionais e internacionais que foram notícia no dia6”. Vale destacar que nos anos de 1970, foram criados também os principais programas jornalísticos da Rede Globo que estão no ar até hoje: Jornal Hoje (1971), Globo Repórter (1973) e Jornal da Globo (1979). O Jornal Hoje nasceu como um telejornal local, exibido apenas no Rio de Janeiro e com duração de meia hora. Como o público feminino era o alvo do noticiário, seu conteúdo era voltado para os temas culturais, com destaque para as entrevistas, artes e espetáculos. A partir de 1974, o telejornal começa a ser transmitido em rede nacional e nas décadas de 1980 e 1990 passa a investir mais no gênero noticioso, com o intuito de se transformar no Jornal Nacional do horário do almoço. Ao completar 30 anos, em 2001, muda novamente o seu perfil e volta a dar mais ênfase às reportagens para o público feminino e também aos adolescentes7. Já o Globo Repórter é um programa que nasceu semanal. Com o foco voltado para reportagens mais aprofundadas e abordando temas como ciência, aventura, comportamento e natureza, o GR tem registrado fatos históricos do país e do mundo ao longo dos anos. No início, o programa adotou o formato de cinedocumentário, tendo recebido a contribuição de importantes nomes da área, como Eduardo Coutinho, Hermano Penna, Washington Novaes, Walter Lima Jr e direção de Paulo Gil Soares. Com o tempo o GR se distanciou da narrativa cinematográfica e passou a adotar o formato notícia-entretenimento. Para Resende, a transmissão via satélite, a partir dos anos de 1980, fez com que a emissora optasse a gravar o programa no formato de videoteipe. “Paralelo à transformação tecnológica, a mão-de-obra também se modifica: aos poucos, os cineastas são substituídos pelos repórteres” (RESENDE, 2005, p. 105). Nos anos 2000, o programa passou por novas mudanças. O jornalismo investigativo, abordado nas décadas de 80 e 90, dá lugar às matérias sobre meio ambiente, compor- tamento e documentários produzidos por emissoras estrangeiras e afiliadas da Rede Globo. Entretanto, a cobertura de fatos importantes, como o atentado às Torres Gêmeas no dia 11 de setembro nos Estados Unidos e o Tsunami na Ásia, em 2004, não deixaram de fazer parte da pauta do programa. Outro telejornal longevo da emissora é o Jornal da Globo. Sua primeira versão foi ao ar no período entre março de 1967 e agosto de 1969. Curiosamente, o telejornal foi substituído pelo Jornal Nacional, mas ganhou uma nova versão em abril de 1979. O seu enfoque era a veiculação de análises, séries, reportagens e entrevistas ao vivo, além dos correspondentes em Londres e Nova Iorque que apre- sentavam as notícias internacionais8. Em 2007, quando completou 25 anos no ar, o JG apresentou os melhores momentos e as mudanças mais significativas pelas quais pas- sou ao longo desse tempo. No ano seguinte, estreou a coluna Conecte sobre tecnologia, reforçando a tendência de trazer informações sobre o assunto para os telespectadores.

6. Informações obtidas no Memória Globo. Disponível em: < http://memoriaglobo.globo.com/>. Acesso em: 7 fev 2015. 7. Idem. 8. Informações obtidas no Memória Globo. Disponível em: . Acesso em: 7 fev 2015.

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SÉCULO XXI: TECNOLOGIA E NOVOS PRODUTOS É no século XXI que o telejornalismo sofrerá “reconfigurações” em função da internet e da era digital. Machado (2011, p. 87) afirma que a audiência atual da televisão aponta para dois tipos distintos de público: o espectador, também chamado de “audiência passiva”, ao cumprir o seu papel de espectador, e “audiência massiva”, cujos novos protagonistas (também chamado de “interatores”) estão “exigindo experiências midiáticas de uma modalidade mais fluída, formas de economia mais individualizadas que permitam a cada um compor suas próprias grades de programas e decidir a sua maneira particular de como vai interagir com elas”. É justamente nessa primeira década que os telejornais da Rede Globo passam por significativas mudanças com criação de novos produtos (Globo Notícia, Profissão Repórter e Hora Um); adoção do jornalismo participativo e investimento na realidade virtual. Segundo o site da emissora, a consolidação da internet e das redes sociais foram fatores que influenciaram no aumento da participação do telespectador nos programas. No caso da Globo, a presença do jornalismo participativo é uma realidade, sobretudo, no Jornal Hoje que abriu um espaço em seu site para receber material enviado pelo público, como fotos, vídeos, comentários e sugestões de pauta. Silva e Rocha (2011) destacam que é importante avaliar que a mudança nas formas de recepção da televisão, e do telejornalismo, implica também na necessidade de se repensar os conteúdos e os formatos de cada programa. Levando em consideração essas transformações, em 2005, ao completar 40 anos, a Rede Globo estreia o Globo Notícia, um boletim apresentado de segunda a sexta em rede nacional cujo intuito é o de informar sobre “os últimos acontecimentos do Brasil e do mundo”, antecipando algumas notícias dos principais telejornais (Jornal Hoje e Jornal Nacional). No ano seguinte, a emissora leva ao ar o Profissão Repórter. Nascido a partir de um quadro no Fantástico, em 2006, o programa surge com um slogan forte: “Os bastidores da notícia. Os desafios da reportagem”. Comandado pelo experiente Caco Barcellos, o programa conta com um grupo de jovens jornalistas, em início de carreira, que tem como compromisso ir “às ruas para mostrar diferentes ângulos de uma mesma notícia” (CHIARIONI, 2012, p. 29). Em 2014, foi a vez de lançar o Hora Um da Notícia, ou simplesmente Hora Um. Pen- sando no telespectador que acorda muito cedo (é veiculado das 5h às 6h da amanhã), o telejornal apresenta “as manchetes dos jornais que estão chegando às bancas”9, além da atualização das informações sobre trânsito, previsão do tempo e funcionamento de aero- portos. Tudo através de um telão interativo, elemento que vem sendo sistematicamente explorado pela emissora. Neste período, podemos destacar também a importância da Internet, das redes sociais e a produção de aplicativos como uma extensão da televisão tradicional em outras plataformas. Atualmente, os programas jornalísticos incentivam a participação do público por e-mail e nas mídias sociais, além de permitir o acesso aos seus conteúdos por meio de aplicativos para celular e tablets. A tela da televisão domés- tica se expandiu para novas telas móveis que acompanham o telespectador onde ele estiver. Com isso, a produção de conteúdos exclusivos para os internautas, a velocidade

9. Informações obtidas no Memória Globo. Disponível em: < http://memoriaglobo.globo.com/>. Acesso em: 7 fev 2015.

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Liana Vidigal Rocha • Edna de Mello Silva da circulação de informações e a resposta às demandas do público se tornaram preocu- pações pontuais das equipes dos telejornais que tentam atender a um espectador cada vez mais disperso, mas conectado e informado.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Apesar da sua curta existência, o Telejornal Imagens do Dia indicava já uma tendência que seria dominante no telejornalismo até o início dos anos 70. Era marcado por uma forte influência do rádio, tanto no que se refere à presença de locutores de notícias, quanto à formação da equipe técnica da emissora de televisão. O telejornal “O seu Repórter Esso” é a síntese dos anos iniciais da televisão brasileira. Apesar de seu comprometimento ideológico e político, o noticiário implantou um projeto organizado de apresentação de notícias baseado no compromisso com o telespectador. Os principais canais abertos da televisão brasileira tiveram vários telejornais em sua grade de programação. Com o tempo, o informativo televisivo tornou-se a principal fonte de informação dos brasilei- ros durante muitos anos. À medida que as tecnologias de captação e de transmissão de imagens foram se aperfeiçoando, novas linguagens foram incorporadas aos telejornais. Ao longo dos últimos anos, o jornalismo de televisão foi se consolidando e se adaptando aos novos desafios impostos por uma sociedade cada vez mais tecnológica. O fenômeno das grandes audiências da TV aberta dos primeiros 40 anos de história foi pontual, mas não sobreviveu à concorrência dos canais por assinatura e mais tarde da internet, restando um público jovem e ávido por novidades que possam ser acessadas em qualquer lugar, a qualquer momento. Neste contexto, o telejornalismo está se reinventando cotidianamente. A incorpo- ração de novas linguagens com câmeras portáteis, a valorização das cenas gravadas pelo público, os conteúdos atualizados nos sites, a organização de redações integradas, a permanência em várias plataformas, são itens essenciais para o jornalismo contem- porâneo. No entanto, o telejornalismo continua tendo legitimidade e reconhecimento por parte dos espectadores como um programa que reúne informação e conhecimento.

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7177 Memórias e agenda das mulheres jornalistas: Uma visão crítico/afetiva sobre o jornalismo Memories and agenda of women journalists: one critic / affective insight into journalism

Si m o n e A n to n i ac i Tu z zo 1

Resumo: O registro do cotidiano é a base da atividade jornalística. Com a multiplicação da mídia e, em certos aspectos, sua democratização, os registros que documentam a história se multiplicaram. No entanto, se os jornalistas são os historiadores da atualidade, pouco se fala sobre a memória dos próprios jornalistas, suas recordações enquanto trabalhadores que se definem a partir da triangulação da produção de documentos (textos, fotos, filmes, etc.), que passarão a ocupar um lugar de história; a apresentação da memória no presente; e a formatação da “agenda da memória”, o que será socialmente recordado como fato importante. Soma-se a esse aspecto o fato de que a profissão vem passando por numerosas mudanças, que incluem a convivência com a tecnologia e um processo de feminilização. Para entender melhor como se forma a relação memória e atividade jornalística foram realizadas entrevistas com jornalistas de Goiânia, com mais de 35 anos de idade, visando entender como elas constroem suas memórias profissionais, experiências de trabalho e a inter-relação de sua condição feminina com o trabalho. Palavras-Chave: Jornalismo 1. Mulheres Jornalistas 2. História 3.

Abstract: The daily record is the basis of journalism. With the multiplication of the media and, in some respects, its democratization, records documenting the history multiplied. However, if journalists are today’s historians, little is said about the memory of the journalists themselves, their memories while workers are defined from the triangulation of the production of documents (texts, pho- tos, movies, etc.), which will to occupy a place of history; the presentation of the memory in the present; and the formatting of the “Memory agenda”, which will be remembered as socially important fact. Added to this aspect the fact that the profession has undergone numerous changes, including living with technology and feminization process. To better understand how it forms the relationship memory and journalism were held interviews with journalists from Goiânia, aged over 35, in order to understand how they build their professional memories, work experience and the interrelationship of their female condition with work. Keywords: Journalism 1. Women Journalists 2. History 3.

1. Simone Antoniaci Tuzzo é Pós-Doutoranda e Doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Goiás. E-Mail: [email protected]

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7178 Memórias e agenda das mulheres jornalistas: Uma visão crítico/afetiva sobre o jornalismo Simone Antoniaci Tuzzo

INTRODUÇÃO REGISTRO DO que convencionamos chamar de fatos relevantes da atualidade – os fatos diários ou acontecimentos que interferem e transformam a rotina do Odia-a-dia, é a tarefa que define o jornalismo. Esse registro, que oscila entre as anotações sobre os fatos banais – o trânsito, o preço dos produtos, o fim das férias, e muitos outros – é também pontuado pelo registro dos eventos exepcionais. Em qualquer das duas situações – e certamente poderíamos citar outras – não é raro que o jornalis- mo se torne o único registro ou pelo menos um registro mais completo, dos fatos que acontecem em uma comunidade: as informações contidas nos textos, fotos, cenas ou bites de um jornal formam o fio recorrente de uma memória social ao mesmo tempo construída e vivida pelos jornalistas. Neste sentido, nos estudos midiáticos de uma maneira geral, é comum a afirmação de que as mídias são também “espaços para a memória”, mas é importante também entender que a memória midiática, ainda mais do que a memória humana, é um espaço “construído” a partir de numerosas intervenções, sendo necessário compreendê-las como espaço de disputas (SILVERSTONE, 2002). Assim, esse trabalho busca compreender de forma mais ampla as tensões entre memória, trabalho e esquecimento, conforme essa relação é construída no trabalho das mulheres jornalistas que atuam na cidade de Goiânia, e que por meio do seu trabalho, não apenas produzem o registro da história, mas também sentem a influência deste registro nas suas vidas e como elemento de valoração de si mesmas enquanto profissionais. Busca- se compreender, portanto, à luz das noções de memória e esquecimento, as contradições presentes na atividade jornalística.

A ATUALIDADE NÃO É UM MOMENTO, POIS PERDURA NA NARRATIVA O homem faz sua história e cria sua existência pelo trabalho, que é uma atividade transformadora não só da natureza, mas do próprio homem. A compreensão desse ponto é particularmente importante, uma vez que a proposta deste texto é a reconstru- ção da memória das jornalistas que trabalham em Goiânia, capital do Estado de Goiás, buscando entender como ele afeta (ou é obliterado) na percepção da dinâmica atual da cidade. Trata-se, de um estudo que tem como base a percepção de que as atividades jornalísticas, embora se definam pela atividade de “contar o mundo”, é também uma atividade de construção individual do sujeito jornalista, profissional cujo ritmo de vida e lembranças ficam marcadas pelo registro histórico que ele próprio ajudou a construir. Importante destacar que uma vez que a proposta deste texto é trabalhar com sujei- tos históricos – no caso específico, as mulheres jornalistas goianienses – a análise não pode ser separada de uma crítica-reflexão sobre os múltiplos aspectos sociais, cultu- rais, profissionais e econômicos, que afetam esses sujeitos. O quadro de observação se situa na articulação de elementos que envolvem sociedade, educação, cultura e história; elementos que serão compreendidos a partir da teoria das ideologias, do Materialismo histórico de Karl Marx e das releituras realizadas pelos teóricos do que se convencionou chamar Escola de Frankfurt. A relação entre jornalistas e memória pode ser dividida em três ângulos: a) a produção material de documentos que passarão a ocupar um lugar de história em

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7179 Memórias e agenda das mulheres jornalistas: Uma visão crítico/afetiva sobre o jornalismo Simone Antoniaci Tuzzo arquivos e bibliotecas, formando uma memória documental; b) a atualização, com base no presente de fatos que tiveram impacto no passado, como ocorre em datas comemorativas; c) a necessidade dos jornalistas de trabalhar a partir da “memória” ou de relatos de pessoas que participaram dos fatos a serem narrados/reconfigurados pelo jornalismo. É justamente a partir dessa triangulação que esperamos compreender como as jornalistas goianienses redefinem a relação memória/história, imputando-lhe novas percepções. Ao levar em consideração a triangulação destes elementos, buscou-se também construir uma fundamentação teórica-metodológica que articule a análise dos dados obtidos com um conjunto maior de observações, que vem sendo anotadas nos traba- lhos desenvolvidos dentro do Laboratório de Leitura Crítica da Mídia – UFG, e que buscam compreender o “...presente histórico, de duração variável, contextualizável sincronicamente com o que está acontecendo em outros lugares, e diacronicamente com passados e futuros diferentes, de curta, média ou longa duração” (BORRAT, 2006, p. 280, destaques do autor).2 Trabalha-se, com a noção do jornalismo como espaço ritualístico que marca a dimen- são histórica de determinados acontecimentos, revisando-os e reapresentando-os, e dos jornalistas como construtores, envoltos em tensões sociais e pessoais, que controem essa história no qual também se insere a sua dimensão contrária, o abuso do esquecimento condicionado pelas constradições evidenciadas pela memória da atividade profissional – memória do trabalho – das mulheres jornalistas.

UMA VISÃO DE HISTÓRIA E OS CAMINHOS PERCORRIDOS A consciência humana é condicionada pela relação dialética entre o indivíduo e os objetos do seu mundo: os sujeitos constroem/formatam o mundo (o seu mundo), mas, também são construídos/formatados pelas condições materiais deste mesmo mundo. Uma vez que a visão de história utilizada neste trabalho parte do princípio de que a percepção do mundo material é condicionada pela sociedade, e que “...a história é um processo de criação, satisfação e recriação contínuas das necessidades humanas”. (GID- DENS, 1990, p. 52 – comentando Marx), o trabalho se define a partir dos conceitos de Karl Marx e Friederich Engels, que entendem a história através de uma visão dialética (MARX, K. & ENGELS, 1984, p. 43). Para Marx e Engels é por meio do trabalho que os indivíduos produzem socialmente a sua vida. Desta forma, busca-se entender como as percepções da história das mulheres que trabalham como jornalistas, por meio de sua percepção cotidiana dessa história, brota aos seus olhos ou se desenvolve num presente vivido em um passado que pode ser descrito de forma dinâmica. (FERNANDES, 1983, p. 47). Assim, o trabalho envolve uma leitura crítica do discurso das entrevistas semies- truturadas cedidas por mulheres jornalistas na segunda metade do ano de 2014, mas também a leitura/análise de 16 entrevistas em profundidade realizada ao longo dos últimos dois anos (2014 e 2013), com jornalistas do sexo feminino, que atuam na Cidade de Goiânia, Goiás, com idade superior a 35 anos. A partir destes dados, o trabalho está ancorado na

2. La actualidad no es puro instante efímero. Dura. Es presente histórico, de variable duración, contextualizable sincrónicamente com lo que está ocurriendo en otros lugares, y diacrónicamente com pasados y futuros diversos, de corta, media o longa duración.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7180 Memórias e agenda das mulheres jornalistas: Uma visão crítico/afetiva sobre o jornalismo Simone Antoniaci Tuzzo percepção do jornalismo como um processo de mediação: Consequentemente, buscou-se destacar como as coberturas jornalísticas realizadas pelas entrevistadas interferiram na percepção do jornalismo e na própria percepção da história local em cada uma. Segundo Sousa (2008) uma das grandes vantagens da entrevista em profundidade é a possibilidade de serem obtidas informações detalhadas sobre valores, experiências, sentimentos, motivações, ideias, posições e comportamentos, entre várias características possíveis de serem exploradas dos entrevistados. A leitura crítica do discurso das entrevistas justifica-se em Bakhtin (1997, 2003) que afirma que toda linguagem é dialógica e o jornalismo é um lugar de sentido, composto por discursos dialógicos. Para Hohlfeldt e Strelow (2008, p. 387), “a discursividade implica no movimento do receptor para compreender a mensagem que lhe é enviada pelo emissor [...] a tradição francesa valoriza o emissor [...] e a inglesa o receptor, quem dá sentido último ao discurso, pois toda fala é um ato simbólico”. Para Sousa (2008, 2013), o discurso pode ser caracterizado como uma palavra- chave do jornalismo, pois o jornalismo é uma prática discursiva que resulta das interações sociais e depende do contexto histórico-cultural, por isso se firma em signos e significados de onde foi produzido e que gera efeitos sociais, culturais e históricos. Neste trabalho, o papel do receptor pode ser identificado em dois momentos, quais sejam, no discurso das jornalistas ao ressignificarem a fala dos atores participantes da construção da história narrada na produção jornalística e no discurso proveniente das jornalistas, analisado aqui pelas pesquisadoras. Trata-se, portanto de uma representação dos analistas dos discursos em duas fases.

AS JORNALISTAS E OS SEUS OLHARES Travancas (1993, p. 54), afirma que “…os jornalistas, em função das características específicas da profissão, possuem uma visão de mundo diferenciada”. Segundo a autora: “Há profissões que determinam uma postura muito particular diante delas e da vida, e acredito que o jornalismo seja uma dessas profissões. Ele é mais do que simplesmente uma fonte de sustento de seus membros” (TRAVANCAS, 1993, p. 98-99). A citação acima não é fortuita. Embora algumas discussões sobre essa abordagem já tenham sido realizadas pelos professores da Réseaux d’etudes sur Le Journalisme (REJ), um grupo internacional de pesquisa, composto por brasileiros, franceses, canadenses e mexicanos, do qual resultaram publicações coletivas, constata-se uma carência de estu- dos nesta área no Brasil. Assim, optou-se em trabalhar com os conceitos dessa autora, aos quais somamos e adaptamos alguns pressupostos de Becker (1982), também citado por Travancas (1993). Segundo estes autores, “mundos” são diferentes de instituições e/ou organiza- ções, porque suas dinâmicas internas não se baseiam obrigatoriamente em relações de autoridade ou poder, pois envolvem aspectos ideológicos que extrapolam a noção de pertencimento institucional. No caso específico do jornalismo, esse pertencimento envolve critérios ligados a ética profissional, mas também a formas convencionais de “agir”, ou de realizar a atividade profissional. De fato, pertencer ao “mundo dos jornalistas” envolve um engajamento específico e facilmente perceptíveis por outros jornalistas: é como fazer parte de uma confraria, algo maior do que um clube ou um

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7181 Memórias e agenda das mulheres jornalistas: Uma visão crítico/afetiva sobre o jornalismo Simone Antoniaci Tuzzo grupo, pois envolve a adoção de determinados comportamentos e até uma “forma de olhar” (o mundo e a sociedade) que os próprios jornalistas acreditam que os diferen- ciam dos outros sujeitos. Essa relação torna-se mais relevante na medida em que os jornalistas tendem a perceber-se “...como elementos essenciais e de muita responsabilidade dentro de uma sociedade”. (Travancas, 1993, p. 83), e valorizam a profissão a partir de um (pretenso?) poder de “[...] transformação da sociedade, de denúncia, de crítica”. (TRAVANCAS, 1993, p. 108). Confrontado com as condições diárias da produção jornalísticas – que via de regra estão longe de atender ao ideal da profissão – o jornalista tende a trabalhar entre duas concepções contraditórias: uma que lhe dá poder em excesso e outra que lhe retira as condições de gerir de forma clara sua própria vida. Neste sentido, torna-se ainda mais importante compreender como se constrói a memória dos jornalistas: como qualquer ser humano, ele está sujeito a interpretar suas lembranças, uma vez que a lembrança diz respeito ao passado mas atualiza-se a partir do ponto presente: “O passado é descrito muitas vezes em termos românticos, como se os indivíduos vivessem num tempo áureo no qual tudo era permitido (ORTIZ, 1995, p. 78).

MEMÓRIA DE JORNALISTAS Os resumos historiográficos feitos pelos povos antigos acerca dos fatos notáveis da sua vida quotidiana e das façanhas dos seus reis são um dispositivo pré-jornalístico. O jornalismo terá apenas substituído o historiador-cronista na tarefa de elaborar a historiografia do quotidiano. [...] Por fazerem história, jornalista e historiador cultivam idênticas qualidades e valores profissionais, como a preocupação pela fidelidade aos fatos, a intenção da verdade, etc. (SOUSA, 2008, p. 17). Na sociedade contemporânea a informação é mercadoria volátil, pois perde valor quando não circula com rapidez. Mais do que nunca, o jornalismo é uma atividade marcada pela urgência do tempo de apuração e de divulgação. Dessa forma, falar com jornalistas sobre o passado é uma incongruência, e só se justifica quando se apoia em outro elemento determinante da atividade: seu vínculo com a verdade, com a veracidade dos fatos: é a partir deste compromisso (ou do cumprimento desse compromisso) que o jornalismo constrói o seu capital social, ou elemento que define o seu valor na sociedade: a credibilidade3. No entanto, é por meio da memória social que o jornalista constrói sua identidade social. Incorporo no relato histórico, a produção jornalística deixa de ser provisória verdade, passa a ser uma verdade histórica, que vai durar até a próxima apropriação, até a próxima interpretação (PALACIOS, 2010, p. 45); mas passa também a ser referência para os próprios profissionais de imprensa que se apoiam como material de pesquisa e referência. De fato, uma das condições pouco discutidas sobre o jornalismo é que a atividade está intrinsicamente ligada à questão da memória. Uma vez que é impossí- vel para o jornalista presenciar e/ou vivenciar no tempo real todas as notícias, via de regra, o jornalista recorre (tão rapidamente quanto possível) à memória das pessoas

3. Segundo Sodré (2009, p.42), a credibilidade - qualidade atribuída aos veículos jornalísticos a partir do compromisso com a realidade/verdade – é o capital simbólico do jornalismo.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7182 Memórias e agenda das mulheres jornalistas: Uma visão crítico/afetiva sobre o jornalismo Simone Antoniaci Tuzzo que viveram ou foram agentes dessa notícia, e sempre que possível, a “pesquisas” de referências anteriores em veículos informativos. A informação jornalística, portanto, é um relato feito por jornalista a partir de outros relatos – memórias somadas de indivíduos que contam suas experiências, que relembram fatos e ações, pesquisas em veículos jornalísticos antigos e atuais, e da pressão social que remodela seu olhar sobre os fatos, novos e antigos, e consequentemente altera seu relato destes fatos. Para Bergson e Halbwalch “O passado, conservando-se no espírito de cada ser humano, aflora a consciência na forma de imagens-lembranças” (BOSI, 1994, p. 53), uma memória evocativa, que se refere a uma situação definida, individualizada, que se busca de forma consciente. (BOSI, 1994, p. 49). A essa somatória de percepções se resume a consciência de que “...toda fonte histórica derivada da percepção humana é subjetiva...” (THOMPSON, 1988, p. 197) e, ao traçar sua própria história, as jornalistas também estão envoltas em subjetividades.

O AGENDAMENTO DA MEMÓRIA A preocupação com a influência do jornalismo na tomada de decisões – nas escolhas individuais e coletivas motivou os estudos sistemáticos dos efeitos dos meios de comunicação a partir dos anos 1930, quando as ciências sociais aplicadas se consolidaram nos Estados Unidos. Mas foi somente a partir da década de 1950 que essa preocupação se ampliou para a questão dos efeitos em longo prazo. McCombs e Shaw (1972, p. 177) desenvolveram a hipótese de que as mídias delimi- tam a agenda das campanhas políticas, reafirmando a teoria de Bernad Cohen de que a imprensa é mais eficiente ao dizer ao seu públicosobre que pensar do que ao dizer o quê pensar. O paradigma do agendamento abriu espaço para pesquisas importantes, e foi sendo refinado ao longo destas pesquisas, sendo complementado pelo paradigma do enquadra- mento (PORTO, 2002), que busca entender o chamado “segundo nível de efeitos”, exami- nando não apenas sobre o quê a mídia influencia o público, mas também de que forma o público percebe os temas da agenda; e pela análise do cultivo de Gerbner (GERBNER et AL, 1977), que busca entender como a exposição generalizada do público a conteúdos conduzem a percepções semelhantes / compartilhadas da realidade. Embora a questão do segundo nível dos efeitos e a teoria do cultivo tenham gerado críticas entre os teóricos de que trata-se de uma percepção equivocada de que o conteúdo das mídias é excessivamente homogêneo, é inegável que nos momentos de cobertura de fatos traumáticos – notícias de grande impacto/interesse social – o jornalismo tende a homogeneizar suas ações, fornecendo informações que, mesmo não sendo totalmente iguais, apresentam grandes similaridades. Da mesma forma, as teorias dos efeitos a longo prazo não se fixam na perspectiva de um entendimento complexo sobre os processos interpretativos dos conteúdos das mídias e na questão da construção dos significados. No entanto, ainda que se baseiem principalmente no impacto e no tempo de exposição dos receptores aos conteúdos, a importância dos meios de comunicação na sociedade contemporânea, torna importante buscar compreender os aspectos centrais desta influência.

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Neste sentido, buscamos aqui entender como as mulheres que atuam no jornalismo goianiense processam coberturas jornalísticas de fatos de grande importância – e sobretudo como o impacto direto ou indireto destas coberturas afetam as suas percepções não apenas dos fatos em si, mas sobretudo de sua própria atividade profissional. A perspectiva é que os jornalistas em si mesmo constituem um público específico das notícias ou, como nos diz Bourdieu: “Ninguém lê tantos jornais quanto os jornalistas que, de restos, tendem a pensar que todo mundo lê jornais” (In GIRARDI, 2007, p. 150). O texto se coloca, portanto, na interseção de dois fatores: a memória dos jornalistas – no caso, das mulheres jornalistas – e como essa memória interfere no agendamento social da história local.

MULHERES JORNALISTAS: UM REGISTRO A presença da mulher no mercado jornalístico envolve mais do que uma mudança quantitativa, mas também uma mudança qualitativa. Até como uma resposta a ques- tões biológicas, a mulher tende a se preocupar mais com temas como educação e saúde, valorizando aspectos do cotidiano que normalmente são secundarizados pelos profis- sionais do sexo masculino. Muraro e Boff (2010), mencionam um olhar mais altruísta e solidário da mulher no universo do trabalho, e lembram que a democracia consiste em aceitar as diferenças como naturais, com espaço para diferentes percepções e narrativas da realidade. De fato, continuar a trabalhar como se mulheres não existissem ou fossem “iguais” aos homens nas atividades práticas da profissão, é negar o aspecto cidadão desta traba- lhadora. Evidentemente as mulheres são iguais aos homens na capacidade de trabalho, mas diferem deles em suas práticas cotidianas. No jornalismo, profissão centrada no cotidiano, é possível inferir que presença de mais mulheres nas redações interfira tam- bém na construção das narrativas sobre o cotidiano. Pesquisas sobre gênero apontam que as jornalistas, como mulheres em outros campos profissionais, sofrem com relações tensas no trabalho e violências de gênero (RAIS - Relação Anual de Informações Sociais, do Ministério do Trabalho do Brasil). Porém, de acordo com Koshiyama (2001), há uma mudança na perspectiva da cobertura jornalística da mulher que vai além das demandas e do universo feminino. Em entre- vistas sobre a atuação das jornalistas nas redações observou-se que as profissionais possuem uma visão mais contextualizada do fato, que estão mais atentas aos limites éticos da profissão, além de estarem mais atentas às questões que envolvem a família e a violência à mulher.

A MULHER JORNALISTA: UM PASSADO PRESENTE Ao pensarmos no tema deste trabalho, a questão da memória da mulher jornalista e sua visão como profissional deste passado determinando o que chamamos de agendamento da memória, consideramos também a visão da mulher jornalista como fator determinante para mudanças na sensibilidade no jornalismo, em uma perspectiva de que essa visão interfere na própria construção do conteúdo do jornalismo. Os elementos analisados fazem a necessidade de rever as entrevistas com as mulheres jornalistas.

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Nas entrevistas realizadas fica claro que o aspecto sensível é determinante nas memórias das jornalistas, embora não seja possível inferir se essa sensibilidade está ligada à condição feminina. As mulheres reclamam também que sofrem com relações tensas no trabalho e violências de gênero, mas revestem as reclamações com um certo bom humor e a perspectiva de que “as coisas estão mudando”. Nesse sentido, elas repetem a situação das mulheres em outros campos profissionais, (RAIS - Relação Anual de Informações Sociais, do Ministério do Trabalho do Brasil). Mas as mudanças ocorrem também fora das redações, nas pautas dos veículos jor- nalísticos. As entrevistadas citam que alguns temas entraram em cena, ou pelo menos se tornaram mais frequentes, nos últimos anos. É o caso, da questão da violência contra a mulher. Neste assunto específico, tudo indica que o ponto“ de virada” (expressão utilizada por uma das entrevistadas) foi o crime da mala em Goiânia. A partir deste marco – citado diretamente por algumas entrevistadas, mas relembrado de forma indireta quase que pela totalidade - “várias lembranças ainda são muito vivas”4. Segundo as entrevistadas, as lembranças mais marcantes estão ligadas a mortes e a situa- ções que envolvem preconceito e ações violentas. (...lembro principalmente das mortes, do sofrimento de quem ficou...5; tem coisa muito triste, como violência contra criança...), mas instadas a citar essas lembranças fica claro que predomina as situações que envolvem o bizarro e o grotesco: o marido que furou os olhos da esposa, a filha adotiva torturada pela mãe de classe média, etc. As entrevistadas assumem que essa pauta não só está mais presente, como a repercussão obtida nas coberturas passadas leva a novas coberturas. Neste sentido, o ponto em comum é a resposta dos receptores, se há resposta, o assunto cresce; se não, fica esquecido. Sobre a mudança das agendas jornalísticas, foi propositalmente citada a questão das “grandes coberturas” – desastres naturais, acidentes etc., que tiveram grande reper- cussão na cidade. De uma forma geral, as entrevistadas assumem que o clima (e seus desastres) virou “assunto”, está mais importante na última década. Da mesma forma, assuntos/coberturas de grande impacto igualmente são lembrados, e neste caso o aciden- te do Césio em Goiânia é uma citação recorrente, mas, normalmente, são entremeados por detalhes pessoais: ...naquela época eu estava grávida/...nesse tempo eu morava no interior..., etc. Aliás, não raro a trajetória profissional é atravessada por dados pessoais, e mais do que fatos de grande impacto, as profissionais relembram com prazer seus tra- balhos/coberturas mais significativos; trabalhos que envolveram jornalismo de imersão ou jornalismo investigativo. São citações pontuadas por expressões de prazer, orgulho profissional e gratificação pessoal: “A gente é envolvida no assunto”. Também é presença marcante nas memórias das jornalistas os aspectos que ferem a ética profissional, a manipulação da informação, a baixa presença de um jornalismo investigativo e a constância de uma imprensa “repetidora do que diz a fonte”. Igualmente está presente no discurso aspectos que envolvem elementos característicos da contemporaneidade: a pobreza, a ignorância, a carência de afeto. Nestes assuntos, as narrativas que se caracterizam pelos questionamentos sobre o jornalismo e por eventuais citações de que os envolvidos (vítimas

4. Os trechos destacados dizem respeito a frases ou trechos de autoria das entrevistadas. 5. Neste caso, se referindo as vítimas do acidente nuclear em Goiânia.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7185 Memórias e agenda das mulheres jornalistas: Uma visão crítico/afetiva sobre o jornalismo Simone Antoniaci Tuzzo e receptores das informações) mal conseguiam compreender o que estava acontecendo. Também são recorrentes as lembranças de atitudes dos colegas e eventuais chefes que: agiram de forma irresponsável colocando Goiás em situação difícil não passando as informações corretamente. As profissionais possuem uma visão mais contextualizada do fato, que estão mais atentas aos limites éticos da profissão e às questões que envolvem a família e a violência à mulher. Essa relação confirma a observação de Koshiyama (2001), de que há uma mudança na perspectiva da cobertura jornalística da mulher que vai além das demandas e do universo feminino. Analisadas em conjunto, as entrevistas deixam claro que as mulheres que atuam no jornalismo goianiense processam coberturas jornalísticas a partir de um olhar pessoal, mas, sobretudo, a partir de relações intrínsecas com a ética profissional. É a quebra desta ética que atua como uma quebra de expectativas, de confiança na própria profissão. Neste sentido é curioso que, apesar do desgosto confesso, das numerosas queixas sobre o dia a dia profissioanal, ainda valorizem a imprensa de forma genérica, atribuindo às suas ações (de forma individual eventualmente, mas em geral de forma coletiva) grandes mudanças sociais. Essa contradição, que propositalmente não foi assinalada pelas pesquisadoras durante as entrevistas, marca o conjunto das opiniões verbalizadas e aponta como as mulheres jornalistas atribuem à imprensa a capacidade de construir agendas: ...Se não fosse pela imprensa, ninguém ficava sabendo.... Agora está todo mundo indignado, reclamando, mas se não fosse o que saiu no jornal, ninguém falava nada. Da mesma forma, as mulheres também reconhecem positivamente a qualidade do seu trabalho: “...ser mulher é bom na hora de fazer cobertura de temas como saúde, educação, família. Os homens só querem saber dos grandes fatos, ou de economia ou de política. Não se preocupam com outras coisas que são importantes. A gente não tem preconceito.” Mas a reclamação quanto ao preconceito também permanece, com muitas críticas à distribuição das pautas: Segundo as entrevistadas, quem tem mais visibilidade, ou quem é homem, pega as melhores pautas, as coberturas mais perigosas. É um tal de mulher não pode fazer isso, não pode fazer aquilo. Fica claro também que o impacto direto ou indireto da memória atual interfere na construção de novas pautas: poucos assuntos são relembrados para uma revisão ou uma matéria que busque rever soluções ou até a ausência de soluções (crimes não resolvidos, situação de vítimas de desastres, etc). Neste aspecto predomina na visão das jornalistas (e que elas estendem ao conjunto dos jornalistas) que o receptor “não sabe e não quer saber”, ou simplesmente “não gosta de coisas velhas”. É importante registrar uma percepção clara, a valorização pelas mulheres jornalistas de um jornalismo “do passado”, mais pessoal e menos sensacionalista: naquela época a gente tinha mais tempo.../ antigamente a gente tinha que ir ver, não ficava sabendo pelo face.../ agora só interessa escândalo, desgraça pessoal... A memória das mulheres jornalistas, portanto, não está predominantemente no fato em si (ou nas lembranças dos grandes fatos jornalísticos), mas nas memórias selecionadas pela lembrança (em geral prazerosas) da atividade profissional.

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NO TEMPO ACELERADO DO JORNALISMO A MEMÓRIA É FUGAZ Rose Marie Muraro e Leonardo Boff (2010) desenvolveram trabalhos que explicam o valor da reentrada da mulher no mercado de trabalho com a segunda revolução industrial no século XX. O homem que antes ocupava sozinho esse espaço se tornou frio e competitivo, enquanto a mulher na reclusão do lar e nos cuidados familiares permaneceu solidária e altruísta. Agora ela traz de volta para o sistema produtivo e para o Estado esses valores. Para Muraro e Boff (2010) essa talvez seja a solução para voltarmos a ser uma sociedade igualitária. Essas mudanças, no entanto, ainda não são claramente visíveis nas entrevistas realizadas com as jornalistas goianienses. De uma forma geral, os valores citados acima não estão presentes nas falas das jornalistas, mas são percebidas como elementos complementares nos trechos em que a valorização dos aspectos éticos da profissão se destacam. Fica claro também que a jornalista goianiense não valoriza sua própria memória, e mesmo quando tem que buscar dados, recorre a fontes oficiais ou aos arquivos jornalísticos. Neste sentido, a prática diária do jornalismo, também os estudos sobre comunicação – e por extensão, sobre o jornalismo – desvaloriza o próprio profissional do jornalismo, seja no que diz respeito à memória do fato em si, de como ele se consolidou no imaginário das jornalistas, que é desvalorizado pela própria jornalista como algo que passou e que eventualmente deixou marcas na vida pessoal, mas não é redimensionado no pessoal, nas também pela desvalorização da memória humana em si mesma, que não é vista pelas jornalistas como base fundamental a partir da qual se constroem percepções e escolhas. Presas no presente, as jornalistas têm dificuldade de construir sua própria agenda de memórias e somente conseguem fazê-lo quando a entrelaçam com a vida pessoal. Essa relação reforça a importância (ou o diferencial) da profissão, que, como já foi apontado, se entrelaça com a vida social de forma diferenciada. Mas mostra também que a profissão presa em uma corrente de atividades e urgências do presente, oblitera seu próprio passado, a atuação e a memória dos seus profissionais. Ou, como disse uma entrevistada, se“ você puder esperar, eu vejo no arquivo tudo que teve de interessante. É rápido, tudo está digitalizado”.

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G u i l h e r m e O l i v e i r a Cu r i 1

Resumo: As principais questões desta pesquisa, que está em pleno andamento, subsidiada pela Fundação Biblioteca Nacional, são: compreender a constituição da mídia impressa sírio-libanesa no Brasil e traçar as linhas a partir das quais estas formas de mediações socioculturais se estruturam na primeira metade do século XX. Trata-se assim de um resgate crítico e analítico da produção de acúmulo teórico e intelectual durante um importante capítulo do desenvol- vimento da comunicação social no país e também uma tentativa de discernir como se constituíram as redes de comunicação diaspóricas em nível global, atentando paras as produções da imprensa sírio-libanesa migrante, comunidade tão presente na construção identitária cultural latino-americana. Somente no acervo da Biblioteca Nacional, até o presente momento, encontramos vinte e duas diferentes publicações disponíveis para consulta. Este número representa uma pequena parcela. Calcula-se que foram criados em todo Brasil pelos imigrantes ou descendentes de sírio-libaneses quase quatrocentos títulos de jornais, revistas, suplementos comemorativos e boletins de notícias. Palavras-Chave: diáspora árabe no Brasil; estudos migratórios; ciências da comu- nicação; história da mídia; sírio-libaneses.

Abstract: The main issues of this research, which is in full swing, funded by Fundação Biblioteca Nacional are: understanding the constitution of the Syrian- Lebanese print media in Brazil and trace the lines from which these forms of socio-cultural mediations are structured in the first half of XX century. This is also a critical and analytical rescue of a theoretical and intellectual accumula- tion of production during an important chapter in the development of media in the country. This look at the history with its deep relationship with the pre- sent is also an attempt to discern how constituted diasporic communications networks globally, considering the productions of the Syrian-Lebanese press in Brazil, very important community in the construction of Latin American cultural identity. Until now, we found twenty two different publications in the collection of the Biblioteca Nacional. This represents a small portion. It is esti- mated that were created throughout Brazil by immigrants or Syrian-Lebanese

1. Mestre em Sociologia pela University College Dublin; Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do Programa Nacional de Apoio à Pesquisa da Fundação Biblioteca Nacional. Integrante do Grupo de Pesquisa Diaspotics curi.guilherme@ gmail.com

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descendants almost four hundred titles of newspapers, magazines, greeting supplements and newsletters. Keywords: Arab diaspora in Brazil; migration studies; communication studies; media history; Syrian-Lebanese.

INTRODUÇÃO CONT EÚDO DE documentos disponíveis a respeito das grandes levas imigra- tórias para o Brasil, principalmente entre as últimas décadas do século XIX e O primeira metade do século XX, nos estimulou a empreender esta pesquisa na tentativa de discernir como se constituíram tradicionalmente as redes de comunicação produzidas por imigrantes sírio-libaneses2 que aqui se estabeleceram a partir deste período. Oficialmente, o início da imigração moderna no Brasil acontece em 1818, com a che- gada de quase dois mil suíços ao Rio de Janeiro. Registros mostram que até 1940, período da chamada migração em massa, responsável por 70% do volume total de pessoas deslo- cadas entre os anos de 1880 e 1921, cerca de 4,7 milhões de estrangeiros haviam chegado aqui. Fatores como próprio processo de colonização brasileira, a revolução industrial, o fim da escravidão, o crescimento demográfico europeu, as Primeira e Segunda Guerra Mundial e o comunismo na Rússia e Leste Europeu podem ser apontados como aspectos macrossociais para tal fenômeno (Escudeiro; C. 2014). Buscamos assim neste trabalho contribuir para um entendimento histórico da diáspora árabe rumo ao Brasil, na qual os sírio- libaneses estão inseridos, no sentido de pensarmos a história não como uma sucessão de causas e efeitos, mas como um processo detentor de uma força que produz acontecimentos permeados por suas contradições sociais e culturais. Primamos assim atentar de forma dialética sobre a constituição da imprensa sírio-libanesa no Brasil ao traçarmos as linhas a partir das quais se estruturou. Trata-se de um resgate crítico e analítico da produção de acúmulo teórico e intelectual durante um importante capítulo de desenvolvimento no país. Desta forma, acreditamos que pensar o vasto continente latino-americano, e por consequência o Brasil, sem considerar a sua profunda relação com os processos migratórios transnacionais seria algo impraticável. Desde a chegada dos primeiros imigrantes até os dias de hoje passamos por diversas mudanças de ordem cultural, social, política e tecnológica. Compreender estas mudanças é vista aqui como tarefa primordial para aqueles que trabalham com as ciências da comunicação. Salientamos que o texto apresentado a seguir é parte do projeto de pesquisa em andamento intitulado “O Renascimento Nahda passa por Aqui: Literatura e Imprensa Árabe Moderna no Brasil presentes no acervo da Biblioteca Nacional” subsidiado pelo Programa Nacional de Apoio à Pesquisa, que teve início em setembro de 2014 e tem a duração de um ano.

2. Optamos inicialmente pelo uso da hifenização sírio-libanês pois, mesmos distintos, no período inicial de imigração, habitavam o mesmo território denominado Cham ou Grande Síria, que naquele período era então dominado pelo Império Turco Otomano.

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NAVEGANDO PELOS MARES DA IMIGRAÇÃO ÁRABE NO BRASIL Ao adentrarmos no mar por vezes revolto da imigração árabe na América Latina, observamos que no Brasil a imigração de libaneses e sírios começa a crescer às vésperas do século XX, vindo a atingir seu auge mesmo antes do início da Primeira Guerra Mundial. Segundo o historiador e sociólogo Osvaldo Truzzi (1997) o ano de 1913, por exemplo, registra a entrada de 11.101 imigrantes árabes. No entanto, é preceito de bordo ressaltar que a presença da cultua árabe em todo o continente americano antecede, em vários aspectos, a imigração inaugurada ao final do século XIX assim como ressaltam a grande maioria dos pesquisadores do tema. Por meio de vínculos religiosos ela já se mostrava presente, como por exemplo desde o século XVIII através do africanos mulçumanos malês na Bahia. Tal fato está descrito no recente livro publicado sob o título Deleite do estrangeiro em tudo que é espantoso e maravilhoso. Estudo de um relato de viagem Bagdali 3. Pode-se também afirmar que desde o início da chegada dos portugueses e espanhóis a cultura árabe já estaria presente, manifestada na língua (muitas palavras no idioma português derivam do árabe), na culinária, na arquitetura, nas técnicas agrícolas e de irrigação, na medicina, na música etc. Tal fato dá-se pois os árabes dominaram por quase oito séculos a Península Ibérica, assinalando assim uma presença marcante em nossos colonizadores. Segundo o antropólogo americano John Tofik Karan (2005), “significativa- mente Granada, o último reduto árabe em solo europeu, foi conquistada pelos cristãos em 1492, no mesmo ano em que Colombo chegava à América”. (2005:65). Como veremos, este fator é de extrema relevância para compreendermos a constituição identitária árabe no Brasil expressa através das mídias impressas aqui produzidas. Ainda de acordo com Truzzi (2008), ao final do século XIX, muitos navios do oriente aportaram nos portos de Santos (SP), Rio de Janeiro (RJ) e Rio Grande (RS) com indivíduos que buscavam refazer suas vidas longe do Império Turco-Otomano. Mais precisamente, a principal época de entrada de sírio-libaneses dá-se na metade final do século XIX, por volta de 1880, quatro anos após a visita de D. Pedro II ao Líbano, considerada a grande onda migratória daquela região, composta principalmente por cristãos que buscavam maior liberdade de império regido por leis mulçumanas. Alguns autores, como Amorim (2010), afirmam que a grande maioria dos sírio-libaneses que vieram para cá enfrentavam uma difícil situação econômica, política e religiosa em seus países de origem. Segundo a pesquisadora, em 1861 houve uma grande perseguição de libaneses cristãos, fazendo com que muitos destes migrassem. Aos nos debruçarmos mais atentamente a estas questões, percebemos certa cons- trução mítica em torno das perseguições que os cristão sofriam na Grande Síria, algo até mesmo forjado por políticos árabes na América que defendiam o Líbano sobre protetorado francês, principalmente após o fim da Primeira Guerra Mundial. Nesta linha de raciocínio, Truzi (2008) defende que os cristãos emigraram em maior número

3. Trata-se do relato do imã bagdali, que viajou o Brasil em um navio do Império Otamano na segunda metade do século XIX e descreve a situação dos mulçumanos que viviam no país à época. Al-Baghdádi permaneceu no Brasil aproximadamente três anos, a partir de 1866 O relato autobiográfico – com termos em árabe, turco otomano, francês, grego, português e tupi descreve essa experiência, ajuda a compreender o processo por meio do qual as autoridades religiosas (neste caso Al-Baghdádi tentam promover uma mediação entre o Islã e a realidade cultural africana ou brasileira).

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7191 Reinventando identidades: a formação da mídia impressa árabe no Brasil na primeira metade do século XX Guilherme Oliveira Curi devido também ao fato de possuírem uma mentalidade mais progressista e menos apegada ao solo do que os mulçumanos. Segundo ele, seria assim possível concluir que, basicamente, a união de fatores econômicos, demográficos e políticos desencadearam a onda migratória (2008:26). Outra questão a ser ressaltada, ainda de acordo com Truzzi, é o fato de que os primeiros imigrantes empregaram-se como colonos. No entanto, como a maioria deles possuía certa facilidade para o comércio, logo começaram a se deslocar para os centros urbanos mais próximos. E a partir da acumulação de capital por meio da mascateação, prática de vender produtos manufaturados nas ruas, fez com que circulassem por todo país. Amorim (2010) salienta também que estes imigrantes eram em sua maioria solteiros do sexo masculino.

PENSANDO A DIÁSPORA Em um primeiro momento, elucidamos mais uma vez o fato de que todos os sírio- libaneses que migraram para o Brasil estão inseridos no que chamamos na cultura árabe de diáspora. Algo que vai muito além dos limites políticos e geográficos traçados para delimitar o que o ocidente chama - e muitas vezes estereotipa - de Oriente Médio. Os que aqui chegavam eram chamados de turcos por possuírem passaporte do império turco-otomano. Tal forma de identificação causava grande desconforto em praticamente toda a comunidade migrante sírio-libaneses pelo fato de justamente ten- tarem escapar de algo que os oprimia e os estigmatizava - um dos fatores chaves para a compreensão desta reconstrução identitária. Doravante, ao refletirmos sobre a primeira onda migratória sírio-libanesa no Brasil, percebemos que a mídia então serviria como um dos principais veículos de expressão para a reinvenção e também reafirmação desta nova identidade pretendida na nova terra. Ao longo de uma breve, porém atenta pesquisa bibliográfica, percebemos que uma grande parcela dos dados iniciais a respeito da imigração árabe no Brasil é fruto do trabalho do intelectual árabe Jammil Sáfady. Nascido no início do século passado em uma região conhecida como Levante (Grande Síria), Sáfady chega ao Brasil na primeira década do século XX. Grande parte de sua vida estudantil foi dedicada ao recolhimento de informações sobre a comunidade sírio-libanesa principalmente no Estado de São Paulo, contribuindo para a criação de um amplo repertório de dados sobre templos religiosos, vida associativa, ensino e imprensa árabe. Safády foi também pioneiro ao ministrar cursos livres de árabe na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de São Paulo, onde posteriormente seria desenvolvido o Departamento de Estudos Árabes. Já o irmão mais novo de Jammil, Jorge Sáfady, deu sequência ao trabalho de coleta e reunião de dados concluindo em 1972 seu doutorado na USP com a tese “A imigra- ção árabe no Brasil”. Assim, salientamos que as análises a respeito da imprensa árabe foram elaboradas a partir do cruzamento de títulos de jornais e revistas reunidos na tese de Sáfade, mapeamento bibliográfico na pesquisa que está em andamento na Biblioteca Nacional e coleta de informações fornecidas por historiadores que explo- raram a questão.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7192 Reinventando identidades: a formação da mídia impressa árabe no Brasil na primeira metade do século XX Guilherme Oliveira Curi

A partir destes dados, ao adentramos o debate proposto, de antemão observamos que as publicações sírio-libaneses aqui estudadas podem ser observadas como iniciati- vas de cunho comunitário4. Tal fato percebe-se a partir da utilização de estratégias de intervenção nas paisagens midiáticas local, nacional e global, desde a presença e visibi- lidade na grande mídia até a produção de sua própria mídia comunitária (ElHajji, 2011). No entanto, acrescentaremos que o papel da imprensa de diáspora árabe no início do século por vezes extrapola o quadro teórico que a caracteriza como meramente comunitária. Esse “a mais” diz respeito à constituição de uma espécie de esfera pública transnacional, na qual a imprensa migrante funcionou como platô de polarização política e organização partidária nas lutas pela libertação nacional nos países da região. Este aqui e ali, presente, passado e futuro nos remete a Hall (2003) ao trazer uma fun- damental observação teórica, salientando que o conceito fechado e hermético de diáspora se apoia sobre uma concepção binária de diferença, “uma espécie de fronteira de exclusão, dependente da construção de um “outro ou de uma oposição rígida entre o dentro e o fora” (2003:33). Segundo ele, o conceito de différance de Derrida, torna-se de extrema utilidade para uma melhor compreensão das formas diaspóricas. Différance seria assim algo que não funciona a partir de “binarismos, fronteiras veladas que não separam (...) mas também lugares de passagem (places de passage) e significados que são posicionais e relacionais, sem- pre em deslize ao longo de um espectro sem começo nem fim” (2003:33). Algo semelhante ao pensamento de Mirzoeff (2000) ao observar que a diáspora gera “múltiplos pontos de vista, no qual o observador está localizado entre indivíduos, comunidades e culturas em um processo de interação dialógica (...) que vai além da perspectiva cartesiana racional e positivista” (2000:06 – Tradução nossa). Como veremos, a mídia migrante sírio-libanesa habita este lugar de passagem, posicional e relacional.

IMPRENSA ÁRABE NO BRASIL: SURGIMENTO E EXPANSÃO Ao pesquisarmos a produção da imprensa árabe no Brasil nos deparamos com uma expressiva quantidade de materiais publicados em diferentes épocas, desde o final do século XIX até hoje. Somente no acervo da Biblioteca Nacional, vinte e duas diferentes publicações estão disponíveis para consulta, o que possibilita as análises a seguir. Muitos destes exemplares estão incluídos na pesquisa de Sáfady (1972). De acordo com o pesquisador, foram quase quatrocentos títulos de jornais, revistas, suplementos comemorativos, boletins de notícias e etc. criados pelos imigrantes ou descendentes de árabes no Brasil. No estado de São Paulo, reconhecido pelo alto número de descendentes de árabes, assistiu-se à fundação de mais de cem publicações árabe-brasileiras. Já no Rio de Janeiro foram contabilizados sessenta. No Amazonas cinco, no Rio Grande do Sul quatro, no Pará dois e em Minas Gerais uma. Estima-se que mais de 300 jornalistas tenham trabalhado na construção desses veículos e publicações. O primeiro jornal árabe no Brasil, que durou apenas alguns meses, foi publicado na cidade de Campinas- SP com o título de Al-Faihá. Um ano após, em 1896 nas cida- des portuárias de Santos-SP e Rio de Janeiro -RJ surgem mais publicações. Em 1901 já

4. Salientamos que por opção metodológica-científica de análise não será discutido o conceito de comunidade, estudado com afinco por autores contemporâneos como Giorgio Agamben, Jean-Luc Nancy, Roberto Esposito, Muniz Sodré, Raquel Paiva entre outros. Por hora, observa-se o tema está intrinsicamente ligado às questões migratórias transnacionais e irá nutrir, em momento oportuno, uma nova discussão.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7193 Reinventando identidades: a formação da mídia impressa árabe no Brasil na primeira metade do século XX Guilherme Oliveira Curi constavam cinco jornais. Mais de uma década se passa e em 1915 contabilizam-se dezoito periódicos. Muitos destes veículos utilizavam a titulação “Al Brasil” (O Brasil), algo que percebemos como uma tentativa de uma maior integração entre as comunidades na sociedade de destino, uma espécie de ancoragem no solo de acolhimento. No decorrer das décadas posteriores, São Paulo consolida-se definitivamente como principal centro de letras árabes, fato que acontecia paralelamente ao desenvolvimento da imprensa árabe no Rio de Janeiro e no Amazonas, que mesmo que em menor escala, permitiu a formação de uma esfera pública diaspórica que abrange todo o território nacional. Sobre esta proliferação da mídia árabe-brasileira, salientamos um fator que contribui para a difusão espacial e a capilarização dos jornais imigrantes: atividades desenvolvidas pelo Ahl al Kacha, nome árabe que designa o grupo conhecido como “povo da caixa” ou, no nome popular, caixeiros-viajantes e mascates. No capítulo sobre imprensa árabe disponível na tese de Jorge Sáfady, o assunto é introduzido com um texto de seu irmão Jammil, no qual o intelectual defende que o jornal árabe: “acompanhou o caixeiro em suas andanças, estabelecendo-se como uma espécie de escola circulante” (Sáfady apud. Sáfady, 1972, pág. 281), possibilitando assim para que muitos imigrantes de regiões do interior permanecessem informados não só com os acontecimentos do país de origem assim como sobre a vida estrangeira em outras regiões. Apesar de São Paulo ser o centro intelectual da diáspora árabe em ter- ritório brasileiro, a atividade econômica exercida tipicamente pelos imigrantes recém chegados estimulou a progressiva interiorização dos jornais produzidos nas capitais. Sáfady (1972) chega a relatar que um exemplar do jornal árabe “Abu Haul” chegou a ser encontrado em plena selva amazônica. Para Lesser (2000, pág. 103), fatores como este servem para elucidar que o papel social de tais veículos pode ser considerado ambíguo. Por um lado temos o uso do árabe nas publicações, o destaque à vida associativa e a constante atenção aos acontecimentos políticos do país de origem que contribuem para a manutenção dos laços pré-migratórios, de memória, do imaginário; de outro observamos orientações sobre como se estabelecer no novo ambiente, na nova terra, um estímulo à dinâmica de aculturação. De qualquer forma, vale ressaltar que não procuramos aqui estabelecer julgamentos de valor sobre se a imprensa árabe promoveu ou não a integração desses imigrantes, pelo contrário, acreditamos que a ambiguidade é uma das dimensões constitutivas da trajetória migrante, cujo paradoxo de estar dentro e fora ao mesmo tempo é reivindicado como ferramenta epistemológica central por inúmeros autores que se dedicaram a explorar a forma migrante de estar no mundo (Simmel, 1908; Sayad, 1996, Hall, 2003). No entanto, parece curioso que uma coletividade seja conhecida pelos reduzidos níveis de letramento e ao mesmo tempo tenha sido capaz de sustentar uma gama tão ampla e culturalmente rica de jornais e revistas. A aparente contradição pode ser destrinchada ao introduzirmos um segundo personagem chave na história da imigração sírio-libanesa: o intelectual árabe.

IDENTIDADES REINVENTADAS Ressaltamos assim que a formação da imprensa sírio-libanesa no Brasil não pode ser estudada de maneira apartada da própria história da Síria e do Líbano durante os

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7194 Reinventando identidades: a formação da mídia impressa árabe no Brasil na primeira metade do século XX Guilherme Oliveira Curi séculos XIX, XX e, obviamente, a sua profunda relação com a história brasileira e todo seu contexto político, social e cultural. Seguimos assim a lógica metodológica lega- da por Carlos Nelson Coutinho (2000), o qual observa que só seria possível entender “plenamente os fenômenos artísticos e ideológicos quando estes aparecem relaciona- dos dialeticamente com a totalidade social da qual são, simultaneamente, expressões e momentos constitutivos” (2000:09). Algo semelhante ao que Said (2013) chama de “empreitada intelectual de humanismo”, a qual ele compreende como uma tentativa “de dissolver grilhões forjados pela mente, de modo a ter condições de utilizar histórica e racionalmente o próprio intelecto para chegar a uma compreensão reflexiva e a um desvendamento genuíno” (2013:19). Seguindo estes pressupostos, a análise historiográfica das informações fornecidas por autores como Sáfady (1972) e Truzzi (1997, 2008) nos permitem assim pensar o flores- cimento da imprensa árabe no Brasil como prolongamento da atmosfera de efervescência e debate característica do Al Nahda. Tal nome - que em árabe significa diáspora - ficou conhecido como o movimento de renascença árabe, principalmente através da literatura. O Nahda5 é considerado um dos movimentos literários mais significativos que ajudou a estabelecer um novo paradigma das letras árabes na primeira metade do século XX o qual consistia em poetas, ensaístas e jornalistas espalhados pela América do Sul e América do Norte, geralmente conhecidos como “escritores mahjari”. De acordo com Karam (2008), os dois principais coletivos eram al-Rabita al-Qalamiyah (A Liga da Caneta), sediada em Nova York, liderada pelo famoso escritor Khalil Gibran, e al-Usbh al Andalusiyah (A Liga Andaluza), baseada em São Paulo e que reunia nomes um pouco menos conhecidas mas igualmente atuantes como Fawzi Maluf, Rashid Salim al-Khuri e Ilyas Farhat. Tal movimento motivou a criação de uma revista chamada “Liga Andaluza de Letras Árabes”, fundada em janeiro de 1933. Na revista eram também traduzidas para o árabe obras de importantes autores da literatura brasileira, “de maneira que estes se tornaram populares, conhecidos e apreciados pelos leitores árabes, como o são no Brasil” (Duon, T. 1994, p. 258). Um dos fatores motivacionais para tal empreitada literária era o fato de que para os sírio-libaneses agora no Brasil, a renovação da língua, que eles não ousavam fazer em sua terra de origem, em virtude de fortes tradições, já havia sido feito há quase cinco séculos na Andaluzia6. Considerando assim que estavam agora em um ambiente seme- lhante, no seio de um povo que provinha das mesmas terras, essa experiência deveria ser renovada através da literatura, com um pé no modernismo outro nas próprias raízes. É inegável que os árabes que dele participaram tenham sentido a necessidade de trans- por o espírito do movimento para nova comunidade e que se tornara numerosa e bem estruturada. O movimento foi tanto mais natural quanto as traduções de obras árabes para o português. Os primeiros escreveram em árabe, outros como Mussam Kuraiem,

5. Não é possível, nos limites do presente artigo, oferecer um panorama mais aprofundado a respeito do fenômeno Nahda. Acreditamos, no entanto, ser de extrema importância o estabelecimento dessa ponte histórica transnacional para termos em mente a complexidade da sociedade sírio-libanesa da época. 6. A região da Andaluzia, do árabe AL Andalu (atualmente território Espanha), durante quase oitocentos anos viveu sob domínio árabe (entre os séculos VII e final do século XIV). Este período foi marcado por uma grande prosperidade social e política onde diferentes culturas conviviam praticamente sem guerra. Durante estes séculos, a língua e a poesia árabes passaram a conhecer uma forte mutação e florescimento.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7195 Reinventando identidades: a formação da mídia impressa árabe no Brasil na primeira metade do século XX Guilherme Oliveira Curi em árabe e português na revista Al Chark-Oriente, fundada em 1927, bilíngue, e seus descendentes passam a escrever todos em português. Segundo Safadi (1972), o sentido de liberdade foi levado tão ao pé da letra, que podemos encontrar até mesmo obras que mesclam com termos indígenas e africanos como no livro As Aventuras de Finianos, de Chuckri Al Khouri. Retomando as análises mais ligadas a imprensa, fornecidas por Sáfady (1972), percebemos que os jornais e revistas árabes foram criados por uma classe de profissionais liberais ligados às atividades jornalísticas, políticas e literárias antes da imigração. Sanches (2009) defende que tais profissionais, jovens intelectuais árabes oriundos de renomados centros de estudo, como a Universidade Americana de Beirute, pertenciam a uma classe cultural distinta da maior parte dos demais imigrantes que chegaram ao país, e tendendo menos à mascateação e mais a “trabalhar e criar jornais, a fundar grupos associativos, movimentos literários” (2009:69). Para a pesquisadora, tais imigrantes cumpriam o papel de intelectuais da comunidade árabe no Brasil e viviam do seu trabalho como jornalistas, escritores e professores dos filhos da geração de migrantes que enriqueceram através do comercio. Tal fato nos remete ao que Gramsci chamaria de “intelectuais orgânicos” pois estes indivíduo exercem papeis de verdadeiros organizadores de uma cultura diaspórica que busca estabelecer seu lugar ao sol dentro de uma nova cultura hegemônica na qual agora faz parte. Nas palavras de Gramsci (2005), os intelectuais orgânicos têm como característica “a utilização de revistas e jornais como meios para organizar e difundir determinados tipos de cultura” (2005: 212). Desta forma, observamos que parte dos jornais e revistas funcionou como veículo de propaganda e relato da vida associativa de espaços de manutenção da sociabilidade hifenizada, tais quais o Clube Homs e o Clube Sírio Libanês, em São Paulo. Outros serviram como veículos de propaganda e informação numa espécie de marketing de conteúdo étnico de estabelecimentos comerciais. É o caso dos boletins da tipografia Al- -Funun e da livraria Farah, também em São Paulo, reforçando assim ainda mais a rede desta nova cultura diaspórica que cada vez mais se inseria na vida cotidiana brasileira. Torna preponderante também ressaltarmos que aos pesquisarmos os acervos da Biblioteca Nacional, deparamo-nos com um dos primeiros periódicos bilíngues (árabe e português) publicados em território nacional, sob o título de Al Ashmay. Na primeira edição, datada de 1899, há um artigo em português, sem título, na terceira página do jornal ao qual podemos observar a explícita vontade dos recém-chegados sírio-libaneses de serem aceitos, incluídos e acima de tudo percebidos como uma nova comunidade. Há ali, neste emblemático texto, uma tentativa de desmitificar o imigrante, não como alguém que está vindo para incomodar, causar danos, mas sim ser percebido como um indivíduo social capaz de produzir intelectualmente, de exercer funções para muito além de trabalhos braçais no campo. Um esforço textual de combate à exclusão, de quebras de estereótipos. Percebemos também que de um lado há todo um exercício de aproximação, no entanto admite-se e assume-se também a diferença, de alguém que pertence a dois lugares distintos. Não há, em momento algum, uma negação da terra natal, mas sim a valorização da mesma, de forma nostálgica e saudosa.

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Outro ponto interessante a ser observado é o expressivo valor que é dado ao poder da imprensa. Credita-se ao jornal impresso exercer esta função integradora, crê-se que através dele haveria uma maior aceitação e a consequente interação entre a cultura sírio-libanesa e a brasileira. O jornal aqui pode ser visto como um manifesto à apro- ximação de duas culturas aparentemente distintas, uma espécie de “olhem para nós”, existimos, temos a nossa cultura, vejam como ela é rica, viemos aqui para trabalhar, para construir um novo país e mais do que tudo, somos capazes intelectualmente para tal. Aqui vale salientar também que os sírio-libaneses não era os únicos que estavam migrando para o Brasil no final do século XX. Como sabemos, outras comunidades migrantes, como italianos, alemães, japoneses etc. aqui desembarcavam e também cria- vam diversos tipos de mídias, incluindo as impressas, para o exercício de tal função.7 Tal fato reforça ainda mais a ideia destes jornais serviram como forma de legitimação de cada comunidade migrante. Avançando assim na discussão, atentamos para a relação sociocultural entre os imigrantes sírio-libaneses que aqui viviam, produziam os jornais e o contexto político brasileiro da época. Ao analisarmos o levantamento feito por Safady, percebe-se um fato peculiar a ser destacado. No ano de 1941 vários periódicos encerraram suas atividades, principalmente os que já estavam ha mais tempo sendo publicados, entre eles: Fata Lubnán (O Jovem do Líbano), em São Paulo, que durou 38 anos; o Al-Adl (A Justiça), do Rio de Janeiro, que ficou 40 anos em atividade; e Ar-Rábiat (A Liga), em São Paulo, veículo de cunho político que publicava questões da Liga Patriótica Síria. Ao também atentarmos para o que estava acontecendo neste período, o motivo para tal fechamento torna-se claro: durante o Estado Novo, Vargas, em 1941 passa a banir a publicação de todos e quaisquer jornais em língua estrangeira. Segundo Lesser (2001) tal fato acontece paradoxalmente no exato momento em que os nacionalistas sírios estavam começando a acreditar no sucesso de sua luta pela independência em sua terra de origem. Aqui era uma das bases de exílio com maior força intelectual. Praticamente todos os jornais eram também comercializados em diferentes países da América Latina e até mesmo Europa Safady (1972) relata que paradoxalmente, nesta mesma época, o Brasil era reconhecido no mundo árabe como Terra da Promissão, “por nele terem encontrado algo do que procuravam, e que em seu meio ambiente, sob domínio da Turquia, não lhes permitia obter” (1972:84). Esta projeção que se fazia às terras brasileiras pode ser constatada nos periódicos e alguns livros de imigrantes árabes. Não ao acaso, três anos após fechamento dos até então tradicionais periódicos, em 1944 o escritor Taufic Duon lança em São Paulo um estudo sobre imigração árabe no Brasil intitulado A Imigração Sírio-Libanesa às Terras da Promissão. Este é o primeiro trabalho produzido por um imigrante sírio-libanês totalmente em português e que buscou de fato elucidar sobre as questões históricas da diáspora árabe no Brasil. Pouca atenção é dada a este valioso documento que permite lúcidas compreensões sobre este importante período que, em última instância, reflete também na construção da identidade brasileira. O livro é divido em quatro capítulos, além de uma breve introdução sob o título “Fins, Modos e Meios”.

7. Para tal, ver o trabalho publicado por Camila Escudeiro sobre os Jornais de Imigrantes guardados na Biblioteca Nacional, de 2014.

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Mesmo anteriormente a esta publicação, em 1937, apenas quatro anos antes do fechamento da maioria dos jornais produzidos por árabes, era fundada no Rio de Janeiro a Associação da Imprensa Libanesa, a primeira associação deste porte criada nas Américas. Após o fim do regime de Vargas, em 1945, começam a ressurgir as publicações árabes entre eles o próprio Fata Lubnán, agora com o nome de Brasil-Líbano, já demonstrando aí o caráter discursivo da hifenização decorrente dos encontros culturais no mundo ocidental pós-industrial que passaria de vez a marcar as comunidades migrantes. Outro importante periódico que volta a ser publicado no Brasil, mais precisamente no ano de 1947, após as drásticas medidas de Vargas, é o Al-Karmat, (A Vinha) impresso na cidade São Paulo. Esta publicação, que havia sido criada em 1914 por Saluá Salámi Atlas, é considerada a primeira publicação feminina árabe nas Américas, algo que por si só suscitaria análises mais aprofundadas. Por hora, vale ressaltar que a sua fundadora falou pela primeira vez em prol dos direitos da mulher em 1889 na cidade de Jerusalém, tendo vindo para o Brasil logo em seguida por razões de perseguição à sua luta. Mais uma vez observamos que, de cunho comunitário, esta empreitada intelectual se confrontava com a grande mídia totalizante que estava sendo instaurada. O mundo caminhava a passos rápidos para total mercantilização dos processos midiáticos, ancorada no modus operandi norte-americano, na mundialização como espírito presente (ver Paiva, 2008).

CONCLUSÃO Defendemos que além de servir para uma reformulação da identidade árabe, a imprensa migrante funcionou de forma muita intensa como plataforma intracomunitária de disputas políticas a respeito dos valores e posicionamentos de temas à comunidade em si e também de questões aos países de origem, formando assim uma comunidade árabe-brasileira, no qual a hifenização faz jus a uma nova identidade construída. Fica claro, através análise dos dados até aqui coletados, que os jornais e revistas árabes tinham um forte impulso político, ligados diretamente às causas do Oriente Médio, uma espécie de ponte midiática que os conectavam com a Síria e Líbano mas ancorados agora no Brasil. O indivíduo migrante aqui se defronta com a diferenciação binária entre local e global. Reinventa-se. Mesmo ainda não pertencendo a este território, ele busca justamente através da publicação de mídias impressas a demarcação de seu espaço enquanto ser social, assumindo ser estrangeiro, recriando a sua identidade ao procurar formas de integração e também de diferenciação.

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7199 Modelos informacionais e os agentes históricos da comunicação na cultura Information models and the historical communication agents in culture

I r e n e M ac h a d o 1

Resumo: Esse trabalho tem como objeto de estudo o processo de informação como contingência de forças históricas que organizam os sistemas culturais. Questiona a noção de informação como transmissão num continuum de inventos e veículos de comunicação. O objetivo é prover com instrumentos conceituais analíticos a história dos meios pelo viés das transformação culturais descontínuas. Para isso, segue o método da análise semiótica que toma textos e linguagens históricas como fontes do processo de modelização da informação nova. Pelo exame das premissas apresentadas, visa sistematizar a análise da hipótese segundo a qual o movimen- to de informação na cultura se encaminha para a explosividade emergente em eventos imprevisíveis de sistemas culturais construídos pelas forças históricas. Palavras-Chave: Modelo informacional. Imprevisibilidade. Modelização. Explosão. Topologias.

Abstract: The object of research in this work is the process of information under- stood as the contingency of historical forces organizing cultural systems. It inquires the notion of information transmission as a continuum of inventions and media. The goal is to provide conceptual and analytical tools the media history from the perspective of discontinuous cultural transformation. To do this, it is followed the method of semiotic analysis that takes historical texts and languages as sources of new information modeling process. By examining the assumptions presented it aims at coordinating the analysis of the hypothesis that the movement of information in the culture is moving towards the emerging explosion in unpredictable events of cultural systems built by historical forces. Keywords: Informational Model. Unpredictability. Modelling. Explosin. Topologies.

INTRODUÇÃO: O MOVIMENTO DESCONTÍNUO DA INFORMAÇÃO NA CULTURA M QUE medida os conhecimentos desenvolvidos no campo da informação são res- ponsáveis pela consagração do entendimento da história dos meios como sucessão Ede eventos e de veículos alinhados com os avanços do progresso técnico? Essa é a pergunta que está na base do estudo dos meios de comunicação no processo das

1. Universidade de São Paulo, [email protected].

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7200 Modelos informacionais e os agentes históricos da comunicação na cultura Irene Machado transformações histórico-culturais de sistemas informacionais que omite o papel dos signos em nome de um processo gradual de substituição de inventos técnicos, introdu- zindo aqui os termos da investigação semiótica de Iúri Lótman (Lotman, 1994, p. 49-54). Devemos à teoria da informação o conhecimento do processo de transmissão de mensagens que tantos impactos e implicações trouxe para áreas como as engenharias, a biologia, a antropologia, a lingüística – isso para citar um eixo fundamental. Desde que por informação se entende unidade de medida suscetível de delimitação quantitativa, a noção de transmissão se vincula à noção de transporte para definir e sintetizar os prin- cipais desígnios da informação na natureza e na cultura. Graças à noção de transporte reforça-se a noção de continuum histórico em que dominam os regimes de causalidade e de sucessão linear e progressiva, bem como a troca codificada que oferece mensagens prontas para serem decifradas. Regimes que, evidentemente, não se aplicam a todos os campos produtivos da cultura onde inserimos os meios com seus processos sígnicos de comunicação sócio-cultural e de geração de sentido que se manifesta em discursos histori- camente constituídos. Em torno da noção de transporte gravita o vértice de um problema que questiona não só o regime de causalidade do transporte como propriedade geral de todas as mensagens, como também o próprio transporte da teoria de um campo a outro. O que se reivindica aqui é, pois, uma compreensão do movimento da informação do ponto de vista das transformações não necessariamente previsíveis num regime de causalidade mas abertas às contingências das construções históricas da cultura, marcadas por diálogos e confrontos mobilizadores de relações transversalizadas em diferentes escalas de temporalidades. Contingências que ocorrem nos processos de comunicação e suas linguagens com intervenções em códigos que estão longe de ser meros sistemas de decifração. Em processos dessa natureza o movimento descontínuo integra a dinâmica do movimento histórico. E essa foi uma descoberta fundamental para a semiótica da cultura que emergiu nos anos de 1960, na Estônia, em diálogo com as pesquisas no campo da cibernética, da antropologia, da lingüística, mitologia, literatura e das artes. Descontinuidade tornou-se a chave da história dos sistemas semióticos da cultura inseridos na cadeia de distintas continuidades espácio-temporais. Um dos precursores dessa linha de pensamento, o jesuíta Pável Floriênski, assim se manifesta, num registro citado pelo semioticista Viatcheslav Ivánov:

Nos mais diversos domínios do conhecimento, pelo beirar do século XX, observam-se fenômenos dotados de caráter notoriamente descontínuo; por outro lado, o trabalhador consciencioso do pensamento, sem sombra de dúvida, vê-se obrigado a confirmar, mais uma vez, nos diversos domínios do conhecimento, a existência de uma forma[...] Onde se observa a descontinuidade, nos procuramos o todo, e, onde está o todo, vige a forma e, consequentemente, há uma delimitação individual de realidade para separá-la do meio circunstante. Por outras palavras, onde a realidade possui caráter discreto, existe certa môna- da, isto é, uma unidade (claro, relativamente) indivisível, fechada em si própria. (Florenski apud Ivanov, 2009, p. 316).

A transmissão de mensagens definiu as bases da investigação semiótica, não porque correspondesse à totalidade dos impulsos que constituem o movimento da informação na cultura, mas porque potencializou o debate sobre o contínuo e o descontínuo do

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7201 Modelos informacionais e os agentes históricos da comunicação na cultura Irene Machado processo histórico em suas contingências espaço-temporal. Seguindo concepções da antropologia russa da época, apreende-se uma orientação para confluências como se expressa A. F. Bernardini em sua leitura do trabalho de Ivánov.

...dentro das diferentes maneiras de se entenderem semelhanças pode-se admitir que muitas delas não se expliquem pelo modelo da continuidade histórica (o continuum da história), mas pela convergência de processos históricos tipológicos, na qual um dos modelos pode ser considerado o dos ciclos de desenvolvimento. Ou, em outras palavras: os resultados históricos de certa continuidade, cuja ocorrência nos é visível só são avaliados com base em outra continuidade análoga no passado, com a qual aqueles se identificam ou se correlaciona em certo sentido (Bernardini, 2010, p. 156).

Do ponto de vista da articulação histórica, há que se ponderar sobre o papel das transformações como agentes potenciais de modificação da própria informação que emerge então, não como uma mensagem a ser decifrada, mas sim como um funcionamento a produzir informação nova imprevisível. Diante de tal possibilidade, Lótman infere que o impulso fundamental do movimento da informação na cultura é a “luta pela sobrevivência” (Lotman, 1975, p. 28). A luta pela informação abrange tanto a preservação quanto a emergência. Nesse horizonte conceptual, nem as construções sobrevivem como manifestações isoladas, que podem ser substituídas, nem um produto representa mais do que outro a ponto de exercer um domínio sobre os demais. Na verdade, o movimento da informação na cultura se aproxima muito mais de um modelo dinâmico de transformação do que de uma unidade configurada numa transmissão unilinear. É como modelo que a informação revela sua condição explosiva, com capacidade de armazenar, distribuir e, principalmente, gerar novos arranjos como textos da cultura. Um modelo informacional que alimenta circuitos de imprevisibilidade segundo os quais é possível falar em dinâmica transformadora da informação em seu movimento na cultura. Ainda que o modelo informacional se apresente como emergência da descontinuidade, em nenhum momento ele pode ignorar o passado nem o continuum histórico, o que se constitui num desafio para a perspectiva que olha a história pelos sistemas de signos atravessados de contingências culturais.

MODELOS INFORMACIONAIS COMO CONSTRUÇÕES HISTÓRICAS A noção de modelo informacional foi desenvolvida por Lótman para tratar da tipologia da cultura, entendida aqui como conjunto de forças de preservação e de desen- volvimento de configurações futuras (Lotman, 1998, p. 81-92). Considera, sobretudo, a transformação da informação em texto de cultura e toma as linguagens históricas como processos produzidos pelas transformações. Nesse contexto, considera-se texto todo e qualquer movimento da informação em prol de interação com o entorno espaço-temporal. Por conseguinte, incorpora a comunicação de meios são apreendidos no movimento que transforma informação em cultura. Modelo informacional é, pois, uma forma de raciocínio para se pensar a história da cultura pelo viés do texto e das dinâmicas de seu espaço semiótico. A história da cultura, tal como vem sendo praticada no ocidente, centraliza na palavra a força e a raiz de seu desenvolvimento. A palavra escrita e o documento por ela

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7202 Modelos informacionais e os agentes históricos da comunicação na cultura Irene Machado produzido se tornaram o núcleo gerador de uma evolutiva como uma linha progressiva de sucessões. Grosso modo, desenham-se alinhamentos em que os meios se seguem uns aos outros gerando oposições graças à força de seus veículos: fala, escrita, fotografia, cinema, televisão, computador. Resulta daí a conhecida equação em que a cultura oral é situada nos primórdios em oposição à cultura eletrônico-digital mais desenvolvida e avançada, ambas com mediação da cultura letrada que, afinal, estabeleceu os parâmetros de tal escalada histórica definidora do progresso civilizacional. Lótman submete ao contexto do modelo informacional os parâmetros que sustentam tais encadeamentos uma vez que, nessa história, não se definem nem o lugar nem o papel do signo. Tampouco se considera o espaço semiótico gerador das forças construtivas do sentido sem as quais nenhuma história se desenvolve. Retomemos o fio inicial de nossa exposição. Quando Lotman atribui papel de inegável importância à informação na definição da cultura não é apenas o processo de transmissão que se coloca em análise. O alvo de sua indagação é a dinâmica transformadora de códigos culturais que a transmissão mobiliza. Interessa-lhe acompanhar o processo da culturalização que transforma os eventos em informação cultural capaz de gerar sentido e de situar os agentes da transfor- mação histórica com as delimitações temporais que as caracterizam. Longe de entender tal processo a partir de um ponto perdido no passado, a culturalização acompanha a vida dos sistemas da cultura. O processo cibernético foi fundamental a esse contexto especulativo pois desafiava o entendimento da culturalização dos sistemas de signos nos espaços semióticos (Ivanov, 1977; 1978). Nele se consolida os conceitos de modelo, de modelizar, de modelização e de sistema modelizante como conjugação de forças responsáveis pelo jogo das formas culturais: as variáveis no cenário de suas invariações, legado inconteste da noção de corte sincrônico a operar movimentos da diacronia. Nem o modelo é protótipo nem modelização se confunde com hereditariedade. Na acepção semiótico-cibernética, modelizar constitui a ação que envolve o trabalho com algoritmos de grande complexidade a partir dos quais é possível acompanhar o trabalho gerativo de outras formas (Ivanov, 2003; Lotman, 1979). No modelo se manifesta o jogo das variá- veis no campo das invariantes o que abre para a emergência de processos contingentes. É como contingência na história da cultura que Lótman nos leva a compreender o desenvolvimento histórico orientado, não pelos eventos constituídos num processo gradual de inventos técnicos, mas pela modelização de linguagens. Esse é o caso das produções de culturas ágrafas e das civilizações cujo desenvolvimento cultural não foi pautado por um sistema de escrita como o alfabético-ocidental. O exemplo de Lótman não poderia ser mais expressivo para o nosso debate: o caso das culturas pré-colombianas do continente sul-americano (Lotman, 1998, p. 82). O mesmo se pode dizer a respeito de seu questionamento que lemos sintetizado na pergunta: Por que a magnitude dos textos legados pelas culturas ágrafas não podem ser exemplos de desenvolvimento cultural? Para examinar tal formulação, consideremos o sistema gráfico dos geoglifos que o povo Nazca (200 a.C. – 600 a.C.) cultivou no deserto Peruviano ao longo de 37 milhas entre os Andes e o Pacífico... As linhas que desenham formas geométricas – cujo conjunto é alcançável apenas pela visão aérea – resultam da intervenção no solo e foram entendidas, ao longo dos séculos, tanto quanto sistema de irrigação quanto aeroporto alienígena. Ainda que os

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7203 Modelos informacionais e os agentes históricos da comunicação na cultura Irene Machado geoglifos sejam formas gráficas não geradoras de um sistema de escrita, o conjunto organiza formações culturais responsáveis pelo desenvolvimento de modelos informa- cionais que não são estranhos ao universo da escrita. Basta que se reconheça no registro em superfície o processo modelizante da composição gráfica e diagramática de linhas no embate de fronteiras espaciais que sustentam processos interpretativos em planos empírico e perceptual-cognitivo. Para isso, convém observar o papel dos códigos como agentes históricos do modelo e da semiose cultural encarregada da modelização de sistemas culturais. Vejamos. Entende-se por código cultural estruturas de grande complexidade (Lotman, 1979, p. 32-33) que operam com algoritmos limitados mas abrangem um vasto campo das relações no espaço semiótico da cultura. Nos processos de comunicação, sobretudo quando se tem no horizonte os meios e suas linguagens, não apenas a oralidade como também as inscrições de sistemas gráficos são os agentes por excelência da geração de códigos culturais. Os geoglifos inseridos no campo dos códigos gráficos da cultura não se situam à margem de tal movimentação. Todo processo gráfico – de um ponto, de uma linha, de uma forma (geométrica ou não) ou de um algoritmo – coloca em relevo traços elementares em arranjos combina- tórios de caráter sintático, semântico e pragmático. Os geoglifos, por exemplo, podem ser tomados tanto como sulcos cravados no solo como sistema de irrigação, quanto como desenho de uma figura que, para ser visualizada, há que se deslocar o olhar da superfície do solo e mirar a composição a partir do espaço aéreo. Entra em cena uma condição cultural complementar: a visão do espaço tomado de uma posição exterior em relação ao solo. Nesse caso, a figura resultante da composição de formas geométricas resulta da modelização de códigos de tomadas aéreas. Em nossa cultura, tal condição resulta não somente dos códigos de registro em superfícies – como a escrita, a pintura, a fotografia etc – mas também da ação de meios técnicos ou de instrumentos espe- cialmente construídos para tal, como as lentes confeccionadas por Galileu Galilei, as câmeras fotográficas, as videográficas e as digitais. A operação de leitura dos geoglifos como diagramas modelizados pela tomada aérea de registro na superfície constitui a contingência de um desenvolvimento histórico que independe de sucessões de meios, contudo, ganha magnitude expressiva quando vinculadas a eles. O dado surpreendente dessa hipótese é a emergência da codificação aérea como linguagem da cultura, não da civilização Nazca, mas do corte sincrônico que ela torna possível. Afinal, a noção con- sagrada como vôo-de-pássaro está na base do modelo informacional em que tomadas panorâmicas do espaço ou a construção em perspectiva (linear ou reversa) sustentam os meios e processos fundadores de nossa cultura visual. Sabemos do papel que os códigos visuais desempenham na construção da história da cultura ocidental. Tudo o que entendemos como espaço, vincula-se aos conhecimentos de códigos perspécticos e, evidentemente, de seus meios de produção. Nisso reside a força dos modelos infor- macionais e sua capacidade de produzir informação nova. Quando o meio é pensado em relação ao modelo ao qual se atribui a responsabilidade da transformação, já não é somente a técnica que prevalece mas a modelização das formas culturais tanto dos códigos e das linguagens quanto dos espaços em suas fronteiras. Tal hipótese poder ser dimensionada quando situamos no horizonte de nossa investigação

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7204 Modelos informacionais e os agentes históricos da comunicação na cultura Irene Machado os instrumentos na sequência de sua invenção técnica. Todos mantêm como núcleo o processo de codificação gráfica ainda que resultem em sistemas radicalmente distintos. Fotografia, cinematografia, videografia e as atuais infografias resultam de codificações gráficas que guardam entre si um princípio de similaridade fundado pelo processo técnico de transformação tecnológica (mecânica, elétrica e eletrônico-digital). Como não dimensionar esse nicho – que não é uma mera sucessão técnica – da história dos meios?

EXPLOSIVIDADE DAS TOPOLOGIAS INFOGRÁFICAS EM ESPAÇOS SEMIÓTICOS Imprevisível é fenômeno que acompanha as ações humanas (Lotman, 1994, p. 78) e não se coloca irredutível a uma sequência de eventos dedutíveis entre si. A emergência da imprevisibilidade é, por natureza, desestabilizadora. Daí porque tal linha de raciocínio dialogue tão diretamente com os sistemas culturais, o que certamente aproximou Lótman das premissas conceituais de Iliá Prigogine e Isabella Stengers a respeito dos sistemas dissipativos. Segundo tais premissas, quando impera uma alta concentração de processos físicos – de energia, no caso estudado por Prigogine – seguem-se movimentos de desequilíbrio e estados de instabilidade e indefinição. Segundo ele, trata-se de um trabalho de “significado revolucionário para o pensamento científico como um todo porque enfrentou o problema do acaso na ciência e demonstrou a função do fenômeno contingente na dinâmica geral do mundo” (Lotman, 1990, p. 230). Lótman vê a propriedade da concepção de Prigogine-Stengers sobre os sistemas dissipativos para tratar do movimento da informação na cultura, mais particularmente, a dinâmica das modelizações imprevisíveis que desestabilizam as interações em espaços semióticos. Segundo suas elaborações,

Em condições extremadas de desequilíbrio os processos fluem não em um suave curso predeterminado, mas eles flutuam. No momento de bifurcações o sistema encontra-se num estado que é impossível de prever para qual estado ele irá se conduzir. O máximo que se pode fazer é indicar estados possíveis. Nesse momento, o acaso desempenha papel deci- sivo (entendendo por acaso não a ausência de causalidade, mas o fenômeno de outra série causal) (Lotman, 1990, p. 231).

Tal é o quadro de alta concentração de modelos informacionais em luta nos espaços culturais de modo a provocar movimentos de desestabilização que Lótman denomina de explosão (Lotman, 1994, p. 35; 1999, p. 170). A explosão mostra o comportamento dos sistemas do ponto de vista das forças dissipativas que, em vez de seguir uma rota de deslocamentos de um ponto a outro, flutuam e avançam por encruzilhadas que colocam opções submetidas a escolhas: em meio à profusão de destinos somente um será seguido. Cada vez que falamos de imprevisibilidade, falamos de um complexo de possibilidades, das quais somente uma se realiza (Lotman, 1994). Existem fenômenos que são explosivos por natureza; outros que oscilam entre explosões e equilíbrios. Tudo o que gravita em torno da linguagem é explosivo; em contraposição, nem tudo que diz respeito aos meios de comunicação situa-se no mesmo horizonte. Daí a necessidade de considerar as oscilações entre diferentes ordenamentos: o contínuo e o descontínuo (Lotman, 1999, p. 26), sobretudo quando se trata de modelos

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7205 Modelos informacionais e os agentes históricos da comunicação na cultura Irene Machado informacionais configurados na projeção de códigos, línguas e linguagens. A diversidade dos meios de comunicação amparados por seus ambientes culturais constituem desafios consideráveis a tal premissa. Quanto maior a capacidade de efeito de multiplicação dos meios, maior a dinâmica renovadora do campo das formas em luta. Consequentemente, quanto mais integradas as formas culturais, mais perde sentido definir a escalada histórica a partir de sucessões e transportes de meios isolados. Em seus estudos, Lótman trata da explosão em movimentos de grandes movi- mentações como foi o caso das convulsões provocadas pelo fim do Império Romano, com a explosão de línguas nacionais, de sistemas comunicativos que se lançaram para o além-mar construindo um radical conceito de fronteira geopolítica entre culturas e um novo modelo informacional do mundo que poderia ser, então, navegado segundo as cartografias graficamente codificadas seguindo os contornos de terras continentais desenhadas pelo mar oceano. A explosividade dos modelos informacionais dos meios de comunicação renascentista conjuga expansão de línguas nacionais e de transporte com ulterior transformação em sistemas culturais, como já examinamos em outro estudo (Machado, 2014a). Diríamos, a propósito, que os estudos de Marshall McLuhan a respeito da revolução das linguagens elétricas se inserem na mesma ordem de fenômenos. A esse problemas também já dedicamos estudos específicos (Machado, 2014c). O que se coloca agora em nosso horizonte e um outro campo de forças dissipativas: aquele constituído pela linguagem informática, mais especificamente, do software. Não é nem o computa- dor nem a totalidade do meio digital que sintetiza o objeto de nossa reflexão, mas sim as transformações dos sistemas gráficos que operados digitalmente movimentam as explosões de que fala Lotman e inserem descontinuidades no desenrolar histórico. No limite, o próprio espaço semiótico se torna núcleo de transformações e emergências de novas fronteiras. Ainda que inserido na cadeia progressiva dos meios digitais, o software opera no limite de um confronto: a configuração dos algoritmos numéricos num espaço de fron- teiras. Ainda que orientado para o processamento de códigos distintos – alfabéticos, tipográficos, audiovisuais, cinéticos, sonoros – em termos de algoritmos numéricos, na verdade, o que se observa é que tais códigos modelizam digitalmente os processos e os conjugam em termos espaços de grande concentração informacional e de fronteiras. Não obstante um software seja definido como “plataforma” ou dispositivo de circuitos eletrônico-digital de operação numérica, não se trata de uma superfície de registro, mas de arquivo de dados combinatórios e probabilidades. Muito mais do que topografia, um software se constitui como topologia de relações cujos algoritmos funcionam tanto para conectar quanto para dispersar. Estamos diante de uma nova sintaxe. Qualquer infográfico produzido com base em tal sintaxe encontra no nó, ou na encruzilhada como queria Lótman, o procedimento construtivo da multidirecionalidade de caminhos e da imprevisibilidade de relações. As topologias se firmam como modelos informacionais dessa cultura digital onde o software se configura como linguagem. Não o computador mas o software com seus algoritmos estruturadores de topologias infográficas que se tornaram a combustão da explosividade da cultura, disseminando tanto a ideia de que ele guarda possibilidades infinitas de realização, quanto de que não podemos mais viver sem eles.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7206 Modelos informacionais e os agentes históricos da comunicação na cultura Irene Machado

Deixando os exageros de lado, a força de hipóteses como essa se acomoda na noção de linguagem uma vez que somente enquanto tal se pode vislumbrar um processo de articulação sintática a partir de elementos discretos com exponencial capacidade de gerar signos e sentidos. Para Liév Manovich, a palavra chave da nossa era é software exatamente porque se constitui como linguagem.

Software tornou-se uma linguagem universal a compor uma interface com nossa imaginação e com o mundo. O que a eletricidade e o motor de combustão foram para o início do século 20, software é para o início do século 21. Eu penso nele como uma camada permeável da sociedade contemporânea. Se quisermos entender as técnicas contemporâneas de comu- nicação, representação, simulação, análise, tomada de decisão, memória, visão, escrita e interação temos de entender software. (Manovich, 2013)

O software leva os sistemas culturais a se confrontarem com novas experiências de linguagem. Da mesma forma como os algoritmos numéricos permitem a modelização de distintos sistemas semióticos – da palavra, dos signos audiovisuais, cinéticos etc – as topologias infográficas permitem interações que intervêm diretamente em espaços. Aquilo que examinamos nos geoglifos – a visão aérea dependente de um exercício perceptual-cognitivo que somente os instrumentos visuais nos levaram a experimentar – passa por modelizações que merece atenção uma vez que é todo o espaço que é subme- tido a novas incursões. Graças às “performances de software” (Manovich, 2013), tempo e espaço se submetem a regimes de temporalidades e de espacialidades não usualmente substantivadas no plural. Seguindo as mais elementares funções da linguagem na pers- pectiva semiótica, temos aqui uma linguagem plenamente justificada em sua dimensão sintática, semântica e pragmática. Sabemos o quão caro foi para o cinema a descoberta do exercício de montagem a partir de planos não apenas na seqüencialidade de cenas mas na transversalidade de relações (cinemáticas, discursivas, estéticas, filosóficas etc). Montagem como a explicitação de relações não diretamente visíveis na plasticidade da composição audiovisual. Pois é exatamente essa a dimensão que se torna estrutural à performance do software na constituição da topologia infográfica cujo fim é modelizar espacialidades e temporalidades. Deslocar-se numa topologia infográfica é mais do que saltar de um link para outro; significa transitar na fronteira e em várias direções, inclusive aquela que leva para o exterior aéreo da visão-de-pássaro. Acrescentam-se outras coordenadas ao espaço: os movimentos de zoom in e zoom out da câmeras audiovisuais. Assim, os modelos informacionais de georeferência, geolocalização e de mobilidade já não se limitam às coordenadas terrestres mas reverberam em ressonâncias de um espaço infinito, como já nos referimos em outros momentos (Machado, 1914b). Convivem com ações e enuncia- dos cotidianos que estão longe de se restringirem aos produtos de entretenimento. Os aplicativos de Google Map e GIS introduziram as paisagens do espaço apreendido por satélites. Um exemplo de uma região vivendo um problema ambiental como a seca que se representava com uma fotografia da região – uma parte abrangendo o todo –, agora ganha uma outra configuração: a imagem capturada pelo satélite. Longe de ser apenas mais uma invenção, trata-se de uma nova habilidade de linguagem uma vez que para seu pleno exercício há que se aprender a operar topologias que articulam em escalas as

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7207 Modelos informacionais e os agentes históricos da comunicação na cultura Irene Machado usuais fotografias, mapas, cor, linhas, relevos, enfim, os já conhecidos recursos gráficos transformados pelos algoritmos. A performance do software coloca em ação os próprios meios que a convergência de mídias pouco explica. É o que se pode observar em eventos de grande mobilização das pessoas em protestos recentes. Câmeras posicionadas e helicópteros em drones, antenas de captação de dados e satélites de localização interagem no espaço ressonante que reverbera em telas de transmissão televisual e mudam os atores da cena. Ainda que as pessoas ocupem o cenário urbano, na tela milhares de seres são pontos enquadrados por movimentos que do alto traçam contornos longitudinais de um espaço resultante da manipulação de um grande banco de dados. Em espaços assim configurados, a performance do software torna-se o principal agente da explosividade uma vez que o evento começa a competir, em ordem de impor- tância, com a própria construção dos dados. Quando os dados ocupam a cena o que pode emergir está fora de controle.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: ALTERNATIVAS PARA SE PENSAR A HISTÓRIA DOS MEIOS NA CULTURA A possibilidade de acolher a descontinuidade num continuum no sistema da cultura, de modo a considerar o novo e imprevisível, é uma premissa que modifica a noção de história como progressão. Tal é a primeira alternativa para se pensar a história dos meios como modelos informacionais. Sendo próprio dos objetos semiótico-informacionais a transformação e não a elimi- nação, um objeto cultural existente jamais deixa de existir. Diferentemente dos objetos técnicos, a produção cultural mobilizadora de sentidos integra a esfera dos fenômenos semióticos que ao entrarem em circuitos de novas relações desenvolvem possibilidades de viver com sua própria transformação. Existem fronteiras a separar e a redimensio- nar zonas de intraduzibilidade responsáveis, igualmente, pela irrupção do novo e do imprevisível. Com isso, apresenta a contingência como alternativa para se compreender o movimento da informação na história da cultura, raciocínio que Lótman desenvolve em sua compreensão do espaço semiótico da semiosfera (Lotman, 1990). Uma outra alternativa, não menos importante, diz respeito à operação de cortes sincrônicos a partir dos quais é possível apreender a linha pontilhada e as encruzilhadas do desenvolvimento histórico que refaz rotas de sentido. As alternativas aqui apresentadas afirmam que o movimento da informação na cultura não segue, obrigatoriamente, uma progressão causal. Num universo potencial- mente gerador de informação, ou se desenvolvem mecanismos de transformação da informação ou a informação se perde para sempre (Lotman, 1978, p. 29). Cabe, então, à cultura gerar mecanismos cujo funcionamento seja capaz de estimular formas de tra- dução da informação que, uma vez criadas, mobilizam um outro universo: aquele das relações comunicacionais baseadas em linguagem. Ao universo dessas relações capa- zes de gerar um ambiente de convivência, de confrontos e de transformação, Lótman concebeu o espaço semiótico da semiosfera (Lotman, 1984; 1990; 1996a). Trata-se de um conceito operacional para o entendimentos da dinâmica cultural em níveis tanto de macro quanto de micro estruturas. Quer dizer, tanto a dinâmica dos encontros culturais

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7208 Modelos informacionais e os agentes históricos da comunicação na cultura Irene Machado de povos quanto a interação de processos comunicacionais em esferas de relações cul- turais específicas são entendidas como agentes que passam a ser fonte de observação e análise dos movimentos semióticos. Assim a história humana fica liberada para entrar em contato com sua própria contingência. Contudo, a radicalidade de todo evento na história humana combina imprevisibilidade com probabilidade; sem esse jogo, acredita Lotman, corre-se o risco de transformar o processo histórico num movimento linear de previsibilidade.

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7210 Georges Méliès: da magia e da técnica ou “o criador do espetáculo cinematográfico” Georges Méliès: magic and techniques or “the creator of movie spectacle”

Sa n d ra Trab u c c o Va l e n z u e l a 1

Resumo: Georges Mèliés, conhecido ilusionista de Paris, estava presente, em 1895, à primeira apresentação pública do cinematógrafo de Auguste e Louis Lumière. Impressionado pelas possibilidades da invenção, Méliès voltou-se à produção de filmes que conquistaram o público, ao narrar histórias ficcionais, com imagens que contemplavam o ilusionismo e a trucagem concebida através de sua técnica e habilidades artísticas. O presente trabalho estuda a produção cinematográfica de Méliès, identificando temas, técnicas e contribuições ao desenvolvimento da gramática do cinema. Analisa-se como a técnica de O homem mosca (L’homme mou- che, 1902) configura-se em produções audiovisuais comoRoyal wedding (MGM, 1951) e Inception (Warner Bros., 2010). Com base em teóricos do cinema, serão apontadas as contribuições técnicas e a representatividade da obra de Méliès, revistas em produções contemporâneas. Palavras-Chave: Méliès. História do cinema. Cinema francês. Técnicas de filmagem. História do filme.

Abstract: Georges Méliès, a well-known magician from Paris during the end of nineteen century, was present at in the first public presentation in 1895 of the Lumière’s cinematograph. Impressed by the possibilities of the invention, Méliès started to produce films that conquered the public, with the narrative of fictional stories, images that were contemplating the illusion and trickery designed through his skill. This paper studies Méliès’s film productions, iden- tifying themes, techniques and contributions to the development of movie grammar; analyzing how the technique of The fly man (L’homme mouche, 1902) is configured in audiovisual productions as Royal wedding (MGM, 1951) and Inception (Warner Bros., 2010). Focusing in theoretical basis of cinema, we will study the conception of Mélies’s audiovisual works, his technical contributions and the representativeness of his work, revised in contemporary productions. Keywords: Méliès. History of film. French movie. Movies techniques. Movie history.

1. Doutorado em Letras, Universidade Anhembi Morumbi, [email protected] .

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7211 Georges Méliès: da magia e da técnica ou “o criador do espetáculo cinematográfico” Sandra Trabucco Valenzuela

GEORGES MÉLIÈS: UM MÁGICO M PARIS, na noite de 28 de dezembro de 1895, no Salão Indiano no subsolo do Grand Café, no nº 14 do Boulevard des Capucines, com ingresso no valor de um Efranco, é apresentado pela primeira vez ao público o “Cinematógrafo”, inventado pelos irmãos Auguste e Louis Lumière. Nesse dia, apenas compareceram 33 especta- dores, mas que se encarregaram de divulgar o que viram: um trem entra na estação de La Ciotat e avança em direção ao público, em meio à escuridão da sala de projeção, pro- vocando espanto, medo, agitação e, por fim, um entusiasmo capaz de atrair outros dois mil espectadores, somente pelo boca a boca. Era o início do cinema e sua consagração pelo público, que assistiu, naquela exibição a vinte filmes, com duração aproximada de 50 segundos cada um. George Méliès, um dos presentes ao grande evento propiciado pela máquina das “imagens em movimentos” criada pelos Lumière, interessou-se de imediato por adquirir uma câmara, com o intuito de incorporar o novo espetáculo ao seu já consagrado espetáculo de ilusionismo. Georges Mèliés (1861-1938) nasceu em Paris, no seio de uma família abastada de industriais do ramo da confecção de calçados, contudo, interessava-se mais pelas artes e espetáculos do que pelos negócios familiares. Ainda criança, revelou-se um excelente desenhista e, em sua adolescência, começou a produzir suas primeiras e já sofisticadas marionetes, planejadas para apresentações teatrais. Ao concluir os estudos, Méliès incor- porou-se ao trabalho realizado na fábrica de sapatos da família, aprendendo assim a criar e costurar peças. No entanto, foi determinante na carreira de Méliès sua permanência em Londres, onde conheceu o Egytian Hall, conhecida como “a casa do mistério”, na qual se apresentavam ilusionistas e os chamados espiritualistas, dentre eles Maskelyne, que levavam à cena números de magia, levitação e apelos ao sobrenatural e à paranorma- lidade. De volta a Paris em 1885, e também de volta ao trabalho na fábrica da família, a experiência no cenário londrino rendeu a Méliès a vontade de prosseguir com os shows de magia, buscando aulas com profissionais famosos, até que, em 1888, Méliès vendeu aos irmãos sua parte da fábrica e adquiriu o Teatro Robert-Houdin, dando início à sua promissora carreira artística, tornando-se um dos mais bem-sucedidos ilusionistas e empresários da época, dono de sua própria companhia, criando novos números e tru- ques, atribuindo-lhes aspectos cômicos e inusitados, como a introdução de jogos de luz produzindo raios e neve, e o truque das cabeças falantes rolando pelo cenário.

GEORGES MÉLIÈS E O CINEMATÓGRAFO Conhecido, portanto, no mundo dos espetáculos, Méliès, a convite de Antoine Lumière, pai de Auguste e Louis, assiste às “imagens em movimento”, rodadas e pro- jetadas num único equipamento: o cinematógrafo. Os dez filmes levados ao público permitiram a Méliès vislumbrar as possibilidades que o cinematógrafo acrescentaria aos seus números de ilusionismo. Méliès logo adquire um aparelho por produzido por outro inventor, Robert William Paul (visto que os Lumière não quiseram vender-lhe um) e, em abril de 1896 leva à cena suas primeiras produções durante as sessões diárias de seu teatro de magia. A princípio, Méliès filmava seguindo o estilo dos Lumière, isto é, posicionava a câmera num tripé diante do assunto a ser captado, de modo a obter imagens reais do

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7212 Georges Méliès: da magia e da técnica ou “o criador do espetáculo cinematográfico” Sandra Trabucco Valenzuela cotidiano. Entretanto, por acidente, quando Méliès filmava em 1896, em Paris, a película, ainda a 18 quadros por segundo, enroscou-se travando o equipamento. A seguir, com o cinematógrafo já destravado, a película continuou correndo normalmente, captando as imagens do movimento urbano. A grande surpresa veio com a revelação do filme (Toulet, 1988, p. 61) ou, nas palavras de Méliès:

[...] Certo dia, quando eu fotografava (sic) prosaicamente a praça de L’Opéra, meu aparelho enguiçou. Era um aparelho rudimentar em que o filme rasgava constantemente ou se recu- sava a avançar. Custou um minuto para arranjar a cinta e par pôr em marcha o mecanismo. Durante este minuto – como é óbvio – os transeuntes, ônibus, carros, tudo mudava de lugar. Projetando a película, emendada no ponto em que se verificara a ruptura, vi de repente um ônibus “Madelaine-Bastille” transformar-se num carro mortuário, enquanto os homens se transmutavam em mulheres (Rosenfeld, 2013, p. 79).

Foi assim que Méliès entendeu as possibilidades que o cinematógrafo lhe oferecia, criando a magia através da trucagem, libertando a imagem das amarras do real. Essa experiência proporcionou a criação de narrativas fragmentadas, da inserção de truques de magia e ilusionismo obtidos pela operação mecânica do corte no momento da filma- gem. As obras ganharam então um aspecto lúdico, sobrenatural, repleta de elementos fantásticos e do imaginário, criando a ficção cinematográfica e transformando-a na sétima arte, como a concebemos hoje. Suas primeiras experiências com o cinematógrafo começam em 1896, com Une partie de cartes; seguiram-se outros setenta e nove títulos dos quais apenas chegaram até nós Défense d’afficher, Une nuit terrible, Escamotage d’une dame au théâtre Robert-Houdin, Le Manoir du diable e Le Cauchemar. Em Escamotage d’une dame au théâtre Robert-Houdin (Figura 1), o próprio Méliès no papel de mágico faz uma mulher desaparecer, tornar-se uma caveira e ressurgir diante dos olhos abismados da plateia, que ainda desconhecia a técnica do corte e da montagem nos filmes, cuja duração era de aproximadamente 50 segundos. Assim, Méliès vale-se das chamadas “paradas para substituição” produzindo efeitos de trucagem ou “trick films”, que consistiam na interrupção do “funcionamento da câmera para substituir objetos ou pessoas no campo visual e, em seguida , retomar o seu funcionamento, produzindo a impressão de que coisas haviam magicamente desaparecido ou sido substituídas por outras” (Costa, in Mascarello, 2013, p. 29).

Figura 1. Georges Méliès, Escamotage d’une dame au théâtre Robert-Houdin, 1896.

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Segundo Costa, embora durante muito tempo teóricos do cinema considerassem que Méliès não executavam um trabalho de montagem em seus filmes, visto que a para- da para substituição teria continuidade num mesmo plano, com uma câmera estática, estudos mais recentes revelaram que Méliès efetuava um detalhado trabalho de corte, colagem, rebobinamento múltiplo da película, com múltipla exposição e utilização de máscaras para obter efeitos complexos na concepção final do filme (Costa, 2013, p. 30). Em 1896, Méliès projeta a construção de seu estúdio, nos fundos de sua mansão em Montreuil, numa junção entre estúdio fotográfico – um galpão envidraçado para aproveitamento da luz do sol – e o palco de seu teatro, com toda a maquinaria que per- mitia fazer seus truques, construindo no ano seguinte o estúdio cinematográfico de sua companhia, a Star Film. Foi nesse estúdio que Méliès produziu a maior parte de seus mais de 500 títulos, entre 1896 a 1913.

MÉLIÈS E OS EFEITOS ESPECIAIS Como cineasta, Méliès produziu diversos gêneros: de contos de fada a ficção cien- tífica, da realidade reconstituída ao filme histórico, comédias, dramas e inclusive, filmes publicitários. Dentre suas produções, as mais conhecidas são Viagem à Lua (Le voyage dans la lune), de 1902 (Figura 2), e A conquista do polo (À la conquête du pôle), de 1912, ambas inspiradas em obras de Júlio Verne e H. G. Wells, “hoje reconhecidas como exemplos clássicos do primeiro cinema de ficção científica” (Cinemateca Brasileira, 2011, p. 76).

Figura 2. Rosto de Georges Méliès em cena, representando a chegada do homem à Lua, em Viagem à Lua, produzido entre maio e agosto de 1902, com duração de 13 minutos.

Dentre as técnicas desenvolvidas por Méliès está a colorização filmes: cada quadro era cuidadosamente à mão, destacando ainda mais os efeitos visuais que produzia. Muitos de seus filmes contavam com o original em branco e preto e versões colorizadas, caso de Viagem à Lua, cuja versão colorida foi encontrada em 1993, num lote de filmes silenciosos doados à Filmoteca da Catalunha. A versão encontrada foi recuperada, com a restauração de mais de treze mil trechos de película, que foram inicialmente escaneados. O trabalho de restauração durou quase uma década; para

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7214 Georges Méliès: da magia e da técnica ou “o criador do espetáculo cinematográfico” Sandra Trabucco Valenzuela a recuperação da gama cromática, a Filmoteca contou também com a colaboração da Fundação Technicolor, sendo que o resultado foi apresentado no festival de Cannes de 2011 (Belinchón, 2012).

O homem mosca e seus truques O filme O homem mosca (L’homme mouche), de 1902, é um exemplo do aprimorado trabalho técnico e artístico de Georges Méliès. A narrativa desta produção é simples: um grupo de seis moças assistem à performance de um bailarino – interpretado pelo próprio Méliès - que literalmente sobe pelas paredes. Para a filmagem de O homem mosca, Méliès compôs um plano único (plano conjunto), câmera fixa, com a divisão da imagem em quatro partes, sendo que as duas laterais são ocupadas pelas moças, o centro e a parte superior são os espaços de performance do bailarino. A exemplo de outros filmes como L’homme orchestre (1900) e L’homme à la tête de caoutchouc (1898) (Figura 3), a trucagem e o uso de recursos fotográficos para enganar os olhos são os principais ingredientes:

Além da substituição por parada, Méliès utiliza a superposição, processo conhecidíssimo dos fotógrafos, que permitiu em certa época a moda das fotografias espíritas. Ela reserva no cenário um fundo preto, ao qual superpõe uma segunda exposição da película, ponde diante da objetiva uma máscara com um buraco. Modifica as proporções integrando um elementos filmado em outra escala ou aproximando e afastando ao tema de câmera […] Em L’homme orchestre, sete Georges Méliès tocam ao mesmo tempo. (Toulet, 1988, p. 63).

Figura 3. Georges Méliès em L’homme caoutchouc, de 1898, recurso de multiexposição.

A sequência em O homem mosca apresenta a sobreposição: a filmagem das seis moças que assistem ao bailarino é feita separadamente, diante de um fundo preto (Figura 4), enquanto que a imagem do bailarino dançando pelas paredes é executada com a câme- ra pendurada no teto, em ângulo plongée (Figura 5). O espaço ocupado pelas moças receberá uma máscara colocada na câmera, o filme é rebobinado, combinando assim as duas exposições (Figura 6).

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Figura 4. O grupo é filmado contra um fundo preto.

Figura 5. Através de dupla exposição, une-se a imagem das moças e do bailarino, filmado em plongée.

Figura 6. O bailarino rola pelas paredes, enquanto mantêm-se nos cantos da tela.

Valendo-se da trucagem, Méliès entendeu que o cinema poderia congregar a reprodução fiel da realidade com a imaginação e a fantasia, criando cenários do universo do fantástico, do sobrenatural e da ficção científica. Segundo Méliès,

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Com todos estes processos misturados uns aos outros e utilizados com competência, é possível realizar, hoje em dia, as coisas mais impossíveis e inverossímeis. Seja como for, é o truque aplicado com inteligência que permite tornar visíveis o sobrenatural, o imaginá- rio e até mesmo o impossível, realizando quadros verdadeiramente artísticos, delícia para aqueles que sabem compreender como todos os ramos concorrem para a sua execução (Rosenfeld, 2013, p. 80).

MÉLIÈS E NOVO GOSTO DO PÚBLICO As ideias, trucagens e técnicas desenvolvidas por Méliès passaram fazer parte do repertório dos cineastas do mundo inteiro. Novos empresários, produtores e diretores entraram na promissora indústria cinematográfica que Méliès ajudara a formar. Com isso, novas formas de contar histórias, sem a necessidade de narradores, como Méliès costumava fazer, mais ação e dramaticidade deram espaço a outros gêneros, como o faroeste norte-americano que ganhou espaço misturando ficção e realidade, com cenas e ação, perseguições, desafios do bem contra o mal, como é possível ver nas produções norte-americanas de Edwin Porter (1870-1941), como O grande roubo do trem (The great train robbery), de 1903, com dez locações diferentes, cenas externas além do close assustador do bandido que atira impiedosamente em direção à câmera, atingindo em cheio o gosto do público (Figura 7).

Figura 7. O ator Justus D. Barnes atira em direção ao público, no filme de Porter, O grande roubo do trem.

No entanto, cheio de dívidas, com um público que buscava outro tipo de diver- são e ainda com a eclosão da Primeira Guerra, o mágico do cinema viu-se obrigado a encerrar suas atividades, abandonando o cinema definitivamente, ao entregar o estúdio e os equipamentos aos seus credores, com a quebra de contrato com a Pathé, em 1913. No mesmo ano, com a morte da esposa, Méliès deixa Paris com os dois filhos, o Teatro Robert-Houdin também é fechado, em 1917 o antigo estúdio é ocupado durante a Guerra como hospital de campanha. Durante o conflito armado, a França confisca o catálogo com os celuloides da Star Film para reaproveitá-los como material para guerra, inclusive para confeccionar saltos para as botas dos soldados.

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Desaparecido por alguns anos, Méliès foi reencontrado, agora casado com sua antiga atriz, Jeanne d’Alcy, vendendo balas e brinquedos na estação de trem Montparnasse, em Paris. O reconhecimento público de sua obra veio em dezembro de 1929, quando foi realizada a primeira retrospectiva de sua obra na prestigiada Sala Pleyel, em Paris.

MÉLIÈS: O MAGO RECONHECIDO Em outubro de 1931, Georges Méliès recebeu de Louis Lumière durante um banquete a medalha de Cavalheiro da Legião de Honra em reconhecimento ao seu trabalho, dizendo-lhe: “Saúdo-o como criador do espetáculo cinematográfico” (Toulet, 1988, p. 60). Até o final da vida, Méliès recebeu o reconhecimento merecido por seu legado. A intertextualidade de sua obra evidencia-se em diversas produções audiovisuais. Se tomarmos como exemplo O homem mosca, encontraremos duas produções significa- tivas, a saber: Royal Wedding, musical de 1951, da MGM, dirigido por Stanley Donen e interpretado por Fred Astaire e Jane Powell; Inception, ficção científica de 2010, da Warner Bros., escrito, dirigido e produzido por Christopher Nolan e interpretado por Leonardo DiCaprio, Joseph Gordon-Levitt e Ellen Page. As duas produções comparti- lham um aspecto em comum: os personagens sobem pelas paredes, a exemplo de O homem mosca de Méliès. No musical Royal wedding (Núpcias reais), dirigido por Stanley Donen, 1951, como em O homem mosca, Fred Astaire dança pelas paredes e pelo teto (Figura 8) a canção “You’re all the world to me” (de Burton Lane e interpretada por Alan Jay Lerner), resgatando a magia idealizada por Méliès. O truque na cena é feito com a construção de um cenário móvel, isto é, uma caixa cujo cenário construído gira 360º, numa encrencada obra de engenharia, e o ator desenvolve seu número (Figura 9). Toda a coreografia foi adaptada para os tempos de rotação da caixa, visto que a mesma tardava quatro segundos para se deslocar 90º. Alguns objetos, como um portarretratos que deveria ser apanhado por Astaire, estavam presos ao cenário por imãs. Em 1986, uma maquinária semelhante foi construída para a gravação do videoclipe “Dancing on the ceiling”, interpretado por Lionel Richie, produzido por Ken Goodwind, pela HBO.

Figura 8. Fred Astaire dançando pelas paredes em Royal Wedding, 1951.

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Figura 9. Fred Astaire dançando em cena dirigida por Stanley Donen (Animation Bigfoot Studios, 2010).

Em Inception (A Origem), o supervisor de efeitos especiais Chris Corbould projetou um corredor inteiro de 30 metros de extensão para girar 360º. A cena, que se passa no corredor de um hotel, é determinante dentro da narrativa do filme, onde o ator Joseph Gordon-Levitt realiza uma luta que foi coreografada e ensaiada por duas semanas com a equipe de dublês. O efeito obtido é a sensação de “gravidade zero” (Scott, 2010).

Figura 10. Maquinária de rotação do cenário projetada para a cena do corredor do hotel do filme Inception (Dailymotion, 2011).

Georges Méliès foi um pioneiro da sétima arte, ao perceber e transformar o cinematógrafo dos irmãos Lumière numa máquina de produzir histórias, traduzindo narrativas em imagens formuladas através da junção entre magia, técnica, inovação e de uma capacidade artística privilegiada, que lhe permitiu escrever, dirigir, atuar, desenhar figurinos, cenários, inventar o storyboard, trucagens e recursos que constituem hoje a definição do espetáculo cinematográfico.

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A história efetiva do cinema deu preferência à ilusão em detrimento do desvelamento, à regressão onírica em detrimento da consciência analística, à impressão de realidade em detrimento da transgressão do real. O poder da sala escura de revolver e invocar nossos fantasmas interiores repercutiu fundo no espírito do homem de nosso tempo, este homem paradoxalmente esmagado pelo peso da positividade dos sistemas, das máquinas e das técnicas. (Machado, 1997, p. 24)

Méliès é o grande gênio criativo do cinema de ficção, responsável por libertar a imagem das amarras do real.

REFERÊNCIAS Animation Bigfoot Studios. (2010) Astaire unwound. Recuperado em 19 de março, 2015 de: http://www.bigfott.com/Astaire_Unwound.html Belinchón, Gregorio. (2012, 20 de julho). Un viaje colorido y lunático al universo Méliès. El País, Televisión. Recuperado em 20 de março, 2015 de: http://cultura.elpais.com/cul- tura/2012/07/20/television/1342807690_168735.html Cinemateca Brasileira. (2011) V Jornada brasileira de cinema silen- cioso. São Paulo: Cinemateca Brasileira. Costa, Flávia Cesarino. (2013) O primeiro cinema. In: Mascarello, Fernando. (2013) História do cinema mundial. São Paulo: Papirus. Scott, Mike. (2010) How did they do that?: Part of the magic of Christopher Nolan’s Inception, revealed. Recuperado em 21 de março, 2015. Dailymotion (2011) Stagehand TV-Inception-Zero Gravity Sequences. Documentário. Recuperado em 20 de março, 2015 de: http://www.daily- motion.com/video/xkv55e_stagehand-tv-inception-zero-gravity-sequences_tech Machado, Arlindo. (1997) Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas, SP: Papirus. Mascarello, Fernando. (2013) História do cinema mundial. Campinas, SP: Papirus. Rosenfeld, Anatol. (2013) Cinema: arte & indústria. São Paulo: Perspectiva. Toulet, Emmanuelle. (1988) O cinema, invenção do século. Rio de Janeiro: Objetiva.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7220 Travessias comunicacionais de um tipografo tipógrafo-jornalista no sertão da Bahia Comunicacional crossings of a journalist- typographer in the interior of Bahia

A n d r é a C r i s t i a n a Sa n to s 1

Resumo: O arquivo pode revelar aspectos relevantes acerca das práticas huma- nas e das materialidades, que permitem analisar texto e contexto. Foi, por meio da descoberta de um arquivo, que um nome se desvelou: José Diamantino de Assis, tipógrafo, diretor, editor e redator de impressos que circularam na cidade baiana de Juazeiro no período de 1932 a 1970. Neste artigo, procura-se compre- ender como este mediador transitou entre o campo de uma cultura popular e jornalística no contexto de processos de modernização da imprensa. A partir de uma abordagem da micro-história, foram investigados rastros e os frag- mentos presentes nos produtos comunicacionais para reconstituir as tramas comunicativas engendradas pelo tipógrafo e jornalista. Verificou-se as relações de tensões e assimilações entre uma imprensa nacional e regional e as redes de sociabilidade que se construíram por meios dos impressos e dos agentes dessa imprensa. Demonstrou-se a existência dos circuitos de comunicação entre diver- sos leitores e diferentes tipos de impressos, bem como os processos de mediação que marcaram a trajetória deste homem comum no campo jornalístico. Palavras-Chave: História da Imprensa. Jornalismo. Memória. Modernização.

Abstract: The file can reveal important aspects about human practices and mate- riality, which allows text and context analysis. Through the discovery of a file, a name was revealed: Joseph Diamond of Assis, a typographer, director, editor and editor of prints which circulated in the Bahian city of Juazeiro from 1932 to 1970. This article looks for understanding how this mediator moved by the field of a popular and journalistic culture in the context of press modernization processes. From an approach of the microhistory concept, traces and fragments present in the communication products were investigated to rebuild the communicative plots engendered by the journalist-typographer. The assimilations and tension relationships between national and regional press were verified, as well as the sociability networks that were built by means of printed and by the agents of this press. It was demonstrated the existence of communication circuits between different readers and different types of printed and the mediation processes that have marked the course of this ordinary man in the journalistic field. Keywords: History Press. Journalism. Memory. Microhistory. Modernization.

1. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). E-mail: andrea.cristiana@ gmail.com.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7221 Travessias comunicacionais de um tipografo tipógrafo-jornalista no sertão da Bahia Andréa Cristiana Santos

OS ÚLTIMOS anos, pesquisadores apontam desafios teóricos e metodológicos no campo da pesquisa em história da comunicação que possam atender a especifi- Ncidade e a complexidade dos fenômenos analisados. Estudo realizado por Ana Paula Goulart Ribeiro e Micael Herschmann (2009) considera que é necessário superar impasses teóricos, entre eles a dificuldade de articular uma teoria histórica e imaginação sociológica; a análise de caráter descritivo e as abordagens centradas em uma tempora- lidade linear e sucessão de acontecimentos, que ignoram tensões e as articulações entre ruptura e continuidade. Um outro aspecto se refere à inexistência de uma dimensão comparada dos próprios meios e entre os veículos em todo o país. Pesquisadores da imprensa latino-americana também têm privilegiado a análise de periódicos localizados em regiões centrais. Como afirma Célia Del Palácio Montiel (1997), alguns trabalhos são de natureza monográfica e memorialística e não estabelecem inter-relações entre os periódicos das diversas regiões. Ela defendeu uma abordagem comparada que permita encontrar o que existe de específico, único em um fenômeno em uma região, assim como regularidades e padrões semelhantes existentes entre os periódicos. Assim, podem ser exploradas relações complexas e interativas entre o centro e a periferia (MONTIEL, 1997, p.86). Com isso, os estudos locais podem ganhar signifi- cados relevantes para compor uma história da imprensa. Alguns estudos trazem também uma abordagem com personagens baseados na atuação singular de grandes atores sociais, com ênfase na ação individual. Para Ana Paula Goulart Ribeiro e Micael Herschmann (2009), esse tipo de abordagem é conse- qüência, em parte, de narrativas memorialísticas, que não levam em consideração os processos discursivos e o enquadramento dessas narrativas. A existência de estudos centrados na ação individual deve abordar as dinâmicas sociais, os processos institu- cionais e macros. Para os autores, é preciso uma escrita da história da comunicação que permita correlacionar e analisar a dinâmica da vida social como um todo, relacionando texto e contexto. Produzir uma história da comunicação, como afirma Marialva Barbosa, requer con- templar todo um circuito comunicativo, no qual estejam inseridos produtores de textos, produtores gráficos, editores e leitores; as materialidades e os suportes que permitiram, em um dado momento, a profusão de formas impressas, visuais, sonoras. Dessa forma, é possível reconstruir o sentido da obra; relacionar o que se produz como práticas; verificar a materialidade do objeto; os modos de reapropriação do público; as trocas de mensagens entre produtor, leitor e as relações narrativas. A autora destaca ainda os processos de reconstrução, por meio do ato interpretativo, das múltiplas mediações e de suas materializações. Assim, produz-se uma narrativa na qual modos de comunicação se misturam em plataformas, materialidades, mediações, produzindo um vasto território comunicacional de práticas humanas (BARBOSA, 2013). Robert Darnton (2010) esclarece que a noção de circuito de comunicação permi- te ao pesquisador analisar as inter-relações entre autor, editor, produtor, impressor, distribuidor e leitor, pois todos eles estão intercambiando experiências e práticas que influenciam na questão do gênero, do estilo, nas relações deste sistema com outros de natureza política, econômica, social. A ênfase em práticas humanas e na noção de circui- tos de comunicação entre produtores e leitores permite, assim, ampliar os estudos que

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7222 Travessias comunicacionais de um tipografo tipógrafo-jornalista no sertão da Bahia Andréa Cristiana Santos trazem tão-somente uma abordagem centrada na ação individual, porém incorporando dinâmicas sociais, os processos institucionais, micro e macrossociais. É com base nessa discussão teórica que nos propomos, neste artigo, a analisar a produção de um tipógrafo-jornalista que produziu jornais na cidade baiana de Juazeiro, situada a 500 km da capital do estado da Bahia, Salvador. A análise desses jornais só foi possível devido a descoberta de um arquivo na Fundação Museu Regional do São Francisco, com jornais e materialidades diversas desde composições musicais, sátiras, caricaturas, relatos sobre cotidiano, notícias sobre economia, política, esporte, entre outras. O arquivo desvelava um nome: José Diamantino de Assis, tipógrafo, diretor e redator de O Astro; O Banjo, A Marrêta, O Itiubense, O Sertão, O Esporte, A Jacuba e a Tribuna do Povo. O arquivo pode surpreender o pesquisador, oferecendo-se à interpretação de quem procura escavar os sentidos dos fragmentos expostos em discursos, relatos sobre acon- tecimentos triviais, materialidades, quebra-cabeça das ações humanas (FARGE, 2009). O arquivo nos convida a retirar o véu do esquecimento que pode encobrir ações e práticas humanas. Trata-se de colocar como questão de pesquisa a ação de um indivíduo pensada em um contexto de relações micro e macrossociais. Para tanto, apropriamo-nos de algumas abordagens metodológicas do projeto historiográfico da micro-história, pois a produção comunicacional do tipógrafo-jornalista pode ser investigada a partir de uma redução do nível de análise da escala: do micro para o macro2. A análise do micro permite dar aten- ção aos processos individuais percebidos nas suas relações com os outros, investigando identidades sociais que se operam por meio de uma rede de relação, de concorrência, solidariedade, aliança. Assim, é possível redefinir a noção de contexto, para que não haja simplesmente uma leitura do contexto global para situar e interpretar os textos, mas, pelo contrário, reconstituir a multiplicidade dos contextos necessária à compreensão do fenômeno (RAVEL, 1998, p 27). Nessa concepção o uso da micro-história nos permite situar um problema de pes- quisa como esse indivíduo comum se moveu entre o campo de uma cultura popular e jornalística no contexto de processos de modernização da imprensa. A partir de uma abordagem da micro-história, utiliza-se dos rastros e os fragmentos presentes nos pro- dutos e suas materialidades para reconstituir as tramas comunicativas engendradas pelo tipógrafo e jornalista. Um aspecto a ser analisado são as relações de tensões e assimilações entre uma imprensa nacional e regional e as redes de sociabilidade que se construíram por meios dos impressos e dos seus agentes. Busca-se verificar a existência dos circuitos de comu- nicação entre diversos leitores e diferentes tipos de impressos, bem como os processos de mediação que marcaram a trajetória deste homem comum no campo jornalístico. A série documental contém um material jornalístico diversificado, produzido por uma mesma pessoa por 37 anos, que demonstra práticas profissionais e um modelo de imprensa em transição. Os jornais foram concebidos dentro de uma lógica da impren- sa artesanal, semelhante a produzida no século XIX, produzida por um homem só, o

2. O projeto historiográfico da micro-história tem partilhas teóricas diferentes a depender da abordagem da experiência da microanálise seja pela vertente da história social ou da antropologia social, como é discutido no livro coordenado por Jacques Ravel (1998).

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7223 Travessias comunicacionais de um tipografo tipógrafo-jornalista no sertão da Bahia Andréa Cristiana Santos tipógrafo, mas que já evidenciam as mudanças que se processavam no campo profissio- nal como a substituição de um modelo de imprensa político-literária para o paradigma de um jornalismo informativo. Essas mudanças se intensificariam nos anos 1950, no processo conhecido como modernização dos jornais brasileiros, com desenvolvimento de reformas empresariais, gráficas, redacionais e constituição de um campo autônomo do discurso jornalístico em relação ao literário e político (RIBEIRO, 2007). A diversidade e a materialidade desses jornais produzidos por José Diamantino de Assis nos trouxeram alguns questionamentos tais como: quais processos comunicacio- nais foram engendrados pelo tipógrafo e quais significados assumiram para os leitores? A trajetória de um indivíduo pode nos fazer entender os circuitos de comunicação entre uma imprensa local e a nacional? Neste artigo, utilizamos ainda a noção de fragmento, compreendido como uma possibilidade de acesso ao passado, como resíduos, artefatos que nos chegam ao presente pelo conjunto de materiais produzidos em um passado e em determinadas condições (LOWENTHAL, 1998). A partir desses fragmentos, analisamos a trajetória do tipógrafo e jornalista José Diamantino de Assis no sertão da Bahia.

DA TIPOGRAFIA AO JORNALISMO O historiador Carlo Ginzburg analisou a trajetória do moleiro Domenico Scandella, conhecido por Menochio, perseguido pela inquisição do Santo Oficio, no século XVI, acusado de conspirar contra a Igreja Católica. A forma como Ginzburg interpretou esta trajetória nos traz contribuições para pensar como um indivíduo pode ser um fragmento de um estrato social e como ele pode nos esclarecer sobre o fenômeno da circularidade da cultura. O procedimento de investigação se estabelece a partir da redução da escala de análise para o indivíduo e o seu contínuo vai-e-vem entre micro e macrohistória. A partir do olhar aproximado, podemos capturar algo que pode nos escapar na visão de conjunto (GINZBURG, 2007). Contudo, não se trata de privilegiar a identificação de um excepcional normal, denominação dada pelo historiador italiano Edoardo Grendi aos sujeitos e/ou grupos sociais subalternos que são descobertos em uma documentação. Trata-se de entender a produção desse tipógrafo e jornalista, como um homem comum, que permite identificar regularidades que nos ajudam a compreender os circuitos comunicativos da imprensa. Em uma pesquisa centrada na história dos processos de comunicação, a análise de um indivíduo pode evidenciar o circuito de comunicação que nos permite verificar os fluxos e as interações existentes entre práticas comunicativas, diante da própria moder- nização da imprensa e do surgimento dos dispositivos tecnológicos que influenciavam as concepções de mundo e os modos de existência dos sujeitos. Não se trata de reduzir a análise histórica a uma escrita biográfica, mas perceber as relações que circunscrevem o sujeito em um tempo e espaço. José Diamantino de Assis nasceu em 6 de abril de 1911, em Barra do Rio Grande (BA). Seis meses depois do seu nascimento, os pais Olegário de Assis e Cora Diamantino se mudaram para Juazeiro. O pai exerceu a profissão de tipógrafo e fundou o Diário de Juazeiro e O Juazeiro, jornais que circularam nos primeiros anos do século XX.

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Na casa da família, havia uma máquina de impressão, com tipos gastos pelo uso. Aos 15 anos, José Diamantino de Assis recompôs os tipos, usando uma caixa que servia como componedor e imprimiu O Riso. O periódico abordava fatos cotidianos, namoros e fofocas, como relata Jorge de Souza Duarte (DUARTE, 1985). Advogado e jornalista, ele conta que José Diamantino de Assis sonhava em ser jornalista, mas lhe faltavam recursos para estudar em Salvador e viver da profissão. Como não teria realizado o sonho, foi trabalhar por um curto período em O Pharol, editado em Petrolina-PE, por João Ferreira Gomes. José Diamantino de Assim iniciou a sua trajetória nas oficinas de O Eco, periódico de Aprígio dos Santos Araújo, que circulou de 1926 a 1949 na cidade de Juazeiro. Com essa experiência, lançou O Astro, em 1932. Com quatro páginas, trazia notícias locais e anedotas. A iniciação profissional como aprendiz de tipógrafo era comum, pois os pais encaminhavam os filhos para aprender o ofício. O auxiliar de compositor poderia ganhar 1$500 (réis) por dia3 nas oficinas de O Eco, como conta Pedro Diamantino (1959). A redação tinha uma grande rotatividade de tipógrafos, alguns se tornaram pequenos empreendedores do segmento gráfico em outras cidades. Virgílio Costa e Manoel Franco montaram tipografias em Realengo, no Rio de Janeiro (DIAMANTINO, 1959, p. 198). Foi nesse ambiente que José Diamantino de Assis projetou para si a trajetória de dono de uma tipografia. A gráfica mantida por José Diamantino oferecia serviços de impressão de notas, cartões e confecção de carimbo para as empresas comerciais. Era comum donos de tipografia se tornarem homens públicos dedicados ao ofício do jornalismo. Amigo de José Diamantino, José Ferreira Gomes manteve uma gráfica, uma livraria e lançou O Pharol, aos 15 anos, na cidade vizinha, Petrolina. O jornal circulou de 1915 até 1989, sendo administrado pelo proprietário até os anos 80. Em uma nota em A Marrêta, José Diamantino agradeceu o estímulo e a ajuda do colega para a impressão do periódico. Primo de José Diamantino, Dermeval de Souza Lima também investiu no empreen- dimento gráfico e foi redator de Diário de Juazeiro e de O Juazeiro, que circulou em dois períodos distintos: em 1908 a 1912, e na década de 1940 a 1950. Ele lançou o periódico O Sertanejo, em Barra do Rio Grande; e fundou a Cidade de Remanso, em 1913; O Remanso, e O Diário de Remanso (DUARTE, 1985, p 94). Esses enlaces entre tipógrafos e redatores de jornais demonstram aspectos que se relacionam com uma comunidade de jornalistas na esfera local. Eles compartilham de um campo de atuação, estabelecem relações de amizade e também de concorrência na produção de um produto oferecido aos leitores. Como já havia circulação de jornais e público, José Diamantino de Assis procurou oferecer ao leitor um produto jornalístico diferenciado. Foi, dessa forma, que ele lançou A Marrêta, primeiro periódico satírico na forma e no conteúdo, que explorou a sátira, o soneto-piada, paródias, cordel, ilustrações e caricaturas. A Marrêta trouxe elementos da cultura popular, como o riso, o cômico e deu visibilidade aos costumes, fatos cotidianos e processos de modernização por meio das apropriações das novidades tecnológicas.

3. Não temos dados para comparar a renda de um tipógrafo com a de outro trabalhador na cidade. Porém, no Rio de Janeiro, um tipógrafo ganhava menos do que um pedreiro, o caixista ganhava de 4 a 5$000 por dia em 1917. Um aprendiz, 2$000 (BARBOSA, 1991, p 131-132).

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Notícias transmitidas pelo telégrafo ou pelo rádio foram apropriadas pelo impresso, com uma linguagem cômica. Publicada nos anos de 1935 e 1936, A Marrêta narrava tanto os acontecimentos locais como internacionais para o público leitor, que, em algumas situações, se tornava pro- dutor e personagem de notícias. Desde o primeiro número, que circulou em 2 de junho de 1935, apresentou as seções fixas “Durante a semana”, com comentários jocosos do que aconteciam nas ruas e “Anúncios Populares”, com sátiras sobre comércio local. O jornal publicava uma seção “Comentando”, com a simulação de um diálogo entre dois personagens populares que conversam sobre acontecimentos locais. Eles exercem a função de “repórteres” que contam causos e boatos. O jornal era vendido por 200 reis, mesmo preço de A Manha, no ano de 1935. Os fragmentos evidenciam uma narrativa híbrida que mistura vestígios da oralidade e a influência dos novos dispositivos técnicos. O boato é coletado via transmissão de radiotelegrafia, os relatos dos acontecimentos locais são ilustrados a partir de clichês produzidos por instantâneos fotográficos, o “disse-me-disse” se transforma em uma sessão de cinema e a população acompanha os acontecimentos internacionais como se eles ocorressem na própria cidade. O jornal promovia a socialização desses experimentos tecnológicos com a mediação do humor. Os fatos cotidianos que receberam a sátira do “marreteiro” quase sempre ocorrem em situações de domínio público e tem conteúdos associados ao controle social. Como signo ambivalente, a rua pode ser o lugar da liberdade, imprevistos, paixões, perigo, engano, malandragem, decepção em oposição à segurança do espaço privado. A rua, como explica Roberto Da Matta (1997), pode simbolizar o público em oposição a casa, na qual códigos de conduta regulam as relações de convivência, ordenam, sujeitam o indivíduo ao controle do Estado. As sátiras expostas no periódico, mais do que eventos casuais, dão visibilidade a essas formas de controle social. A imprensa satírica se constitui em um lugar de formação de identidades e de representações, moldando e conformando valores culturais em uma dada sociedade. Uma piada e/ou brincadeira podem demonstrar significados culturais e processos sociais relacionados às experiências vividas pelos homens em um determinado contexto. Lemos um texto satírico para ver o significado que o acontecimento pode ter tido para os lei- tores, assim como delimitar a sua dimensão social (DARTON, 2001). José Diamantino Assis se utilizou da sátira e do cômico para evidenciar aspectos das relações sociais e culturais vivenciadas pela população, principalmente sobre os sentidos atribuídos aos costumes, aos boatos e ao festejo do carnaval. Essa escolha por esse tipo de linguagem tem relação com a influência das revistas semanais, que surgi- ram no final do século XIX. Elas introduziram estratégias de comunicação que brincam com a polissemia entre palavras impressas e imagens. Tudo isso era extensivo às novas práticas de escrita e de acesso às leituras, que valorizavam o que era externo, as vivên- cias, o mundo da rua, com a complexidade e tensão social vivenciada nesses espaços. Nas primeiras décadas do século XX, essa imprensa satírica na cidade de Juazeiro traz a marca das sonoridades, visualidade e da cultura oral que circulavam pelas circuitos urbanos. Trata-se da expansão de um jornalismo de sensações produzidos por gerações

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7226 Travessias comunicacionais de um tipografo tipógrafo-jornalista no sertão da Bahia Andréa Cristiana Santos de jornalistas na primeira metade do século XX, como analisa Marialva Barbosa (2013). O mundo de sensações presente nas ruas se tornou material jornalístico. Instrumentos técnicos transformaram o modo como o público e o espectador interagiram com os meios. Jornais estavam repletos de ilustrações, caricaturas, informação e diversão, publicam marchinhas e músicas de carnaval, notícia de cordões e dos blocos. Assim, surgiram “modos de comunicação letrados para o olhar e para ouvidos que ainda ouviam dizer as palavras lidas que ecoavam pelos gestos da oralidade” (BARBOSA, 2013, p 195). Essa circularidade das práticas culturais nos leva a perceber como a cultura letrada esteve em trânsito, influenciando e construindo novas práticas de leitura. Em A Marrêta a visibilidade aos acontecimentos tidos como sensacionais foi uma estratégia para atrair o público. O leitor é convidado a ir ao cinema, a comprar e ler a revista Cinearte4 e tem sua imagem capturada em uma fotografia exclusiva feita por Fialho5. A produção jornalística de José Diamantino de Assis incorporou elementos da linguagem humorística de jornais como A Manha, de Aparício Aporelly. Nas narrativas de A Marreta, estão presentes a paródia, o hibridismo linguístico com utilização de uma linguagem popular, o soneto-piada e as estratégias de promoção do periódico (SALIBA, 2002, p. 231). Acontecimentos internacionais como a declaração de guerra do primeiro-ministro italiano Benito Mussolini ao presidente Haile Sallassié, da Abyssinia (atual Etiópia), em 1935, foi pauta do jornal por diversas edições, como também ocorria em jornais como A Manha. Mas a mediação do fato jornalístico pela A Marreta tem apropriações da cultura local juazeirense. O impresso informa que expandira as suas fronteiras para cobrir os eventos internacionais, com a instalação de um posto radiográfico na fronteira do país Ethiope com correspondentes juazeirenses relatando o conflito no front, as baixas e as mortes. A população local ajudaria a defender a nação “negus” contra as tropas do “Duce” Mussolini, por meio do batalhão dos Congos, grupo de descendentes de negros escravizados que realizava festejos em reverência a Nossa Senhora do Rosário na cidade juazeirense. Caricaturas de Mussolini e de Haile Sallassié convidam o leitor a ler o jornal. Essas referências à guerra demonstram como a imprensa se tornava um local de centralidade para a vida social. A sátira com os habitantes locais que foram cobrir os conflitos demonstra o lugar da mediação jornalística. O leitor, colocado como um dos personagens da notícia, demonstra circularidade de informações entre produtores e consumidores do periódico. Circuitos comunicativos entre uma imprensa local e nacional também se evidencia na produção de folhetos para divulgação de marchinhas e composições musicais, como O Banjo. Produzido entre os anos de 1935 a 1943, o folheto circulava no mês de janeiro e fevereiro com músicas de compositores locais, como José Diamantino de Assis, e cariocas, o que nos sugere a possibilidade um circuito de consumo de bens culturais. Com quatro páginas, o folheto apresenta indícios dos processos comunicativos na primeira metade do século XX com a publicação de jornais e/ou revistas dedicadas à

4. Revista publicada entre 1926 e 1942 no Rio de Janeiro sobre cinema. 5. Referência a Antônio Fialho, um dos primeiros fotógrafos lambe-lambe da cidade.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7227 Travessias comunicacionais de um tipografo tipógrafo-jornalista no sertão da Bahia Andréa Cristiana Santos música e à expansão do sistema de radiodifusão. Irineu Marinho, que fundou A Noite, foi pioneiro ao implantar um modelo de imprensa popular, nas primeiras décadas do século XX, que relacionava notícias e entretenimento, buscando atrair um leitor ávido por variedade de acontecimentos espetaculares sobre cotidiano da cidade. Investiu-se na divulgação de fait divers, ilustração, espetáculos musicais, teatro, cinema, folhetim (CARVALHO, 2012). Em tempo e espaços distintos, José Diamantino de Assis incorporou esse modelo de imprensa popular que permitiria dialogar com um público consumidor de música na cidade juazeirense. O folheto divulgava músicas e os novos ritmos como o samba, marcha, Fox. A divulgação de composições musicais evidenciou processos em expan- são, como a chegada do sistema de alto-falante, circuito com caixas de som instaladas em praça e ruas da cidade, e amplificadores. radiofônico. Na década de 1940, O Banjo informava que as músicas impressas ganhariam audições no sistema de alto-falante. É relevante notar que o tipógrafo se utilizou da materialidade do impresso para o registro de uma memória da cultura popular, que ficaria no esquecimento sem o registro das composições.

NOVO PRODUTO: INFORMAÇÃO A travessia para o universo de uma cultura jornalística e um modelo de jornalismo informativo começou a partir do ano de 1937, com o lançamento de Itiubense, na cidade de Itiúba (BA). Ele escreveu a coluna Ecran sobre cinema e incentivou práticas culturais de modernização do espaço público como: alertar a população para evitar entrar na sala de exibição do cinema com animais; denunciar o comportamento inconveniente de certos jovens ao recepcionar os passageiros na estação ferroviária e a defesa de um ordenamento das casas e prédios públicos. O tipógrafo e jornalista concebia o produto jornal com uma missão: educar as massas. A década de 1940 é o início da profissionalização jornalística, com mudanças na forma de conceber o produto jornal. Os impressos passaram a ter uma linguagem informativa, diagramação com colunas, ilustração e clichês de fotografias. A edição conservava o formato de quatro páginas, mesmo tamanho e traz publicidade das casas comerciais. A linguagem jornalística demonstra apropriações dos novos processos de modernização, com características de um jornalismo informativo. Em 1945, ele foi editor de O Sertão com noticiário político e econômico sobre o crescimento do comércio e a implantação de agências de fomento bancário. Dirigente da Liga Desportiva Juazeirense6 na década de 1940, ele publicou Esporte, no período de 1946; e 1967 a 1969. O Esporte foi o primeiro jornal segmentado com notícias de esporte a circular na cidade. Podemos nos questionar se o periódico despertava o interesse do leitor para o consumo de informações sobre o esporte? Dados fragmentados podem nos ajudar a construir uma história dessa experiência de jornalismo segmentado na região, que revela processos de circularidade entre uma imprensa local e a de outros centros do

6. Desde 1923, a cidade tinha uma Liga Desportiva Juazeirense e eram realizados campeonatos locais e intermunicipais.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7228 Travessias comunicacionais de um tipografo tipógrafo-jornalista no sertão da Bahia Andréa Cristiana Santos país. O noticiário esportivo nas primeiras décadas do século XX faz parte de um pro- cesso de modernização das instituições sociais vinculadas ao esporte como símbolo de uma identidade nacional. No início do século, os jornais divulgavam notas pequenas, dando prioridade ao turf. Aos poucos, o futebol ocupou o noticiário em decorrência do crescimento dos clubes com sócios que desejavam praticar o esporte, participar e/ou assistir aos jogos (PEREIRA, 1998). A cobertura jornalística não atraía profissionais especializados e os impressos não dedicavam função fixa para o esporte. Muitas vezes, o jornalista nem recebia salários. A profissionalização da crítica esportiva ocorreu com o surgimento da Gazeta Esportiva, com a chegada de Thomaz Mazzoni em 1930, que influenciou os debates que ocorriam na cobertura esportiva. Ele criticava a imprensa por práticas sensacionalistas com a publicação de entrevistas e reportagens inventadas com jogadores, negligenciando pro- cedimentos na apuração das informações. Com a influência da Gazeta Esportiva e Jornal dos Spots, a cobertura jornalística passou a ser mais rigorosa na apuração do fato jornalístico, priorizando elementos de veracidade. Essas influências de um jornalismo voltado à divulgação do esporte se espalham para o interior do país. Ao ler Esporte, pode-se verificar que os critérios de edição do texto vão privilegiar uma linguagem informativa, objetiva e uma análise do desempenho dos times locais. A linguagem procura envolver o leitor na narrativa, mas sem se utilizar de adjetivos e/ou outros elementos que supervalorizem o fato a ser analisado. O texto jornalístico já apresenta aspectos relacionados à modernização da linguagem jornalís- tica: o repórter é o narrador em terceira pessoa, aquele que testemunha e contextualiza a informação, trazendo uma análise. Também ainda não é utilizado discurso direto da fonte/entrevistado. Mas já são utilizadas técnicas de narração descritiva, como um correspondente da prática esportiva. No ano de 1957, José Diamantino lançou a Tribuna do Povo junto com Jorge Sou- za Gomes, na qual se evidenciam mudanças, dificuldades de sustentabilidade dessa imprensa e tensões no próprio campo profissional. Quando aA Tribuna do Povo é lançado em 1957, José Diamatino imprimiu o jornal na sua gráfica e foi o principal redator. Em 1959, ele deixou de ser o diretor técnico e o periódico passou a ser impresso na gráfica Gutemberg, com formato standard e com inovações gráficas. O jornal teve diversos colaboradores que escreviam para o jornal. A partir desse momento, ele assinou a coluna Espelho da Cidade e atuou como repórter especializado na cobertura do carnaval e de artes. Como colunista, discutiu temas relacionados à política, economia local e cinema, como questões de urbanização, hábitos cotidianos como o flanar pela cidade ao visitar a cidade vizinha Petrolina, eleva- ção dos preços da economia local, críticas ao ordenamento dos espaços físicos, problemas citadinos como pragas de mosquito e a situação política nacional como referência à falta de liberdade de imprensa, após a ditadura civil militar de 1964. Alguns textos fazem referência à exibição de obras cinematográficas no cinema local e a visita de equipes de set de filmagem na cidade. Em todos os textos, observa-se, contudo, que a cidade e o publico leitor local foram o foco de sua atenção como jornalista. O fato nacional e o local se entrecruzam, estabelecem diálogos.

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Apesar do seu interesse em fazer circular a palavra impressa, a atividade como tipógrafo e jornalista sempre foi marcada por tensões, como a dificuldade de obter publicidade para os periódicos e o pequeno número de assinantes. Ele compreendia a impossibilidade de manter uma imprensa com característica de empreendimento familiar, quando se deparava com jornal de maior circulação no estado, com padrão técnico, impressão de melhor qualidade e preço similar ao que ele cobrava, ao publicar um jornal com quatro páginas. No editorial Conversa com os Leitores, na edição de Esporte, em 1969, ficou explícita essa tensão entre uma pequena imprensa, pensada de forma artesanal, diante da empresa jornalística.

Este é o terceiro número de o Esporte, de uma segunda fase, porque no ano passado tentei editá-lo não passando do 1º número, sofrendo até críticas radiofônicas pouco desairosas (sic) à minha pessoa. Vocês, que não entendem patavina de artes gráficas, não imaginam o trabalho que dá para se fazer um jornalzinho deste, composto sempre de noite, tirando-me o lazer semanal de um cinema ou um bate papo na Rua da Apolo. Mas acham-no caro por 200 mil cruzeiros – o preço de uma cachaça - alegando disparidades pueris entre A Tarde por 0,25 cruzeiros e o Esporte por 0,20, e cegos de burrice citadina não enxergam que nossa oficina é 100 mil vezes inferior em relação ao periódico baiano. Mas durante anos inteiros só se ouvem lamentos como estes: não temos um jornal, isto é uma miséria! Tanta coisa errada, falta um jornal, cadê um jornal para combatê-las e assim por diante. Tenho uma ideia, lanço um jornal semanal esportivo somente para coisa mais séria no futuro e o que acontece de 500 exemplares das duas edições, vendeu-se 95. Continuo tentando. Teremos hoje 150. Esperarei o resultado para por a pedra de cal em cima dessa coisa porque tanto clamavam e agora que tem, embora modesta, abomina-a, despreza-a, ultrajam-na (...).

BREVES CONSIDERAÇÕES Ao iniciar a pesquisa sobre José Diamantino de Assis muitas vezes me defrontei com questões a respeito de sua trajetória e produção jornalística. Por vezes, considerava que os jornais produzidos pelo tipógrafo poderiam se constituir em um objeto de estudo e corpus insuficiente para refletir sobre os circuitos comunicativos entre uma imprensa localizada no interior e os centros urbanos. Porém, os jornais, esses fragmentos, artefatos que nos chegam ao presente pelo con- junto de materiais produzidos em um passado e em determinadas condições, me levavam a persistir na investigação sobre esse personagem, por vezes esquecido e silenciado na história da imprensa juazeirense. Se os jornais sobreviveram, inclusive, à destruição física, isto significava que eles eram um convite para que o leitor voltasse a lê-los. Assim, os jornais produzidos pelo tipógrafo evidenciam vestígios de processos comunicativos em transição entre uma imprensa artesanal e a modernização que se processa nos impressos brasileiros. O tipógrafo percorre um caminho de travessias entre uma cultura oral e a letrada por meio dos impressos. Esse processo não é apenas de difusão e reprodução de mensagens, mas de construção de novas mediações a partir da interação com os leitores.

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7231 Formatos e suportes das histórias em quadrinhos no Brasil (1864-2014) Formats and supports of comics in Brazil (1864-2014)

Wa l d o m i r o Ve rg u e i r o 1 R o b e r to E l í s i o d o s Sa n to s 2

Resumo: O Brasil tem uma longa tradição de publicação de histórias em quadri- nhos, com mais de 150 anos. Apesar da rejeição inicial, foram aos poucos sendo percebidas como uma forma de arte narrativa que oferece informações e entreteni- mento a seus leitores. No entanto, essa trajetória é pouco conhecida no país. Assim, este trabalho tem como objetivo identificar as transformações ocorridas na Nona Arte brasileira, bem como determinar os formatos e os suportes mais utilizados para a disseminação desse produto cultural midiático. Para alcançar essa meta, efetuou-se uma pesquisa qualitativa de nível exploratório que utilizou a técnica da pesquisa documental, realizada em acervos públicos e particulares. O resultado dessa análise levou à categorização de cinco formatos impressos (jornal periódico, a revista infantil de modelo europeu, o suplemento de quadrinhos, a revista de histórias em quadrinhos e as graphic-novels vendidas em livrarias na forma de livros ou álbuns). Em relação aos suportes, o meio impresso, predominante desde a segunda metade do século XIX, passa a ter a concorrência da mídia digital na contemporaneidade. Os últimos anos viram a veiculação de quadrinhos pelas redes sociais ou sua produção em esquemas cooperativos de usuários do ciberespaço. Palavras-Chave: Histórias em Quadrinhos. Brasil. Formatos. Suportes. História dos meios.

Abstract: Brazil has a long tradition of comics publishing, with more than 150 years. Despite the initial rejection, they were gradually perceived as a form of narrative art that offers information and entertainment to their readers. However, this trajectory is little known. This study aims to identify the changes that occur- red in the Ninth Art in Brazil, and to determine the formats and supports most commonly used for the dissemination of this cultural media product. To achieve this goal, we performed a qualitative study of exploratory level that made use of documental research, carried out in public and private collections. The result of this analysis led to the categorization of five printed formats (regular newspa- per, the children’s magazine with the European model, the comic supplement, the comic-book and graphic novels sold in bookstores, in the form of books or albums). Regarding to media, the print medium, prevalent since the second

1. Professor Titular da ECA-USP, Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) da ECA-USP e Coordenador do Observatório de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP. 2. Livre docente pela ECA-USP, professor da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e vice-coordenador do Observatório de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP, [email protected].

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half of the 19th century, has the competition of digital media in contemporary society. In recent years, there have been the spread of comics by social networks or its production in cooperative bases by users of cyberspace. Keywords: Comics. Brazil. Formats. Supports. Media history.

INTRODUÇÃO STE TEXTO é fruto de estudos realizados pelo Observatório de Histórias em Quadrinhos, grupo de pesquisa que reúne pesquisadores de diferentes áreas e Euniversidades do país do exterior. Desde 1999, vem realizando continuamente atividades de reflexões sobre a evolução, a estética e a linguagem das histórias em quadrinhos, seja por meio de levantamentos documentais, seja a partir de análises acadêmicas sobre este produto cultural midiático considerado a Nona Arte. No caso deste trabalho, de nível exploratório, o objetivo foi identificar os diferentes formatos e suportes usados nas narrativas sequenciais em mais de dois séculos (jornal, publicações europeias, suplementos, revistas, graphic novel e, mais recentemente, na mídia digital). No bojo da Revolução Industrial, ao longo do século XVIII, os jornais impressos passaram a ser importantes veículos de comunicação, transmitindo informações e formando opiniões. Em suas páginas, caricaturas, desenhos e charges políticas atraíam a atenção dos leitores. Diversas ilustrações dispostas em sequência e atreladas a textos, às vezes manuscritos e colocados na parte inferior dos desenhos formaram a base do que veio a ser denominado posteriormente de histórias em quadrinhos.

OS QUADRINHOS EM JORNAIS A partir de 1808, com a chegada da família real portuguesa ao Brasil, tem início, tanto de forma oficial como oficiosa (por exilados que pregavam a independência), a imprensa no Brasil. A mídia impressa tornou-se popular principalmente na metade do século XIX, tendo um conteúdo explicitamente político e um teor opinativo. Jornais periódicos ou de circulação efêmera ofereciam ao público caricaturas, charges e narrativas sequenciais. Mais do que uma simples forma de entretenimento, o humor em quadrinhos desvela certas práticas sociais, culturais e políticas, cobertas pelos mecanismos disciplinares de poder, colocando em relevo as fraquezas e imperfeições dos sujeitos e das sociedades. Ao delinear de maneira crítica os contornos de grupos sociais, o humor em quadrinhos per- mite compreender as tensões entre os mecanismos de controle e as forças de resistência. Não há consenso entre os pesquisadores brasileiros a respeito do início do emprego da caricatura como desenho impresso, até porque, antes da veiculação em jornais, elas eram vendidas de forma avulsa. Mas a publicação da caricatura do político Justiniano José da Rocha, feita em 1837 pelo pintor e poeta Manoel de Araújo Porto-alegre, pode ser tomada como marco inicial. Segundo Lago (1999, p. 12):

[...] é só a partir de 1837, data da primeira caricatura de Porto-alegre, e sobretudo 1844, quando o mesmo Porto-alegre fundou a Lanterna Mágica, que a caricatura passa a confundir-se com a história da imprensa no Brasil. De fato, na falta da ilustração fotográfica, os jornais ilustrados pelos princi- pais artistas litográficos da época, quase todos caricaturistas de talento, desempenharam um papel

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importante, tornando a notícia mais atraente e popularizando as feições das principais personalidades do tempo. A partir de 1860, e sobretudo 1870, os jornais satíricos passaram a ser um dos principais veículos de informação e suas tiragens atestam o sucesso da fórmula.

A charge – normalmente uma sátira ou crítica política –, que pode ter uma ou mais vinhetas (assemelhando-se à narrativa sequencial da história em quadrinhos), é limitada ao tempo de sua veiculação, perdendo a graça com o tempo, uma vez que retrata um evento de curta duração. Além disso, segundo Romualdo (2000, p. 85-86), a charge cumpre outro papel, de estabelecer relações intertextuais com outros textos do jornal, quando publicada em órgãos de imprensa:

Nesse universo discursivo que é o jornal, encontramos vários textos sobre um determinado assunto. Isto garante ao jornal o seu pretendido discurso pluralista, pois, ao estabelecermos as relações entre os textos diversos, percebemos que eles podem até possuir posições conflitantes. A charge jornalística é um dos textos que entram na configuração desse discurso da realidade. Ao relacionar a charge com os outros textos do periódico, o leitor recupera a intertextualidade.

Um dos artistas que empregou o humor gráfico como forma de discurso político e crítico foi o ítalo-brasileiro Angelo Agostini. Nascido em 1843 na Itália, estudou arte em Paris e chegou ao Brasil aos 16 anos, acompanhando sua mãe, que era cantora lírica. As caricaturas e as charges por ele realizadas na segunda metade do século XIX demonstravam sua insatisfação com o governo de Dom Pedro II. A carreira artística de Agostini teve início em 1864, com a publicação de ilustrações e charges políticas (muitas vezes divididas em várias vinhetas) na revista Diabo Coxo, editada em São Paulo. Em seguida, trabalhou na revista O Cabrião, para a qual elaborou, em 1867, suas primeiras histórias ilustradas. Depois de mudar-se para o Rio de Janeiro, produziu desenhos para as publicações Vida Fluminense, O Mosquito e Don Quixote. Durante sua permanência na primeira, criou seu primeiro personagem, Nhô Quim. Em 30 de janeiro de 1869, Agostini editou o primeiro capítulo de As Aventuras de Nhô Quim ou Impressões de uma Viagem à Corte, mas só ilustrou nove páginas duplas, que foram completadas (com mais cinco páginas) por Candido Aragonés de Faria.

Ilustração 1 – Nhô Quim faz trapalhadas na cidade grande.

A narrativa de As Aventuras de Nhô Quim, publicada nas duas páginas centrais do jornal Vida Fluminense, acompanha a trajetória do matuto rico Nhô Quim, desde sua partida da fazenda dos pais, no interior, até o rebuliço que causa na cidade por não estar familiarizado com as convenções da vida urbana. Agostini ainda fundou, em janeiro

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Waldomiro Vergueiro • Roberto Elísio dos Santos de 1876, a Revista Ilustrada (que durou até 1888) e o periódico Don Quixote. Nas páginas da revista, esse artista publicou, a partir de 27 de janeiro de 1883, as aventuras de outro personagem, Zé Caipora, em 35 capítulos de páginas duplas, que seriam reeditados em Don Quixote e em O Malho. Ao contrário do interiorano Nhô Quim, Zé Caipora vive na cidade, mas, da mesma forma que o primeiro, também é um trapalhão. Inicialmente, a história acompanhava as desventuras do azarado protagonista, que, buscando causar boa impressão na alta sociedade e, principalmente, aos olhos de sua amada, acabava ora sendo vítima de brincadeiras dos outros, ora causando estragos por sua própria inépcia. A história humorística, entretanto, transforma-se em narrativa de aventura quando o personagem viaja para o interior para curar-se de uma doença. No meio do mato, enfrenta bichos perigosos e uma tribo de índios selvagens e, em parceria com a índia Inaiá, consegue sobrepujar os obstáculos.

A REVISTA INFANTIL DE MODELO EUROPEU Uma das publicações nacionais mais importantes do início do século XX foi a revista O Tico-Tico, lançada em 1905 pela Sociedade Anônima O Malho. Além de quadrinhos protagonizados por crianças (Chiquinho, Lamparina, Réco-Réco, Bolão e Azeitona, entre outros) e narrativas de aventura e de humor, oferecia aos leitores contos, jogos e informações. A intenção de seu criador, Luís Bartolomeu de Souza e Silva, era difundir educação e entretenimento para os leitores infantis. Essa fórmula perdurou até a década de 1960, quando o título foi descontinuado. De acordo com Vergueiro e Santos:

A revista O Tico-Tico é um marco entre os títulos regulares dirigidos à infância no Brasil. Em primeiro lugar, por ter sido a pioneira em trazer regularmente histórias em quadrinhos, numa época em que a arte gráfica sequencial não tinha absolutamente qualquer reconhecimento por parte dos intelectuais, de pais ou professores. Em segundo lugar, por se constituir, até o momento, na mais longeva revista infantil já publicada no Brasil, atingindo 56 anos de vida3 (2005, p. 14).

Do ponto de vista do formato e da padronização gráfica, O Tico-Tico seguia o modelo de revistas europeias da época, especialmente as inglesas e as francesas, a exemplo do periódico La Semaine de Suzette. Assim como na Europa, as histórias em quadrinhos editadas na publicação brasileira traziam os textos impressos na parte inferior das vinhetas – e até mesmo os comics estadunidenses tinham seus balões de fala ou de pensamento apagados. Em relação às questões formal e estética, o leiaute acompanhava a tendência artística característica da Belle Époque, o estilo art nouveau, com suas curvas e cores que sobressaíam umas às outras. No início, os protagonistas dos quadrinhos publicados em O Tico-Tico eram crianças: sucesso nos Estados Unidos, o garoto Buster Brown, idealizado em 1902 por Richard Felton Outcault (criador de Yelow Kid), tornou-se figura constante da revista. Rebatizado de Chiquinho, teve suas histórias realizadas por diversos artistas brasileiros por mais de meio século, sem que o autor soubesse. Luiz Gomes Loureiro abrasileirou o personagem, transpondo-o para a cultura e os costumes nacionais da época. Ao contrário das tiras

3. Nos anos posteriores ao centenário de lançamento de O Tico-Tico, as revistas com os personagens Disney, Pato Donald e Mickey, ultrapassaram seu tempo de publicação, embora só tenham contado com quadrinhos produzidos por artistas brasileiros da década de 1960 até o início do século XXI.

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Waldomiro Vergueiro • Roberto Elísio dos Santos estadunidenses, que se passavam na parte rica de Nova York, as narrativas brasileiras de Chiquinho tinham como cenário o espaço rural. O quadrinista manteve a roupa de marinheiro do personagem original, típica vestimenta das crianças da época, mas acrescentou às traquinagens o garoto negro Benjamin. Outros personagens infantis foram Juquinha, idealizado por J. Carlos para as primeiras edições do periódico, e os amigos Reco-Reco, Bolão e Azeitona, criados por Luiz Sá no início dos anos 1930.

Ilustração 2 – Capa da revista O Tico-Tico ilustrada por J. Carlos.

Mas os quadrinhos de O Tico-Tico não se restringiam aos personagens infantis. Alfredo Storni criou em 1911 os personagens Zé Macaco e Faustina, um casal caracterizado pela feiura e pela burrice, mas que pretende parecer sofisticado. Trata-se de uma crítica à classe média urbana ascendente e deslumbrada. Concebidos por Max Yantok no mesmo ano que Zé Macaco e Faustina, o grã-fino metido a aventureiro Kaximbown e seu criado Pipoca apareciam em histórias que normalmente ocupavam uma página. Viajando pela misteriosa Pandegolândia, eles procuravam por tesouros e faziam caçadas, mas sempre acabavam se metendo em confusões. Yantok também foi o autor das peripécias do Barão de Rapapé, de Chico Maldesorte, um mendigo azarado que vivia sem dinheiro, e dos amigos Pandareco e Parachoque e seu cachorro Viralata.

OS SUPLEMENTOS DE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS Paulatinamente, o formato de publicações estadunidenses começou a se tornar o padrão no país: se a revista O Tico-Tico seguiu o modelo europeu de publicações impressas – especialmente o inglês e o francês, A Gazeta Edição Infantil incorporou o formato dos suplementos editados nos Estados Unidos e a estética e a linguagem das comic-strips (tiras de quadrinhos), como o uso do balão (de fala ou pensamento) em lugar do texto posicionado abaixo da vinheta. Até mesmo os nomes dos personagens concebidos por artistas brasileiros passaram a ser americanizados, e as narrativas eram ambientadas em metrópoles que remetiam a Nova York ou Chicago, como pode ser observado na série policial A Garra Cinzenta, realizada por Francisco Armond e Renato Silva e publicada na Gazetinha de 1937 a 1939.

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Surgida em 1929 como uma seção do periódico paulista A Gazeta, no dia 12 de setembro do mesmo ano, A Gazetinha tornou-se um suplemento semanal. Além de tiras de quadrinhos produzidas nos Estados Unidos (Gato Félix, Little Nemo, Thimble Theater, entre outras), trazia material elaborado por artistas do país: na edição número 5 estreou Piolim, desenhado por Gomez Dias e Nino Borges, personagem baseado no famoso palhaço brasileiro da época. Descontinuada em 1930, voltou a ser publicada três anos depois e chegou a ser trissemanal. Tiras de Betty Boop, Brick Bradford, Fantasma e Superman dividiam espaço com Nhô Totico, personagem de programa radiofônico de humor muito popular na época, ambientado em uma sala de aula e protagonizado por uma professora e seus alunos. Dois artistas brasileiros destacaram-se nas páginas desse suplemento: Belmonte e Messias de Mello. Este último, além de narrativas de aventura serializadas em capítulos semanais de uma página (como Capitão Blood, Sherlock Holmes, Homem Elétrico, À Roda da Lua etc.), foi criador em 1934 da história humorística estrelada pelo Pão-duro, malandro que quase sempre se dava mal. Embora não seja sovina, este personagem vive criando maneiras de ganhar dinheiro, normalmente ao lado de seu amigo Gibimba, mas ambos acabam arrumando confusão.

Ilustração 3 – Imagem da história policial A Garra Cinzenta.

Depois da Gazetinha, surgiram outros suplementos de quadrinhos no Brasil, a exemplo do Suplemento Juvenil (1933) e do Globo Juvenil (1937), que publicavam principalmente quadrinhos estrelados por personagens estadunidenses (a exemplo de Fantasma, Superman, Popeye e Pato Donald). Nas décadas seguintes, diversos jornais de várias partes do Brasil lançaram seus suplementos voltados para leitores infantis que publicavam passatempos e tiras e páginas de quadrinhos, como a Folhinha, encartada na edição de domingo da Folha de S. Paulo e que trazia quadrinhos feitos por Mauricio de Sousa. Muitas dessas publicações seguiam o exemplo de O Tico-Tico, misturando divertimento e informação para o leitor infantil. O Suplemento Juvenil fez parte de um projeto apresentado ao jornal A Manhã pelo editor Adolfo Aizen, após uma viagem que fez aos Estados Unidos para conhecer o mercado editorial de jornais daquele país. Com a recusa de Roberto Marinho, proprietário do peri- ódico, a iniciativa de Aizen acabou encontrando guarida no jornal A Nação, então dirigido por João Alberto Lins de Barros. No começo, recebeu o título Suplemento Infantil, mas, a partir da décima quinta edição, mudou de nome passou a ser vendido separadamente

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Waldomiro Vergueiro • Roberto Elísio dos Santos do jornal, devido à sua grande aceitação por parte do público. Nas primeiras edições, apresentava, em capítulos, a história Os exploradores da Atlântida ou As aventuras de Roberto Sorocaba, realizada por Monteiro Filho. De acordo com Silva (1976, p. 36), em 1937 a publi- cação promoveu um concurso para encontrar novos quadrinistas nacionais. Com o sucesso do Suplemento, Roberto Marinho, também proprietário do jornal O Globo, lançou o Globo Juvenil, posteriormente adquirindo dos distribuidores quase todos os principais personagens editados por Aizen, além da participação de artistas brasileiros. Tanto Marinho como Aizen foram responsáveis pela introdução de um novo formato de publicações de quadrinhos no Brasil, a revista nas dimensões do comic-book estadunidense.

AS REVISTAS EM QUADRINHOS NO FORMATO COMIC-BOOK Pode-se dizer que o comic-book surgiu no Brasil a partir do lançamento da revista Gibi, no Rio de Janeiro, que obteve enorme popularidade, de tal forma que a palavra “gibi” passou, inclusive, nas décadas seguintes, a ser utilizada como sinônimo de revista em quadrinhos (SANTOS et al, 2010). Por outro lado, deve-se também considerar como um fator importante para a disseminação desse formato impresso o início das atividades da Editora Brasil América Ltda – EBAL, em 1945. Criada por Adolfo Aizen, depois do encerramento de seu Suplemento Juvenil, a criação dessa editora representou uma nova fase na produção de quadrinhos no país, incorporando definitivamente à indústria editorial brasileira o formato que tanto sucesso fazia à época nos Estados Unidos e trazendo para o país os principais personagens da indústria dos comic-books. Aizen iniciou suas atividades com a publicação dos personagens Disney, a partir de uma parceria com a Editora Abril, da Argentina, mas logo depois já começava a publicar independentemente a revista O Herói, a primeira de uma vasta galeria que iria publicar durante as décadas seguintes. A EBAL foi responsável pela introdução no Brasil das revistas em quadrinhos dos heróis da DC Comics – Superman, Batman, Mulher Maravilha, etc. -, e, posteriormente, também da Marvel Comics – Capitão América, Homem de Ferro, Thor, Homem-Aranha, etc -, as duas gigantes do mercado de quadrinhos norte- americano. A EBAL encerrou suas atividades na década de 1990. (AZEVEDO, 2007)

Ilustração 4 – Gibi, o título que virou sinônimo de revista em quadrinhos

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Apenas cinco anos depois da fundação da EBAL, no Rio de Janeiro, Victor Civita trouxe para o Brasil a Editora Abril, empresa que já existia na Argentina. Ela iniciou suas atividades publicando a revista O Pato Donald, título ao qual se incorporariam, nos anos seguintes, outros como Zé Carioca, Mickey, Tio Patinhas. Iniciando a revista O Pato Donald no formato comic book, a editora manteve esse formato durante 21 edições, reduzindo-o a partir do número 22 para um formato menor, emulando o adotado pelas revistas Disney publicadas na Itália. Esse formato foi adotado, a partir de então, em todas as suas publicações, permanecendo até hoje. Nas décadas seguintes, a editora, a partir do sucesso de suas revistas em quadrinhos, cresceu e se tornou uma das maiores empresas brasileiras da área editorial. Importante destacar, também, que a Editora Abril foi a responsável pela publicação, em 1970, das revistas do desenhista Maurício de Sousa, o mais importante do país. De fato, nesse ano,

[...] a Editora Abril, buscando aumentar sua participação no mercado de histórias em quadrinhos, iniciou a publicação do título Mônica, que trazia histórias de um grupo de crianças que girava em torno desse personagem – uma menina de força excepcional e grande personalidade, que dominava todas as demais. Criada pelo quadrinhista Maurício de Sousa, o personagem e seus amigos, posterior- mente conhecidos como A Turma da Mônica, logo se revelaram uma iniciativa muito bem sucedida, caindo no gosto dos leitores brasileiros. Em pouco tempo, a Editora Abril entendeu viável publicar mais títulos desse autor; assim, em 1973 surgiu a revista Cebolinha, seguida, alguns anos depois, em 1982, por Cascão e Chico Bento, este último um personagem do ambiente rural brasileiro, que fugia do modelo de criança de um ambiente urbano universal, característico dos demais personagens. (VERGUEIRO, 2011, p. 29)

Ilustração 5 – Primeiro número da revista Mônica, publicado pela Editora Abril Outras empresas iriam se juntar às duas primeiras na publicação de quadrinhos. No Rio de Janeiro, Roberto Marinho fundou a Rio Gráfica Editora (RGE), por meio da qual publicou, durante anos, os principais personagens do King Features Syndicate. Em 1986 passou a chamar-se Editora Globo, continuando a publicar quadrinhos até a virada do milênio. Também no Rio de Janeiro se localizava a Editora O Cruzeiro, de Assis

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Chateubriand, que publicava os personagens dos desenhos animados da Hanna Barbera – Zé Colmeia, Dom Pixote, Pepe Legal – e dos personagens Luluzinha e Bolinha, criados pela desenhista norte americana Marjorie Henderson Buell, conhecida artisticamente como Marge. A Editora O Cruzeiro foi responsável, em 1960, pelo lançamento da revista Pererê, grande criação do quadrinhista Ziraldo Alves Pinto, publicada até 1964. Outras editoras menores se juntaram a essas nas décadas seguintes, como Vecchi, Continental, Triestre, Edrel, La Selva, Grafipar, etc -, mas todas tiveram produção bem inferior numericamente e conseguiram se manter durante relativamente pouco tempo no mercado. Uma editora da envergadura dessas outras quatro na publicação de revista de histórias em quadrinhos só iria surgir no início do presente século, em 2001, quando a Editora Abril desistiu de publicar os personagens da Editora Marvel e estes foram assumidos pela filial brasileira da Editora Panini Comics. Nos anos seguintes, com a passagem dos títulos da DC Comics e dos personagens de Maurício de Sousa para essa editora, ela passou a ser soberana no mercado de revistas em quadrinhos, dominando-o completamente.

OS FANZINES E AS REVISTAS ALTERNATIVAS Tal como ocorreu em outros países, o Brasil também contou com um espaço de produção de quadrinhos à margem das grandes editoras e jornais. Na forma de fanzines e revistas alternativas, essa produção proveio inicialmente de fãs do gênero que desejavam trocar ideias sobre seus personagens prediletos e posteriormente incorporou também autores iniciantes ou que tinham dificuldade para encontrar espaço no mercado normal, também conhecido como mainstream. O primeiro fanzines brasileiros eram pouco mais que boletins impressos, feitos em mimeógrafos e distribuídos gratuitamente pelo correio, com o objetivo de estabelecer uma troca de informações. A primeira publicação desse tipo, ao que se saiba, intitulou-se Ficção e foi publicada na cidade de Piracicaba por Edson Rontani. Seguiu-se o Boletim do Herói, lançado em Minas Gerais por Agenor Ferreira, em 1968. Muitos outros segui- riam: Boletim do Clube do Gibi, Vivendo os Quadrinhos, Na Era dos Quadrinhos, entre outros. (ANDRAUS, 2010) O apogeu dos fanzines de quadrinhos no Brasil parece ter sido a década de 1980, quando as máquinas fotocopiadoras melhoraram sua capacidade de reprodução e pas- saram a ser muito mais acessíveis no Brasil inteiro. No Sul do país, Historieta, de Oscar Kern, teve uma vida longeva, atingindo o século XXI; em São Paulo, Quadrix, do jor- nalista Worney de Almeida, teve enorme destaque; em Minas Gerais, Psiu, de Edgar Guimarães, era considerado um dos melhores. Os anos 1990 presenciaram o início da passagem dos fanzines impressos para o ambiente virtual, fenômeno que iria se tornar muito mais comum com a popularização da internet, o surgimento dos blogs e, poste- riormente, das redes sociais. Por outro lado, no que diz respeito às chamadas revistas alternativas de histórias em quadrinhos, pode-se dizer, com Andraus (2010, p. 182), que “a questão da editoração alternativa está intimamente ligada à imprensa marginal e repressão ocorrida devido à ditadura brasileira nos idos de 60 para meados da década de 70”, período em que “a imprensa alternativa a forma que os dissidentes encontravam para se opor, através da

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Waldomiro Vergueiro • Roberto Elísio dos Santos informação, aos órgãos atrelado ao governo repressor iniciado em 1964”. Nesse período surgiram títulos como Pif-Paf, de Millôr Fernandes; Amanhã, direcionado a trabalhadores e operários; e principalmente, O Pasquim, o maior título de oposição à ditadura militar, que trazia trabalhos de Jaguar, Henfil e Millôr Fernandes.

Ilustração 6 – Pasquim, quadrinhos em oposição à ditadura

OS ÁLBUNS E GRAPHIC NOVELS Quadrinhos em formato de álbum foram esporadicamente publicados no Brasil durante os primeiros anos do século XX. Tratavam-se, em geral, de publicações que traziam material publicado anteriormente em títulos como O Tico-Tico ou Suplemento Juvenil, explorando o que se poderia chamar de espaço “afetivo” do mercado, ou seja, tendo como consumidor-alvo adultos que, tendo conhecido esse material durante sua infância, iriam compra-los como recordação ou para presentear seus filhos. Apenas em fina da década de 1970 e início da de 1980 a editora L&PM, de Porto Alegre, investiu de forma significativa na produção de álbuns de histórias em quadrinhos, reproduzindo o formato que já era bastante comum no mercado europeu, especialmente nos países de língua francesa. Assim, essa editora lançou em formato álbum histórias em quadrinhos de autores europeus (Crepax, Varenne, Moebius, etc.), norte-americanos (Mort Walker, Will Eisner, Robert Crumb, etc) e também de brasileiros (Luis Fernando Veríssimo, Edgar Vasques, Miguel Paiva, etc.). Não pode é possível afirmar que o formato álbum no modelo europeu chegou a ter realmente uma grande disseminação no país. Ainda que seja importante salientar que nesse formato foram introduzidas no Brasil as histórias dos personagens Tintin (de Hergé) e Asterix (de Goscinny e Uderzo), Lucky Luke (de Morris), é também imperioso constatar que esses casos representam exceções na grande miríade de publicações de quadrinhos. De fato, um formato mais próximo do livro para publicação de histórias em quadrinhos só iria surgir no Brasil com as graphic novels, a partir da década de 1980.

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As graphic novels tornaram-se muito comuns nos Estados Unidos depois da publicação da obra Um contrato com Deus, de Will Eisner, que empenhou-se na popularização desse formato. Buscava, então, a criação de uma alternativa editorial para os quadrinhos destinados a um público mais adultos, tentando diferenciá-los dos comic books, vistos como destinados ao público infanto-juvenil e com as histórias de super-heróis. O formato diferencia-se das revistas em quadrinhos pelo maior cuidado editorial, com a utilização de papel de melhor qualidade, uma produção gráfica mais caprichada e um custo muito mais alto, bem como por almejar atingir um público mais adulto e com maior poder aquisitivo, sendo comercializado prioritariamente em livrarias. Além de representar uma estratégia de marketing bem sucedida, o novo formato buscou também valorizar culturalmente a linguagem das histórias em quadrinhos, priorizando conteúdos com maiores ambições intelectuais, especialmente obras autobiográficas e jornalísticas, além da compilação de obras publicadas em fascículos no mercado mainstream de quadrinhos. No Brasil, esse formato começou a ser publicado com mais regularidade ao final da década de 1980, ampliando o seu espaço na década seguinte e crescendo exponencialmente nos anos 2000. A ampliação das publicações em graphic novel possibilitou sua comercialização em grandes livrarias do país – como Cultura, Saraiva e FNAC -, que criaram espaços específicos para as histórias em quadrinhos. Ao mesmo tempo, editoras que antes publicavam apenas livros passaram a incorporar as histórias em quadrinhos como uma linha editorial, ajudando a ampliar o mercado ainda mais. O caso mais significativo nessa área é a editora Companhia das Letras, que há alguns anos criou o selo Quadrinhos na Cia, pelo qual já publicou diversos autores nacionais (Lourenço Mutarelli, Luiz Gê, Rafael Coutinho, etc.) e estrangeiros (Marjane Satrapi, Will Eisner, Art Spiegelman, etc.).

Ilustração 7 – Lourenço Mutarelli em formato graphic novel

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OS QUADRINHOS NA INTERNET O ambiente virtual tornou-se, nas últimas décadas, um espaço de grande proliferação de histórias em quadrinhos. A facilidade de disponibilizar obras sem a intermediação de um editor, o aparecimento e fácil composição dos blogs, e, posteriormente, o surgimento das redes virtuais, fizeram com que a internet surgisse como o espaço por excelência para veiculação de histórias em quadrinhos. O Brasil acompanhou o resto do mundo na produção e disseminação das chamadas webcomics, com muitos artistas criando páginas para colocar seus trabalhos. Com um número cada vez maior, essas produções de quadrinhos na internet vão desde obras criadas na forma tradicional, escaneadas e colocadas na rede, como outras criadas com sofisticados recursos de computação gráfica, incorporando diversas técnicas de repro- dução gráfica e desenvolvendo temáticas e grafismos arrojados. Atualmente, é possível encontrar uma enorme variedade de blogs e páginas na internet produzidas por artistas brasileiros. Dentre eles, podem ser destacados, entre outros, Quadrinhos Rasos (www.quadrinhosrasos.com), de Luiz Felipe e Eduardo Damasceno; Aquarella (www.aquarella.com.br), de Leandro Estevam; Os Passarinhos (http://www.ospassarinhos.com.br/), de Estevão Ribeiro; Malvados (www.malvados. com.br), de André Dahmer; e Um Sábado Qualquer (www.umsabadoqualquer.com), de André Ruas.

Ilustração 8 – André Dahmer, da internet para o impresso

É interessante salientar que o sucesso de vários webcomics brasileiros fizeram com que estes fossem posteriormente publicados em formato impresso, muitas vezes por intermédio de esquemas cooperativos de publicação. Isso leva a supor que o ambiente digital ainda pode constituir um espaço transitório para publicação de histórias em quadrinhos (LUIZ et al, 2013).

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CONCLUSÃO A categorização de cinco formatos impressos (jornal periódico, a revista infantil de modelo europeu, o suplemento de quadrinhos, a revista de histórias em quadrinhos e as graphic-novels vendidas em livrarias na forma de livros ou álbuns) para veiculação das histórias em quadrinhos no Brasil mostrou que o país apresentou, em seu mercado editorial, uma mescla de influências. Recebendo inicialmente a influência da produção europeia, enveredou pela produção humorística em jornais e pela revista infantil; pos- teriormente, a influência do modelo norte-americano tornou-se preponderante, levando ao aparecimento dos suplementos de jornais – que no país tiveram a particularidade de ser publicados de forma desvinculada -, das revistas de histórias em quadrinhos e, posteriormente, das graphic novels. O meio impresso continua predominante no país, mas enfrenta nas últimas décadas a concorrência das mídias digitais, que, no entanto, ainda estão titubeantes como formato preferencial para publicação de histórias em quadrinhos, podendo ser vistas, sob certos aspectos, como um espaço transitório para veiculação de obras em quadrinhos.

REFERÊNCIAS AZEVEDO, A. (2007) EBAL: fábrica de quadrinhos. São Paulo: Via Lettera. LAGO, P. C. (1999). Caricaturistas brasileiros 1836-1999. Rio de Janeiro: Sextante. LUIZ, L. Os quadrinhos na era digital: hqtrônicas, webcomics e cultura participativa. Nova Iguaçu: Marsupial. ROMUALDO, E. C. (2000). Charge jornalística: intertextualidade e polifonia. Maringá: Eduem. SANTOS et al. (2010) Gibi: a revista sinônimo de quadrinhos. São Paulo: Via Lettera. SILVA, D. (1976). Quadrinhos para quadrados. Porto Alegre: Bels. VERGUEIRO, W. “Desenvolvimento e tendências do mercado de quadrinhos no Brasil”. In: VERGUEIRO, W.; SANTOS, R. E. (2010) A história em quadrinhos no Brasil: Análise, evolução e mercado. São Paulo: Editora Laços, p. 13-56. VERGUEIRO, W., SANTOS, R. E. (2005). O Tico-Tico 100 anos: centenário da primeira revista de quadrinhos do Brasil. Vinhedo: Opera Graphica.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7244 Da comunicação científica para especialistas à popularização do conhecimento: um percurso histórico do discurso de periódicos de divulgação sobre zootecnia From scientific communication for specialists to the popularization of knowledge: a historical course of discourse of periodicals about zootechny

P h i l l i pp D i a s G r i pp 1 A da C r i s t i n a M ac h a d o Si lv e i ra 2

Resumo: Através de exposições sobre características históricas do Rio Grande do Sul, consideram-se as ciências agrárias como uma porta de entrada para o desenvolvimento científico na região de fronteira do estado. Parte-se de apontamentos terminológicos a respeito da disseminação de informações científicas e das distinções tipológicas de periódicos especializados em temáticas científicas. Propõe-se, então, uma análise do discurso de publicações sobre zootecnia produzidos pela Associação Brasileira de Criadores Ovinos (Bagé/ RS). A análise evidencia mudanças no Contrato de Comunicação entre 1942 e 2014 por meio da identificação de descontinuidades de formações discursivas, passando de textos de Comunicação Científica, essencialmente técnicos, para uma tentativa de popularização científica. Compreende-se que essas alterações foram possíveis pela presença das relações de poder. Palavras-Chave: Comunicação Científica. Popularização científica. Fronteira. Ciências agrárias. Análise do discurso.

Abstract: Through exhibitions on historical characteristics of Rio Grande do Sul, the agricultural sciences are considered as a gateway to scientific development in borderland of the state. This article starts from terminology notes about the dissemination of scientific information and typological distinctions of specialized in scientific themes journals. It is proposed, thus, a discourse analysis of zootecnhny publications produced by the Brazilian Association of Breeders Sheep (Bagé/RS). The analysis shows changes in the Contract of Communication between 1942 and 2014 by identifying discontinuities of discourses structures, passing from Scientific Communication texts, inherently technical, for an attempt

1. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, linha de pesquisa Mídias e Identidades Contemporâneas, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), bolsista CAPES. Integrante dos Grupos de Pesquisa Comunicação, identidades e fronteiras (UFSM) e Comunicação e desenvolvimento (UFSM). E-mail: [email protected]. 2. Professora Associada IV dos cursos de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFSM. Pesquisadora do CNPq (Pq2). Doutora em Jornalismo pela Universidade Autônoma de Barcelona. Líder dos Grupos de Pesquisa Comunicação, identidades e fronteiras (UFSM) e Comunicação e desenvolvimento (UFSM). E-mail: [email protected].

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of scientific popularization. It is understood that these changes were enabled by the power relations presence. Keywords: Scientific Communication. Science popularization. Borderlan. Agricultural sciences. Discourse analysis.

INTRODUÇÃO PRODUÇÃO NOTICIOSA sobre C&T é complexa. O jornalista é desafiado a enten- der terminologias técnicas de distintas áreas científicas3 que ele não conhece e A pode não ter aptidão, além de precisar também apreender o contexto teórico- -metodológico em que o trabalho foi realizado, para, finalmente, escrever um texto que possa contextualizar e ser inteligível por indivíduos possivelmente leigos no assunto. Textos jornalísticos sobre C&T intencionam não apenas informar a população sobre os avanços científico-tecnológicos, como também disponibilizar ao leitor um aprofun- damento sobre assuntos especializados no intuito de fazê-lo compreender o complexo desenvolvimento das pesquisas. Ao delimitar essa temática, este trabalho é centrado na Divulgação Científica sobre as ciências agrárias, na especialidade de zootecnia. Esta escolha leva em consideração a importância dessa área para a economia brasileira, que contribui para o desenvolvimento do país e para as relações internacionais, além da relação cultural e histórica do Rio Gran- de do Sul (RS), mais especificamente a região de fronteira do estado, com o meio rural. Acredita-se na necessidade de compreender a forma como as informações científicas sobre o assunto se delinearam historicamente através de mudanças no discurso utilizado por periódicos especializados, moldando redes de comunicação entre os interessados na temática, especialistas ou não, na tentativa de popularizar o conhecimento científico. Com isso, o presente trabalho propõe delinear historicamente as mudanças discursivas das publicações de divulgação sobre zootecnia, produzidas pela Associação Brasileira de Criadores Ovinos (ARCO), fundada em 1942, em Bagé (município fronteiriço do RS). Para tanto, algumas distinções terminológicas e a relação da região fronteiriça do RS com o meio rural serão brevemente contextualizadas a seguir, na medida em que servem como base para o trabalho e justificam a seleção de análise apresentada. Entende-se que as transformações foram ocasionadas por influência de relações de poder percebidas nas mudanças de direção da associação. Para traçar as descontinuidades discursivas e mudanças ocorridas no contrato de comunicação dos periódicos em questão, utiliza-se a metodologia de Análise do Discurso de corrente francesa.

ALGUMAS DISTINÇÕES TERMINOLÓGICAS Este trabalho se apoia inicialmente nas sugestões terminológicas de Bueno (1988; 2009). Instigado pela problemática da compreensão de informações científicas e tecnológicas pelo leitor, o autor apresenta o conceito de Difusão (BUENO, 1988), sendo compreendida nos

3. A Ciência & Tecnologia (C&T) é um campo bastante amplo. No Brasil, com o objetivo de sistematiza-lo, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) propõe sua organização em quatro níveis, sendo o primeiro em nove grandes áreas do conhecimento (Ciências Exatas e da Terra; Biológicas; Engenharias; da Saúde; Agrárias; Sociais Aplicadas; Humanas; Linguística, Letras e Artes; e Outros), as quais se dividem em áreas, subáreas e especialidades.

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Phillipp Dias Gripp • Ada Cristina Machado Silveira níveis de a) difusão para especialistas; e b) difusão para o público em geral. A primeira está intimamente ligada ao conceito de Comunicação Científica, percebendo-o como uma disseminação de informações sobre C&T para um público que entende previamente as teorias, metodologias e termos técnicos da área, ou seja, um especialista. A difusão para o público em geral é direcionada a um leitor não-especialista no assunto tratado e se relaciona aos conceitos de Divulgação Científica e Jornalismo Científico. Essa difusão pode contribuir para uma popularização do conhecimento científico-tecnológico, já que nessa perspectiva há uma “utilização de recursos, técnicas, processos e produtos (veículos ou canais) para a veiculação de informações científicas, tecnológicas ou associadas a inovações ao público leigo” (BUENO, 2009, p. 162), permitindo que aqueles que ainda não tiveram um contato com o assunto abordado entendam-no por meio de uma linguagem acessível. Nesse contexto, cabe considerar que:

A divulgação científica não se restringe ao campo da imprensa. Inclui os jornais e revistas, mas também os livros didáticos, as aulas de ciências do 2º grau, os cursos de extensão para não-especialistas, as estórias em quadrinhos, os suplementos infantis, muitos dos folhetos utilizados na prática de extensão rural ou em campanhas de educação voltadas, por exemplo, para as áreas de higiene e saúde, os fascículos produzidos por grandes editoras, documen- tários, programas especiais de rádio e televisão etc. (BUENO, 1988, p. 23).

Entende-se, com isso, que a Divulgação Científica se diferencia do Jornalismo Científico pela especificidade do veículo de comunicação, já que ambos se apropriam de uma mesma difusão. Enquanto a primeira se amplia a diversos produtos, o segundo se restringe à imprensa e, portanto, requer uma produção baseada na prática jornalística, obedecendo a um contrato de comunicação específico (CHARAUDEAU, 2013), como será visto adiante. A partir dessa perspectiva, sustentam-se as tipologias de revistas científicas propostas por Gomes (2011), que se embasa no entendimento de que os membros de uma comunidade partilham interesses, além de terem um repertório e conhecimentos parecidos. Nesse sentido, a autora afirma que jornalistas e cientistas pertencem a comunidades de práticas diferentes. Por essas distinções, a abordagem linguística dos sujeitos pertencentes a cada uma das comunidades também tem particularidades. Assim, Gomes (2011) propõe que:

As revistas de disseminação científicasão produzidas por pesquisadores, dirigidas aos pares e, por isso mesmo, veiculam textos altamente especializados. Nesse segmento estão incluídas as revistas científicas. As revistas de divulgação científica, por outro lado, procuram veicular textos com linguagem acessível a não-especialistas. Quando a revista de divulgação científica tem como alvo um público não-especializado e publica textos produzidos exclusivamente por autores jornalistas é denominada revista jornalística especializada em ciência. Mas, quan- do veicula textos de autores jornalistas e autores pesquisadores e tem como público-alvo especialistas e não-especialistas, trata-se de uma publicação de natureza híbrida, porque, existem diferentes objetivos; leitores especialistas e não-especialistas; autores pesquisadores e jornalistas e, em consequência, dois tipos de linguagem (da quase acadêmica à jornalística) (2011, p. 13, grifos da autora).

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Phillipp Dias Gripp • Ada Cristina Machado Silveira

Partindo desses pressupostos terminológicos, este trabalho utilizar-se-á das tipologias de Gomes (2011) como base para o enquadramento das revistas analisadas. Enquanto isso, os conceitos apontados por Bueno (1988; 2009) servirão de referência sobre a prática de produção relacionada à de difusão. Entender-se-á, assim, por Comunicação Científica, a enunciação produzida e endereçada por/para cientistas, logo, relacionada às Revistas Científicas; por Divulgação Científica, a prática de enunciação direcionada a um público não-especialista, com locutores jornalistas e/ou cientistas, comportando as revistas Híbridas e Jornalísticas Especializadas em Ciência; enquanto por Jornalismo Científico, as enunciações exclusivamente de jornalistas para um público não-especialista, detendo-se às revistas Jornalísticas Especializadas em Ciência. Compreende-se, ainda, que a difusão de informações científicas para o público em geral, sejam de revistas Híbridas ou Jornalísticas Especializadas em Ciência, possibilitam uma popularização do conhecimento científico ou popularização da ciência. Em linhas gerais, de acordo com Motta-Roth (2010), essa popularização é atingida na medida em que um discurso científico é recontextualizado para torna-lo acessível aos não-especialistas, de modo que todos se beneficiem do conhecimento.

AS CIÊNCIAS AGRÁRIAS NA REGIÃO DE FRONTEIRA DO RS Schwarz (2000), ao investigar a formação do romance brasileiro com base em textos de Machado de Assis, reflete sobre os princípios da ciência, dos quais derivaria o atual sistema científico. Ele parte da apresentação de um panfleto de autoria do romancis- ta para argumentar que, em contrapartida aos ideais de um trabalho livre visando o progresso da ciência, o Brasil é colocado fora desse sistema por vivenciar a realidade da escravidão. Assim, o autor argumenta que a formação cultural do Brasil se baseou desde o início em um quadro agrário: “Como é sabido, éramos um país agrário e inde- pendente, dividido em latifúndios, cuja produção dependia do trabalho escravo por um lado, e por outro, do mercado externo” (SCHWARZ, 2000, p. 13). Com isso, mesmo que os estudos realizados para a modernização da área com avanços os técnico-científicos não fossem vistos como úteis ao Brasil na época, entende-se que ela pôde se configurar como uma porta de entrada para a produção e importação do conhecimento científico, principalmente no sul do Brasil. Dessa forma, delimitou-se o objeto de estudo deste trabalho como a evolução do discurso de periódicos que abordam uma área científica que se estabeleceu historica- mente como um importante polo econômico para o país. Essa é uma estratégia que possibilita evidenciar não apenas como vem se configurando a cultura científica e o desenvolvimento da C&T através dos discursos produzidos sobre o assunto, mas também através de quais relações de poder (FOUCAULT, 1979) a comunicação sobre o assunto foram se desenvolvendo. Tal recorte se caracteriza nos periódicos produzidos pela ARCO, instituição respon- sável, atualmente, pela catalogação de animais e sistematização dos criadores de ovelhas de todo o Brasil. Desde seu início, a equipe considerou relevante estabelecer uma rede de comunicação entre os associados através de publicações periódicas que abordassem a temática técnico-científica sobre o melhoramento zootécnico, além de pautas sobre outras temáticas pertinentes ao meio rural, como as políticas para o desenvolvimento da área,

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Phillipp Dias Gripp • Ada Cristina Machado Silveira apontamentos econômicos e coberturas de feiras agropecuárias, a exemplo da Expointer. Essa perspectiva agrária fica ainda mais evidente quando se considera o estado do RS. É importante, assim, ressaltar algumas considerações concernentes à delimitação geográfica da sede da ARCO. O Brasil Sulino – que concentra os estados do Paraná, Santa Catarina e RS – é a menor das regiões do país em extensão territorial. Em contrapartida, 10% de todas as cidades que integram a região de fronteira do Brasil, referente ao número de 182 municípios, encontram-se no estado do RS. Tal número resulta em 39% dos municípios sul-rio-grandenses, sendo, com isso, o estado com o maior número de municipalidades fronteiriças do país. A sua posição territorial encontra o limite com o Uruguai, ao sul, e Argentina, a oeste. A faixa de fronteira, determinada pela lei n° 6.634 de 02 de maio de 1979 e regulamentada pelo Decreto n° 85.064 de 26 de agosto de 1980, define um filete de 150 quilômetros de largura em território nacional, segundo dados da divisão territorial de 1999, registrada pelo IBGE (1999). As regiões da Fronteira Oeste, Sudoeste e Sul do RS são áreas que tiveram a base de seu desenvolvimento econômico historicamente fundamentado principalmente nas ciências agrárias. Além disso, a posição territorial das cidades dessas regiões, geografi- camente mais próximas à região Platina (banhada pelos rios que formam a Bacia do Rio da Prata), formada pelos países da Argentina, Uruguai e Paraguai, é um fator crucial que evidencia as semelhanças entre os costumes culturais e identitários dos sujeitos que ali vivem. Ribeiro (1995) argumenta que essa similaridade de costumes culturais se deve, aliás, a diversos fatores históricos, que não podem ser deixados de lado: “Especializam- -se na exploração do gado, alçado e selvagem, que se multiplicava prodigiosamente nas pradarias naturais das duas margens do rio da Prata” (RIBEIRO, 1995, p. 414). Toda essa relação é marcada por um grande número de lutas armadas na região para a demarcação das fronteiras. É importante notar que essa perspectiva histórica da região está diretamente relacionada aos interesses pelo desenvolvimento científico e tecnológico presentes no RS. Ora, se os gaúchos se identificavam com o meio rural e encontrariam ali o seu sustento e trabalho, logo se importariam e se dedicariam ao melhoramento gradativo das ciências agrárias no decorrer dos anos, envolvendo-se com o seu desenvolvimento. Essa lógica serve de base para a escolha da temática científica dos periódicos analisados e é também a perspectiva que o autor explicita adiante:

A introdução dos reprodutores de raça, de cuidados zootécnicos e de melhoria das pasta- gens promove a renovação do gado, que ganha peso, torna-se mais dócil e se faz leiteiro. Os rebanhos aumentam; ao vacum se acrescenta o lanar. Novas áreas são conquistadas para a expansão do pastoreio intensivo, com o gado semi-estabulado, cujo crescimento é controlado pelas cabanhas de aprimoramento genético (RIBEIRO, 1995, p. 422).

Com o objetivo de perceber de que forma os interessados no assunto se comunicavam sobre os avanços na área, essa contextualização serve para compreender historicamente a imprensa especializada e seu intuito em divulgar o conhecimento científico e tecnológico na área das ciências agrárias,. Vale lembrar que a história da imprensa seria propriamente a história da sociedade capitalista, como já afirmou Werneck Sodré (1999). Assim, entender os percursos históricos desses periódicos é uma maneira de apreender o desenvolvimento da cultura científica agrária.

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MUDANÇAS NOS PERIÓDICOS E RELAÇÕES DE PODER Com uma série de alterações no formato, no discurso e até no nome dos periódicos ao longo dos anos, a ARCO firmou uma rede de comunicação sobre zootecnia entre especialistas e não-especialistas. As publicações iniciaram em 1942, com a distribuição gratuita de um anuário entre os sócios. Nele continham, em uma média de 250 páginas, os registros dos associados e de seus animais, além das pautas citadas na seção anterior. Todos os anuários foram produzidos por especialistas das agrárias, sem participação de jornalistas e foram distribuídos até 1970, quando se tornaram uma produção de registros técnicos e administrativos para organização interna e prestação de contas da instituição. Enquanto isso, a associação dava início em 1961 à revista trimensal Ovinocultura. Ela teve duas pausas em sua produção: primeiro entre 1964 e 1970 e depois em 1982, retornando em 1988 até 1989, quando deixou de ser veiculada. Vale ressaltar que em meados da década de 70 o expediente da revista começou a indicar que a redação esta- va sendo realizada por assessoria de imprensa composta por jornalistas. Cada edição da revista tinha uma média de 40 páginas e era vendida para sócios, especialistas e não-especialistas. Durante o primeiro período em que a revista Ovinocultura parou de ser produzi- da, a associação não publicou nenhuma produção. A partir de 1983 deu espaço a uma publicação bimensal, o Jornal Ovinicultura, que passou a se chamar Jornal da ARCO em 1986. Tinham formato tabloide, uma média de 12 páginas e também eram vendidos. Voltou a ser produzido entre 2007 e 2011, com 16 páginas e com apuração jornalística, sendo impresso, distribuído gratuitamente e disponibilizado em versão digital no site da ARCO4. Com isso, ressalta-se que durante a década de 90 e parte dos anos 2000 a instituição não produziu um periódico oficial. Enfim, a associação começou a veicular o periódico trimensal, a Revista ARCO, em 2012, ainda em circulação. A revista impressa, produ- zida por uma equipe de jornalistas, é distribuída gratuitamente e com uma média de 40 páginas. No que se refere a algumas desobediências de periodicidade, às pausas nas produ- ções por alguns anos e mudanças nos nomes e formatos das publicações, salienta-se que a ARCO é uma associação que reelege sua diretoria a cada quatro anos, mudando, assim, as políticas internas da instituição em relação aos periódicos, evidenciando relações de poder. Entendem-se as relações de poder na perspectiva de Foucault (1979), avaliando que essas relações se estabelecem de forma inconsciente, fazendo a sociedade funcionar num sistema em que indivíduos não detêm o poder, já que eles não poderiam exercê-lo individualmente. O poder é uma força presente apenas na relação entre sujeitos, com o objetivo de produzir discursos e não o de atingir uma finalidade, pois isso cessaria as oportunidades de relações: “De modo geral, eu diria que o interdito, a recusa, a proibição, longe de serem as formas essenciais do poder, são apenas seus limites, as formas frustradas ou extremas. As relações de poder são, antes de tudo, produtivas” (FOUCAULT, 1979, p. 236).

4. Disponível em: . Acesso em: 20 de março de 2015.

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As relações de poder se tornam evidentes na história repleta de mudanças das publicações da ARCO, portanto, pelo lançamento de publicações com novos nomes, formatos e formações discursivas. Sempre que um novo periódico era lançado, uma nova diretoria da associação havia sido eleita, fazendo ajustes que implicavam nas publicações. O editorial das respectivas primeiras edições demonstrava a importância de mudanças, de novas publicações especializadas, e ressaltava as especificações do novo formato, além de exaltar a força que a ovinocultura e, por consequência, o novo periódico tinham naquele período5.

CONTRATO DE COMUNICAÇÃO E ANÁLISE DO DISCURSO DOS PERIÓDICOS DA ARCO Apoia-se na metodologia de abordagem qualitativa e não-estatística, da análise do discurso, pelas considerações de Charaudeau (2013) e Foucault (2008), para identificar os elementos que compõem o Contrato de Comunicação dos veículos e detectar as formações discursivas. Desse modo, será compreendida a organização estrutural semiodiscursiva, levando em conta hipóteses sobre a cointencionalidade, percebendo as mudanças históricas nos discursos dos periódicos a partir das descontinuidades discursivas. Entender os elementos do Contrato de Comunicação é importante, porque:

[...] toda troca linguageira se realiza num quadro de cointencionalidade, cuja garantia são as restrições da situação de comunicação. O necessário reconhecimento recíproco das restrições da situação pelos parceiros da troca linguageira nos leva a dizer que estes estão ligados por uma espécie de acordo prévio sobre os dados desse quadro de referência. Eles se encontram na situação de dever subscrever, antes de qualquer intenção e estratégia particular, a um contrato de reconhecimento das condições de realização de troca linguageira em que estão envolvidos: um contrato de comunicação. Este resulta das características próprias à situação de troca, os dados externos, e das características discursivas decorrentes, os dados internos (CHARAUDEAU, 2013, p. 68, grifo do autor).

O autor diferencia os dados explicando que os externos são “constituídos pelas regularidades comportamentais dos indivíduos que aí efetuam trocas e pelas constantes que caracterizam essas trocas e que permanecem estáveis por um determinado período (...). Esses dados não são essencialmente linguageiros” (CHARAUDEAU, 2013, p. 68), enquanto os dados internos são essencialmente discursivos, possibilitando entender como o discurso é dito (CHARAUDEAU, 2013, p.70). A análise proposta aqui é condicionada a observar o lugar da construção do produto da máquina midiática (CHARAUDEAU, 2013), em que o discurso toma a forma de texto, a

5. Como o enfoque do trabalho não recai sobre a análise dos editoriais optou-se por apenas apresentar alguns trechos para exemplificação do que foi elucidado: Na primeira edição da revista Ovinocultura: “Sim, mais uma revista especializada. Precisamente aquela que estava faltando no periodismo riograndense (sic)” (1961). No Jornal Ovinocultura: “Mesmo com uma nova roupagem, o objetivo permanece. E com uma agilidade decorrente da peculiaridade deste tipo de veículo. Uma retomada de posição” (1983). No Jornal da ARCO: “O primeiro passo nesse sentido está sendo registrado hoje. Com a certeza de que os seguintes vão mostrar o acerto da decisão assumida” (1986). Na revista ARCO: “Além das qualidades dos ovinos e do excelente cenário que se apresenta para a produção, os governos também voltaram os olhos para a ovinocultura e a reconhecem com uma grande geradora de riquezas” (2012).

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Phillipp Dias Gripp • Ada Cristina Machado Silveira partir de uma organização semiodiscursiva realizada através da combinação de formas pertencentes ao sistema verbal e a diferentes sistemas semiológicos. Nesta instância se encontram os “efeitos de sentido possíveis”, que permitem evidenciar as possibilidades interpretativas do discurso. Com isso, detectam-se regularidades discursivas adotadas nos periódicos e, além disso, as descontinuidades discursivas (FOUCAULT, 2008), referindo-se especificamente às mudanças das formações discursivas e no Contrato de Comunicação, ocasionadas pelas relações de poder. No período de 1942 e 2014, foram selecionadas e analisadas duas matérias veiculadas por década. Durante a década de 80, foram selecionados um texto do Jornal Ovinocultura e outro do Jornal da Arco, mas também se considerou pertinente incluir mais um texto publicado na década de 80 da Revista Ovinocultura por ser o último período em que ela circulou. No total, o corpus de análise é formado por 15 textos6. O critério de seleção foi aleatório, tendo em vista a percepção de que as formações discursivas se apresentam de maneira regular nas demais edições de cada década. Essa regularidade foi percebida numa etapa anterior da pesquisa, que visou a leitura dos textos e o mapeamento na sede da associação. A análise abaixo constata as mudanças no Contrato de Comunicação durante as décadas, evidenciadas pela descontinuidade das formações discursivas, com grifos nossos, enquadrando os textos no quadro teórico apresentado na primeira sessão. As produções relacionadas às duas primeiras décadas da análise, condicionadas aos Anuários, resumem-se a artigos essencialmente técnicos, escritos por especialistas das ciências agrárias e direcionados a um público com presumido conhecimento prévio básico sobre a temática: “[...] com finuras Prima B, Prima A ou Amerinada” (T1); “[...] deve ser evitada e condenada sempre a finura Cruza ”1 (T1); “O verme responsável pela enfermidade é o ‘Dictyocaulus Filaria’ ou ‘Strongylus Filaria’ que se localiza na traqueia e brônquios pulmonares” (T2); “[...] vermes pulmonares e intestinais (Haemonchus contortus, Trichotrongylus, Oesophagostomun Columbianum, etc.), é conveniente dar na mesma ocasião 5c.c. de uma mistura de 1k. de Fenotiazina e 3 litros de água” (T2); “Prepara-se comercialmente a Fenotiazine, adicionando-se pelo calor, 2 moléculas de enxofre para uma de difenilamina, usando-se o iodo como elemento catalizador [...]. Sua solubilidade n’água é de ordem de 1/800.000 partes, daí a necessidade da adição de substâncias humectantes” (T3); “[...] cumpre citar as de autores russos (Bonadonn, 1937; Lombert e Mckenzie, 1940), os meios compostos de solução tampão mais gema de ovo, conhecidos pelos nomes de meio de Phillips (solução fosfatada) e o de Salisbury (solução citratada)” (T4); “[...] mediante a adição de glicorol, ou tratamento pelo CO2 é [...] (T4).

6. Os títulos dos textos, ano de veiculação e páginas são: T1 – “Particularidades na orientação seletiva da raça Ideal” (1942, p. 59-60); T2 – “Vermes pulmonares” (1944-1946, p. 37-38); T3 – “Fenotiazine” (1953, p. 85-91); T4 – “Resultados obtidos com o semên conservado, submetido a diferentes formas de uso para emprêgo na inseminação artificial, em ovinos” (1954, p. 75-77); T5 – “A qualidade da lã” (1962, p. 39-41); T6 – “Os hormônios na produção ovina” (1964, p. 72-74); T7 – “Aumente a produção de cordeiros utilizando recursos naturais” (1976, p. 24-27); T8 – “Principais aspectos no manejo ovino durante a parição” (1978, p. 23-25); T9 – “Conceitos genéticos na seleção ovina” (1980, p. 24-27); T10 – “Confinamento faz crescer produtividade” (1985, p. 1); T11 – “Pesquisa aprofundará temas importantes do setor” (1987, p. 10); T12 – “Suplementação mineral de borregas na recria favorece acabamento e funções reprodutivas” (2008, p. 18); T13 – “Mal do caroço já tem possibilidades de cura” (2009, p. 8); T14 – “O padrão racial e o melhoramento genético da raça Morada Nova” (2013, p. 7-9); T15 – “Aprenda como aumentar a eficiência da produção de cordeiros com 3 dicas técnicas” (2014, p. 33-35).

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Nas primeiras décadas de veiculação, o discurso se limitava à Comunicação Cien- tífica. Os artigos demonstram duas organizações estruturais do discurso. T1 e T2 não são assinados e, apesar de não serem estruturados como artigos científicos, apresentam terminologias técnicas que são inteligíveis apenas a quem já teve contato com a perspec- tiva científica, já que não se explica o que são os tipos de finuras ou os nomes científicos de vermes. T3 e T4 são artigos assinados e estruturados em forma de artigo científico, com citações diretas e indiretas, dividido em sessões e “conclusões”, explicando o pro- cesso metodológico em detalhes e adotando terminologias técnicas. T3 ainda apresenta tabelas e referencial bibliográfico. Os anuários se enquadravam nas chamadas Revistas Científicas (GOMES, 2011), com a finalidade de explicar o desenvolvimento da zootecnia, possibilitando que se compreenda a importância da informação para o desenvolvimento da especialidade, mas impossibilitando que leigos apreendam o porquê disso ou os pormenores do processo metodológico por conta das terminologias técnicas. Durante as décadas de 60 e 70, com a veiculação da revista Ovinocultura, podem-se perceber algumas mudanças iniciais na estrutura semiodiscursiva. Acredita-se que a inserção de jornalistas na equipe de redação da revista tenha direcionado a essas des- continuidades discursivas, consolidando as mudanças na década de 80. Inicialmente, as informações demasiadamente técnicas ainda predominavam, com textos escritos e direcionados por/para especialistas. Apesar de mudanças no formato de artigos assinados por especialistas, que perderam a normalização de artigos científicos, na década de 60 não havia preocupações com a recontextualização de informações para leigos: “[...] determina-se muito rápido e facilmente pela medição do caudal de ar que passa por um grupo de fibras sob condições padrões” (T5); [...] diferenças nas proporções de material cristalizado e amorfo das fibras” (T5); “[...] efeito de tal dose pequena de estrogênio é desviar a atividade da pituitária anterior da produção de hormônios” (T6); “[...] implantação do estrogênio sobre o crescimento e desenvolvimento do gado bovino e ovino, parece ser indireto e causado pela estimulação da produção de hormônios de crescimento prolongando a pituitária” (T6). Essa recontextualização começa a aparecer a partir da década de 70 e início da década de 80 na revista Ovinocultura, em que se demonstrou preocupação em explicar terminologias técnico-científicas e processos metodológicos de forma inteligível a leigos. Apesar de jornalistas fazerem parte da equipe de redação, os textos sobre ciência eram produzidos por especialistas na área e veiculados na forma de artigos: “Segundo estes pesquisadores, a gestação durante épocas quentes diminui o peso” (T7); “[...] ovelhas têm pouco leite no úbere no momento da parição e não existe sincronização adequada entre o parto e a baixada do leite” (T8); “[...] parte de suas reservas energéticas utilizadas para regular sua temperatura corporal se esgotam ocasionando morte por frio” (T8); “Isto quer dizer que o fenótipo do animal, aquilo que pode ser medido ou observado, é a consequência do genótipo do animal [...] O fenótipo do animal são todas aquelas características que o indivíduo manifesta, não somente aquelas diretamente observáveis, como tamanho [...] O genótipo do animal é sua composição genética, ou seja, os genes [...]” (T9). A mudança para os Jornais Ovinocultura e da ARCO evidencia uma clara descontinuidade discursiva, levando em conta que jornalistas escrevem as informações sobre C&T. Esses textos são produzidos de forma sucinta e a tentativa de inteligibilidade

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Phillipp Dias Gripp • Ada Cristina Machado Silveira permanece, mesclando falas de especialistas através da mediação jornalística: “David Rodrigues conta que o semi-confinamento não requer altos custos [...]” (T10); Daí“ para frente o sistema é corriqueiro. Os cordeiros junto com as mães, vão para a pastagem cultivada até chegar ao peso de 16 quilos, quando são desmamados” (T10); “ [...] passarão a ser analisados, é a análise da qualidade de lã, a eficiência do produto, uma série de informações de importância, até mesmo para o processo de comercialização do produto” (T11). Percebe-se a importância da mediação jornalística para a troca de alguns conceitos técnicos por outros mais simples e explicação do processo metodológico sem o uso de terminologias científicas e complexas. No retorno do Jornal da ARCO na década de 2000, especialistas são chamados novamente para escrever sobre C&T, permanecendo a tentativa de inteligibilidade: “Iniciada logo após o desmame, a recria é a fase do sistema de produção da criação ovina em que define-se a destinação dos animais, ou mais diretamente, se vão ser acabados para o abate ou preparados para entrar em reprodução” (T12). Contudo, textos essencialmente técnicos ainda são percebidos, mesmo que não assinados por especialistas: “O diagnóstico clínico é realizado apalpando-se os linfonodos superficiais para verificar a existência de hipertrofia e supuração de abscessos” [T13]. A linguagem e as temáticas científicas abordadas na revista Ovinicultura, inicialmente, eram também essencialmente técnicas, passando gradativamente a discursos preocupados com a inteligibilidade das informações a indivíduos leigos no assunto quando, além de especialistas, a equipe editorial passou a contar com jornalistas na redação. Os textos escritos por jornalistas na revista demonstram a tentativa de explicar conceitos técnicos, com um objetivo de popularizar esse conhecimento. Essa perspectiva ganha força com os Jornais Ovinicultura e da ARCO na década de 80 e em 2000. A partir desse momento, os periódicos se enquadram na perspectiva de Revistas Híbridas (GOMES, 2011), como uma tentativa de popularização científica por meio da Divulgação Científica. Explicita-se que nesse momento de transição as formações discursivas demonstram uma tentativa de adaptação do discurso. Apesar de algumas informações técnicas estarem dispostas no discurso, tornando-o ainda complexo, fica evidente uma tentativa de troca de terminologias científicas, ou de suas explicações, mesmo que minimamente, através de alguns recursos, como apostos, utilizados para explicar o significado de termos científicos, e formações discursivas, a exemplo de “isso quer dizer”. Além disso, refere-se aos pesquisadores citados não mais por meio de uma normalização de texto científico. Por fim, a Revista Arco reserva o espaço de informações sobre C&T para artigos assinados por especialistas. De acordo com a assessoria de imprensa da ARCO, antes da publicação há uma revisão do texto por parte da jornalista responsável, com o objetivo de sistematiza-lo e torna-lo mais inteligível. Entretanto, a análise mostra que os artigos apresentam uma abordagem essencialmente técnica, com explicações, por vezes, insuficientes: “[...] elevado número de animais ‘capados de nascença’ criptorquidicos( ), com chifres ou rudimentos de chifre, com mucosa (espelho nasal) despigmentada, cascos despigmentados [...]” (T14); “O que fazer com esta informação? [...] Devemos priorizar o ganho de peso do cordeiro nas primeiras semanas de vida, pois nesta fase ele é mais eficiente” (T15); “[...] O que fazer com esta informação? Priorizar o planejamento nutricional das matrizes para que elas tenham condições de produzir colostro e leite de qualidade” (T15).

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O atual veículo de comunicação da ARCO apresenta textos de disseminação do conhecimento científico escritos por especialistas. A mediação jornalística continua ocorrendo na leitura e adaptação do discurso e inserção de elementos gráficos na revista. Nesse contexto, há a utilização de algumas estratégias, como perguntar ao leitor “O que fazer com esta informação?”, demonstrando a preocupação da equipe de redação em tornar o texto inteligível e acessível a quem não possui um conhecimento técnico. De modo geral, evidencia-se que existe em todos os periódicos uma relação fre- quente das informações sobre C&T com questões econômicas. A grande maioria dos textos aborda as especificidades dos estudos com a finalidade explícita de proporcio- nar maior rentabilidade ao criador. Isso demonstra aspectos de uma cultura científica aliada a particularidades de uma sociedade capitalista, levando em conta que o desen- volvimento técnico e científico apresentado nos periódicos é realizado com objetivos de lucro sobre o sistema. Enfim, compreende-se que as descontinuidades de formações discursivas, possibili- tadas pelas relações de poder, permitem alterações no Contrato de Comunicação através de estratégias utilizadas como tentativas de popularizar o conhecimento científico e ampliar a visibilidade institucional da ARCO, dos pesquisadores e da própria área das ciências agrárias. Tais alterações no Contrato de Comunicação só se tornam possíveis pela entrada de jornalistas na redação, membros de uma comunidade com práticas, interesses, repertórios, conhecimentos distintos aos dos especialistas, como discute Gomes (2011). Essas descontinuidades levam à criação de novas formações discursivas, regulares por um período, que possibilitam a ampliação da rede de comunicação sobre zootecnia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A evolução histórica do discurso utilizado para divulgar informações sobre zoo- tecnia, apreendida pelas modificações no Contrato de Comunicação dos periódicos analisados, passando de textos essencialmente técnicos, direcionados a especialistas, para matérias e artigos que demonstram uma tentativa de popularização científica, são estratégias que possibilitam o aumento da visibilidade midiática das publicações da ARCO e de especialistas ao oportunizar que o público não-especialista também se informe. Levando em conta o contexto social apresentado na terceira seção, é possível considerar que os textos se dirigiam àqueles que tinham condições financeiras de se especializarem, prováveis donos das terras. Os empregados e criadores sem formação científica eram, inicialmente, impossibilitados de compreender os discursos especializados publicados nas Revistas Científicas, por conta da abordagem tecnicista. Com isso, a comunicação midiática não tinha um aspecto de popularizar o conhecimento. As mudanças que direcionaram à adequação para Revistas Híbridas, com a inserção de jornalistas na equipe, demonstram que estes profissionais se preocupam com aspectos de popularização. Nesse sentido, entende-se que as relações de poder possibilitaram que jornalistas produzissem novas formações discursivas com o uso de estratégias visando uma tentativa de popularização científica. Por meio dessa preocupação jornalística com o enunciado, destaca-se que existem especificidades que diferenciam a produção de discursos por membros da comunidade especializada e por membros da comunidade

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Phillipp Dias Gripp • Ada Cristina Machado Silveira jornalística. A abordagem dos discursos se diversifica historicamente tornando-se mais inteligível a partir do papel do jornalista em mediar a informação, demonstrando a viabilidade de aumentar a visibilidade dos periódicos ao possibilitar uma tentativa de popularizar o conhecimento científico.

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7256 O jornal Última Hora Paraná e a Marcha a Favor do Ensino Livre

L ay s e P e r e i ra S oar e s d o N a s c i m e n to 1

Resumo: O jornal Última Hora Paraná é objeto de investigação neste estudo que analisa a cobertura jornalística realizada por este periódico sobre um tema que mobilizou a sociedade civil curitibana em março de 1964: a Marcha a Favor do Ensino Livre. Cerca de 30 mil pessoas entre alunos, professores, pais, funcionários e simpatizantes à causa, no dia 24 de março de 1964, saíram pelas ruas da capital paranaense para protestar contra a adoção do livro único e a possibilidade de estatização das escolas e colégios. Este estudo foi elaborado a partir da análise documental de edições de março, abril e maio, dos jornais Última Hora Paraná, Folha de Londrina, Gazeta do Povo e O Estado do Paraná, permeados pela história e teorias da comunicação, envolvendo as temáticas: ditadura militar, sociedade civil curitibana e imprensa paranaense. A imprensa local ao fazer a cobertura jornalística da encampação das escolas particulares, adotou a linha de apoio aos manifestantes, favorável ao evento, reforçando as ideias dominantes da época, com foco nos riscos que o comunismo representava para o país. O jornal Última Hora oferece ao seu público uma abordagem mais reflexiva, revelando em suas notícias e editoriais, os interesses das escolas particulares em fazer crer à população que o ensino particular está ameaçado. Palavras-chave: Última Hora Paraná; Imprensa paranaense; Cobertura jornalística; Notícia; Ditadura.

Abstract: The newspaper Ultima Hora Paraná is the object of investigation in this study that analyzes media coverage carried by the journal on a topic that has mobilized civil society Curitiba in March 1964: the March in Favor of Free Teaching. About 30 thousand people including students, teachers, parents, staff and supporters to the cause, on March 24, 1964, left the streets of the state capital to protest the adoption of a single book and the possibility of nationalization of schools and colleges. This study was drawn from the desk review of issues of March, April and May, the newspaper Ultima Hora Paraná, Folha de Londrina, Gazeta do Povo and O Estado do Paraná, permeated by the history and theories of communication, involving the following themes: military dictatorship, civil society and Curitiba Parana press. Local media to make news coverage of the expropriation of private schools, adopted the line of support for the protesters, favorable to the event, reinforcing the dominant ideas of the time, focused on risks that communism posed to the country. The newspaper Ultima Hora offers your audience a more reflective approach, revealing in their news and editorial,

1. Professora efetiva do Departamento de Comunicação Social da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), cursos de Jornalismo e Propaganda e Publicidade, doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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the interests of the private schools in the population to believe that private education is threatened. Keywords: Ultima Hora Paraná ; Paraná press; News coverage ; News ; Dictatorship.

INTRODUÇÃO PRESIDENTE JOÃO Goulart é deposto pelos militares, no dia 1º de abril de 1964, com apoio de amplos setores da sociedade civil, e também dos Estados Unidos. OAs manchetes dos jornais brasileiros, em março daquele ano, não deixam dúvidas quanto à gravidade das tensões políticas, sociais e econômicas existentes. A imprensa noticiava as greves de trabalhadores, inflação elevada, revolta dos marinheiros, denún- cias de tramas “comunistas”, promessas e desmentidos do governo, entre outros assuntos. As reformas econômicas, políticas e sociais empreendidas pelo governo de João Goulart sinalizavam que o passado populista que reconciliava as várias frações das classes dominantes e manipulava as classes trabalhadoras, estava sendo definitivamente abandonado. Soares (1994, p.30) considera que a maioria dos militares que participou do golpe de 1964 “percebia o governo Goulart como infiltrado de comunistas e João Goulart muito influenciado por eles”. Para Dreifuss (2008), era claro o posicionamento da administração Jango em favor dos trabalhadores industriais urbanos e da mobilização das massas rurais, e contra as classes dominantes. Diz o autor,

o Brasil estava se afastando da esfera de influência do capital transnacional em decorrência das medidas internas de controle das operações das corporações multinacionais e de uma política externa que se afastava do alinhamento hemisférico automático, mais ainda do que no governo de Jânio Quadros (DREIFUSS, 2008, p. 147).

Segundo Skidmore (1988, p.39), politicamente, os “adversários mais implacáveis – a UDN e os militares – começaram então a afirmar que Goulart não tinha a intenção de executar suas apregoadas reformas”. Sem esperanças de ter suas reformas aprovadas no Congresso, principalmente a agrária, João Goulart marca uma série de comícios pelo país, na tentativa de ganhar apoio popular. Um único comício é realizado no dia 13 de março, no Rio de Janeiro. Durante o comício o presidente declarou seu compromisso de lutar pela reforma da Constituição “porque esta reforma é indispensável e porque o seu objetivo único e exclusivo é abrir caminho para a solução harmônica dos problemas que afligem o nosso povo” (Jornal do Brasil, 14/03/64, p.3, 1º cad.). Alguns jornais brasileiros afirmaram que o comício reuniu entre 130 a 150 mil pessoas. Poucas horas antes, no Palácio das Laranjeiras, o presidente assinou decreto encampando as refinarias particulares de petróleo no Brasil, e também de desapropriação de terras, conforme noticia a imprensa:

Com a assinatura do decreto de expropriação de terras elaborado pela Superintendência da Política Agrária não poderão mais ser negociadas as propriedades de área superior a 500 hectares situadas a menos de 10 quilômetros dos eixos ferroviários e rodoviários federais.

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Também tornam-se inegociáveis, à espera de desapropriação (se fôr o caso) as áreas supe- riores a 30 hectares situadas em terras beneficiadas ou recuperadas em virtude de obras de irrigação, drenagem e açudagem (Jornal do Brasil, 14/03/64, p.2, 1º cad.).

Em defesa da democracia são desencadeadas as Marchas com Deus pela Família e pela Liberdade em vários municípios do país. Em São Paulo, a Marcha reúne 500 mil pessoas. Em manchete, anuncia o Jornal do Brasil do dia 20 de março de 1964: Passeata de 500 mil em São Paulo defende o regime. Diz o texto:

Uma multidão calculada em 500 mil pessoas participou ontem, em São Paulo, da Marcha da Família, com Deus pela Liberdade em defesa da Constituição e das instituições demo- cráticas brasileiras e de repúdio ao comunismo, constituindo-se na maior manifestação popular já realizada na Capital paulista (Jornal do Brasil, 20/03/1964).

Dreifuss (2008), em um estudo detalhado revela como, ao longo de um processo racional e planejado, as elites orgânicas conseguiram envolver diferentes setores da sociedade, primeiro em torno da ideia de resistência contra o governo declaradamente “nacionalista reformista” de João Goulart, e depois o consenso e a urgência a favor de sua derrubada. Por meio do chamado complexo IPES/IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrá- tica – IBAD, criado em 1959, durante o mandato de Juscelino Kubitschek, e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, IPES, em 1961, logo após a renúncia de Quadros), a “elite orgânica da burguesia multinacional e associada” deixa de ser um limitado grupo de pressão que defendia o projeto de reforma para tornar-se uma organização de classe capaz de articular um golpe de Estado (DREIFUSS, 2008,p. 174). O IBAD, criado supostamente com o propósito de defender a democracia, agia como uma unidade tática, de execução, e o IPES operava como centro estratégico. O autor entende por elite orgânica:

(...) os líderes e membros que faziam parte da estrutura formal do complexo IPES/IBAD, bem como associados, ativistas, indivíduos e grupos ligados a esse complexo, de tal forma que seus esforços e aquelas das organizações a que pertenciam eram sincroni- zados e coordenados pelo IPES, ou apoiavam. (DREIFUSS, 2008, p.177).

Esses líderes seriam, por exemplo, banqueiros, empresários comerciais e industriais, intelectuais, organizadores políticos, administradores de empresas privadas, diretores de corporações multinacionais, técnicos e executivos estatais, grandes proprietários de terras e oficiais militares. Uma forma de cooptar os líderes e representantes de segmentos sociais se dava através da oferta de recursos financeiros e apoio político para vários grupos e organiza- ções. Na complexa extensão de suas ações, eram patrocinados cursos, bolsas de estudo, participação em eventos, sempre com o objetivo de amenizar as barreiras de classe. Verbas da Associação Brasileira de Anunciantes eram distribuídas com o propósito de eliminar toda e qualquer manifestação desfavorável ao projeto defendido pelo grupo, desde programas veiculados na mídia, até indivíduos. Conforme demonstra Dreifuss:

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A elite orgânica se aproximou de inúmeros produtores, atores e diretores famosos de pro- grama de televisão, tais como Gilson Arruda e Batista do Amaral. Favorecia o uso de pro- gramas cômicos, quando possível. Rui Gomes de Almeida observava que uma piada contra um político provocaria um “dano enorme”. Negava, ao contrário, o apoio dos atores que não cooperassem ou agissem contra os programas, as linhas de raciocínio e as pessoas que o IPES patrocinava. Tal foi o caso do humorista Chico Anísio, sagaz observador da realida- de social. Outra vítima desse tipo de pressão foi Arapuã, o colunista amplamente lido da Última Hora que mantinha uma seção na qual havia frequentes críticas à diretriz política dos Estados Unidos. Ele foi forçado a deixar o jornal em 1962 (DREIFUSS, 2008, p.266-267).

Para o grande público, o IPES era como uma organização educacional que fazia doações para reduzir o analfabetismo das crianças pobres, e funcionava também como um centro de discussões acadêmicas. Uma outra faceta de ação do Instituto não chegava ao conhecimento da população que ignorava o fato de que se tratava de uma campanha política, ideológica e militar que conseguiu penetrar dentro de movimentos estudantis e operários. Integrava o rol de tarefas do IPES, desencorajar a mobilização de camponeses, se fazer presente na política no Congresso e coordenar esforços de todas as facções de centro-direita em oposição ao governo e à esquerda trabalhista. Todavia, jornalistas, políticos e empresários estavam bem cientes das articulações e manobras do complexo IPES/IBAD, que não media esforços para atingir os seus objetivos de derrubada do governo. Sodré (1999, p. 418) relata que o colunista Arapuã, ao deixar o jornal Última Hora, divulgou uma carta “Aos companheiros de UH”. O colunista mantinha uma seção em que fazia críticas humorísticas aos Estados Unidos. O público desta seção era grande. Arapuã foi “intimado a suprimir tais críticas”, mas preferiu deixar o jornal. No documento dirigido aos colegas, explicou a sua decisão de sair da Última Hora e atribuiu o cerceamento de sua liberdade profissional ao “cerco do poder econômico”, que considerava “cada vez mais implacável”. O colunista isenta o jornal de qualquer responsabilidade – “afinal de contas, o último que ainda noticia uma greve ou dá cobertura a uma reivindicação operária. A luta é contra o IPES, a canalha do poder econômico e, justamente por isso, saio – para poder manter minha cabeça erguida” (SODRÉ, 1999, p.418). Neste período, os jornalistas estavam sob pressão, “submetidos, sem liberdade de opinião, mal remunerados” (idem, p.417). Além do caso do colunista Arapuã, o autor relata que a revista Manchete foi proibida de publicar reportagem sobre a visita do seu redator-chefe à então União Soviética. A revista já estava sendo impressa quando “recebeu brutal intimidação de órgão de publicidade” para não veicular tal notícia, ou então seria penalizada com a suspensão de “grande parcela da publicidade que lhe era distribuída” (idem, p.418). A reportagem foi imediatamente substituída. Segundo Sodré, proprietários agiam por vontade própria, ao demitir jornalistas que publicavam suas opiniões liberais, mas também por “pressão das forças que o controlavam”. Duas Comissões Parlamentares de Inquérito – CPI’s, foram instauradas em 1963. A primeira para investigar as denúncias de que o IBAD2 financiara a campanha de 250

2. De acordo com Dreifuss, nas eleições de 1962, a rede IPES/IBAD/ADEP/ADP/PROMOTION S.A. financiou

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7260 O jornal Última Hora Paraná e a Marcha a Favor do Ensino Livre Layse Pereira Soares do Nascimento deputados ou candidatos anticomunistas, nas eleições de novembro de 1962, gastando mais de cinco bilhões de cruzeiros. Sodré reproduz a reportagem de Edmar Morel em O Semanário, Rio, 11 de julho de 1963 sobre as manobras do Instituto:

(...) o IBAD organizou frotas de automóveis, montou redes de rádio e de televisão, com- prou a opinião de jornais, financiou centenas de candidatos, achincalhou reputações, fez intimidação e chantagem e chegou ao cúmulo de instalar sistema próprio de gravações no Congresso Nacional (idem, p. 431).

A outra CPI é instaurada devido à preocupação com a desnacionalização da imprensa nacional, em outras palavras, com a invasão da imprensa estrangeira por meio de publicações editadas em português:

Instalou-se no Brasil, assim ao lado da grande imprensa mantida pelas agências estrangei- ras de publicidade, uma outra imprensa, estrangeira mesmo – embora acatando, através de testas-de-ferro, o dispositivo da Constituição. Não havia como competir com tais publicações, tal a superioridade material com que se apresentaram e a gratuidade da sua distribuição (SODRÉ, 1999, p.435).

Reforçando as denúncias envolvendo o complexo IPES/IBAD, o deputado Leonel Brizola divulgou um contrato firmado entre o jornal A Noite e a Sociedade Incrementa- dora de Vendas Promotion3, no valor de cinco milhões de cruzeiros. O contrato celebrava a compra da opinião do jornal que deveria se “empenhar na campanha dos candidatos da Ação Democrática Parlamentar” (idem, p. 431). Na prática, o jornal passava a ser controlado pela ADP que assume a produção de matérias políticas, dos editoriais e da primeira página. À redação cabia a responsabilidade de produzir as matérias antico- munistas. Nesta época, o deputado Leonel Brizola estava envolvido em uma campanha, promovida no rádio, sobre os empréstimos de instituições oficiais de crédito a jornais, revistas, emissoras de rádio e de televisão. Esses e outros acontecimentos demonstram que o complexo IPES/IBAD, não atuava com sutileza, ao contrário, tinha uma política clara de cooptação por meio de vultosos recursos financeiros ou de aniquilamento de seus opositores, utilizando os mesmos recursos. A ingerência nos diversos setores da sociedade se fazia de forma bastante intimidatória. Fortemente organizado, o complexo conta com a adesão de empresas jornalísticas ao seu projeto de doutrinação e até mesmo de jornalistas que faziam ampla cobertura, sempre favorável, às suas iniciativas que eram incontáveis. “No regime burguês, no qual

250 candidatos a deputado federal, 8 a governos estaduais, além de senadores, prefeitos e vereadores. No Paraná, foram beneficiados com os recursos: Bento Munhoz da Rocha (PR), Ivan Luz (PRP), Othon Mader (UDN), Plínio Salgado (PRP) E Ney Braga (PDC), concorrendo a governador do Estado. Para este autor, a ADP – Ação Democrática Parlamentar, “operava como frente política e o canal ideológico da elite orgânica no Parlamento e diante da opinião pública. (...) A ADP era um bloco multipartidário, de senadores e deputados federais conservadores e reacionários, na maior parte da UDN e do PSD, e organizados através de uma rede, em todo o país, de grupos de Ação Democrática Popular – ADEP e que tinha até mesmo congêneres em muitos legislativos estaduais e câmaras municipais” (DREIFUSS, 2008, p.320). 3. Segundo Dreifuss (2008) a Promotion S. A . era uma ramificação do complexo IPES/IBAD e somente entre julho e setembro de 1962, os programas patrocinados por ela foram transmitidos e retransmitidos em mais de 300 emissoras de rádio e televisão de todo o país.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7261 O jornal Última Hora Paraná e a Marcha a Favor do Ensino Livre Layse Pereira Soares do Nascimento a opinião pública é o fundamento da legitimidade da dominação política, a hegemonia envolve a mobilização e indução de correntes de opinião por meio de instrumentos de informação, propaganda e entretenimento” (COUTINHO, 2008, p.50). Os mais importantes jornais do país tais como: os Diários Associados, de Assis Chateaubriand, a Folha de S. Paulo, do grupo de Octavio Frias, O Estado de S. Paulo e o Jornal da Tarde, do grupo Mesquita, o Jornal do Brasil, de Nascimento Brito e O Globo, das Organizações Globo do grupo Roberto Marinho apoiaram o projeto do IPES. Em outubro de 1963, idealizada por João Calmon, deputado do Partido Social Democrático (PSD) e vice-presidente dos Diários Associados, foi criada a Rede da Democracia4, no Rio de Janeiro. Tratava-se de um programa radiofônico comandado pelas rádios Tupi, Globo e Jornal do Brasil (rádio JB). A Rede da Democracia ia ao ar quase todos os dias e, repercutia a sua programação pelo país, através de outras centenas de emissoras afiliadas. Os pronunciamentos veiculados pelas emissoras eram também publicados na íntegra nos jornais O Globo, Jornal do Brasil e, O Jornal. Segundo Eduardo Gomes Silva (2008, p.11):

a Rede da Democracia pode ser caracterizada como um inédito arranjo midiático encabeçado e posto em prática por três das maiores empresas jornalísticas daquele período – Diários Associados, Globo e Jornal do Brasil – responsável por uma campanha incisiva e conjunta em favor da destituição do Governo Goulart.

Na noite de estreia, as rádios Tupi, Globo e JB, em transmissão em rede, levaram ao ar pronunciamentos dos representantes das empresas jornalísticas que estavam à frente da Rede da Democracia e também de convidados que envolviam senadores, deputados, ex-ministros e líderes sindicais. As falas se repetiam em “defesa do regime democrático” e contra o avanço dos “inimigos da pátria” (SILVA, 2008, p.68). Para Carvalho:

Os discursos apresentados pelos seus proprietários e representantes, no dia da inauguração, em 25 de outubro de 1963, deixam claro que o eixo central se deu em torno do combate ao comunismo, considerada uma ideologia totalitária que visava à desestruturação do regime representativo, com o fim dos mecanismos jurídicos que garantiam os direitos individuais, em especial os relacionados à liberdade e a propriedade (idem, 2010, p.17).

As notícias propagadas nas emissoras da Rede e, posteriormente publicadas pelos jornais participantes do movimento, não poupavam críticas à inflação, à educação, aos líderes sindicalistas, às reformas propostas por Goulart, à União Nacional dos Estudantes – UNE – apresentada como “um antro de delinqüentes políticos”, à infiltração de comunistas, enfim, à tudo aquilo que era considerado contra os sentimentos da imensa maioria da população.

4. A criação da Rede foi uma resposta imediata à atitude do presidente João Goulart que solicitou o Estado de Sítio ao Congresso, depois da revolta dos militares em Brasília, quando sargentos, fuzileiros e soldados da Aeronáutica e da Marinha se rebelaram e ocuparam importantes centros administrativos da capital. A revolta ocorre em virtude da recusa do Supremo Tribunal Federal em reconhecer a elegibilidade dos sargentos para os órgãos do Poder Legislativo.

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Os objetivos da Rede da Democracia veiculados nos programas de rádio e, publicados pelo O Jornal, visavam promover o “esclarecimento da opinião pública sôbre os problemas nacionais e o combate aberto aos falsos nacionalistas, contra o comunismo que ameaça o país” (CARVALHO, 2010, Anexo III, p.15). A ameaça comunista era tema frequente nos editoriais de março de 1964 e também motivava muitas manifestações de repúdio ao governo reformista e das esquerdas, João Goulart. Do outro lado, estavam os militares, considerados “salvadores do país”. Esse antagonismo reproduzia na verdade, o discurso elaborado pelo IPES e disseminado na mídia “parceira”, que comungava dos mesmos ideais. Ou seja, o inimigo representado pelo comunismo poderia tomar conta do país e por fim às liberdades individuais, a democracia, aos princípios cristãos e da própria Constituição.

Jornais importantes como o Jornal do Brasil, Correio da Manhã, O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de S. P. pugnavam abertamente pela deposição do governo Goulart. Não ficava atrás em sua oposição a cadeia de revistas, jornais e estações de rádio e TV dos “Diários Associados”. O único jornal importante que combateu o golpe foi o Última Hora, cujo diretor e fundador, Samuel Wainer, teve que fugir. (SKIDMORE, 1988, p.23)

Opositor dos militares, o jornal de Samuel Wainer foi contra a ditadura desde que esta começou a se desenhar no cenário nacional. Foi um dos primeiros jornais a ter suas redações invadidas, depredadas e fechadas. Ao narrar suas memórias, Samuel Wainer (1988) revela que para montar o jornal Última Hora, que nasceu declaradamente para apoiar Getúlio Vargas, se desdobrou para reunir o mínimo de estrutura além de uma equipe de profissionais.

A MARCHA A FAVOR DO ENSINO LIVRE No dia 12 de junho de 1951 circulou a primeira edição do jornal Última Hora. Cerca de 80 mil exemplares impressos ficaram prontos às oito da noite devido aos problemas na rotativa. A solução encontrada foi distribuí-los na porta do estádio do Maracanã que realizava um jogo noturno. Na primeira página foi publicada uma carta de Getúlio Vargas para Samuel Wainer, e trazia “considerações e conceitos sobre a importância de uma imprensa popular” (WAINER, 1988:142). Samuel Wainer (1988) relata que nos anos 60, já haviam sido implantados escritórios do jornal Última Hora no Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Niterói, Belo Horizonte e Recife. O jornal Última Hora Paraná, instalado em Curitiba, manteve seu estilo destemido e opinativo. Um exemplo é a cobertura jornalística dos fatos locais, como a Marcha a Favor do Ensino Livre. A marcha democrática que tomou conta do Brasil, no mês de março de 1964, protestando contra o governo João Goulart e suas propostas reformistas, em Curitiba, recebeu o nome de Marcha a Favor do Ensino Livre. Os manifestantes eram contra a adoção do livro único e a possibilidade de estatização das escolas e colégios, ou seja, contra A encampação das escolas particulares e a adoção do “Livro Único”, informa Codato (2004). Cerca de 30 mil pessoas entre alunos, professores, pais, funcionários e simpatizantes à causa, no dia 24 de março de 1964, saíram às ruas em direção ao Palácio Iguaçu buscando apoio do então governador Ney Braga, que discursou a favor do movimento

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7263 O jornal Última Hora Paraná e a Marcha a Favor do Ensino Livre Layse Pereira Soares do Nascimento e em defesa dos ideais democráticos cristãos. O governador recebe um exemplar do livro único do escritor Nelson Werneck Sodré. O episódio é noticiado: “Foi entregue, ao Chefe do Executivo, um exemplar da História do Brasil, editado pelo MEC, e considerado subversivo”. (Gazeta do Povo, 25 de março de 1964, “Contra encampações”, p.8). O governador afirmou que só não jogou o livro fora “para não sujar o solo do Paraná” (Opinião de UH, Última Hora, 27/3/1964). A imprensa local, ao fazer a cobertura jornalística da encampação das escolas particulares, adotou a linha de apoio aos manifestantes, favorável ao evento, reforçando as ideias dominantes da época, com foco nos riscos que o comunismo representava para o país. A adoção do livro único e a possível estatização de escolas particulares foi assim retratada pela imprensa paranaense:

O objetivo da mobilização democrática, foi o de protestar contra a pretendida encampação dos colégios particulares e contra a comunização do ensino no Brasil, contando com a par- ticipação de inúmeros colégios da capital, órgãos assistenciais, clubes culturais e recreativos (Gazeta do Povo, 25 de março de 1964, “Mestres e alunos protestam contra encampação dos colégios”, p.8)

Não havia nos textos informativos, nenhum dado que instigasse aos leitores pensar em outras motivações para a manifestação, a não ser a tentativa de implantar o comunismo no país. Na contramão dos jornais paranaenses, Última Hora se destaca por oferecer uma leitura diferenciada. Poucas semanas antes da marcha professores das escolas particulares tentavam negociar com os proprietários, o aumento salarial da categoria. A União Paranaense dos Estudantes e a União Paranaense dos Estudantes Secundários apoiaram os professores. A greve aconteceria no dia 12. No dia seguinte os jornais informavam que a proposta da Junta de Conciliação foi aceita pelos professores. Os estudantes articularam um movimento com o objetivo de forçar a redução das anuidades, baseados em uma portaria ministerial. Informa O Estado do Paraná:

(...) A portaria baixada pelo Ministro Júlio Sambaquy da Educação, regulamentando o decreto que deu poderes à Pasta para interferir na rêde de ensino privado do País, contém várias restrições aos colégios, implicando, inclusive, na sua restituição de taxas pré-recolhidas (Estudantes Querem Forçar Redução das Anuidades: Concentração na Avenida, 14/3/1964, p. 7)

Esse assunto permanece nos jornais por cerca de dez dias. Os estudantes promoveram uma manifestação no dia 19 de maio, contra o aumento das anuidades e, nesta data, a redação do jornal Última hora foi invadida:

Curitiba foi transformada numa nova Belo Horizonte, na noite de ontem, quando três centenas de alunos de colégios particulares, com a cobertura de agentes da DOPS e sob liderança de Irmãos Maristas e agitadores profissionais quebraram o equipamento de alto-falantes que seria utilizado na campanha contra o aumento das anuidades e as instalações da redação de UH (Desordens Nas Ruas: UH Foi Depredada, p.2, 20/4/1964).

A reportagem afirma que líderes estudantis foram agredidos, assim como repórteres do jornal que tentaram impedir a invasão da sede do Última hora. Jornalistas, “inutilmente”

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7264 O jornal Última Hora Paraná e a Marcha a Favor do Ensino Livre Layse Pereira Soares do Nascimento tentaram pedir proteção policial, agentes da DOPS, identificados, estimulavam os baderneiros a prosseguirem com as violências. O Sindicato dos Jornalistas Profissionais divulgou nota oficial repudiando o ato. Alguns jornais do Estado lamentaram as agressões. É o caso da Folha de Londrina. Na edição de 20 de março de 1964, o jornal relata o protesto dos jovens, o ataque à redação da Última Hora, sucursal Curitiba, a ação de adultos no comando da baderna, a destruição provocada com a quebra do palanque, faixas queimadas e danos causados aos automóveis estacionados nas imediações. Diz o texto que os estudantes apedrejaram e feriram repórteres da Gazeta do Povo, do jornal O Estado do Paraná e policiais militares. O protesto foi contido com a chegada da tropa de choque. “Extraoficialmente circulou a informação de que um professor seria o cabeça do protesto” (Folha de Londrina, 20/3/1964), finaliza a reportagem. Nos dias seguintes Última Hora aborda em seus editoriais (A Mentira, Indústria do Ensino, Trama Política, Missão de Ney), o que considerou omissão da polícia, mentiras do secretário de segurança que simulou desconhecer o que estava acontecendo, manipulação dos donos de escola que movimentam a “indústria do ensino” e, querem fazer crer que o ensino particular está ameaçado, a manifestação política dos udenistas que tomaram conta da passeata e transformaram-na em agitação “anti-reformas, antipovo, anti-Brasil”. As críticas se estenderam ao governador Ney Braga:

O governador do Estado aceitou a incumbência de ser o porta-voz dos donos de colégios junto às autoridades federais. Vai entregar ao ministro Sambaqui um “memorial de professores, alunos e pais de alunos” pedindo a suspensão dos decretos 53.551 e 53.583 (tabelamento de anuidades e livro didático). (...) Porque ao governador cabe promover o ensino para todos – e a falta de vagas nas escolas públicas e os altos preços dos colé- gios particulares limitam o estudo aos privilegiados. (...) Atendendo aos comerciantes do ensino, o governador Ney Braga estará desatendendo aos seus compromissos de governador, de pai e de cristão (Opinião de UH, Missão de Ney, p. 2 , 2 0/4/19 6 4)

A farsa da “encampação” e da “comunização” do ensino começou a ser desmascarada em documento firmado entre a União Paranaense dos Estudantes Secundários, Comando Geral dos Trabalhadores, Frente de Mobilização Popular e Sindicato dos Professores do Paraná. Segundo essas entidades, o decreto de tabelamento das anuidades exigia que as tarifas escolares fossem fixadas de acordo com o salário mínimo regional, por uma comissão de professores, proprietários de colégios, pais de alunos, dirigentes sindicais e estudantes. O aumento das anuidades tinha por fim atender o aumento do salário dos professores. O governo queria coibir o exagero nos reajustes, o que não tem nada a ver com encampação. Os colégios que não aceitassem atender o decreto estariam sujeitos à desapropriação. No editorial Trama Política, entretítulo, ladrões do ensino, o jornal traduz em números os lucros das escolas particulares, e mostra porque “os donos de estabelecimentos particulares de ensino enriquecem cada vez mais” (Última Hora, 26/3/1964). Quando compara o custo da hora aula para os donos de colégios e para os pais, o lucro é de 450% para os primeiros. Questionava também os elevados índices de aumento das anuidades das escolas particulares de Curitiba.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7265 O jornal Última Hora Paraná e a Marcha a Favor do Ensino Livre Layse Pereira Soares do Nascimento

O texto aborda outro ponto explorado na marcha, que é a adoção do livro único. A venda de livros aos alunos era considerada outra valiosa fonte de renda das escolas. “O que é ilegal, pois representa uma concorrência ilícita com as livrarias regularmente estabelecidas. Essa é uma das razões dos protestos contra os livros editados pelo Ministério da Educação e Cultura”. O jornal concluiu que foram essas as motivações que levaram a montar a “histeria do comunismo”. O Estado do Paraná acompanha tanto a manifestação dos estudantes que querem a redução das anuidades, quanto à “Passeata Pró-Ensino Livre”. Na edição de 25 de março reproduz na manchete a fala do governador: Ney Braga aos Manifestantes: Minoria quer Desgraçar o Brasil Entregando-o ao Comunismo. A cobertura adota o viés do “anti- comunismo”. Cabe lembrar os laços do jornal, de propriedade de Paulo Pimentel, com o governador Ney Braga. Pimentel foi secretário de Agricultura de Ney Braga que, por sua vez, tinha entre os generosos financiadores de sua campanha o sogro de Paulo Pimentel.

REFERÊNCIAS CODATO, Adriano Nervo; OLIVEIRA, Marcus Roberto de. A marcha, o terço e livro: cato- licismo conservador e ação política na conjuntura do golpe de 1964. Revista Brasileira de História, vol.24, no.47. São Paulo, 2004. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/ S0102-01882004000100011 COUTINHO, Eduardo Granja. Gramsci: a comunicação como política. p. 41-55. In: Mídia e Poder: ideologia, discurso e subjetividade. Organizadores: Eduardo Granja Coutinho, João Freire Filho, Raquel Paiva. Rio de Janeiro: Mauad X, 2008. DREIFUSS, Armand René. 1964 – A Conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2008. MASCHIO, Edison. Histórias Ocultas. Londrina: Edição do Autor, 2010. SKIDMORE, Thomas. Brasil: De Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. SILVA, Eduardo Gomes. A rede da democracia e o golpe de 1964. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Pós-Graduação em História. Niterói, RJ, 2008. SOARES, Gláucio Ary Dillon. O golpe. In: 21 Anos de Regime Militar: Balanços e Perspectivas. Organizadores: Gláucio Ary Dillon Soares; Maria Celina D’Araujo. Editora Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro-RJ, 1994. SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad,1999. WAINER, Samuel. Minha razão de viver; memórias de um repórter. Rio de Janeiro: Record, 1988.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7266 Narrativas da imprensa carioca sobre os Jogos Olímpicos nas décadas de 1890 e 1900 Narratives of Rio de Janeiro’s press about the Olympic Games of the 1890s and 1900s

Fau s to A mar o 1

Resumo: O presente artigo investiga a recepção dos jogos olímpicos nos jornais cariocas a partir, principalmente, da perspectiva teórica dos estudos sociais do lazer. As décadas de 1890 e 1900 são tomadas como estudos de caso para uma análise das narrativas de quatro periódicos: Jornal do Brasil, Correio da Manhã, Gazeta de Notícias e O Paiz. No decorrer da pesquisa, foi possível estabelecer quatro categorias para o melhor entendimento dos jogos olímpicos, quais sejam: a) jogos olímpicos organizados pelo Comitê Olímpico Internacional (COI); b) outros jogos olímpicos (eventos “não-oficiais”); c) jogos olímpicos enquanto divertimento e prática artístico-cultural; d) jogos olímpicos enquanto tema de comparação e expressão de uso corrente. Neste artigo, por razões de espaço, abordarei apenas a terceira categoria. Palavras-Chave: Jogos olímpicos. Esporte. Lazer. Narrativas jornalísticas.

Abstract: This article investigates the reception of the olympic games in Rio de Janeiro’s newspapers from the perspective of the social studies of leisure. The decades of 1890 and 1900 are taken as case studies to analyze the narratives of five newspapers: Jornal do Brasil, Correio da Manhã, Gazeta de Notícias e O Paiz. During this research, it was possible to establish four categories in order to better understand the olympic games, namely: a) the olympic games organized by the International Olympic Committee (IOC); b) other olympic games (“non official” events); c) olympic games as an entertainment and cultural and artistic practice; d) olympic games as a theme of comparison and an expression of current use. In this article, for reasons of space, only the third category will be presented. Keywords: Olympic games. Sport. Leisure. Jornalistic narratives.

INTRODUÇÃO M MEADOS do século XIX, o legado esportivo dos antigos gregos encontrava mui- tos admiradores europeus, como atestam as diversas tentativas de organização de E“jogos olímpicos” (GUTTMANN, 1994, p. 120-121). O mais bem-sucedido dentre eles foi Pierre de Freddy, o barão de Coubertin. Em 1894, Coubertin organizou um

1. Doutorando do PPGCom da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com bolsa Faperj. Mestre pela mesma instituição, com apoio da Capes; pesquisador associado ao Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (LEME/Uerj) e membro do grupo “Esporte e Cultura”, cadastrado no CNPq. Email: faustoamaro@ outlook.com

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7267 Narrativas da imprensa carioca sobre os Jogos Olímpicos nas décadas de 1890 e 1900 Fausto Amaro congresso na Universidade de Paris-Sorbonne para deliberar sobre a recriação dos Jogos Olímpicos2 e apontar sua primeira sede – Atenas foi a cidade escolhida. Desde então, as Olimpíadas experimentaram uma contínua ascensão em número de esportes, nações e atletas participantes, e o Comitê Olímpico Internacional (COI) se tornou detentor da marca Jogos Olímpicos. A princípio, meu objetivo era investigar justamente as narrativas jornalísticas sobre os Jogos Olímpicos de 1896 a 1908. Fiquei surpreso, entretanto, ao descobrir um uso mais polissêmico da expressão. O COI ainda não possuía um domínio exclusivo sobre a “marca” Jogos Olímpicos nas páginas impressas dos periódicos e no imaginário social. A partir dessa constatação, a pesquisa passou a tratar os jogos olímpicos de modo mais abrangente, enquanto movimento cultural, artístico e esportivo. O recorte deixou de se situar nas edições dos Jogos Olímpicos de Atenas, Paris, St. Louis e Londres, para compreender, amplamente, as décadas de 1890 e 1900. Nesse intervalo temporal, analisei os elementos do discurso jornalístico que me permitiram compor um quadro desses múltiplos usos e apropriações dados à expressão “jogos olímpicos”. Das quatro categorias que elaborei para interpretar as menções aos jogos olímpicos, trabalhei neste artigo com apenas uma delas. Trata-se dos jogos olímpicos enquanto termo para designar atividades circenses, apresentações esportivas inseridas em eventos comemorativos, tema de películas e peças teatrais. A aproximação com a temática do lazer e do entretenimento na sociedade carioca da virada do século XIX para o XX acabou se revelando central. Nas próximas páginas, forneço informações de contextualização sobre a história do Brasil, do Rio e da imprensa à época; em seguida, abordo alguns conceitos introdutórios sobre o lazer; por fim, depois de explicar a metodologia empregada para seleção e análise dos dados, apresento o relato da pesquisa.

O BRASIL, O RIO E A IMPRENSA: BREVES COMENTÁRIOS O ano anterior ao início da década de 1890 marca a passagem do Brasil Império para o Brasil República. As mudanças aconteceram em sequência – o governo republicano é proclamado em 15 de novembro de 1889 e, em fevereiro de 1891, temos nossa Constituição (republicana, federativa, presidencialista, laica e liberal). A economia brasileira estava baseada no café e, por isso, a porcentagem da população que vivia nos campos ainda era elevada, bem como o número de imigrantes (espanhóis, italianos, portugueses e japoneses, principalmente) que trabalhavam nas lavouras. “Segundo o censo de 1920, de 9,1 milhões de pessoas em atividade, 6,3 milhões (69,7%) se dedicavam à agricultura, 1,2 milhão (13,8%) à indústria e 1,5 milhão (16,5%) aos serviços” (FAUSTO, 2006, p. 159). Enquanto isso, no Rio de Janeiro, capital da República e centro das grandes transformações sociopolíticas do período, as reformas urbanas empreendidas pelo prefeito Pereira Passos modificavam profundamente a cidade. A modernidade carioca

2. Esclareço as distinções de grafia que farei quando me utilizar da palavra “jogos olímpicos”. Para evitar ter de repetir a todo o momento “jogos olímpicos do COI” quando me referisse a eles, optei por fazê-lo com letra maiúscula: Jogos Olímpicos. Em relação aos demais jogos olímpicos, que serão vistos mais a frente, e quando me referir aos jogos em geral (tanto os oficiais quanto os não-oficiais), adotarei a grafia com letra minúscula.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7268 Narrativas da imprensa carioca sobre os Jogos Olímpicos nas décadas de 1890 e 1900 Fausto Amaro se manifestava com intensidade na virada do século XIX para o XX. A cidade do Rio era a maior do Brasil e apresentava um acelerado ritmo de crescimento (de 1890 para 1900, a população passou de 522.651 para 811.4433). O campo da imprensa era exemplar desse Rio de Janeiro que se pretendia moderno e que estava em sintonia com as notícias e inovações oriundas do mundo todo. A Agência Havas, fornecedora de notícias telegráficas (cf. MATHEUS, 2014), possuía, desde o final do século XIX, um escritório no Rio de Janeiro e era responsável por alimentar muitos dos grandes jornais da capital. Além disso, cinematógrafo, fonógrafo, gramofone, daguerreótipo, linotipo eram algumas das inúmeras alterações tecnológicas que impactavam a vida população carioca nesse período. “Os periódicos transformam gradativamente seus modos de produção e o discurso com que se autorreferenciam. Passam a ser cada vez mais ícones de modernidade, numa cidade que quer ser símbolo de um novo tempo” (BARBOSA, 2007, p. 22, grifos meus). Em descompasso com as intenções e promessas de um Rio moderno, estava a rea- lidade da população. Em 1872, apenas 16% da população brasileira era alfabetizada (CARVALHO, 2002, p .22). No Rio de Janeiro, em 1890, a situação estava um pouco melhor: “a cidade tinha mais de 500 mil habitantes, e pelo menos metade deles era alfabetizada” (Ibid., p. 39). A porcentagem de leitores muito provavelmente era ainda menor que a de cidadãos alfabetizados. Desses dados é interessante extrairmos que o público leitor de jornais era extremamente reduzido, mesmo no Rio, capital da República recém-instaurada. Apesar da pequena população letrada, a vendagem diária dos jornais cariocas era relativamente alta: “Segundo informação do escritor Olavo Bilac, as cinco mais importantes folhas da cidade – o Jornal do Brasil, o Jornal do Commercio, Gazeta de Notícias, Correio da Manhã e O Paiz – tiram juntas 150 mil exemplares” (BARBOSA, 2007, p. 41, grifos da autora). Esses números do início da década de 1900, numa cidade de cerca de 800 mil habitantes, são reveladores do lugar ocupado pelos jornais no cotidiano das cidades e na vida privada dos cidadãos. Sendo a mídia hegemônica do período, as representações veiculadas pelos peri- ódicos possuíam grande poder simbólico. Juntamente com a comunicação oral, for- temente presente em uma sociedade pouco letrada, como o Rio da época, a mídia impressa possuía um papel singular na transmissão das novidades e na construção do imaginário sobre os eventos que narrava. Essa importância não passava despercebida àqueles que trabalhavam com a letra impressa. Na Gazeta da Tarde do dia 21 de março de 1889, o artigo de opinião intitulado “Jornalismo” encerrava uma ode ao ofício do jornalista. O texto associava o jornal à modernidade e aludia, de modo elogioso, à Grécia Antiga; lembrava os leitores, porém, que aos gregos lhes faltava um elemento essencial: “Porém, ah! me condoo daquela civilisação, quando penso que não tinha jornaes, pois pelo jornal deixamos de ser membros de uma cidade para ser cidadão (sic) do mundo” (Gazeta da tarde, 21 de março de 1889, p. 1, grifos meus).4

3. Fonte: . Acesso em: 01 dez. 2014. 4. Essa e as demais citações extraídas dos veículos jornalísticos aqui investigados reproduzem com fidelidade a grafia das palavras utilizada à época. Optei por preservar essas peculiaridades no uso da língua portuguesa em respeito aos textos originais e seus autores, bem como para transmitir ao leitor a

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Desse modo, na transição do século XIX para o XX, as informações fornecidas pela imprensa carioca, apesar de disponíveis, não eram acessíveis a todos, no sentido de serem lidas, interpretadas e consumidas.

LAZER E TEMPO LIVRE: CONSIDERAÇÕES Na virada do século, a noção de tempo na prática jornalística sofria alterações. A inserção de modernos processos produtivos, graças às novidades maquínicas, permitiu um encurtamento do tempo (de impressão, montagem do jornal, etc.) e do espaço (notícias de todo o mundo chegavam mais rapidamente às redações cariocas). Essas alterações modificavam também as lógicas de trabalho. O tipógrafo era substituído pelo linotipista e o jornal, que anteriormente estava pronto para publicação às 2h, agora poderia ser fechado até mesmo às 4h da madrugada (BARBOSA, 2007, p. 26). Nesse contexto, a despeito das inovações, o tempo de trabalho parecia ser prolongado (das 2h às 4h). O tempo livre para o jornalista “moderno” e o linotipista provavelmente eram inferiores aos de seus colegas tipógrafos e jornalistas de outrora. Ao mesmo tempo e com o apoio dos jornais, o esporte e outros divertimentos populares se consolidavam no Brasil sob a égide da influência europeia: “[...] no Rio de Janeiro da transição dos séculos XIX/XX podemos observar o desenvolvimento e melhor estruturação de um mercado de diversões, que incluía espetáculos musicais e teatrais, os primeiros momentos de nosso cinema e o crescimento das práticas esportivas” (2005, p. 9). O Rio era a porta de entrada para os modernos hábitos de consumo e lazer vindos da Europa (MELO, 2001, p. 14). Esse estatuto moderno do lazer enquanto prática social é, aliás, um ponto de dissenso entre os pesquisadores. Christianne Gomes resume assim o embate: “[...] o lazer sempre existiu ou representa um fenômeno característico das modernas sociedades urbano- -industriais?” (2004, p. 133). Os entusiastas da primeira hipótese remontam o lazer à Grécia e Roma antigas, enquanto o segundo grupo foca sua abordagem no período pos- terior à Revolução Industrial. Ambos concordam, porém, quanto ao que seria o momento crucial para o lazer: a Modernidade (2004, p. 136). Nesse debate, tendo a concordar com Gomes: “É demasiado arriscado definir, com exatidão, o momento histórico em que o lazer se configura na sociedade ocidental” (2004, p. 138). Na análise dos periódicos, pude observar algumas comparações entre as opções de lazer das décadas de 1890 e 1900 e aquelas que os gregos antigos dispunham em seu tempo livre, o que indica certo nível de diálogo entre os dois períodos. A referida autora (2004) observa ainda que na primeira metade do século XX o lazer estava associado ao tempo de não-trabalho, fruto das conquistas de direitos da classe trabalhadora. E, ainda que benéfico para os operários, o lazer ofertado era passível de coerção. Esse aparente paradoxo fica mais evidente quando observamos a origem eti- mológica das palavras ócio e trabalho: “otium (ócio) e nec-otium (não-ócio, ou seja, negócio)” (MARCASSA, 2004, p. 166, grifos da autora). Nesse esquema, as práticas de lazer podem ser pensadas tanto como um estímulo a hábitos mais saudáveis quanto como uma aliada do sistema capitalista na manutenção ambiência de onde (tempo e espaço) essas narrativas foram extraídas.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7270 Narrativas da imprensa carioca sobre os Jogos Olímpicos nas décadas de 1890 e 1900 Fausto Amaro da eficácia do trabalho fabril. A perspectiva inglesa e francesa sobre o lazer focam-se justamente na Revolução Industrial e no trabalho capitalista. Na Escola de Frankfurt, por exemplo, a reflexão sobre o lazer se associava àquela sobre o trabalho, com o forte viés de crítica à indústria cultural. Alexandre Vaz argumenta que para Adorno e Horkheimer: “o tempo livre não seria apenas uma preparação para o trabalho, mas uma forma de, no mesmo contexto, controle da consciência” (2005, p. 9). Outra importante corrente da sociologia do lazer, contudo, parte da perspectiva culturalista de Gilles Pronovost, que aborda o lazer pelo viés da cultura (CAMARGO, 2011, p. 12). A Modernidade se constitui, assim, em um período de intensificação da produti- vidade do trabalho, de regulação do tempo livre e de normatização do lazer. O tempo não é fluído, mas fracionado em pequenos compartimentos. Existe o momento do trabalho, dos cuidados com a saúde, da diversão, do ócio, do estudo. “O lazer moder- no/institucionalizado congrega referências como padronização, organização, uso de equi- pamentos, precisão e ocupação; configura-se pela ocupação do tempo com experiências lícitas, saudável, segundo o modelo determinado” (ROSA, 2004, p. 67, grifos meus). Victor Melo, por sua vez, coloca em evidência a oposição existente a esse movimento moderno do lazer: “No final do século XIX o lazer se definira, na égide da sociedade do espetáculo, como um fenômeno de massas. Ele deve ser entendido no âmbito da consolidação do projeto de cidade moderna, não só como adequação, mas como tensão e resistência” (2005, p. 16, grifos meus). O apoio ao consumo e ao exercício de jogos olímpicos pode encontrar, então, suas bases no lazer moderno. Nesse sentido, é possível interpretá-lo como uma prática saudável para os cidadãos em geral, benéfica à iniciativa privada e ao controle social do Estado, o que, em fins do século XIX e início do XX, era útil à recém-instituída República brasileira. Os jornais, ao endossar os jogos olímpicos e estimular que fossem assistidos, promoviam, talvez não intencionalmente, um novo estilo de vida.

SOBRE O MÉTODO Os jornais diários do Rio de Janeiro foram primordiais na introdução e difusão do esporte e do lazer modernos na cidade. Logo, explorar os significados destes últimos por meio dos discursos elaborados pelos primeiros é uma fonte profícua de investigação. Quanto à metodologia utilizada, posso dividi-la em duas etapas. Primeiro, efetuei uma análise de conteúdo através da leitura e classificação das matérias. Em seguida, foi possível estabelecer quatro categorias que caracterizam como os jogos olímpicos se apresentavam nas páginas dos periódicos. A pesquisa quantitativa de conteúdo foi conjugada a um estudo qualitativo das narrativas jornalísticas (cf. CHARAUDEAU, 2013). O trabalho em um grande intervalo temporal foi em larga medida facilitado pela busca por palavras-chave disponibilizada pelo sítio on-line da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional5. Isso posto, para obter alguns parâmetros inicias do conteúdo a ser investigado, efetuei uma busca em jornais do Rio de Janeiro por cinco termos dentro dos períodos históricos desejados. Os resultados (tabela 1) ilustram a inserção da temática olímpica na mídia impressa das décadas de 1890 e 1900.

5. Disponível em: .

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Tabela 1. Pesquisa por palavras-chave realizada na Hemeroteca Digital da BN.

Amostragem (total de Palavra-chave Período Total de Ocorrências jornais/total de páginas) 1890 a 1899 163 / 872.893 61 jogos olympicos 1900 a 1909 150 / 1.175.079 149 1890 a 1899 163 / 872.893 24 olympíada 1900 a 1909 150 / 1.175.079 40 1890 a 1899 163 / 872.893 7 olympíadas 1900 a 1909 150 / 1.175.079 19 1890 a 1899 163 / 872.893 2 coubertin 1900 a 1909 150 / 1.175.079 5 1890 a 1899 163 / 872.893 0 jogos gregos 1900 a 1909 150 / 1.175.079 1

Após essa pesquisa exploratória, escolhi como fontes de análise quatro dos prin- cipais jornais cariocas à época (nome do periódico/período disponível para consulta): Gazeta de Notícias (1875 a 1956); O Paiz (1884 a 1934); Jornal do Brasil (1891 a 2012); Correio da Manhã (1901 a 1974). Os principais critérios para essa escolha foram a representatividade do veículo na sociedade carioca de então e a atenção dispendida aos jogos olímpicos.

Tabela 2. Dados sobre o aparecimento de palavras-chave nos jornais pesquisados. A busca foi realizada na semana de 24 a 28 de novembro de 20146.

Periódico Década Coubertin Jogos olympicos Olympíada Olympíadas Jogos Gregos Correio da 1900 0 18 5 1 0 Manhã Jornal do 1890 0 11 2 1 0 Brasil 1900 3 46 9 0 0 1890 0 7 1 0 0 O Paiz 1900 0 22 2 1 1 Gazeta de 1890 1 13 3 0 0 Notícias 1900 1 22 4 1 0 5 139 26 4 1

A seguir apresento as quatro categorias estabelecidas, sendo que apenas uma, a qual denominei como “jogos olímpicos enquanto divertimento e prática artístico-cultural”, será analisada em profundidade.

Os Jogos Olímpicos organizados pelo COI As primeiras edições dos Jogos Modernos foram marcadas pela pouca organização e pela baixa adesão dos países. As Olimpíadas eram um evento menor no calendário mundial e ainda não contavam com grandes assistências de público e de atletas. As referências aos Jogos de Atenas-1896, Paris-1900, St. Louis-1904 e Londres-1908 apareceram em menor quantidade do que eu esperava inicialmente. O Brasil só veio a participar dos Jogos em 1920, o que, juntamente com as dificuldades para acompanhar os eventos in loco, justifica o pouco interesse e a insípida cobertura jornalística.

6. A base de dados da Hemeroteca é constantemente ampliada, com a incorporação de novos periódicos ou o acréscimo de edições aos jornais já componentes do acervo. Por isso, é premente a sinalização do período em que a pesquisa foi efetuada. Fonte: .

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Os outros jogos olímpicos Nessa categoria, incluem-se os jogos olímpicos atualmente compreendidos como não oficiais e que refletem a efervescência do campo esportivo no início do século XX e a não supremacia do COI sobre a nomenclatura e sobre o evento em si. Na década de 1900, muitos eventos autodenominados jogos olímpicos despertavam grande curiosidade na imprensa carioca. Os dois principais foram os Jogos de Atenas-1906 e os Jogos do Uruguai-1907.

Jogos olímpicos enquanto tema de comparação e expressão de uso corrente Jogos olímpicos eram utilizados também com significados outros que não aquele usual, de evento esportivo. Há, por exemplo, sua utilização como sinônimo de subterfúgio e artimanha (1), competição (2) ou a principal competição de um dado país (3), prova (4), força física (5) e ápice (6). Ocasionalmente se utilizavam os antigos jogos gregos como base para o estabelecimento de comparações com diferentes aspectos da sociedade à época (7). Outras alusões aos jogos gregos cumpriam ainda o papel de empregá-lo como modelo para a contemporaneidade (8), ideal exemplar a ser revivido.

ESTUDO DE CASO: JOGOS OLÍMPICOS ENQUANTO DIVERTIMENTO E ATIVIDADE ARTÍSTICO-CULTURAL É esta a categoria central para o presente artigo. Nela, incluo os jogos olímpicos que apareciam enquanto atividade componente da programação circense e dos teatros espalhados pela cidade, bem como enquanto elemento festivo de comemorações e temática para peças teatrais e películas cinematográficas7. O uso da palavra em um contexto circense foi inesperado, porém aponta para a importância desses espetáculos enquanto alternativa de lazer para a sociedade carioca da época8. No Correio da Manhã, as ocorrências nessa categoria superaram todas as demais. Em alguns casos, a prática de “jogos olympicos” aparecia ao lado de habilidades circenses e teatrais, como malabares, equilibrismo, números de força, entre outros. Várias companhias apresentavam em diferentes teatros da cidade seus números de jogos olímpicos. Cito algumas: Grande Companhia Equestre e de Novidade, no Theatro S. Pedro de Alcantara (Correio da Manhã, 18/08/1907); The 4 Fortys, no Theatro Maison Moderne (Correio da Manhã, 22/06/1903, p. 6; Gazeta de Notícias, 17/07/1906, p. 8; 18/07/1906, p. 8; 19/07/1906, p. 8)); Troupe Baltus, no Casino (Correio da Manhã, 28/01/1903, p. 6; O Paiz, 26/01/1903, p. 4); Companhia Silbon, no Theatro S. Pedro de Alcantara (O Paiz, 24/04/1890, p. 6); Familia Jacopi, no Theatro S. Pedro de Alcantara (Gazeta de Notícias, 13/10/1896, p. 6). A coluna “Palcos e Salões” do Jornal do Brasil divulgava com frequência a Troupe Baltus, “novidade absoluta para o Rio de Janeiro” (JB, 27/01/1903, p. 6). O Casino, localizado na Rua do Passeio, era palco frequente dessa companhia, descrita como “habil nos jogos olympicos” (JB, 26/01/1903, p. 2) e que contava com “perigosos exercícios de força e equilíbrio executados por quatro phenomenos athletas” (28/01/1903, p. 6).

7. Procurei me ater aos eventos que ocorriam no Rio de Janeiro. Com isso, por ora, deixei de lado todas as notícias que davam conta de jogos olímpicos em outros locais. 8. Ainda que lido a posteriori, é importante referenciar o texto “Ecos dos Jogos Olímpicos de 1896 no Rio de Janeiro”, publicado no blog “Historia do Esporte”. Nele, Fábio Peres, a partir de suas pesquisas em fontes jornalísticas para escrita do post, faz menção ao aparecimento dos jogos olímpicos dentro do ambiente circense. Disponível em: . Acesso em: 11 mar. 2015.

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O público-alvo desses divertimentos era heterogêneo. Quando da vinda de uma nova trupe à cidade, o JB assim descrevia o interesse por ela despertado: “Vas ser realmente uma delicia para os ‘nênês’ pequenos e grandes” (JB, 24/07/1905, p. 3). A chegada dessa companhia global ao porto do Rio de Janeiro foi anunciada juntamente com a enumeração dos dados técnicos do espetáculo (origem dos artistas, direção, números componentes do show). Quem quisesse aproveitar a nova atração, encontraria informações básicas sobre ela no JB:

Pelo vapor Aquitaias, a entrar de Buenos Aires, na próxima semana, deve chegar, para tra- balhar no theatro Carlos Gomes, a esplendida e grande companhia equestre, gymnastica, acrobática de variedades e pantominas de apparato e transformações de que é emprezario o sr. E Rays [...] Entre os números mais surprehendentes ha: os 47 ords, jogos olympicos; Brothers Finiang, campeões, barristas; Mias Leodisk, com os seus 25 papagaios amestrados; Irmãos Bekby, trapezios duplos; as três tarfenhas, bailarinos heespanhoes, T. Louza, homem lagarto; Miss Darioin, com 18 gatos amestrados; Little John, clown liliputiense; Mr. Loyal, com 8 macacos e 7 poneys, gymnastas, aramistas, pantomineiros, domador de feras, leões, panteras, byenas, ursos e tigres [...] (JB, 24/07/1905, p. 3, grifos do jornal).

A apresentação de jogos olímpicos no circo não era, contudo, uma novidade total, uma vez que conseguimos rastrear suas origens ao período anterior a 1896, data dos primeiros Jogos do COI. Outrora, as práticas atléticas, como a ginástica, encontravam palco e incentivo nos circos europeus9. “O entretenimento ao estilo circense, incor- porando elementos do circo romano, foi desenvolvido em Paris a partir da década de 1820 e em Nova York na década de 1850” 10 (HORNE; WHANNEL, 2012, p. 70, tradução livre). É provável também que a chegada de trupes circenses internacionais, com seus números de jogos olímpicos, carregasse um simbolismo de inserção do Rio no rol das cidades civilizadas. Um carioca menos entusiasta do ambiente circense, porém apreciador dos jogos olímpicos, podia assisti-los em formato de películas, transmitidas pelos cinemas da cidade. As telas do Cinematógrafo Parisiense exibiam imagens dos Jogos de Paris, segundo consta na coluna “Diversões” do JB (28/08/1908, p. 16; 31/08/1908, p. 1; 10/10/1908, p. 1; 12/10/1908, p. 1) e na “Echos & Factos” d’O Paiz (28/08/1908, p. 1). A longevidade que a película demonstra possuir, ficando, pelo menos, dois meses em cartaz, aliada a divulgação na mídia impressa, serve como indício para o interesse do público pelo seu conteúdo – os esportes olímpicos. Anúncio do “Grande Cinematographo Parisiense”, autonomeada “A mais importante casa de diversões da América do Sul”, trazia o seguinte em seu programa:

1ª parte – Jogos Olympicos em Paris – Scena realista sportiva representada por gregos, que executam os seguintes jogos: 3 corridas, sendo de 200, 300 e 1.500 metros; levantamento de pesos e dardos; difficeis saltos a vara, em altura e distancia de 110 metros, constituindo uma maravilha para os Srs. Espectadores (JB, 28/08/1908, p. 16).

9. Fonte: . Acesso em: 15 jan. 2015. 10. No original: “Circus-style entertainment incorporating elements of the Roman circus were developed in Paris from the 1820s and in New York in the 1850s”

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7274 Narrativas da imprensa carioca sobre os Jogos Olímpicos nas décadas de 1890 e 1900 Fausto Amaro

A oferta de diversões voltadas para a temática olímpica não estava restrita ao circo e ao cinema. Peças teatrais também faziam uso do mote olímpico. Justamente a única referência à palavra “olympiada” n’O Paiz na década de 1890 dizia respeito a uma das cenas da peça teatral “Nicarete”, encenada pela “Companha Comica Italiana”, no “Theatro Lyrico (ex-Pedro II)”. Compunham a peça os seguintes momentos: “Comedia grega em 1 acto de Felice Cavallotti. A scena em Athenas no 116ª Olympiada. Seguirá a comedia em 2 actos de G. Cognetti” (04/08/1890, p. 6). Organizar jogos olímpicos era, nesse contexto, uma alternativa eficaz para atração e divertimento do público. Por ocasião do centenário da imprensa no Brasil, a “Assossiação Typographica Fluminense” pretendia organizar uma série de atividades comemorativas; dentre as ditas “diversões públicas”, figuravam os jogos olímpicos: “[...] a Federação organisará uma série de diversões publicas, como espectaculos, concertos, dansas populares, festas venezianas e jogos olympicos, floraes e sportivos, em diversos pontos da cidade e a preços modicos, com a mesma applicação” (JB, 14/12/1907, p. 5). Os periódicos cariocas não se restringiam apenas a divulgar eventos de outrem. Vejamos o caso da “Taça Gazeta de Notícias”. A competição era promovida e orga- nizada pelo jornal homônimo e incluía entre suas provas os “jogos olympicos”. O evento pretendia reunir um público praticante de esportes e que era, ao mesmo tempo, leitor da Gazeta. Digo isso porque para participar das provas era necessário ser associado a um clube esportivo e deter um cupom publicado no periódico: “Inscripção livre aos socios de todos os Clubs Sportivos, mediante a apresentação dos coupons medalhas, que publicamos de 21 de abril a 29 de julho” (Gazeta de Notícias, 06/09/1906, p. 4, grifos do jornal). Para atender a demanda de um público desejoso de diversões em seu tempo livre, a construção de novos espaços de lazer se tornava necessária. Foi assim que no início do século XX projetava-se a expansão do estádio do São Cristóvão, dispondo de um espaço para jogos olímpicos: “O campo do S. Christovam vae ser dotado de mais um melhoramento que, por certo, constituirá a great attraction do bairro. Trata-se da construcção de duas artísticas archibancadas para jogos olympicos e hippicos, na extensão de 120 metros [...]” (JB, 09/10/1908, p. 7, grifos do jornal). O Paiz atentava para o mesmo fato, porém frisava a apresentação do projeto ao “Sr. Prefeito”, o que assinalava o apoio “oficial” aos divertimentos populares (O Paiz, 09/10/1908, p. 3). Novos empreendimentos imobiliários eram construídos projetando a presença de áreas de lazer e opções de divertimentos. O médico Redamark de Alburqueque, por exemplo, solicitava autorização ao “Sr. Ministro da viação” para demolir o morro de Santo Antonio e utilizar a área, em proveito próprio, para a edificação de uma “vila pênsil”. O pedido foi negado, o que O Paiz objetava com a seguinte interjeição: “Que pena!”. Seduzido pelas vantagens apresentadas por Redamark, o periódico cumpria uma função mais propagandístico do que informativa:

Construída a villa, seria circulada por ampla e bella avenida, servida por linhas de carris electricos. Teria theatros, cassinos, clubs de sport, um collyseu para jogos olympicos, hoteis, restaurantes, bosques, lagos, jardins, praças, etc.; enfim, os mais requintados confortos e melho- ramentos de uma cidade moderníssima (21/09/1909, p. 3, grifos meus).

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Os dois exemplos anteriores apontam para os jogos olímpicos incluídos em um “pacote” de melhorias que promoviam o lazer na cidade moderna. A urgência da oferta de opções de divertimentos conflui com o interesse das instituições dispostas a oferecê- -los: “O lazer [...] passa a ser uma preocupação dos órgãos públicos e privados que estabelecem atividades, equipamentos, públicos-alvo, tempos, animadores, etc. A sua vivência torna-se uma necessidade” (ROSA, 2004, p. 68). Não sendo a única opção de divertimento para o habitante do Rio de Janeiro, a aceitação dos jogos olímpicos, em um sentido mais esportivo, dependia de sua capa- cidade de conviver com outras formas de jogo já consolidadas na sociedade carioca. Dentre elas, estavam os jogos de azar, em especial o jogo do bicho. Quando a coluna “A Semana” da Gazeta de Notícias publica um texto sobre a proposição de dois homens “que pediram ao conselho municipal licença, não para uma só espécie de sport, mas para uma resurreição de todas as idades” (29/03/1896, p. 1, grifos do jornal), o autor da matéria demonstra espanto com as peculiaridades da nova prática, principalmente com a impossibilidade de realizar apostas. O jornalista desconfiava até mesmo do possível sucesso da iniciativa: “Realmente não sei onde é que a empreza de jogos olympicos irá buscar meios de se manter, prosperar e guardar dinheiro [...]”. Aparente conhecedor dos hábitos citadinos, o anônimo colunista nos apresenta quais seriam as reais preferências do carioca: “[...] a população está desacostumada d’esse genero de sport, em que cada um entra com dinheiro [valor do ingresso] e sai sem elle. O uso corrente é trazerem alguns uma parte do que os outros deixam [lógica da aposta]”. O embate entre jogos de azar e jogos olímpicos pode ser entendido dentro do quadro de transição do ócio para o lazer. Segundo Luciana Marcassa, esta mudança, no cenário brasileiro, teria ocorrido na virada do século XIX para o XX. Em suas palavras: “Esse é justamente o momento em que o ócio é substituído ou, pelo menos, incorporado e suprimido por um conjunto de atividades lúdicas e recreativas que passo a chamar, então, de lazer” (2004, p. 170). À medida que antigas modalidades de diversão eram censuradas, crescia o espaço que podia ser ocupado pelos jogos olímpicos. Por exemplo, o artigo de opinião “O jogo”, publicado na capa da Gazeta de Notícias (07/04/1898), desenvolvia uma crítica severa ao jogo do bicho, visto como “fonte de tantos males para o povo”. O costume era descrito assim: “Hoje, em nossos dias, pelos caes, pelas praças, pelas ruas, em casa, na officina, e até na igreja, se joga a cobra, o gato, o pavão, a gallinha, etc, à custa do pesado suor do trabalho e da economia da semana”. Em contraponto a um hábito visto como negativo, o autor tece um extenso elogio aos jogos olímpicos da antiguidade: “Não eram jogos de mero passatempo, mas jogos que robusteciam o corpo, formavam o espírito e fazim homens soldados valorosos, bons cidadãos e homens literatos”. O caráter utilitário deste divertimento o diferenciava daquele, que era apenas vício. Em seu tempo livre, o indivíduo ainda estaria a serviço do trabalho e do Estado, seguindo o modelo de “divertir o povo e ao mesmo tempo formal-o nas boas artes, que serviam aos fins da sociedade civil” (Gazeta de Notícias, 07/04/1898, p. 1). A partir dos casos aqui elencados, podemos situar algumas das acepções que Maria Cristina Rosa (2004) pontua para o entendimento da diversão: a lógica utilitarista (compensação do trabalho), o benefício do lazer e o viés negativo (vício, ócio). Em seu tempo livre, um sujeito morador da cidade do Rio de Janeiro, em meados

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7276 Narrativas da imprensa carioca sobre os Jogos Olímpicos nas décadas de 1890 e 1900 Fausto Amaro de 1900, possuía uma gama considerável de divertimentos. Enfoquei aqui aqueles relacionados aos jogos olímpicos. O carioca interessado em informações sobre essa “novidade” podia obtê-la na principal mídia da época: os jornais. Mais do que isso, ele ficava a par de um debate incipiente sobre qual o melhor uso de seus momentos de não-trabalho.

APONTAMENTOS CONCLUSIVOS Os números que envolvem os Jogos Olímpicos deixam clara a evolução quantitativa do megaevento (em 1896, foram 14 países participantes; em 2012, 204). O que as estatísticas não nos permitem entrever são as inúmeras tramas que conduziram as Olimpíadas Modernas em mais de um século de história. Dito de outro modo, quais jogos olímpicos ficaram pelo caminho ao longo do século XX? Ao acessarmos a escassa produção acadêmica nacional sobre o tema, principalmente em Comunicação, percebemos que ainda há muito a ser feito. Os jogos olímpicos como vistos nas décadas de 1890 e 1900 eram capazes de circular por diferentes espaços culturais disponíveis à época. Eram circo, cinema, teatro e esporte. Os Jogos Modernos, organizados pelo COI, eram apenas um desses eventos, dividindo o espaço e a atenção dos jornais com os jogos olímpicos promovidos pelas companhias teatrais e circenses que visitavam a cidade, pelas olímpiadas não oficiais (por exemplo, Atenas-1906 e Montevidéu-1907), pelos jogos enquanto atividades de lazer oferecidas pelo Estado, pelos filmes transmitidos nos cinemas do Centro da Cidade. Uma das principais contribuições que espero ter fornecido com esse artigo é a ampliação do olhar que usualmente temos quando pensamos em jogos olímpicos. As narrativas jornalísticas retratavam a disputa simbólica em torno dos sentidos e significados atribuídos aos jogos olímpicos e às próprias práticas esportivas. Estudar a letra impressa abre caminho para um horizonte de novas inquietações e possibilidades para entendermos o desenvolvimento das práticas de lazer e esporte no Brasil.

BIBLIOGRAFIA Barbosa, M. (2007). História cultural da imprensa: Brasil, 1900-200. Rio de Janeiro: Mauad X. Camargo, L. O. (2011). Posfácio: O lazer na sociedade brasileira. In: G. Pronovost, Introdução à sociologia do lazer (pp. 153-199). São Paulo: Editora Senac São Paulo. Carvalho, J. M. (2002). Cidadania no Brasil. O longo Caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Charaudeau, P. (2013). Discurso das mídias. São Paulo: Contexto. Fausto, B. (2006). História Concisa do brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Gomes, C. L.. (2004). Lazer – ocorrências históricas (verbete). In: C. L. Gomes (Ed.), Dicionário crítico do lazer (pp. 119-125). Belo Horizonte: Autêntica. Guttmann, A. (1994). Games and empires: modern sports and cultural imperialism. Nova Iorque: Columbia University Press. Horne, J., & Whannel, G. (2012). Understanding the Olympics. Londres: Routledge. Marcassa, L. (2004). Ócio (verbete). In: C. L. Gomes (Ed.), Dicionário crítico do lazer (pp. 165-171). Belo Horizonte: Autêntica.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7277 Narrativas da imprensa carioca sobre os Jogos Olímpicos nas décadas de 1890 e 1900 Fausto Amaro

Matheus, L. (2014). A imprensa e o desenvolvimento do sistema telegráfico brasileiro. In Congresso da Associação Latino Americana de Investigadores de Comunicação. Lima: ALAIC. Melo, V. A. (2001). Cidade Esportiva: primórdios do Esporte no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Faperj. Melo, V. A. (2005). Lazer, esporte e cultura urbana conexão Rio de Janeiro Paris: meio de transporte: arte. In Congresso do Centro de Memória da Educação Física. Belo Horizonte: UFMG. Rosa, M. C. (2004). Diversão (verbete). In: C. L. Gomes (Ed.), Dicionário crítico do lazer (pp. 64-68). Belo Horizonte: Autêntica. Vaz, A. F. (2005). Teoria crítica do esporte: origens, polêmicas, atualidades. Revista Esporte e sociedade, 1(1), 1-23.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7278 Breve história dos meios de comunicação em Alagoas Means of communication in brief history Alagoas

Jo s é Wag n e r R i b e i r o 1 R i c ar d o Jo s é O l i v e i ra F e rr o2

Resumo: Apresenta uma abreviada história dos meios de comunicação no Estado de Alagoas com enfoque nos primeiros passos da imprensa alagoana; destaca o princípio das transmissões radiofônicas em terras caetés e a chegada da televisão a Alagoas; oferece uma explanação a respeito do primeiro curso de Comunicação Social implantado no Estado, e faz uma abordagem em relação ao nosso cinema. Esta produção é um esboço inicial do que virá a ser uma publicação sobre a comunicação alagoana e nos expõe a possibilidade de conhecer pormenores da história da imprensa alagoana, que teve início antes mesmo da implantação da 1ª oficina tipográfica, em 1831. A conclusão é que esta obra está alinhavada numa conjuntura que nos permite apreciar parte do contexto político na província de Alagoas; identificar o surgimento das organizações trabalhistas de caráter classista e entender um pouco sobre a imprensa operária, que já marcou presença em Alagoas, embora hoje quase não o faça. Palavras-Chave: Alagoas. História. Imprensa. Cinema. Rádio/TV.

Abstract: Presents a short history of the media in the State of Alagoas focusing on the first steps of Alagoas press; highlights the principle of radio broadcasts in caetés land and the arrival of television in Alagoas; offers an explanation about the first course of Media deployed in the state, and makes an approach to our cinema. This production is an initial outline of what will be a publication on the Alagoas communication and exposes us the opportunity to know details of the history of Alagoas press, which began even before the deployment of the 1st printing shop in 1831. The conclusion is that this work is basted in an environment that allows us to appreciate part of the political context in Alagoas Province; identify the emergence of organized labor of class character

1. Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. Professor Associado III do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Alagoas. E-mail: [email protected]. 2. Aluno especial do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística-PPGLL-Ufal (2014.1), Especialista em Processos Midiáticos e Novas Formas de Sociabilidade pela Ufal (2008), Graduado em Jornalismo pela Universidade Federal de Alagoas (2004), pesquisador assistente da Cátedra/UNESCO Metodista de Comunicação para o Desenvolvimento Regional desenvolvendo atividades no projeto PENSACOM/BRASIL (Pensamento Comunicacional Brasileiro), membro da Comissão Estadual de Jornalistas em Assessoria de Imprensa de Alagoas (Cejai/AL), repórter na Assessoria de Comunicação da Secretaria de Estado da Educação e do Esporte de Alagoas (SEE/AL). Professor da Escola Técnica de Artes da Universidade Federal de Alagoas (ETA/Ufal) no Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego do Ministério da Educação (PRONATEC). E-mails: [email protected] ou [email protected].

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José Wagner Ribeiro • Ricardo José Oliveira Ferro

and understand a little about the working press, which already was present in Alagoas, although today almost do not. Keywords: Alagoas. History. Press. Cinema. Rádio/TV.

PRIMEIROS PASSOS DA IMPRENSA ALAGOANA HISTÓRIA DA imprensa alagoana começou anteriormente a implantação da 1ª oficina tipográfica, em 1831. Antes dessa data, houve duas tentativas oficiais de se criar a imprensa no Estado. A primeira delas se deu em 1822, quando, em meio A 3 à ‘Guerra da Independência’, José Antônio Ferreira Brak-Lami , que presidia a ‘Junta de Guerra das Alagoas’, enviara ofício à Corte Portuguesa, solicitando uma tipografia públi- ca, como forma de promover o desenvolvimento social, não obtendo, porém, sucesso. Mais uma tentativa, também infrutífera, foi realizada em 1826 pelo vice-presidente da província das Alagoas, Miguel Veloso da Silveira Nóbrega e Vasconcelos, como forma de tornar público o trabalho do governo provincial. Finalmente, a imprensa alagoana foi fundada, em 1831, quando Manoel Lobo de Miranda Henriques, então governador da província de Alagoas, adquiriu uma máquina tipográfica, como forma de angariar a simpatia da população em torno de sua gestão. Batizada de Patriótica, como referência aos movimentos liberais, representada pelas associações encabeçadas pela ‘Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional’, a máquina foi instalada, a priori, na Rua do Livramento, sendo transferida, a posteriori, para a Rua do Comércio. A fundação da imprensa alagoana aconteceu em meio a um período tumultuado, marcado pela abdicação de Dom Pedro I ao trono brasileiro, pelas reformas liberais e pela luta contra o absolutismo. Manoel Lobo de Miranda Henriques, natural da Paraíba, governou a província de Alagoas entre maio de 1831 e novembro de 1832. Sentindo a necessidade de instalar um meio que facilitasse o acesso dos alagoanos aos principais acontecimentos nacionais, bem como o intercâmbio dos fatos locais com os nacionais, ele instalou, em 1831, a primeira oficina tipográfica de Alagoas, adquirida das mãos do negociante recifense João Batista Branco. A determinação em implantar a imprensa no estado fez com que Miranda Henrique fosse reconhecido como fundador da imprensa de Alagoas. O contexto político na província de Alagoas, quando da fundação do Iris Alagoense, primeiro jornal impresso do Estado, foi marcado pelas ideais ultrademocráticas, cujos componentes, partes integrantes da Sociedade Defensora, pertenciam ao meio rural. Após a criação do Iris Alagoense, a ‘Sociedade Defensora’ transformou-se em Sociedade Patriótica de Maceió, cujos elementos, partidários da facção exaltada, resultante da abdicação de Dom Pedro I, combatiam a reposição do monarca lusitano ao trono

3. Foi membro vogal da 1ª Junta de Governo eleita em 11 de julho de 1821, presidida por Sebastião de Mello e Póvoas. Em 31 de janeiro de 1822 é eleito presidente da 2ª Junta de Governo, sendo deposto do lugar em 28 de junho do mesmo ano e deportado para Portugal, assumindo em seu lugar o Juiz de Fora do Penedo, Bel. Caetano Maria Lopes Gama. Informação disponível em: . Acesso em: 13 de março de 2015.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7280 Breve história dos meios de comunicação em Alagoas

José Wagner Ribeiro • Ricardo José Oliveira Ferro brasileiro. Quando abraçou o federalismo, a ‘Sociedade Patriótica de Maceió’ mudou de denominação, passando a se chamar Sociedade Federal de Maceió. Para Gaia (2005, p.47), o primeiro jornal do qual se tem registro em Alagoas é o Iris Alagoense. Ela revela que o surgimento deste jornal pioneiro ocorreu em 1831 e que ele foi impresso na Bahia. E acrescenta ainda:

A grande motivação do jornal pioneiro foi a mesma que move, até os dias atuais, a maioria dos lançamentos jornalísticos: a política. Esse órgão da Sociedade Patriótica de Maceió apre- sentava-se como “político, literário e mercantil”. Para ser possível a autonomia na impressão, entidade proprietária comprou, em Recife, as primeiras máquinas tipográficas para Alagoas. Entrava em cena o problema crucial da iniciativa: a falta de mão de obra especializada para garantir o funcionamento da empresa.

Após a chegada da máquina tipográfica a Alagoas, a segunda edição passou a ser publicada no Estado, exatamente em 17 de agosto de 1831. Como a província não contava com pessoal qualificado para manusear máquinas tipográficas contratou-se o francês Adolpho Emile de Bois Garin. Gaia (2005) descreve que Adolpho Emile de Bois Garin era um francês atuava em Recife e foi convidado para implantar este novo ofício em Maceió e que ele veio acompanhado de Prosper Chenavaux e Charles Vivard. A pesquisadora explica:

Bois Garin trazia a experiência de redator do periódico recifense Espelho das Brasileiras, cujo primeiro número saíra em 1831. No Iris Alagoense, ele passa a acumular a função de único redator com a de administrador. O impressor alemão Carl Eduard Muhlert foi o responsável pela montagem desse primeiro prelo no Estado de Alagoas. O Iris Alagoense teve vida breve, extinguindo-se com o exemplar nº 50, de 18 de fevereiro de 1832. Quatro dias depois, nascia com novo nome: O Federalista Alagoense, que circularia até 1836. Assumiram sua redação o padre Afonso de Albuquerque Melo – considerado o primeiro jornalista alagoano – e o pernambucano Félix José de Melo e Silva (p.47).

O Iris Alagoense circulava duas vezes por semana, às quintas-feiras e aos sábados. Quando a Sociedade Patriótica de Maceió abraçou o federalismo, o Iris Alagoense teve suas atividades finalizadas. A cada mudança no quadro político nacional, o jornal mudava de denominação, adaptando-se à situação reinante. Por dirigir um meio combativo – defensor de uma classe política, portanto, parcial em suas informações – e denunciar injustiças no Estado, Bois Garin, apesar de ser homem de confiança do presidente da província, começou a “colecionar” desafetos em toda parte. Em janeiro de 1832, após publicar matéria envolvendo proprietário rural, Garin foi atingido com um tiro de pistola no peito esquerdo e mais doze caroços de chumbo no corpo. Sobrevivendo ao episódio, Bois Garin deixou Alagoas. O surgimento do Iris Alagoense influenciou e acelerou a criação de outros jornais, em Maceió, Penedo, Marechal Deodoro e, posteriormente, Viçosa, na segunda metade do século XIX. Em alguns engenhos também eram produzidos jornais, mais voltados às notícias rurais, como o jornal O Camponês, no engenho Bananal, do coronel Quintiliano Vital, em Viçosa.

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José Wagner Ribeiro • Ricardo José Oliveira Ferro

O RÁDIO EM ALAGOAS A primeira tentativa de se implantar uma rádio em Alagoas foi em 1925. Exatamente, 94 anos depois da chegada da máquina tipográfica, quando um grupo de alagoanos, liderado por Mário Marroquim, criou a ‘Rádio Clube de Alagoas’, em Maceió. A segunda experiência deu-se 1933, e partiu das ações dos técnicos Jacques Mesquita e Luiz Gonzaga, que instalaram, na Rua Dois de Dezembro, no centro de Maceió, a ‘Estação Experimental’. Mais uma tentativa de instalação de uma rádio em Alagoas ocorreu em 1935, quando José Renato, Jacques Mesquita, Luiz Gonzaga, Josué Junior e Correia de Oliveira, lançaram o ‘Centro Regional de Anúncios Falados’ (C.R.A.F). Alencar (1991, p. 33) esclarece que o C.R.A.F nada ficava a dever a uma emissora de rádio de pequeno porte no que refere à programação e, até mesmo, tecnicamente, em relação à época. Para ele:

O seu funcionamento era clandestino, ou seja, não tinha autorização do DCT – Departamento de Correios e Telégrafos (repartição pública que controlava as concessões) para funcionar. Mas funcionava. E, pode-se afirmar com convicção – e que o digam os que o conheceram – esse projeto de emissora foi a grande experiência piloto para aqueles que, em 1948, viriam a fazer funcionar a Rádio Difusora de Alagoas.

Durante mais de duas décadas após a criação da ‘Rádio Sociedade do Rio de Janeiro’, oficialmente considerada a primeira rádio do Brasil, Alagoas permaneceu sem ter uma transmissora radiofônica. O rádio passou, efetivamente, a fazer parte da vida do povo alagoano a partir de 16 de setembro de 1948. Foi exatamente nesta data que o Estado deixou de ser uma zona de silêncio do Brasil em virtude da inauguração da Rádio Difusora de Alagoas, emissora apelidada como a ‘Caçula das Américas’. Ferro e Ramires (2011, p.291) sustentam que a Rádio Difusora de Alagoas é precursora do rádio alagoano; hoje ela é integrante do Instituto Zumbi dos Palmares (IZP) – complexo de comunicação formado pela TV Educativa de Alagoas (TVE), as Rádios Educativa FM em Maceió, Arapiraca e Porto Calvo; Rádio Difusora AM, também na capital, e congrega ainda o Espaço Cultural Linda Mascarenhas (teatro e galeria). Os pesquisadores citam que:

A emissora tem sido testemunha dos principais fatos históricos de Alagoas, do Brasil e do mundo. Pelos seus microfones já passaram importantes jornalistas, locutores e artistas, que marcaram gerações. A emissora funciona durante 24 horas e oferece uma programação variada, que engloba música, jornalismo e cobertura esportiva – com destaque para o futebol, considerado o carro-chefe da emissora. Há expressiva participação popular dos ouvintes através de telefonemas. No jornalismo, destacam-se os programas Espaço Livre e o Difusora Agora. A rádio foi pioneira nas transmissões de radionovelas, programas de auditório, veicu- lação de programas esportivos e por dar espaço á mulher no rádio. Em princípio, atendia a todas as classes. Agora, o foco são as classes C, D e E. Seu principal produto é o futebol. Há três programas diários com esta temática. A cada hora é inserido um programe-te intitulado Difusora Notícias – composto de um noticiário com duração de três minutos. Atualmente, ela utiliza o slogan “Primeiro a Difusora, as outras vieram depois”.

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José Wagner Ribeiro • Ricardo José Oliveira Ferro

A TELEVISÃO EM ALAGOAS Cinco anos depois da criação da ‘TV Tupi’, chega a Alagoas, em 1956, o primeiro aparelho de TV, disponível para demonstração na extinta ‘Loja Phillips’, localizada na Rua do Livramento, 232, no Centro de Maceió. Até 1975, Alagoas somente contava com o auxílio de antenas retransmissoras, que captavam o sinal da ‘PRA-8, Canal 06, TV Rádio Clube de Pernambuco S/A. A TV Gazeta de Alagoas, primeira emissora de TV do Estado, foi construída em onze meses, desde a pedra fundamental até o início das operações, e foram investidos cerca de 20 milhões de cruzeiros4. A estreia da iniciativa do jornalista, empresário e político Arnon de Mello se deu com festa na área das comunicações no Estado, e, inicialmente, havia sido anunciada para 1º de outubro, acabou acontecendo na tarde de 27 de setembro. Ferro e Ramires (2014, p.3) esboçam que a emissora integra a Organização Arnon de Mello (OAM), fundada por Arnon Afonso de Farias Mello, alagoano nascido no município de Rio Largo, em 19 de setembro de 1911. Eles relatam que Arnon de Mello:

Era graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Arnon de Mello trabalhou como jornalista, em 1930, no carioca A Vanguarda. Ainda na então capital do país, fez parte da redação do Diário Carioca e de O Jornal. Seguiu carreira política – foi deputado federal (1945), governador de Alagoas (1950-1955) e senador, com mandatos em 1962, 1970 e 1978.

A Organização Arnon de Mello (OAM), maior grupo de comunicação de Alagoas, começou com a aquisição do jornal Gazeta de Alagoas. “Fundado pelo jornalista Luiz Magalhães da Silveira, em 25 de fevereiro de 1934, a empresa pertence à família Collor de Mello desde 1952, quando Arnon de Mello foi governador” (GAIA E RAMIRES, 2003, p.03). Além do jornal diário, a OAM tem outras quatro emissoras de rádio: Rádio Gazeta FM, Rádio Gazeta AM (1960), Gazeta FM Arapiraca (1984) e Rádio Gazeta Pão de Açúcar (1997), TV Gazeta de Alagoas (1975), instituto de pesquisas Gape, portal Gazetaweb.com (1995), Instituto Arnon de Mello (1996), portais G1/Alagoas e GE/Alagoas (2012) e TV Mar (2013), esta última transmite seu sinal em canal fechado. Desde seu início, a TV Gazeta tem como característica principal a ênfase dada ao telejornalismo. Grandes nomes da área de comunicação do estado participaram do desenvolvimento inicial da emissora, como Ailton Villanova (primeiro diretor de jornalismo); Iélson Ávila (apresentador do primeiro telejornal alagoano) e Edécio Lopes (primeiro diretor comercial). Líder de audiência no Estado desde sua inauguração, a TV Gazeta investe, especificamente, em telejornalismo. Atualmente, ele produz telejornais e programas de caráter rural e cultural.

CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DA UFAL A criação do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Alagoas (COS/Ufal) se deu, exatamente, 148 anos depois da criação da imprensa alagoana. Ele

4. Informações disponíveis no endereço eletrônico http://gazetaweb.globo.com/tvdigital/interna.php?c=20. Acesso em: 13 de março de 2015.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7283 Breve história dos meios de comunicação em Alagoas

José Wagner Ribeiro • Ricardo José Oliveira Ferro nasceu no dia 8 de Agosto de 1979 e foi fundado por Carlos Alberto Gusmão. Logo no início, disponibilizava, nos primeiros anos de sua existência, apenas as disciplinas básicas de Teoria Sociológica, Língua Portuguesa e Antropologia Cultural, ofertadas pelo departamento de Estudos Sociais. A ampliação da grade curricular do curso, bem como o seu reconhecimento, só se deu alguns anos depois, já em 1986, quando um decreto publicado no Diário Oficial da União (DOU) forneceu mais suportes ao curso e regulamentou seu funcionamento. Desde sua fundação, a trajetória do Curso de Comunicação Social foi marcada por mudanças na estrutura física, no corpo administrativo, grade curricular, corpo docente e número de alunos. Na última década aconteceram algumas modificações na parte física do curso, melhorias básicas nos laboratórios e no funcionamento dos estúdios. Atualmente, está em construção, no campus A.C. Simões, em Maceió, um novo prédio para abrigar os cursos de Jornalismo e Relações Públicas. O curso de jornalismo oferece uma espe- cialização em Processos Midiáticos e Novas Formas de Sociabilidade, está em curso o aperfeiçoamento da graduação, a criação de novas disciplinas eletivas, aumento do quadro de professores efetivos e ampliação do número de doutores.

CINEMA EM ALAGOAS A primeira sessão de cinema em Alagoas só aconteceu no ano de 1908, em um antigo casarão localizado na Praça dos Martírios, exatamente onde funcionou o ‘Telégrafo Nacional’, no Centro de Maceió. Entretanto, o ‘Teatro Maceioense’ (depois denominado ‘Cineteatro Delícia’) foi a primeira casa de exibição de cinema em Alagoas, localizado na Rua João Pessoa, em frente aos ‘Correios e Telégrafos’. Os filmes ‘Vendedor de Melancias’ e ‘Beijos de Safo’ foram os primeiros a serem exibidos no Estado. Em seguida, surgiram outras casas de exibição, como o ‘Helvética’, o ‘Cineteatro Floriano’, posteriormente, chamado ‘Capitólio’, ambas em 1913, e mais tarde o ‘São Luiz’ (desativado em 1996), o ‘Cine Odeon’ e o ‘Moderno’, em 1919. Em dezembro de 1930, o ‘Jornal de Alagoas’ anunciou a realização do primeiro longa-metragem feito em Alagoas, gravado pelo pernambucano Edson chagas, que recebeu apoio de Guilherme Rogato. ‘O bravo do nordeste’, como ficou intitulada a obra, foi filmado no município de União dos Palmares, e teve em seu elenco Ermani Passos, Nice Ayres, Francisco Rocha e Elizabeth Montenegro. Tratava-se de uma trama envolvendo amor e roubo de gado, e estreou em março de 1931. O bairro maceioense de Ponta Grossa abrigou vários cinemas de bairro, como o ‘Cinearte’, o ‘Rex’, o ‘Roial’ e o ‘Cine Imperial’. Mas fecharam suas portas, em consequência da implantação do imponente ‘Cine Lux’, situado na Rua Santo Antônio, no mesmo bairro. Entre o final da década de 70 e meados dos anos 90, as casas de exibição de filmes de Maceió passaram por um período ruim. A queda dos lucros nas bilheterias influenciou o surgimento de mostras apelativas, como as pornográficas. Além dessa categoria, segmentos juvenis e infantis, como os lançados pelo ‘Os Trapalhões’, ‘Xuxa’ e os desenhos animados, conseguiram manter, ainda que temporariamente, os cinemas maceioenses.

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Os shoppings centers construíram espaços dedicados à mostra de filmes, espaços esses mais confortáveis que os anteriores. A construção desses espaços estimulou, ainda mais, a extinção das antigas casas de exibição em toda Alagoas. O progressivo lucro do entretenimento cinematográfico local se deu, especificamente, por meio das produções norte-americanas. Porém, com a revitalização do cinema brasileiro, é cada vez maior o número de mostras nacionais de filmes em Maceió. Atualmente, os cinemas funcionam em Maceió nos shoppings centers da capital e no Espaço Cultural SESI – antigo Cine Pajuçara, onde também subsiste um teatro e são exibidos filmes de perspectiva diferenciada, como películas estrangeiras (não americanos ou hollywoodianos), longas-metragens nacionais e filmes de arte. Surgido em janeiro de 1962, o ‘Cine São Francisco’, situado na cidade histórica de Penedo, impulsionou a cultura cinematográfica local. Filmes de cineastas como Nelson Pereira dos Santos, Hector Babenco e Cacá Diegues foram lançados aqui antes de qualquer outro lugar. Por ocasião do lançamento do filme ‘Bye, bye, Brasil’, dirigido por Cacá Diegues, o ‘Cine São Francisco’ contou com a presença de artistas como Vera Fisher, Maitê Proença, Suzana Vieira e Glória Menezes.

FESTIVAL DE CINEMA DE PENEDO De toda a história do cinema alagoano, com certeza nenhum momento é mais marcante do que o Festival de Cinema Brasileiro de Penedo. Criado em 1975 pela professora Solange Lopes, então diretora do ‘Departamento de Assuntos Culturais (DAC)’ do município, e destinado à produção cinematográfica alagoana, o Festival de Cinema Brasileiro de Penedo funcionou como estímulo aos cineastas locais e catalizador do quadro de produção de filmes em terras Caetés. O festival coincidiu com a chegada das primeiras filmadoras ‘Super 8’, e permitia aos produtores visualizar pretensões maiores, como a premiação e mesmo o lançamento de suas películas em circuito nacional, o que os levou a investirem em suas obras, tornando os anos em que o festival esteve ativo os mais produtivos da história do cinema alagoano. Em suas primeiras edições, o festival abrangia somente produções alagoanas, filmadas em ‘Super 8’, com a entrada, em edições posteriores, de produções de outros estados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Há exatos 184 anos, o povo alagoano assistia ao nascimento de sua imprensa com a implantação da primeira oficina tipográfica, em 1831. Esta pesquisa é um esboço inicial, uma primeira noção, um rudimento do que virá a ser a publicação de um futuro livro. A intenção dos pesquisadores/autores é conseguir catalogar o panorama da História dos Meios de Comunicação em Alagoas e, para isso, estão procurando formar um mutirão intelectual capaz inventariar a mídia caeté. Como saldo dessa diligência, vamos buscar conhecer minúcias da história do padre Antônio de Albuquerque Melo, primeiro jornalista genuinamente alagoano, nascido na ‘Cidade das Alagoas’ (atual município de Marechal Deodoro). E nesse trajeto, pretendemos fazer uma imersão na narração de acontecimentos referentes aos Sindicatos, uma vez que, antes do surgimento das organizações trabalhistas de caráter classista, os

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José Wagner Ribeiro • Ricardo José Oliveira Ferro profissionais da área de imprensa recebiam assistência de algumas organizações, como as caixas de empréstimos, as caixas beneficentes e os núcleos recreativos e literários. Essas entidades associativas socorriam os membros em casos de morte ou impossibilidade de trabalho por parte do provedor de cada família. Nesse sentido, podemos citar a “Associação Tipográfica Alagoana de Socorros Mútuos”, que foi fundada em 14 de outubro de 1869, e teve como órgão de divulgação inicial O Século XIX, que funcionou com regularidade, em edições semanais. Por problemas internos relacionados à perda de representatividade e legitimidade entre os trabalhadores, a “Associação Tipográfica Alagoana de Socorros Mútuos” foi dissolvida em 2 de agosto de 1896. Só em 1945, Alagoas deu seu primeiro passo rumo à criação de um órgão que assistisse os profissionais da imprensa. Nesse sentido, um documento foi enviado à 9ª Delegacia Regional do Ministério, Indústria e Comércio (atual Superintendência Regional do Trabalho e Emprego – SRTE/AL), reivindicando a criação de um órgão voltado aos interesses jornalísticos. Localizada na Rua do Comércio, nº 503, a Associação dos Jornalistas Profissionais de Alagoas começou a exercer suas atividades em agosto de 1945; porém, somente teve seus estatutos aprovados em maio de 1955, através do Ministério da Indústria e Comércio. A associação passou a se chamar Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de Alagoas, e seu primeiro presidente foi o jornalista Carivaldo Brandão (1959 – 1963). Para tentar acabar com a desatenção em relação à memória da Imprensa Alagoana e sanar a insuficiente informação das novas gerações de profissionais sobre a trajetória midiática alagoana, pretendemos conhecer a fundo nuances da imprensa operária – gênero que pode se caracterizar por se dirigir, prioritariamente, ao proletariado ou por apresentar, em seu conteúdo, uma temática voltada para a problemática dessa classe social, quer seja ou não produzida por operários – já marcou forte presença em Alagoas, embora hoje quase não o faça. Ao longo da história do país, o caráter e a postura adotados pela imprensa operária sofreu alterações, o que nos leva a interpretar a história da imprensa operária no país, e também em Alagoas, como dividida em três etapas. Uma espécie de imprensa operária anarcossindicalista surgiu durante o processo de urbanização do país, na segunda metade do século XIX e permaneceu até os anos de 1922 e 1930, quando, sob a influência da Revolução Russa, o velho pensamento entrou em decadência e a imprensa operária se reconfigurou. Com o surgimento do Partido Comunista Brasileiro – PCB, e a soma deste fato à Revolução Russa e às ideias e formas de pensamento surgidas a partir dela, fez-se com que o que a imprensa proletária nacional assumisse um caráter sindical-partidário. Esse pensamento durou até o golpe militar de 1964 e o advento do chamado getulismo. Após 1964, o proletariado brasileiro se reorganizou, e sua base passou a ser essencialmente sindical. O primeiro registro da imprensa operária em Alagoas foi O Luctador (1887). Desde então, não se têm registro de jornais proletários no Estado. O que vimos surgir foram os jornais alternativos, como o Desafio (dezembro de 1977), A Tribuna de Alagoas (novembro de 1979) e O Momento Alagoano (1983). Esse segundo, em seu início, foi tido como uma das experiências mais marcantes no Estado, pelo seu jornalismo crítico e independente.

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Além desses, temos os mais recentes, como A Notícia, Extra, Primeira Edição e O Dia. Mas nenhum desses pode ser enquadrado como sendo de imprensa operária, pois não se tratam de jornais populares, mas, sim, jornais dirigidos para as classes médias do Estado. A imprensa operária que já foi tão forte em Alagoas nos dias de hoje inexiste ou subsiste, escondida e fraca, e precisa, para o bem desta classe e a defesa de seus direitos, reorganizar-se e voltar à ativa. É importante observar também que a Imprensa Oficial Alagoana só foi criada em 15 de janeiro de 1912, por meio do decreto nº 537, assinado pelo então governador Euclides Malta. O Diário Oficial de Alagoas, inicialmente localizado na Rua do Comércio, nº 174, (depois transferido para a Rua Boa Vista, atual Rua Conselheiro Lourenço de Albuquer- que), apresentava formato inicial de quatro páginas, divididas em nove colunas, e teve seu primeiro número publicado no dia 17 daquele mesmo mês e ano. Durante a admi- nistração do Coronel Clodoaldo da Fonseca, especificamente em 30 de janeiro de 1913, o Diário Oficial foi elevado à condição de repartição pública, por meio do decreto 636. A nossa intenção precípua e fomentar a pesquisa, despertar o interesse de jovens pesquisadores a sequenciar esta empreitada. Para isso, temos procurado beber na fonte do professor José Marques de Melo, autor e organizador de vários livros, dentre os quais Imprensa Brasileira – personagens que fizeram história (2005). E queremos, ainda, que nossa futura obra sirva para dar sequência à construção da história dos meios de comunicação alagoanos, além de procurar entender, por exemplo, como o segmento de políticos/empresários, detentores de concessões de veículos de comunicação, controla parcela significativa da notícia difundida em suas emissoras, uma vez que este controle é exercido, independentemente dos donos das emissoras estarem numa função pública, ou até mesmo de desempenharem o poder político outorgado pelo povo, através do voto. Outro intuito da referida pesquisa será descrever como os veículos de comunicação de Alagoas incentivam ou não a melhoria do conjunto de características humanas, criadas, preservadas ou aprimoradas através da comunicação e da cooperação entre indivíduos, ou apenas favorecem o subdesenvolvimento cultural, visto que há indícios de que parte da programação de certos veículos parece ter um objetivo claro: promover a distração do povo e, consequentemente, impedir que ele reflita. É uma espécie de Panem et Circenses ou política do pão e circo, muita utilizada na Roma Antiga e aparentemente reeditada na atualidade.

REFERÊNCIAS ALENCAR, Cláudio. Contando histórias. Maceió, Sergasa, 1991. FERRO, RICARDO J. O. & RAMIRES, Lídia Maria Marinho da Pureza. Panorama do rádio em Maceió. In: Nair Prata. (Org.). Panorama do Rádio no Brasil. 1ª ed. Florianópolis: Editora Insular, 2011, v. 01, p. 285-301. FERRO, RICARDO J. O. & RAMIRES, L. M. M. P.. Gazeta FM Maceió: da entrada tardia no cenário nacional de radiofusão à adequação a novas tecnologias e programação musi- cal popular. In: XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2014, Foz do Iguaçu. Anais do XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. São Paulo: Intercom, 2014. p. 1-9.

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José Wagner Ribeiro • Ricardo José Oliveira Ferro

GAIA, Rossana. Adolpho Emile Bois Garin. In: MARQUES DE MELO, José (org.). Imprensa Brasileira: Personagens que fizeram história. São Paulo: Metodista; Imprensa Oficial de São Paulo, 2005, v. 1, p. 45-52. GAIA, Rossana & RAMIRES, Lídia Maria Marinho da Pureza. Gazeta de Alagoas: 70 anos de história. II Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho, Florianópolis, 2004. MARQUES DE MELO, José (org.). Imprensa Brasileira: Personagens que fizeram história. São Paulo: Metodista; Imprensa Oficial de São Paulo, 2005.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7288 “Furdunço” carioca e a imprensa dos subúrbios Rio’s mess and the suburban press

L e t i c i a C a n tar e l a M at h e u s 1

Resumo: Apresenta proposta de investigação sobre como o jornalismo contribuiu para a elaboração de um conceito carioca de subúrbio e como essas regiões foram narradas entre os anos 1900 e 1920 tanto na chamada imprensa suburbana quanto nas colunas dos periódicos de grande circulação que eram dedicadas a notícias sobre aquele espaço social específico. Uma hipótese é que houve disputas em torno das idealizações sobre esses bairros e que algumas delas acabaram por legitimar um processo de permanente produção da diferença, não apenas simbólica, mas efetivamente de investimentos públicos. A pesquisa pretende compreender como os jornais servem como ferramenta para elaboração de uma imaginação histórica sobre a cidade, reforçando ou contestando mecanismos de diferenciação e hierarquização dos espaços. Palavras-chave: História do jornalismo; Imprensa suburbana; Narrativa

Abstract: This paper presents a research proposal on how journalism has contributed to the development of a concept of suburb in Rio and how these regions were reported between 1900 and 1920 by both call suburban press and the columns of leading newspapers that were devoted to news on that particular social space. One hypothesis is that there were disputes over idealizations about these neighborhoods and some of them eventually legitimize a process of continuous production of difference, not only symbolic, but effectively public investments. The research aims to understand how the newspapers serve as a tool for developing a historical imagination of the city, reinforcing or challenging mechanisms of differentiation and hierarchy of spaces. Keywords: History of journalism; Suburban press; Narrative

LUTA PELA definição sobre a ocupação e a distinção dos espaços encontra expe- riências singulares no passado que ajudam a compreender o momento presente Apelo qual passa o Rio de Janeiro. A cidade vive um intenso debate sobre a refor- mulação de seus espaços urbanos, por fatores tais como as reformas na capital para os megaeventos esportivos, o projeto de revitalização da zona portuária, da Avenida Brasil e a crescente migração em função do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), no município de Itaboraí. Enquanto o prefeito Pereira Passos (1902-1906) promovia as grandes reformas urbanas na área central da cidade, outro espaço se urbanizava a duras

1. Professora de Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), membro do Programa de Pós-Graduação em Comunicação na mesma universidade. Doutora em Comunicação pela UFF. leticia_ [email protected].

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7289 “Furdunço” carioca e a imprensa dos subúrbios Leticia Cantarela Matheus penas e que era caracterizado por uma frágil e ambígua integração com o restante da cidade: os subúrbios, nome que se dá a algumas áreas das Zonas Norte e Oeste da cidade. A “Zona Sul”, como sinônimo de área nobre, ainda estava em desenvolvimento, e a expansão habitacional acompanhava as linhas do trem a Norte e a Oeste, pelo ramal da Leopoldina (costeira) e pelo ramal da Central do Brasil (continental). Cada qual com suas particularidades, essas regiões abandonavam gradativamente sua configuração rural para assumirem, não sem dificuldades e contradições, uma feição urbanizada, ainda que os recursos infraestruturais fossem distribuídos pela cidade de modo desigual. Aos subúrbios restavam poucos investimentos, apesar da sua disparada demográfica. Para se ter uma ideia, os bairros vinculados à Leopoldina cresceram populacionalmente 293% somente entre 1890 e 1906. (Silveira, s/d, p. 6) Se, inicialmente, ainda no século XIX, os assentamentos nessas freguesias traduziam a lógica da prevalência de mora- dores com determinadas profissões, aos poucos essas regiões foram se tornando mais heterogêneas. Nesse momento, na virada do século, acontece um boom de “jornais de bairro”, uma profusão de semanários e de revistas literárias destinadas aos ilustrados moradores dos subúrbios. Este artigo apresenta uma proposta de investigação para entender essa imprensa chamada suburbana dentro de um contexto de expansão da palavra impressa e de alar- gamento da experiência jornalística (Barbosa, 2007 e Mendonça, 2014, p. 41), bem como de integração e de reordenamento da cidade sobre parâmetros considerados modernos. Esse modelo de modernidade encontrava nas reformas das áreas centrais sua referência, mas, nos estudos sobre esse período, costuma-se deixar de lado processos paralelos de modernização, tal como no subúrbio tipo carioca. O objetivo é, portanto, estudar como os moradores do subúrbio recém-formado do Rio de Janeiro, no início do século XX, viam o seu lugar de trabalho e moradia e como eles tentavam interferir nos processos de sig- nificação daquele ambiente, em diálogo com autoridades e moradores de outras regiões, através da publicação de seus próprios periódicos, buscando fazer um jornalismo singular.

A IMPRENSA SUBURBANA Para os cariocas, “subúrbio” possuiu um significado muito particular que se con- funde tecnicamente com aquilo que se entende em outras capitais brasileiras por peri- feria.2 Trata-se de um conceito híbrido que incorpora certa ideia de exclusão, porém não necessariamente por uma questão de classe, associada, paradoxalmente, a um ethos aristocrático. Enquanto subúrbio carrega normalmente uma noção de espaço privile- giado, de distinção social pelo seu afastamento dos problemas do centro, como por exemplo, as áreas ricas com casas de luxo nos Estados Unidos, no Rio, essa distância da área central conota sentido inverso, de uma espécie de pertencimento “menor” à cidade, ainda que os agentes dessa imprensa que estudamos, por exemplo, não possam ser caracterizados como socialmente vulneráveis. Oriundos das classes médias, muitos desses agentes impressores eram imigrantes portugueses e de outras nacionalidades, habituados à cultura letrada impressa. Alguns

2. No senso comum, “periferia” para um carioca soa mais pejorativo que “subúrbio”. Ambos carregam uma conotação de certa dose de exclusão, mas é como se “subúrbio” fosse um tipo de periferia marcada por uma identidade carioca. Sobre a distinção entre subúrbio e periferia, cf. Soto, 2008.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7290 “Furdunço” carioca e a imprensa dos subúrbios Leticia Cantarela Matheus deles já trabalhavam na grande imprensa carioca. Além de conteúdo político, era comum que os periódicos por eles publicados trouxessem denúncias e exigência dos famosos “melhoramentos” por parte da Prefeitura e da Intendência Municipal. Naquele momento, havia a percepção da desigualdade dos investimentos públicos na cidade (cf. Moreira, 2013). Segundo Mendonça (2014), ao tomarem a iniciativa de publicar um jornal, morado- res mais abastados dos subúrbios visavam se notabilizar como representantes dessas regiões, com o intuito de melhorar a infraestrutura local, mas também para tentar se integrar, ainda que marginalmente, à vida pública da capital. Outra hipótese é que a proliferação desses jornais também possa ter sido uma tentativa de autonomia dos novos “suburbanos” tanto em relação às representações hegemônicas dos grandes jornais quanto à tendência à relativa invisibilidade daqueles territórios para a administração pública, já que, como dissemos, alguns deles já trabalhavam na grande imprensa local, sendo responsáveis pelas colunas dedicadas às causas dos subúrbios. Jornais de grande circulação mantinham coluna com cobertura exclusiva chamada, por exemplo: “Subúrbios” (Jornal do Brasil), “Pelos Subúrbios” (Correio da Manhã), que mais tarde se tornou “Correio Suburbano” e depois “Subúrbios e Arrabaldes” (Barbosa, 2007, p. 42). Havia ainda a coluna “Queixas do Povo”, que também costumava trazer denúncias sobre os problemas enfrentados pelos moradores dos subúrbios. Esses dois importantes títulos não eram exceção: toda a grande imprensa3 da época dedicava espaço àquela nova região que ampliava as fronteiras urbanas do Rio. Os primeiros assentamentos naquela região obedeciam a uma forma linear, ao acompanharem as linhas do bonde, primeiro, e depois do trem. Os subúrbios teriam experimentado uma espécie singular de modernidade, diferente daquela propalada pelos grandes jornais acerca da região central reformada, experimentando uma Bélle Èpoque a seu modo. Exatamente as linhas de trem aparecem em profusão como protagonistas nas fotografias realizadas por Augusto Malta, fotógrafo oficial da Prefeitura na virada do século. Responsável pela produção oficial de imagens do período, especialmente das intervenções da administração pública, Malta se dedicava a registrar as reformas no Centro e na crescente Zona Sul. Quando documentava os chamados “melhoramentos” pelos quais passam os subúrbios, quase invariavelmente aparece a linha férrea.4 O que impressiona de antemão é a quantidade de títulos na época com o nome “subúrbio” no título. Mas havia também outros que ostentavam orgulhosamente o nome de cada bairro, além dos casos em que o título não permite inferir seu local de publica- ção e de circulação. Portanto, inicialmente, nosso recorte temporal e empírico é analisar nove periódicos entre 1900 e 1920: Tribuna Suburbana e Jornal Suburbano (Madureira), Echo Suburbano (Engenho de Dentro), O Suburbano (Ilha do Governador, Méier, Madureira, Inhaúma), Progresso Suburbano (Piedade) e Revista Suburbana (Méier). Essa imprensa

3. O termo “grande imprensa” pode parecer anacrônico, mas estamos assumindo que, de fato, esses jornais representavam, junto com outros, a grande imprensa da época, adotando a conceituação de Barbosa (2007), uma vez que, como descreve a autora, os principais jornais da época, no Rio de Janeiro, já possuíam configuração empresarial e que a soma total das tiragens diárias, bem como o número de títulos disponíveis, permitem afirmar que se tratavam de grande imprensa. 4. O acervo está disponível no Portal Augusto Malta (http://portalaugustomalta.rio.rj.gov.br/) mas sua obra tem sido difundida através de perfis históricos no Facebook. Cf. Augusto Malta Figura Pública, com mais de 10 mil seguidores. (https://www.facebook.com/pages/Augusto-Malta/144845085530251?fref=ts)

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7291 “Furdunço” carioca e a imprensa dos subúrbios Leticia Cantarela Matheus suburbana precisava lidar não apenas com as representações hegemônicas acerca dos subúrbios cariocas, mas também enfrentar o problema de reformular a memória de um passado rural das freguesias.

CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS Em outra oportunidade (Matheus, 2011), tratamos da contribuição jornalística para a difusão e sedimentação de uma ideia de história: linear, factual, direcionada, baseada na lógica do progresso tecnológico. Não estamos negando essa tese, mas, com o intuito explícito de evitar uma possível confusão entre a historiografia e uma “história midiá- tica”, especialmente jornalística, adotamos o termo “imaginação histórica”. A inspiração nasce do termo correlato “imaginação sociológica”, de Mills (1982 apud Barbosa e Ribeiro, 2011, p. 12), pensado como podendo ser substituído por “imaginação histórica”, isto é, como dada possibilidade imaginativa sobre o tempo. A adoção do substantivo “imagi- nação”, em vez de simplesmente falar em história, serve para tentar reduzir eventuais constrangimentos ao associar história a uma dimensão não científica, que incorpora tanto o senso comum quanto a ficção. A imaginação histórica seria, portanto,

uma percepção que consiga dar conta do complexo jogo que se processa entre os homens e a sociedade, a biografia e a história, o eu e o mundo; uma sensibilidade capaz de relacionar as micro e macroestruturas, de compreender os cenários mais amplos em termos de seus significados para a vida íntima das pessoas. (Ribeiro e Barbosa, 2011, p. 18)

O termo “imaginação histórica” também aparece em White (2008) e pretendemos seguir sua linha de raciocínio ao aceitar que a consciência histórica é produzida pelos indivíduos também a partir de uma experiência estética. Enquanto White se preocupa fundamentalmente com a forma narrativa de apresentação do texto historiográfico e com certas formatações idológicas que decorrem desses modos de apreensão da reali- dade (os tropos da linguagem) - ironia, metáfora, comédia, sátira, tragédia, romance e metonímia -, vamos levar em conta a contribuição da presença do jornalismo no coti- diano do público, como experiência narrativa e, portanto, como forma de estabelecer uma relação com sua própria história. Portanto, do ponto de vista de sua contribuição epistemológica, a pesquisa integra a perspectiva de uma poética do jornalismo como modo de contribuição para uma imaginação histórica, assumindo um lugar de interface entre Comunicação e História. O compromisso com a verdade une os ofícios dos dois profissionais – o historia- dor e o jornalista -, ainda que ambos se dediquem majoritariamente5 a temporalidades diferentes – presente e passado - e que façam uso de metodologias de trabalho pró- prias. Por outro lado, a experiência do tempo segundo o qual prevalece excessivamente o presente, o “presentismo” de Hartog (2014), parece tributário em grande parte da imersão do sujeito contemporâneo na lógica noticiosa e de consumo acelerado de nar- rativas midiáticas. Digamos que vivemos historicamente imersos em certas condições comunicacionais, regidas por certas temporalidades, as quais Hartog (2013) chamava

5. Em outro estudo (Matheus, 2011), concluímos que nem a História se priva do diálogo com o presente, nem o jornalismo deixa de possuir uma dimensão passada nas suas narrativas, mas optamos por não entrar nessa problematização aqui.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7292 “Furdunço” carioca e a imprensa dos subúrbios Leticia Cantarela Matheus de regimes de historicidade. Essas condições comunicacionais incluem não somente os recursos sociopolíticos, culturais e materiais de enunciação, mas também o poder de fazer circular e amplificar os enunciados, bem como as habilidades cognitivas dos sujeitos envolvidos nesses circuitos. Esse processo irá resultar, em última instância, na produção de sentido sobre a própria realidade. Os meios de comunicação são ferramen- tas que integram esse processo, de modos mais ou menos institucionalizados, e não se pode ignorar que os homens produzem história no mundo contemporâneo por meio de ações altamente mediadas tecnologicamente, culturalmente e economicamente, isto é, por isso que estamos genericamente chamando de mídia. Mas a história, embora se faça apenas no presente, não é feita apenas de presente. Paradoxalmente, ela depende de atos de comunicação com os mortos. Já os comunicólogos não podem fugir do presente, sob pena de perder o próprio posto de trabalho na disputada fábrica do pensamento social. E nenhum agente de comunicação depende tão integralmente de seu vínculo com o presente imediato do que o profissional de jornalismo. Servo da atualidade, o jornalista, entretanto, ajuda na elaboração de uma imaginação histórica que permite ao público compreender seu passado e seu presente e também a projetar futuros. Nesse sentido, o jornalista se aproxima do ofício do historiador, sobre- tudo do historiador de outras épocas, cuja função social já foi muito diferente daquela do cientista moderno. Existem muitas diferenças – e semelhanças – entre os dois traba- lhos, mas já houve tempo em que o historiador servia à sociedade como uma espécie de repórter do tempo presente. Essa concepção não foi totalmente apartada do trabalho do historiador, como um analista da realidade, embora tenha passado por alguns momentos de abandono dessa função, como quando se agarrou a uma perspectiva positivista do século XIX, viciado na narração dos fatos. Mas, certamente, o desempenho dessa função passa hoje pela mídia, tendo aí o jornalismo um estatuto comunicacional diferenciado. A pesquisa adota duas teorias narrativas para tentar compreender o papel do jor- nalismo na construção de uma imaginação histórica. A primeira, advinda de Ricoeur (1994), serve mais a uma base metodológica, mas existe um fundamento que a antecede que se encontra na teoria da narração de Walter Benjamin. (1994) A partir desse autor, pode-se dar o primeiro passo no entendimento da experiência histórica como experi- ência narrativa, o que aparecerá de forma exaustiva em Ricoeur. Neste último, a histó- ria aparecerá como historicidade (tempo) e representação do tempo (narrativa). Além disso, devido à proximidade com a perspectiva hermenêutica, que governa o ofício do historiador, e que marca a epistemologia das ciências sociais como um todo (Alberti, 1996), entende-se aqui que os sentidos, esse fruto do trabalho comunicativo, deverão ser buscados nos processos sociais nos quais diferentes atores se integram, seja de modo ativo seja sofrendo as ações comunicativas do outro. Essa perspectiva entra em acordo com a compreensão do passado como uma variação imaginativa do próprio presente, uma vez que é impossível acessar algo que não mais existe. Além disso, acreditamos, como Benjamin (1994), que o conhecimento, qualquer conhecimento, seja sobre o passado ou sobre o presente, só pode ser dialético. Isso significa que ele não se esgota numa suposta totalidade seja sobre o presente ou sobre o passado, mas deve ser uma experiência de se encontrar, de se reconhecer no passado e de distanciar dele. Portanto, tentaremos realizar uma experiência de conhecimento

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7293 “Furdunço” carioca e a imprensa dos subúrbios Leticia Cantarela Matheus sobre a construção da imaginação histórica sobre os subúrbios do Rio de Janeiro num tempo histórico diferente. Porém marcas da imaginação história estão impregnadas no próprio território caracterizado como subúrbio e nas páginas impressas dos jornais da época e em novos circuitos de comunicação que redimensionam os antigos circuitos. O conceito de experiência em Benjamin está relacionado, e até se confunde, ao de história. Para ele, uma história não alienada é aquela que pode ser contada por quem a experimentou, por quem possui de fato conhecimento sobre ela. Assim, pode-se per- guntar se existiria alguma contradição entre como os subúrbios apareciam no Jornal do Brasil e no Correio da Manhã, e nos semanários que circulavam nos suburbanos. Para Benjamin, fazer história e contar história são ações simultâneas e, eu acrescentaria, dar sentido à história e ao próprio processo de contar. Por essa razão, ao pensar a introdução dos meios de comunicação de massa, Benjamin enxergava uma ruptura entre o fazer e o contar a história, este último trabalho transferido então para mídia. Assim, segundo seu entendimento, a história contada pela mídia seria uma história alienada do fazer histórico e da própria comunidade, que justamente por isso teria seus laços comunitários enfraquecidos. Por isso, seu paradigma narrativo é a oralidade. Seu princípio apocalíptico estava baseado na preocupação com a alienação do homem em função de seu isolamento comunicacional. Como a narrativa não era mais construída em conjunto, a partir de uma experiência comunitária comum, então o indi- víduo seria obrigado a confiar na mídia. Como se fosse o fim da história, pela impossi- bilidade de se construir junto a narrativa. Daí o temor pela desorientação do indivíduo no mundo moderno do capitalismo industrial. A lição moral, o conselho, era para ele uma espécie de coautoria na vida. Estariam o morador e os comerciantes dos subúrbios melhor capacitados para narrar sua própria história em lugar da grande imprensa? Seria a representação (ou a narrativa) de uma questão de lugar? Sabemos que a imprensa suburbana não era homogênea (Mendonça, 2014) e que, segundo pesquisa exploratória, alguns dos periódicos que vamos estudar não traduziam o que imaginávamos inicial- mente: uma imprensa engajada na melhoria da qualidade de vida daqueles lugares. Muitos não tinham esse compromisso editorial, preferindo exibir a ilustração do homem suburbano e afirmar sua integração à modernidade do resto da cidade. Por outro lado, também supomos que vamos encontrar uma pluralidade de subúrbios possíveis nas colunas do Jornal do Brasil e do Correio da Manhã. E, mais ainda, hoje, quando lançamos nosso olhar para o passado, partimos de uma infinidade de preconceitos cristalizados em nosso imaginário sobre esse “velho Oeste carioca” ou esse “sertão urbano” e que hoje pode ser chamado de um verdadeiro ‘furdunço’.6 Segundo Gagnebin, no prefácio de Benjamin no Brasil, a citação que ele faz a Heró- doto fala de uma polarização entre dois modos de contar a história. Como Heródoto coletou narrativas dispersas, sem a preocupação em fechar um sentido, como Tucídides faria, ele teria servido de modelo para Benjamin pensar algo parecido ao que Eco definiria como obra aberta, especialmente pelo fato de o encadeamento narrativo em direção a

6. Refere-se a uma dança movimentada, mas o termo é usado como sinônimo de confusão, desordem. A adoção do substantivo, no título deste trabalho, é uma referência ao comentário de uma usuária do Facebook, no perfil de Augusto Malta, sobre uma fotografia de 1930 da Rua Aurélio de Figueiredo, no bairro de Campo Grande, na Zona Oeste do Rio: “Hoje isso é um ‘furdunço’! Uma pena!”

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7294 “Furdunço” carioca e a imprensa dos subúrbios Leticia Cantarela Matheus um sentido fim se daria pela continuidade do relato, por uma “dinâmica ilimitada de memória” (Gagnebin in Benjamin, 1994, p. 13), mas também pela operação de interpre- tação. Sob essa perspectiva, Heródoto deveria ser considerado muito mais um cronista do que historiador no sentido do senso comum. Nesse sentido, ele se assemelharia ao jornalista, um contador do cotidiano. Esse entendimento permite questionar se as práti- cas jornalísticas são próprias do seu tempo, e se encontram ou não em outro regime de narratividade. Estaríamos, portanto, comparando coisas diferentes, mas, aceitando que se trata de modalidades diversas de experiências narrativas, é segundo essa condição diferencial com a qual serão tratadas. Ainda segundo Gagnebin, quando a experiência coletiva se perde, isto é, quando a comunicação passa a ser altamente mediada, outras narratividades tomam forma e ganham a cena, entre elas, por exemplo, o romance e o jornalismo. “Os dois têm em comum a necessidade de encontrar uma explicação para o acontecimento, real ou fic- cional.” (id. ibid., p. 14). Dentro desse quadro, é possível pensar que tipo de sentido de subúrbio está sendo recuperado e o quanto essas histórias são reelaborações idealizadas. A principal hipó- tese é que se, muitas vezes, hoje, o subúrbio é contado nos jornais como o lugar da falta, como lugar marginal, para fazer referência às margens das ferrovias, essa representação vem de uma longa construção de desigualdade desde a grande imprensa do início do século XX. Por outro lado, adotamos a hipótese antitética de que encontraremos uma diversidade de modos de representação desses subúrbios na imprensa suburbana. A construção da metodologia para esta pesquisa deriva da teoria narrativa de Paul Ricoeur (1994). O primeiro passo é produzir uma análise de conteúdo dos jornais estuda- dos. No caso da imprensa suburbana, como as coleções são pequenas, será possível ler e estudar todos os exemplares que circularam no intervalo entre 1900 e 1920. Sabemos que havia muitas outras publicações pelos subúrbios desde pelo menos 1880 (Mendonça, 2014), mas optamos por enfocar as primeiras duas décadas do século XX pelo fato de o período coincidir com as reformas de Pereira Passos da área central da cidade, circuns- tância que servirá de baliza e fonte de problematização. Essas coleções se encontram na Fundação Biblioteca Nacional, parte no Setor de Obras Raras e outra parte digitalizada e disponível na Hemeroteca Digital Brasileira. Algumas não são extensas, uma vez que esses semanários e revistas literárias circularam durante poucos anos, obedecendo talvez ao propósito comum na cultura jornalística ainda remanescente na época de usar a imprensa para fins políticos que, uma vez obti- dos, tornavam a atividade impressora obsoleta. (Barbosa, 2007) Também é possível que esses impressores não conseguissem manter financeiramente sua empreitada, já que, de modo geral, contavam apenas com anunciantes de pequeno porte, comerciantes locais. De qualquer modo, eles servem como vestígio (Barbosa, 2013) de um processo comuni- cacional no passado. O mesmo será feito por amostragem com as colunas “Subúrbios” e “Queixas do Povo” do Jornal do Brasil e “Pelos Subúrbios” do Correio da Manhã. O segundo passo é aplicar esse conteúdo selecionado um quadro metodológico composto a partir de Aristóteles, para pensar: quais as principais unidades de ação dessas histórias, quais suas peripécias (acontecimentos que alteram o sentido narrativo), quais os principais personagens que agem e que sofrem as ações, quais as estruturas

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7295 “Furdunço” carioca e a imprensa dos subúrbios Leticia Cantarela Matheus temporais utilizadas (linear, circular, fragmentada etc), como o subúrbio é caracteri- zado e por quem. Com esse material bruto em mãos, que se reduz a uma análise de texto, partimos então para a primeira confrontação, ainda em termos textuais: a comparação entre as linhas gerais dessas histórias nos semanários suburbanos e nas colunas do Jornal do Brasil e do Correio da Manhã. Finalmente, partiremos para a confrontação final com a “realidade”, obviamente, entendida como um conjunto de interpretações sobre o passa- do. Essa última etapa reenvia os resultados da análise textual às narrativas vivas, como propõe Ricoeur (1994). Isto é, tentaremos reconectar a linguagem ao mundo concreto, às condições históricas de significação daquele espaço social chamado subúrbio. Isso será feito pela comparação com a literatura historiográfica referente ao período, espe- cialmente usando Mendonça (2014) e outros historiadores que se dedicaram ao tema do subúrbio e de historiadores da imprensa, como Barbosa (passim). Assim, será possível compreender os limites históricos da ação comunicativa daqueles homens mas também sua inteligência para reinventar simbolicamente seu mundo. É nessa última fase de análise que de fato entra Ricoeur (1994) com sua teoria nar- rativa, que funciona como metáfora para o processo comunicacional. A narrativa, para ele, é a colocação das ações humanas na duração e, por isso, pressupõe a comunicação como processo. Na sua base está a ideia de tripla presença da mimese nas ações humanas: como mundo prefigurado, isto é, como repertório de conhecimento prévio que permite e aciona certos referenciais a partir dos quais se produzirá a narrativa; como configuração no enredo em si; e como ação de interpretação dessas mensagens, isto é, de conexão do texto com o mundo. Portanto, para Ricoeur (ibid.), o problema da referência da lingua- gem não se encontra exclusivamente no mundo pressuposto a ser representado, mas no mundo projetado pela ação instaurada a partir do texto. Para ele, o sentido da narrativa está na sua frente, no futuro, não no passado. Essa perspectiva entende o fechamento do ciclo de sentido, ou do arco hermenêutico, pela ação do leitor. Desse modo, essa visão ampla sobre a narrativa, não como um gênero, mas como uma teoria comunica- cional, privilegia a ideia do circuito posto no tempo, isto é, a ideia do processo. Assim, as marcas da comunicação do passado se tornam vestígios de processos de produção de sentido que se deram no passado, irrecuperáveis na sua integralidade obviamente, e sem garantias, pois se trata de um conhecimento essencialmente interpretativo, mas que também projetam conhecimento sobre nossas ações de significar o presente.

ALGUMAS INTENÇÕES Moradores dos subúrbios participaram a seu modo do boom do periodismo no início do século XX, quando, segundo Damázio (1996), mais de 60% da população lia jornais no Rio de Janeiro, e a grande imprensa possuía tiragem relativa impressionante se comparada ao contexto atual. Segundo Mendonça (2014), a experiência de publicação dessa imprensa suburbana encontra três linhas explicativas gerais. Um primeiro grupo se caracterizaria pela necessidade de exibir refinamento e de tentar se aproximar, através da prática impressa, de um ideal de Bélle Èpoque alardeado pela grande imprensa em relação às regiões mais chics da cidade. Os jornais desse segmento não costumavam evidenciar seu endereço de publicação nos títulos. Não havia referência explícita ao

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7296 “Furdunço” carioca e a imprensa dos subúrbios Leticia Cantarela Matheus pertencer aos subúrbios, como num jogo de representação às avessas, como se dissessem “Eu me autorrepresento reivindicando similaridade ao outro.” Por isso, não importava destacar sua área de circulação. Como não reivindicaram uma identidade suburbana, tinham nomes genéricos como Lux ou O Scenário ou O Condor, o que não significa que não destacassem e promovessem os talentos de seus moradores e a inteligência subur- bana. Eram fundamentalmente impressos literários. Um segundo grupo de jornais, mais amplamente estudados, refere-se à luta operária, já que os subúrbios cariocas foram importantes pontos de industrialização no Estado do Rio, onde ficavam principalmente as fábricas da indústria têxtil. Nesse caso, a preocu- pação era com os direitos dos trabalhadores e com seu bem estar, independentemente do local de moradia, mas seus principais militantes eram dos subúrbios. Finalmente, um terceiro conjunto de periódicos e que constitui o corpus desta pes- quisa, tinha como proposta reivindicar melhorias infraestruturais semelhantes aos que eram dispensados à região central. Neste caso, os jornais acentuavam no título seu pertencimento aos bairros do subúrbio e denunciavam investimentos desnivelados entre as diferentes regiões da cidade bem como o que chamavam de estado de abandono dos subúrbios. Esse grupo defendia o que identificavam como interesses locais, demandando um tratamento igualitário relação ao restante da cidade. Apesar de anunciarem esta- belecer um diálogo com “todo e qualquer leitor, seja do subúrbio ou não” (Mendonça, 2014, p. 51), a produção era resguardada para os moradores dos subúrbios. Entre eles, inclusive aqueles que já trabalhavam na grande imprensa, como José Roberto Vieira de Mello, que era redator do Correio da Noite (proprietário da Gazeta Suburbana e da Revista Suburbana), os irmãos Benjamin e Eduardo Magalhães, que assinavam a coluna “Nos Subúrbios” do jornal A Época (proprietários do semanário O Suburbano), Pinto Machado, ligado ao movimento operário, que atuou na seção suburbana do jornal A Tribuna (foi diretor do Echo Suburbano e escrevia para a Revista Suburbana) e Ernesto Nogueirol, que trabalhou no Jornal do Brasil (era colaborador do Echo Suburbano), segundo Mendonça (2014, pp. 56-57). Aparentemente, esses homens entendiam sua inserção na impren- sa como uma ação estratégica para a defesa dos seus ideais e tentavam espraiar sua presença o máximo possível, fosse na grande imprensa, fosse na suburbana, o que às vezes podia causar diferentes conflitos de interesse. De qualquer modo, fica claro que eles não se contentavam com os grandes jornais e acreditavam na necessidade de abrir outras frentes de diálogo, reproduzindo ou não um modelo jornalístico similar ao da imprensa de referência da época. Para tentar criar e manter vínculo com seu público, eles criaram uma rede de cola- boradores, que podiam enviar tanto artigos de fundo quanto “notas informativas, entre- vistas e reportagens que valorizassem aspectos cotidianos da cidade”. (Mendonça, 2014, p. 54) Essa rede de repórteres extrapolava os limites do próprio bairro, privilegiando a circunscrição mais ampla dos subúrbios. Assim, cobriam desde as ações da Prefeitu- ra naquela região até casamentos, aniversários, formaturas e festas em clubes, dando visibilidade à vida da população local. A colaboração para a sobrevivência dos jornais também se dava pela assinatura e pela aquisição de espaço publicitário pelos comercian- tes locais. Do ponto de vista editorial, havia uma divisão: alguns se assumiam políticos e outros tentavam se mostrar como modernos, vinculados à prática da imparcialidade.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7297 “Furdunço” carioca e a imprensa dos subúrbios Leticia Cantarela Matheus

CONSIDERAÇÕES FINAIS Do ponto de vista da hierarquia dos espaços, esse terceiro grupo parece mais inte- ressante, pois traz o problema da reivindicação de identidade, da opção estratégica de defesa dos interesses locais por meio da circulação de folhas periódicas nesses mesmos locais, bem como a própria definição em torno que fossem esses interesses. Esse conjunto de jornais pode ajudar a entender as escolhas estratégicas de comunicação e de ação sobre a própria história por meio de práticas jornalísticas. Ao mesmo tempo, pareceria haver nessa iniciativa uma demanda por integrar um processo de modernização em curso na cidade. Assim, a imprensa funcionava como mais uma ferramenta da moder- nidade. Mas, independentemente de esses homens terem ou não obtido sucesso nas suas reivindicações, só o fato de tentarem se colocar como representantes dos subúrbios já era alguma forma de estabelecer poder.

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7298 Mídia & Memória: a grande festa religiosa do Círio de Nazaré no século XIX

P h i l l i pp e S e n da s d e Pau l a F e r n a n d e s 1

Resumo: Festa religiosa realizada anualmente em Belém do Pará, na Amazônia brasileira, desde 1793, o Círio de Nossa Senhora de Nazaré foi reconhecido Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO em 2013. A tradição e a importância cultural da festa geram uma intensa movimentação nos veículos de comunicação do Pará. Diante dessa relação, nos debruçamos na imprensa escrita de Belém no século XIX para compreender a contribuição dos principais jornais na construção da memória dessa festa religiosa. Seguimos a proposta metodológica de Schudson (1993), que analisa a relação entre os meios de comunicação e as mudanças sociais. Para isso, seis jornais foram definidos para análise com uma estruturação teórica baseada em discussões sobre os lugares de memória (Nora, 1993), o caráter social da memória (Halbwachs, 2003) e as disputas na sua constituição e manutenção (Pollak, 1989, 1992). Dos jornais Treze de Maio (1840), Diário do Gram-Pará (1853), A Epocha (1858), Diário de Belém (1868), A Província do Pará (1876) e O Apologista Christão Brazileiro (1890) encontram-se notas de leilões e pequenos anúncios, louvores à “festa popular do povo paraense” e críticas à “idolatria de iludidos”, mas, acima de tudo, identifica- se o começo da construção da memória do Círio na mídia. Palavras-Chave: Jornais. Memória. Círio de Nazaré. Amazônia.

Abstract: The Cirio of Our Lady of Nazareth is a Roman Catholic festivity celebrated yearly in Belem, Para state, Brazil, since 1793. The cultural relevance of the festivity intensely mobilizes Media actors in Para. Thus, this article analyzes print media samples published in Belem during the 19th century, seeking to comprehend the contribution of the main local newspapers to the construction of the memory on “The Cirio”. We follow the methods proposed by Schudson (1993), who analyzes the relation among communications media and social changes. Six newspapers were chosen for analysis, following a theoretical structure based on notions such as places of memory (Nora, 1993), social memory (Halbwachs, 2003) and the disputes involving those willing to construct and keep such memories (Pollak, 1989, 1992). From the six chosen newspapers – Treze de Maio (1840), Diario do Gram-Pará (1853), A Epocha (1858), Diario de Belém (1868), A Provincia do Pará (1876) and O Apologista Christao Brazileiro (1890) – we extract notes and small advertisements, as much as praises to the “popular party of the people from Para” and criticisms to the “idolatry of the fools”. But, above all that, we identify the beginning of the constructions of the memory of the Cirio by media. Keywords: Newspapers. Memory. Cirio of Nazareth. Amazon.

1. Jornalista formado pela UFPA e estudante de mestrado da ECO-Pós/UFRJ. E-mail: [email protected].

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7299 Mídia & Memória: a grande festa religiosa do Círio de Nazaré no século XIX Phillippe Sendas de Paula Fernandes

NO MÊS DE OUTUBRO, EM BELÉM DO PARÁ... A CAPITAL paraense, em outubro, nota-se pela cobertura especial da mídia dedicada ao Círio de Nazaré, que Belém vive o seu momento de mais intensa Nmovimentação do ano. São 12 romarias oficiais, além de eventos paralelos que celebram o lado profano da festa, sempre homenageando Nossa Senhora de Nazaré, considerada Padroeira dos Paraenses e Rainha da Amazônia. Em 1700, Plácido José de Souza encontra a pequena imagem de Nossa Senhora de Nazaré e lhe dedica o primeiro abrigo. Era o começo de uma história de devoção que, nos dias de hoje, é marcada pela grandiosidade da procissão do Círio de Nazaré que chega a reunir dois milhões de pessoas. Em 1822, Filippe Patroni, estudante de Direito na Universidade de Coimbra, Portugal, inaugura a imprensa no Norte do país com o jornal O Paraense. A primeira edição estampava em sua primeira página as conquistas da Revolução Constitucionalista de Portugal em 1820, destacando a liberdade de impren- sa. O início da devoção à Virgem de Nazaré em Belém e o início da imprensa no Pará: tempos distintos, mas relações firmadas desde as primeiras décadas do século XIX. A proposta deste trabalho é refletir sobre a contribuição dos jornais, editados e publicados em Belém durante o século XIX, na construção da memória do Círio de Nazaré. Para o desenvolvimento da proposta geral, recorremos a fontes bibliográficas e documentais para pensar a produção periódica da capital paraense no referido período, considerando as condições institucionais e histórico-sociais que envolveram a realização das atividades desses jornais, como orientam Marialva Barbosa e Ana Paula Goulart Ribeiro (2011, p.19). Sobre a orientação metodológica, consideramos Michael Schudson (1993), que apre- senta três categorias possíveis de serem utilizadas quando se define como objeto de análise a mídia, sob um enfoque histórico, considerada como prática social e forma cultural. Neste caso definimos a categoria história propriamente dita, que “trata de lo que la comunicación nos dice acerca de la sociedad y lo que la sociedad nos cuenta de la comunicación o ambas cosas a la vez” (Schudson, 1993, p. 214). Em outras palavras, traba- lhamos a relação dos meios de comunicação com a história cultural, política, econômica ou social de um determinado lugar, refletindo sobre as influências das mudanças sociais na mídia e vice-versa. Como o período definido é o século XIX, três fases da imprensa de Belém foram definidas: a) Décadas de 1820-1830: surge a imprensa no Norte do país quando se publica o jornal O Paraense, em maio de 1822. Recorremos ao jornal Treze de Maio, publicado a partir de 13 de maio de 1840, único jornal disponível para consulta nessa fase. b) Décadas de 1840-1850: as primeiras folhas diárias da imprensa paraense são criadas.. Três periódicos foram levados em consideração: Treze de Maio, criado em 1840, se tornou diário e encerrou suas atividades em 1862; Diário do Gram-Pará, publicado em 1853 e primeiro jornal diário da Província; e A Epocha, publicado em 1858, com uma duração menor em relação aos outros dois jornais, mas também de produção diária. c) Décadas de 1880-1890: época de transformações urbanas que Belém vivenciou na virada do século XIX para o século XX, refletindo mudanças também na mídia impressa. Buscamos o jornal A Província do Pará, o mais duradouro jornal já publicado no Pará, que iniciou suas atividades em 1876 e encerrou no início dos anos 2000; Diário de Belém,

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7300 Mídia & Memória: a grande festa religiosa do Círio de Nazaré no século XIX Phillippe Sendas de Paula Fernandes que começou a ser publicado em 1868 com duração até o final da década de 1890; e o periódico mensal O Apologista Christão Brazileiro, publicado inicialmente em 1890, sem data específica de encerramento, marcado por linha editorial de forte crítica em relação às questões da Igreja Católica. Os seis jornais, além das características editoriais e da importância no cenário jornalístico da imprensa de Belém no século XIX, foram definidos também por pos- suírem edições disponíveis para consulta nos dois lugares utilizados para a coleta de informações: o setor de jornais microfilmados da Biblioteca Pública Arthur Vianna, em Belém, e o acervo da Biblioteca Nacional Digital, da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

MEMÓRIA: PARTILHAS TEÓRICAS Para discutir memória, deparamo-nos com diferentes abordagens de teóricos das diferentes áreas do saber. Diante dessa extensão e como não temos a proposta de desen- volver um estudo teórico sobre o tema, vamos nos deter a alguns conceitos que auxiliam na compreensão de aspectos identificados na análise dos jornais. Quando falamos de memória não se pode deixar de relacioná-la com a construção de narrativas, já que é a partir dela que o processo envolvendo o enquadramento da memória se realiza. E se um dos pontos aqui abordados é a construção de narrativas, também não há como escapar do trabalho da mídia. Marialva Barbosa (2007, p. 18) destaca que é a partir das narrativas que se reúne e se representa no discurso as várias perspectivas sobre o tempo. E os jornais, como materialidade do passado, desenvolveram suas narrativas, registraram seus discursos nas páginas impressas e resguardaram os acontecimentos de determinado lugar, em determinado tempo. Em uma análise ancorada na Psicologia e na Sociologia, Maurice Halbwachs (2003) apresenta as diferenças entre as memórias individual, histórica e coletiva. Sobre as duas primeiras, ele sustenta que a memória é uma construção social e as representações que são evocadas pela memória individual, seriam uma forma de conscientização da própria representação coletiva. Em contrapartida, a memória coletiva se estabelece somente a partir da relação e do contato entre as diversas memórias individuais que integram o grupo identificado como proprietário dessa memória, como também iden- tifica Enne (2004, p. 3). Halbwachs (2003, p. 100) critica a expressão “memória histórica” já que existem várias memórias coletivas, vinculadas às diferentes memórias individuais, e o termo nos dá a noção de história única quando, na verdade, existem registros de determinados fatos em detrimento de outros, mas esses fatos não registrados ainda podem permanecer resguardados nas memórias dos que integram diversos grupos. O exercício da história é uma disputa, assim como a própria construção da memória. O caráter opressor da memória coletiva nacional é um dos temas abordados por Michael Pollak (1989, p. 4), que destaca a necessidade de um estudo da memória que considere os processos e atores que intervêm no trabalho de constituição e formalização das memórias. Surge, então, o conceito de “memória subterrânea” vinculado à memó- ria de grupos excluídos que não integra aquilo definido como oficial. Diante disso, a memória é marcada constantemente por disputas e conflitos na sua constituição e/ou

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7301 Mídia & Memória: a grande festa religiosa do Círio de Nazaré no século XIX Phillippe Sendas de Paula Fernandes manutenção por meio de “enquadramentos”. Nas palavras de Pollak (1992, p. 4-9), “a memória é seletiva, nem tudo fica gravado, nem tudo fica registrado”. Esses enquadra- mentos de memória podem servir como garantia dos interesses de determinados grupos e instituições que integram a sociedade, preocupados em manter certas lembranças e esquecer outras. São eles que definem os “sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais” entre as diferentes coletividades. Essa constituição de sentimentos de perten- cimento estabelece a relação direta existente entre memória e identidade, que também se assemelham por estarem envolvidas em processos de construção de sentidos. Os processos de negociação também são identificados nos jornais. Os periódicos possuem critérios para transformar determinados fatos em acontecimentos diante da impossibilidade de se registrar tudo e da relevância do que merece ser registrado. Tal qual a memória, o exercício do jornalismo é seletivo: nem tudo irá para as páginas dos jornais, nem tudo merecerá ser lido e lembrado. Pierre Nora (1993) trabalha o conceito de lugar de memória, mas não menciona diretamente os jornais. Entretanto, pesquisadores apontam a mídia, em especial os jornais, como espaços privilegiados de produção de memória, contando com características semelhantes às dos lugares de memória. Segundo Nora (1993), os lugares de memória se configuram como lugares que vão do objeto material ao simbólico e funcional: podem ser monumentos, documentos, arquivos, ideias e instituições que devem possuir uma vontade de memória, ou seja, necessitam desenvolver um trabalho memorialista para garantir a sua identidade. Ele destaca que os lugares de memória são constituídos por um jogo de memória e de história, na rela- ção entre aquilo que foi vivido, caracterizando a memória, e a reconstrução intelectual da mesma, configurando a história. Na ausência de meios para resgatar determinados fatos, a continuidade da memória passa a ser garantida a partir da construção desses lugares, que não se limitam apenas ao objeto concreto, mas ganham importância com o valor simbólico de que são revestidos. Se os lugares de memória vão ser identificados como locais em que se fixa a memória de certos grupos e também como uma maneira de apreendê-la, é inevitável não men- cionar o processo de construção da memória e da identidade social a partir do trabalho narrativo da mídia. Michelle de Oliveira (2008, p. 2) afirma que a construção da narrativa modela a memória e a identidade social, ordenando seus elementos, e é nessa atuação que grupos buscam agir para legitimarem seus discursos e versões históricas. É possí- vel estabelecermos uma relação entre o enquadramento e a construção da memória na mídia impressa. Os jornais, além da produção e difusão dos acontecimentos por meio de formas simbólicas, passam a arquivá-los em sua materialidade.

NA PROCISSÃO, A MÍDIA; NA MÍDIA, A PROCISSÃO Em outubro, na capital do Pará, o Círio de Nazaré é o assunto que predomina na mídia. As principais folhas dedicam cadernos, reportagens especiais, notícias diárias sobre os preparativos da festa religiosa, mosaicos de fotos abordando os aspectos da grande romaria e outros temas. A Figura 1 apresenta as capas de O Liberal e do Diário do Pará, os dois principais do Estado, fundados em 1946 e 1982, respectivamente. No dia 14 de outubro de 2012, segundo domingo de outubro que marca a realização da procis- são do Círio, os dois jornais trouxeram as suas primeiras páginas muito semelhantes

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(inclusive com o mesmo patrocinador): a fotografia da imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré toma conta da página inteira de cada jornal. A diferença está na montagem da capa: enquanto O Liberal recorre ao fundo azul com rosas em torno da imagem, o Diário coloca a réplica da imagem da santa encontrada por Plácido em meio de uma vegetação, o que nos leva a estabelecer uma referência ao local do achado da Virgem de Nazaré nos idos de 1700.

Figura 1. Capas das edições especiais Círio de Nazaré dos jornais O Liberal e Diário do Pará, publicadas em 14/10/2012.

Entre o pedido de bênção e saudação à “Mãe da Amazônia”, os dois jornais apresen- tam uma prática que já é comum aos principais periódicos e revistas da cidade quando se trata de Círio de Nazaré. Regina Alves (2012, p. 107) afirma que edições especiais para o dia do Círio começaram a aparecer na década de 1960 e se intensificaram em 1970. A partir daí, o trabalho em torno da manifestação religiosa passa a ser mais detalhado e conta com entrevistas de sociólogos, antropólogos e historiadores. A prática, ao longo do tempo, passou a ser realizada recorrendo às tecnologias de impressão e diagramação que também se desenvolveram.

O começo da imprensa: pouco Círio, muita política Na capital da Província do Grão-Pará, entre as décadas de 1820 e 1830, circularam 40 jornais editados e impressos em Belém. Com o surgimento do jornal O Paraense, a cidade presenciara o aparecimento de outros periódicos com posicionamentos editoriais

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7303 Mídia & Memória: a grande festa religiosa do Círio de Nazaré no século XIX Phillippe Sendas de Paula Fernandes distintos, mas tendo em comum as limitações técnicas de produção das folhas na época. Em meio a essas publicações, nos deparamos com jornais de periodicidade semanal, bissemanal, mensal, com apenas uma edição ou ainda sem periodicidade definida. Entretanto, poucos periódicos na época conseguiram permanecer em funcionamento por mais tempo. Neste caso, merece destaque o jornal Treze de Maio, publicado entre 1840 e 1862, considerado a publicação de mais longa duração do Pará antes da metade do século XIX (Biblioteca Pública do Pará, 1985). Falamos aqui de um período inicial da imprensa paraense, momento em que a configuração da própria imprensa brasileira ainda busca se constituir. Os princípios jornalísticos são outros, se é que já existiam de forma clara e definida. A relação com o leitor também era outra. Num país de poucos letrados, a custosa produção de um jornal passa a ter relevância na atuação política que se propunha. Apesar dos poucos vestígios, não podemos deixar de considerar esse período prin- cipalmente por identificar no jornal Treze de Maio as primeiras abordagens em torno do Círio de Nazaré. Honório José dos Santos fundou, em 1840, o jornal que era impresso na tipografia de Santos & Menor. Envolto pelas tensões sociais da época, o periódico oficial e conservador recebe esse título em homenagem ao dia em que as ditas “tropas da legalidade” derrotaram os cabanos na capital da Província do Grão-Pará, exatamente no dia 13 de maio de 1836. O periódico teve seu último número publicado no dia 31 de outubro de 1862 (Biblioteca Pública do Pará, 1985, p. 28). Em 19 de setembro de 1840, o Treze de Maio registrou em sua penúltima página (de oito no total) um aviso sobre a realização do Círio de Nossa Senhora de Nazaré. O relato é precedido da frase “O Procurador da Irmandade de N. S. de Nazareth do Desterro, pede-nos a inserção do seguinte”. O texto se tratava de um pedido por parte dos respon- sáveis pela organização da festa religiosa na época. No jornal estava publicada na íntegra a transcrição minuciosa do procurador da Irmandade sobre a maneira como se daria o Círio de Nazaré em 1840. Não era um texto de responsabilidade dos redatores. Esse tipo de prática pode ser considerado comum nos jornais publicados nas primeiras décadas da imprensa paraense, aliás, característica identificada em diversos periódicos do país até meados do século XIX, momento em que a interferência de redatores nas publica- ções se percebe com maior evidência, no entanto, as transcrições de órgãos públicos e instituições religiosas ainda se mantêm na configuração do conteúdo desses jornais. No que diz respeito à nota sobre os preparativos, as definições do percurso e os atrativos do Arraial para o Círio em 1840, identifica-se a descrição voltada para o regozijo da festa religiosa pelo povo paraense, assim como a importância e o prestígio que ela recebe, ao longo do tempo, por autoridades da época, como o Presidente da Província do Pará, João Antônio Miranda, e o Comandante das Armas, Coronel Marcos Antônio Brício.

[...] O Socego, a satisfaçaõ de que goza o Povo Paraense, e a confiança e coadjuvaçaõ, que tanto teem prestado os Exmos. Srs. Presidente da Província Doutor João Antonio de Miranda, e Commandante das Armas o Coronel Marcos Antonio Brício, grande importancia e influencia daõ a magnífica festa, que [?] descrever, e que terá lugar no arraial de Nossa Senhora de Nazareth do Desterro, para que a vista do que se expende venham assistir, e desfruta-la todos os habitantes desta Provincia (Jornal Treze de Maio, 19/09/1840, p. 7).

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No trecho, citado tal como fora publicado, se percebe a referência à importância que o evento religioso vinha alcançando diante dos governantes da época. Além disso, a apresentação dos detalhes sobre a festa seguia mencionando a realização da procissão no dia 30 de setembro daquele ano. O espetáculo pirotécnico para a procissão estava garantido graças à doação de girândolas – estrutura composta por explosivos, espécie de fogos de artifícios – por parte do Presidente da Província, considerado um “protetor da Festa”. É importante mencionar que as girândolas são mencionadas diversas vezes nas notícias em torno do Círio de Nazaré durante o século XIX. No dia 26 de setembro de 1840, apenas quatro dias antes da realização da procissão do Círio de Nazaré, a menção em torno da festa é muito mais limitada, sem a descrição de inúmeros detalhes como assim foram apresentados na edição de 19 de setembro. Contudo, com a proximidade da romaria, os preparativos para a festividade passaram a merecer registro na publicação. É interessante, neste caso, a informação sobre a inau- guração de um obelisco de Nazaré, no dia 29 de setembro, véspera do Círio, apresentada em uma seção específica do jornal: “Notícia”. Partimos do pressuposto que o monumento estivesse sendo inaugurado como forma comemorativa para o Círio de Nossa Senhora de Nazaré daquele ano. Não se trata mais de uma transcrição de informações emitidas pela Irmandade, mas uma proposta do próprio periódico em registrar a movimentação e homenagens em torno dos festejos de Nazaré. Neste primeiro momento, percebe-se a maior afluência de informações voltadas para questões políticas e econômicas da Província do Pará nos principais jornais publicados em Belém nas primeiras décadas do século XIX, marcado pelo surgimento da produção periódica na região Norte. Contudo, apesar da limitação de material do período, recor- rendo ao duradouro jornal Treze de Maio identificamos descrições sobre a programação religiosa e profana da Festa de Nazaré, recorrendo a transcrições de textos oficiais, res- saltando o esplendor do evento, a importância que o mesmo vinha alcançando diante das autoridades e a exigência da ordem na realização das atividades. São os primeiros passos de uma construção da memória do Círio de Nazaré pelos jornais, voltada para o caráter grandioso da festa e a movimentação na cidade.

Surgem os jornais diários, aumentam as notas sobre a festa A produção periódica do Brasil, em meados do século XIX, é marcada pelo declínio daquela imprensa política e pela ascensão de uma imprensa literária, tema que antes era reservado apenas aos jornais especializados. De maneira geral, na imprensa do Brasil de meados do século XIX, artigos oficiais, anúncios, relatos de atas, leis e discursos, notí- cias envolvendo economia, política e a movimentação portuária vão integrar os jornais que, em sua maioria, contavam com quatro páginas e quatro colunas (Barbosa, 2010, p. 50). Partindo para a imprensa paraense, que possui características semelhantes, esse momento marca o aparecimento de muitas folhas, com uma sobrevida mais prolongada, se comparada às primeiras publicações, e também com postura editorial voltada para assuntos específicos como religião, a moral da sociedade, agricultura, artes, humor, literatura e ciência. Foi no dia 10 de abril de 1853 que a imprensa do Pará conheceu seu primeiro jornal diário: o Diário do Gram-Pará.

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Montarroyos (1992, p. 11) aponta que, para o financiamento da Festa de Nazaré, os diretores da Irmandade recorriam à imprensa desde o mês de julho para publicar a chegada das “sortes” – se referindo aos jogos de loteria dedicados ao evento religioso – e dos leilões. Nas páginas dos jornais reservadas para os anúncios, lá constavam a venda de chapéus importados, de calças de casimira e de sobrecasacas, por exem- plo, que chegaram à cidade somente por ocasião do Círio de Nazaré. Entre os avisos publicados nos jornais, os divertimentos também não ficavam de fora. Na edição de 15 de agosto de 1845, o jornal Treze de Maio, na seção “Avizos”, além de convocar as famílias paraenses para participarem de mais um leilão na véspera do Círio de Nazaré, destaca que os próximos dias serão marcados por espetáculos, ressaltando a apresentação do Circo Olympico. É interessante notar que, apesar de estarmos nos referindo a meados do século XIX, pequenas ilustrações já fazem parte das publica- ções da imprensa. No Diário do Gram-Pará, pouco muda em relação ao registrado pelo jornal Treze de Maio. O Diário reserva também as seções de avisos, anúncios e vendas para o Círio de Nazaré. No entanto, em 1857, na edição do dia 24 de outubro, o Diário chama a atenção para algo que “nunca se tinha visto” no Arraial de Nazaré: registrava-se algo extraordinário, de algo que, segundo a publicação, impressionaria qualquer um. Na página 4, entre os “Avizos Diversos”, o periódico destaca a barraca de José Passari- nho, no Arraial. Era lá que se encontrava o osso de um monstro marinho e o jornal convocava todos os amantes de antiguidades para apreciar a peça, sob o preço de 200 réis. Dos programas da festa e da movimentação do comércio da cidade na época, o Diário aborda novas questões sobre o Círio: descrições mais detalhadas sobre a parte profana da festa, mas sem deixar de mencionar a importância do evento religioso para a capital da Província. Em março de 1858, o jornal A Epocha publicava a sua primeira edição. Destinada a assuntos políticos e comerciais, a folha não deixava de abordar questões envolvendo o Círio de Nazaré, seguindo tendências identificadas nos jornais Treze de Maio e Diário do Gram-Pará. O jornal trazia notas sobre casas para serem alugadas, o trabalho esmerado do restaurante do “Hotel de França” no preparo de pratos típicos da culinária francesa durante a festividade, a venda de meias de seda para senhoras e meninas, além dos mais diferentes chapéus para meninos e meninas, assim como as noites de diversões marcadas pela realização de vários espetáculos. Na edição do dia 15 de outubro de 1859, na seção “A Pedido” do jornal A Epocha, a Diretoria da Festa de Nazaré solicitava: “aos moradores do Arraial a illuminarem as frentes de suas cazas para maior Brilhantismo das Vesperas da Santíssima Virgem de Nazareth” (p. 3). Apesar de a energia elétrica só chegar à cidade no final do século XIX, os moradores localizados nas proximidades em que se realizava o Arraial eram convocados para iluminarem, com os meios disponíveis na época, as residências: o brilhantismo da festa era motivo de grande mobilização. Desse modo, percebe-se que, diferente das primeiras notas das publicações iniciais da imprensa paraense, o Círio de Nossa Senhora de Nazaré passa a ter nos jornais diários registros mais detalhados sobre as atrações do Arraial de Nazaré e um maior número de avisos relacionados à festa.

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O Círio de Nazaré na imprensa da Belle Époque O período entre o final do século XIX e início do século XX é marcado por uma série de transformações urbanas e nos hábitos culturais de Belém, sob o projeto polí- tico de Antônio Lemos, intendente da cidade por 14 anos e eleito pela primeira vez em 1897. Durante a belle époque, Belém se modelava aos moldes das cidades europeias transformando-se na “Francesinha do Norte” e “Paris N’América”. Alargavam-se as ruas, criavam-se os boulevards e parques, lotavam-se os cafés (Sarges, 2000). A pobre elegante Belém também ganhava as páginas da imprensa (Fernandes; Seixas, 2012) que vivenciou alterações na sua configuração, acompanhando o momento de prosperidade. No caso da mídia impressa brasileira, Sodré (2011) ressalta que o desenvolvimento da imprensa na virada para o século XX é marcado pela relação entre os jornais e as transformações pelas quais passava o Brasil, com destaque para a ascensão da burguesia e o avanço das relações capitalistas. Dedicado a assuntos políticos e comerciais, no mês de outubro o jornal Diário de Belém também noticiava o Círio de Nazaré, ressaltando diferentes pontos como, na edição de 10 de outubro de 1882, a construção de um navio medindo de quatro a cinco metros para ser carregado por marujos que escaparam de um naufrágio durante viagem reali- zada de Vigia a Belém; ou ainda, no pedido de providências dos moradores do arraial, publicado em 28 de outubro de 1882, para que o chefe de polícia levasse em consideração o perigo que era a “montanha-russa”, para assim evitar desgraças. Contudo, se aqui se fala de período de mudanças e embelezamento de parte da cidade para uso de classes abastadas, a preocupação com a higiene também gira em torno do Círio de Nazaré, marcado pela participação de várias pessoas. Na seção de “Pedido”, em edição publicada em 26 de outubro de 1883, o Diário de Belém registrou a solicitação para que a Companhia de Bombeiros irrigassem, na véspera da procissão do Círio de Nazaré, os dois lugares de maior trajeto da procissão para garantir a salubridade pública, contando com a ação dos moradores que estariam responsáveis por irrigar as áreas próximas às suas casas. Eis um exemplo da atuação da imprensa nas ações de higienização e transformações urbanas ocorridas em Belém durante esse período, como ressalta Sarges (2000). O jornal também criticava qualquer vínculo com atitudes consideradas desordeiras e até mesmo com manifestações populares como o bumba meu boi numa disputa de sentidos para transformar o Círio em uma festa religiosa organizada: “O Cyrio com um apparato meio religioso e meio burlesco. Devíamos dizer carnavalesco, porque aquellas dansas e contradansas literam-nos lembrar dos cordões de roceiros e do bumba meu boi.” (Diário de Belém, 13/10/1885, p. 3). Certas práticas realizadas desde as primeiras décadas da imprensa paraense, tam- bém se mantiveram nas grandes publicações como A Província do Pará. Com a proximi- dade da Festa de Nazaré, avisos, anúncios, leilões despontam nas páginas. Além dos programas do evento incluindo as mais diversas apresentações. Menciona-se cada vez mais a importância do Círio de Nazaré e a sua definição como a maior festa popular da Província, como na segunda página da edição publicada em 24 de outubro de 1891: “Começará hoje a mais popular, a mais longa e animada festa profana-religiosa para- ense, a única para a qual tem incessantes enthusiasmos as gerações d’esta cidade e a

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única verdadeiramente poderosa para emocionar a alma do povo”. O Círio de Nazaré era assunto de entusiasmo na imprensa paraense e, com o tempo, passou a ter relatos mais detalhados. Seixas (2011, p. 299) ressalta que, em Belém, na virada do século XIX para o século XX, a imprensa intensificando o uso da imagem: “nos jornais, de maneira mais sóbria, com ilustrações de busto e até mesmo de cenas exteriores [...]”. Com A Província do Pará, não foi diferente. Além do maior número de imagens, nesse período, surgem as primeiras colunas de opinião – como a NAZARETHNAS – relacionadas à festa religiosa. Em 9 de outubro de 1898, a primeira página do jornal destaca: “NAZARETH”. As letras garrafais anunciam a chegada de mais um Círio de Nazaré e a edição do jornal é especial:

[...] E nós, respeitadores sempre da idéa do povo, da opinião da maioria; reverentes á mages- tade d’esse culto tradicional e secular, estampamos acima, como homenagem de respeito e acatamento, a imagem d’Aquella a cujos pés prostram-se hoje, submissos e arrependidos, milhares de pecadores, um exército de crentes convictos e sinceros. (Jornal A Província do Pará, 09/10/1898, p. 1).

Os jornais contemporâneos, em Belém, publicam capas inteiras dedicadas ao Círio de Nazaré, como já exemplificamos. A Província do Pará, um dos mais importantes jornais da Amazônia, marca com essa edição do jornal – o que não se pode definir como pioneira na ação, por conta da falta de dados consistentes – o trabalho esmerado da produção periódica em dar à estampa uma edição especial dedicada ao Círio de Nazaré, com ilustração que toma conta de grande parte da capa e faz referência a imagem de Nossa Senhora. Das páginas dos jornais, o Círio começa a ser retratado por meio de imagens.

Figura 2. Reprodução do microfilme da capa do jornal A Província do Pará, 09/10/1898.

Da emoção do Círio da Província do Pará, passamos para ao tumultuado Círio do Apologista Christão Brazileiro. No registro dos jornais, não é apenas a grandiosidade da festa religiosa e a movimentação da cidade que ganham espaço. Na disputa que envolve a construção da memória em torno do Círio realizada pelos jornais, questões religiosas

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7308 Mídia & Memória: a grande festa religiosa do Círio de Nazaré no século XIX Phillippe Sendas de Paula Fernandes que estruturam a linha editorial do jornal Apologista trazem à tona críticas a um even- to considerado desordeiro e contra a civilidade da capital da Província. “Saibamos e practiquemos a verdade, custe o que custar”. Era essa a frase que marcava as edições do jornal O Apologista Christão Brazileiro, publicado pela primeira vez em 4 de janeiro de 1890. A proposta do periódico era propagar a “verdade evangélica e boa moral” às famílias paraenses. O jornal, de periodicidade mensal, era um órgão da Igreja Methodista Episcopal do Brasil e esteve sob a responsabilidade de Justus H. Nelson, que chegou a ser preso em novembro de 1892 por ofensas ao Catolicismo. O Apologista suspendeu suas atividades em 1910 e retomou as publicações em 1925. Não há registro de quando encerrou o seu trabalho no jornalismo paraense (Biblioteca Pública do Pará, 1985, p.123-4). O jornal anuncia na sua primeira página, da edição publicada em 27 de setembro de 1890, a chegada do tempo do Círio, um “pagode” na sociedade paraense formada por pessoas com muitas preocupações: as roupas que usarão nas noites do Arraial, os chapéus que comprarão e o dinheiro para os doces das crianças. O texto publicado no jornal tem um tom irônico e assume uma abordagem totalmente diferente das notícias publicadas nos outros periódicos da capital paraense. Uma das justificativas, como já se explicou, é a proposta editorial do referido jornal. Na construção da memória sobre o Círio de Nazaré, no jornal O Apologista não se destaca a grandiosidade da festa, mas a idolatria e a sustentação do evento baseada nos jogos de azar. Os textos publicados na folha eram de autoria de Justus H. Neto e, a cada ano, eram mais agressivos. Na edição de 24 de outubro de 1891, em sua quarta página, o jornal não poupava críticas à procissão que conduzia a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, fazendo ainda a comparação da pequena imagem com uma boneca. O título era “Festa de Nazareth” e o subtítulo “Fazendo Pouco”. A proposta era “fazer pouco”, tal qual aponta o periódico, da pouca coisa que era a religião da festa. E indagava: “Chamar a milagrosa Virgem de Nazareth de boneca é chamar as cousas pelos próprios nomes. Pois o que tem ella que as mais bonecas não tem?” A resposta, sem dúvida, deve ter causado polêmica: “É feita de pau pintado como qualquer boneca ordinária. Pode-se comprar na loja ‘Garantido’ ou no ‘Bom Marché’ bonecas muito mais bonitas e não menos milagrosas.” Na mesma narrativa, contudo, o jornal não deixa de mencionar a multidão que vai participar da romaria, entretanto, para o periódico, uma multidão de iludidos.

[...] Se cahisse na rua quebrava uma perna [se por ventura as tiver], o pescoço ou mesmo a amável cabecinha de pau. E se ninguém accudisse, ahi ficava a boneca na rua até ser redu- zida a pó pelo atrito das rodas e pés dos animaes. Como então póde soccorrer a pessoas que cahem em qualquer desgraça? Apezar d’esses factos innegaveis, amanhã irá em romaria com as suas “promessas” e “mila- gres” de cera, a mesma multidão de pobres illudidos que todos os annos puxa a berlinda do ídolo da sua devoção, ou o segue na sua dereta. (Jornal O Apologista Christão Brazileiro, 24/10/1891, p. 4).

Nos jornais contemporâneos de Belém, tudo se fala sobre o Círio de Nazaré. A imagem da santa está na primeira página e o Círio é título principal, mas relação entre imprensa e a festividade já foi bem diferente. As informações eram publicadas na últi- ma página sem qualquer destaque. Com o tempo, o desenvolvimento da produção

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7309 Mídia & Memória: a grande festa religiosa do Círio de Nazaré no século XIX Phillippe Sendas de Paula Fernandes periódica em Belém contribuiu para um olhar mais detalhado sobre o Círio de Nazaré. Dos leilões e anúncios, a Festa de Nazaré ganha editoria própria, indicando os primeiros passos de uma prática presente no jornalismo atual. Na virada para o século XX, tempo de transformações, vale destacar em primeira página o evento e, até mesmo, publicar a imagem de Nossa Senhora. O Círio de Nazaré, sem dúvidas, é um assunto presente na imprensa de Belém desde muito tempo, motivo de orgulho, motivo de críticas, mas sempre referenciado, nem que estivesse no pequeno anúncio de meias importadas, nas notas que criticavam a romaria de idólatras ou ainda nas reportagens dedicadas a grandiosidade e ao brilhantismo da festa.

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7311 O Jornalismo Cultural de David Moreira Caldas no jornal Amigo do Povo (1868- 1871) The Cultural Journalism of David Moreira Caldas in Journal Amigo do Povo (1868 -1871)

Vi n i c i u s F e rr e i ra R i b e i r o C o r dão 1

Resumo: Esse trabalho traça um diagnóstico inicial da formação do Jornalismo Cultural no Piauí a partir da atuação de David Caldas. Para a consecução desta proposta em um primeiro momento retomamos, por meio do diálogo com as fontes nacionais, os debates em torno da questão cultural para posteriormente identificarmos que formatos eram empregados. Palavras-Chave: História do Jornalismo. Jornalismo Piauiense. Jornalismo Cultural. David Caldas

Abstract: This work proposes to map an initial diagnosis of the formation of the Cultural Journalism in Piauí starting from the David Caldas performance. To achieve this proposal, at first moment we resumed, through dialogue with national sources, the question about culture for in second moment show the formats used. Keywords: History of Journalism. Journalism Piauiense. Cultural Journalism. David Caldas

INTRODUÇÃO PRESENTE ARTIGO apresenta o resultado parcial da pesquisa filiada ao projeto Jornalismo e Produção Cultural desenvolvida, entre os anos de 2010 e 2014, no ONúcleo de Pesquisa em Jornalismo e Comunicação (NUJOC) que tinha como objetivo mapear e analisar a produção jornalística Piauiense, com enfoque para o jor- nalismo cultural e literário. Neste trabalho iremos focar no contexto histórico da produção do século XIX, mais especificamente entre os anos de 1868 e 1871, com o objetivo de destacar a atuação de David Moreira Caldas como precursor do jornalismo cultural piauiense, por em seus jornais publicar de forma sistemática formatos que contemporaneamente estão asso- ciados a prática como a resenha e a crítica. Escolhemos o jornal Amigo do Povo como suporte empírico por meio do qual bus- camos perceber como atuava o jornalista, através de quais formatos recorrentes e que características essas estruturas possuíam. Escolhemos o jornal por ser o primeiro lan- çado de forma independente por David Caldas, que já havia atuado anteriormente na

1. Graduado em Comunicação Social – hab. Jornalismo pela Universidade Federal do Piauí – UFPI. Mestrando em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ. Pesquisador no NUJOC- Núcleo de Pesquisa em Jornalismo e Comunicação, email: [email protected]

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7312 O Jornalismo Cultural de David Moreira Caldas no jornal Amigo do Povo (1868- 1871) Vinicius Ferreira Ribeiro Cordão imprensa nos jornais O Arrebol, Liga e Progresso e A Imprensa, o que possibilitava assim uma maior liberdade editorial. No que se refere ao referencial metodológico adotamos a pesquisa documental para montar o panorama social em que o jornal foi produzido, além de nos valermos da análise de conteúdo, proposta por Bardin (1977) e Fonseca Júnior (2005), para classi- ficar os dados coletados nas unidades de registro em categorias referentes a formatos do jornalismo cultural.

CULTURA, IMPRENSA E MODERNIDADE O processo para a compreensão do Jornalismo Cultural envolve trilhar um per- curso teórico marcado pelo conflito de perspectivas, pois esse segmento da mídia é formado a partir da interseção do campo2 jornalístico com o campo da cultura. A relação tensionada ocorre por cada um dos campos ser regido por seus interesses e sistemas simbólicos, que apesar de partilharem muitos elementos, estão inseridos em uma historicidade particular. A própria noção de cultura passa por diversas transformações durante a história, o conceito “é uma dessas palavras metafóricas que deslizam de um contexto para outro, com significações diversas” (SODRÉ, 2005, p.8). Neste trabalho iremos discutir a con- cepção de cultura como sinônimo de civilização, mesmo está não sendo a perspectiva a qual nos filiamos, por ser a concepção em voga no período analisado. A compreensão de cultura que até o inicio do século XVI estava associada a esfera agrícola, do cultivo de grãos e animais, passa a partir do século XIX sob a influência das modificações sociais geradas pela Revolução Francesa e Industrial a apresentar outra significação social. O campo cultural assume uma representação associada ao modo de vida vinculado ao urbano, ao sistema educacional formal e a produção e consumo de bens manufaturados ou industriais. Essa nova concepção de cultura será denomina por Thompson (2011, p. 170) de clássica e pode ser definida em linhas gerais como “o processo de desenvolvimento e enobrecimento das faculdades humanas, um processo facilitado pela assimilação de trabalhos acadêmicos e artísticos e ligado ao caráter progressista da era moderna”. A cultura se torna a partir de então sinônimo de civilização e com isso ocorre a divisão do campo entre cultura superior, representada pelas produções eruditas dotadas de uma concepção estética, e uma cultura popular baseada nos rituais e tradições que passa a receber o status de inferior pela aristocracia e a burguesia emergente.

Desta forma, no processo evolutivo das sociedades, cultura termina por ressurgir a partir de uma visão burguesa de excelência ligada a noção de progresso e de distinção social, tomando por base elementos da intelectualidade. De um lado, consolidam-se os espíritos evoluídos, onde estão os detentores de posse e de cultura. Do outro lado, os pobres de espírito, por conseguinte, os sem recursos. É a emergência das diferenças ainda hoje discutidas entre cultura erudita e cultura popular dentre outras classificações (RÊGO, 2013, p.30).

2. Utilizamos a noção de campo baseado na perspectiva de Bourdieu (1989), onde para o autor nossa sociedade é dividida em campos no interior dos quais se encontram as estruturas sociais objetivas regidas por suas regras, capitais simbólicos e econômicos, cada campo seria dotado de autonomia relativa e possuiria regras próprias, de forma que se constituiriam como espaços de disputas e jogos de poder simbólico no certame das relações sociais.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7313 O Jornalismo Cultural de David Moreira Caldas no jornal Amigo do Povo (1868- 1871) Vinicius Ferreira Ribeiro Cordão

No Brasil as transformações na esfera cultural ocorrerem de modo mais acentuado com a chegada da família real e a elevação da colônia ao status de Reino Unido e, poste- riormente, com a implantação do Império. O novo status político nacional leva a adoção de uma política desenvolvimentista por parte dos dirigentes e intelectuais do país que desejavam levar o Brasil para a modernidade e com isso se desassociar da imagem de selvagem, à medida que tentavam se aproximar do modelo europeu de civilização.

Se civilização significa as artes, a vida urbana, política cívica, tecnológicas complexas etc., e se isso é considerado um avanço em relação ao que havia antes, então civilização é inse- paravelmente descritiva e normativa. Significa a vida como a conhecemos, mas também sugere que ela é superior ao barbarismo (EAGLETON, 2011, p.20).

O conceito de civilização que vigorava na Inglaterra e França, no período que se estende do século XIX até meados do século XX, deixou raízes profundas no pensamen- to ocidental até a atualidade. Segundo Elias (1994), o ideário de civilização expressa a autoimagem da classe dominante europeia em comparação com as demais, consideradas por eles como simples e primitiva.

Isto porque o homme civilisé nada mais era do que uma versão um tanto ampliada daquele tipo de homem que representava o verdadeiro ideal da sociedade de corte, o honnête homme. Civilise era como cultive, poli ou policé, um dos muitos termos, não raros usados quase como sinônimos, com os quais os membros da corte, gostavam de designar, em sentido amplo ou restrito, a qualidade especifica do seu próprio comportamento, e com os quais comparavam o refinamento de suas maneiras sociais, seu padrão, com as maneiras de indivíduos mais simples e socialmente inferiores (ELIAS, 1994, p.54).

A corte para se tornar civilizada copiava os padrões europeus, sem que em suma coexistisse com a mudança de mentalidade uma alteração econômica e política no mesmo ritmo das ocorridas na Europa, e que haviam permitido o surgimento dessa nova esfera cultural. Dessa forma a modernidade se fez presente antes do processo de moderniza- ção3, como aponta Ortiz (2006), pois vamos observar na realidade Brasileira do século XIX elementos de legitimação e pedagogia cultural agindo na sociedade e impulsio- nando por meio de suas cobranças as transformações estruturais modernizantes que se concretizarão posteriormente. A realidade piauiense, no aspecto apresentado acima, se assemelha a da corte. Pois apesar de Queiroz (1998, p.15) descrever a capital do Estado como quase um arraial, onde às novidades do mundo moderno seriam meras notícias, a autora afirma, que na virada para o século XX o progresso se materializa em inúmeras inovações rumo a promessa da civilização, sendo capitaneado pelo discurso progressista da imprensa e da esfera cultural.

3. Quando nos referimos a modernização estamos empregando um termo utilizado pela sociologia do desenvolvimento para referir-se aos efeitos econômico sobre estruturas sociais, “admite-se de modo geral, mediante um frouxo modelo base-superestrutura, que certas mudanças cultuais(secularização e o surgimento de uma identidade moderna cujo eixo é o auto desenvolvimento) decorrem do processo de modernização” (FEATHERSTONE, 1995, 23).

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Em Teresina, novas formas de civilidade a muito custo vinham sendo introduzidas. Crianças e adultos estavam sempre, pelo menos na avaliação dos redatores dos jornais, precisando de corretivos e de ajustes de maneiras. Precisavam aprender a manter as distâncias sociais, a frequentar, os eventos públicos e privados, a bater palmas- aplaudir é também um saber, uma arte- a reconhecer, a se comportar na mesa, a não avançar nos banquetes a não roubar objetos pessoais nas toaletes alheias e vários outros hábitos da boa convivência social. A interferência sobre os novos costumes estava expressa na fala dos redatores, que apontavam para as novas normas de civilidade e esse aprendizado se realizava, em boa medida, por meio do lazer (QUEIROZ, 2011 p.35)

O descompasso que ocorre no Brasil entre o desenvolvimento dos fatores socioeco- nômicos e a adoção do ideário moderno pela elite faz com que Ortiz (2006) considere a Modernidade no país como fora do lugar. Para o autor o movimento se trata de um projeto das classes dominantes para se distanciar do bárbaro sem necessariamente ado- tar em suas ações as convicções humanistas e liberais que balizavam ideologicamente o movimento na Europa. A atuação no campo da cultura e da imprensa passa a ser um elemento de distinção social e acima de tudo um instrumento pedagógico utilizado para introjetar na popu- lação os costumes e a moral da sociedade capitalista que estava em fase de formação. Como destaca Sodré (2005) a produção intelectual é empregada para gerar o “consenso espontâneo”, pois na medida em que é creditada uma reputação social a sua produção as representações que ganham visibilidade por meio delas são seguidas e absorvidas, naturalizando assim determinada estrutura social.

A palavra cultura emergia como um padrão burguês de saúde ou de excelência capaz de justificar os horizontes de expansões da nova classe dominante e atribuir vigor ético e representatividade a suas elites. Ao mesmo tempo que atribuía sentido à produção, à acu- mulação, ao progresso, a noção de cultura implicava uma estratégia de distinção social por meio da orquestração intelectual dos componentes do ideário burguês, que seriam desde então administrados por segmentos privilegiados (frações de classes) da nova ordem social (SODRÉ, 2005, p.18-19).

Nesse panorama a imprensa passa a assumir paulatinamente um papel central, por sua relevância na dinâmica social caracterizando-se como uma esfera pública de debates e de projeção de discursos. As esferas culturais tradicionais como a literatura, a pintura e o teatro também assumem um papel importante acompanhando os enredos políticos e econômicos e por meio de suas representações ditando modelos de comportamento. A estrutura social da modernidade gera uma nova lógica no sistema simbólico que passa a ser regido por um conjunto de regras estéticas que desvalorizam o conhecimento puramente prático, que fica renegado ao popular primitivo. O conhecimento formal e a capacidade do individuo de produzir e decodificar segundo suas regras é o novo pré- -requisito responsável para tonar o ser civilizado. Esse novo sistema formal e racionalista que começa a imperar na sociedade encontra entretanto resistência, pois uma grande parcela da população, até mesmo entre os que possuíam melhores condições sociais, não tinham as ferramentas necessárias para o

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7315 O Jornalismo Cultural de David Moreira Caldas no jornal Amigo do Povo (1868- 1871) Vinicius Ferreira Ribeiro Cordão novo sistema. Nesse sentido era necessário criar entre o público uma nova mentalidade fazendo com que a alfabetização e a formação superior passem a ser premissas básicas. Outra ferramenta utilizada concomitantemente para a formação humanística é a imprensa, que passa a ser uma ferramenta crucial nesse processo. Sendo importante não só por suas estratégias enunciativas, que traziam traços da oralidade, mas também por seu conteúdo, um exemplo, é a forma como a cultura é incorporada em suas páginas e as transformações que sofre durante todo o século XIX. A passagem do jornalismo panfletário para o jornalismo literário, a qual nos atemos em trabalho anterior Ferreira; Rêgo (2014), representa essa transformação de estratégias enunciativas e de conteúdo para atrair público e introjetar os novos valores. Dentro desse panorama, para Ortiz (2006, p.28-29), o relacionamento entre a inte- lectualidade nacional com a imprensa ocorre de modo simbiótico pois “a literatura se difunde e se legitima através da imprensa”, de modo que até a década de 20 do século XX não seria possível traçar uma divisão precisa entre esses dois campos. Como podemos observar o jornalismo influência na formação da esfera cultural do país e na adoção do novo sistema formal, ao mesmo tempo, que as novas configurações moldam as práticas jornalística fazendo com que dessa relação surja no final do século XIX um jornalismo cultural nacional, ainda que frágil e incipiente. Segundo a visão de Gadini (2009) não é possível pensar na formação do campo cultural nacional, no século XIX, sem levar em consideração a atuação da imprensa. Pois o jornalismo seria responsável por formar, ainda que para uma pequena esfera, o mercado de bens simbólicos através da visibilidade e status que conferia a classe cultural além de promover e pautar os debates sociais em torno das produções artístico-cultural.

Não se pode esquecer, entretanto, que a imprensa marcada pela “literatice” também operava, ao seu modo e limite, como um mecanismo de ação na vida cultural, mesmo que tal ação estivesse voltada à manutenção de uma pequena camada com acesso à produção simbó- lica ou que fosse caracterizada por um debate para poucos. Atuar por aquela perspectiva, portanto, pode ser entendido como um modo de instruir as relações do setor cultural da época (GADINI, 2009, p.140)

Entretanto a importância atribuída por Gadini (2009) aos dados quantitativos rela- cionados ao contexto em que está inserida a imprensa, referentes ao analfabetismo, leva o autor a considerar o Rio de Janeiro como a única cidade do país com condições aptas para o surgimento da prática do jornalismo cultural e de um modo mais amplo para o desenvolvimento autônomo de qualquer atividade do campo cultural.

Não é possível, entretanto, falar em especificidades de uma esfera cultural nessas pequenas cidades e tampouco em jornalismo cultural. A intenção aqui é apenas não esquecer que, muitas vezes, à revelia ou na ausência quase completa de relação política e cultural com as capitais ou grandes cidades do país, inúmeros povoados produziam seus próprios meios de comunicação, forjando relações sociais ou, guardadas as proporções, uma esfera cultural especifica e localizada. Ao que tudo indica, nesses casos a cultura não é ainda, compreen- dida como lazer e tampouco como bem de consumo (simbólico ou material), mas integra

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o cotidiano das comunidades; seu conteúdo abrange a intrínseca religiosidade, as ações educativas e o comportamento familiar que formavam o núcleo elementar da sociabilidade (GADINI, 2009, p.144).

O autor desconsidera em sua abordagem as relações de oralidade que perpassa- vam o impresso e o papel do ledor que ampliava o alcance do jornal para os iletrados, Barbosa (2010) e Pina (2002). Para além da questão da oralidade nos distanciamos da tese levantada por Gadini (2009), porque já existia no Piauí do século XIX traços de uma cultura civilizada alinhada com o pensamento estético europeu, principalmente no que se refere a produção literária e teatral, como também já identificamos na nossa imprensa a prática do jornalismo cultural por meio de críticas e resenhas. Compreendemos que a falha da hipótese de Gadini (2009), sobre as características peculiares das outras regiões do país, se deve a falta de pesquisas comparativas entre os estudos de mídia regionais que impede o amadurecimento das reflexões da área, somado ao sudeste ser considerado pela maioria das pesquisas como o espelho do país o que leva a uma miopia da realidade e a impossibilidade de pensar processos, como o surgimento do jornalismo cultural, de forma holística. Por isso, com o objetivo contribuir para o preenchimento das lacunas acerca da formação do jornalismo cultural nacional nos propomos a investigar a atuação de David Moreira Caldas no jornal Amigo do Povo.

DAVID CALDAS: PROFETA DA REPÚBLICA E INCENTIVADOR CULTURAL Consideramos que “a imprensa cultural tem o dever do senso crítico, da avaliação de cada obra cultural e das tendências que o mercado valoriza por seus interesses e o dever de olhar para as induções simbólicas e morais que o cidadão recebe” (PIZA, 2003, p. 45), dessa forma o gênero opinativo seria por excelência o formato discursivo do jornalismo cultural, especialmente por meio crítica. Por isso a geração fin-de-siécle, como denomina o autor, que tem sua representação máxima na figura de Machado de Assis é tão importante para o processo de formação do Jornalismo Cultural Brasileiro. Se para Piza (2003, p.16) Machado de Assis é o nosso Henry James4 nacional podemos afirmar que David Moreira Caldas ocupa lugar semelhante dentro da realidade piauiense, pois o jornalista, poeta, historiador, professor, geógrafo, escritor, político e linotipista, além de apresentar em seu jornalismo político uma preocupação com o social, tal como melhorias nas habitações populares, ampliação do sistema educacional de qualidade e o fim da escravidão, no campo da cultura ele é o responsável por introduzir sistematicamente a critica cultural em nossos impressos. A postura dentro do jornalismo político que o diferenciava do restante da produção do seu tempo já foi atestada em obras como Queiroz (2011), Pinheiro Filho (1997), Monsenhor Chaves (1998) e Rêgo (2001;2008), entretanto sua atuação no campo do jornalismo cultural não foi ainda devidamente explorado e por isso será o nosso foco analítico.

4. Foi um ensaísta e critico norte americano de destaque que atuou na metade do século XIX em jornais e revistas de Nova York, como New Yorker Tribune, e conquistou sucesso por sua atuação na imprensa em todo o mundo.

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David Caldas nasceu, a 22 de maio de 1836, na fazenda Morrinho próximo a Barras quando então o patrimônio de seus pais, o Capitão Manuel Joaquim da Costa Caldas e Manuela Francisca Caldas, já estava abalado por conta das secas de 1823 e 1826. Apesar de “seu talento precoce já ter impressionado vivamente o Juiz de Direito da comarca, Dr. Francisco Xavier de Cerqueira, que lhe ministrou aulas de português, latim, Frances e aritmética” (CHAVES, 1998 p.469) nosso personagem nunca concluiu o ensino superior por conta de problemas familiares. Sua atuação da imprensa inicia em O Arrebol porém, começa a ganhar destaque quando passa a colaborar com Deolindo Moura no jornal liberal Liga e Progresso e pos- teriormente na Imprensa. David Caldas atuou na política sendo deputado estadual pelo partido liberal mas renunciou ao cargo em razão das severas críticas que sofria dos próprios membros do partido com relação ao seu engajamento com causas sociais. O maior destaque entre sua vasta produção intelectual é a produção dos seus jornais, O Amigo do Povo e Oitenta e Nove, por meio dos quais divulga seu ideário Republicano. David Caldas é também considerado o profeta da Republica por no editorial do Oitenta em Nove, lançado em fevereiro de 1873, afirmar em tom profético que o Brasil seria uma Republica Federativa em 1889. Como afirma Rêgo (2001, p. 108) David Caldas em O Amigo do Povo se realiza não só como político e pioneiro na defesa do regime Republicano no Estado, mas como jornalista. O jornal é lançado em 28 de julho de 1868 contando “com estilo totalmente diverso do praticado pela imprensa local. Nos primeiros números, nota-se liberação maior e fluência verbal não experimentada nos demais periódicos”.

Figura 1. Capa da primeira edição do jornal Amigo do Povo, lançado em 28 de julho de 1868.

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Em pesquisa exploratória, Ferreira; Rêgo (2012), realizada sobre a forma como ocorreu a inserção da cultura na produção jornalística do Piauí no século XIX já havíamos identificado o teor cultural dos textos de David Caldas. Entretanto, ao analisar o conteúdo das 33 edições do Amigo do Povo, lançadas entre 1868 e 1871, podemos perceber peculiaridades no enquadramento dado a cultura com relação aos demais jornais piauienses do período. Se o The Spectador de Londres é considerado um marco do jornalismo cultural por conseguir conciliar com a divulgação dos lançamentos culturais críticas das produções que enfocavam para além do caráter estético da obra, abordando sua interação com o contexto social, objetivando a popularização da cultura e a promoção do debate entorno dela para um público mais amplo e leigo, no Piauí, teremos no Amigo do Povo um perfil jornalístico que explicita a mesma postura. O Amigo do Povo (1868, p.5) nas palavras do próprio David Caldas “foi fundado para- o povo” que necessitava de mais informação, sendo o jornal distribuído gratuitamente para quem interessar. Em seus textos encontramos não só a visibilidade de manifestações da cultura popular, como a nota sobre o Carnaval de rua publicado na edição nº 14 do dia 2 fevereiro de 1869, mais também críticas aos malefícios que o pró-elitismo causava na esfera cultural, a exemplo da transcrição presente no º16 do dia 14 de Março de 1869. A edição nº 16 do Amigo do Povo (1869, p.2) transcreve um artigo questionando a relação da elite para com os produtores culturais, por meio de uma análise histórica crítica instigada pelo depoimento de um artista maranhense que alega “que os conservadores desta capital declaram que em quanto o seu partido estivesse no poder os artistas nada seriam; que um artista é nada na sociedade”.

Isso não nos admira porque sabemos que os antigos defeitos custam a se a perder, e que o partido conservador sendo da nobreza, da aristocracia, ha de sempre repelir o povo, a classe que honestamente trabalha. Para os nobres e indecoroso aplicar-se a qualquer trabalho e principalmente ao manual (...) antigamente a aristocracia nem aprendia a ler e escrever, assinava o nome por chancela isso porque achava indecoroso trabalhar para saber (...) Hoje, como sempre, o partido que se presume aristocrata quer esmagar o povo, e reputa-se muito acima do homem que exerce qualquer profissão manual (...) As artes não prosperem, que haja tanto sujeito a procurar empregos públicos! Honrem as artes e verão que os administradores serão menos consumidos por empenhos para os empregos públicos, e que se aumentará o numero dos artistas no Brasil. Honrem as artes e teremos muitos artistas instruídos no Império, e os trabalhos profissionais serão melhor executados (...) Honrem as artes, que delas dependem toda a prosperidade do nosso país (AMIGO DO POVO, 1869, p.2-3).

O jornal também amplia a variedade de expressões culturais analisadas, indo além da literatura e do teatro, tecendo críticas e emitindo notas informativas sobre produções referentes as artes plásticas, como na edição nº 7 do dia 28 de outubro de 1868. David Caldas na referida nota se remete a duas obras produzidas em Teresópolis para o envio ao Imperador apresentando informações sobre a produção e o destino das telas.

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Figura 2. Crítica sobre a produção de quadros para o imperador D. Pedro II

Vale destacar o último parágrafo da nota acima como representativa do posicio- namento adotado pelo jornalista com relação ao senso estético hegemônico que vinha se instaurando na sociedade ocidental desde o Renascimento, David Caldas diz: “O Sr. D. Pedro II, amador apaixonado das bellas artes, como os Medicis5, - verá esses e outros semelhantes quadros, com muito especial agrado: é ele um estético profundo!”. Vale lembrar que David Caldas era contra o regime monarquista e a figura do imperador, defendendo ferreamente o republicanismo , sendo constante em seus jornais matérias que comemoravam o fim de regimes monárquicos pelo mundo, logo, o trecho a cima esconde uma crítica, ele não esta elogiando o nível cultural de D. Pedro mas criticando o sistema político social na qual a cultura foi inserido por meio do padrão estético. Em outro fragmento presente na parte “Sintética” e publicada na seção “Máximas e Pensamos”, da mesma edição do jornal, David Caldas apresenta ainda de modo mais explicito seu posicionamento perante a estética cultural civilizatória quando afirma que a “dança é uma etiqueta nos salões de baile, a etiqueta é dança nos palácios da corte, a onde a lisonja serve de orquestra” (AMIGO DO POVO, 1868, p.3). Ainda que nosso foco de investigação seja a prática jornalística vale destacar a publicação de anúncios, como o da edição 44 do dia 26 de outubro de 1870, voltados para produtos culturais. A presença da publicidade demonstra que a cultura é vista como forma de lazer e bem de consumo, diferentemente do que afirmava Gadini (2009) na citação apresentada na seção anterior deste artigo.

5. Família da alta burguesia italiana composta por banqueiros e comerciantes que teve seu apogeu nos séculos XV e XVI tendo assumido papel central durante o Renascimento, sendo uma das principais financiadores do sistema de mecenato.

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Figura 3. Anuncio da venda de livros publicada em O Amigo do Povo na edição 44, do dia 26 de outubro de 1870.

Com relação aos formatos empregados no Amigo do Povo para visibilizar questões de cunho cultural vale destacar três: as notas informativas, a crítica cultural e resenha. Com relação a primeira estrutura vale lembrar que apesar das notas serem comumente desvalorizadas elas podem por conta do seu teor noticioso ter “tanta importância, em alguns dos meios, como a crítica, os ensaios e a entrevista, apesar de seu formato e da aparente fugacidade informativa de seu material” (RIVERA, 2000, p.124).

Figura 4. Nota informativa publicada em O Amigo do Povo na edição 14, do dia 2 de fevereiro de 1869.

Com relação aos outros dois formatos identificados, a resenha e a crítica cultural, seguimos o referencial apresentado por Melo (2003) para traçar a linha tênue de divisão entre suas estruturas. Para o autor a resenha advém da tradução da expressão utilizada pelo jornalismo norte-americano review e “corresponde a uma apreciação das obras- de-arte ou dos produtos culturais, com a finalidade de orientar a ação dos fruidores ou consumidores” (MELO, 2003, p.129), estando dessa forma associada diretamente a logística da indústria cultural e de uma atuação jornalística voltada para o consumo enquanto a critica visa uma reflexão estética e social da obra.

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A diferenciação proposta por Melo (2003) precisa entretanto ser adapta a realidade analisada. A resenha encontrada no século XIX apesar de ser caracterizada por uma apreciação superficial sobre a obra, tendo em sua estrutura uma pequena sinopse e a indicação de onde o leitor pode encontrar o produto não possui como origem a engre- nagem da forte indústria cultural. Compreendemos que David Caldas quando utilizou o formato não o fez para adquirir vantagens econômicas mas por compreender que o jornalismo era uma das poucas formas de distribuição de informações cabendo ao jornal também indicar quais produções estavam disponíveis em um mercado com oferta escassa. Pode ser encontrado um exemplo de resenha na edição do Amigo do Povo, do dia 11 de setembro de 1869, quando sem tecer nenhuma análise sobre a obra de Victor Hugo, chamado O Homem que ri, David Caldas indica para o leitor qual tipografia foi respon- sável pela tradução e impressão da obra, assim como, onde ela pode ser comprada e qual o valor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Percebemos por meio da atuação de David Moreira Caldas no jornal Amigo do Povo que a prática do jornalismo cultural no século XIX não se limitou a corte. Ainda que de forma embrionária este segmento especializado do jornalismo incentivou a formação de uma esfera cultural assim como refletiu criticamente sobre a produção cultural e os caminhos traçados pela cultura por meio de formatos como as notas informativas, as críticas culturais e as resenhas. David Moreira Caldas merece destaque não só por introduz e publicar sistemati- camente os formatos relacionados com a prática do jornalismo cultural como também por adotar em seus textos uma visão crítica da realidade social a qual esta inserido. O autor depõe contra a implementação do sistema estético que vinha colocando a margem as produções cultuais populares assim como tece reflexões sobre o papel econômico e social da cultural na sociedade Imperial, explicitando as relações de poder presente.

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7323 Considerações sobre o radiojornalismo pernambucano: o modelo da Rádio Jornal do Commercio

K ar o l i n e M ar i a F e r n a n d e s da C o s ta e Si lva 1

Resumo: Este trabalho tem como objetivo resgatar a memória do radiojornalismo de Pernambuco a partir da emissora que se configura atualmente como a prin- cipal expoente desta linguagem no cenário local: a Rádio Jornal do Commercio, sediada no Recife, cuja primeira transmissão foi realizada ainda nos anos 40 do século XX. Para tanto, o estudo desenvolve algumas considerações acerca da história do rádio pernambucano, que, em muitos momentos, confunde-se com a própria história do rádio brasileiro. A partir de uma revisão bibliográfica em torno desta mídia, busca-se neste artigo uma reflexão crítica em torno do fazer jornalístico no rádio, tomando como referência os critérios de notícia utilizados na emissora em questão, para aproximar uma primeira compreensão sobre os impactos do conteúdo transmitido para a audiência local. Palavras-chave: História do Rádio; Radiojornalismo; Rádio Jornal do Commercio; Gêneros Radiofônicos.

Absgtract: This paper aims to rescue the memory of Pernambuco’s radiojour- nalism from the station that is currently set as the main exponent of this lan- guage in the local scene: Radio Jornal do Commercio, based in Recife, wich it’s first transmission was still held in the 40’s of XX century. Therefore, the study develops some considerations about the history of radio in Pernambuco, which, in many instances, is confused with the history of Brazilian radio. From a litera- ture review around this media, and open interviews with some journalists who work there, the purpose of this article is also using the theories of journalism to identify what is news on this station, which radio genres used in programming and its potential impacts on local audience. Key words: History of Radio; radiojournalism; Radio Jornal of Commercio; radio genres.

INTRODUÇÃO ARA ANALISAR o radiojornalismo praticado em Pernambuco é preciso primeiro traçar algumas considerações sobre a introdução do rádio no Brasil. Em uma pers- Ppectiva histórica do veículo rádio no país, pode-se dividi-la em três fases, desde sua implantação: em fase amadora e pioneira no início do século XX, consolidação e apogeu na década de 40, na chamada Era de Ouro do rádio, quando o entretenimento e

1. Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco. Especialista em Ciência Política pela Universidade Católica de Pernambuco. Graduada em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco. Docente do Departamento de Comunicação do Centro Universitário Maurício de Nassau – Campus Recife. E-mail: [email protected].

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7324 Considerações sobre o radiojornalismo pernambucano: o modelo da Rádio Jornal do Commercio Karoline Maria Fernandes da Costa e Silva os grandes ícones se popularizaram em todo o país, a inserção de conteúdo jornalístico entre as décadas de 50 e 60, quando a televisão inicia suas primeiras transmissões, pas- sando pela invenção do transistor, até a atual problemática que sugere novas formas de se pensar o fazer radiofônico, provocadas pela inserção da mídia pós-massiva (Internet) tanto no cotidiano da audiência, agora percebida também no ambiente web, como nas rotinas produtivas dos profissionais que atuam no meio radiofônico. Inicialmente, a radiodifusão brasileira nasceu com as primeiras reuniões de tele- grafistas, radiotelegrafistas e alguns intelectuais da sociedade da época, em grupos denominados Rádio Sociedades e Rádio Clubes. Apesar da data de nascimento do rádio no Brasil ser tema de controvérsia, consta nos registros oficiais que a primeira locução transmitida no país ocorreu no dia 7 de setembro de 1922, durante a exposição comemorativa do Centenário da Independência – na ocasião, foi transmitido, a partir de alto-falantes instalados no alto do Corcovado, no Rio de Janeiro, o discurso do então presidente Epitácio Pessoa. No entanto, muitos estudiosos que se debruçaram sobre a radiodifusão brasileira, como Ortriwano (1985), César (2009), Prado (2012) e Prata (2012), além de Maranhão Filho (2010), destacam o pioneirismo da Rádio Clube de Pernambuco, criada por um grupo de amigos que resolveu fundar o “clube de radiófolos”. Este clube era formado por Mário Féliz Barreto, João Cardoso Ayres, Mário Pena, Edmundo Bentz, Jorge Bentz, Octávio Cirne, Joaquim Augusto Pereira e Mário Melo (FILHO; BELTRÃO, 1983 in GOMES, 1987). Teria o grupo realizado uma primeira transmissão radiofônica em 6 de abril de 1919, com um transmissor importado da França. Registra a pesquisadora Isaltina Gomes (1987), em seu artigo “Considerações sobre o Radiojornalismo em Pernambuco”, atesta que a emissora só efetivou os seus trabalhos em 1923, sendo antes desse período a sua programação baseada em comunicação por “radiotelegrafia com captação de sinais em código Morse”, sendo esta uma das razões pela qual a emissora pernambucana não é citada como pioneira na radiodifusão brasileira. O fato é que, pela ausência de arqui- vos de memória da supracitada emissora ou mesmo pela ainda escassa quantidade de trabalhos acadêmicos que centralizem estudos nesta área de rádio, tal afirmação não pode ser considerada ou refutada em sua totalidade. Posteriormente, em 1923, deu-se, de fato, a criação da primeira emissora pernambucana. Aquele “clube amador” foi transformado em sociedade civil com registro do Ministério da Viação, conforme relata Gomes. Com a adesão do empresário Oscar Moreira Pinto, foi fundada a PRAP – Rádio Clube de Pernambuco – cuja fase de transmissão foi iniciada, efetivamente, em 17 de outubro de 1923. Durante mais de 20 anos, a Rádio Clube de Pernambuco foi a única a atuar em Per- nambuco, até que, em 1946, a Empresa Jornal do Commercio S.A submeteu à Presidên- cia da República pedido de concessão para instalação de uma emissora, cuja primeira transmissão foi realizada em 1948. Acompanhando a dinâmica nacional, nos anos 50 do século XX, novas emissoras vão ao ar, tanto na Capital quanto no interior do estado. Na década de 60, surgem mais emissoras e os anos 70 / 80 marcam a entrada e posterior popularização das transmissões em FM na radiodifusão pernambucana. De acordo com inventário de emissoras de rádio na obra “Panorama do Rádio no Brasil”, publicado em 2011 pela pesquisadora Nair Prata, em colaboração com vários profissionais em 27

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7325 Considerações sobre o radiojornalismo pernambucano: o modelo da Rádio Jornal do Commercio Karoline Maria Fernandes da Costa e Silva cidades brasileiras, atualmente existem em atividade na Região Metropolitana do Recife 31 emissoras de rádio, sendo 27 delas comerciais e quatro educativas. Deste grupo, dez transmitem em AM e 21 em FM. Este livro também destaca o pioneirismo das duas rádios (Clube e Jornal), sinalizando que o surgimento do rádio brasileiro passa por Pernambuco.

OS JORNAIS FALADOS E A CONSTRUÇÃO DE UM MODELO INFORMATIVO NO RÁDIO PERNAMBUCANO Gomes (1987) destaca que a prática do radiojornalismo de Pernambuco começa a existir em 1926, quando foram lançados os jornais falados em Recife. Em 1930, a Rádio Clube de Pernambuco adotou uma posição pretensamente neutra. Já em 1935 – na Intentona Comunista -, começa a manipular abertamente as informações, a fim de desmobilizar os rebeldes do Rio Grande do Norte. Por ocasião da revolução Integralista, em 1937, a emissora criou boletins diários para informar as ocorrências. Em 1938, o radiojornalismo de Pernambuco caracterizava-se por boletins noticiosos divulgados nos horários das refeições. Em 1948, a emissora já mantinha programas noticiosos: Jornal Lavolho, O Minuto da Cidade e do Porto do Recife, Boletim de Informações Oficiais e a Crônica da PRA8. Durante a Segunda Guerra Mundial, o radiojornalismo de Pernambuco foi marcado pelas edições extraordinárias do Repórter Esso. A respeito desse partidarismo, Magaly Prado (2012), pontua que a década de 1930 foi muito importante para a consolidação do rádio como um veículo transmissor de informação. O posicionamento dessas emissoras, que de fato contribuíam para a eleição de alguns políticos, mostrava a força da revolucionária mídia eletrônica do século XX. Getúlio Vargas criaria um importante instrumento de propaganda, com o programa “A Hora do Brasil”. A autora destaca também que o surgimento da Rádio Nacional do Rio de Janeiro foi decisivo na consolidação do modelo que a linguagem radiofônica iria seguir no Brasil. Nos anos de 1940, as emissoras conectadas com os grandes jornais começam a despontar. Os veículos impressos não chegam a sofrer grandes impactos porque a receptividade à prática da publicidade através dos meios periódicos ainda era insipiente e pouco aceita até a década anterior. Conforme analisa Federico (1982), quando o rádio se constituiu em competidor nas inserções publicitárias, as empresas jornalísticas passaram a encarar a possibilidade da integração e diversificação, adquirindo emissoras. Deve-se talvez a essa nova possibilidade de lucro comercial, a investida profissionalizante do radiojornalismo”. O sistema de propriedade vigente da fase anterior, ou seja, associações e agremiações em rádio sociedades e rádio clubes, passa, por força dos condicionantes econômicos e políticos, a ter uma feição empresarial, levada a efeito por empresários e políticos, ligados ao jornalismo. Já em 1950, o advento da televisão iria revolucionar a programação radiofônica, antes marcada pelo popular e pelo entretenimento, para deslocar com maior intensidade o foco para o radiojornalismo ao longo da década e nos anos de 1960. Zucoloto (2008) também reflete que neste período se consolidaram os modelos referenciais e as principais concepções e linhas que orientaram as grades de programação das rádios ao longo dos mais de 70 anos de história da radiodifusão brasileira, desde meados da década de 30 do século passado até a primeira década dos anos 2000. A pesquisadora ainda observa que a Constituição de 1988 estabelece três sistemas para a radiodifusão: o privado,

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7326 Considerações sobre o radiojornalismo pernambucano: o modelo da Rádio Jornal do Commercio Karoline Maria Fernandes da Costa e Silva o estatal e o público, e, como até hoje não houve regulamentação e a legislação que disciplina a radiodifusão é a mesma desde 1962, com a criação do Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117/62), há confusão em termos legais quanto à sua natureza, se pública ou estatal. Segundo Isaltina (1987), os anos 1970 marcam a entrada das FMs na radiodifusão pernambucana. No entanto, por falta de memória, não há registros históricos disponíveis no período entre os anos de 1950 a 1970. A pesquisadora observa que, na década de 80, nos programas informativos de rádios pernambucanas predominava o noticiário nacional, o que de uma certa forma evidenciava o desperdício da possibilidade de ocupar maior espaço na programação com informações locais. O critério de seleção de notícias nas emissoras pernambucanas era o grau de sensacionalismo e impacto. O Recife contaria, até 1986, com 14 emissoras de rádio, sete AMs, e sete FMs. Para a Rádio Jornal do Commercio, objeto da presente pesquisa e principal emis- sora atualmente em Pernambuco – posto que a antiga Rádio Clube AM foi extinta em 2013, para dar lugar à retransmissão da programação da Rádio Globo - o jornalismo praticado se enquadrava, desde seu surgimento, no estilo informativo: notícias locais, com a presença de um departamento de jornalismo estruturado, formado por: editor geral, chefes de reportagem, editorias de polícia e esportes e um razoável número de repórteres, que produziam flashes, além de noticiário nacional e internacional captado de agências de notícias, imprensa diária e releases. A Rádio Jornal acompanhou a dinâ- mica e desenvolvimento das principais emissoras no âmbito nacional, considerando- -se a análise de Magaly Prado (2012), que lembra que foi aos poucos que as emissoras essencialmente jornalísticas começaram a se fortalecer no Brasil. Nos anos 1980, muitas delas, como a Jovem Pan, de São Paulo, já traziam jornais diários, como o Jornal da Manhã, com uma estrutura clássica de dois apresentadores na condução do programa. Até então, o ouvinte estava acostumado com as notícias nacionais e internacionais na frequencia AM, até a chegada da Central Brasileira de Notícias (CBN) passar a veicular informação 24 horas, em FM. A estrutura de uma emissora de conteúdo informativo e seus valores-notícia, no entanto, varia entre as afiliadas e tende a ser definida, em princípio, a partir das expectativas do público e dos objetivos da rádio com relação ao tratamento da informação, bem como de sua apropriação de novas tecnologias e utilização de ferramentas próprias do atual ambiente de convergência, no qual os veículos de comunicação de massa estão inseridos. De uma maneira genérica, pode-se concluir que, com a chegada da TV, o rádio só foi se recuperar anos depois, com a estruturação de novas emissoras construídas com base no tripé: jornalismo, esporte e entretenimento. Surge então a figura do repórter na rua, a acompanhar os fatos e reproduzir ao ouvinte o que acontece naquele exato momento. Esta foi a estratégia usada pelas emissoras de rádio para recuperar o prestígio e competir com a televisão, que ocupou o lugar do rádio na sala das casas.

O PIONEIRISMO DA RÁDIO JORNAL DO COMMERCIO A Rádio Jornal do Commercio, conhecida por Rádio Jornal, é uma estação de rádio brasileira, do Recife, Pernambuco, transmitida pela faixas de frequencia 780 AM e 90.3 FM. Foi fundada em 3 de julho de 1948, por Francisco Pessoa de Queiroz, empresário

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7327 Considerações sobre o radiojornalismo pernambucano: o modelo da Rádio Jornal do Commercio Karoline Maria Fernandes da Costa e Silva e político paraibano, e fazia parte de um conglomerado de empresas jornalísticas, cujo carro-chefe era o Jornal do Commercio, e do qual fazia parte também o Diário da Noite, fundado dois anos antes, conglomerado este depois aumentado com a criação de empresas de radiodifusão nas principais cidades do interior pernambucano2. A emissora marcou os Anos de Ouro do rádio no Brasil. Concorrente da Clube à época, era a única estação das Américas do Sul e Central a dispor de oito transmissores que possibilitaram sua veiculação para diferentes países (FIGUEIREDO; PEREIRA; GOMES; OLIVEIRA, 2011; in PRATA, 2011). Seu slogan, Pernambuco Falando para o Mundo, era conhecido porque a emissora iniciou seus trabalhos com transmissores potentes em ondas curtas e médias, que alcançavam todo o mundo - na época a mais moderna estação de rádio do Brasil. Alguns nomes conhecidos da cultura e jornalismo local fizeram parte de seu quadro inicial: Mário Sette, Valdemar de Oliveira, Fernando Castelão, Brivaldo Franklin, Edson Néri da Fonseca e Eurico Duarte. O luxo e a suntuosidade da Rádio Jornal se refletiam no edifício, batizado de Palácio do Rádio, que abrigava dois estúdios, um auditório para 750 pessoas restaurante, dancing, entre outros espaços. Os programas de auditório, as radionovelas e os boletins informativos alavancavam a audiência. De acordo com o supracitado inventário Panorama do Rádio no Brasil, um dos destaques era a locutora canadense Janet Slater Swaton, que dirigiu e apresentou o Brazil Calling – um programa em inglês transmitido para vários países. Na década de 1970, a empresa entrou em crise financeira, quando fechou o Diário da Noite, e o controle acionário passou para o empresário João Carlos Paes Mendonça, presidente do grupo JCPM, detentor do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação (SJCC). A emissora, então já sucateada, foi recuperada e retomou a liderança regional. Atualmente, a Rádio Jornal conta com comunicadores como Geraldo Freire, Ednaldo Santos, Graça Araújo, Paulo Roberto, Gino César, José Silvério, Aroldo Costa, Natan Oliveira, Maciel Júnior e Adílson Oliveira. A equipe de repórteres e produtores chegou a ser compartilhada, entre 2006 e 2013, com a da Rádio JC/CBN – afiliada da Central Brasileira de Notícias no Recife – e com a Rádio JC News (90.3 FM) emissora all news com programação regional criada pelo Sistema, que funcionou entre setembro de 2013 a setembro de 2014. Com o encerramento das atividades da JC News, a Rádio Jornal passou a transmitir, em 2015, também na frequência FM. Conforme a própria descrição na página oficial da emissora, mesmo com “estilo popular”, a Rádio Jornal tem boa parte da programação voltada ao jornalismo e à prestação de serviços. Destacam-se os noticiários O Redator de Plantão e Primeira Página (sendo esta a primeira parte do programa de Geraldo Freire, o Super Manhã), o programete de gênero policial Bandeira Dois, o Debate das 11 Horas, também sob o comando do comunicador Geraldo Freire, o Rádio Livre, com Graça Araújo, e o jornalístico O Balanço das Notícias, com Ednaldo Santos. Aos sábados e domingos, os programas fazem parte de uma faixa chamada “Comando Geral Fim de Semana”, mesmo nome do programa apresentado na madrugada de domingo por Carlos Miguel (gerente de Programação das rádios do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação).

2. Fonte: Portal da Rádio Jornal do Commercio. Disponível em: ttp://radiojornal.ne10.uol.com.br/historico/.

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Para compor o noticiário, a Rádio Jornal conta com parceria de conteúdo da Rede Jovem Pan, mas forma atualmente uma rede regional com programação própria transmitida do Recife (cabeça de rede) para cinco emissoras do Sistema Jornal do Commecio de Comunicação – SJCC no interior do estado: Caruaru, Garanhuns, Limoeiro, Pesqueira e Petrolina, como adiantado na introdução deste trabalho. Já na década de 90, com o advento da internet, iniciou transmissões via web, no ano corrente de 1996. Teria sido a primeira emissora de rádio da América Latina a transmitir sua programação pela rede mundial de computadores. Confirmando o tripé de programação (informação + entretenimento + esportes), sua equipe esportiva é uma das marcas mais fortes do rádio local. O Escrete de Ouro transmite diariamente as notícias dos principais times locais, além do Campeonato Pernambucano de Futebol, a Copa Pernambuco, a Copa do Brasil, a Copa São Paulo de Juniores, Campeonato Brasileiro de Futebol, a Copa Libertadores da América (quando há representantes de Pernambuco, caso de 2009, com o Sport) e acompanha a Seleção Brasileira de Futebol em amistosos, Copa América, Copa das Confederações, Eliminatórias da Copa do Mundo e Copa do Mundo FIFA. Na descrição oficial no site da emissora têm-se poucos detalhes históricos, coletados a partir da memória de antigos profissionais e algumas fotografias. Este estudo reproduz, entretanto, trecho importante para preservação da história da rádio de maior audiência de Pernambuco:

Prédios luxuosos, auditórios concorridos, roupas extravagantes e um sotaque britânico que levava informações do Estado para outros continentes. Da primeira vez em que foi usado o slogan ‘Pernambuco Falando para o Mundo’, em 3 de julho de 1948, até hoje, apenas o perfil da Rádio se modificou, ficando cada vez mais próxima do público. Mudou da era de ouro para a era da Internet, mas continua confirmando para todos que o seu slogan é cada vez mais atual. (...) Ao meio-dia, estava no ar o primeiro programa da Rádio Jornal, o Protofonia. O programa exaltou a imprensa escrita e a radiofônica e deixou uma mensagem de boas vindas aos ouvintes, “levando a todos os recantos do mundo a mensagem fraterna do Rádio Jornal do Commercio, oferecendo uma visão magnífica do Brasil de hoje.” (...) Depois disso, a Rádio Jornal do Commercio passou a transmitir programas com meia hora de dura- ção. Na programação, blocos com músicas românticas e modinhas. Os programas tinham nomes sugestivos como Acalantos: Músicas Leves e Suaves, que Levam ao Repouso. A nova emissora teve como redatores e produtores figuras importantes da cultura pernambucana. Alguns nomes da época são Joel Pontes, Geraldo Mendonça, Lima Filho, Caio Souza Leão, Mário Sete, Valdemar de Oliveira, Edson Neri da Fonseca e Eurico Duarte. (...) Em 1948, a Rádio Jornal do Commercio iniciou a sua transmissão de esportes. O primeiro programa a entrar no ar foi Esporte em Revista. Brivaldo Franklin e Fernando Castelão estavam na equipe esportiva da emissora, revezando entre apresentações de radioteatro, apresentação de comerciais e apresentação de notícias.3

3. História da Rádio Jornal do Commercio. Disponível em: http://radiojornal.ne10.uol.com.br/historico/. Acesso em: 5.9.13.

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Atualmente, os dados globais com relação à audiência da Rádio Jornal medidos pelo Ibope entre janeiro e março de 2015 revelam que 48% dos ouvintes pertencem à classe C4; 45% são economicamente ativos; 54% possuem o 2º ou 3º grau de instrução e 94% estão acima dos 2 anos. A média de picos de audiência é de 150.228 ouvintes por minuto entre 7h e 8h - segunda a sexta-feira, e uma média de alcance de 30 dias de 431.676 ouvintes no total. Com relação ao Super Manhã, os seguintes gráficos representam a composição da audiência no Recife (REC):

Gráfico 1. – Composição da audiência da Rádio Jornal de acordo com a classe social.

Gráfico 2 – Composição da audiência do Super Manhã por faixa etária

4. A classificação atual adotada pelo IBGE utiliza distinção por salários mínimos. Classe A1: inclui famílias com renda mensal maior que R$ 14.400; Classe A2: maior que R$ 8.100; Classe B: maior que R$ 4.600; Classe C: maior que R$ 2.300; Classe D: maior que R$ 1.400; Classe E: maior que R$ 950; Classe F: maior que R$ 400; Classe H: Bolsa Família Média de 2013 = R$ 97. Fonte: Wikipédia. Disponível em: http://pt.wikipedia. org/wiki/Classe_social

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Gráfico 3 – Composição da audiência do Super Manhã por gênero

Pelos dados explicitados acima, há que se reconhecer a Rádio Jornal como uma manifestação bastante representativa do radiojornalismo local, no que consta, principalmente, os altos índices de audiência já levantados e o pioneirismo em vários aspectos, especialmente a transmissão via internet e adequação aos padrões de digitalização. É possível perceber que esse veículo possui a maior parte das características do radiojornalismo propostas por autores consagrados da área.

A Rádio Jornal: a informação e o entretenimento Para efeito da realização deste estudo de caso, a coleta de dados envolveu o conteúdo informativo transmitido durante o programa de maior audiência da Rádio Jornal (Super Manhã) e foi realizada entre os dias 10 e l4 de junho de 2013. Além da interpretação do conteúdo gravado em DVDs disponibilizados pela emissora, a pesquisa teve acesso aos espelhos do referido programa, onde os textos e todo o material jornalístico utilizado dia a dia são armazenados em forma de relatório no software Rádio News, em uma rede interna utilizada apenas pelos funcionários do veículo. Na arquitetura do programa Super Manhã, tem-se a seguinte grade, distribuída em sete blocos (Primeira Página; Só Ganha Quem Sabe; A Hora do Bom Negócio; A Hora dos Médicos; Balanço da Dez; Debate), no horário das 7h30 ao meio-dia, de segunda a sexta-feira. Enquanto o programa inteiro é classificado pela emissora como um programa de Variedades5 o quadro Primeira Página se caracteriza por ser um programa de Notícias – razão pela qual o estudo adotou este programa na análise dos critérios de noticiabilidade da Rádio Jornal. A seqüência é distribuída da seguinte maneira: 1. Destaques da Primeira Página 7h30 às 8h, de segunda a sexta-feira. É a primeira seqüência do Super Manhã, que faz uma leitura dinâmica de todas as capas dos principais jornais do Brasil e do Mundo, dando destaque aos assuntos de maior

5. Dados do book comercial do departamento de marketing da Rádio Jornal.

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repercussão; Ainda na Primeira Página, no horário das 8h às 9h30, os ouvintes participam através do telefone e do Painel Interativo (internet), com informações sobre o trânsito e as estradas do estado. Também nesta sequencia, Geraldo Freire convoca os repórteres da Rede das principais cidades do interior de Pernambuco, para fornecer as notícias locais. 2. A Hora do Bom Negócio – às 9h40. O ouvinte que precisa trocar, vender ou comprar um determinado produto, como uma geladeira, um carro, um fogão, etc, pode ligar para a produção e ter seu anúncio divulgado gratuitamente, por Geraldo Freire. 3. A Hora dos Médicos – às 9h50. Médicos de diversas especialidades tiram dúvidas e esclarecem os ouvintes a respeito de um determinado assunto relacionado à saúde. 4. Balanço das Dez – às 10h. Interação com os ouvintes, pelo telefone e internet, sobre os mais variados temas. 5. Debate – às 11h. Personalidades do mundo artístico e cultural, políticos, empresários, médicos ou pessoas ligadas às comunidades são convidados a participar do debate com assuntos atuais e /ou relacionados ao entrevistado. Os ouvintes interagem com perguntas que são lidas pelo apresentador.

A produção do programa Super Manhã é feita com a colaboração de três jornalistas produtores, que iniciam o expediente ainda de madrugada, além de um coordenador de jornalismo, responsável pela preparação de pautas para os dois repórteres que vão às ruas e gerência de conteúdo durante manhã e início da tarde, quando passa a ser substituído por outro profissional. O comunicador Geraldo Freire também inicia seu expediente por volta das 5h da manhã. Para a produção do primeiro bloco do quadro Primeira Página, cerca de 17 manchetes de jornais são captadas através da internet. O mesmo trabalho é feito com as manchetes de jornais internacionais. Com relação à leitura das notícias locais, as manchetes são captadas através do Jornal do Commercio, veículo que também pertence ao grupo JCPM. Há ainda as informações sobre o câmbio, com as cotações do dólar e euro. O segundo bloco, com as manchetes da Primeira Página, é feito principalmente com o apurado das notícias, distribuídas nas seguintes editorias: Política, Economia, Entretenimento, Esportes, Polícia, Cidades, Cultura, Educação, Saúde, Ciência, Serviço, Tecnologia e Brasil. O conteúdo é composto basicamente por notas, matérias dos repórteres da Rádio Jornal ou colaboradores da Rádio Jovem Pan, além da participação do correspondente em Brasília, Romoaldo de Souza. A programação intercala conteúdo de duração de dez minutos e breaks comerciais de até cinco minutos de duração. Assim, a cada hora, pelo menos 20 minutos são voltados para comerciais, que são veiculados na forma de testemunhal (quando o apresentador apresenta o produto) e rotativo (comercial que é veiculado em horários diferentes na programação total da rádio). A partir da catalogação das notícias, entrevistas e reportagens, e classificação deste material de acordo com editorias pré-estabelecidas, percebeu-se que a editoria mais presente nas páginas principais dos portais supracitados é a de Entretenimento. Sua incidência supera, inclusive, a de matérias relativas a Cidades, Economia e Política. Tal

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7332 Considerações sobre o radiojornalismo pernambucano: o modelo da Rádio Jornal do Commercio Karoline Maria Fernandes da Costa e Silva fenômeno chamou bastante atenção nesta pesquisa, com a constatação de que a maior parte das notas presentes no conteúdo da Primeira Página tratou de temas leves e que não contribuem para um maior censo crítico do público ouvinte com relação às grandes questões da atualidade. Embora o conteúdo tenha uma boa distribuição entre as editorias, predominam os assuntos voltados para Bastidores da TV e Celebridades, o que leva esta pesquisa a perceber o critério referencial prático do uso do jornalismo como palco para expressão da cultura do entretenimento. Na análise geral da semana analisada (segunda a sexta-feira, entre os dias 10 e 14 de junho de 2013), percebeu-se que, em um universo de 255 notícias catalogadas (Atenção: verificar se está correta esta frase), a Primeira Página dedicou (na forma de notas voltadas para assuntos ligados a Celebridades e curiosidades sobre a TV brasileira) 87 notícias classificadas como Entretenimento; 55 notícias dedicadas à editoria Cidades, 45 voltadas para Esportes; 27 de Política; 17 de Polícia; 10 Internacional; 2 de Cultura; 4 de Saúde; 3 de Brasil; 3 de Educação; 1 de Tecnologia; e 1 de Ciência. Analisados os dados sobre as matérias dia a dia, percebe-se como o conteúdo informativo se mantém prioritariamente voltado para assuntos ligados a Entretenimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A presente pesquisa vem a colaborar com a comunidade acadêmica no sentido de resgatar a memória da maior expoente do radiojornalismo pernambucano, e, certamente, um ícone muito importante do rádio brasileiro – a Rádio Jornal. Entretanto, o estudo chama a atenção para as perdas da sociedade na priorização de grande parte de conteúdo jornalístico no rádio voltado para a simples distração, embora reconhecidos os papeis da mídia de entreter e estimular a diversão na sociedade contemporânea. Diante dos desafios da complexidade da vida moderna, especialmente em torno da discussão da “opinião pública”, não se pode descartar a possibilidade da deliberação democrática na discussão publica articulada e mediada pelo Jornalismo poder acarretar mudança de padrões culturais, nos hábitos que influenciam na forma de pensar e agir do indivíduo e da coletividade. A opinião pública ganha espaço nos debates políticos sociais e econômicos. Enquanto expressão da democracia, o debate de idéias deve ser estimulado através da mídia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS COSTELLA, Antônio F. O Controle da Informação no Brasil: Evolução Histórica da Legislação Brasileira de Imprensa. São Paulo: Vozes, 1970. CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2012. FERNANDES, Karoline. A Construção da notícia no Rádio e as nova rotinas produtivas: um estudo da Rádio Jornal do Commercio. Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (2014). GOMES, Isaltina Maria de Azevedo Mello. Considerações sobre o radiojornalismo em Pernambuco. In: ORTRIWANO, Gisela Swetlana (Org.). Radiojornalismo no Brasil: dez estudos regionais. São Paulo: COM-ARTE, 1987. JUNG, Milton. Jornalismo de rádio. São Paulo: Ed. Contexto, 2005. LIMA, Zita de Andrade. Princípios e técnica de radiojornalismo. Brasília: Icinform, 1970.

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7334 As fábricas de música e o trabalho artesanal dos selos independentes na Vanguarda Paulista The music factory and the craft work of the independent labels in Vanguarda Paulista

M au r o N a s c i m e n to C l e m e n t e 1

Resumo: Este artigo, parte de uma pesquisa de Mestrado em andamento, abor- da as transformações ocorridas na indústria fonográfica nos anos 1970 e 1980, o sistema de vínculos que esta indústria formou junto às emissoras de rádio e televisão e o consequente surgimento do modo independente de produção musical em oposição a este sistema. Analisaremos as mudanças estruturais e comerciais nas práticas da indústria cultural, principalmente no que tange à criação e divulgação de canções populares e a influência que estas práticas tiveram na decisão dos artistas da Vanguarda Paulista em optarem pelos cha- mados “selos independentes” Embasaremos o quadro teórico sobre a indústria fonográfica a partir de autores como Rita Morelli, Zuza Homem de Mello, Marcos Napolitano, José Adriano Fenerick e outros. Utilizaremos, também, relatos de artistas ligados ao momento da Vanguarda Paulista para reconstruir o cenário cultural da época através do método da história oral. Observamos que a con- solidação do modo industrial na música causou a padronização no formato de canção, de forma que o espaço para a experimentação musical ficou restrito, levando artistas alternativos a se lançarem em aventura independente para preservarem a originalidade de suas obras. Palavras-Chave: Indústria fonográfica. Vanguarda Pàulista. Canção popular.

Abstract: This article, part of an ongoing Master’s research, approaches the changes occurred in the music industry in the 1970s and 1980s, the links system that this industry formed with the radio and television stations and the consequent emergence of independent music production as opposed to this system. Analyze the structural and commercial changes in the practices of the cultural industry, especially regarding to the creation and dissemination of popular songs and the influence that these practices have had on the decision of the artists of Vanguard Paulista in choosing the so-called “independent labels” We propose as a basis of the theoretical framework on the recording industry from authors such as Rita Morelli, Zuza Homem de Mello, Marcos Napolitano, José Adriano Fenerick and others. We will use also reports of artists linked to the time of Vanguard Paulista to rebuild the cultural scene of the time by the method of oral history. We observe that the consolidation of the industrial mode

1. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Midiática, Universidade Paulista, São Paulo-SP, [email protected].

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7335 As fábricas de música e o trabalho artesanal dos selos independentes na Vanguarda Paulista Mauro Nascimento Clemente

in music caused a standardization in the song format, so the space for musical experimentation was restricted, making the alternative artists to embark on an independent adventure to preserve the originality of their works. Keywords: Music Industry. Vanguarda Paulista. Popular song

STE ARTIGO quer compreender o que ocorreu, no Brasil, com a indústria fonográ- fica, “negócio hoje mortalmente ferido” segundo André Midani (2008), profissional Erespeitado desta indústria entre 1960 e 1990; e a influência que a mesma teve sobre os meios de comunicação, em especial sobre as emissoras de rádio e televisão. E, a partir disso, relatar a consequente aparição dos “independentes” na área de produção musical. A princípio, as gravadoras se beneficiavam da aceitação popular de músicas premiadas nos grandes festivais dos anos 1960, gravando compactos imediatamente após os resultados dos mesmos. Porém, com o esvaziamento dos grandes festivais, em virtude do exílio de seus principais nomes, a indústria fonográfica se organizou em torno dos meios de comunicação. A partir de meados dos anos 1970, as gravadoras multinacionais, já consolidadas, estabeleciam sua estratégia de controle sobre a produção artística brasileira. Antes disso, a indústria fonográfica já havia priorizado o “iê-iê-iê” (designação dada, em tom jocoso, a partir de “yeah, yeah, yeah” do refrão do clássico rock’n roll dos Beatles) típico do movimento conhecido como Jovem Guarda. Este movimento era “visto com bons olhos” ou “ouvido com bons ouvidos” pela nova ordem política que se instituía. As gravadoras, agora, influenciavam sobre a decisão de quem deveria ser veiculado nas rádios ou apresentado nos programas de auditório e quem, por outro lado, não atendia a seus interesses comerciais. As multinacionais, empresas estrangeiras do ramo fonográfico que obtinham grandes lucros em nosso país com a nossa própria cultura, não bastasse isso, passaram a escolher, também, os artistas a serem lembrados e quais cairiam no esquecimento. A antropóloga Rita Morelli, em seu livro “Indústria fonográfica: um estudo antropológico”; aponta os caminhos que se seguiram a partir daquele momento:

Ao que parece, as companhias de disco assumiam cada vez mais a função de divulgação dos artistas da MPB, invertendo-se a relação anteriormente existente entre o aparecimento e a gravação: ao invés de surgirem com um trabalho novo, que despertasse a atenção do público e que, consequentemente, interessasse às companhias, parece que os novos artis- tas de MPB interessavam antes a essas companhias e elas é que faziam a apresentação do trabalho desses artistas ao público. (Morelli, 1991, p. 58-59)

Esta inversão, descrita por Morelli, é um ponto fundamental para a compreensão do que aconteceu no mercado fonográfico brasileiro a partir deste período. Quando a televisão começa a fazer parte da vida cultural dos brasileiros, nos anos 1960, os músicos e cantores continuam sendo a atração principal, obtendo altos índices de audiência de um seleto público que já podia comprar seus caros aparelhos televisores. Os proprietários das emissoras de televisão, que também eram proprietários das principais rádios da época, mantinham suas atrações sob contrato e brigavam pelos talentos que despontavam.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7336 As fábricas de música e o trabalho artesanal dos selos independentes na Vanguarda Paulista Mauro Nascimento Clemente

Durante os grandes festivais, principalmente a partir de 1965, as gravadoras se locupletaram com os inúmeros artistas que surgiram tanto nos palcos do Teatro Record, em São Paulo; como no Maracanazinho, nos Festivais Internacionais da Canção (os “FIC”), no Rio de Janeiro. Mas a “Era dos Festivais” foi perdendo força pelos altos custos de produção e pelo momento crítico da política nacional que se endureceria a partir do Ato Institucional número 5 (o AI-5), em dezembro de 1968, apenas quatro dias após a final do festival da Record. Esta situação forçava seus principais nomes a fugirem do país com medo de serem presos. Na virada para os anos 1970, a situação não ficaria melhor; alias, ao contrário, pois foi o momento de maior perseguição política, fase chamada de “anos de chumbo” pelos historiadores brasileiros. As estações de rádio, que nos anos 1960 ainda contavam com suas radionovelas como carro-chefe de suas programações, a partir dos anos 1970 tiveram que se acostumar a vender seus espaços publicitários oferecendo apenas música e notícias, o que representaria um caminho aberto para as gravadoras consolidarem sua hegemonia. Adoniram Barbosa, compositor de sucesso incontestável de público nos anos 1950 e 1960, em uma canção em tom melancólico, reclamava da falta de espaço nas rádios no começo dos anos 1970. Ironizando uma expressão típica da jovem guarda que dizia: “É uma brasa!”, ao se referir a algo considerado bom por alguém ou por uma coletividade, Adoniram compõe, em 1973, uma canção chamada “Já fui uma brasa”, que só ficou conhecida mesmo, em 1978, por ocasião do disco ao vivo que gravou ao lado de Elis Regina. Contando sobre sua carreira a Elis, no concerto ao vivo, ele canta esta canção:

Eu também um dia fui uma brasa E acendi muita lenha no fogão E hoje o que é que eu sou? Quem sabe de mim é o meu violão

Mas lembro que o rádio que hoje toca Iê-iê-iê o dia inteiro Tocava Saudosa Maloca (Adoniram Barbosa. Já fui uma brasa. EMI-Odeon, 1973)

Em depoimento direto, neste mesmo LP, Adoniram perguntaria: “Porque não tocam minha música? Se todas são boas... Qualquer uma... Caramba! É algum crime que eu cometi?”. Na virada dos anos 1960 para os anos 1970, ocorreu uma dominação comercial do espaço da cultura nacional, sobretudo na música, em decorrência de uma política econômica internacionalista, planejada pela ditadura militar. Isto interessava tanto às companhias estrangeiras do mercado fonográfico quanto à Escola Militar, uma vez que diminuía, dentro do cenário musical popular, o espaço para a “canção de protesto” (onde as letras abordavam a política nacional em tom de denúncia) ou mesmo qualquer tipo de música considerada crítica ou, utilizando um termo da época, “subversiva”. É preciso lembrar que muitos artistas foram presos durante a ditadura ou tiveram que se exilar em outros países para não se tornarem prisioneiros políticos, pelo simples fato de fazerem músicas críticas, de qualquer natureza, no momento em que o lema dos

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7337 As fábricas de música e o trabalho artesanal dos selos independentes na Vanguarda Paulista Mauro Nascimento Clemente militares era: “Brasil, ame-o ou deixe-o!”. Mesmo “amando o país”, deixá-lo parecia o mais sensato a se fazer, especialmente quando o artista não concordava com um governo de militares. O trauma resultante da prisão dos compositores Caetano Veloso e Gilberto Gil e, ainda, a perseguição a outros a exemplo de Chico Buarque e Geraldo Vandré, levou muitos a preferirem “amar o Brasil” como um amor distante e, naquele momento, não correspondido, ou seja, amá-lo com saudade em forçosa ausência. Contudo, a TV Record faria mais uma edição de festival em 1969, e os “FIC” continuariam até o ano de 1972, propiciando o surgimento de novos artistas que aproveitaram-se da ausência dos ídolos famosos. Com o fim dos festivais, o panorama cultural já havia mudado de forma, aparentemente, irreversível. O compositor e poeta Gil Nuno Vaz, no livro “História da Música Independente” (1988), relata que mesmo os artistas já consagrados da música popular brasileira, como os citados anteriormente, sentiram os efeitos deste processo:

(...) ocorreram algumas mudanças substanciais no mercado de discos e nos meios de comu- nicação de massa no Brasil. O próprio Chico Buarque, ao voltar da Itália em 1974, comentava que a televisão organizara-se de tal modo que passaram a predominar determinadas regras para fazer sucesso, restringindo as oportunidades para os novos valores (Vaz, 1988, p. 20)

O que se sucedeu, a partir daí, é que os artistas mais ousados, que propunham criações mais inovadoras ou de caráter experimental, tiveram que buscar outra forma de viabilizarem seus trabalhos, o que os levou ao modo “independente” de produção. A ideia era dominar as técnicas de produção, divulgação e distribuição para realizarem seus projetos à revelia das concessões mercadológicas das gravadoras multinacionais. Esta era a única forma de desviar o foco do lucro racional para a criatividade musical, sem espaço na lógica desse sistema.

A canção, e não mais o disco inteiro, tinha que ter começo, meio e fim, e se transformar num “jingle da vida” durante os três minutos de sua existência... Todas as estações de rádio foram obrigadas a tocar a mesma música, “a música de trabalho”, e o preço do jabá foi à estratosfera. (Midani, 2008, p.127)

O relacionamento pouco transparente, pra dizer o mínimo, entre as gravadoras e os meios de comunicação, impunha uma barreira monumental contra os artistas do ramo da música. Mantendo, desta maneira, o controle absoluto sobre o mercado de discos até meados dos anos 1970, quando do surgimento dos selos independentes. O primeiro artista a criar seu selo independente foi Antônio Adolfo, que havia voltado ao Brasil em 1975, após quatro anos de cursos de aperfeiçoamento no exterior, mas que, apesar disso, não conseguia convencer os executivos da indústria fonográfica da viabilidade de suas propostas, embora alguns críticos não vissem nada de novo em suas composições. Em 1977, no Rio de Janeiro, Adolfo cria o selo “Artezanal” e faz seu primeiro álbum, “Feito em Casa”. Este LP contava com artistas como Luli e Lucina, Olívia Byngton e Jacques Morelembaum, entre muitos outros. Em São Paulo, a partir de 1974, um processo semelhante estava acontecendo, ou seja, o desejo de ser independente da indústria fonográfica, que resultou na criação do

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7338 As fábricas de música e o trabalho artesanal dos selos independentes na Vanguarda Paulista Mauro Nascimento Clemente pequeno teatro “Lira Paulistana”, criado por Wilson Souto Junior, o “Gordo”, e seus sócios, que planejavam criar um espaço para os novos artistas que surgiam na ocasião. Na São Paulo dessa época, uma eloquente produção de música experimental, alternativa e independente surgia com considerável força local, a chamada “Vanguarda Paulista”. Ao menos, esse foi o rótulo dado por alguns críticos musicais da época para um momento em que artistas criativos tentavam trazer uma nova música popular ao cenário cultural brasileiro, a partir de São Paulo, berço da maioria deles e laboratório para alguns. Os nomes ligados à Vanguarda Paulista eram de músicos de formação erudita, em sua maioria, trazendo suas propostas mais ligadas à música artesanal, procurando soluções alternativas, diferentes do molde imposto pela indústria da música que dominava o mercado naquele momento. Acreditamos que tais práticas dos grupos relacionados ao conceito de Vanguarda Paulista transformaram-se em táticas importantes para driblar a rigidez estratégica da indústria fonográfica daquele momento. Esses grupos gravavam seus discos em selos independentes com financiamento próprio e usando, como canais de divulgação e pontos de venda dos seus LPs, os shows realizados em locais alternativos como: Lira Paulistana, Sesc Fábrica da Pompéia, Projeto Funarte e Centro Cultural Vergueiro. Eram espaços recém-criados no início dos anos 1980, em São Paulo, e esses locais serviram de redutos dessa nova música popular que se propunha. Muitos artistas se destacaram, nesta época, sendo os principais nomes: Itamar Assunção e a banda Isca de Polícia, Arrigo Barnabé e a banda Sabor de Veneno, Luiz Tatit e o grupo Rumo, Laerte Sarrumor e o grupo Língua de Trapo, além das cantoras Ná Ozzetti, Vânia Bastos, Suzana Salles, Virgínia Rosa, entre muitos outros. Podemos citar uma canção do grupo “Premeditando o Breque”, conhecido como Premê, que faz uma crítica incisiva sobre o estilo de vida de uma classe média fortemente influenciada pelos meios de comunicação e que, já na época, estava integrada com o pensamento conservador, atenta ao apelo do liberalismo econômico. Na letra desta canção, encontramos uma série de referências muito importantes:

Gosto de levar vantagem em tudo que eu faço Todo santo dia eu penso em Deus e faço fé na loteria Sou um homem bem casado, respeitado e sério, mas assisto novela

Vida Besta, Vida Besta...

Sempre que eu posso, eu passo numa padaria e peço pão na graxa Tenho carro, tenho televisão, nunca estou sozinho eu não conheço a solidão Tempo é dinheiro...

Vida Besta, Vida Besta...

Sou new wave, fashion, video game, shopping center Sou uma gatinha, agito todas do momento Mas uma coisa eu guardo prá depois do casamento

Trabalho, Trabalho, Trabalho, Trabalho,

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Vida Besta, Vida Besta...

Paz, sossego, conforto, descanso, não tem mistério Pensando no futuro comprei um terreninho no cemitério Trabalho o ano inteiro e gasto tudo nos presentes de Natal Peguei fila, furei greve, puxei “saco”, venci na vida...

Vida Besta, Vida Besta...

(Premê, Vida Besta, Emi-Odeon, 1985)

A forte crítica ao sistema social vendido pelos meios de comunicação como a exata definição de “felicidade e sucesso”, certamente, não foi bem aceita pelo mercado fonográfico da época. Mas a canção faz uma crítica cada vez mais atual ao modo de vida do paulistano. Arranjada com bateria eletrônica em ritmo próprio da era new wave, dos anos 1980, o grupo profetiza o que se vê constantemente após os anos 2000 e, agora, não só na capital de São Paulo, mas em todo o país com pequenas nuances distintivas. Estão aí, na letra, no tempo acelerado e no ritmo marcado da canção, todos os elementos que nos afligem na sociedade da modernidade tardia: competitividade, individualismo, devoção à tecnologia, consumismo exacerbado, resignação e total submissão a um sistema que limita ou submete a criatividade, oprime e desmobiliza o cidadão. A maneira com a qual a Vanguarda Paulista ocupou os espaços da cidade com shows itinerantes em praças públicas ou palcos alternativos, a forma de divulgar o trabalho por meio de cartazes, encartes, fanzines ou de comercializar os trabalhos por ocasião dos próprios espetáculos, tornaram-se práticas de resistência à dominação da indústria fonográfica. A criação de selos independentes foi fundamental neste processo, mas é preciso lembrar, no entanto, que os selos independentes não ficaram restritos a São Paulo. O grupo vocal Boca Livre (de Maurício Maestro e companhia) construiu sua carreira de forma independente, mas depois se tornou um grupo de sucesso nacional, tendo inclusive músicas incluídas em trilhas sonoras de novelas da rede Globo de televisão, um dos itens que mais corroboravam para sucesso de público de qualquer grupo musical e que aumentava o poder das emissoras de televisão. A tal ponto que, em 1969, a própria Rede Globo criou a “Som Livre”, seu selo fonográfico particular, para comercializar as trilhas sonoras de suas telenovelas. O historiador Marcos Napolitano (2008) descreve o momento da produção musical brasileira, neste período, no trecho a seguir:

Na virada da década de 1970 para a década de 1980, havia uma considerável rede de produção musical alternativa, fora do esquema monopolista da indústria fonográfica brasileira: os selos Kuarup (RJ), Artezanal (RJ), Lira Paulistana (SP), Bemol (MG), entre outros, tiveram um importante papel na disseminação da música, fora dos grandes circuitos comerciais, assim como os teatros Lira paulistana e Sesc-Pompéia, que no começo da década de 1980, foram verdadeiros templos da música e do movimento independente e alternativo. (Napolitano, 2008, p. 128)

Os independentes resistiram bravamente contra uma indústria fonográfica poderosa, dona dos espaços oficiais da cultura e fortemente atrelada aos meios de comunicação

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7340 As fábricas de música e o trabalho artesanal dos selos independentes na Vanguarda Paulista Mauro Nascimento Clemente e estes ao poder econômico internacional. Esta indústria obstava os músicos de caráter mais empírico e experimental, dificultando, a pretexto do mercado, a aparição de novos conceitos musicais ou novas propostas de arranjos e composições. Para saltar tais obstáculos, os músicos inovadores que desejassem divulgar suas obras, necessitavam de práticas alternativas que contornassem o bloqueio imposto e resultassem em efetiva comunicação com o público ouvinte. Esta prática, transformada em tática de rebeldia contra a lógica de dominação industrial do mercado fonográfico era a única saída encontrada por estes artistas naquele momento. Esta ideia está contida em uma das canções do Grupo Rumo de autoria de Luiz Tatit e interpretação de Ná Ozzetti, em 1981, chamada “Canção Bonita”:

Ele fez uma canção bonita Pra amiga dele E disse tudo que cê pode dizer Pra uma amiga na hora do desespero.

Só que não pôde gravar. E era um recado urgente, Ele não conseguiu Sensibilizar o homem da gravadora. E uma canção dessas Não se pode mandar por carta, Pois fica faltando a melodia. E ele explicou isso pro homem: “- Olha, fica faltando a melodia!”

[...] Então ele mobiliza o pessoal todo Pra aprender a cantar sua música E poder cantar pro outro e este, então, Pra mais um outro... Até chegar na amiga.

(Grupo Rumo, Canção Bonita, Lira Paulistana, 1981)

Claramente evidenciada, aí, a proposta do “boca a boca” com o público dos espetáculos para divulgar as composições do grupo e para, quem sabe um dia, conquistar o espaço que os músicos esperavam alcançar, “driblar o esquema” estabelecido entre gravadoras multinacionais e emissoras de rádio e televisão, para ser a contra mola dentro da engrenagem da indústria cultural. O objetivo, portanto, era de ser “independente” na criação, mas chegar ao público e, mais que isso, ser reconhecido pela grande imprensa pelo trabalho executado. Na verdade, estes artistas não rejeitavam a indústria da cultura, mas simplesmente, achavam que também poderiam fazer parte dela, pois reputavam seus trabalhos como viáveis apesar de diferentes e fora dos padrões estéticos exigidos como norma pelas gravadoras. Na canção “Prezadíssimos ouvintes”, de Itamar Assumpção (outro artista da Vanguarda Paulista), ficaria mais claro ainda o desejo de reconhecimento pelos meios de comunicação. Itamar conta o seu percurso errante até chegar à frente dos microfones:

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7341 As fábricas de música e o trabalho artesanal dos selos independentes na Vanguarda Paulista Mauro Nascimento Clemente

Boa noite, prezadíssimos ouvintes! Pra chegar até aqui Eu tive que ficar na fila, Aguentar tranco na esquina E por cima lotação. [...] Já cantei num galinheiro, Cantei numa procissão. Cantei em canto de terreiro. Agora eu quero é cantar na televisão.

(Itamar Assumpção, Prezadíssimos Ouvintes, Lira paulistana, 1983)

Um dos LPs concebidos por Itamar Assumpção, o que foi gravado em 1983, chamava- se “As próprias custas S.A.”, alusão inequívoca ao modo de captação financeira usado para a viabilização do trabalho do músico. Itamar era considerado um dos melhores daquela geração pelos próprios participantes da Vanguarda Paulista. Itamar e seu “rock de breque” (como descreve Luiz Tatit em uma canção que reverencia o compositor) encantou aos críticos musicais da época, balançou um público cativo, até hoje, órfão deste único e original compositor; mas mesmo assim, apesar do músico ter feito alguns especiais na TV Cultura, em São Paulo, e algumas aparições na TV Gazeta, também uma emissora local paulista, a televisão não o descobriu plenamente. Consagrados, os artistas da Bossa Nova, do Clube da Esquina, dos Grandes Festivais ou da, já digerida, Tropicália eram os produtos dedicados ao ouvinte adulto de música brasileira. Assim, os independentes ficaram prensados entre a MPB tradicional e o novo rock brasileiro que vinha de todos os estados da nação, com força total entre os jovens. Uma vez retomada a democracia, a lógica do capitalismo neoliberal aplicada à indústria de discos já havia neutralizado a retórica das canções de protesto dos anos 1960 e 1970, o mercado passou a faturar sobre o conteúdo, e avaliar o potencial de mercado pela forma musical, assim, o rock nacional era a aposta das gravadoras. As canções da Vanguarda Paulista também se permitiram falar sobre coisas específicas da cidade, com o sotaque característico do cidadão paulistano, contando histórias do cidadão comum perdido no imenso cenário da metrópole. Um exemplo é a composição “Ladeira da Memória”, 1983, de José Carlos Ribeiro, integrante do grupo Rumo:

Olha as pessoas descendo, descendo, descendo... Descendo a ladeira da memória até o vale do Anhangabaú Quanta gente! Com o ar aborrecido olhando pro chão O reflexo dos edifícios e dos carros nas poças d’água. E pros pingos pingando, pingando, pingando, pingando...

[...] Olha as pessoas felizes, felizes, felizes... Felizes porque a chuva que caia agora há pouco, Esta chuva que caia agora há pouco, já passou... (Grupo Rumo, Ladeira da Memória, Lira Paulistana, 1984)

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7342 As fábricas de música e o trabalho artesanal dos selos independentes na Vanguarda Paulista Mauro Nascimento Clemente

Já, dentro da lógica industrial das gravadoras, a música é apenas um produto que precisa ser amplamente comercializado em mercado nacional, com tema fácil (“extrema- mente fácil”, como diz a canção de Jota Quest), esteticamente simplificado e generalista; à despeito até mesmo da qualidade artística ou das “regionalidades” culturais específicas de cada cidade ou região. O músico Hélio Zinskind, integrante do Grupo Rumo, ao ser entrevistado no docu- mentário “Lira Paulistana e a Vanguarda Paulista” (2012), pergunta em tom indignado: “Mas por que não tocaram a nossa música? Por que?”. A mesma pergunta que Adoniram já havia feito antes. Esta não é uma pergunta fácil de ser respondida, pois a música do Rumo, espe- cialmente, alcançava grande sucesso de público nos shows e não tinha conteúdo tão hermético assim que não pudesse ser compreendida pelo grande público dos meios de comunicação, da mesma forma que os sambas de Adoniram, igualmente, não o tinham. Parte da resposta, portanto, pode ser compreendida pelo poder das gravadoras naquele momento junto às emisoras de rádio e televisão e, também, pela forma com que esta indústria fonográfica via a iniciativa destes artistas da Vanguarda Paulista. Os selos nacionais independentes foram vistos como concorrentes comerciais; portanto, uma ameaça, e os artistas que optaram por esta forma de inserção no mercado fonográfico, talvez, possam ter sido interditados por esta lógica de influência que se exercia sobre os meios de comunicação. O professor José Adriano Fenerick (USP), estudioso em música popular brasileira, escreveu o livro “Façanha às próprias custas: a produção musical da Vanguarda Paulista (1979-2000)”, em 2007. Na apresentação deste livro, o professor Fábio Akcelrud Durão (UNICAMP), considera que a experiência dos independentes teria resultado em um retumbante e amargo fracasso. O autor inicia esta apresentação do trabalho de seu colega com as seguintes palavras:

O que fazer com a constatação de que forças críticas e criadoras, aglutinadoras de contes- tação e imaginação em um só movimento, tenham simplesmente desaparecido sem deixar vestígio, não conseguindo fazer frente ao poder de homogeneização da mercadorização que atrai tudo a si? Ou pior: como digerir a conclusão de que foi justamente o impulso de revolta, o desejo de exterioridade em relação ao mundo da mesmice do lucro, que em última instância forneceu o combustível para a renovação do capital, que agora mimetiza o elogio ao excesso, e alardeia o consumo como transgressão? (Fenerick, 2007, p. 17)

Percebe-se, nas entrelinhas, que há um ressentimento pelo fato de que, a esses artistas independentes, não lhes foi dada a chance de chegar ao grande público. Encontra-se o mesmo ressentimento nas declarações feitas, por outros artistas, no mesmo documentário dirigido por Riba de Castro, um dos sócios fundadores do Lira Paulistana. Wandi Doratiotto, músico integrante do Premê, diz: “a gente levava os discos e pedia pro DJ ouvir. Daí, o cara perguntava: ‘qual é a música de trabalho?’ Que música de trabalho, que nada, ouve aí, pô!”. O esquema com as gravadoras já estava estabelecido e as canções do Premê não tocaram no rádio, excessão feita a “São Paulo, São Paulo”, incluída na trilha Sonora da novela “Vereda Tropical” da rede Globo de televisão e que foi amplamente divulgada nas radios, não por acaso.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7343 As fábricas de música e o trabalho artesanal dos selos independentes na Vanguarda Paulista Mauro Nascimento Clemente

Há, sobretudo, esta sensação de que faltou “boa vontade” para com esses talentos por parte da indústria fonográfica e também por parte das grandes emissoras de radiodifusão naquela oportunidade. Trabalhos inovadores, no mínimo, são considerados, pelos fãs daqueles grupos, desperdiçados porque rejeitados pela lógica do mercado. Fato que revela a incompreensão da grande mídia para com uma produção musical que, afinal de contas, não era tão nociva assim e, certamente, não pode ser considerada desprezível. Ao contrário, era percebida, pelo público de então, como divertida, criativa e irreverente, qualidades desejadas pelos jovens de todas as épocas. Porém, inspirado nas ideias encontradas em “A invenção do cotidiano”, de Certeau, tendemos a pensar que esta, talvez, não seria a melhor maneira de compreender o que se deu. Há que se considerar uma tática de resistência não como o desejo de tornar-se hegemônico ao tomar o lugar da hegemonia antagônica, e sim, de conseguir existir e manter-se produtivo e livre mesmo em condições adversas. Realizar a qualquer custo o projeto a que o artista se propõe, ainda que seja, eventualmente, ignorado ou até sabotado pela estratégia de controle do oponente. Estratégia esta, geralmente, de força desproporcionalmente superior e que permite, a quem exerce o poder de dominação, a interdição ou a premiação. O fato de que essa lógica de domínio também, e hoje principalmente, se aplique ao âmbito da cultura popular é que pode ser considerado uma violência. Porém, da mesma maneira, não seria propriamente uma novidade que a cultura determinada pelo vencedor se sobreponha à cultura de uma minoria vencida. A duras penas e, muito provavelmente, com menos reconhecimento por parte da mídia do que o merecido, é verdade. No entanto, as músicas da Vanguarda Paulista obtiveram um alcance de sucesso local considerável, conquistando um espaço pequeno, porém valioso e mantendo um público fiel, que desafiou o tempo junto com seus ídolos. Hoje, em 2015, pode ser considerado um registro de um momento importante na vida sociocultural do país. De qualquer forma, há que se valorizar o legado artístico deixado pelos artistas da Vanguarda Paulista, que dedicaram suas carreiras e seus talentos à criação de uma nova música popular brasileira. Sobre esse tema, Fenerick (2007), escreve em suas conclusões:

De qualquer modo, e como uma última consideração, mais importante do que tentar colocar o trabalho desses músicos sob o guarda-chuva de rótulos redutores (e quase sempre pro- blemáticos), acreditamos ser mais interessante e legítimo pensá-lo a partir da importância que esta experiência nos legou. Ao manter suas subjetividades criadoras a todo custo – sua artesanalidade – esses músicos puderam alargar (de forma inventiva e, acima de tudo, crí- tica) um campo que veio se constituindo (não de forma linear) ao longo do século XX como de grande importância sociocultural: o campo da música popular brasileira. (Fenerick, 2007, p. 183)

A Vanguarda Paulista atravessou a ditadura rumo à democratização política, presenciou o ocaso da censura prévia, foi bem mais que simplesmente testemunha ocular da história. Estes artistas fizeram parte dela diretamente, buscando a democracia em um lugar tão caro à sociedade que é o espaço da cultura, fundamental na formação da identidade do cidadão brasileiro ou, em alguns casos, do cidadão paulistano como em muitas canções do Premê.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7344 As fábricas de música e o trabalho artesanal dos selos independentes na Vanguarda Paulista Mauro Nascimento Clemente

REFERÊNCIAS Certeau, M. De. (1994). A invenção do cotidiano: um. Arte de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes. Fenerick, J. A. (2007). Façanhas às próprias custas: a produção musical da Vanguarda Paulista (1979-2000). São Paulo: Annablume; FAPESP. Mello, Z. H. De (2003). A era dos festivais: uma parábola. Rio de Janeiro: Editora 34. Midani, A. (2008). Música, ídolos e poder: do vinil ao download. Rio de Janeiro: Nova Fonteira. Morelli, R. (1991). Indústria fonográfica: um estudo antropológico. Campinas, SP: Editora U N ICA M P. Napolitano, M. (2008). Cultura Brasileira: utopia e massificação (1950 – 1980). São Paulo: Contexto. Vaz, G. N. (1988). História da música independente. São Paulo: Brasiliense.

Discográficas: Adoniran Barbosa. (1974). Já fui uma brasa. Em Adoniran Barbosa. [LP]. São Paulo, SP: Eldorado. Grupo Rumo. (1981). Canção bonita. Em Rumo. [LP]. São Paulo, SP: Lira Paulistana. Grupo Rumo. (1983). Ladeira da memória. Em Diletantismo. [LP]. São Paulo, SP: Lira Paulistana. Itamar Assumpcão. (1985). Prezadíssimos ouvintes. Em Sampa Midnight. [LP]. São Paulo, SP: Mifune Produções. Premeditando o Breque. (1985). Vida besta. Em O melhor dos iguais. [LP]. Rio de Janeiro, RJ: Emi-Odeon.

Audiovisuais: Castro, R. de (Diretor/Produtor) (2012). Lira Paulistana e a Vanguarda Paulista: um docu- mentário musical. [DVD]. São Paulo: Pirata Busca Vida Filmes.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7345 Cassandra Rios - na contramão da contramão Cassandra Rios - counter to the opposite

Sa n d ra R e i m ão 1

Resumo: Este trabalho tem por objeto a censura a livros de Cassandra Rios na década de 1970; e por objetivo identificar e analisar a especificidade da cen- sura à obra desta escritora no conjunto das ações de censura a livros durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). Autora de mais de 40 livros, campeã de vendagem nos anos 1970, Cassandra Rios formava com Adelaide Carraro a dupla líder da literatura erótico-pornográfica brasileira no período. A fim de melhor compreender a natureza da censura exercida a livros de Cassandra Rios analisamos os argumentos censórios presentes nos 16 pareceres de veto à autora na Divisão de Censura de Diversões Públicas depositados no Arquivo Nacional (disponíveis para consulta). A observação dos pareceres evidencia que os argumentos de veto concentram-se na observação da presença de “cenas de sexo”, especialmente homossexual, caracterizado pelos censores como “nocivo” e “deprimente”. Na contramão do regime autoritário, Cassandra Rios pregava a liberdade sexual. Líder de vendagem foi também líder de vetos censórios. Suas obras destoavam da imagem edulcorada do Brasil e da família brasileira que as autoridades buscavam construir. Palavras chave: censura, livros, Cassandra Rios.

Abstract: This work aims at the censorship of the Cassandra Rios books in the 1970s; and to identify and analyze the specific censorship of this author in others actions of censorship of books during the Brazilian military dictatorship (1964- 1985). Author of over 40 books, bandage champion in the 1970s, Cassandra Rios formed with Adelaide Carraro the leading duo of Brazilian erotic-pornographic literature in the period. For understanding the censorship of Cassandra Rios books, we analyze the censorial arguments present in the veto advice in the Division of Public Entertainment Censorship deposited in the National Archives and available for consultation. The observation shows that the veto arguments focus on the observation of the presence of “sex scenes”, especially homosexual, characterized by the censors as “harmful” and “depressing”. Going against the authoritarian regime, Cassandra Rios preached sexual freedom. Bandage leader was also leader of vetoes censorial. The Cassandra books clashed sweetened the image of Brazil and the Brazilian family that the authorities sought to build. Keywords: censorship, books, Cassandra Rios

1. Sandra Reimão, professora livre docente na Universidade de São Paulo. Email: [email protected]

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7346 Cassandra Rios - na contramão da contramão Sandra Reimão

INTRODUÇÃO OLÚPIA DO Pecado, Nicoleta Ninfeta, O prazer de pecar, Uma mulher diferente – eis alguns títulos de autoria de Cassandra Rios. V Autora de mais de 40 livros, campeã de vendagem nos anos 1970, Cassandra Rios formava com Adelaide Carraro (autora de Os amantes e Os padres também amam) a dupla líder da literatura erótico-pornográfica brasileira no período. Segundo consta em seu obituário publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 08.03.2002, as obras de Cassandra Rios, nascida em 1932 e falecida em 2002 (nome de batismo: Odete Rios) a vender 300.000 exemplares por ano. O segmento da literatura erótico-pornográfica na década de 1970 no Brasil contava também com outros nomes como Brigitte Bijou (Amor a três, A garota cobiçada) e Márcia Fagundes Varella (Dois corpos em delírio, A mulher pecado). Esse trabalho tem por objeto a natureza da censura exercida em relação a livros de autoria de Cassandra Rios na década de 1970; nosso o objetivo é identificar e analisar a especificidade da censura a sua obra no conjunto das ações de censura a livros durante a ditadura militar brasileira. Múltiplos fatores de diferentes ordens precisam ser articulados para compreensão do objeto em foco, pois a história do livro é necessariamente espaço de uma congruência multifacetada. No caso, é preciso observar-se o grande crescimento quantitativo do mercado editorial nos anos 1970; a seguir, é necessário assinalar que a censura à cultura durante a década de 1970 articulou-se em dois eixos centrais, correlacionados e muitas vezes integrados: o combate “à propaganda subversiva” e a eliminação das obras “atentatórias à moral e aos bons costumes”. Essas duas observações nos levam a salientar que o crescimento do mercado de livros foi simultâneo à coerção censória, em um processo que podemos denominar de “expansão dirigida”, conforme terminologia utilizada por Rodrigo Patto Sá Motta em As universidades e o regime militar (Zahar, 2004). Para compreensão da censura específica a livros de Cassandra Rios observamos os argumentos censórios centrais presentes nos pareceres de veto da Serviço/Divisão de Censura de Diversões Públicas, DCDP. Há nos arquivos da DCDP pareceres de veto relativos a 16 livros da autora.

ANOS 1970 – MERCADO EDITORIAL BRASILEIRO Entre 1970 e 1973 o Brasil viveu o chamado “milagre econômico”, a política do “desenvolvimento acelerado” – “uma década em um ano”. Nesse período o Produto Interno Bruto cresceu a uma taxa anual de 11,3% e o produto industrial a 12,7% – taxas que eram de 3,2% e 2,6% respectivamente de 1963 a 1967 e que sobem a 5,4% entre 1974 e 1981. Em 1974, por vários fatores internos e externos, tem início um processo de desaceleração econômica que resultará na recessão de 1981. É nesse momento que, segundo os dados do IBGE, ultrapassa-se no Brasil a barreira de um livro por habitante ao ano. A população em 1972 é de 98 milhões de habitantes e produzem-se 136 milhões de livros. Em 1972, editou-se 1,3 livro por habitante, contra 0,8 do ano anterior. Com algumas distorções, essa proporção se manterá crescente durante a década, atingindo o índice de 1,8 em 1979 – retomamos aqui parte de nosso estudo publicado no livro Mercado Editorial Brasileiro (REIMÃO, 1996, p.55 a 59) .

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Tabela 1. Relação entre a população do Brasil e a tiragem de livros nos anos 1970 (em milhões)

Tiragem total dos livros Relação de livro Ano População do Brasil publicados por hab/ano 1971 95,9 80,1 0,8 1972 98,6 136,0 1,3 1973 101,4 136,0 1,3 1974 104,2 144,7 1,3 1975 107,1 137,8 1,2 1976 110,1 147,2 1,2 1977 113,2 164,8 1,3 1978 116,3 186,7 1,6 1979 119,6 222,6 1,8

Para abordar esses dados é preciso, de início, levar em conta dois indicativos básicos. O primeiro é a queda da taxa do analfabetismo de 39% para 29% entre os anos de 1970 e 1980, tomando-se por referência o total da população com mais de cinco anos; o segundo é o crescimento do número de estudantes universitários. O aumento do número de universitários de cem mil para quase um milhão no mesmo período alicerçou-se basicamente nas instituições privadas. O estado autoritário transferiu ao mercado e ao capital privado a tarefa da expansão do ensino superior e também parte do ensino de primeiro e segundo graus (cf. REIMÃO, 1996, p.55 a 59).

O DECRETO-LEI 1077 O presidente Jânio Quadros, em maio de 1961, concedeu aos diversos estados o direito de exercer a censura. Isso simultaneamente à legislação que, desde 1946, dava à Polícia Federal a responsabilidade de realizar a censura prévia a filmes, peças teatrais, discos, apresentações de grupos musicais, cartazes e espetáculos públicos em geral. “O decreto gerou uma confusão de poderes (...) alguns filmes eram proibidos em São Paulo, e liberados na Guanabara, e vice-versa. Resultado: uma guerra de liminares, mandados de segurança....” (STEPHANOU, p. 269 e 261). A Constituição de 1967 oficializou a centralização da censura como atividade do Governo Federal, em Brasília. Quando o Ato Institucional número 5 foi decretado em 13 de dezembro de 1968, as atividades censórias já se encontravam centralizadas no Governo Federal. Em 26 de janeiro de 1970, o Decreto-lei 1077/70 iniciou a censura prévia para livros Os artigos 1 e 2 deste Decreto estavam assim redigidos:

“Art. 1º Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação; Art. 2º Caberá ao Ministério da Justiça, através do Departamento de Polícia Federal verificar, quando julgar necessário, antes da divulgação de livros e periódicos, a existência de matéria infringente da proibição enunciada no artigo anterior”.

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Depois de anunciar o que deveria ser censurado o mesmo decreto versa sobre as sanções:

“Art. 3º Verificada a existência de matéria ofensiva à moral e aos bons costumes, o Ministro da Justiça proibirá a divulgação da publicação e determinará a busca e a apreensão de todos os seus exemplares. (...) Art. 5º A distribuição, venda ou exposição de livros e periódicos que não hajam sido liberados ou que tenham sido proibidos, após a verificação prevista neste Decreto-lei, sujeita os infratores, independentemente da responsabilidade criminal.” (...) “Art. 7º A proibição contida no artigo 1º deste Decreto-lei aplica-se às diversões e espetáculos públicos, bem como à programação das emissoras de rádio e televisão.”

A Portaria 11-B, de 6 de fevereiro, para operacionalizar o Decreto 1077/70, determinava que todas as publicações deveriam ser previamente encaminhadas para o Ministério da Justiça para julgamento. A reação adversa de editores, escritores, intelectuais foi grande, conforme relata-nos, entre outros, Antonio Costela em O Controle da Imprensa no Brasil, publicado no calor da hora de 1970 (Editora Vozes). A incisiva reação contra o estabelecimento da censura prévia para livros e publicações em geral levou o governo a recuar e a publicar uma nova Instrução para a Portaria 11-B, a Instrução número 1-70 de 24 de fevereiro que explicita que “estão isentas de verificação prévia as publicações e exteriorizações de caráter estritamente filosófico, científico, técnico e didático, bem como as que não versarem sobre temas referentes ao sexo, moralidade pública e bons costumes” (confira: REIMAO, 2013, p. 29,30) .

OS PARECERES CENSÓRIOS E OS PARECERES DE CASSANDRA Os pareceres censórios sobre livros elaborados pelo DCDP entre 6 de janeiro de 1970 e 5 de outubro de 1988 e preservados no Arquivo Nacional estão acondicionados em caixas de papelão modelo arquivo. São 28 caixas. Sabemos que os pareceres preservados são apenas parte do conjunto total elabo- rado na época. Há vários indícios para essa afirmação: por exemplo, um relatório de atividades do DCDP datado de 02 de janeiro de 1978 registra que em 1977 foram exa- minados 133 livros; no material preservado encontram-se apenas 52 pareceres de livros do respectivo ano. Há por volta 513 pastas, que abrigam cerca de 540 pareceres – há vários livros que foram tema de mais de um parecer (às vezes trata-se realmente de dois pareceres, outras vezes, tem-se um mesmo parecer na versão manuscrita e na versão datilografada). Além disso, há casos de um mesmo parecer versar sobre mais de um livro. Há também casos em que um mesmo livro foi submetido duas vezes ao DCDP com títulos diferentes: o parecer de 1976 sobre As massagistas avisa que a obra é o mesma anteriormente apresentada, e vetada, sob o título As novas aventuras das massagistas. A maioria dos pareceres tem apenas uma página e foi elaborados em formulários específicos para esse fim (que variam ao longo dos anos), mas há também pareceres de até nove páginas.

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Brasília, 24 de setembro de 2008. Quadro de arranjo da Divisão de Censura de diversões Públicas - DCDP Segue o quadro de arranjo previamente organizado por equipe do Arquivo Nacional com algumas modificações para melhor acondicionamento no depósito. Seção: Administração Geral Série: Controle de documentos: termos de eliminação (1 cx) Série: Correspondência Oficial Subsérie: Ofícios de comunicação (4 cx) Subsérie: Ofícios de solicitação (1 cx) Série: Relatório de atividades (2 cx) Seção: Censura Prévia Série: Cinema Subsérie: Programação cinematográfica (9 cx) Subsérie: Filmes (862 cx) Série: Publicações (28 cx) Série: Publicidade (11 cx) Série: Rádio Subsérie: Programas de rádio (8 cx) Subsérie: Programação de emissoras de rádio (3 cx) Subsérie: Radionovelas (65 cx) Série: Teatro Subsérie: Peças teatrais (764 cx) Subsérie: Programação teatral (2 cx) Subsérie: Teatro e congêneres (11 cx) Série: Televisão Subsérie: Programas de TV (96 cx) Subsérie: Programação de emissoras de TV (6 cx) Subsérie: Seriados (413 cx) Subsérie: Telenovelas (157 cx) Série: Música Subsérie: Programação musical de clubes, bares e restaurantes (14 cx) Subsérie: Letras musicais (736 cx)

Figura 1. Quadro de arranjo do DCDP (reprodução)

Além dos pareceres propriamente ditos, há nas pastas em questão, em alguns casos, outros documentos correlatos como bilhetes de encaminhamento dos livros, cartas de explicações ou esclarecimentos. Há, entre esses documentos, um total de 16 pareceres indicativos de veto relativos a vetos a obras de Cassandra Rios.

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Tabela 2. Obras de Cassandra Rios vetadas pela Serviço/Divisão de Censura e Diversões Públicas, DCDP, com pareceres no Arquivo Nacional

Data parecer Título Editora Censor Legislação censória citada veto -DCDP

Copacabana Posto 6/ Mundo Musical 1975, 27 out. Marina S. Brum Duarte Decreto-lei 1077 A madrasta

As traças Mundo Musical 1975, 29 out. Ana K. Vieira Decreto-lei 1077 (art.1)

Uma mulher diferente Mundo Musical 1975, 30 out. Ascension P. Chanques Decreto-lei 1077 e Cód. Penal, it.I, art. 233, 234

Volúpia do pecado Mundo Musical 1976, 10 fev. José do Carmo Andrade Decreto-lei 1077 (art.1)

A serpente e a flor não consta, 3ª ed. 1976, 17 fev. Vicente Monteiro Decreto-lei 1077 (art.1 e 7)

A breve estória de Fábia (Mundo Musical) 1976, 25 fev. Maria Helena D. Santos Decreto 20.493/46 art.41

Tessa, a gata Mundo Musical 1976, 27 fev. Maria Livia Fortaleza Decreto-lei 1077 e Constituição, art.153, prg. 8

Nicoleta ninfeta Record 1976, 4 mar. L. Fernando Decreto 20.493, art. 41 Lei 5 536 e Decreto-lei 1077

Macária não consta 1976, 4 mar. Yunko Akegava Decreto-lei 1077 (art.1)

A borboleta branca Mundo Musical, 1976, 4 mar. Maria Graças S. Pinhati Decreto-lei 1077 (art.1 e 7) 4ª. ed.

Georgette Mundo Musical 1976, 10 mar. Teresa C. Marra Decreto-lei 1077 (art.1)

Marcella Record 1976, 12 mar. Vicente Monteiro Decreto-lei 1077 (art.1 e 7)

Veneno Record 1976, 18 mar. José A. Pedroso ------

A sarjeta Mundo Musical 1976, 27 jun. ---- Decreto-lei 1077

A paranóica Global 1978 Silas A. Gouvêa Decreto-lei 1077 (art.1)

O prazer de pecar não consta 1979 ------

A observação dos pareceres evidencia que os argumentos de veto concentram- se, quanto à legislação censória citada, no Decreto-Lei 1077, especialmente em seu artigo primeiro, já anteriormente citado: ‘“Art. 1º Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação;”. Os trechos salientados dizem respeito a presença de “cenas de sexo”, especialmente homossexual, citando: “mensagem negativa, psicologicamente falsa (...) nociva e deprimente, principalmente pela conquista lésbica da heroína (...)” (parecer de Copacabana Posto 6 e A madrasta) “a autora tenta (...) subverter conceitos morais em uma infeliz sub literatice para justificar o tema a que se propôs” (parecer de Copacabana Posto 6 e A madrasta) “tendo a instabilidade emocional por escopo e o lesbianismo como acessório, o livro em nada contribui para melhorar a literatura brasileira” (parecer de A serpente e a flor) “nada aconselhável a qualquer público, essencialmente aos adolescentes podendo influir-lhes negativamente na formação psicossomática, uma vez que o conteúdo encarra induzimento à prática de atos objetos, contrariando à moral e aos bons costumes” (parecer de Tessa, a gata) Notemos, nos trechos acima citados, que algumas vezes os pareceres deram-se o direito de produzir comentários de crítica literária das obras em foco.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7351 Cassandra Rios - na contramão da contramão Sandra Reimão

Na capa do livro Tessa, a gata, Cassandra Rios busca reverter a ação da censura a seu favor, e utiliza o slogan “Um novo sucesso da autora mais proibida do Brasil”.

PEQUENA OBSERVAÇÃO FINAL Três cenas: Início da década de 1960 - a pílula anticoncepcional começa a ser comercializada propiciando mudanças profundas nos comportamentos sexuais, liberando o sexo da função reprodutora. França maio de 1968,– greve geral, dez milhões de trabalhadores parados, protestos, revolta e agitação estudantil. Nos muros, frases como: “é proibido proibir”, “a arte está morta, liberemos a vida cotidiana”, “a poesia está na rua”. No ano seguinte, em agosto de 1969, durante três dias, no estado de Nova York, ao ar livre, cerca de 400 mil jovens celebram o rock, o amor livre e a contracultura no festival Woodstock. Enquanto nos EUA e na Europa vários países passam por alterações profundas em direção a comportamentos e valores de comportamentos pessoais e morais mais abertos: no Brasil, na década de 1970 – a ditadura militar, o regime autoritário, exerce sua violência e apregoa seus valores retrógrados. Na contramão do regime autoritário, Cassandra Rios pregava a liberdade sexual. Líder de vendagem foi também líder de vetos censórios – A autora mais proibida do Brasil – aparece na capa de um de seus livros. Os livros de Cassandra Rios afrontavam e destoavam da imagem edulcorada do Brasil e da família brasileira que as autoridades buscavam construir. Cassandra Rios – uma escritora na contramão da contramão.

BIBLIOGRAFIA: Costela, Antonio. O Controle da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1970. Motta, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. Reimão, Sandra. Mercado editorial brasileiro. São Paulo: ComArte, FAPESP, 1996. Reimão, Sandra. Repressão e resistência – censura a livros na ditadura militar brasileira. São Paulo: Edusp, FAPESP, 2013. Rios, Cassandra. Censura: minha luta meu amor. São Paulo: Global, 1977. Stephanou, Alexandre Ayub. Censura no regime militar e militarização das artes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. Ventura, Zuenir. 1968 O ano que não terminou. A aventura de uma geração. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 17a ed., 1988.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7352 Editoras Alpha-Ômega e Civilização Brasileira no período da ditadura militar: oposição e resistência

The Alpha-Ômega and Civilização Brasileira publishing houses in the military dictatorship period: opposition and resistance

E s t e r Sa n c h e s R i b e i r o 1

Resumo: Este trabalho apresenta duas editoras de oposição ao regime civil- -militar brasileiro: as editoras Alpha-Ômega e Civilização Brasileira. Ambas sofreram coerções, perseguições e censura por apoiar ideias e pessoas que cri- ticavam ou, simplesmente, possuíam ideais diferentes dos ideais dos militares. Objetivamos destacar as principais características dessas editoras e, também, dos seus editores e autores. Como percurso metodológico, utilizamos bibliografia pertinente aos temas História do Brasil, História da Imprensa e do impresso. Também, utilizamos trechos de entrevistas com os editores dessas duas editoras. Como principais resultados dessa pesquisa, evidenciamos que os atos censórios e coercitivos a essas duas empresas, seus editores e colaboradores foram os mais diversos possíveis: prisões, apreensão de materiais, intimidação, entre outros. Palavras-Chave: Livros e impressos no Brasil. Editoras de oposição. Regime civil-militar.

Abstract: This work discusses two publishing houses that were opposed to the Brazilian civil-military regime: Alpha-Ômega and Civilização Brasileira. Both suffered coercions, persecutions and censure due to their support to ideas and people who criticized the military or simply held a different set of ideals from theirs. We aim at highlighting the main characteristics of these publishing houses as well as of their publishers and authors. Our methodological approach employs relevant literature in the fields of history of Brazil and history of the press and printing. We also make use of parts of interviews with both publishers. Our main result is the presentation of evidence that acts of coercion and censure leveled at these publishing houses, their publishers and collaborators took the most diverse forms: Arrests, seizures and intimidation, among others. Keywords: Books and printings in Brazil. Opposition publishing houses. Civil- military regime.

INTRODUÇÃO GOLPE CIVIL-MILITAR, ocorrido no Brasil há mais de cinquenta anos, suscita, no debate atual, inúmeras reflexões relacionadas aos direitos humanos, à demo- O cracia, à liberdade de expressão, aos atos censórios e aos atos de resistência ao regime militar.

1. Graduada em Letras (FFLCH-USP). Mestranda em Estudos Culturais (EACH-USP). E-mail: [email protected].

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7353 Editoras Alpha-Ômega e Civilização Brasileira no período da ditadura militar: oposição e resistência Ester Sanches Ribeiro

Acreditamos que esse período persiste vivo na memória de grande parte da sociedade brasileira devido ao seu caráter autoritário e sangrento e, também, por conta dos registros e relatos realizados por jornalistas, escritores, intelectuais, editores, estudantes e vítimas, em geral, do regime. Esses relatos e registros, pertencentes a uma memória individual, fazem parte, também, da memória coletiva da sociedade e contribuem, assim, para a construção da nossa história. Com relação a isso, Maurice Halbwachs (1990) propõe que a memória é sempre construída em grupo, ou seja, ela não pertence a um único indivíduo, apesar de ser fruto da sua lembrança. O autor, acima citado, entende que o processo de recordação/lembrança ocorre em um espaço delimitado, onde o sujeito, para se recordar/lembrar de algum fato pertencente ao passado, adota, por um momento, o ponto de vista do grupo social ao qual ele pertenceu, pois o grupo torna mais fácil o trabalho memorialístico, na medida em que apoia e complementa as suas recordações. Nas palavras de Halbwachs (1990, p. 25), temos: “Se nossa impressão pode apoiar-se não somente sobre nossa lembrança, mas também sobre a de outros, nossa confiança na exatidão de nossa evocação será maior, como se uma mesma experiência fosse começada, não somente pela mesma pessoa, mas por várias”. Desse modo, a lembrança evocada por uma pessoa pertece ao grupo ao qual ela se insere e constrói, assim, a memória coletiva desse grupo. Com base nessa teoria, apresentamos, para contextualizar o período do regime militar, tanto trabalhos fundamentados, a partir de pesquisas em arquivos, como trabalhos construídos por meio de relatos memorialísticos. Esses trabalhos que apresentamos são estudos de historiadores e pesquisadores da área da comunicação e da história. Daremos enfoque à censura aos meios de comunicação e às artes, com destaque aos livros. Para isso, utilizaremos bibliografia pertinente aos assuntos “História do Brasil”, “História da Imprensa” e “História do Livro e Editoras”. A partir dessas obras, propomos analisar alguns relatos de memória dos editores Ênio Silveira e Fernando Mangarielo, responsáveis pelas editoras, respectivamente, Civilização Brasileira e Alpha-Ômega, e pontuar como a censura e a perseguição à comunicação e às artes foram as mais diversas possíveis, desde prisões, apreensão de materiais, intimidação, entre outras. Também, pontuamos como esse sistema deixou marcas que não se podem apagar nessas vítimas.

BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DO REGIME CIVIL-MILITAR BRASILEIRO No dia 31 de março, tropas do exército partiram de Juiz de Fora, Minas Gerais, em direção ao Rio de Janeiro com o propósito de derrubar o presidente João Goulart (Jango) do poder; diante dessa situação, ele prefere fugir a resistir, se exilando no Uruguai. Esse golpe militar fora tramado cuidadosamente dentro e fora do país e teve caráter autoritário, com a finalidade de proteger a permanência dos militares no poder. No entan- to, esse autoritarismo não calou os movimentos sociais que se diversificaram e, como puderam, atuaram em oposição e resistência ao governo da ditadura: “Os movimentos sociais, vigiados e reprimidos conforme a lógica da ‘segurança nacional’, não desapa- receram. Muito pelo contrário, tornaram-se mais diversos e complexos, expressão de

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7354 Editoras Alpha-Ômega e Civilização Brasileira no período da ditadura militar: oposição e resistência Ester Sanches Ribeiro uma sociedade que não ficou completamente passiva diante do autoritarismo” (NAPO- LITANO, 2014, p. 8). Esse autoritarismo não foi aplicado com todo o seu rigor de início; ele foi ampliado à medida que os militares se estabeleciam no poder e para oprimir e reprimir cada vez mais as formas de oposição ao regime. O regime militar se instaurou com o apoio de parcela da sociedade e de governos de alguns estados como o caso do governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto que, inicialmente, foi o líder civil do golpe:

[...] o golpe foi muito mais do que uma mera rebelião militar. Envolveu um conjunto heterogêneo de novos e velhos conspiradores contra Jango e contra o trabalhismo: civis e militares, liberais e autoritários, empresários e políticos, classe média e burguesia. Todos unidos pelo anticomu- nismo, a doença infantil do antirreformismo dos conservadores (NAPOLITANO, 2014, p. 44).

Vale destacar, nesse context, que a participação conivente e a omissão de grande parte da imprensa brasileira a coloca como um dos colaboradores para a efetivação do golpe. Silva (2014) considera a participação da mídia como “uma das maiores pizzas da história brasileira”, destacando sua participação como uma peça chave para a legitimação do golpe e do regime: “Sem o trabalho da imprensa não haveria legitimidade para a derrubada do presidente João Goulart. Os grandes jornais de cada capital atuaram como incentivadores e árbitros” (SILVA, 2014, p. 32). Em relação ao golpe e à sua tentativa em legitimar-se, podemos por em evidência que ele se contrapôs ao “programa nacionalista e popular”, contra Jango e suas “reformas de base”, com a proposta de livrar o país do comunismo e de alçá-lo aos níveis de desenvolvimento mundial. De fato o país cresceu, diga-se de passagem, a todo custo, e alcançou o oitavo lugar do PIB mundial. Porém, deve-se observar que juntamente com todo esse desenvolvimento “cresceram a desigualdade e a violência social, alimentadas em boa parte pela violência do Estado” (NAPOLITANO, 2014, p. 8). Essa violência do governo militar pode ser percebida nas perseguições, nas prisões, nas torturas, nas mortes, no exílio forçado, nos atos de covardia praticados pela polícia contra manifestações, contra jornalistas, escritores e artistas que se opusessem ao regime. Como exemplo disso, cito as memórias de Mouzar Benedito (2008) que vivenciou o período da ditadura e sofreu, juntamente com outros estudantes da USP, como ele, perseguições e o desmantelamento de suas vidas:

Quatro dias depois da edição do AI-5, na madrugada de 17 de dezembro, numa operação conjunta de várias polícias e do Exército, deram um golpe mortal num dos principais focos de resistência à ditadura, o Conjunto Residencial da USP (Crusp). Cerca de 1.200 estudantes foram presos (...). Para os policiais e militares, naquele lugar só havia comunistas e libertinos, por isso procuravam arrancar confissões malucas dos estudantes (BENEDITO, 2008, p. 18).

O relato desse estudante da época da ditadura revela os atos subversivos contra a socie- dade e as tentativas a todo o custo de manter a ordem, segundo os critérios e interesses dos militares. Para exemplificar esse controle desmedido do regime e sua intolerância, citarei mais uma passagem das memórias de Benedito, porque termina por resumir de modo bastante expressivo a nossa intenção em expor a violência militar contra quaisquer cidadãos que pudessem colocar ou não o poder em risco, numa intenção de repressão e opressão:

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Toninho, meu amigo e colega da faculdade, concordava com o movimento estudantil, 1968, mas não participava. Achava arriscado. Evitava até passar perto de lugares em que estivesse acontecendo uma manifestação estudantil. Um dia, foi comprar alguma coisa numa loja da Teodoro Sampaio, em Pinheiros, quando saiu da loja, olhou para cima e a menos de cinquenta metros de distância havia uma porrada de policiais caminhando em sua direção. Pensou em ir para baixo e aí viu porque tinha tanta polícia na rua: no sentido contrário vinha uma passeata estudantil, e haveria confronto. A única saída para não ficar no meio da pauleira era entrar de volta na loja, que era pequenininha, mas já estavam baixando a porta. Correu e entrou meio agachado. E logo depois, quando a porta já estava a poucos centímetros de ser fechada totalmente, um policial jogou uma bomba de gás lacrimogênio pelo vão, e ficou todo mundo lacrimejando, passando mal dentro da lojinha. Enquanto ele lacrimejava, se perguntava por que o policial jogou a bomba lá dentro, pois estava claro que quem estava lá não participou da passeata (BENEDITO, 2008, págs. 91 e 92).

Enfim, essas foram algumas das muitas arbitrariedades das repressões durante o governo militar que demonstram como a liberdade de ir e vir, de se manifestar, de discordar e se opor ao governo não existia e quando havia a menor resistência a ele, a polícia agia de modo enérgico e criminoso, causando o exílio de Chico Buarque e a morte do jornalista Vladimir Herzog, exemplos de acontecimentos, durante a ditadura, que ficaram famosos e perpetuam na memória coletiva até hoje.

CENSURA AOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO E ÀS ARTES Como dito anteriormente, o rigor do autoritarismo militar não exerceu sua máxima expressão de início; ele foi se revelando e crescendo com o passar do tempo. Assim, nos primeiros quatro anos da ditadura, a liberdade de expressão e as manifestações culturais foram asseguradas pelo governo do presidente Castello Branco que procurava diferenciar o regime do Brasil do regime militar da Banana Republics. Assim, nesse período o governo conviveu com manifestações de críticas provenientes de livros, cinema, músicas e teatro (REIMÃO, 2011, págs. 19 a 21). No entanto, o Ministério da Justiça por meio do setor de Serviço de Censura e Diversões Públicas (SCDP), do Departamento de Censura e Diversões Públicas (DCDP), passou a exercer a censura oficial do Estado ao cinema, teatro, músicas, shows, cartazes e apresentações de espetáculos públicos em geral, a partir de 1967. E, a partir de 1970, entraram para exame de censura oficial, também, livros e revistas. Nesse período, foi instituído no dia 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional número 5, o famoso AI 5:

O Ato inaugurou uma nova época, na política e na cultura, demarcando um corte abrupto no grande baile revolucionário da cultura brasileira, então em pleno auge. Por isso, o 1968 foi batizado de “ano que não acabou” pelo jornalista Zuenir Ventura. A ditadura deixou de ser “branda”, recaindo duramente sobre a parcela mais crítica da classe que ela prometia proteger – a classe média -, sal da terra para a direita de 1964 (NAPOLITANO, 2014, p. 118).

Essa nova época, no campo da cultura, significou a censura prévia das artes e das manifestações culturais em geral, por meio de perseguições a artistas e jornalistas, levando muitos deles ao exílio ou a prisões, torturas e mortes. Nos casos mais leves, a

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7356 Editoras Alpha-Ômega e Civilização Brasileira no período da ditadura militar: oposição e resistência Ester Sanches Ribeiro obra era marcada pelo censor nas partes que violavam a ordem e os bons costumes e ele precisava revisá-la. Em alguns casos, livros ou peças de teatro, por exemplo, que já tinham passado pela censura poderiam receber alguma denúncia de abuso à ordem estabelecida e serem apreendidos e/ou proibidos de serem vendidos ou apresentados. Nesses casos, o próprio autor fazia a censura prévia para conseguir passar ileso pela censura do Ministério da Justiça, o que demonstra que a censura não age só pela proi- bição expressa, mas atua silenciosamente por meio da coerção. Já no campo politico, o AI 5 dava ao governo vigente plenos poderes de cassar mandatos e suspender direitos políticos; pessoas poderiam ser presas sem justificativa e seus lares poderiam ser invadidos pelos policiais sem um mandato judicial. Desse modo, as forças policiais e os militares passaram a agir como quisessem e foi o que fizeram: instauraram um regime de terror. Para tratar da censura prévia a livros, utilizo o trabalho de Reimão (2011) que pes- quisa a censura à cultura e às artes, destacando a censura e a resistência quanto ao mercado editorial de livros. A partir da pesquisa de uma literatura pertinente, a pro- fessora Sandra Reimão coloca que mais de 400 livros foram proibidos pela censura do governo federal, no período da ditadura dos militares. Destacamos a censura à obra de historiadores importantes e famosos: O mundo do socialismo e A Revolução Brasileira, de Caio Prado Jr. e A Universidade Necessária de Darcy Ribeiro, censurados entre 1968 e 1978. Também, colocamos em evidência a censura realizada aos livros: Dez Histórias Imorais, de Aguinaldo Silva; Aracelli, Meu Amor, de José Louzeiro; Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca e Zero de Ignácio de Loyola Brandão. Foram livros censurados por infringir o artigo primeiro do Decreto-lei 1077/70 que versava sobre a não tolerância a publicações e/ou exteriorizações que fossem contrárias à moral e aos bons costumes. Desse modo, materiais que não passassem pela censura prévia não poderiam ser publicados e no caso de já terem sido publicados, seriam recolhidos. Enfim, apresentamos uma breve demonstração de como ocorreu a censura às manifestações de arte e de comunicação durante o período do regime militar, sob o pretexto de atentarem contra a moral e os bons costumes. Nesta parte do trabalho, citamos a opinião de Silva (2014) sobre certa participação e omissão da imprensa brasileira durante o golpe que terminou por legitimá-lo. Na sua obra, 1964: golpe midiático-civil-militar, o autor aponta tanto as omissões e legitimações da mídia em relação ao golpe, como aponta as mudanças de opinião dessa mesma mídia. Ele coloca o jornal, Correio da Manhã, como exemplo dessa mudança de julgamento: “Um dos mais ferrenhos estimuladores do golpe foi o jornal carioca Correio da Manhã, que rapidamente perceberia o erro e passaria à oposição, perecendo durante o regime militar” (SILVA, 2014, p. 32). A partir desse trecho do autor, percebemos que houve de fato conivência da imprensa, mas também houve resistência que passou a ser exercida quando esse veículo midiático percebeu as tramas da ditadura que negavam a demo- cracia e os direitos humanos, agindo de modo criminoso. Como exemplo disso, cabe citar o jornalista Márcio Moreira Alves que escreveu o livro Torturas e torturados, de 1967, ele “jornalista que se tornaria emblemático na luta contra a ditadura, foi o primeiro a investigar crimes de tortura no regime militar” (SILVA, 2014, p. 34).

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O pesquisador Juremir M. da Silva, na obra citada acima, coloca diversos outros exemplos da legitimação e da mudança de opinião de jornalistas em relação ao regime; quanto a essa legitimação, o autor considera uma “traição” por parte dessa parcela de “intelectuais” e homens cultos que nesse momento deveriam se opor a um golpe de Estado que por si só já é ilegítimo, pois fere o princípio da democracia em relação à livre escolha de seus representantes por parte da população. Cito o caso dos jornalistas Alberto Dines e Carlos Castello Branco que exemplificam bem essa “traição dos intelectuais”2 que posteriormente se oporiam ao regime:

[...] Alberto Dines, que depois construiria a imagem de campeão da resistência à censura, atolava-se em elogios ao chefe civil dos golpistas (...) o jornalista Carlos Castello Branco, que seria o colunista brasileiro mais famoso dos “anos de chumbo”, caracterizava o golpe como uma revolução “que gerou direito”, “reformou a Constituição” e deu novo estatuto ao “legalismo das Forças Armadas”. Os militares estavam bem servidos de assessores de imprensa em jornais e livros. (SILVA, 2014, p. 41).

E, assim como houve essas conivências, também houve oposição e resistência por parte das artes e dos meios de comunicação, que teve sua expressão mais forte nos quatro primeiros anos da instauração do regime dos militares, já que o AI 5 ainda não fora decretado. O período ficou conhecido como “dita branda” e foi considerado por Napolitano (2014) como um mito. O historiador explica que, nesses quatro primeiros anos da ditadura, a cultura no país estava em uma situação paradoxal, uma vez que estava em um período autoritário, mas de certo modo permissivo, pois não fazia censura prévia da cultura e das artes, tampouco da imprensa. Assim, houve diversas publicações e apresentações culturais que criticavam o regime. Diante dessa situação Millôr Fernandes disse que “se continuarem permitindo peças como Liberdade, Liberdade, vamos acabar caindo em uma democracia”; essa peça de teatro era da própria autoria dele. Para essa paradoxal situação, Carlos Napolitano observa:

Instaurada para defender efetivamente o capitalismo e, supostamente, a democracia liberal, a ditadura não podia se afastar das classes médias, sua principal base social. A cultura e a liberdade de expressão eram os pontos mais sensíveis para amplos setores dessa classe, da qual provinham os artistas e quadros intelectuais mais reconhecidos da época. Não por acaso, o Ato Institucional e a perseguição a intelectuais foi prontamente criticada, mesmo por vozes liberais que não tinham simpatia pelo governo deposto em 1964. Por outro lado, a censura e a repressão nessa área dificultariam a manutenção da pantonímia democrática que havia legitimado o golpe e a ampla coalizão anti-Goulart (NAPOLITANO, 2014, p. 98).

Destacamos, em relação a essa oposição à opressão e à tirania do regime, o papel dos livros, dos seus autores e das editoras que os publicaram. Para isso, utilizo os trabalhos de Sandra Reimão, Repressão e resistência: censura a livros na ditadura militar, e de Flamarion Maués, Livros contra a ditadura: editoras de oposição no Brasil, 1974-1984. Obras que destacam a atuação dos livros na ditadura como forma de resistência à repressão

2. Essa denominação foi feita por Silva (2014) no título de um dos capítulos do seu livro: “A traição dos ‘intelectuais’”; a expressão “intelectuais” é colocada entre aspas, numa clara desconfiança do autor em relação à intelectualidade desses homens que legitimaram em seus discursos o golpe de Estado feito pelos militares.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7358 Editoras Alpha-Ômega e Civilização Brasileira no período da ditadura militar: oposição e resistência Ester Sanches Ribeiro e à censura. No trabalho de Reimão (2011) destacamos o papel do próprio livro e no de Maués, enfocamos o papel das editoras a partir de suas iniciativas de criar espaço para publicações contrárias ao regime dos militares. Nossa intenção não é de debruçarmo-nos nos trabalhos acima citados, apenas os colocamos como referências de pesquisa do tema e colocamos algumas contribuições dessas obras para o desenvolvimento do nosso trabalho. Reimão (2011) apresenta livros que foram censurados e proibidos no campo das obras não ficcionais, dos livros eróticos/ pornográficos, dos teatros publicados em livros e romances, contos e poesia. Há vários exemplos de obras que sofreram censura nesses gêneros acima citados. Destaco aqui a censura sofrida pelo autor Aguinaldo Silva, por conta do seu livro Dez Estórias Imorais, com textos de 1960 a 1965. Trata-se de textos ficcionais que dão voz narrativa a personagens de dois tipos sociais: “os excluídos pela miséria, como os retirantes da seca, prostitutas de baixo escalão, bêbados e loucos; e tipos da baixa classe média, como a dona de casa sonhadora e insatisfeita e o funcionário do pequeno escritório” (REIMÃO, 2011, p. 75). Por conta do teor das histórias e até pelo pró- prio titulo, a censura proibiu o livro em favor da moral e dos bons costumes, mas, como opina Reimão, essa não foi a motivação real: “Em 1976, tudo indica que a censura às Dez Estórias Imorais deu-se não em função do livro, mas sim como uma forma de homofobia e também de coação ao jornalista e militante Aguinaldo Silva” (REIMÃO, 2011, p. 85). Quanto ao papel de oposição ao governo dos militares exercido por editoras, Maués (2013) observa:

Ocorreu, então, a partir de meados da década de 1970, um movimento editorial e cultu- ral marcado pela revitalização de editoras com perfil nitidamente político e de oposição ao governo civil-militar iniciado em 1964. Editoras já estabelecidas, como a Civilização Brasileira, a Brasiliense, a Vozes e a Paz e Terra, retomaram uma atuação política mais acentuada, editando livros que tratavam de temas que punham em questão a ideologia, os objetivos e os procedimentos do regime de 1964 ou, ainda, cujos autores faziam oposição ao governo. Entre esses, destacavam-se parlamentares de oposição, (ex-) exilados e (ex-) presos políticos. Ao mesmo tempo, novas editoras surgiram com o projeto de publicar livros com claro caráter político. Alguns exemplos são as editoras Alfa-Ômega, Global, Edições Populares, Brasil Debates, Ciências Humanas, Kairós, Hucitec, L&PM, Graal, Coderi, Vega e Livramento, entre outras (MAUES, 2013, p. 13).

Nesse breve trecho, notamos que a iniciativa de editoras de oposição possibilitaram que autores perseguidos pelo regime publicassem e, mesmo que censurados, expressassem que boa parte da sociedade se negava a aceitar passivamente o autoritarismo dos militares.

EDITORAS DE OPOSIÇÃO: ALPHA-ÔMEGA E CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA No Brasil, as editoras de oposição ao regime se identificavam com propostas políticas opostas ao sistema vigente e, por conta desta identificação, incentivavam a publicação de livros que se opunham ao governo dos militares. Segundo Maués (2013, p. 26): “Estes livros de oposição são obras de parlamentares de oposição, depoimentos ou memórias de exilados e ex-presos políticos, livros-reportagem, romances políticos, romances- reportagem, livros de denúncias contra o governo e clássicos do pensamento socialista”.

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Nesse quadro de editoras que se opunham ao regime, destacamos a atuação da Alpha-Ômega e Civilização Brasileira, respectivamente, localizadas em São Paulo e no Rio de Janeiro. Destacamos, também, a perseguição, censura e coerção contra seus editores e autores. A Alpha-Ômega, foi fundada por Fernando Mangarielo e sua esposa Claudete Mangarielo em janeiro de 1973 e foi uma das editoras mais atuantes entre 1970 e 1980. Publicou diversos livros de oposição à ditadura. Destacamos as obras A ilha (um reporter brasileiro no país de Fidel Castro) e Em câmara lenta. Aquela é de Fernando Morais, publicada em 1976, foi o primeiro livro de oposição que alcançou grande sucesso de vendagem. Esta é de Renato Tapajós e causou a sua prisão3 (Maués, 2013). A partir de dados de Maués (2013), montamos a tabela, apresentada abaixo, dos livros mais vendidos da Alpha-Ômega no período da ditadura:

Tabela 1.

Ano em que estiveram na lista Título da obra Autor dos mais vendidos A ilha: um reporter no país de Fidel Castro Fernando Morais 1976, 1977, 1978 A sangue-quente: A morte do jornalista Hamilton Almeida Filho 1978 Vladimir Herzog Cuba hoje: 20 anos de revolução Jorge Escosteguy 1979

A história me absolverá Fidel Castro 1979

Por conta desse caráter oposicionista da editora, houve perseguições, coerções e censura por parte do regime civil-militar. Destacamos, a seguir, algumas situações e ações que a Alpha-Ômega realizou e sofreu, segundo as palavras de Mangarielo (editor e dono da empresa):

Eu lutei com a minha geraçao, com as idéias da época, ou seja, tive de tomar uma posição política para saber de que lado da História ia ficar, por que ficar, tive de medir as conse- qüências e os avanços da ações, tive de observar quem estava para valer e quem não estava no jogo dessas lutas que então se travavam naquele cenário de fechamento imposto pelo regime militar. Porque eu sempre soube que, uma vez iniciado o trabalho de edição, não se pode abjurer um livro quando você o publicou (MAUÉS, 2007, p. 158).

Nesse trecho de sua entrevista com Eloísa A. Maués, o editor explica o porquê escolheu editar e quais as consequências desse importante trabalho como incentivador de escritores e realizador de um papel de extrema importância para a sociedade. Mangarielo não se ausentou de sua função social e, mesmo em tempos de supressão dos direitos de livre expressão e opinião, ele pagou o preço por opor-se ao regime: foi censurado, coagido e, de certo modo, humilhado. Mas entrou para a história e fez história. Segundo Darnton (2010), os livros não estão limitados a relatar a história, eles a fazem. Assim, acredito que tanto os autores dos livros, como os seus editores, são responsáveis pela construção da história de uma sociedade.

3. A prisão de Tapajós foi decretada pois seu livro foi considerado por autoridades da época como um “manual de guerrilha”. Mais adiante, nos trechos da entrevista de Mangarielo, abordaremos esse episódio.

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Sofri todos os reveses, logo no nascedouro: o quilo do papel custava 79 centavos e, com a guerra dos Seis Dias, subiu para 4,29 em dois meses. Eu quase deixei de ser editor porque o dinheiro que tinha para fazer dois livros só deu para fazer um, devido a essa subida ver- tiginosa de quase 400% no preço. As coisas foram assim…As ideias de nossas publicações surgiram no meio desse clima ruim (MAUÉS, 2007, p. 162).

Nas próprias palavras de Fernando Mangarielo, acima colocadas, podemos observar que a censura foi realizada de diversas maneiras. Uma delas foi a coerção, foi o embargo econômico e, também, houve apreensão de obras, houve a auto-censura, pois o autor sabia que alguns termos e alguns assuntos mencionados fariam seus escritos não passarem pela censura prévia do governo. Como exemplo de prisão envolvendo a Alpha-Ômega, temos a prisão de Tapajós, por conta de sua obra Em camera lenta, como já mencionamos. Abaixo, citamos um trecho da entrevista de Mangarielo e, a partir das suas palavras, podemos entender como houve prejuízos morais, também, ao editor.

E qual não foi nossa surpresa quando o coronel Erasmo Dias [então secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo], desejoso de se promover, conseguiu causar aquele arroubo todo, dizendo que o livro do Tapajós era um manual de guerrilha. Causou prejuízos, pren- deu a mim e a minha mulher. Fomos ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) depor juntos e tive de voltar lá outras vezes. O livro não é “um manual de guerrilha”, como ele dizia. Não era, não é e nunca será (MAUÉS, 2007, p. 163).

Nessas próximas linhas abordaremos a editora Civilização Brasileira. Fundada em 1932, a editora Civilização Brasileira, antes de pertencer a Ênio Silveira, pertenceu a um grupo de sócios, entre eles o sogro de Ênio, Octalles M. Ferreira. A partir da década de 1950, essa empresa entrou para o grupo das editoras mais representativas e importantes do Brasil. Seu editor mais notável, Ênio Silveira, contribuiu para o crescimento da empresa que, na sua administração, passou a publicar, significtivamente, literatura nacional e estrangeira (tradução). Segundo Hallewell (2012, p. 590), “Ênio Silveira sentia um entusiasmo particular em estimular autores nacionais”. Além de literatura, a editora publicou “uma ampla gama de livros de ciências humanas e de intervenção política, em geral alinhados com o pensamento progressista” (MAUÉS, 2013, p. 43). A partir de dados oferecidos por Maués (2013), montamos a tabela, abaixo, com as obras mais vendidas pela Civilização Brasileira, durante o regime:

Tabela 2.

Ano em que estiveram na lista Título da obra Autor dos mais vendidos A ditadura dos cartéis Kurt Mirow 1978

Creio na justiça e na esperança D. Pedro Casaldáliga 1978

Liberdade para os brasileiros: Anistia ontem e hoje Roberto R. Martins 1978

Mil razões para viver D. Helder Câmara 1979

Condenados ao subdesenvolvimento Kurt Mirow 1979

Memórias, 1a. parte Gregório Bezerra 1979 Batismo de sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Mariguella Frei Beto 1982

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Apresentamos, a seguir, dois trechos de uma entrevista de Ênio Silveira, editor e empresário da Civilização Brasileira.

Quando veio o golpe, aí foi pior, foi pressão econômica, financeira e de crédito. Campanhas em que os milicos iam de livraria em livraria na cidade: ‘Não ponha este livro na vitrine’. Houve livros que tiveram suas edições inteiras apreendidas: o livro saía da gráfica, eles o esperavam sair e apreendiam a tiragem inteira, prejuízo total” (FERREIRA, 2003, pp. 68 e 69).

Nessas palavras de Ênio, há mais exemplos dos tipos de perseguição realizadas pelos militares aos autores e aos editores. Percebemos, assim, que a coerção social e econômica foi uma arma bem eficiente do governo para causar danos e prejuízos a esses intelectuais de oposição. Abaixo, há mais um depoimento do editor da Civilização Brasileira que narra uma de suas prisões:

Aí começaram as prisões. Fui preso sete vezes. E eles escolhiam, faziam o negócio a dedo. Uma vez fui preso no dia do meu aniversário, que é 18 de novembro. Eu havia convidado alguns amigos, Callado, Dias Gomes, Paulo Francis, Flávio Rangel, que era meu primo irmão. Os convidados estavam ainda chegando à minha casa, tocaram a campainha e eu mesmo fui abrir a porta. Em vez de ser um amigo, era um metralhador atacado, um rapaz alto, com camisa esporte: - Você que é o Ênio Silveira? - E o senhor quem é? - Não interessa. - Interessa, claro, o senhor quer o quê? Pois se o senhor está aqui com essa metralhadora. - Está preso. - Preso por quem? - Não interessa. - Claro que interessa, isso pode ser um sequestro, posso me recusar a sair daqui e o senhor pode me matar, mas vai me matar na presença de vinte pessoas, você terá que matar vinte pessoas num só prédio, a coisa vai ficar pública e notória, acho que você não vai correr este risco. Quero saber quem é você. Aí virou com uma carteirinha, era um oficial do exército, à paisana. Concordei, chamei a minha mulher e disse: - Olha, estou sendo preso, avise os amigos, calma. Fiquem aí, continuem a reunião, bebam seu uísque tranquilamente, isso já era uma coisa esperada, já me aconteceu antes, o impor- tante é que se saiba para onde eu estou indo. Iam me levar novamente para a polícia do exército. Fui me preparar. A minha valise já estava mais ou menos pronta, era a que sempre eu levava para lá, eu deixava sempre pronta para isso (FERREIRA, 2003, pp. 74 e 75).

Nessa situação narrada por Ênio da Silveira, podemos ter contato com as arbitrariedades do sistema da época; percebemos que a autoridade militar colocava-se acima de quaisquer direitos. Esse editor foi preso sete vezes, segundo suas palavras, como se fosse um criminoso. Na verdade, segundo os critérios da época, sua atuação era crime: criticar e incentivar livros contra o regime vigente. E, esse “crime”, fez com que esse editor, também, entrasse para a história.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7362 Editoras Alpha-Ômega e Civilização Brasileira no período da ditadura militar: oposição e resistência Ester Sanches Ribeiro

CONSIDERAÇÕES FINAIS Nossos apontamentos, ao longo deste trabalho, objetivaram apresentar o regime civil-militar e suas perseguições e sua censura aos meios de comunicação e às artes. Destacamos a oposição e resistência de duas editoras: Civilização Brasileira e Alpha- Ômega. Observamos que a censura ocorreu de modos diferentes e com intensidades diferentes ao logo de todo o regime. Como, propõe Barbosa (2007, p. 187): “A censura política, conduzida em momentos de autoritarismo, geralmente age de forma intermitente, mas não constante, e de maneira diferenciada em relação aos veículos de comunicação”. Desse modo, entendemos que é de fundamental importância estudar esse período de excessão, também, de modos diferentes (buscar arquivos, fazer entrevistas, por exemplo), a fim de apreender informações, opiniões e sensações diferentes. Acreditamos que as entrevistas com os editores, acima colocadas, deram uma dimensão mais humanizada e a versão desses atores sociais permitiram que acessacemos, além das ações, os sentimentos envolvidos quando o assunto é censura e ditadura civil-militar.

REFERÊNCIAS Barbosa, M. (2007). História cultural da imprensa: Brasil, 1900-2000. Rio de Janeiro, Mauad X. Benedito, M. (2008). 1968, por aí...: memórias burlescas da ditadura. São Paulo: Publicher Brasil. Darnton, R. (2010). A questão dos livros: passado, presente e futuro. São Paulo: Companhia das Letras. Ferreira, J. P. (2003). Editando o Editor. Ênio Silveira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Com-Arte. Halbwachs, M. (1990). A Memória Coletiva. São Paulo: Edições Vértice. Hallewell, L. (2012). O livro no Brasil: sua história. São Paulo: Edusp. Maués, E. A. (2007). A editora Alpha-Omega nos anos de chumbo: entrevista com Fernando Mangarielo. Oralidades (2), 155-171. Issn. 1981-4275. Maués, F. (2013). Livros contra a ditadura: editoras de oposição no Brasil, 1974-1984. São Paulo: Publisher Brasil. Napolitano, M. (2014). 1964: História do regime militar brasileiro. São Paulo: Contexto. Reimão, S. (2011). Repressão e resistência: censura a livros na ditadura militar. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Fapesp. Silva, J. M. da. (2014). 1964. Golpe midiático-civil-militar. Porto Alegre: Sulina, 4ª edição.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7363 Literatura de autoajuda: um gênero embebido no universo religioso Self-help literature: a genre impregnated with the religious universe

M o n i c a B e r n ar d o S c h e t t i n i M ar q u e s 1

Resumo: Trazemos, aqui, uma reflexão sobre a história da autoajuda, salientando o vínculo recorrente e significativo entre esse tipo de produção e o universo religioso. São apresentados alguns dos principais desenvolvimentos do gênero, sobretudo no contexto anglo-saxão, desde o século XVII até a atualidade. A produção de autoajuda vinculada ao Novo Pensamento, movimento importante, principalmente nos EUA, entre a segunda metade do século XIX e os dois primeiros decênios do século XX, é examinada. Ao final, são expostas ideias e práticas dos “novos pensadores”, retomadas na produção contemporânea de autoajuda. A análise comparada das publicações contemporâneas com aquelas do Novo Pensamento revela, entre outras conclusões, que nas duas situações, a realidade material do indivíduo é explicada em função do pensamento individual que adquire caráter mágico. A própria transformação da realidade acaba por circunscrever-se à transformação da interioridade. Palavras-Chave: Literatura de auto-ajuda, religião, Novo Pensamento.

Abstract: We bring here a reflection on the history of self-help productions, identifying the repeated and expressive connection between this type of publications and the religious universe. Some of the main developments of the genre are presented, especially in the Anglo-Saxon context, from the seventeenth century to the present. The production of self-help linked to the New Thought, important movement, especially in the US, between the second half of the nineteenth century and the first two decades of the twentieth century, is examined. Finally, ideas and practices of the “new thoughters”, recaptured in contemporary production of self-help, focused on mind power, are presented. The comparative analysis of contemporary publications with those of New Thought movement shows, among other conclusions, that in both situations, the individual’s material reality is explained in terms of individual thought that acquires magical character. The transformation of reality turns out to be limited to the transformation of interiority. Keywords: Self-help literature, religion, New Thought

1. Mestre e doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Realiza, atualmente, pesquisa de pós-doutorado no departamento de Sociologia da FFLCH/USP, com auxílio da Fapesp. E-mail:[email protected]

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7364 Literatura de autoajuda: um gênero embebido no universo religioso Monica Bernardo Schettini Marques

INTRODUÇÃO ESTA COMUNICAÇÃO, apresentamos uma breve reflexão sobre a história da auto- ajuda, salientando o vínculo recorrente e significativo entre esse tipo de produção Ne o universo religioso. Visamos, aqui, uma melhor compreensão da história da autoajuda, da conexão frequente entre as produções de self-help e o universo religioso e dos significados do gênero para o público leitor. Essa reflexão apóia-se, especialmente, em levantamento bibliográfico sobre o tema e na análise de fontes primárias. Em alguns momentos, valemo-nos também de entrevistas semi-estruturadas com leitores. No início da exposição, abordamos o problema da definição daquilo que se considera um sistema, comunicação ou literatura de autoajuda, Em seguida, são apresentados alguns dos principais desenvolvimentos do gênero, sobretudo no contexto anglo-saxão, desde o século XVII até a atualidade. A produção de autoajuda vinculada ao Novo Pensamento, movimento importante, principalmente nos EUA, entre a segunda metade do século XIX e os dois primeiros decênios do século XX, recebe especial atenção. Trata-se de um movimento de acento religioso em que se verificavam influências diversas e uma forte ênfase na crença no “poder da mente”. Ao final, são apresentadas ideias e práticas dos “novos pensadores”2, retomadas nas publicações contemporâneas de autoajuda. Trata-se, aqui, de verificar, como as propostas do New Thought aparecem na produção de self-help mais recente, pautada no poder da mente e no pensamento positivo. Nos séculos XX e XXI, a literatura de autoajuda ganha formulações bastante diversificadas, mas produções com um enfoque “mentalista” nunca saem de cena. O poder da mente foi proeminente em um dos livros de autoajuda de maior sucesso de vendas da história do gênero – O poder do pensamento positivo, de Norman Vicent Peale (2006), publicado inicialmente em 1952, e é a base de O segredo (2007), de Rhonda Byrne, e de várias publicações norte-americanas das últimas décadas. No Brasil, esse tipo de abordagem é especialmente relevante na produção de Lauro Trevisan, escritor de autoajuda, ligado ao catolicismo, que recorre ao pensamento positivo e a autores do New Thought, desde os anos 80. Evidentemente, ao longo das décadas, o “poder da mente” ganhou novas formas, novas influências foram incorporadas à autoajuda e, em determinada publicação, ou período, é possível verificar uma proximidade maior ou menor com as antigas propostas do Novo Pensamento. Nas recentes publicações3 de Rhonda Byrne, essa proximidade é intensa. E é sobre os títulos dessa autora que nos voltamos aqui. A análise comparada de publicações contemporâneas com aquelas do Novo Pensamento revela, entre outras conclusões, que nas duas situações, a realidade material do indivíduo é explicada, em grande medida, em função do pensamento individual que adquire caráter mágico. A própria transformação da realidade parece, assim, circunscrever-se à transformação da interioridade. As capacidades subjetivas são levadas ao limite nesses dois momentos da história da autoajuda, é bem verdade. Mas, de um

2. O termo novos pensadores, em inglês “new thoughters”, é usado para se referir aos adeptos do New Thought e a autores que escreveram sob forte influência do movimento 3. Além de O Segredo, a escritora australiana é autora também de O poder, A magia, e Hero, obras lançadas nos anos de 2010, 2012 e 2013, respectivamente. O Segredo aparece inicialmente como filme em 2006. No mesmo ano, é transformado em um livro, no qual são reproduzidas as ideias centrais da versão audiovisual. O título vendeu, desde seu lançamento, em 2007, cerca de 2,5 milhões de exemplares. Em todo o mundo, foram vendidas cerca de 19 milhões de cópias, em 46 línguas.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7365 Literatura de autoajuda: um gênero embebido no universo religioso Monica Bernardo Schettini Marques modo geral, a ênfase na subjetividade parece se conformar como característica comum às diferentes produções do gênero e, com frequência, essa ênfase revela-se em entrevistas com leitores de self-help. Quando questionados sobre as motivações de suas leituras, boa parte dos entrevistados envereda para questões ligadas à intimidade4, como: O que eu quero da minha vida? O que eu preciso mudar no meu comportamento? Como permanecer em estado de equilíbrio e tranquilidade diante dos problemas cotidianos?

O PROBLEMA DA DEFINIÇÃO Nos estudos sobre autoajuda são poucos os autores que apresentam uma definição explícita. Mais facilmente depara-se com a dificuldade de definição do gênero ou com as controvérsias em relação àquilo que se entende por literatura, comunicação, ou sistema de autoajuda. Micki McGee (2005) volta sua atenção para esse debate, detendo-se na seguinte questão: a categoria autoajuda deve ser definida tendo em vista as características próprias do texto, ou sua definição deve se basear no uso social, lidando com as diferentes apropriações que podem ser feitas pelos leitores. Para a socióloga, a última perspectiva pode trazer ganhos à pesquisa, enfatizando-se o contexto social e histórico na apreensão dos significados, mas as desvantagens metodológicas lhe parecem maiores. Argumenta que quando os mais diversos tipos de publicação podem ser tomados como autoajuda, a categoria torna-se vaga, sendo necessário ainda lidar com o uso imaginativo que o leitor faz do texto, sem subsídios eficazes para tanto. As classificações usadas pelo mercado editorial valem-se, frequentemente, do uso social, procedimento que, para McGee, gera anomalias, como a inserção de um estudo sociológico ou de uma obra do jornalismo investigativo nas prateleiras destinadas às publicações de autoajuda, negligenciando-se os conteúdos veiculados (MCGEE, 2005, p. 193-194). A perspectiva do uso social parece ser realmente importante para uma melhor com- preensão das demandas contemporâneas de leitores e editores. Ajuda-nos a entender, por exemplo, a situação de um leitor que se debruça sobre um livro de filosofia, tomando-o como uma produção de autoajuda. Provavelmente, ao fazê-lo, procura subsídios para enfrentar suas dificuldades existenciais, quer se ajudar, melhorar. A categoria também dá conta daquela parcela do público que se refere à Bíblia, como autoajuda. Um dos nossos entrevistados, evangélico e leitor costumaz de produções de self-help, com o mão no livro sagrado pronuncia: “todo o livro de autoajuda está aqui, tudo o que tem na Bíblia fala de multiplicação, de crescimento, de dar de bater, de persistir”. Em sua interpretação, a Bíblia é a maior e mais eficaz das publicações de autoajuda. Apesar da pertinência do uso social para a análise de certas situações, é inegável que existem publicações que se apresentam com o propósito explícito de trazer ao leitor dispositivos que permitam que ele seja capaz de “ajudar a si mesmo”. É esse tipo de produção que se tem em vista nessa investigação, quando se emprega o termo autoajuda.

4. Esse tipo de resposta é recorrente entre nossos interlocutores e parece se coadunar com as reflexões de Guiddens sobre autoajuda e modernidade. Como diagnosticou este autor, uma das características da modernidade é o projeto reflexivo do eu. Este projeto tem lugar em um contexto em que a tradição perde o domínio e o indivíduo se vê diante da possibilidade de fazer múltiplas escolhas. Publicações de autoajuda, centradas em questões existenciais, estão, em sua análise, atreladas à reflexividade do eu e à própria modernidade (GUIDDENS, 2002).

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7366 Literatura de autoajuda: um gênero embebido no universo religioso Monica Bernardo Schettini Marques

DA SALVAÇÃO NO ALÉM À SALVAÇÃO AQUI E AGORA Diversas pesquisas sobre autoajuda têm sublinhado a relação entre as origens do gênero5 e publicações puritanas do século XVII. Esse é o caso, por exemplo, de Oracle at the Supermarket, de Steven Starker (2002). O autor, em abordagem bastante alicerçada em investigação anterior de Richard Weiss (1988), localiza na história da autoajuda anglo- saxã, um momento inicial em que predominavam guias vinculados ao puritanismo. Tratava-se, inicialmente, de textos produzidos por líderes religiosos que ensinavam os leitores a viverem dentro dos valores da igreja, obras que forneciam diretrizes para o público ter uma vida devota com vistas à salvação. Max Weber (2004), em A ética protestante e o espírito do capitalismo, recorreu a uma literatura prescritiva e de autoaperfeiçoamento produzida pelos líderes puritanos como uma de suas fontes para desenvolver aquilo que chamou de ética protestante. A análise weberiana reverberou na historiografia da autoajuda, trazendo os guias examinados pelo sociólogo à ordem do dia. Alguns dos autores e publicações analisados por Weber são, assim, frequentemente, retomados nos estudos dedicados à produção de self-help, embora o sociólogo não qualificasse os guias que examinava como produções de autoajuda, ao escrever no início do século XX. A doutrina da predestinação de João Calvino é um elemento-chave para a reflexão sobre as origens da autoajuda e se nos inspirarmos na interpretação de Weber sobre os efeitos práticos desse dogma, é possível inferir que o gênero foi, em um momento inicial, uma tentativa de lidar com sua desumanidade patente. Alguns homens estavam predestinados à vida eterna, enquanto outros à morte eterna, a despeito de suas obras, de suas ações, simplesmente porque Deus assim decretou. Ao analisar as consequências do dogma, Weber recorre a publicações puritanas como Pilgrim´s Progress, obra de 1678, do inglês John Bunyan. O protagonista do livro é, para o sociólogo, exemplo do crente que “só se ocupa consigo mesmo, só pensa na própria salvação”, e, assolado pelo medo, o enfrenta em “uma luta sem descanso e sistemática com a vida” (WEBER, 2004, p.98). A referência aparece na obra weberiana no contexto do sentimento de isolamento interior provocado pelo dogma da predestinação, já que ninguém poderia proteger o indivíduo, nem mesmo a igreja, em relação àquilo que fora dado de antemão – sua salvação ou condenação no pós-morte. Lewis Bailey, outro religioso inglês, autor de The Practice of Piety, uma publicação de 1611, aparece na análise weberiana associado “à pratica de cura das almas, que vira e mexe se viu às voltas com os tormentos provocados pela doutrina” (WEBER, 2004, p.101). De acordo com o sociólogo, duas formas de aconselhamentos, mutuamente relacionadas, surgem no contexto dessa prática. A primeira: “considerar-se eleito e repudiar toda e qualquer dúvida como tentação do diabo, pois a falta de convicção, afinal, resultaria de uma fé insuficiente e, portanto, de uma atuação insuficiente da

5. Detemo-nos aqui especialmente na história da autoajuda anglo-saxã, uma vez que os EUA constituem-se como o principal pólo produtor e difusor do gênero. Entretanto, é importante salientar que a investigação sobre os inícios da autoajuda leva a publicações de outras origens. É o caso, por exemplo, de Il Cortegiano, de Baldassare Castiglione. A obra foi publicada inicialmente em 1528 e traduzida para o inglês em 1561. Como observa Plilippe Ariès (2001, p.174), o Cortegiano criou um gênero, “o gênero das artes de agradar e ter sucesso na vida”. Esse tipo de abordagem revela-se mais francamente na produção estadunidense na década de 1930. Em Como fazer amigos e influenciar pessoas, de Dale Carnegie (1937), publicado inicialmente em 1936, é possível observar esse tipo de apelo com nitidez.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7367 Literatura de autoajuda: um gênero embebido no universo religioso Monica Bernardo Schettini Marques graça” (WEBER, 2004, p.101). Bailey é tomado como um dos promotores dessa forma de aconselhamento (Ibid., p.214), que implicaria uma “certeza subjetiva de salvação” (Ibid., p.102). Já o segundo dos aconselhamentos detectados pelo sociólogo preconizava que o indivíduo deveria distinguir-se em um trabalho profissional, apresentado como o principal meio para a conquista da aspirada certeza de eleição. No esforço desesperado do indivíduo para acreditar na sua própria salvação, este passa a se considerar um eleito, procura se afastar do estado de dúvida, busca a autoconfiança através do trabalho incansável, que ganha caráter sagrado e passa a ser interpretado como meio para a maior glória de Deus. Os guias de autoaperfeiçoamento aos quais Weber se refere, publicações que hoje podem receber a alcunha de autoajuda, auxiliavam seus leitores na tarefa de ajudarem a si mesmos, forneciam-lhes diretrizes para conduzirem suas próprias vidas, com austeridade e disciplina, de modo a que se percebessem como eleitos. A leitura desses primeiros livros interligava-se à freqüência aos cultos. Igreja e autoajuda aparecem, nesse momento inicial da história do gênero, como instrumentos complementares que forneciam auxílio aos indivíduos incertos sobre a própria salvação. Os livros configuravam-se, assim, como um “pedaço da igreja” que poderia ser levado para casa pelo crente, propiciando-lhe não apenas orientação, mas também uma dose de segurança e conforto, como diagnostica Starker (2002, p.37-38). Nos século XVIII, a produção de autoajuda norte-americana ganharia um caráter mais secular (STARKER, 2002, p.14). Um tom menos prescritivo poderia ser notado em publicações que se caracterizavam pela utilidade e praticidade. Essa nova abordagem não implicava a negação da anterior. Os valores da ética protestante estavam também no mais emblemático dos autores dos setecentos, uma das principais figuras da cultura e da história norte-americana, o diplomata, inventor, cientista e escritor, Benjamin Franklin (1706-1790), mas, nas publicações populares de Franklin, as recompensas divinas eram menos importantes do que o sucesso neste mundo e muitos valores, como a própria honestidade, poderiam estar associados a uma abordagem utilitarista. A preocupação em alcançar riquezas lhe era central e foi explorada em produções como Poor Richard´s Almanac, série que teve início em 1732 e durou quase duas décadas, The Way to Weath, de 1758, obra composta por seleções de textos do almanaque, e também em Autobiography, publicação de 1791. Comparando-se essas duas abordagens iniciais da autoajuda, uma mudança extremamente significativa é sublinhada pelos comentaristas: nos guias puritanos os indivíduos deveriam realizar suas boas obras dentro de papeis sociais bem estabelecidos, condenava-se a ambição pessoal, já Franklin encorajava o desejo de seus contemporâneos a avançar na hierarquia social − a mobilidade social através do esforço individual lhe era cara e apresentada como um objetivo que estava ao alcance do homem comum (WEISS, 1988, p.28-29; STARKER, 2002, p.14). Em The Way to Weath, obra inicialmente denominada, The Advice of Father Abraham (O Conselho do Pai Abraão), Franklin retoma temas e máximas da série Poor Richard, através de um criativo recurso literário. O narrador, Richard Saunders, dirige-se ao leitor no início do texto, comentando o quão prazeroso é para um autor se ver citado por outros. Conta, então, que em certa ocasião deparou-se com um velho homem, pai

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7368 Literatura de autoajuda: um gênero embebido no universo religioso Monica Bernardo Schettini Marques

Abraão, que se referia constantemente a ele − Richard Saunders ou Poor Richard, enquanto expunha uma série de aconselhamentos para um grupo de pessoas. Pai Abraão, o novo personagem, é introduzido e associado ao protagonista da longa série de sucesso. No início da narrativa, pai Abraão concorda com seus interlocutores que reclamam sobre o peso dos impostos, mas argumenta que as taxações governamentais são menos danosas para a contabilidade geral do indivíduo do que a ociosidade, o orgulho e a insensatez. O que fazer diante desses vícios, como vencê-los? Pai Abraão, seguindo Poor Richard, ensina: “’(...) vamos dar ouvidos a um bom conselho, e algo poderá ser feito por nós’, ‘Deus ajuda aqueles que se ajudam’” 6 (Franklin, 1810, p. 9). A diligência, a indústria e uma vida regrada são apresentadas como antídotos para os vícios anteriores e como requisitos para que o indivíduo se torne rico, saudável e sábio. Pai Abraão indaga: “’O que significa desejar e esperar por tempos melhores’”, respondendo, “’podemos fazer esses tempos melhores se nos colocarmos em movimento’”7 (Ibid., p. 13). Nesta perspectiva, o indivíduo “ajuda a si mesmo” através do próprio esforço, ao afastar-se da preguiça e da perda de tempo; na ação, no movimento, jamais na passividade. Mas é interessante notar que, ao final do texto, o protagonista adverte seus ouvintes/leitores para a necessidade de associar as virtudes necessárias para a prosperidade a uma dimensão religiosa: “(...) não dependa muito da sua própria indústria, frugalidade e prudência, estas são excelentes, mas podem ser destruídas sem as bênçãos dos céus”8 (Ibid., 1810, p. 34). Como bem observou Roy Anker, Franklin, no término de The Way to Wealth, une providência e riqueza, colocando a religião em um quadro de referência utilitário. Em outras palavras: ser diligente apenas não é suficiente, peça também as bênçãos divinas – que se tornam assim um recurso essencial para os objetivos materiais do indivíduo. Para o comentarista, em todo o contexto de Poor Richard, a piedade e a humildade não aparecem como fins em si mesmos, mas como requisitos para a riqueza, o que implicaria um distanciamento do puritanismo tradicional (ANKER, 1999, p.112). A ideia de autoajuda em Benjamin Franklin atrelava-se a um grande esforço individual, demandava controle dos “vícios” e diligência e também a atenção aos aconselhamentos. Em Franklin, como em boa parte das produções do New Thought, a ideia de self-help vincula-se a este mundo, a obtenção de riqueza é central e os objetivos, as metas, são, em geral, individuais. Na relação entre providência e riqueza, no caráter utilitário do religioso, já era possível detectar algo que marcaria tão fortemente o Novo Pensamento e as produções mentalistas subsequentes. O passado puritano estava em Franklin, mas em versão secularizada e com feição utilitária e em várias abordagens ou tendências da autoajuda do século XIX os valores da ética protestante ainda se fariam presentes. Este é o caso, por exemplo, das publicações voltadas ao público infantil de Willian H. C. McGuffey. Nas produções associadas ao New Thought, entretanto, esses valores perdem grande parte de sua força, muito embora, resíduos dos antigos guias, ainda possam ser evidenciados nos títulos de self-help dos

6. Original, em inglês: “’ (...) let us hearken to good advice, and something may be done for us; ‘God helps them that help themselves’”(FRANKLIN, 1810, p.9). 7. Original, em inglês: “‘So what signifies wishing and hoping for better times? We may make these times better, if we bestir ourselves’”(FRANKLIN, 1810, p.13). 8. Original, em inglês: “(…) do not depend too much upon your own industry, and frugality, and prudence, though excellent things; for they may all be blasted without the blessing of Heaven’” (FRANKLIN, 1810, p. 34).

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7369 Literatura de autoajuda: um gênero embebido no universo religioso Monica Bernardo Schettini Marques novos pensadores e na literatura posterior que se nutre no movimento. Como bem diagnosticou Barbara Ehrenreich, alguns dos elementos mais tóxicos do calvinismo estão presentes no ideário do pensamento positivo, revelando-se na tendência a julgamentos excessivamente duros, que fariam eco à condenação do pecado presente na antiga religião. Rastros daquela fé estão também no constante autoexame da mente, segundo a autora (2009, p.89). Pensar positivo, nas publicações de self help, é algo minucioso, que demanda um escrutínio incessante do próprio pensamento e a eliminação de tudo aquilo que possa ser considerado negativo – incluindo-se aqui também as pessoas que desencaminhariam o indivíduo de um “pensamento correto”. Trata-se de uma disciplina, de uma espécie de regulamentação do pensamento. O caráter prescritivo, marcante nos guias do século XVII, é ainda uma qualidade destacável de boa parte da produção contemporânea de autoajuda. Com frequência, verifica-se nessa produção um diálogo importante entre autoajuda e religião, trazendo à tona um elemento que era absolutamente central nas primeiras produções de self-help. No século XVII ou no XXI, estamos diante de um dispositivo, o livro (agora também em formato digital)9, que incita o isolamento interior, e de uma literatura estruturada em torno de um propósito, que o público lê com um objetivo central – ajudar a se ajudar. Mas esse “se ajudar” pode abarcar coisas bem distintas. No século XVII, envolvia a tentativa de obter a certeza de salvação, no XVIII já se deslocava para o aqui e o agora − e é “este mundo” que parece dominar a produção de autoajuda do New Thought em diante. Mas Deus permanece, muitas vezes, no jogo, embora possa ganhar diferentes constituições.

NOVOS PENSADORES O movimento do Novo Pensamento abarca uma ampla corrente da cultura e da religiosidade norte-americana, particularmente importante entre a segunda metade do século XIX e os dois primeiros decênios do século XX. Trata-se de um movimento de forte acento religioso em que se verificavam influências diversas, oriundas do cristianismo, do mesmerismo, de Swenderborg, da filosofia idealista, das religiões orientais, da Teosofia, do Espiritualismo, do gnosticismo10, entre outras. Essas influências variavam entre os diversos promotores do movimento, mas a crença no “poder da mente”, em capacidades extranaturais da mente humana, era comum entre eles. Impregnado por várias religiões, o Novo Pensamento não se apresentava como uma igreja tradicional. Em geral, não se verificava a figura de um sacerdote que se colocasse como um intermediário entre Deus e os homens, tampouco um livro sagrado, um sistema formal de crenças, ou autoridade central. Essa flexibilidade refletia uma crítica

9. Na atualidade, formulações de autoajuda disseminam-se também em vídeos repletos de mensagens edificantes enviados por e-mail e acessados nas redes sociais. 10. Os novos pensadores propagandeavam que tinham em mãos o segredo para o manejo dos recursos mentais, ou o segredo para o sucesso e o poder. Evidentemente, em uma produção massiva, direcionada ao grande público, um segredo perde sua qualidade de secreto, mas a ideia de ter acesso a um conhecimento oculto, não deixa de ser atrativa para o leitor. Aqui, revela-se mais uma possível influência dos novos pensadores – o gnosticismo. É difícil definir com precisão o gnosticismo, como pontua Azevedo, que procura explicá-lo como “um movimento de pensamento cujos participantes se consideram eleitos pelo fato de possuírem uma gnose, termo derivado do grego gnosis (sabedoria, conhecimento)” (2002, p. 167). O gnosticismo não se conforma como um sistema ou igreja, não é possível datar seu surgimento ou extinção, mas seu estudo é antigo – já no século II, o bispo de Lyon, Irineu, publicou uma obra a respeito (Ibid.).

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às instituições religiosas tradicionais e, ao mesmo tempo, parecia sinalizar uma tentativa de existir sem um confronto direto com essas instituições. Os encontros dos novos pensadores, realizados em centros próprios, auditórios, ginásios, não eram marcados nos domingos, mas em dias alternativos. Muitos protestantes extraiam as ideias que lhes parecessem interessantes do New Thought, permanecendo em suas igrejas de origem, como nota o historiador Richard Huber (1987, p. 127). O poder da mente individual derivava, nas explanações dos novos pensadores, da relação entre a mente humana e o divino – uma divindade que não estabelecia relação de dualidade com o homem e que estava também bastante desvinculada da imagem hostil do Deus calvinista. Lidava-se com a ideia de Deus, como princípio único no uni- verso, fundamentado na ideia de mente. Tudo aquilo que existe no universo, incluindo- -se o próprio homem, seria uma emanação dessa “Mente Universal”. Essa perspectiva teológica que promovia a união do homem com o divino, e que garantia ao primeiro o apregoado poder da mente, estava sempre vinculada a recursos especiais para fazer valer tais poderes. Era preciso exercer controle sobre o pensamento e empregar certas técnicas − afirmações, visualizações, meditações − práticas de caráter mágico usadas para tentar controlar o curso dos acontecimentos, a ordem material. Esses procedimentos estavam subsumidos a um princípio maior que regeria todo o universo − a chamada lei da atração, de acordo com a qual, semelhante atrai semelhante. A referida lei, inspirada nos estudos sobre o magnetismo, em fenômenos relacionados à atração ou repulsão entre determinados objetos materiais, vincula-se, nas formulações dos novos pensadores, a uma visão mágica do universo, embora fosse tratada como um princípio semelhante àqueles da física. O tema da prosperidade não era sublinhado quando o movimento teve início na metade do século XIX. Essa não era uma questão relevante para o precursor do Novo Pensamento, Phineas Pakhurst Quimby, relojoeiro e inventor oriundo da região da Nova Inglaterra. Aquilo que o pioneiro buscava era um procedimento para a cura de doenças. Não se incluía nas formulações de Quimby, a expansão do método que empregava, visando o fim de uma enfermidade, para a obtenção de riquezas, mas a coisa mudaria de figura na década de 80 daquele século com Prentice Mulford. O jornalista foi autor de dezenas de obras de grande êxito editorial e costuma ser ligado a popularização de expressões como “você á a expressão de seu pensamento” (HUBER, 1987, p. 136; RUDIGER, 2010, p. 78). Com Mulfurd e vários outros autores, o poder da mente passaria a ser apresentado como recurso para o sucesso e a prosperidade, como subsídio para o indivíduo fazer valer seus desejos, em publicações de larga tiragem, que não se direcionavam apenas aos adeptos do New Thought, mas a um amplo público. O New Thought acabou, assim, por repercutir para muito além de seus líderes ou seguidores mais estritos. Membros do Novo Pensamento, ou autores embebidos nas formulações do movimento, compuseram uma das principais ondas da autoajuda ao longo da história do gênero, dando origem a produções de acento religioso, como também a obras de caráter mais secular. O movimento perdeu vigor na década de 20 do século passado, mas suas ideias acabaram por se incorporar à cultura norte-americana, disseminando-se em outros países e contextos. Publicações de autoajuda foram fundamentais nesse processo. Uma

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7371 Literatura de autoajuda: um gênero embebido no universo religioso Monica Bernardo Schettini Marques parte significativa dessas produções recorreu às propostas do New Thought ao longo do século XX, processo que tem prosseguimento no século XXI. O Novo Pensamento reverberou ainda em dois importantes fenômenos contemporâneos de abrangência global, a teologia da prosperidade11 e a Nova Era12. Todas essas formações freqüentemente se misturam, influenciando-se mutuamente. Além disso, o movimento tem um eco contemporâneo que é ainda mais abrangente. Como bem sublinhou Barbara Ehrenreich (2009), há uma continuidade entre o Novo Pensamento e o ideário do pensamento positivo, que ganha sistematicidade nos oitocentos nos EUA, tornando-se, no século XX, “mainstream”. Ehrenreich refere-se especialmente ao contexto estadunidense (2009, p.6). É evidente, entretanto, que esse ideário se dissemina muito além dos EUA. Nas publicações de autoajuda dos séculos XX e XXI, o poder da mente e o pensamento positivo ganham formulações que apresentam uma boa dose de variação. Existem abordagens mais racionalizadas que procuram destacar a relação entre o pensamento e a ação; que ressaltam a necessidade do indivíduo ter uma atitude positiva, ser otimista, autoconfiante; e abordagens que tomam o pensamento como mágico, responsabilizando-o pelas mais diferentes adversidades da vida. Às vezes, em um mesmo autor, pode-se verificar um enfoque ora mais mágico, ora mais racional. Nos textos de Rhonda Byrne, o caráter mágico do pensamento é predominante. Os recentes sucessos editoriais da escritora australiana trouxeram o poder da mente à ordem do dia, estimulando outras obras na mesma linha. Nesse contexto, idéias e práticas dos novos pensadores ganham versões atualizadas. Hoje, ou há mais de um século, o leitor é estimulado a “pensar grande”, desejar sem freios ou limites – perspectiva que se coaduna perfeitamente a uma sociedade de consumo. Esse tipo de abordagem aparece em relevo nas seguintes formulações de Willian Walker Atkinson13, figura proeminente do New Thought:

Quero chamar sua atenção para o fato de que nada é bom demais para você – não importa a grandeza da coisa, e não importando como você pode não parecer merecedor. Você tem direito a tudo de melhor que existe, é sua herança direta. Então, não tenha medo de pedir - exigir - e pegar. (ATKINSON, 2011, p. 56-57) 14

11. A teologia da prosperidade enfatiza, sobretudo, crenças sobre prosperidade material, cura e poder da fé. Surge nos EUA, nos anos 1940, constituindo-se como verdadeiro movimento doutrinário naquele país na década de 70. No mesmo período, inicia sua trajetória no Brasil. Nos EUA, onde teve origem, recebe denominações diversas como: prosperity gospel, Health and Wealth Gospel, Faith Prosperity Doctrine. Não tratamos aqui da relação entre o New Thought e a teologia da prosperidade, mas a questão é abordada em uma pesquisa mais ampla que estamos desenvolvendo. A conexão entre o New Thought e a teologia da prosperidade foi alvo da investigação de Dan McConnell (2009), em A different gospel, publicado inicialmente em 1988. 12. Elementos do Novo Pensamento estariam presentes também nas origens da Nova Era, na análise de Gordon Melton (1992). Para o autor, o New Thought e o movimento New Age conformam-se como dois segmentos da religiosidade popular norte-americana que se misturaram de forma muito complexa nos anos 80 (Ibid., p.15). Em sua perspectiva, a Nova Era surge como um movimento de reavivamento na tradição esotérica, reelaborando crenças e práticas já existentes e a presença do Novo Pensamento explicaria a rapidez com que a nova formação que aparece, inicialmente, na Inglaterra, nos anos 60, disseminou-se pelos EUA na década seguinte. Também Paul Heelas (1999), aponta para uma continuidade entre o New Thought e a Nova Era. 13. Atkinson esteve vinculado ao mundo dos negócios, antes de se dedicar à carreira de escritor. Recorreu ao hinduísmo em suas publicações e, muitas vezes, publicou com o pseudônimo − Swami Ramakarach. 14. Esta passagem é da obra Thought vibration or the law of attraction in the thought world, publicada pela primeira

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Tal enfoque significava uma mudança importante em relação aos valores que pauta- vam as primeiras produções de autoajuda e revela-se como principal fonte das produções mentalistas contemporâneas As antigas virtudes puritanas deixam de ser enfatizadas pelos autores, que poderiam, inclusive, fazer críticas explícitas à ênfase no trabalho duro e na frugalidade ou enveredar para formulações que sublinham a importância do relaxamento para a acumulação de riquezas. Elizabeth Towne, por exemplo, outra autora proeminente do New Thought, recorre a exercícios de respiração, articulando-os ao propósito de ganho material. Em uma das práticas que recomenda a seus leitores, chega a comparar o ar ao dinheiro e a inspiração ao acumulo de riquezas (Towne, 2014, p. 30-31)15. Já que a realização dos desejos do indivíduo e a prosperidade material estão atreladas ao pensamento, à vida interior, a atividade profissional tende a perder peso. Como alerta Byrne (2007, p. 101): “Se até então você pensou que um emprego era a única forma de ganhar dinheiro, esqueça isso imediatamente. Você entende que enquanto continuar a pensar assim, essa será sua experiência?” Em In tune with the infinite16, obra de 1897, de Ralph Waldo Trine, é possível obser- var uma das principais características da produção dos novos pensadores, recorrente na autoajuda mentalista contemporânea − as desigualdades sociais são deslocadas da conjuntura social, política e econômica e subsumidas ao caráter mágico do pensamen- to, das emoções e sentimentos individuais. A transformação da realidade acaba por circunscreve-se, assim, à transformação da interioridade. Nas palavras de do autor:

Se alguém mantém um pensamento de pobreza, ele será pobre, e as chances são de que permaneça na pobreza. Se ele conserva, não importam quais sejam as condições presentes, um pensamento de prosperidade ininterrupto, ele define as forças de operação que, mais cedo ou mais tarde, irão trazê-lo para condições prósperas17 (TRINE, 2008: p. 81-82).

Essa idéia pode ganhar uma versão especialmente constrangedora, na seguinte formulação de Byrne:

Se olhar para o mundo ao seu redor, verá que a maioria das pessoas não lida bem com o dinheiro, porque a maior parte das riquezas do mundo está nas mãos de cerca de 10% da população mundial. A única diferença entre os ricos e todos os demais é que os ricos têm mais sentimentos positivos do que negativos com relação ao dinheiro. É simples assim. (BYRNE, 2010, p. 149)

vez em 1908. Consultamos a edição brasileira, que ganhou o título: A lei da atração e o poder do pensamento. 15. Referimo-nos, aqui, a Practical methods for self-development: spiritual, mental, physical, obra publicada inicialmente em 1904. 16. A produção de autoajuda ligada ao New Thought ganhou, ainda no final do século XIX, com In tune with the infinite, abrangência e popularidade internacional. A obra chegou a ser citada como “leitura favorita” por personalidades da época, como a rainha Vitória e Henry Ford (HUBER, 1987, p. 126). Publicada pela primeira vez em 1897, vendeu mais de 1 milhão e meio de exemplares, e foi traduzida para cerca de 20 línguas (BRADEN, 1987, p.165). 17. No original, em inglês: “If one hold himself in the thought of poverty, he will be poor, and the chances are that he will remain in poverty. If he hold himself, whatever present condition may be, continually in the thought of prosperity, he set into operation forces that sooner or later bring him into prosperous conditions” (TRINE, 2008: p. 81-82).

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Nas obras do Novo Pensamento ou dos textos contemporâneo de Byrne, Deus é concebido como causa primeira e fundamentado na ideia de mente. Tudo aquilo que existe no universo, incluindo-se o próprio homem, é uma emanação de uma “Mente Universal”, uma divindade que está em tudo, tudo provê − àquele que através da mente individual sabe como se conectar com a mente superior. A tendência a uma divinização do humano já presente entre os novos pensadores ganha uma versão mais explícita nas propostas de Byrne que avisa ao leitor: “Você é Deus num corpo físico. Você é o Espírito na carne. Você é a vida eterna expressando-se como Você” (BYRNE, 2007, p. 164). Esse processo de intimização com Deus e busca de empoderamento apresenta-se em sintonia com o individualismo moderno e parece sinalizar uma tentativa de enfrentar um contexto em que a realidade mostra-se particularmente aversiva. Perseguem-se resultados concretos, aqui e agora, deseja-se a transformação da realidade, recorrendo- -se, paradoxalmente a formulações que tendem a fugir de uma perspectiva realista.

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7375 Arte impopular? Pensando audiolivros, cultura e modelos de negócio Impopular art? Thinking audiobooks, culture and business models

R afa e l d e O l i v e i ra Barb o s a 1

Resumo: Ao observarmos a difícil popularização dos audiolivros no Brasil mesmo com as promessas de sucesso a cada iniciativa de editoras ou inovação tecnológica, interessou-nos discutir esse contraditório cenário a partir da Comunicação. Com história e teoria, interrogamos se é apenas a questão tecnológica o ponto fundamental nesse difícil processo de crescimento do audiolivro. Diante de falsos alarmes no passado, novos modelos de negócio possibilitados pelo digital são suficientes para superar a quase ausência dos audiolivros nas práticas de leitura do brasileiro? Baseando-nos em análise documental e revisão bibliográfica para entender da questão, abordamos perspectivas sobre a sociedade da informação digital, como o “bios midiático” (SODRÉ, 2002; 2007), sobre as vivências de oralidade e das letras na formação cultural do Brasil (BARBOSA, 2013; HALLEWELL, 2005) e uma breve história do audiolivro como produto de entretenimento (RUBERY, 2011) - e como este meio fora retratado em jornais brasileiros nas últimas décadas. Ao fim, paradoxalmente, sugere-se que, para além dos modelos de negócio, a formação de um público letrado é indispensável na análise da massificação projetada para a literatura sonora nas manchetes de jornais. Palavras-Chave: Audiolivro. Modelos de Negócio. Aplicativos. Letramento.

Abstract: Observing the difficult popularization of audiobooks in Brazil even with the promises of success every initiative of audiobooks publishers, it becomes interesting to discuss this contradictory scenario from Communications perspective. With history and theory, we examine if is only technology the crucial point in this hard growing process of audiobook market. Before false alarms in the past, new business models allowed by the digital information are enough to overcome the absence of audiobooks in the Brazilian reading practices? Based on documental analysis and bibliographic review, we bring perspectives about digital information society, as “midiatic bios” (SODRÉ, 2002; 2007), experiences of orality and literacy in the cultural formation of Brazil (BARBOSA, 2013, HALLEWELL, 2005) and a brief history of audiobooks as entertainment product (RUBERY, 2011) – and how this medium was treated in brazilian newspapers in the last decades. Ultimately and paradoxically, we suggested that, beyond business models, a literate readers community is indispensable in the analisys of audiobooks massification projected by newspapers headlines. Keywords: Audiobooks. Business models. Apps. Literacy.

1. Doutorando do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCom/Uerj). Bolsista Faperj. e-mail: [email protected].

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7376 Arte impopular? Pensando audiolivros, cultura e modelos de negócio Rafael de Oliveira Barbosa

DIRECIONAMENTOS PARA ENTENDER A IMPOPULARIDADE DOS AUDIOLIVROS INCLUSÃO DOS audiolivros na cultura digital e, especificamente, no ambiente de negócios online, abre espaço para (re)considerações sobre este produo, inclusive Ade apelo histórico, principalmente quando observamos sua difícil populariza- ção no Brasil apesar das promessas de sucesso a cada iniciativa de editoras ou a cada inovação tecnológica. Desse modo, interessou-nos discutir esse contraditório cenário a partir da Comunicação. Com história e teoria, abordamos como a literatura sonora contrariou as expectativas mais otimistas no Brasil e, até hoje, encontra dificuldades de penetração nos hábitos de leitura dos brasileiros. A cada transformação tecnológica ou a cada aposta em um novo modelo de negócio, jornais apresentaram (e ainda apresentam) ao seu público a expectativa de popularização (nunca concretizada) dos audiolivros no país. De modo pertinente, ao compararmos os limitadíssimos dados do cenário nacional da leitura de audiolivros, por meio da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2013)2, com os dados divulgados pela APA (Audio Publishers Association), com referência ao ano de 2013 da indústria audiolivreira americana, encontramos algo importante, ponto de partida do presente texto: a relação entre a presença do audiolivro e a alta formação escolar/acadêmica, ou, para ser mais objetivo, entre o formato sonoro de literatura e a cultura letrada (RUBERY, 2011; RUBERY in GREESPAN; ROSE, 2013). Segundo a pesquisa, quanto mais livro, mais audiolivro. E vice-versa.3 Desta ligação, resulta nosso interesse em apresentar dois lados da mesma questão: 1) as recentes condições do comércio de audiolivros, voltando-nos para três instâncias (produção, distribuição e consumo), as quais tentamos apresentar por meio de dois novos modelos de negócio no mercado brasileiro das obras sonoras. Sem pretender apontar ou valorar transformações tecnológicas como positivas ou negativas, intentamos refletir, principalmente, sobre como os aplicativos estão sendo vistos como alternativas recentes para fomentar a presença de audiolivros no Brasil; 2) os possíveis traços histórico-cultu- rais do Brasil capazes de ajudar a entender o pouco sucesso deste formato literário por aqui – apesar justamente das enormes transformações nas tecnologias de comunicação e de informação (especialmente o desenvolvimento da fonografia no ambiente digital). Em suma, por um lado, apresentamos as inovações nos modelos de negócio com as transformações tecnológicas e, por outro, firmamos uma postura crítica ao questionar se é apenas a questão tecnológica o ponto fundamental nesse difícil processo de cres- cimento do audiolivro no país. Assim, a revisão bibliográfica que embasa este trabalho nos conduz, primeiramente, para a compreensão do contexto tecnológico ao redor do audiolivro com perspectivas sobre a sociedade da informação digital, como o “bios midiático” (SODRÉ, 2002; 2007). Ademais, recorrendo ao termo “cultura da portabilidade” (KISCHINHEVSKY, 2009), buscamos possíveis explicações (e implicações) dessas convergência e conectividade

2. INSTITUTO PRÓ-LIVRO. Retratos da Leitura no Brasil, Disponível em: http://prolivro.org.br/ home/images/relatorios_boletins/3_ed_pesquisa_retratos_leitura_IPL.pdf Acesso em: 10 jan 2014. 3. “Audiobook Listeners Are Affluent, Well-Educated and Avid Book Readers”. Disponível em: h t t p :// www.audiopub.org/2010ConsumerSurveyreleasefinal.pdf Acesso em: 10 jan 2014.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7377 Arte impopular? Pensando audiolivros, cultura e modelos de negócio Rafael de Oliveira Barbosa dos dispositivos eletrônicos nas práticas de leitura. Os dois breves exemplos nacionais apresentados são a Ubook e a Tocalivros e seus repectivos aplicativos, cujo funcionamento serão mais detalhados ao longo do texto, com base nas informações disponíveis nos respectivos sites das empresas. Utilizamos também notícias sobre o lançamento destes novos recursos e demonstramos como a cada mudança tecnológica ressurge uma expectativa de sucesso do mercado de audiolivros. Na segunda parte, torna-se relevante a identificação do audiolivro do livro com a chamada “cultura letrada”, relacionada ao livro, às letras, de onde este formato de lite- ratura surgiu – sem esquecer, contudo, a histórica relação da literatura e sua reprodução oral (ZUMTHOR, 2007) e as vivências da oralidade, da escrita e do letramento (aqui, no sentido estrito de contato com as letras, os livros) no Brasil (BARBOSA, 2013; HAL- LEWELL, 2005). Posteriormente, em função dessa abordagem não-dicotômica entre oral e escrito, apresentamos como discussão futura se há como pré-requisito um conjunto de habilidades cognitivas relacionadas ao mundo letrado para a leitura de audiolivros. Dito de outro modo, se modulações ou habilidades cognitivas poderiam ser estimuladas ou inibidas por décadas de práticas culturais em que os dispositivos de comunicação participem (PEREIRA, 2006; REGIS, 2012). Importante notar que a construção de uma perspectiva histórica do audiolivro, por meio de pesquisa documental e bibliográfica, permite-nos relativizar o próprio papel e as contribuições do digital. Diversos períodos de inovações tecnológicas no campo fonográfico que tiveram influência sobre a literatura em áudio são identificáveis como ponto de impulso para o audiolivro no Brasil. Contudo, como curiosidade e fato que é pano de fundo deste trabalho, com nenhuma dessas transformações tecnológicas os brasileiros, de modo geral, demonstraram grande interesse ou grande contato com audiolivros. Ao longo do tempo, especialmente a partir dos anos 80, os jornais brasileiros abri- ram espaço para textos sobre audiolivros e realizavam suas apostas em favor do meio, mostrando as supostas vantagens tecnológicas em relação ao texto impresso. Mas, con- trariando (diversas vezes) a expectativa e se afastando da ideia de “livro do futuro”, modo como o audiolivro foi retratado no final do século XIX, este produto teve um percurso mais de fracassos que de sucessos no Brasil, em que iniciativas anunciadas em manchetes foram, muitas vezes, derrotadas pelo tempo. Essa relativa impopularidade que nos conduz a compreender o audiolivro abordando os contextos material, social, econômico, entre outros, que o cercam. E, posteriormente, os aspectos cognitivos relacionados a seu uso. Portanto, o presente artigo é dedicado a discussão sobre recentes modelos de negócio no mercado brasileiro de audiolivros, não restringindo-se a aspectos econômicos, por meio de reflexes teóricas e principalmente históricas. Frisamos que não pretendemos generalizar o público leitor brasileiro nem esquecer o ponto de vista comercial e tecnológico atual, no qual o digital (e precisamente a internet e os gadgets) contribui para a formação de novos modelos de negócio e de novas relações com a obra sonora. Tratamos da relação que transformações tecnológicas e econômicas possuem com a discussão das práticas de leitura e das interações com os textos. Por esta razão, este artigo forma parte de um objetivo maior que inicialmente tenta compreender a presença da literatura sonora em ambientes “letrados” e “não-letrados” e

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7378 Arte impopular? Pensando audiolivros, cultura e modelos de negócio Rafael de Oliveira Barbosa verificar novas formas de conceituar termos como texto, leitura e até mesmo letramento. Buscamos jogar luz sobre implicações de ordens social e cultural.

AUDIOLIVROS: LITERATURA E SOM NO AMBIENTE DIGITAL Ao pesquisarmos a relação entre audiolivro e entretenimento, indo além das obras sonoras produzidas para cegos, encontramos um interessante espaço de estudo, no qual percebe-se como o formato material condiciona em parte a produção de literatura gravada e também seu mercado. Alguns tipos de registros sonoros de estúdios americanos, feitos a partir do início do século XX, indicam como as primeiras adaptações de um livro impresso para ondas foram de pequenos trechos reduzidos devido à pouca capacidade de armazenamento (CAMLOT in RUBERY, 2011) e como um mercado voltado para a literatura em áudio tardou a se consolidar por limitações tecnológicas. Foi somente durante o século XX que tecnologias como fitas magnéticas,k-7 , cds e o formato mp3 surgiram como possibilidades de popularização de audiolivros, haja vista a importância dos suportes de armazenamento e reprodução na distribuição e no consumo do livro sonoro. O pesquisador Jesper Olsson, em The Audiographic Impulse – Doing literature with the tape recorder (OLSSON in RUBERY, 2011) descreve o impacto da fita magnética sobre a recorded literature, possibilitando novas formas de trabalhos e composições, em razão da “objtificação do som”, e maior facilidade de acesso e uso da tecnologia de gravação por amadores – ainda que tais possibilidades não tornassem, segundo ele, a fita de fato viável para o mercado literário. (OLSSON in RUBERY, 2011, p. 69). De acordo com Olson, somente no final dos anos 60 e início dos 70, as obras literárias sonoras teriam lançamentos mais frequentes, consequência da invenção da gravação em cassete, suficientemente flexível e durável, tornando-se meio de distribuição para editores, escritores e artistas. Complemetando essa visão sobre o mercado de audiolivros nos Estados Unidos, o pesquisador Daniel Platt (in GREEZPAN; ROSE, 2012) descreve em artigo como nas décadas posteriores os audiolivros tiveram seu boom no país com o advento do walkman, da Sony, e a prevalência dos tocadores de fita nos carros, facilitando a possibilidade da escuta individual e móvel. No Brasil, ainda que tais novidades tecnológicas chegassem, o aguardado boom de audiolivros nunca aconteceu. Manchetes de jornais, induzidas pelo caráter do “novo” ao redor desse produto editorial, erroneamente tentaram prevê-lo, como a reportagem do Caderno 2, do jornal Estado de S. Paulo, de 2 de junho de 1994, com o título “Livros falados chegam ao mercado”. Nela, o audiolivro é tido como “novidade no Brasil, mas já tem mercado estabelecido na Europa e nos Estados Unidos - neste último, em seis anos rendeu US$ 6 bilhões.”. No Segundo Caderno, de O Globo, em 18 de Junho do mesmo ano, sob o título “‘Diário de um mago’ vira audiolivro de quatro horas”, em referência à adaptação da obra de Paulo Coelho, o mercado para o formato em áudio é tido como “promissor, a julgar pelos lançamentos sucessivos”. Na “Revista O Globo”, de 30 de outubro de 2005, onze anos depois, portanto, um site francês especializado para download de audiolivros chega ao Brasil destacado sob o título “A vez do audiolivro”. “É possível ouvir num computador, gravar num CD para usar no carro ou num discman. Também dá para tocar em MP3 players e outros aparelhos portáteis”, diz Frédéric Bonnet, um dos criadores da página.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7379 Arte impopular? Pensando audiolivros, cultura e modelos de negócio Rafael de Oliveira Barbosa

Esses e outros casos tornam patente a importância das transformações de tecnologias de comunicação e informação na formação de uma indústria do audiolivro nos Estados Unidos, principalmente as digitais, que têm dominado o setor. Segundo a Audio Publi- shers Association (APA)4, entidade que reúne editoras de audiolivro americanas – uma indústria que já movimenta 1,3 bilhão de dólares – já há a ampla ampla preferência dos consumidores pelas versões digitais (70% dos audiolivros vendidos), com mais de 60% das vendas por internet acontecendo por download. Ao mesmo tempo, tais pontuações históricas apontam para a insuficiência destas mesmas tecnologias para gerar cresci- mento no consumo de audiolivros no Brasil. Isso apesar da potencialização da portabi- lidade dos registros sonoros, da compatibilidade e do compartilhamento entre diversas plataformas, da mobilidade e da maior possibilidade ações sobre os arquivos digitais.

Ubook e Tocalivros: modelos de negócio via aplicativos no Brasil Tendo em vista o cenário apresentado acima sobre a influência do digital na produção e circulação de audiolivros nos Estados Unidos, demonstrando uma tendência de mercado, selecionamos o que há de mais recente no mercado de audiolivros nacional: a venda e a leitura pelos aplicativos das editoras Ubook e Tocalivros, lançados em 2014 e disponíveis para dispositivos com iOS e Android. A seleção de ambos tem como função ajudar na avaliação breve do cenário brasileiro e de suas particularidades culturais, sociais e econômicas. Apenas para contextualização, realizamos breves descrições da Ubook e da Tocalivros e seus modelos de negócio. A UBook apresenta como principais atrativos de seu aplicativo e de seu serviço: a portabilidade; o funcionamento off-line dos audiolivros; audiolivros ilimitados; acesso às obras pelo usuário em seus diversos dispositivos, com possibilidade da leitura continuada de uma mesma obra nestes diversos aparelhos, com histórico de leituras gravado na conta em tempo real; sugestões de editores; a qualidade do áudio e dos narradores; e, por fim, a possibilidade de entretenimento com economia de tempo. O uso efetivo pode se dar pelo navegador ou pelo aplicativo “Ubook”, por meio de assinaturas de algum dos planos ofertados. Com modelo mais tradicional, a Tocalivros oferece a venda individual de audiolivros, que devem ser baixados pelo aplicativo da empresa, lançado em novembro de 2014. As obras podem ser ouvidas no modo off-line e ficam armazenadas na biblioteca do usuário. Destaca seu aplicativo por funcionalidades como marcador, que permite ao usuário continuar a leitura de onde parou; controle de velocidade da leitura; a função “retroceder”, que volta a reprodução em 30 segundos e pode ser acionada pelo audioleitor em caso de distração; estatísticas, que aponta a evolução da leitura e, finalmente, a possibilidade de compartilhamento, isto é, exibir em redes sociais o que se está lendo. Assim, em um sistema semelhante ao utilizado pela Amazon com o aplicativo Audible, o leitor tem acesso a diversos audiolivros produzidos pelas empresas em parceria com editoras e tem a possibilidade de assinar o serviço e ter acesso a inúmeras obras do acervo mensalmente ou pode comprar uma obra sonora separadamente e baixá-la para

4. Dados da APA estão disponíveis em: http://www.audiopub.org/October_APA_2013_Survey_Press_ Release.pdf Acesso em: 22 nov. 2014.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7380 Arte impopular? Pensando audiolivros, cultura e modelos de negócio Rafael de Oliveira Barbosa seu dispositivo. Em contraste com os modelos de negócios voltados para cds e downloads diretos de sites de compras e de editoras para o computador, o serviço ofertado por essas empresas inclui-se na discussão da conectividade entre os aparelhos eletrônicos de comunicação, da convergência, da nuvem. É pela perspectiva do “bios midiático” (SODRÉ, 2002) e também pela chamada “cultura da portabilidade” (KISCHINHEVSKY, 2009) que poderíamos ver como as recentes iniciativas no mercado de audiolivros tenta encontrar enfim um público. Como explica Marcelo Kischinhevsky, esta cultura da portabilidade implica, na verdade, um novo modo de consumo, baseado principalmente na disseminação de tocadores multimídia e na telefonia móvel (como, por exemplo, dos smarphones e suas multifuncionalidades). Segundo ele, essa cultura da portabilidade não é invenção do digital. Na verdade, “a cultura da portabilidade marca uma nova etapa, representada pela integração entre modalidades já consolidadas de recepção de mídia sonora e novas formas de interação que suscitam diversas questões sobre o processo de comunicação.” (KISCHINHEVSKY, 2009, p.230) Sua análise sobre o consumo do rádio e de som dentro dessa cultura pode servir como um parâmetro para nossa abordagem das formas de audioleitura potencializadas com a entrada de novos modelos de negócio no mercado de audiolivros.

A portabilidade é estudada hoje em duas frentes: na informática – como propriedade de um objeto ou aplicação acessível em plataforma distinta daquela para a qual foi inicialmente desenvolvido(a) – e nas telecomunicações – em referência à possibilidade de se preservar um número telefônico ao se mudar de operadora, como forma de estimular a concorrên- cia. Na área de comunicação, contudo, a noção aparece apenas de forma incidental, em estudos sobre cibercultura e sobre novos hábitos de consumo de música. [...] Parece haver forte demanda social por “capacidades” proporcionadas por aparelhos portáteis, tais como conectividade e acessibilidade. Naturalmente, o domínio destas ferramentas exige, como na navegação via internet, uma série de “habilidades”, que possibilitam sua incorporação à vida cotidiana [...] (KISCHINHEVSKY, 2009, p.228-229)

Talvez seja também um traço do contemporâneo que essa integração dos dispositivos portáteis (conectados e acessíveis quase todo o tempo) ao cotidiano resulte na própria indistinção temporal, em que trabalho, lazer ou educação se misturem, se diluem, escapando, como afirma Muniz Sodré, ao ordenamento técnico do acontecimento. (SODRÉ, 2007) Esta nova configuração do tempo caracteriza o que o autor denomina “bios midiático”, “a sociedade midiatizada enquanto esfera existencial capaz de afetar as percepções e as representações correntes da vida social, inclusive de neutralizar as tensões do vínculo comunitário” (SODRÉ, 2007). É o que separa a Revolução Industrial, centrada na mobilidade espacial, da Revolução da informação, centrada na virtual anulação do espaço pelo tempo, gerando novos canais de distribuição de bens e a ilusão da ubiqüidade humana. (SODRÉ, 2002, p.13-14). O novo ambiente do “eterno presente”, em que também surge uma nova maneira de se exercer o controle sobre o indivíduo. Nesse contexto que se instalam os novos modelos de negócio citados, que, de algum modo, não estão separados das próprias práticas e dos diferentes modos de consumo, na medida em que estão regidos pelo mesmo “código”. Vende-se não só um produto,

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7381 Arte impopular? Pensando audiolivros, cultura e modelos de negócio Rafael de Oliveira Barbosa mas também uma forma de se usufruir dele. Não à toa parece ser cada mais possível o discurso, há décadas reproduzido, acerca da audioleitura paralela a outra atividade, como dirigir, trabalhar, caminhar, entre outras. Ao refletir sobre a relação do audiolivro e a cultura da portabilidade e o bios midiatico, essencialmente, destacamos alguns aspetos desses novos modelos de negócio: a influência desse modo de comercialização na produção, no acesso e na leitura de audiolivros, permitindo reconfigurações, como no caso do uso de aplicativos de audioleitura, das apropriações pelos audioleitores. Podemos pensar na “qualidade” das leituras praticadas, em novos hábitos desenvolvidos e em outras maneiras de se relacionar com o texto literário como possíveis resultantes da intervenção desses novos recursos de leitura. Entretanto, é preciso verificar que público se tem como foco, haja vista que são necessários certos recursos tecnológicos e cognitivos para consumo das obras em áudio em aplicativos, dentro de um ambiente informatizado. Com base na mesma pesquisa da APA já citadas sobre consumidores americanos de audiolivros, nota-se que quanto maior o nível de formação escolar, maior o consumo de audiolivros. Quanto mais letramento, mais a literatura sonora se faz presente. Não sendo necessariamente opostos ou excludentes o livro e o audiolivro. Restringindo-nos ao tema que propusemos debater aqui, podemos usar tais dados para pensar o contexto brasileiro e verificar se (ou como) esses novos modelos de negócio mudam efetivamente a penetração dos audiolivros na leitura do brasileiro e o que esses novos modelos de negócios mudam no conteúdo oferecido. Na intenção de encontrar uma resposta a estes tópicos, devemos relembrar aspectos importantes. Primeiramente, a proximidade historicamente estabelecida entre livros e audiolivros, em que o segundo se aproveita de características do primeiro – o que pode ser designado pelo conceito de remediação (BOLTER, GRUSIN, 2000) – merece ser colocada como questão relevante. Afinal, ainda que sonoro, o audiolivro é apresentado como fruto de uma sociedade letrada. Como explica Matthew Rubery, o audiolivro tem uma relação direta com a leitura vocalizada de livros, como acontecia na sociedade vitoriana nos Estados Unidos. (RUBERY, 2013) Nesse sentido, os discursos mercadológicos sobre o audiolivro retratam muitas vezes o formato em áudio como substituto do formato impresso, principalmente para quem não tem tempo a dedicar a um livro e não como um modo de leitura cujas especificidades devam ser destacadas e até combinadas com o impresso. Tal visão encontra certa base na realidade, mas deve ser ponderada de forma crítica. As duas experiências de leitura até se aproximam quando consideramos, por exemplo, a “experiência linear” dos textos impresso e sonoro, a existência de uma gramática ou de uma estruturação semelhante, embora cognitivamente as ações e relações empreendidas na produção de sentido não sejam necessariamente iguais. Nesse sentido, o uso de aplicativos e o surgimento de um novo modelo de negócio e uma estrutura diferenciada de produção, baseada em parcerias com editoras, pouco afetam, em um primeiro momento, a estrutura livresca do audiolivro. Tal argumentação sustenta a ideia de um letramento para a audição de audiolivros. Então, seria o contexto histórico-social brasileiro favorável ao crescimento do mercado de livros sonoros? Adiante, recorremos a uma discussão entre audiolivros, letras e formação cultural do Brasil.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7382 Arte impopular? Pensando audiolivros, cultura e modelos de negócio Rafael de Oliveira Barbosa

O AUDIOLIVRO E AS LETRAS De forma curiosa, e bastante evidente, é o próprio nome “audiolivro” que nos aponta para a relação entre a forma sonora e a forma escrita presente neste híbrido literário. Assim, considerando a sonoridade e a escrita, de que modo livro e audiolivro, quando consideradas suas características mais particulares, parecem estar em relação e não necessariamente em oposição? E por quê? O estudioso inglês Matthew Rubery evidencia no artigo Canned Literature: The Book after Edison a proximidade entre as duas formas de literatura. De um lado, a influência, no final do século XIX, do fonógrafo de Thomas Edison na possibilidade de gravação de obras escritas (o que o inventor denominou de “livro fonográfico”), confrontando a sociedade americana com a escolha entre duas diferentes formas de reprodução mecânica de sua literatura. Décadas depois, a leitura pelo áudio passaria a oferecer de modo inédito a experiência individual e privada antes associada apenas aos textos impressos. Justifica-se, assim, o surgimento da fonografia como uma forma de produzir, armazenar e distribuir textos, mas não de maneira isolada dos outros formatos, como impresso e manuscrito. Assim, tal tecnologia sofreu influências das demais mídias, o que explica a organização, a gramática, semelhante a do livro na literatura gravada. Podemos, a partir daí, pensar como o fonógrafo e a impressão se desenvolveram em estreita relação, com o primeiro repetindo o padrão de remediação (BOLTER, GRUSIN, 2000), isto é, de uma tecnologia emergente imitando/recuperando seus predecessores, assim como a prensa de Gutenberg inicialmente produziu volumes semelhantes a manus- critos. De fato, pouco se fez para produzir uma arte distinta do impresso até o século seguinte (RUBERY in GREENSPAN e ROSE, 2013, p. 223). E de certa forma, ainda que, atualmente, haja mais possibilidades de criação e edição de uma obra sonora, não se verifica uma distância muito grande entre livro e audiolivro em muitos casos. Portanto, tomando apenas o sentido livro>audiolivro, as características de oralidade e escrita se mesclam ao menos de dois modos: a) na construção das estruturas de linguagem, nas construções narrativas (conteúdo), em que uma se apropria de certas características da outra e as apresenta dentro das suas condições materiais; e b) no ato de leitura, nos usos dos leitores, que nos levam a pensar as possibilidades da própria experiência textual com diversos suportes. Considerando títulos disponíveis em audiolivro tanto dentro quanto fora do Brasil, verificamos certa diversidade de adaptações, com obras resumidas, integrais e, digamos, reescritas – textos “recontados” sob uma nova forma. Entretanto, na maior parte dos exemplos, as mudanças, quando feitas, são majoritariamente realizadas por força da materialidade do meio sonoro, como a exclusão de notas de rodapé, impossíveis de serem introduzidas no áudio sem que se quebre a linha narrativa da estória. Formalmente, versões em livros e audiolivros de um título são estruturadas de forma semelhante. Percebe-se a resistência da “lógica dos livros”. Se fizermos uma varredura no mercado audiolivreiro atual, identificaremos que as inovações na forma do audiolivro são poucas, influenciados também pelos modelos de negócio estabelecidos com editoras e, em certos casos, por questões como direitos de propriedade. Ao levar consigo traços do livro, então, o audiolivro parece levar consigo marcas do universo letrado. Essa constatação abre caminho para nossas reflexões para sua presença

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7383 Arte impopular? Pensando audiolivros, cultura e modelos de negócio Rafael de Oliveira Barbosa no Brasil, um país em que a cultura letrada foi inserida de modo muito gradual, como podemos ver na seção seguinte.

Vivências de oralidade e escrita no Brasil Essa lenta entrada dos livros e das letras no cotidiano brasileiro é contada e teoriza- da por Marialva Barbosa no livro “História da Comunicação no Brasil” (2013). A autora mostra como, a partir do século XVIII, o cenário oral no país começa a ganhar contor- nos da escrita, apesar da longa proibição pela corte portuguesa de impressão de livros na colônia. Descreve no Rio de Janeiro, “uma cidade malcheirosa, de ruelas estreitas e de barulhos ensurdecedores” (BARBOSA, 2013, p.18) e que é elevada a vice-reinado, o aumento na circulação de impressos, como documentos, ofícios, livros e jornais produ- zidos no exterior e trazidos muitas vezes ilegalmente em navios. Vislumbra-se assim o crescimento de práticas de leitura no país, ainda que de forma coletiva e oralizada, e dos donos de livros (basicamente a parte livre da população, como donos de terra e de escravos, professores, médicos etc), evidenciando uma sociedade onde, mesmo com o advento de tecnologias, conviviam e se atravessavam os mundos letrado e oral. Constrói- -se também não apenas o uso do livro como forma de conhecimento, explica Barbosa, mas também como ornamento, forma de acesso ao sagrado e também divertimento, revelando os novos significados da leitura naquele momento (BARBOSA, 2013, p. 30-31),

Ao conter ensinamentos, os livros se transformavam em lugares de estocagem de informa- ções que poderiam novamente ser reutilizadas, constituindo-se em mapas da memória. O público leitor esporádico e escasso foi sendo construído paulatinamente, trazendo nas suas bagagens não apenas livros e jornais, mas hábitos culturais que sobreviveram e práticas do mundo da oralidade que, inexoravelmente, estavam presentes na forma como se apropriavam desses impressos (BARBOSA, 2013a, p.31)

No século 20, a convivência entre as formas de leituras permaneceu. Os próprios jornais, lidos também em voz alta em ambientes privados, entre amigos e familiares, no trabalho, encontravam um público mais amplo na distribuição oral, para o que pode ter contribuído os baixos índices de alfabetização da época. Assim:

Enquanto o texto impresso atingia o leitor no ambiente solitário, o texto transmitido pela voz indicava a presença próxima de outro que influenciava na compreensão daquela mensagem. O texto lido era muitas vezes transmitido oralmente a outros e, desta forma, alargava-se os leitores. O texto transmitido pelos periódicos era, assim, também discurso falado, cuja força da locução e da compreensão dependia dos aspectos articulados do discurso, mas também da mímica, dos gestos, ou seja, dos elementos não articulados (BARBOSA, 2013a, p. 205)

A própria produção de textos escritos, em cartas, poesias e periódicos, adotava características estruturais e de linguagem do texto oral para representar diálogo, conversas, falas e entonações, tornando o presente o autor ausente, caso de de Gungo Moquiche, citado por Barbosa e cuja poesia oral só pode ser decifrada “se lermos o poema em voz alta. Os diversos usos da escrita em função da fala, o forte cruzamento entre oral e escrito, o lento crescimento da circulação de impressos no Brasil e o pequeno grupo

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7384 Arte impopular? Pensando audiolivros, cultura e modelos de negócio Rafael de Oliveira Barbosa de intelectuais, com poucas instituições científicas e literárias mostram uma formação cultural nacional pouco baseada em livros e letras, afastada dos ideais iluministas. Ainda que, nas últimas décadas, o Estado tenha aumentado os esforços para ao menos alfabetizar a população – embora o letramento vá além da apreensão do código escrito – a difusão das letras ainda parece um desafio. Seria esta conformação cultural, portanto, um dos obstáculos à presence maior dos audiolivros? Ao debatermos na seção anterior aspecto da remediação livresca do audiolivro e agora o letramento no Brasil, abre-se caminho para interrogarmos, em função do pouco distanciamento entre a formação que o mercado audiolivreiro dá à linguagem de seu produto daquela usada nos livros, se essa proximidade de estruturas – o que permite às editoras sugerir ao público-alvo a troca do impresso pelo audio como estratégia de vendas – não se estaria retardando o desenvolvimento e a massificação no Brasil do meio, que, como mostramos, parece tão ligado a uma cultura letrada?

CONSIDERAÇÕES FINAIS Sendo assim, ficam, portanto, interrogações pertinentes, como: é, de fato, a questão tecnológica que impede o avanço dos audiolivros no Brasil? Ou de que modo a tecnologia, de fato, fomenta a popularização dos audiolivros no país? Quando brevemente apresentamos um conjunto de transformações tecnológicas na mídia fonográfica e a consequente aposta do mercado brasileiro nos audiolivros, anunciadas frequentemente em diversas publicações nacionais, podemos abrir caminho para outra forma de compreender esse fenômeno do “insucesso”. Haveria um traço histórico-cultural na realidade brasileira que se apresentasse como obstáculo – transponível ou não – a essa popularização? Não pretendemos apontar aqui que a tecnologia (no caso do presente texto, os aplicativos) não auxilia nesse processo de massificação. É até pertinente frisar que, no lado comercial, o digital e a internet estabeleceram condições para melhores produção, distribuição e venda do audiolivro, sendo possível a redução no preço de capa das obras e sua maior capacidade de alcance. Ao ocupar poucos espaços de venda físicos, como livrarias e lojas, o audiolivro tem ocupado cada vez mais o mercado online, caminho preferencial e mais sustentável para as editoras, que no off-line. Por outro lado, vislumbramos a necessidade de se olhar principalmente o grupo de leitores no Brasil, o seu perfil cultural e escolar, e o seu entorno. Talvez, a justificativa tecnológica não seja suficiente. Apontamos, finalmente, que é preciso considerar o elemento cognitivo em parte da explicação para o fracasso do audiolivro no Brasil. As dificuldades de letramento para lidar com um produto originário de uma cultura dos livros. Ainda que permeado de efeitos sonoros, narrações e entonações, e com toda a complexidade envolvida em uma prática de leitura, o audiolivro traz traços do universo livresco. Assim, a experiência sensorial e as situações de performance (ZUMTHOR, 2007) na escuta de obras podem oportunamente ser comparadas com a leitura de um impresso. Não afirmamos igualdade do processo cognitivo nas duas atividades, mas apresentamos um tema para ser levado à prática de pesquisa de fato. Tampouco dizemos que os audiolivros são para letrados. O que se evidencia é que a maior parte dos audiolivros são versões de obras em impressas,

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7385 Arte impopular? Pensando audiolivros, cultura e modelos de negócio Rafael de Oliveira Barbosa replicando sua lógica no processo de produção e, hipoteticamente, afastando o público menos afeito aos livros. Não à toa perguntamos anteriormente: produto sonoro, oralizado, como explicar que o audiolivro, ao se popularizar justamente entre os mais escolarizados, parece reforçar justamente o letramento, tão associado à escrita? Observar a gramática e a materialidade do texto literário em áudio, com seus capítulos, seções, epígrafes, paratextos etc, permite identificar esse ato de remediação e, talvez, pensar em outras formas de construção de audiolivros. Afinal, o que torna um texto em áudio um audiolivro? Pergunta tão complicada e polêmica do que perguntar “o que é um livro?”. É certo que os aplicativos para audiolivros ainda são uma novidade no país e que é preciso evitar futurismos (positivos ou trágicos). Ao mesmo tempo, é necessário ampliar a questão para além de uma problemática mercadológica, produtiva. Todavia, haja vista nosso interesse em um aprofundamento do problema em outros trabalhos, em princípio, estabelecemos como um ponto de partida para compreender o “fracasso” dos audiolivros a realidade da leitura e do letramento no país, além, possivelmente, de outros fatores sociais, econômicos e materiais. Não havendo, portanto, um fechamento, encaminhamos ao leitor e a nós mesmos ao fim dessa discussão um novo problema.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Barbosa, M. (2013) História da Comunicação no Brasil. Petrópolis: Vozes. Bolter, J. D.; Grusin, R. (2000) Remediation: Understanding new media. Mit Press. Greenspan, E.; Rose, J. (Orgs.). (2012) Book History – Volume 15. Baltimore, Maryland: The Johns Hopkins University Press. ______. (2013) Book History – Volume 16. Baltimore, Maryland: The Johns Hopkins University Press. Hallewell, L. (2005) O livro no Brasil: sua História. São Paulo: Edusp. Kischinevsky, M. (2009) Cultura da portabilidade – Novos usos do rádio e sociabilidades em mídia sonora. Observatorio (OBS*), v. 3, n. 1, 2009. Disponível em: http://obs.obercom. pt/index.php/obs/article/view/271 Acesso em: 12 jan Pereira, V. (2006) Reflexões sobre as materialidades dos meios: embodiment, afetividade e sensorialidade nas dinâmicas de comunicação das novas mídias. Revista Fronteiras, v. 8, n.2. Regis, Fátima et al. (Orgs.). (2012) Tecnologias de Comunicação e Cognição. Porto Alegre: Sulina. 2012. Rubery, M. (2011) Audiobooks, Literature, and Sound Studies. Taylor & Francis. Sodré, M (2002) Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis: Vozes. Sterne, J. (2003) The audible past: Cultural origins of sound reproduction. Durham: Duke University Press. Sterne, J (2006) The mp3 as cultural artifact. New media & society, v. 8, n. 5, p. 825-842. Zumthor, Paul. (2007) Performance, Recepção, Leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7386 As coleções francesas de livros de bolso da década de 1960: sua recepção nas revistas Mercure de France e Les Temps Modernes The French paperback collections of the 1960s: their reception in the Mercure de France and Les Temps Modernes journals

Wi l l i a n E d uar d o R i g h i n i d e S o u z a 1

Resumo: Pretende-se apresentar um recorte das discussões que ocorreram entre intelectuais franceses na década de 1960 sobre o impacto cultural e social do livro de bolso, sobretudo após o lançamento de coleções voltadas para as huma- nidades. Desse modo, consultamos o número 1213 da revista Mercure de France (1964) e os números 227 e 228 da revista Les Temps Modernes (1965), pois ambas abriram espaço para opiniões divergentes sobre a possível democratização do livro realizada pelo formato de bolso. Conclui-se que os argumentos predomi- nantes contra este tipo de livro em 1964/65 perderam força e que um mercado promissor e independente de coleções economicamente acessíveis foi constituído. Palavras-Chave:Livro de bolso. França. Mercure de France. Le Temps Modernes. Democratização

Abstract: This article presents part of the discussions between French intellectuals in the 1960s on the cultural and social impact of the paperback, especially after the release of humanities collections. Thus, we consulted the number 1213 of Mercure de France journal (1964) and the numbers 227 and 228 of Les Temps Modernes journal (1965), which made room for differing opinions on the possible democratization of the book held by the paperback format. We conclude that the predominant arguments against this type of book in 1964/65 lost strength and a promising and independent market of affordable collections was built. Keywords: Paperback. France. Mercure de France. Le Temps Modernes. Democratization

INTRODUÇÃO S ANOS seguintes à II Guerra Mundial marcaram a consolidação do que poste- riormente ficou conhecido como a Revolução da brochura: o surgimento de diversas Ocoleções de bolso ou em brochura que tornou o livro mais acessível devido ao seu baixo preço, diversificação dos locais de venda e intervenções gráfico-editoriais que visavam um público mais amplo. As principais coleções, aquelas que alcançaram milhares de exemplares vendidos, se concentravam na Inglaterra e nos Estados Unidos, como a Penguin e a Pocket Books. Contudo, outros países europeus com bons índices de escolaridade e consumo de livros passaram por um momento semelhante. A França, que

1. Doutorando em Ciência da Informação, Universidade de São Paulo, [email protected]

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7387 As coleções francesas de livros de bolso da década de 1960: sua recepção nas revistas Mercure de France e Les Temps Modernes Willian Eduardo Righini de Souza desde o século XIX contava com várias coleções econômicas e de tamanho reduzido, foi um desses locais. Oficialmente, a primeira coleção francesa vista como eminentemente de bolso foi a Le Livre de Poche, lançada em 1953 e pertencente à Librairie Générale Française. Segundo Nigay (1967), com o sucesso de romances no formato poche, as edições se diversificaram e títulos acadêmicos começaram a surgir a partir da década de 1960. Assim, simultaneamente às obras de literatura destinadas a um público mais amplo, foram produzidas edições de bolso visando leitores universitários, incluindo obras de maior complexidade que a coleção Que sais-je?, criada em 1941 pela Presses Universitaires de France para publicar obras em formato reduzido e de caráter introdutório sobre os mais diversos assuntos para estudantes. Entre os anos 1950-1960, coleções de bolso do país já divulgavam seus catálogos como contendo tanto clássicos da literatura como das humanidades. Porém, de acordo com Legendre (2010), esses livros de não ficção eram mais manuais práticos e de conselhos do que acadêmicos. Os títulos abrangiam técnicas de jardinagem, receitas culinárias, cuidados com os animais, entre outros. Apenas com o lançamento das coleções Idées, pela Gallimard, e Petite Bibliothèque Payot, pela Payot, ambas em 1962, que obras real- mente universitárias passariam a circular em edições de formato reduzido e a preços módicos. No mesmo caminho, em 1970, a coleção Points, editada pela Le Seuil, também focou esse nicho e contribuiu para que autores como Sartre, Marcuse, Freud e Camus ficassem à disposição de leitores que não queriam ou não podiam ter acesso às edições mais luxuosas (LEGENDRE, 2010). Em seu anúncio de lançamento, a coleção Idées afirmava que iria oferecer “os grandes textos do pensamento contemporâneo em livro de bolso”2, sendo os quatro primeiros títulos: Le mythe de Sisyphe, de Albert Camus; Réflexions sur la question juive, de Jean-Paul Sartre; Trois essais sur la théorie de la sexualité, de Sigmund Freud e La nature dans la physi- que contemporaine, de Werner Heisenberg. Já a Petite Bibliothèque Payot anunciava que publicaria “a biblioteca do homem moderno em volumes de pequeno formato”3 com seus lançamentos: Les grands penseurs de l’Inde, de Albert Schweitzer; La pratique du yoga ancien et moderne, de Ernest E. Wood; Les rêves et leur interprétation, de Ernest Aeppli; Placements et spéculations en bourse, de Lawrence Lee Bazley Angas; Histoire de la Grèce ancienne, de Jean Hatzfeld e Introduction à la psychanalyse, de Sigmund Freud4. O novo período se sedimentou com o início, em 1963, da publicação do Catalogue des livres au format de poche, da Cercle de la Librairie, listando cerca de 50 coleções. A partir desse momento, coleções como Le Livre de Poche e J’ai Lu, que ofereciam livros para as grandes massas, passaram a dividir o espaço com coleções para públicos mais restritos, como universitários. Consequentemente, a definição de livro de bolso como reedição de best-seller em pequeno formato mostrou os seus limites. A variedade de conteúdo também tornou-se maior, apesar de algumas características formais terem sido

2. “les grands textes de la pensée contemporaine en livre de poche”. 3. “la bibliothèque de l’homme moderne en volumes petit format”. 4. Verifica-se que apesar das humanidades prevalecerem, o que permanece até os dias atuais, com livros de história, ensaios, filosofia, psicanálise, entre outros, a Petite Bibliothèque Payot abriu exceções em seus primeiros lançamentos e incluiu um título sobre yoga e outro sobre economia (especulação em bolsa), ambos com conselhos práticos.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7388 As coleções francesas de livros de bolso da década de 1960: sua recepção nas revistas Mercure de France e Les Temps Modernes Willian Eduardo Righini de Souza mantidas mais ou menos homogêneas, como tamanho, preço e tipo de encadernação5. Com uma maior diversidade de propostas editoriais e de conteúdos, cobrindo da literatura clássica à contemporânea, de obra de referência a material de ensino, as cole- ções de livro de bolso se consolidaram como um setor autônomo do mercado editorial. Para Olivero (2010a, p. 21), é esta configuração que diferencia a conjuntura do século XX em relação ao anterior: “O que muda entre os séculos XIX e XX é que no século XX a coleção de bolso ou “les poches”, como nós os chamamos, tornou-se um setor editorial independente”6.

LIVROS PARA TODOS? Para Bernard Pingaud (1965 apud MERCER, 2011, p. 617), o lançamento de coleções universitárias a partir de 1962 fortaleceu a noção de que o livro de bolso poderia, em tese, atender tanto a demanda por entretenimento entre as classes mais baixas, não necessariamente pouco instruídas, como por conhecimento científico nas universidades, surpreendendo aqueles que não acreditavam na possibilidade de dessacralizar o livro e, ao mesmo tempo, manter a sua qualidade literária e/ou acadêmica. Porém, logo o livro de bolso, cada vez mais visando o público universitário e pesqui- sadores, começou a se afastar gradativamente do ideal de oferecer conteúdos acessíveis às camadas mais populares da sociedade (NIGAY, 1967). Nesse sentido, a concepção de que o livro em formato e preço reduzidos seria uma forma de democratização da leitura e do livro passou a ser questionada.

Atinge-se um domínio no qual o livro de bolso não visa o maior número de leitores, mas se volta para o público universitário e para os intelectuais, embora O mito de Sísifo, por exemplo, tenha ultrapassado 100.000 exemplares. O estudante encontra daqui em diante na formula “bolso” os textos do seu programa, as obras que perfazem sua cultura geral, manuais como A antologia dos prefácios dos romances do século XIX ou os Manifestos do Surrealismo. Les Presses Universitaires de France têm coleções especializadas, como a «Psicologia» ou a «Sociologia» (NIGAY, 1967, tradução nossa)7.

De acordo com Richaudeau (1978) e Johannot (1978), por meio de dados do mercado editorial francês, o público do livro de bolso já era leitor antes da sua emergência e a visão de que o barateamento e edição do livro permitiram a formação de novos leitores também estaria equivocada. O argumento desses pesquisadores era que antes de causa, o livro de bolso foi uma consequência do aumento dos níveis de alfabetização, escolari- zação, urbanização, desenvolvimento de tecnologias e melhoria das condições de vida.

5. Segundo Olivero (2010b, p. 82), entre os anos 1960-1970, ainda não era difícil definir um exemplar como de bolso, pois a maioria era produzida em brochura, com uma dimensão próxima a 11 x 18 cm e vendida entre 20 e 50 francos. 6. “Ce qui change en revanche entre le XIXe et le XXe siècle, c‘est qu’au XXe siècle la collection de poche, ou «les poches» comme nous les appelons, sont devenus un secteur éditorial à part entière”. 7. On touche là un domaine où le livre de poche ne vise pas le plus grand nombre de lecteurs, mais s’adresse au public universitaire et aux intellectuels, bien que Le Mythe de Sisyphe, par exemple, ait dépassé les 100 000 exemplaires. L’étudiant trouve désormais dans la formule « poche » les textes à son programme, des ouvrages qui parfont sa culture générale, des manuels comme l’Anthologie des préfaces de romans du XIXe siècle ou les Manifestes du Surréalisme. Les Presses Universitaires de France ont des collections spécialisées, comme le «Psychologue » ou le « Sociologue».

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Portanto, se eram vendidas grandes quantidades de livros a baixo preço era porque o número de leitores como um todo cresceu e não que os novos formatos provocaram uma “revolução”. A “revolução”, neste caso, se resumiria às transformações na edição e promoção do livro, originando novos conceitos na formulação das capas, estimulando a diversificação dos pontos de venda, promovendo títulos contemporâneos em nichos de leitores, etc. Também para Legendre (2010), entre os anos 50-70, o livro de bolso passou por uma transformação na França, deixando de privilegiar a reedição de clássicos de ampla acei- tação pelas massas para visar o público universitário. As coleções que surgiram nesse período demonstrariam que a ideia do livro de bolso como instrumento de democratiza- ção da literatura e de aproximação das classes populares com o conhecimento legitimado seria limitada. Na concepção de Johannot (1978, p. 95), logo nos seus primeiros anos o livro de bolso francês se afastou do modelo americano de vulgarização da literatura e investiu tanto na qualidade do conteúdo como da edição das obras, o que levou, por consequência, a um maior preço de venda e a uma menor tiragem. Na tentativa de manter os livros a preços acessíveis e ao mesmo tempo aumentar a receita, grande parte das editoras começou a publicar obras em volumes, dependendo do número de páginas. Por volta de 200 a 400 páginas, somente um volume. De 400 a 600, dois volumes. Em torno de 600 a 700, três volumes e assim sucessivamente. Se, em 1963, 70% dos títulos de literatura foram publicados em um único volume, em 1976 esse número já tinha caído para 54% (JOHANNOT, 1978, p. 98-100). Outra característica que contribuiu para o lucro das editoras foi o crescimento do número de universitários. Se, em 1959, o país contava com pouco mais de duzentos mil estudantes nas universidades públicas, em 1975 já havia mais de oitocentos mil. Soma- do a isso o aumento no poder de compra da população entre as décadas de 1960-1970, o livro de bolso poderia crescer mesmo sem favorecer temas populares (JOHANNOT, 1978, p. 100-101).

[...] no que se refere aos consumidores de livros de bolso, todos os estudos e pesquisas sobre a questão, não somente na França, concordam: contrariamente ao que foi previsto no lan- çamento da Le Livre de Poche, os livros-pequenos-não-caros praticamente não morderam uma nova clientela social; sua clientela é formada nas mesmas categorias sociais do livro tradicional. Nós vimos que a evolução demográfica e o aumento bastante importante do número de estudantes secundários e universitários aumentou expressivamente o leque de novos leitores (JOHANNOT, 1978, p. 126, tradução nossa)8.

Compilando dados da metade da década de 1960, Mercer (2011, p. 617-618) observou que 34% dos livros de bolso vendidos na França eram para universitários. Na Itália, jovens constituíam 30% desse setor e, na Alemanha Ocidental, 35% dos leitores de livros de bolso tinham menos de vinte e cinco anos, sendo a metade formada por universitários,

8. [...] en ce qui concerne les consommateurs du poche, toutes les études et enquêtes sur la question concordent, et pas seulement en France : contrairement à ce qui avait été prévu au lancement du Livre de Poche, les petits-livres-pas-chers n’ont pratiquement pas mordu sur une nouvelle clientèle sociale, et leur clientèle se recrute dans les mêmes catégories sociales que celle du livre tradicionnel. Nous avons vu que l’évolution démographique et l’augmentation très importante du nombre des lycéens et des étudiants ont beaucoup élargi l’éventail des jeunes lecteurs.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7390 As coleções francesas de livros de bolso da década de 1960: sua recepção nas revistas Mercure de France e Les Temps Modernes Willian Eduardo Righini de Souza estudantes, aprendizes e profissionais liberais. A participação de trabalhadores, agri- cultores e as classes mais baixas nesse universo sempre foi pequena. Na Alemanha Ocidental, apenas 3% do público desses livros eram trabalhadores (MERCER, 2011, p. 624). Na França, 58% da população com mais de vinte anos não tinham o costume de ler livros (JOHANNOT, 1978, p. 125). Se considerarmos que ao longo das décadas de 1960 e 1970 novas coleções surgiram e o livro de bolso se aproximou ainda mais dos universi- tários, em número ascendente, é provável que esse vínculo tenha crescido ainda mais. A partir de uma pesquisa realizada pelo Cercle de la Libraire em 1974, Johannot (1978, p. 126) resume o perfil do consumidor9 e não consumidor de livros na França. Entre os consumidores, a maioria era mulher, tinha ensino superior, se concentrava em cargos superiores, de nível médio, era estudante ou militar, possuía média de idade de trinta e quatro anos, vivia na cidade, com destaque para Paris. Entre os não consumidores, a maioria era formada por agricultores, habitantes do meio rural, idosos, sem diploma universitário e possuidores de uma renda mensal inferior a 2.000 francos. Apesar de ser o quadro geral do consumo de livros no país, a conclusão das pes- quisas realizadas foi que o livro de bolso não modificou esse perfil. Se inicialmente observamos previsões de que livros de formato e preço reduzidos democratizariam a obra literária, o que se viu foi apenas um maior consumo de livros por universitários, que, em maior número e renda, podiam adquirir edições econômicas. Não ocorreu uma “revolução” nos estratos que até então se mostravam desinteressados em consumir livros. Mesmo com algumas edições tendo conseguido vender milhares de cópias, tornando-se best-sellers, seria um exagero dizer que o livro de bolso, por si só, transformou milhões de não-leitores em leitores. O próprio livro de bolso, em sua materialidade, não era convidativo à leitura. Mesmo com as melhorias realizadas, como as capas coloridas que buscavam atrair o público e facilitar o seu reconhecimento, a necessidade de aproveitar ao máximo a mancha tipográfica, utilizar um tipo pequeno, um papel barato, retirar as orelhas, entre outras iniciativas que propunham diminuir o preço final da obra, o livro de bolso continuou e continua, em muitos casos, de leitura mais desagradável que as edições que podem abusar de comentários, anexos, fotografias coloridas, etc. Definitivamente, algumas características do livro de bolso e/ou brochura têm potencial para afastar ainda mais os não-leitores do mundo da leitura e não o contrário.

MERCURE DE FRANCE E LES TEMPS MODERNES Se, com o passar dos anos, concluiu-se que o livro de bolso não prejudicou o mercado de livros em grande formato nem que sua dessacralização diminuiu a importância e representação positiva do livro para a sociedade; pelo contrário, trouxe alguns benefí- cios, como facilitar a aquisição de livros por universitários, o lançamento de coleções de bolso de humanidades na década de 1960 na França causou grande polêmica ao superar o antagonismo entre livros populares e de baixo preço destinados às massas e livros mais caros e resistentes destinados aos alunos das universidades.

9. Foi considerado consumidor de livros aquele que adquiriu pelo menos um exemplar nos últimos cinco anos antes da pesquisa (JOHANNOT, 1978, p. 125).

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Os principais argumentos, contra e a favor a essas coleções, foram sintetizados em três volumes de duas das principais revistas francesas do período, a centenária e premiada Mercure de France e a Les Temps Modernes, criada em 1945 por Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. De modo abrangente, os artigos publicados indicavam a recepção heterogênea dessas iniciativas entre o meio acadêmico e erudito. Em destaque nas livrarias, se expandindo e começando a publicar títulos não res- tritos a best-sellers e clássicos ficcionais, não era mais possível ignorar o protagonismo das coleções de bolso no mercado editorial francês. Nessa conjuntura, o número 1213 da Mercure de France, de novembro de 1964, e os números 227 e 228 da Les Temps Modernes, de maio e abril de 1965, abriram espaço para intelectuais e profissionais do setor se expressarem sobre o fenômeno. Além das discussões em si, o interesse das revistas pelo o debate e a repercussão obtida revelavam como o livro de bolso era uma das principais questões do momento. O primeiro a expor seu posicionamento foi Hubert Damisch, filósofo e professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, em um artigo na Mercure de France criticando o livro de bolso. Sua análise baseou-se nos livros da coleção Le Livre de Poche, que, segundo o autor, recorria a técnicas e procedimentos da indústria dos meios de comunicação de massa para produzir e vender os livros “mais tradicionais” da alta cultura. Seu ataque era contra o que ele entendia ser uma transformação do valor cultural do livro. A Le Livre de Poche estaria oferecendo livros como um produto a ser consumido igual a qualquer outro. Se antes o leitor ia ao encontro do livro, pois necessitava/gostaria de acessar o seu conteúdo, as coleções de bolso, sob a lógica de “um livro exposto é um livro vendido10”, faziam o percurso oposto, de sair em busca do leitor potencial para conquistá-lo com sua publicidade e atrativos, o que incluía a capa colorida e o preço reduzido (DAMISCH, 1964, p. 485). Se o livro tradicional seria produzido para privilegiar o seu conteúdo e ser lido, o livro de bolso, para Damisch, seria pensado para destacar a sua exterioridade e, con- sequentemente, ser visto. Os principais objetivos residiriam em conseguir um lugar de destaque nas vitrines das livrarias e elaborar uma publicidade que atraísse uma grande quantidade de consumidores, enquanto que para as editoras de obras em grande formato a preocupação seria o conteúdo, imaterial, desvinculado das ações mais corriqueiras e urgentes do dia-a-dia, inacessível para significativa parcela da população (DAMISCH, 1964, p. 485). Recorrendo aos aspectos materiais em um dos seus exemplos, Damisch afirmava que a encadernação dos livros em grande formato teria a função de proteger a obra, mais especificamente o “texto”, sem motivos para recorrer a ilustrações. Já a encadernação do livro de bolso seria antes um espaço para ilustrar o seu conteúdo, com o propósito de divulgá-lo, mesmo que sua fragilidade não garantisse uma boa proteção do miolo. Prosseguindo com diversas outras comparações, o autor buscou mostrar que o livro de bolso era um novo tipo de impresso, que contribuía para novas percepções sobre o valor social e função do livro (DAMISCH, 1964, p. 485).

10. “un livre exposé est un livre vendu”.

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Damisch ainda criticou os discursos que defendiam que o livro de bolso democra- tizava a cultura. Em primeiro lugar, sublinhou que a compra de um livro não garante a sua leitura. Com preços atrativos e forte campanha publicitária, sua hipótese era de que muitas obras não eram lidas, principalmente as com textos mais complexos, tendo sido compradas por impulso e sem uma maior reflexão. Porém, o seu argumento central, que perpassa todo o artigo, era que o livro de bolso cria a ilusão de que é possível comprar o conhecimento, enquanto o seu baixo preço permite apenas o acesso ao exemplar, ao objeto livro, e não necessariamente ao seu conteúdo, que precisa ser decodificado e depois apropriado. Devido a grande repercussão do artigo, a revista Les Temps Modernes, nos meses de abril e maio do ano seguinte, elaborou dois dossiês para ampliar a discussão. Os principais contrapontos à tese de Damisch foram redigidos pelo escritor Bernard Pin- gaud, embora a revista tenha divulgado diferentes pontos de vista, inclusive do próprio Damisch, que respondeu a Pingaud na edição de maio de 1964. Segundo Pingaud (1965a, p. 1730), intelectuais ficaram indiferentes ao livro de bolso em seus primeiros anos por que ele se limitava à reimpressão de ficção para as massas, que já havia percorrido o seu trajeto comercial em edição em grande formato. Porém, com o início da publicação de autores como Camus, Sartre e Malraux, além de outros títulos pertencentes às Ciências Humanas, alguns deles inéditos, a rígida fronteira entre o mercado de livros de bolso e o de grande formato começou a desmoronar, inquietando aqueles que prezavam pela sacralidade do livro, seu caráter excepcional. O lançamento de coleções como a Idées em 1962, voltadas para as humanidades, refor- çou essa porosidade entre os setores e consagrou a obra Le mythe de Sisyphe, de Camus, como um exemplo da complexidade de alguns livros disponibilizados11. A partir de então, o entendimento de que qualquer texto poderia ser publicado em formato de bolso, indiferentemente da área ou da dificuldade para compreendê-lo, levou intelectuais a se questionarem sobre qual seria o futuro do livro, se ele perderia o seu status social, se obras sem o potencial de se tornarem best-sellers deixariam de ser editadas, se mesmo as classes mais altas iriam preferir o livro de bolso em detrimento do tradicional, se o livro de bolso representava um processo de democratização cultural, entre diversas outras questões que movimentaram o meio acadêmico e editorial dos anos 60. Ao utilizar os resultados de uma pesquisa sobre o leitor do livro de bolso na França no período (Lettres Françaises), Pingaud (1965b, p. 1806-1807) tentou mostrar que as suas motivações e preferências eram similares ao do leitor geral. Entre os menores de 20 anos, 38,6% utilizavam o livro de bolso como instrumento de trabalho/estudo (24% não e 47,4% se abstiveram), e a grande maioria dos estudantes, 86,5%, possuía esses títulos em sua biblioteca particular (9,6% não e 3,9% se abstiveram). Para a sua compra, os principais critérios eram, pela ordem: nome do autor (88,3 %), título (53,5%), curiosidade/prazer pela descoberta (45,7%), conselho de amigos (45%) e somente depois a confiança na coleção (28%). Contudo, para 50% dos livreiros, a venda de livros de bolso nas livrarias prejudicou a venda de edições em formato tradicional, contra 25% que acreditavam que

11. Segundo François Erval (1965, p. 1990-1991), Le Mythe de Sisyphe, de Albert Camus, vendeu quase 100.000 exemplares durante os primeiros 20 anos de sua publicação na França em grande formato. Já em versão de bolso, foram vendidos 200.000 exemplares em apenas três anos.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais 7393 As coleções francesas de livros de bolso da década de 1960: sua recepção nas revistas Mercure de France e Les Temps Modernes Willian Eduardo Righini de Souza ela favoreceu e 25% que não identificavam qualquer mudança. Os livreiros também pensavam que os critérios utilizados pelos leitores no momento da compra continuavam praticamente os mesmos: autor para 23,62%, título para 19,58%, conselho de amigos para 17,35%, conselho de livreiros para 14,95% e, novamente em último lugar, junto com a adaptação cinematográfica ou televisiva, a coleção a qual o livro pertencia, para 12,25%. Demais pesquisas indicaram que o comprador do livro de bolso era, em sua maioria, jovem e estudante. François Erval (1965, p. 1991), criador da coleção Idées, sublinhou que aqueles livros de bolso considerados difíceis eram vendidos principalmente em livrarias próximas de universidades e escolas. Como esses estudantes tendiam a ter uma renda limitada, livros de bolso se apresentavam como uma oportunidade para formar uma biblioteca sem comprometer o orçamento. Esse quadro, que na década de 70 seria con- firmado por Johannot (1978)12, acabou se tornando mais um argumento para a crítica de Damisch. Em resposta a Pingaud na edição de maio de 1965 do Les Temps Modernes, ele atacou o argumento de que o livro de bolso possibilitava uma democratização cultural lembrando que ele dificilmente alcançava operários e camponeses, mas aqueles que já eram leitores e que tinham acesso, via bibliotecas, às obras em grande formato. Assim sendo, aqueles que se expressavam a favor do livro de bolso recorriam a pesquisas de opinião e levantamentos estatísticos para mostrar que o formato não trans- formou drasticamente a relação do público com o livro, como seus opositores sugeriam. Também indicavam que as mudanças que ocorreram foram positivas para o acesso de universitários à obra impressa. Em contrapartida, os críticos do livro de bolso estavam mais preocupados com o valor simbólico do livro. Em uma visão elitista, esses últimos temiam que a possibilidade de um público pouco instruído e de baixa renda frequentar livrarias e adquirir livros, inclusive os acadêmicos, anulasse a distinção social que o livro e seu universo garantiam. Uma transmissão de 1964 do Office de Radiodiffusion Télévision Française13, por- tanto do mesmo ano de publicação do exemplar da Mercure de France, na qual tran- seuntes eram entrevistados sobre o que achavam da ascensão do livro de bolso, pode ser compreendida como uma síntese, expressa na voz de um cidadão comum, das bases da crítica de Damisch à “vulgarização” do livro e da leitura. Na opinião de um jovem estudante de medicina, vestido como um típico representante das classes mais altas14, “é necessária uma aristocracia de leitores”15. Para ele, em tom de desprezo, o livro de bolso,

leva à leitura um monte de gente que não tinha necessidade de ler, que nunca tinha sentido necessidade de ler. Antes eles liam Nous deux ou La Vie en fleurs e, de uma hora para outra, eles apareceram com Sartre nas mãos, o que as deu uma espécie de pretensão intelectual que eles não tinham. Antes as pessoas eram humildes diante a literatura enquanto que agora elas se permitem a olhar por cima. Atualmente as pessoas adquiriram o direito de menosprezar (“Le Livre de Poche”, 1964, tradução nossa) 16.

12. Bessard-Banquy (1998, p. 178) também sublinha que, em 1970, 56% dos livros de bolso eram comprados por jovens entre 15 e 19 anos e 71% por pessoas com menos de 34 anos. 13. Agência nacional de fornecimento de serviço público de rádio e televisão entre os anos 1960-70. 14. Camisa social, gravata e sobretudo. 15. “il faut une aristocratie des lecteurs”. 16. “fait lire un tas de gens qui n’avaient pas besoin de lire, finalement. Qui n’avaient jamais ressenti le

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Seja qual for o alcance do livro de bolso, a crítica de Damisch foi suplantada ao longo das décadas seguintes pelo posicionamento de intelectuais como Bernard Pin- gaud, Jean-Paul Sartre e François Erval, que não o consideravam uma ameaça. Para esses últimos, a dessacralização do livro era positiva para que o interesse migrasse do livro como relíquia para o livro enquanto suporte de um conteúdo que deveria ser dis- ponibilizado, ou seja, uma concepção diametralmente oposta a de Damisch. De acordo com Pingaud (1965b, p. 1817), era necessário evitar consagrar o livro como um objeto de culto, mas valorizá-lo em seu uso cotidiano, como meio e não fim, pois, quanto mais ele circulasse, fosse manuseado, emprestado, levado para todos os cantos, mais a leitura deixaria de ser um privilégio para se transformar em uma troca, “o caminho mais curto que liga um homem ao outro17”.

O leitor que entra em uma livraria e compra por 20 francos um romance de Dostoïevski provaria por esta atitude e este investimento que ele faz parte do mundo da cultura. Aquele que compra o mesmo romance em uma farmácia ou bazar de prefeitura por apenas 5 francos não seria mais, segundo certos teóricos, que um vulgar consumidor. Eu confesso que esta divisão me deixa perplexo. Ingenuamente, eu tinha imaginado que duas pessoas diferen- tes tinham comprado em duas edições diferentes, por um preço diferente, o mesmo livro (ERVAL, 1965, p. 1990, tradução nossa) 18.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Em 2013, a Le Livre de Poche comemorou 60 anos de existência. Em sua homenagem, o Salon du Livre de Paris, realizado anualmente, promoveu uma exposição sobre a história gráfica da coleção. Outras exposições comemorativas foram feitas no mesmo ano em festivais e espaços culturais, como no festival Saint-Maur en Poche, em Saint-Maur-des- -Fossés, região parisiense, e no Espace Littéraire da grife de luxo Luis Vuitton, em Paris. Os argumentos contra o livro de bolso em 1964/65 deixaram de ser utilizados, podendo até causar constrangimento nos dias atuais. Entretanto, sua relevância histórica perma- nece, ao revelar as inquietações provocadas tanto pelo surgimento quanto pela somente atualização / transformação de um meio de comunicação. Com o distanciamento temporal que faltou aos intelectuais que escreveram para a Mercure de France e Les Temps Modernes, hoje podemos melhor observar o impacto do livro de bolso na cultura francesa. Segundo Olivero (2007, p. 206-207), em 2006, a França possuía mais de 800 coleções de livros de bolso. Entre as obras literárias, o livro de bolso respondia por mais da metade dos exemplares vendidos. Em 2012, um em besoin de lire. Avant ils lisaient Nous deux ou La Vie en fleurs, et d’un seul coup ils se sont retrouvés avec Sartre dans les mains, ce qui leur a donné une espèce de prétention intellectuelle qu’ils n’avaient pas. C’est-à-dire qu’avant les gens étaient humbles devant la littérature, alors que maintenant, ils se permettent de la prendre de haut. Les gens ont acquis le droit de mépris maintenant”. 17. “les plus court chemin qui relie un homme à un autre”. 18. “Le lecteur qui entre dans une librairie et achète pour 20 francs un roman de Dostoïevski prouverait par cette démarche et cette dépense qu’il fait partie du monde de la culture. Celui qui achète le même roman au Drugstore ou au Bazar de l’Hôtel-de-Ville pour 5 francs seulement, ne serait plus, selon certaines théories, qu’un vulgaire consommateur. J’avoue que cette distinction me laisse rêveur. Naïvement, j’avais imaginé que deux personnes différentes avaient acheté dans deux éditions différentes, pour un prix différent, le même livre”.

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