UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM LETRAS

TALES DOS SANTOS

EMERGINDO DAS TREVAS: ANÁLISE DO DISCURSO METAL SINFÔNICO EM

São Paulo 2017 TALES DOS SANTOS

EMERGINDO DAS TREVAS: ANÁLISE DO DISCURSO METAL SINFÔNICO EM WITHIN TEMPTATION

Dissertação de mestrado apresentada à banca examinadora da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientadora: Profa. Dra. Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos.

São Paulo 2017

S237e Santos, Tales dos. Emergindo das trevas: análise do discurso metal sinfônico em Within Temptation / Tales dos Santos – São Paulo, 2017. 112 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2017. Orientador: Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos Referência bibliográfica: p. 95-98.

1. Heavy metal. 2. Metal sinfônico. 3. Análise do discurso. 4. Letras de música. Título.

CDD 401.41

TALES DOS SANTOS

EMERGINDO DAS TREVAS: ANÁLISE DO DISCURSO METAL SINFÔNICO EM WITHIN TEMPTATION

Dissertação aprovada em: ____/____/______

BANCA EXAMINADORA:

Profa. Dra. Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos – Orientadora

Universidade Presbiteriana Mackenzie - UPM

Profa. Dra. Diana Luz Pessoa de Barros – Avaliadora interna

Universidade Presbiteriana Mackenzie - UPM

Profa. Dra. Maria Mercedes Saraiva Hackerott – Avaliadora externa

Universidade Paulista - UNIP

Dedicatória

Aos meus amigos Lucas Seiji Watanabe, Pedro Henrique Camargo e Pietro Beires Marzani Silva que compartilham do mesmo sentimento sobre o mundo da música. Obrigado pelas aulas e dicas de teoria musical. Vocês são demais!

Agradecimentos

Primeiramente, agradeço a Deus por me dar saúde, fé, paz de espírito e sabedoria para conseguir cursar o mestrado;

Às professoras Diana Luz Pessoa de Barros e Maria Mercedes Saraiva Hackerott pelas valiosas contribuições na banca de qualificação;

À minha querida e paciente orientadora professora doutora Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos por ter me apoiado em todas as etapas do mestrado;

À minha família que me incentivou e teve paciência com a minha ausência;

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e ao Instituto Presbiteriano Mackenzie (IPM) pela bolsa de estudos que possibilitou meu aprofundamento na pesquisa com serenidade e qualidade;

Às minhas grandes parceiras e amigas nesta jornada: Mariana Menezes, Júlia Rinaldi e Fernanda Ferreira.

A todos os professores do curso lato sensu em Língua Portuguesa e Literatura da UPM;

E, por fim, agradeço a todos os professores do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

“Estando sozinho, porém, começara a conceber pensamentos próprios, diferentes daqueles de seus irmãos. Alguns desses pensamentos ele agora entrelaçava em sua música, e logo a dissonância surgiu ao seu redor. Muitos dos que cantavam próximos perderam o ânimo, seu pensamento foi perturbado e sua música hesitou; mas alguns começaram a afinar sua música à de Melkor, em vez de manter a fidelidade ao pensamento que haviam tido no início. Espalhou-se, então, cada vez mais a dissonância de Melkor, e as melodias que haviam sido ouvidas antes soçobraram num mar de sons turbulentos. Ilúvatar, entretanto, escutava sentado até lhe parecer que em volta de seu trono bramia uma tempestade violenta, como a de águas escuras que guerreiam entre si numa fúria incessante que não queria ser aplacada”. (TOLKIEN, J.R.R. O Silmarillion. 2011. Pág. 4-5). RESUMO

A presente dissertação está alicerçada na área de concentração dos estudos discursivos e textuais e inserida na linha de pesquisa de Procedimentos de Constituição dos Sentidos do Discurso e do Texto do programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). A pesquisa tem por objetivo investigar quais são os elementos discursivos que compõem o metal sinfônico e analisar o percurso que o estilo pertencente ao metal pesado percorre ao movimentar seus interdiscursos. Durante a trajetória do Heavy Metal, a construção da associação de músicas e de bandas com comportamentos violentos, anárquicos e satânicos era constante e sujeitava o estilo a ficar no lado mais sombrio do cenário musical. No entanto, os fãs produziam e divulgavam cada vez mais letras de músicas pesadas permitindo, dessa forma, alcançar o sucesso comercial e financeiro do gênero. Trabalhamos, assim, com a hipótese de que no final dos anos 1990, um movimento dentro do metal pesado chamado metal sinfônico surge com uma proposta inédita em sua temática: ressignificar a relação de vida e de morte por meio da saída do discurso de hesitação para o discurso de resistência. Trabalhamos com as ideias desenvolvidas por Dominique Maingueneau (2008a; 2008b; 2010; 2013, 2014, 2015) para compreender a relação entre vida e morte. Investigamos as relações entre interdiscurso e formação discursiva, as cenas de enunciação e os enunciados sobreasseverados presentes nas letras das músicas Our solemn hour, Iron e Covered by roses dos respectivos álbuns de estúdio – (2007), (2011) e Hydra (2014) da banda de metal sinfônico Within Temptation. Consideramos ainda somente dois elementos da música que são constitutivos para a compreensão dos discursos: os efeitos de sentido da relação entre agudo e gutural e o efeito orquestral. Os resultados da pesquisa apontam que para o discurso de hesitação se sobressair foi necessário valorizar a temática da morte, enquanto o discurso da resistência se destacou devido à valorização da temática da vida.

Palavras-chave: Heavy Metal. Metal Sinfônico. Análise do discurso. Letras de música.

ABSTRACT

The present dissertation is based on the area of concentration of discursive and textual studies and inserted in the line of research of Procedures of Constitution of the Meanings of the Speech and of the Text of the Post-Graduate Program in Letters of Mackenzie Presbyterian University (UPM). The research aims to investigate which are the discursive elements that compose the and to analyze the path that the heavy metal style goes through when moving its interdiscourses. During the heavy metal trajectory, the construction of the association of songs and bands with violent, anarchic and satanic behaviors was constant and subjected the style to be in the darker side of the musical scene. However, fans were increasingly producing and releasing heavy lyrics so they could achieve the commercial and financial success of the genre. In this way, we work with the hypothesis that in the late 1990s a movement within the heavy metal called the symphonic metal arises with an unprecedented proposal in its theme: to re-signify the relation of life and death through the exit of the discourse of hesitation to The discourse of resistance. We work with the ideas developed by Dominique Maingueneau (2008a, 2008b, 2010, 2013, 2014, 2015) to understand the relationship between life and death. We investigated the relationships between interdiscursive and discursive formation, the enunciation scenes, and the overdubbed statements in the lyrics of Our solemn hour, Iron and Covered by Roses from their respective studio - The Heart of Everything (2007), The Unforgiving (2011) and Hydra (2014) of the metal band Within Temptation. We also consider only two elements of music that are constitutive for the understanding of discourses: the effects of sense of the relation between sharp and guttural and the orchestral effect. The results of the research point out that for the discourse of hesitation to excel, it was necessary to value the theme of death, while the discourse of resistance was highlighted due to the valorization of the theme of life.

Keywords: Heavy Metal. Symphonic metal. Discourse analysis. Lyrics.

Lista de figuras

Figura 01 – Iustitia...... ………………………………………...... 68

Figura 02 – SmartArt: análise do conjunto letra Our solemn hour e capa de álbum The heart of everything (2007) ...... 70

Figura 03 – Plano close de Mother Maiden: reprodução de uma conversação...... 81

Figura 04 – Requadro e timing nos quadrinhos de The Unforgiving...... 84

Figura 05 – SmartArt: análise da letra Iron e do universo The Unforgiving (2011)...... 86

Figura 06 – SmartArt: análise da letra Covered by roses e do universo Hydra (2014)...... 92

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 12

1. EMERGINDO DO ANONIMATO: PONTOS DESTACADOS DA ORIGEM E EVOLUÇÃO DO HEAVY METAL...... 14 1.1. Surgimento do Heavy Metal na Europa e progressão na formação identitária...... 15 1.2. The new wave of British Heavy Metal, Black Metal e o caso PMRC...... 24 1.3. Influência do metal pesado no metal sinfônico...... 36

2. EMERGINDO DA TEXTUALIDADE: FERRAMENTAS DE INVESTIGAÇÃO DE IDEOLOGIAS E IDENTIDADE NO DISCURSO...... 41 2.1. Interdiscurso e formação discursiva...... 42 2.2. Cenas de enunciação e enunciados sobreasseverados...... 48 2.3. Gênero do discurso...... 52

3. EMERGINDO DAS TREVAS: ANÁLISE DO DISCURSO DO GÊNERO METAL SINFÔNICO EM WITHIN TEMPTATION...... 56 3.1. Análise da letra Our solemn hour...... 61 3.2. Análise da letra Iron…………………………………...... 71 3.3. Análise do álbum Covered by roses...... 86

CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 93

REFERÊNCIAS...... 95

ANEXOS...... 99

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INTRODUÇÃO

Dissertar a respeito do Heavy Metal (HM) é uma tarefa árdua. Falar de um de seus desdobramentos é tarefa muito mais difícil pois as últimas cinco décadas viveram uma vasta produção de estilos musicais que circulam até hoje sem saber, de maneira precisa, quem foi o precursor e que rumos podem tomar.

Encontramos apenas uma dissertação de mestrado preocupada em entender o HM como manifestação de cultura de massa e alienação (NAKAMURA, 2009). Encontramos também apenas uma pesquisa que procura verificar a relação de identidade entre os metaleiros, a mídia e o consumo da chamada subcultura heavy metal (DHEIN, 2012) e um artigo relacionado à carnavalização na iconografia do HM. (CONTANI; FIORI, 2014).

Entretanto, não se viu até hoje uma produção científica preocupada em entender como é produzido o discurso das letras das músicas do HM, visto que as perspectivas acima citadas não são suficientes para entender como a atividade discursiva se constitui e opera. Dessa forma, o objetivo da pesquisa é analisar a produção discursiva do metal sinfônico e compreender como o percurso discursivo passa das trevas para a luz, da hesitação para a coragem e como se expressam as relações entre vida e morte presentes em todo o percurso do gênero.

Para tanto, escolhemos as produções das letras de música de três álbuns de estúdio da banda Within Temptation. A escolha da banda tem por justificativa sua maior visibilidade em comparação com outras bandas do metal sinfônico e porque é a responsável pela consolidação e ampliação do termo “metal sinfônico”. Também analisamos, de forma suplementar, alguns recursos não verbais presentes, como a capa de álbum e elementos orquestrais porque a posição ideológica desses recursos ajuda a compor os efeitos de sentido que a letra transmite.

Anterior à análise, fizemos a tradução de três letras de música para a língua portuguesa. O método de tradução considera produzir o texto em língua materna de maneira que se aproxime, o máximo possível, do sentido que as letras tentam transmitir. Os textos traduzidos da língua inglesa para a língua portuguesa serão considerados de forma que o leitor possa entender a essência do que foi escrito em sua dimensão poética.

Organizamos a dissertação em três capítulos. No primeiro capítulo, vamos verificar as origens do Heavy Metal, as influências do metal pesado no metal sinfônico e o histórico biográfico da banda Within Temptation. Sobre as origens do metal pesado observamos que, após a Segunda Guerra Mundial, o cenário para a produção de melodias introspectivas e com P á g i n a | 13

tons disfóricos havia se instalado. E, por intermédio de Christe (2010), compreendemos o período em que “a besta” – o Heavy Metal – nasceu e começou a disseminar sua escuridão, sua revolta e sua musicalidade entre os povos da Europa e dos EUA. O mesmo autor ajuda a explicar as transformações e ramificações do gênero até o século XXI.

Como leitura complementar, Campoy (2010) elucida que os fãs do gênero são consumidores e produtores de música e essa cadeia produtiva tem, de um lado, músicos e outros profissionais que envolvem o produto final e shows e, de outro, fãs que têm como principal função consumir. Porém, como a relação é relativa, é possível verificar, no decorrer da história do Heavy Metal, fãs produzindo suas próprias músicas e até mesmo se transformando em bandas famosas.

O segundo capítulo tem como objetivo reunir ferramentas que contribuam para a interpretação das ideologias e das identidades presentes nos discursos do Metal Sinfônico. As ferramentas, ou melhor, os conceitos teóricos que serão discutidos e aplicados foram extraídos de Maingueneau (2008a; 2008b; 2010; 2013; 2015) são: a relação entre interdiscursividade e formação discursiva, cenas da enunciação, enunciação sobreasseverada e gênero do discurso.

No terceiro e último capítulo, após traçar o percurso histórico do metal pesado e após termos reunido as ferramentas da AD, vamos analisar as letras das músicas Our solemn hour do álbum The heart of everything (2007); Iron do álbum The Unforgiving (2011); e Covered by roses do álbum Hydra (2014) e investigar como o discurso das letras é constituído e qual é o posicionamento de maneira singular e de maneira inter-relacionada, verificando, de modo específico, os traços que dizem respeito à relação vida-morte no discurso. As três letras de música foram escolhidas porque reúnem as características e o posicionamento de cada álbum como um todo. Por fim, as considerações finais seguidas das referências e dos anexos.

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1. EMERGINDO DO ANONIMATO: PONTOS DESTACADOS DA ORIGEM E EVOLUÇÃO DO HEAVY METAL

O presente capítulo trata de dois pontos iniciais na pesquisa, sendo, o primeiro deles, apresentar as origens do Heavy Metal por meio de uma pequena, mas importante, parte de sua evolução, pois há muito em comum entre as bandas atuais e as iniciais. E, o segundo ponto, associar as características do metal pesado no contexto do gênero metal sinfônico.

O discurso originário do Heavy Metal mantém-se vivo nos discursos de muitas bandas. Ainda que tais bandas pertençam a algum desdobramento como o metal sinfônico ou a alguma vertente como o nu metal, todas elas carregam características comportamentais, visuais e discursivas que advém de outros contextos anteriores.

A obra de Ian Christe, Sounds of the beast – The complete headbanging history of Heavy Metal, traduzido no Brasil com o título Heavy Metal: a história completa é plausível para a pesquisa, pois apresenta, de maneira minuciosa, todos os fatos que de algum modo marcaram o comportamento musical ou o avanço do gênero e a obra consegue também permear questões aparentemente fora do mundo da música, mas que tem significação para os metaleiros.

Exemplo de questão fora da música é o caso PMRC que trouxe à tona a revolta de uma sociedade conservadora que interpretou que a música pesada era um fator determinante no comportamento revoltado, satânico e destrutivo dos jovens. Outro acontecimento de grande repercussão foi o lançamento do álbum chamado 7 da banda . Na capa do álbum estava Margareth Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido entre os anos de 1975 e 1990, apunhalada e sangrando. O contexto desse álbum era a inflação beirando os 20% o que trazia uma indignação popular. Logo este álbum foi uma forma de protesto, e o governo interpretou como uma ameaça em potencial e pediu para censurar a caricatura da governante.

Junto com os fatos históricos, vemos ainda um fator marcante para o gênero: a participação constante dos fãs. Campoy (2010) afirma que a cadeia produtiva do metal pesado considera a relação de produção e de consumo de uma maneira relativa. De um lado, músicos e outros profissionais que envolvem o produto final e shows e, de outro, fãs que têm como principal função consumir. Porém, é possível verificar que os fãs, no decorrer da história do Heavy Metal, estavam produzindo suas próprias músicas e, até mesmo, transformando-se em bandas que depois alcançaram a fama. P á g i n a | 15

O Heavy Metal ultrapassa o horizonte de expectativa estável entre o produtor e o consumidor:

O estilo musical não mais se resume a um produto a ser adquirido, uma gravação a ser escutada nas horas de lazer ou nas andanças pela cidade, tornando-se, para além disso, uma atividade que motiva o envolvimento prático dos fãs. Trata-se de uma prática social não profissional [...] dotada de forte relevância identitária para quem a exerce. O fã, por sua vez, não é mais aquele consumidor de música, ávido colecionador de últimos lançamentos e raras gravações. Ele se torna executor da prática heavy metal, compondo músicas, produzindo shows e veiculando gravações [...]. Ele faz do heavy metal uma ação social e um modo de inserção na cidade. (CAMPOY, 2010, p. 22).

O papel ativo dos fãs possibilitou que “a história do heavy metal assim como a da Coca- Cola, [se tornasse] uma história de sucesso comercial”. (Campoy, 2010, p. 21). Sobre a presença significativa dos fãs, é possível verificar a regularidade do comportamento e da interação:

Ele deixa seu cabelo crescer, veste-se de couro negro e sai à procura de outros apreciadores do estilo. Pontos de referências se estabelecem em várias cidades. Lojas de discos, bares e casas de shows onde os apreciadores se encontram para vivenciar o heavy metal. O fã quer experimentar o heavy metal não só como um consumidor. Bandas “de garagem” formadas nesses pontos de encontro, ensaiam suas primeiras notas. Primeiro, aprendendo a tocar as músicas mais conhecidas para, depois, compor suas próprias. Com um repertório pronto, fazem seus shows em locais pequenos, para um público de no máximo quinhentas pessoas, com parcas condições acústicas e precários equipamentos de som. Depois de algumas apresentações e tendo certo domínio de suas composições, as bandas bancam gravações próprias de duas ou três canções que são divulgadas localmente através de uma fita K7 ou CD- demonstração. (CAMPOY, 2010, p. 22)

Campoy ainda alerta que não somente para os aficionados, mas também para os que têm alguma familiaridade com o gênero, o comportamento exagerado nas relações de produção e consumo dos fãs é um fato comum, ou seja, o número de metaleiros que produzem seu próprio material é um fator considerável.

1.1. Surgimento do Heavy Metal na Europa e progressão na formação identitária

Em uma sexta-feira 13 do segundo mês do ano de 1970, temos a primeira manifestação que, futuramente, ganharia, de forma consolidada, o nome de Heavy Metal: essa primeira manifestação é o lançamento do álbum Black Sabbath. A palavra Heavy Metal, traduzida como metal pesado, existia anteriormente à data citada, porém foi ressignificada para o contexto musical. Antes, a ideia de metal pesado se referia aos materiais bélicos altamente sofisticados no sentido de poder de destruição e com novas tecnologias embutidas. P á g i n a | 16

Em seguida, verificamos que o termo reside no contexto dos estudos da Química: “um metal de densidade relativamente alto ou de peso atômico relativamente alto”1. Atualmente podemos verificar que, no dicionário Longman (2010, p. 817), o termo é entendido primeiramente no contexto musical: “um tipo de , com uma batida forte, tocado bem alto em guitarras”2 e, em seguida, no contexto da ciência que originalmente antecede o contexto musical e a ideia inicial não é evidenciada.

Verificamos, deste modo, que os dicionários optam por trabalhar de maneira diferente no que diz respeito ao significante metal pesado. O dicionário de Oxford (2015) se preocupou em estabelecer o significado do termo pela ordem cronológica do surgimento – primeiro o de caráter científico e, em seguida, o musical. O dicionário Longman (2010) optou por registrar primeiro o significado que os falantes mais reconhecem do significante, ou seja, pelo uso do termo, para depois registrar o menos utilizado, que é o científico.

Desde a década de setenta, a construção da ideia de Heavy Metal como gênero musical vem sendo construída. Tomou lugar como primeiro significado linguístico e, após se consolidar, entrou em processo de desdobramento como veremos ainda neste capítulo. A decadência do rock e a insistente ideia de paz que permeava discursos de inúmeros movimentos já não era um atrativo para os jovens. O discurso eufórico não estava sendo efetivo, era incapaz de transformar a realidade, e o estopim para a descrença nas ideias pacifistas foi o assassinato de quatro jovens no show dos Rolling Stones, no Altarmont Raceway, em dezembro de 1969. (CHRISTE, 2010, p. 19).

No ano seguinte aos assassinatos, é lançado o álbum Black Sabbath, o mesmo nome é dado à banda. Ela foi a precursora do gênero metal pesado e, a princípio, alcançou a fama devido à queda do rock, em especial ao declínio da banda The Beatles. De acordo com Christe (2010, p. 13-14), a banda Black Sabbath tem o seguinte contexto:

Profetas criados à margem da sociedade inglesa, eles eram desempregados, socialmente desprezíveis e, ainda, moralmente suspeitos. Seus quatro membros nasceram entre 1948 e 1949 em Birmingham, na Inglaterra, uma pequena e decadente cidade industrial, sobrevivendo à época em que a Europa já não se orgulhava dessa indústria. John Michael Osbourne, o vocalista

1 Traduzido do original: A metal of relatively high density, or of high relative atomic weight. In: OXFORD UNIVERSITY PRESS (). Oxford Dictionaries. Disponível em: . Acesso em: 13 dez. 2015. 2 Traduzido do original: a type of rock music with a strong beat, played very loudly on electric guitars. In: LONGMAN - Dictionary of Contemporary English: For advanced learners. For advanced learners. 5. ed. Essex: Pearson Education Limited, 2010. P á g i n a | 17

conhecido como Ozzy, vinha de uma família de seis filhos e, além de criminoso condenado por roubo, trabalhava esporadicamente em um matadouro [...]. Nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, cercados pelos escombros deixados pelos bombardeios nazistas, eles [Ozzy, Tony Iommi, Terry Butler e Bill Ward] chegavam à puberdade e, nesse mundo que haviam herdado o que mais poderia valer a pena além de tornarem-se aventureiros e desajustados profissionais?

As influências de bandas como Yardbirds, Ten Years After e Cream moldaram o modo de tocar dos jovens do Black Sabbath. Christe (2010) afirma que a sonoridade da banda era inicialmente fúnebre, pesada, com comportamento macabro na letra. É nessa fase de mudança que Ozzy Osbourne e os integrantes de sua banda chegam a um momento de ruptura com os padrões existentes, chegando a um novo conceito de manifestação musical:

Chega, então, o momento de ruptura – a criação espontânea da música “Black Sabbath”, que representaria um começo inteiramente novo para a banda e para o heavy metal por todo o sempre [...]. Recontando a dificuldade do juízo final com característico suspense, o narrador arfava: “What is this, that stands before me? Figure in black which points at me”. 3 Flutuando sobre harmônicos zumbidos, a dimensão aterrorizante da música cresce até o clímax na mesma medida em que o juízo final persegue o relutante protagonista. A história macabra, digna de Edgar Allan Poe, contada por uma revoada de guitarras, bateria e um microfone crepitante. (CHRISTE, 2010, p. 14).

Deste modo, a música que tem o mesmo nome da banda traz consigo um marco para a história do Heavy Metal como um todo. A música deles tornou-se: “a peça central de uma nova sonoridade, um marco auditivo tão mortal”. (CHRISTE, 2010, p. 15). O discurso das músicas é classificado como opressor, frenético, petrificante, ou seja, o sentido disfórico refletido da Segunda Guerra Mundial paira sobre o comportamento rebelde dos jovens. Os adolescentes ouvem relatos de seus pais, avós e pessoas mais velhas sobre a violência e o massacre deixado por bombas e armas e também presenciam tal horror pelos cemitérios cheios e pelos bairros que foram destruídos e ainda não tinham sido reconstruídos.

É por esses relatos e pelos resíduos da guerra que os jovens compartilham do sentimento de esperança esgotada e se apropriam de discursos tristes como forma de se adequar à realidade, tornando os sentimentos negativos em comportamentos que não eram convencionados pela sociedade da época. Dessa forma, o vocalista da banda Black Sabbath, Ozzy Osbourne, traduz esses sentimentos tristes na forma de jogo dos extremos em suas interpretações: “Ozzy abria caminho por entre o peso da música com seus lamentos raivosos. Quanto mais grave a banda tocava, mais aguda era a voz de Ozzy”. (CHRISTE, 2010, p. 15-16).

3 “O que é isso à minha frente? Essa forma negra que aponta para mim” (Tradução nossa). P á g i n a | 18

Além de precursores de enunciados disfóricos e pesados, Ozzy e sua banda chamaram a atenção da sociedade conservadora, pois a relação entre a música heavy metal e o culto satânico estava ficando evidente. Tal associação começou com a ilustração da capa que apresentava:

[...] uma casa de campo inglesa destruída, cercada de arbustos ressecados que encobriam parcialmente a imagem de uma feiticeira já pálida e esverdeada, rememorando Children of the dammned e outros filmes ingleses de terror psicológico e baixo orçamento. As páginas internas do encarte do álbum continham poucos detalhes, além do mórbido poema gótico inscrito em um crucifixo gigante e invertido. (CHRISTE, 2010, p. 17).

Eles foram considerados pretensos satanistas pela bruxaria e pelo misticismo, toda a imagem horripilante era nova, grotesca e desprezível pelos defensores da igreja e da boa moral cristã. O Rock ´n´ Roll, antecessor do Heavy Metal, preocupava-se em apresentar o discurso da esperança em suas letras e melodias. Foi por isso que o rock perdeu sua força e entrou numa constante decadência no final dos anos 1960, e o metal pesado, aos poucos, e com o Black Sabbath, ganhou características sólidas e inéditas e tomou forma diante do cenário musical mundial.

Sobre a decadência do rock, vemos que entre os anos finais de 1960 e meados de 1970, notícias negativas sobre celebridades assolaram o mundo: Paul MacCartney noticiava sua separação dos The Beatles. Figuras importantes da música como Jimi Hendrix e Jim Morrison faleceram, representantes políticos de grande expressão como John Kennedy, Robert Francis Kennedy e Martin Luther King foram assassinados. Enquanto tais perdas aconteciam, a banda Black Sabbath galgava os primeiros lugares em listas de discos mais vendidos. (CHRISTE, 2010). “Mundos” e ideologias estavam descendo o loop de uma montanha russa4 de maneira desenfreada, fazendo com que os fatos histórico-políticos de antes fossem passageiros e pouco denotados. Mas cabe notar que apesar da maneira inédita de cantar e tocar os instrumentos, Black Sabbath também “[buscava] paz e amor, mas não nos moldes de Donovan e Jefferson Airplane, e, sim, na endurecida realidade de campos de batalha e fornos humanos”. (CHRISTE,

4 Metáfora utilizada por Nicolau Sevcenko para descrever as três fases do loop: “a primeira é a da ascensão contínua, metódica e persistente que, na medida em que nos eleva, assegura nossas expectativas mais otimistas, nos enche de orgulho pela proeminência que atingimos e de menoscabo pelos nossos semelhantes, que vão se apequenando na exata proporção em que nos agigantamos [...]. A segunda é a fase que num repente nos precipitamos numa queda vertiginosa, perdendo as referências do espaço, das circunstâncias que nos cercam e até o controle das faculdades conscientes. [Fase de reconsideração de ideais, tecnologias, etc.] [...]. A terceira fase na nossa imagem da montanha-russa é a do loop, a síncope final e definitiva, o clímax de aceleração precipitada, sob cuja intensidade extrema relaxamos nosso impulso de reagir, entregando os pontos entorpecidos, aceitando resignadamente ser conduzidos até o fim pelo maquinismo titânico”. In: SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: No loop da montanha russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. P á g i n a | 19

2010, p. 21). Além disso, a construção do significante Heavy Metal era, pouco antes do surgimento do Black Sabbath, restrita e pouco representativa por essa razão era passível de cair no esquecimento:

Antes do Sabbath, “heavy” referia-se mais a um sentimento particular do que a um estilo musical; na gíria hippie era usado para descrever uma disposição mais potente para qualquer coisa. Jimi Hendrix e os Beatles, com frequência, escreviam músicas que apontavam para uma direção heavy, uma ponte entre melodias que tentavam resolver emoções e ideias conflitantes. O “metal” do heavy doou uma vitalidade do aço a essa luta, uma força temática inquebrável que garantia tensão, além de emoção desimpedida. (CHRISTE, 2010, p. 22).

Vemos, deste modo, que a origem do Heavy Metal está situada no fim da década de sessenta, no contexto de jovens que nasceram em Birmingham, alguns anos após a Segunda Guerra Mundial. Eles não tinham grandes perspectivas de mudança na vida, pois conviviam com a decadência, escombros e destruição.

Black Sabbath galga a fama e a empatia de muitos outros jovens, pois o Heavy Metal tocava verdades não ditas, expressava sentimentos disfóricos presos na garganta de muitos e tinha grande inventividade, versatilidade. Também no início do metal pesado, a banda Led Zeppelin – de grande veneração no cenário musical – partilhava o sentido de transformação com o Black Sabbath, porém numa forma mais fácil para os fãs reproduzirem.

Na década de 70, as bandas que tinham o metal pesado como eixo de criação se empenhavam em ser inovadoras, rigorosas em suas produções ao ponto de cada álbum produzido ter uma identidade muito bem-elaborada e sem esquecer a agressividade que, antes do Sabbath, não fazia parte da identidade das bandas. Tal agressividade fazia com que “muito mais bandas [tocassem] em níveis decibéis que competiam com os aeroportos”. (CHRISTE, 2010, p. 27). Por fim, todo esse movimento musical teve, e ainda tem, raízes “[no] Black Sabbath [que continuou] sendo a entidade desafiadora original”. (CHRISTE, 2010, p. 27).

A trajetória do metal pesado teve um salto muito importante quando o som criado pelos britânicos chegou à terra norte-americana e se espalhou, em seguida, para o mundo todo, tornando assim, o Heavy Metal um fenômeno global:

A grande explosão de popularidade do rock disparou uma saraivada de estilhaços de Heavy Metal pelos Estados Unidos já no começo dos anos 1970; o público saía de Woodstock, Monterey Pop e Altamont para festivais gigantes como Cal Jam – onde um Black Sabbath muito chapado chegou de helicóptero para encarar 450 mil fãs em 1974. Nessa época de relativa escassez midiática [do Heavy Metal], as apresentações eram a única maneira de experimentar P á g i n a | 20

pessoalmente a música pesada e, nessa fase pioneira, gostar de verdade de rock pesado significava deixar tudo de lado para ir aos shows: matar aula, tirar folga do trabalho e até dirigir o quanto fosse necessário para vivenciar em primeira mão a catarse de um evento ao vivo. (CHRISTE, 2010, p. 28).

Mas a fama e as apresentações gigantescas não eram apenas do Black Sabbath, outras bandas como Led Zeppelin, Alice Cooper, Deep Purple também deslancharam de tal maneira que construíram novos fãs que seguiam as produções deles e de outras bandas que tinham o som voltado para o que se chamava – e se chama até hoje – de metal pesado. Mas nem tudo que possibilitou ao Heavy Metal existir e progredir foi mérito do próprio movimento, o contexto histórico da década de 1960 foi um gatilho relevante.

O contexto visava a tornar “o comportamento mais liberal em relação às drogas, ao sexo e à glória orgiástica”. (CHRISTE, 2010, p. 31). O autor completa afirmando que

[...] os Estados Unidos dos anos de 1970 abraçaram a vida fácil – um bálsamo para acalmar as mudanças sociais desse passado recente. O rock [...] estava rapidamente tornando-se o estilo de vida desejado, e a classe média conservadora não sabia como lidar com isso. (CHRISTE, 2010, p. 31).

O passado recente que Christe (2010) menciona trata do clima disfórico que os Estados Unidos estavam sofrendo pouco antes do início dos anos 1970. A Guerra do Vietnã acarretou na morte de numerosos soldados americanos jovens e, por essa, razão o sentimento ora desencadeado no contexto inglês pairava na sociedade americana.

A classe média da sociedade norte-americana não sabia lidar com o metal pesado, pois o receio da parte conservadora pairava não apenas no incentivo ao sexo e ao uso de drogas, mas também estava inserida sobre a ideia, fortemente apresentada, de adoração ao ocultismo. Prefeitos de cidades expulsavam, sem cerimônia, bandas que de alguma forma trouxessem valores opostos aos valores cristãos. A ideia de que bandas como Black Sabbath e Alice Cooper tinha poder de enfeitiçar adolescentes era constante. Não faltaram movimentos para discutir o papel do metal pesado na sociedade.

Aos olhos dos conservadores, o metal pesado era um movimento não coordenado de shows de horrores que estavam perturbando a mente e a alma dos filhos de Deus e fazendo com que a sociedade tivesse um futuro incerto e sombrio. A intensidade das manifestações consideradas sombrias e satânicas galgava patamares altíssimos a ponto de assustar até mesmo quem ajudava a produzir as apresentações e metaleiros também. Alice Cooper, um dos intensificadores mais sombrios da época, P á g i n a | 21

[...] desenvolveu um espetáculo sangrento, baseando-se no Théâtre du Grand- Guignol – um espetáculo de rua do começo do século XIX –, cheio de baldes de sangue e anões fantasiados. Em 1975, Cooper encenava seu próprio suicídio no palco, todas as noites “Parecia que ele não era mesmo um ser humano”, disse o metaleiro mascarado Kim Bendix Peterson, apelidado King Diamond. “Se a gente encostasse nele, era provável que desaparecesse no ar ou coisa assim. Sentíamos isso fortemente. (CHRISTE, 2010, p. 32).

Além da manifestação de expressão voltada ao ocultismo, a banda Kiss, seguindo e intensificando a forma de apresentação de Alice Cooper, apresenta-se de maneira exagerada aos metaleiros norte-americanos. “A maquiagem prateada da banda, suas fantasias brilhantes e até as guitarras personalizadas” (CHRISTE, 2010, p. 32) faziam parte de um figurino ainda não visto, e isso, em princípio, causou estranhamento.

A ideia da banda era, por meio de elementos visuais, remeter aos dois grandes eventos da década de 1960: a viagem à Lua e a chegada das guitarras elétricas que produziam sons distintos. Os dois elementos buscavam constituir a fuga da realidade. Mas essa não foi a grande contribuição do Kiss para o fenômeno Heavy Metal. A banda criou, depois de muitos anos de carreira e apresentações precárias, o circuito profissional de turnês que se tornou o elemento ascendente do fenômeno.

A banda, além de tornar possível uma logística de apresentações, preocupou-se também em oferecer seu produto musical em outros meios. Nos shows, de acordo com Christe (2010, p. 33), “a maquiagem, o sangue e o fogo criaram uma indelével impressão nos fãs, muitos dos quais nunca haviam escutado as músicas”, enquanto isso fora dos palcos “o Kiss preencheu astutamente o vazio entre gerações com os produtos que criaram: bonecos, pijamas, figurinhas de chiclete, um jogo de tabuleiro, uma revista em quadrinhos publicada pela Marvel e um jogo de fliperama”. (CHRISTE, 2010, 33).

Logo, o público infantil, ao chegar à adolescência, prontamente se identificava com o movimento Heavy Metal, e o número de adolescentes adeptos do metal naquela época estava progressivamente aumentando.

Mesmo com a presença mercadológica e publicitária envolvendo o mundo dos metaleiros, era possível perceber que “em meados dos anos 1970, a estética Heavy Metal ainda podia ser vista como uma besta mitológica” (CHRISTE, 2010, p. 33), ou seja, havia uma visão muito mais idealizada, suprema e reverenciada do metal do que uma visão de puro entretenimento. Essa visão era reflexo da dedicação incansável dos próprios músicos que P á g i n a | 22

levavam, e ainda levam, a produção musical a sério e dos fãs que não se preocupavam apenas em saber cantar as letras.

A dedicação por parte dos fãs era entender a performance de cada um dos membros da banda, reproduzir e/ou criar algo novo a partir do que conseguiam apreender. Cabe lembrar, também, dos fãs que procuravam mostrar profundo conhecimento a respeito das bandas, instigando profundas discussões a respeito de guitarras, execuções de solos, entre outros tantos temas que surgiam, conforme apareciam novas bandas e novas fitas para ouvir.

O fenômeno do Heavy Metal ganhou mais força quando a banda Judas Priest deixou Birmingham, na Inglaterra, em 1974, para soar como um único movimento nos EUA. Para Christe (2010, p. 34), “pela primeira vez o Heavy Metal soava como um verdadeiro gênero”.

A parceria entre as bandas era nítida, e os objetivos de Judas Priest eram claros para todos: “[...] ser a banda de Heavy Metal definitiva [...] O Black Sabbath emprestou à jovem banda seu espaço de ensaios e um dos integrantes do Judas Priest participou brevemente do Earth, banda que virou o Black Sabbath”. (CHRISTE, 2010, p. 34). E pela parceria, na verdade, apadrinhamento do Black Sabbath e objetivos expostos pela própria banda Judas Priest, os comentários que comparavam ambos diziam que

[...] a música do Judas Priest era bastante formal, organizada de modo preciso em torno de pausas, pontes e picos dinâmicos. Enquanto o Black Sabbath pulsava mais de acordo com o sentimento do que com a rigidez de um metrônomo, o Judas Priest escolheu uma abordagem carregada de composição. (CHRISTE, 2010, p. 34).

Independentemente da forma como a produção musical era trabalhada, havia um ponto em comum: o confrontamento com o cenário da época. Os compositores cumpriam seus papéis sociais atacando verbalmente toda e qualquer forma de injustiça e opressão governamental.

Não só manifestações políticas eram apresentadas, o exagero visto em Alice Cooper e na banda Kiss aparece também na banda alemã Scorpions. Ela lançou, em 1976, um álbum chamado Virgin Killer5 em cuja capa de fundo preto há uma garota adolescente magra, branca e loira com um caco de vidro em seu púbis. De imediato, os Estados Unidos proibiram, pois “a imagem era um exagero de atitude experimentação sexual”. (CHRISTE, 2010, p. 35-36). No entanto, essa era a nova mentalidade revolucionária, rebelde e libertadora dos jovens. “O

5 Matador de virgens. (Tradução nossa). P á g i n a | 23

público heavy metal queria o choque, desejava ardentemente o estímulo dos territórios controversos.” (CHRISTE, 2010, p. 36).

Outra manifestação rebelde e adequada ao contexto foi o lançamento do álbum de Stained Class6, em fevereiro de 1978, que trazia em sua capa a imagem de um robô com a cabeça transpassada por um tipo de ferro com raios coloridos. A intenção era transmitir a ideia de questionamento e saudação da era da informação, ou seja, a era em que o advento da informática e tecnologia que permitiam a ampliação do armazenamento e memorização de informações, essa era também é oriunda da Terceira Revolução Industrial.

A imprensa não dava muita importância para o movimento pesado que estava crescendo, mas mesmo assim as longas turnês continuavam e os numerosos metaleiros viajavam junto com as bandas. A existência do Heavy Metal já não era mais algo a se evitar, pois havia governos preocupados com a manifestação nociva, pais de futuros adolescentes com medo de ter um filho rebelde. Outros pais preocupados com filhos adolescentes que veneravam bandas de tal forma que eram considerados fanáticos compulsivos. E, na contramão dos fãs, havia grupos cristãos horrorizados com a relação da música com o ocultismo e o anticristianismo. Esse era o cenário do Heavy Metal que coexistia com os fatos políticos, sociais e culturais.

O Heavy Metal se expandiu da Inglaterra para os Estados Unidos e, em terras norte- americanas, ganhou corpo. Sobre isso, Christe (2010, p. 38) relata da seguinte maneira:

Quando o Black Sabbath apareceu em Birmingham, o som era uma aberração, imitado por muitos sem ser completamente desenvolvido nem expandido. Após a chegada do Judas Priest, o Heavy Metal constituía um movimento completo capaz de traçar sua trajetória do ponto A ao ponto B. Conforme a próxima onda de bandas seguia o caminho, o ciclo herdaria as características de uma avalanche, ondulando progressivamente com cada vez mais força e impulso. Com a aproximação do fim de 1970, o Black Sabbath era frequente e abertamente invocado na Inglaterra por novas bandas que louvavam sua influência, mesmo com a poderosa banda naufragando como grupo. A energia forte de um novo rol de admiradores poderia ter elevado o espírito do Sabbath, se não fosse pelo fato de a banda ter deixado a Inglaterra em direção a em 1976 para evitar pagar exorbitantes impostos ingleses.

Em meio a inúmeros movimentos de construção identitária e progressão do Heavy Metal, a banda Black Sabbath aos poucos enfraquece em suas composições, perde um pouco “a pegada” que originalmente conquistou os fãs e, finalmente, Ozzy decide sair da banda,

6 Classe manchada (Tradução nossa). P á g i n a | 24

causando um choque em todos, inclusive nos companheiros de estrada. Conforme Christe (2010, p. 40-41) relata

Quando Ozzy finalmente saiu do Black Sabbath, isso representou mais do que o fim de uma era. Sua partida dissolveu a química que havia desde quando o valentão Tony Iommi batia em Ozzy, quando eram adolescentes no colégio, e que foi responsável por sustentar oito álbuns que levaram a música a uma nova, assustadora e vibrante profundidade cataclísmica [...]. Assim como aconteceu quando os Beatles deram o expediente por encerrado, Ozzy separou os quatro cavaleiros do Sabbath, deixando a instrução para um novo protocolo musical [...]. No fim das contas, a inspiração do heavy metal provaria ser mais fértil com essa ausência, da qual impressões fortes, memórias e imagens estimulavam a imaginação descontrolada. E, em última análise, dada a onda contínua de bandas criadas para explorar a força que o Sabbath colocou em movimento, o sucesso e o excesso de todas as outras superbandas de hard rock dos anos de 1970 se empalideciam diante da comparação.

Portanto, vimos que o surgimento do gênero Heavy Metal até então está estruturado em chamar a atenção por meio de letras de músicas, capas de álbum e performances de tons exagerados. A base inicial era produzir conteúdo que acentuasse aspectos disfóricos no sentido de pensamentos negativos, ocultistas ou satânicos, além da produção de conteúdo de crítica aos governos autoritários, assim a liberdade de expressão atraiu os jovens para o Heavy Metal.

Em suma, o primeiro passo foi apresentar sentimentos negativos aflorados e, em seguida, manter as letras em regime de atualidade com o cenário social. Na próxima seção, explicaremos como o metal pesado perde sua essência e seu espaço no cenário musical e tenta reassumir seu papel por meio da “nova onda do metal pesado britânico” ou NWOBHM. Explicaremos também como Black Metal, um dos desdobramentos do metal pesado, surge e seu papel fundamental na compreensão do caso Parental Music Resource Center.

1.2. The new wave of British Heavy Metal, Black Metal e o caso PMRC7

No final da década de 1970 cresce um movimento considerado muito mais atitudinal do que musical, mas que mesmo assim confronta a existência do Heavy Metal. Este movimento foi denominado Punk. Para Christe (2010, p. 43), “outra revolução musical estava fazendo uma faxina no rock por conta própria. O Punk se opôs ao enlatado glamour de linha de montagem de bandas milionárias, como o Kiss e o Led Zeppelin”. Então, a essência revolucionária nos moldes em que o Heavy Metal havia começado estava sendo interpretada pelos punks e isso despertou a simpatia de muitos.

7 Centro de recursos musicais para os pais P á g i n a | 25

Ainda sobre o movimento Punk, é necessário apontar que o atrativo dele era a liberdade de expressão seja musical ou ideológica. A maturidade do movimento, como era de se esperar, era frágil, porém ganhava experiência à medida em que os objetivos em torno da liberdade de expressão chegavam aos ouvidos dos jovens.

Entretanto, não foram poupadas as comparações com o Heavy Metal, pois este já corria o mundo sendo criticado pela rebeldia e pela inversão de valores. A batalha contra o movimento Punk começou quando “o que existia de apoio ao Heavy Metal na cena musical evaporou [e] grandes selos se dispersaram para contratar tudo que tivesse moicanos e alfinetes” (CHRISTE, 2010, p. 45) e quando percebeu-se que a identidade musical da Inglaterra tinha sido renovada por causa do Punk.

É exatamente neste momento que a nova onda do metal pesado britânico, doravante NWOBHM, começa a ganhar forma com a banda Motörhead, liderada pelo falecido Ian Kilmister, mais conhecido como Lemmy, que

[...] era um exemplo carismático e esperto de uma vida de perigos, tornando- se o grande mestre da indiferença perversa, enquanto fãs copiavam seu guarda-roupa fora da lei com cintos de bala de revólver, coletes jeans, camisas de cowboy e patches8 do Motörhead. Tendo em mente o abismo entre o Black Sabbath e a explosão punk, os membros do Motörhead eram cabeludos rudes em uma farra veloz de acordes massacrantes de baixo, guitarra distorcida e bateria estrondosa. Lemmy trafegou em músicas imorais sobre sexo, drogas e rock´n´roll, desviando de temas políticos e heróis mitológicos, atirando pedregulhos em vez de cantar. [...] O Black Sabbath havia apresentado o heavy metal, o Judas Priest trouxe destaque, e o Motörhead o fortificou com coragem verdadeira. O heavy metal, aparelhado dessa maneira, engoliu o punk e seguiu em frente. (CHRISTE, 2010, p. 46-47).

O contexto histórico do surgimento do movimento Punk foi a crescente taxa de desemprego que chegou aos 20% na Inglaterra e a “estagflação”, logo investir profissionalmente em uma banda não era para a massa populacional. Então iniciar uma gravadora em ambiente domiciliar era uma opção válida e necessária. O Punk, deste modo, configurou justamente o que as pessoas precisavam para criar uma banda de metal pesado e a empolgação se tornou comum entre os adolescentes. (CHRISTE, 2010).

Outra banda que aparece para marcar a ascensão do movimento NWOBHM que luta contra o movimento Punk é o Iron Maiden:

8 Remendo de roupa (Tradução nossa). P á g i n a | 26

Eles habilmente sintetizaram as camadas góticas do Judas Priest com o perigo iminente do punk rock [...] O Iron Maiden parecia tocar dez vezes mais notas que qualquer outra banda, e sua estonteante abordagem compositiva elevaria a musicalidade do heavy metal por décadas [...] Do Judas Priest, o Maiden herdou esmagadoras frases de guitarras arpejadas e o histriônico jeito de cantar e, assim como o Priest, orgulhava-se de ser uma banda de heavy metal. A uma formação anterior do Iron Maiden foi oferecido um contrato, em 1976, se eles “virassem punk”, mas Harris e companhia seguraram firme promovendo sua própria carreira incansavelmente até que a indústria fonográfica foi forçada a percebê-los. (CHRISTE, 2010, p. 52).

A nação inglesa adotou o Iron Maiden porque suas composições abordavam temas tipicamente ingleses, como letras macabras e assuntos ambientados com névoas e escuridão. Além das canções, “os truques de palco dramáticos: máquinas de fumaça e assustadores objetos cênicos caseiros” (CHRISTE, 2010, p. 52) faziam parte da performance. Essa força do Iron Maiden, inspirada no Judas Priest, não se encerra e novamente toma proporções mais sólidas:

O heavy metal apresentava uma música sob pressão, com camadas múltiplas de ritmo e melodia, um show de fogos de artifício e som em alta velocidade. A força das guitarras múltiplas tornou-se um elemento central, tanto para acelerar o espírito criativo das letras quanto para estimular um desenvolvimento musical mais complexo. Até os mais preguiçosos do NWOBHM modulavam seus três acordes com mudanças de tempo, solos de guitarra e alterações na disposição e energia que tocavam. Dave Mustaine, o fundador do Megadeth e antigo membro do Metallica, explica que “o NWOBHM trouxe muitas bandas menos conhecidas, cujo estilo musical era muito mais interessante, na minha opinião. Tudo se baseava em padrões cíclicos de riffs”. (CHRISTE, 2010, p. 53).

O Judas Priest tomou a dianteira no que diz respeito ao progresso do novo metal pesado e, após uma turnê com o Kiss, a banda decidiu tocar em um padrão mais simples resultando em músicas que exploravam o coro de vozes em detrimento de construções clássicas elaboradas. O coro reflete a multiplicidade de bandas que apareciam e mantinha Judas Priest em um contexto de imponência e supremacia. E, neste contexto, no mês de agosto de 1980, aconteceu o Monsters of Rock, em Castle Donington, o primeiro festival exclusivamente de Heavy Metal.

O evento atraiu mais de 60 mil pessoas e, se havia dúvidas de que o metal pesado ainda estava com suas chamas musicais acesas, o festival esclareceu que elas estavam consumindo e ganhando mais oxigênio. A realidade mudou de apresentações em pubs para apresentações em grandes estádios. Logo após o festival:

[...] editores ingleses dedicaram seções maiores à nova energia heavy metal em língua inglesa. O Sounds fez sua cobertura do NWOBHM, em junho de 1981, em uma nova edição completamente dedicada ao metal chamada Kerrang! Uma expressão onomatopeica que exprimia o barulho das guitarras, o bater dos pratos e o rachar das cabeças. Lemmy reivindicou que o nome P á g i n a | 27

havia sido copiado de um pôster usado no palco nos shows do Motörhead. A Kerrang! [A revista] instantaneamente se tornou a bíblia do metal, abrindo um quadro estável de jornalistas como Geoff Barton e Malcom Dome, fisgados do Sound[s] que deram voz e identidade ao submundo que florescia. (CHRISTE, 2010, p. 56).

A bíblia do metal teve um peso enorme para as bandas que ela abordava em suas páginas porque elas acabavam se tornando referências no cenário musical. A revista ajudou a organizar a existência do NWOBHM, revelar novos talentos e, principalmente, ajudou a fundar o que anos após foi chamado de Black Metal. Para o Black Metal existir, a revista investiu na divulgação da banda Venom que tinha se tornado uma de suas favoritas e se tornou também um divisor “entre o altivo heavy metal tradicional e os profanos do black metal nascidos vários anos depois dos berros do Venom”. (CHRISTE, 2010, p. 61).

No contexto americano, após a consolidação do NWOBHM, cresce de maneira estrondosa a era Disco que é impulsionada por baladas dançantes e incontroláveis. Christe (2010, p. 68) relata que:

“A onda disco relegou a um hiato de cinco anos os fãs de hard rock nos Estados Unidos”, conta Ron Quintana, DJ e colecionador de discos de San Francisco. “A gente corria como ratos pelos cantos subterrâneos – tentando encontrar uns aos outros e conversar a respeito dessas novas bandas de metal que estavam começando a aparecer”. Como o heavy metal, a música disco tinha suas divas, e ambos eram experiências vigorosas e populares.

O contexto ainda conta com a falência progressiva do Punk, em terras americanas e londrinas, e o que surgira de novidade passava por um processo de remodelagem para se encaixar num formato de new wave com extensão Disco. Enquanto a indústria trabalhava para vender cada vez mais, os fãs de Heavy Metal estavam trocando fitas cassetes e formando grupos fechados para uma espécie de análise, discussão e competição de conhecimento dos conteúdos das bandas nas fitas cassetes, que eram caseiras, e de todo o conteúdo deste gênero musical.

O Heavy Metal reformulou-se com a falência do Punk. A presença significativa do AC∕DC foi o alicerce para manter os fãs de Heavy Metal satisfeitos nesse período de renovação. Período este que levou os fãs de Hard Rock para uma experiência mais pesada e aqueles que estavam cansados da era Disco para um novo tipo de experiência subjetiva. O Heavy Metal reformulado ainda chocava os seus fãs, que buscavam justamente essa situação sinestésica:

À medida que a popularidade do heavy metal aumentava, os dois primeiros álbuns solo de Ozzy Osbourne [que voltou aos palcos, porém rompeu com o empresário e reiniciou os negócios com Sharon Arden. Antes dela as finanças desajustadas uma após a outra eram a realidade de Ozzy] logo viraram discos P á g i n a | 28

de ouro, apesar de inicialmente rejeitados por uma sucessão de selos desinteressados. Dois incidentes logo projetaram o adorável vocalista à infâmia nacional. Primeiramente, ao tentar impressionar sua nova gravadora, CBS, Ozzy arrancou com a boca a cabeça de uma pomba viva durante uma entrevista com executivos em 1981. Depois, em janeiro de 1982, ele mordeu a cabeça de um morcego jogado no palco por um fã do Des Moines, em Iowa. Por essa bizarrice, Ozzy teve que aguentar inúmeras vacinas antirrábicas na barriga e roubou o trono de Alice Cooper, passando a ser o maior bicho-papão [...]. Com suas mordidas excêntricas, Ozzy Osbourne se dispôs a ser o orador da insanidade rockstar e ganhou a lealdade incontestável dos desajustados do heavy metal. (CHRISTE, 2010, p. 79).

Justamente nos primeiros anos da década de 1980 é presenciado o que podemos chamar de “Globametalização”, ou seja, o mundo começou a produzir Heavy Metal. O processo foi da Inglaterra para os Estados Unidos da América e, em seguida, para o mundo. Alemanha, Brasil, Canadá, Suíça e tantos outros países foram palco para o desenvolvimento deste movimento que desejava a princípio expressar suas frustrações e sua vontade de libertar-se do peso que diversos fatores, como guerras e governos autoritários, haviam deixado.

Em reforço ao movimento que já era considerado um fenômeno oficialmente global, a bíblia do metal teve de duplicar suas edições e colocá-las à venda no período quinzenal, dada a fama e a função de liga cultural entre diferentes headbangers9 americanos.

A partir deste ponto, consideremos os fatos que serão mencionados como uma nova curva ascendente do Heavy Metal ainda no movimento new wave. As bandas Metallica e Iron Maiden tiveram participação decisiva na relação entre os fãs e os músicos. E bandas como Slayer, Venom e Possessed chamaram a atenção pela temática satânica e pela consolidação do movimento underground.

No início de 1982, a banda Metallica, que já tinha conquistado um grande espaço no cenário musical, foi apontada da seguinte maneira:

O som era vivo e impetuoso, com energia para superar os conceitos tradicionais de musicalidade. A voz de Hetfield era aguda e raivosa, os solos de guitarra de Dave Mustaine eram carregados e enlouquecidos. As faixas ressoavam como uma versão mais jovem, pesada e rápida do que os ingleses estavam fazendo no Diamond Head. Mesmo não chegando à força fluida que seria sua marca registrada, a fita provou que o Metallica havia aprendido a

9 Termo popular para designar um determinado grupo que utiliza certo tipo de vestimenta, possui valores e comportamento em comum. Sobre a vestimenta: geralmente eles deixam os cabelos compridos, usam casaco de couro e∕ou colete jeans e patches. Sobre os valores: evitar a todo custo cair na sedução do apelo comercial e se comportar de forma a questionar o que é imposto injustamente. P á g i n a | 29

tocar e gerou o reconhecimento de fãs que queriam ouvir algo que estivesse um passo além do NWOBHM. (CHRISTE, 2010, p. 87).

A seriedade e o comprometimento que a banda Metallica tinha com os seus fãs era admirável, pois apesar de ela ter assinado contrato com grades selos, conseguiu renovar suas músicas e manter o elo com os fãs. Foi esse cuidado com o público que fez Rod Smallwood, empresário do Iron Maiden, perceber que “algumas pessoas compram músicas [...] e algumas outras pessoas compram bandas”. (CHRISTE, 2010, p. 92).

Vemos, enfim, que em 1983, em meio à introdução de novas tecnologias nos lares e nos comércios de entretenimento, o Heavy Metal se configura como “a trilha sonora de uma revolução cultural que incluía televisão a cabo, os primeiros computadores domésticos e jogos de fliperama” (CHRISTE, 2010, p. 92), jogos portáteis, toca-fitas Sony Walkman. É neste mesmo ano que Iron Maiden, Judas Priest e outras bandas galgam o sucesso definitivo em território americano e o que mais fascinava em meio a tudo isso era ver o que era considerado ficção científica, realizar-se, tornar-se palpável aos consumidores.

Ronnie James Dio, baterista do Black Sabbath, relata que “a gente lia um livro de Arthur Clarke, ou de Isaac Asimov, e quando eles me diziam que uma coisa aconteceria daqui a dez anos eles estavam certos. Eram geniais e permitiam que eu usasse minha imaginação”. (CHRISTE, 2010, p. 93). Imaginação dentro de um contexto de fantasia para criar temas e letras de loucura, desolação e lutas do bem contra o mal. Cabe apontar que os Estados Unidos estavam fervorosamente receptivos aos conteúdos aventureiros e de realidade alternativa, logo

[...] o popular RPG Dungeons & Dragons [D&D] trouxe à vida jornadas da literatura fantástica, como O senhor dos anéis, de J.R.R. Tolkien – outro produto de Birmingham, Inglaterra. Nas camadas do universo escapista de D&D, os jogadores assumiam os papéis de vários tipos sociais e étnicos: elfos, guerreiros, magos e bardos. Os enredos dos jogos geralmente envolviam matar monstros e colecionar tesouros, ao mesmo tempo em que se perseguia um objetivo heroico maior. Muito do heavy metal se localizava em um terreno similar, um reino de masmorras escuras e impenetráveis desertos povoados por batalhas e adversidade. (CHRISTE, 2010, p. 92-93).

A partir dessa associação entre a literatura fantástica e o Heavy Metal, chegou-se à conclusão de que as narrativas que dizem respeito às guerras, ao sofrimento pela perda de entes queridos, às batalhas gloriosas etc. eram ideais para a produção de músicas pesadas. A partir dessa onda de acontecimentos e influências, já começava a se falar de um Heavy Metal clássico. P á g i n a | 30

Em meados de 1984, temáticas, estilo e conteúdos já estão formados no horizonte de expectativa tanto dos fãs quanto das bandas, já se sabe o que é o Heavy Metal, onde ele é encontrado, como ele se comporta e qual é a sua representação no mercado fonográfico. Embora saciada a necessidade de temas e de letras chocantes, ainda era necessário investir no visual do produto.

O mercado precisava vender mais e mais o seu produto e as bandas tinham que garantir seu lugar na fama. O cuidado e o investimento com o marketing visual eram, e ainda são, elementos muito fortes em um contexto em que a competitividade age colocando marcas no topo dos quesitos qualidade e eficiência e colocando também marcas como secundárias ou de qualidade duvidosa.

A identidade visual funciona como um padronizador e facilitador para os consumidores. Ter uma identidade reconhecida uniformiza um determinado produto, possibilitando a fidelização dos clientes. Visto que a realidade não era apenas tocar e conquistar fãs nos palcos e fora deles, a banda Iron Maiden, especificamente Steve Harris, já tinha começado a criar os logos de centenas LPs e logos de camisetas de sua banda. Derek Riggs criou o famoso desenho denominado Eddie durante o movimento Punk, antes de entrar em contato com Iron Maiden, então Eddie, que se tornou mascote da banda, foi estampado em inúmeras capas dos álbuns da banda.

A repercussão foi tão grande que o personagem criado por Derek ganhou uma identidade ficcional e, em 2008, foi aclamado como o ícone Heavy Metal mais famoso e versátil do mundo pelo site Gibson.com, e artistas de bandas como Metallica, Slipknot e Jackass manifestaram apoio ao reconhecimento e muitos revelaram a relação pessoal que têm pelo desenho que se tornou ícone.

Sabemos que trabalhar para um público-alvo há um determinado tipo de escolha que automaticamente exige renúncias. Logo, a beleza emitida pelos cenários mórbidos, sombrios, e por vezes, satânicos, não agradava a todos, mas os metaleiros cada vez mais se identificavam com o estilo desenvolvido e os ícones produzidos.

“Para a maioria dos fãs de heavy metal, o significado dessa indumentária não era apenas a ligação com uma música, mas uma agressiva camada de proteção na batalha contra a complacência”. (CHRISTE, 2010, p. 101). O vestuário tem, nesse sentido, uma representação política que combate a tolerância a diversas situações de injustiça e desigualdade seja em P á g i n a | 31

qualquer âmbito: partidário, econômico, musical, ambiental. Retoma-se a ideia de inquietação com a realidade muitas vezes hipócrita, ditatorial e desumana.

Em maio de 1983, houve um festival de música ao ar livre, televisionado, durante quatro dias em San Bernardino, na Califórnia, criado pelo inventor da Apple, Steve Wozniak. O festival teve por volta de 300 mil pessoas no sábado, uma multidão de mais de 600 mil se aglomeraram para ver as bandas de Heavy Metal no domingo. Após o festival, um canal de televisão a cabo exibiu um especial de duas horas durante vários meses. Cabe notar que a televisão a cabo era uma tecnologia recente nos EUA e que, junto com a fita cassete, ajudou a alicerçar o Heavy Metal na década de 1980. (CHRISTE, 2010).

Ao mencionarmos televisão a cabo, temos que, obrigatoriamente, mencionar o canal fechado chamado MTV. Ele foi criado em 1981 e, dois anos depois, buscava ampliar seus territórios para aumentar suas contas. Para isso acontecer, o canal decide colocar em sua programação o conteúdo do metal pesado.

O heavy metal era perfeito: um novo gênero musical incrementado com álbuns vencedores de platina, shows que chamavam a atenção, encartes interessantes e fantasias incomparáveis. “A MTV surgiu, e eles estavam procurando por bandas que tivessem apelo visual”, relembra o vocalista Dee Snider, do Twister Sister. (CHRISTE, 2010, p. 105).

As aparições na MTV rendiam muita fama e dinheiro, logo as bandas deveriam trabalhar de forma que produzissem videoclipes e entrevistas. A rotina de produção deveria conciliar com a divulgação das músicas em rádios e em revistas, com participação em shows, festivais e turnês, em outras palavras, a agenda de uma banda configurava uma rotina tão pesada quanto a música que se produzia.

A era da informação teve tanta força que “as 24 horas de vídeos diários [na MTV] representavam apenas a ponta do iceberg metálico” (CHRISTE, 2010, p. 111) porque tinha um mundo a ser explorado. Outro número gigante é a tiragem das revistas Circus e Hit Parader que somavam 700 mil cópias e representavam a subcultura do Heavy Metal em pleno desenvolvimento. Referente à participação do canal fechado citado acima, cabe afirmar que “o apoio da MTV para bandas de pegada mais pesada era limitado a um videoclipe ocasional, ou a um especial [...]”. (CHRISTE, 2010, p. 112).

Por subcultura entende-se uma parcela de pessoas que estão inseridas em uma cultura, no entanto os interesses, valores e∕ou comportamentos são particularizados. No Heavy Metal, P á g i n a | 32

por exemplo, existem as subculturas Power metal, Black metal, e outros. Muitas bandas optaram, no início de carreira, por nomear suas produções de Power metal mesmo não havendo uma diferença marcante entre o Heavy Metal propriamente dito. O movimento que se consolidou é caracterizado por reforçar de todas as formas o que existia previamente nas vestimentas, nos riffs das músicas, nos gritos e no ritmo muito mais acelerado. E é nesse cenário que é plausível falar da banda Slayer.

A banda acima iniciou a carreira em Los Angeles, em 1982, tocando como covers do Judas Priest e do Iron Maiden, porém em um ritmo mais acelerado e pesado. A formação inicial com os integrantes Kerry King, Dave Lombardo, Tom Araya e Jeff Hanneman tocava temas que ao mesmo tempo perturbavam a sociedade e atraiam os jovens interessados em um ritmo mais rápido.

As canções de temática satânica eram constantes e elas não eram produzidas com uma estética que valorizava um determinado padrão de beleza convencional ou com padrão ético que respeita os limites da censura. A intenção era, a princípio, chocar e tocar mais rápido que as outras bandas. De acordo com o guitarrista Kerry King, “o que nós fizemos foi pegar o metal e injetar uma dose de punk nele, e a coisa toda derivou disso”. (CHRISTE, 2010, p. 137).

Em meio ao cenário de temas demoníacos e ritmos cada vez mais rápidos competindo pelo choque e inovação, a banda Venom tomou lugar de destaque. O grupo musical, assim como Slayer, tinha a temática satânica em seu repertório e

[...] na trama forjada a ferro, demônios invadem o paraíso e expulsam os anjos, que por sua vez, reorganizam-se e vão ao inferno movidos pela vingança para abalar e destruir o demoníaco partido vitorioso. Ocupar um lado do LP com tal conceito perturbador foi uma blasfêmia comercial [...]. (CHRISTE, 2010, p. 138).

Provando dessa forma, a despreocupação com o padrão de produção regido pelas regras da mídia e se inserindo em movimentos underground. O pensamento de Venom, por exemplo, era alcançar os metaleiros pela essência da produção e tornou-se, de alguma maneira, um produto atrativo. O resultado foi que “para aqueles que levavam música a sério, o interesse por uma banda dada ao excesso, como o Venom, era uma fase obrigatória, ainda que passageira”. (CHRISTE, 2010, p. 137).

O Slayer também teve uma fase na qual adquiriu a essência sombria de Venom e, por essa razão, não era tão adequado ao grande público quanto o Metallica. A consequência de tal P á g i n a | 33

postura era ter um público menor, no entanto era um público fiel e intensamente dedicado ao som da banda. Eles, membros do Slayer, em seguida, estavam configurados como actantes de um eixo do Heavy Metal chamado underground. O Heavy Metal por si só já não era um gênero marginalizado e revolucionário, dentro dele havia uma parcela que resgatava a essência de inconformismo, crítica e fuga dos moldes pré-programados. Para Christe (2010, p. 148):

[...] enquanto o Metallica desejava o grande circuito, o Slayer, o Celtic Frost e o Bathory rapidamente transformavam as regras do underground. Separados por talento e geografia, mas unidos por encomendas internacionais, troca de fitas e cartas, a produção do black metal compartilhava um fetiche por todas as coisas abusivamente satânicas, incluindo pentagramas, cruzes invertidas e a sempre presente cabeça de bode.

Percebemos então que o fato de ter referências satânicas configurava uma afronta aos valores morais cristãos e, como boa parte do mundo compartilha das religiões cristãs, era inaceitável permitir que grupos de jovens que estão em formação escolar ou acadêmica corrompesse os ouvidos, e por consequência, a mente e a alma de outros jovens.

É a partir desse ponto que parte do Heavy Metal volta a ser minoria e surgem com força os movimentos undergrounds como o Black Metal, o Death Metal, o Thrash Metal, o Glam Metal. Essas ramificações tomam forma e tem a possibilidade de gerar novas ramificações. Ramificações que nunca serão iguais aos antecessores devido à “carga genética” ser exclusiva do gênero e o contexto histórico que permeia as escolhas e o modo como a identidade será construída socialmente.

Em meio aos desdobramentos, o Black Metal começa a emergir do anonimato, e a banda Venom se tornou “inquestionavelmente a banda mais radical de seu tempo [e] atingiu o cume de sua popularidade em 1984”. (CHRISTE, 2010, p. 137). Tornou-se peça obrigatória no gigante quebra-cabeça chamado heavy metal e os fãs já não poderiam ter conhecimento amplo do gênero sem ter verificado o estilo musical do Venom. Para entendermos como surgiu o Black Metal, Christe (2010, p. 144) relata que era inicialmente

[...] considerado um Power Metal ruim pela galera dos fanzines, em meados da década de 1980, as primeiras bandas de black metal enfeitadas com couro e crucifixos de ponta-cabeça receberam o mesmo pouco caso anteriormente ao punk. Mesmo assim, a cobertura continuou, devido à popularidade e à radicalidade dessas bandas, e logo havia pequenos tributos ao Venom acontecendo loucamente em todos os cantos. A imitação de satanistas drásticos desenvolveu-se sem demora para algo mais profundo com Slayer, Bathory, Possessed e Celtic Frost, semeando um culto dedicado que não se interessava pelas cores vistosas nem pela necessidade de atenção do heavy metal tradicional. A velocidade era extenuante e a emoção bruta, primitiva. P á g i n a | 34

Como seus servos aumentavam aos milhões, o black metal tornou-se um subgênero underground, formando a base conceitual e a inspiração musical direta para o Death Metal.

Por meio da banda Possessed, que tem raiz definitivamente sólida no Black Metal, é possível remontar parte da história que configurou a ascensão e a repercussão judicial do próprio gênero. Tudo começa quando Mike Torrao e Mike Sus ingressam na banda Possessed quando ela não tinha baixista, e o vocalista tinha atirado na própria cabeça.

Seven churches, o primeiro álbum da banda acima citada “canalizou toda a loucura destrutiva desses adolescentes norte-americanos de 16 anos para um festival bizantino de caos, velocidade e satanismo”. (CHRISTE, 2010, p. 149). A postura primitiva adotada por Venom chegou a um refinamento e dedicação de modo que os “membros do Possessed eram tão envolvidos com a magia das guitarras quanto a bruxaria nas letras”. (CHRISTE, 2010, p. 149). A produção e “confluência da loucura satânica do Black Metal e da tradicional e bem executada musicalidade do metal” (CHRISTE, 2010, p. 151) possibilitaram a existência de um novo movimento chamado Death Metal.

As referências satânicas permanecem fortes nas letras e levam a sociedade norte- americana ao questionamento do comportamento e da linguagem utilizada pelos metaleiros. O receio é que uma geração rebelde comprometa o futuro econômico e religioso da nação. Entretanto, apesar das referências satânicas, havia um discurso bem-construído em relação à polêmica:

As referências constantes à Satã distraíam os ouvidos incautos, mas, como acontece nas ideologias, zombar da devoção ao demônio expressava meramente o desejo de destruir amarras sociais e cavar um espaço para diversão sem limites. Ou, nas palavras de Larry Lalonde, do Possessed: “Se você acredita nesse negócio todo de Satã, você só pode ser idiota”. (CHRISTE, 2010, p. 151).

Os sentimentos descritos pelos conservadores em relação às músicas satânicas eram medo e terror, seguidos de sensação de ameaça e invasão de algo errado. Os lares norte- americanos estavam sendo tomados por adolescentes contestadores, rebeldes e isso resulta em uma guerra cultural em que o Heavy Metal seria o alvo, porém não foram justas as acusações proferidas, “até mesmo quando não incitava explicitamente uma revolta nas ruas, as atitudes do heavy metal representavam uma ameaça real à ordem pública”. (CHRISTE, 2010, p. 154).

É a partir desse momento que o grupo de militância política Parent´s Music Resource Center entra em cena e “dissemina a teoria de que as crescentes estatísticas de suicídio e estupro P á g i n a | 35

entre adolescentes poderiam ser atribuídas às lascivas letras de rock” (CHRISTE, 2010, p. 155) e exige que o governo aumente a idade mínima para consumir bebidas alcoólicas.

Em uma carta para arrecadar fundos, a PMRC escreveu à sociedade que as mensagens do rock eram destrutivas e tão viciantes que os jovens passavam de quatro a seis horas por dia ouvindo músicas do gênero e isso era muito mais horas do que as horas de estudo. Para o PMRC era uma clara lavagem cerebral para conduzir ao comportamento hostil, perigoso e violento. (CHRISTE, 2010).

O mundo assistia e ajudava o metal pesado crescer e tomar novas proporções enquanto alguns governos tomavam medidas severas contra o possível caos que poderia acontecer:

Estações de rádio coreanas, todas elas propriedade do governo, pararam de tocar heavy metal, e jovens cabeludos eram punidos por policiais armados de tesouras, com cortes na juba, onde quer que estivessem. O PMRC e seus amigos devem ter praticado uma limpeza similar nos Estados Unidos, mas conceitos constitucionais como liberdade de expressão implicavam táticas menos explícitas. (CHRISTE, 2010, p. 157).

No contexto da sociedade norte-americana, em 1985, houve pedidos de classificação etária e restrições iguais às que eram impostas aos produtos da indústria cinematográfica. Então, o Comitê de Comércio do Senado convocou audiências e do lado de fora havia placas levantadas com frases negativas sobre o metal pesado. Foram convidados para testemunhar, em Washington, integrantes da banda Twisted Sister que aceitaram a proposta de falar sobre o assunto. Os integrantes da banda perceberam que as apresentações das capas de álbum e a recitação das letras estavam fora do contexto, gerando assim uma interpretação equivocada dos produtos Heavy Metal. (CHRISTE, 2010).

Por fim, o Recording Industry Association of America, RIAA, cedendo à pressão popular, decide voluntariamente

[...] colocar adesivos nos lançamentos que fossem potencialmente ofensivos, levando à última instância a implementação da etiqueta padronizada em preto e branco, “Parental Advisory Warning” [Aviso de advertência aos pais], em 1990. Ainda que os defensores argumentassem que essa notificação não suprimia a liberdade de expressão, supermercados como o Wal-Mart iniciaram imediatamente uma política de testes recusando-se a ter em seus estoques discos “sujos” com os adesivos de advertência. (CHRISTE, 2010, p. 161).

Dessa forma, é necessário adicionar que havia bandas que mostravam uma responsabilidade social cantando temática como guerra nuclear, injustiça social, logo é P á g i n a | 36

plausível afirmar que, de fato, a postura de perseguir o gênero musical era de origem fundamentalista. (CHRISTE, 2010). Vimos, portanto, aspectos importantes da evolução do metal pesado por meio da história de algumas bandas.

Em suma, o fato de o metal pesado ter, em muitos aspectos, tornado-se uma moda fez com que os fãs se afastassem do gênero e se aproximassem do Punk. Tal acontecimento exigiu a renovação do gênero, e as atitudes tomadas ganharam o nome de new wave of British Heavy Metal e com a ajuda da mídia – em especial das revistas especializadas e do canal MTV – o estilo tomou novo fôlego e ganhou novos desdobramentos. Garantiu-se, dessa forma, que houvesse a constante conservação e atualização do metal pesado.

Na próxima seção, trataremos das influências do metal pesado na constituição das letras do metal sinfônico. Trataremos também de escrever sobre a constituição da banda Within Temptation, história de vida de seus membros e a jornada musical desde o início.

1.3. Influência do metal pesado no metal sinfônico

De acordo com a árvore genealógica do documentário (2011), o metal sinfônico produzido pela banda Within Temptation se enquadra no Goth Metal. Este é originário a partir do Doom Metal e tem raízes no Early Metal UK. Explicaremos a seguir a relação entre essas expressões no movimento metal pesado.

Early Metal UK é o movimento originário do metal pesado no mundo. O conteúdo deste movimento está relatado nas duas primeiras seções deste capítulo. Este primeiro movimento do metal pesado está calcado inicialmente nas produções das bandas Black Sabbath, Led Zeppelin, Deep Purple e Judas Priest.

O Doom Metal é, no cenário underground do metal pesado, o estilo que busca uma erudição no seu comportamento e na produção de letras de música. O termo underground diz respeito a comportamentos disruptivos do mainstream, ou seja, aquele que busca ter um posicionamento de interrupção com os valores e manifestações deste. No Doom Metal, a disjunção com o Heavy Metal ocorre inicialmente pela valorização de aspectos eruditos, como o refinamento na produção de letras. A influência na composição das letras é proveniente da literatura de Byron, Goethe, Baudelaire e da arquitetura barroca e gótica da Europa e da escola de arte alemã Bauhaus. (CAMPOY, 2010). P á g i n a | 37

Outro ponto de disjunção com o Early Metal UK é a presença de dois vocais, sendo um homem, como vocal gutural, e a mulher como vocal lírico. E essa dupla presença tem significação na produção dos temas e letras:

Um dueto de [polos] opostos, do belo e do horror [...]. Contudo, diferentemente do final do conto, onde a Bela e a Fera encontram um no outro o amor, na temática das bandas doom esses [polos] opostos nunca se encontrariam. Eles sofreriam, pois, se perderam ad aeternum [eternamente, em latim]. Eis aí a pena de Goethe, o sofrimento triste e constante resultante da separação, a perda da unicidade tão peculiar a certa literatura romântica. (CAMPOY, 2010, p. 158).

O Doom metal ainda se manifesta de maneira mais longa do que as canções do metal pesado. As letras procuram apresentar a tristeza, a melancolia, a solidão, os motivos da depressão, o vazio interior, a perda de qualquer ordem e a saudade do campo. Sobre este último item, é uma referência à expressão latina fugere urbem que tem como sentido a busca por uma vida mais calma. O estilo se apropria e valoriza temas da literatura árcade.

É necessário verificar que os góticos são correlacionados com o estilo doom. A semelhança está no estilo, nas influências literárias das músicas e no vestuário. A diferença reside na música em si. Enquanto o gótico exacerba seus sentimentos nas letras, os doomers tratam as emoções de maneira séria e ponderada. Apesar de posicionamentos diferentes e claros, Campoy (2010, p. 162) afirma que o Doom metal não é rígido enquanto estilo:

Não há um elemento expressivo que possa ser caracterizado como paradigmático do doom metal. A linha mestra que distingue esse estilo de metal extremo de seus congêneres está mais na maneira como os conteúdos da expressão são dispostos, na forma, em um jogo de imagens que almeja imbricar a beleza no horror [...].

Para encerrar as considerações a respeito do Doom Metal, o enredo é visto da seguinte maneira:

O enredo, por assim dizer, do estilo doom metal se distingue no underground do metal extremo construindo as imagens de uma beleza horripilante e vice- versa, de um horror belo. Neste sentido, temos no doom não tanto polos opostos que nunca se encontram, mas, antes, em mútua alusão. Sofrer pela perda é bonito e a beleza faz sofrer. A dor é sã e a saúde é dolorida. A tristeza alegra e a alegria entristece [...]. Essa mútua alusão entre beleza e horror é também uma mútua contaminação da beleza pelo horror e vice-versa. (CAMPOY, 2010, p.163).

Já o Goth metal é um estilo de expressão particular derivada do Doom metal. É também um gênero de fusão entre o Gothic Rock e o Doom Metal. A banda Within Temptation, alvo P á g i n a | 38

principal desta dissertação, está inserida no Goth Metal. A semelhança principal entre o Doom Metal e o Goth metal é a permanência da temática “Bela e Fera” nas letras. As diferenças são: crítica à religião, produção baseada nas escrituras simbolistas. A maneira longa de tocar do Doom foi deixada de lado, e o papel feminino ganha destaque neste estilo.

O Goth teve boa parte de raízes na Europa no início dos anos 1990, em destaque, na Suíça e na Inglaterra. Já o seu desenvolvimento, na metade dos anos 1990, é destacado na Suécia, nos Países Baixos, na Noruega e chegou ao mainstream na Finlândia. É constante a presença de instrumentos sinfônicos em uma abordagem considerada sombria.

Dentro dessa expressão particular do Goth Metal, está o symphonic metal. Traduzido como metal sinfônico, o gênero surge no final dos anos 1990 e, assim como seus precursores, valoriza a temática do horror no belo e o belo no horror. O papel feminino, assim como no Goth metal, continua em destaque. O que diferencia e particulariza o metal sinfônico é, principalmente, o tratamento da questão da relação entre vida e morte.

Enquanto os antecessores tinham um posicionamento mais voltado ao pessimismo, o metal sinfônico é mais otimista no sentido de que as letras vão, em última instância, abordar o carpe diem. É a partir da ressignificação da relação entre os polos vida e morte, por meio do conceito de carpe diem, que as letras das músicas vão apresentar a relação entre o belo e o horror. A banda que galgou o sucesso com este posicionamento foi Within Temptation.

Vamos, a seguir, verificar a história de vida dos membros da banda: Rudolf Adrianus Jolie, mais conhecido como Ruud Jolie nasceu no dia 19 de abril de 1976 na cidade de , na Holanda. Ele é o guitarrista principal desde 2001 e, uma das bandas que mais o influenciou enquanto adolescente e estudante de música, foi Iron Maiden. Após o ensino médio, ele entrou para o conservatório de sua cidade e se formou em 1999. Atualmente, além de guitarrista da banda, é professor de guitarra na Rock Institute , também conhecida como Factorium Tilburg.

Sharon Janny den Adel nasceu no dia 12 de julho de 1974 na cidade de Waddinxvenn, Holanda. Ela iniciou sua vida no mundo da música durante a adolescência em uma audição no ensino médio e conheceu , com quem se casou e teve filhos. Ela é conhecida por sua voz mezzo-soprano, que é a voz feminina numa posição intermediária entre o soprano – tons mais agudos – e o contralto, caracterizado por ser mais baixo e pesado. P á g i n a | 39

O casal é responsável pelo surgimento da banda Within Temptation e por compor numerosas músicas que chegaram aos top lists em diversos países da Europa e, com isso, conseguiu participar de produções de outras bandas como , , Avalon e e ganhar destaque no cenário musical do Heavy Metal.

Stefan Helleblad nasceu no dia 12 de novembro de 1978, em Gotland, Suécia. Ele está na banda desde 2011. Aos seis anos de idade, ganhou um disco da banda AC/DC e, na adolescência, iniciou sua primeira banda na qual tocava versões instrumentais de clássicos do Heavy Metal como Iron Maiden, Ozzy, Helloween e Megadeth.

Mais tarde, já adulto, resolveu largar o emprego para se dedicar à tarefa de produtor/mixer de músicas e esteve por trás de diversas produções do Within Temptation, como Dangerous e Let us burn. Sua aparição como membro e guitarrista aconteceu quando Robert Westerholt resolveu se focar na produção e na escrita das composições.

Jeroen van Veen nasceu no dia 26 de outubro de 1974 e era parceiro de Robert em uma antiga banda chamada The circle. Ele esteve presente desde o início da banda e atua como baixista. Já Martinus Johannes Everardus Spierenburg, oficialmente chamado de Martijn Spierenburg, nasceu em 30 de outubro de 1975.

Ele entrou na banda após o irmão de Robert ter sido diagnosticado com uma doença que multiplica a quantidade de monócitos – grupo de células do sistema imunológico – no sangue. Martijn é responsável pela coautoria de diversas músicas da banda, é o tecladista e o responsável pelos arranjos orquestrais e pela orquestra propriamente dita.

Mike Coolen nasceu no dia 9 de junho de 1975, em Tilburg. Quando criança ele aprendeu a tocar bateria e iniciou uma banda com seus colegas no ensino médio. A presença de Mike na banda ocorreu em 2005 quando ele foi colocado um percursionista adicional em um concerto em Amsterdã.

Em 2007, ele entrou na banda, participou da turnê em 2008, porém, em 2009, também estava inserido em outra banda. Finalmente, em 2010, ele entrou definitivamente para Within Temptation e, em 2011, foi anunciado como o baterista oficial.

O ponto em comum na história dos membros da banda é o momento em que nasceram: meados da década de 70. Essa informação nos indica que a adolescência dos integrantes aconteceu no período em que o metal pesado passou pela new wave e possibilitou novos estilos P á g i n a | 40

surgirem e ganharem espaço. Por essa razão, a influência dos gostos musicais deles está pautada, majoritariamente, nas produções dos anos 1980.

O gosto pela música juntamente com a forte relação identitária dos jovens permitiu que os fãs de Heavy Metal não fossem apenas consumidores, mas a partir do que ouviam, sentiam- se estimulados a produzir sua própria música. Isso era a expressão máxima de uma identidade consolidada e na época em que os membros do Within Temptation passam da infância para a adolescência, o HM havia passado por numerosos desdobramentos.

Contudo, ainda se tratava de uma manifestação jovem, severamente questionada e censurada pela parte conservadora de determinados países. Talvez esse seja um dos motivos pelo qual muitos dos adolescentes não tenham continuado a produzir.

Embora houvesse retorno financeiro, a atividade, para os conservadores e temerosos, não era vista como algo virtuoso de ser exercido, até porque uma possível associação de tal gênero com situações violentas e com rumores no mundo todo de que havia, no metal pesado, rituais satânicos era motivo suficiente para os jovens de família honesta deixarem ou esconderem o gosto por música de som pesado.

Vemos que o clima de opinião possibilitou que bandas pesadas lideradas por mulheres ganhassem destaque no fim da década de 90. Desde então, a banda holandesa vem acumulando numerosos prêmios, venda de milhões de discos e DVDs, tour em países da Europa, como Bélgica, Inglaterra, Holanda, Alemanha, Áustria, Finlândia etc.; e apresentações em diversos países como Estados Unidos, Canadá, Rússia, Japão, Brasil e países da América latina.

A banda ainda acumula quatro prêmios chamados de Export Awards destinado ao recorde de exportações na Holanda, dois prêmios da MTV europeia e trinta discos de ouro e platina. Investigaremos o que contém no discurso de suas letras com a finalidade de compreender a manifestação do metal sinfônico como gênero do discurso.

No entanto, antes disso, no segundo capítulo, faremos um levantamento de ferramentas da análise do discurso para compor o conjunto teórico que permitirá identificar o posicionamento do metal sinfônico por intermédio das letras de música de Within Temptation. As ferramentas serão: a interdiscursividade e a formação discursiva, as cenas da enunciação, a enunciação sobreasseverada e o gênero do discurso.

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2. EMERGINDO DA TEXTUALIDADE: FERRAMENTAS DE INVESTIGAÇÃO DE IDEOLOGIAS E IDENTIDADE NO DISCURSO

O objetivo do presente capítulo é apresentar, de maneira sucinta, quatro conceitos da análise do discurso. O primeiro conceito que apresentaremos será a noção de interdiscurso. Neste conceito, verificaremos como se apresenta o primado do interdiscurso e as noções de universo, campo e espaço discursivo.

O segundo conceito que apresentaremos será a cena da enunciação que se desdobra em cenas englobantes, cenas genéricas e as cenografias. O terceiro conceito que apresentaremos será o de enunciados sobreasseverados e seus enquadres. Por fim, o quarto conceito será o de gêneros de discurso, em específico, a relação entre tipo e gênero e as condições para conceber um gênero.

O discurso é, em última análise, uma forma de conceber a linguagem. A ideia da língua enquanto interação está inserida nessa forma de entender a linguagem, também está inserida a ideia de que o discurso reside no processo, no plano da enunciação, enquanto o texto propriamente dito, reside no plano do enunciado, no que está dito. (MAINGUENEAU, 2013).

A noção de discurso desenvolvida por Maingueneau esbarra nas noções disseminadas no âmbito da linguística. No entanto, fora dela podemos observar que ela – a noção de discurso – “entra [...] em ressonância com certas correntes construtivistas, particularmente a sociologia do conhecimento de P.L. Berger e T. Luckmann [...]”. (MAINGUENEAU, 2013, p. 25).

Com isso, pensar no discurso acarreta pensar que ele é uma organização transfrástica, isso quer dizer que, apesar de o discurso ser submetido às regras da língua como toda atividade verbal, sua estrutura não caminha da mesma forma, visto que eles podem aparecer desde as regras genéricas mais instituídas até as regras genéricas mais improvisadas.

O discurso, aproximando da noção de atos de fala, é uma forma de ação sobre alguém com o propósito de alterar alguma situação existente. O discurso também requer que dois ou mais sujeitos interajam, pois “qualquer enunciação supõe a presença de outra instância de enunciação, em relação à qual alguém constrói seu próprio discurso”. (MAINGUENEAU, 2013, p. 26).

O discurso também existe dentro de um contexto. Não no sentido de um enquadramento, mas sim de indicialidade que “permite representar a incompletude radical das palavras, que P á g i n a | 42

devem ser indexadas a uma situação de troca linguística, um contexto particular, para alcançar um sentido que poderia dizer completo”. (MAINGUENEAU, 2013, p. 27).

Maingueneau (2013) afirma que o discurso deve ser assumido por um sujeito que se coloca como fonte de referências pessoais, temporais, espaciais e, ao mesmo tempo, deve indicar que atitude está tomando em relação ao seu coenunciador. Um discurso é também regido por normas. Desse modo, nenhum ato de enunciação pode efetuar-se sem se justificar, há um processo de legitimação inseparável do exercício das palavras e, por fim, ele só adquire sentido no interior de um universo de outros discursos.

2.1. Interdiscurso e formação discursiva

Ao afirmar que o discurso só adquire sentido no interior de um universo de outros discursos, estamos nos referindo ao interdiscurso. Apresentaremos a noção de interdiscurso, a noção do primado do interdiscurso e as noções de universo, campo e espaço discursivo.

Para entender o interdiscurso, deve-se considerar a existência de uma segunda presença chamada de “Outro”. Esta presença não deixa marcas visíveis nos enunciados, no entanto está presente de maneira intrínseca nos discursos. Maingueneau, neste sentido, afirma que “o primado do interdiscurso [se] inscreve nessa perspectiva de uma heterogeneidade constitutiva, que amarra, em uma relação inextricável, o Mesmo do discurso e seu Outro”. (MAINGUENEAU, 2008a, p. 31).

Maingueneau complementa que, para fins de compreensão de como proceder na investigação de um discurso, “a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas um espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos”. (MAINGUENEAU, 2008a, p. 20). Esse espaço de troca evidencia que o discurso está constantemente em uma fronteira com outros discursos. Dessa forma, ele substitui o termo interdiscurso, por considerá-lo vago, pelos termos universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo. Os três termos explicam melhor a relação de coexistência entre os discursos.

Para o autor, o universo discursivo corresponde a um conjunto amplo e genérico, serve apenas como uma espécie de orientador em uma “extensão máxima” daquilo que o discurso pode ter.

Segundo Maingueneau, campo discursivo é o ambiente de concorrência ou de adesão entre formações discursivas, sendo localizado em uma região específica do universo discursivo. P á g i n a | 43

Espaço discursivo é um conjunto menor e mais específico do campo discursivo onde pelo menos duas formações discursivas se estabelecem e mantêm relações privilegiadas:

É no interior do campo discursivo que se constitui um discurso, e levantamos a hipótese de que essa constituição pode deixar-se descrever em termos de operações regulares sobre formações discursivas já existentes. O que não significa, entretanto, que um discurso se constitua da mesma forma com todos os discursos desse campo; e isso em razão de sua evidente heterogeneidade: uma hierarquia instável opõe discursos dominantes e dominados e todos eles não se situam necessariamente no mesmo plano. Não é possível, pois, determinar a priori as modalidades das relações entre as diversas formações discursivas de um campo. É-se então conduzido a isolar, no campo, espaços discursivos, isto é, subconjuntos de formações discursivas que o analista, diante de seu propósito, julga relevante pôr em relação. Tais restrições são resultados diretos de hipóteses fundadas sobre um conhecimento dos textos e um saber histórico, que serão em seguida confirmados ou infirmados quando a pesquisa progredir. (MAINGUENEAU, 2008a, p. 34-35).

O resultado do procedimento acima configura “um sistema no qual a definição da rede semântica que circunscreve a especificidade de um discurso coincide com a definição das relações desse discurso com seu Outro”. (MAINGUENEAU, 2008a, p. 35-36). E, sobre a presença do Outro, é necessário explicar que “é aquela parte de sentido que foi necessário o discurso sacrificar para constituir a própria identidade”. (MAINGUENEAU, 2008a, p. 36-37).

Enquanto cada discurso estabelece os limites das formações discursivas que serão produzidas e os enunciados capazes de serem efetivados, o Outro reúne justamente o que não foi dito. Ele reúne o conjunto de enunciados que foram recusados, formando assim, o território do Outro. Todo enunciado do discurso acaba por rejeitar um enunciado que pertence ao Outro, porém tanto os enunciados do Mesmo quanto do Outro são considerados indissociáveis.

Sendo assim, podemos associar um discurso com uma moeda. Tal objeto deve, necessariamente, ter duas faces que são indissociáveis, constitutivas: a cara e a coroa, em que um lado representa o Mesmo, e a outra face representa o Outro.

Em suma, o interdiscurso é a relação entre o Mesmo e o Outro na constituição do discurso. Considera-se para uma investigação cuidadosa as relações entre universo discursivo – termo mais genérico –, campo discursivo – ambiente de concorrência e adesão entre discursos – e espaço discursivo – local de relações discursivas elevadas. Estes três elementos permitem compreender o posicionamento dos discursos nos mais diversos tipos e gêneros. A seguir, considerações a respeito de formação discursiva. P á g i n a | 44

A noção de formação discursiva toma proporções sólidas quando vários conceitos são discutidos, em especial a noção de unidade tópica e unidade não tópica. A unidade tópica é dividida em unidades territoriais e unidades transversais. Por unidades territoriais, entendem- se os locais pré-projetados para a execução de atividades relacionadas à comunicação, enquanto as unidades transversais conseguem caminhar entre diferentes gêneros discursivos por meio de textos. (MAINGUENEAU, 2008b).

Para o autor, tais locais pré-programados consideram inevitavelmente a relação entre tipos e gêneros de discurso:

Pode-se tratar de tipos de discurso relacionados a certos setores de atividades da sociedade: discurso administrativo, publicitário, político, etc. [...]. Esses tipos englobam gêneros de discurso, entendidos como dispositivos sócio- históricos de comunicação, como instituições de palavras socialmente reconhecidas [...]. Tipos e gêneros de discurso são tomados em uma relação de reciprocidade: o tipo é um agrupamento de gêneros; todo gênero só o é porque pertence a um tipo. (MAINGUENEAU, 2008b, p. 16-17).

Verificamos que o conceito de tipo de discurso é heterogêneo e pode estar ligado a um aparelho institucional ou a um posicionamento:

No primeiro caso, estamos em uma lógica de funcionamento do aparelho. No segundo, em uma ótica de luta ideológica, de delimitação de um território simbólico contra outros posicionamentos; os gêneros aí se agrupam, então, em dois níveis: o nível do posicionamento e o do campo ao qual esse posicionamento concerne. (MAINGUENEAU, 2008b, p. 17).

A divisão da unidade tópica em unidades transversas consegue transitar por diferentes gêneros discursivos. Elas, unidades transversas, ultrapassam a limitação das unidades tópicas que originalmente prestam contas a um ambiente pré-moldado para transição de determinados textos. O que vai caracterizar ou não o pertencimento do texto em relação à sua gênese, ou ao seu tipo, será o registro que poderá se enquadrar em linguístico, funcional ou comunicacional.

Para o autor, os registros linguísticos são considerados a partir de bases enunciativas. Em relação ao registro baseado em critérios funcionais, podemos associar com as seis funções da linguagem desenvolvida por Jakobson.

São elas: a função emotiva que se concentra nas emoções do emissor. Função referencial: dá ênfase ao referente, para transmitir informações objetivas. Função conativa: inclina-se para o receptor de maneira imperativa. Função fática: dá ênfase ao canal em que a mensagem é transmitida. Função poética: concentra-se em como a mensagem é transmitida, P á g i n a | 45

quais sentimentos ou emoções se quer transmitir. Função metalinguística: desenvolve-se de maneira que o código explica o próprio código. E a última forma de registro é a comunicacional, que diz respeito à união de traços linguísticos, funcionais e sociais que têm por finalidade a divulgação. (MAINGUENEAU, 2008b).

Enquanto as unidades tópicas pertencem a um regime que considera certas regularidades estabelecidas pelas práticas verbais, as unidades não tópicas diferenciam por serem “construídas pelos pesquisadores independentemente de fronteiras preestabelecidas” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 18). Elas são diferentes por considerarem os discursos inscritos em um dado momento histórico.

O autor também conceitua a noção de percurso, que completa, junto com a formação discursiva, o conceito de unidades não tópicas. O autor trata do percurso como “desestruturar as unidades instituídas, definindo percursos não esperados: a interpretação apoia-se, assim, sob a atualização de relações insuspeitas no interior do interdiscurso”. (MAINGUENEAU, 2008b, p. 23). Os percursos:

[...] reúnem materiais heterogêneos em torno de um significante de dimensão variável (unidades lexicais, grupos de palavras, frases, fragmentos de textos, quando não textos), não para constituir um conjunto unificado por uma temática, mas para analisar uma circulação, para dar a medida de uma dispersão. Não se trata de procurar o “verdadeiro” sentido de certa expressão, mas, antes de tudo, de explorar uma disseminação. (MAINGUENEAU, 2015, p. 95).

A compreensão de que a formação discursiva é estruturada a partir de unidades não tópicas nos leva a concordar com o autor a respeito do funcionamento do discurso e o papel do analista na interpretação desse funcionamento:

As unidades não tópicas são construídas pelo pesquisador a partir de unidades tópicas. Só pode haver análise do discurso se ela se apoia em unidades tópicas, mas elas não podem dar conta, sozinhas, do funcionamento do discurso, que é atravessado por uma falha constitutiva: o sentido se constrói no interior de fronteiras, mas mobilizando elementos que estão fora delas [...]. Toda enunciação é habitada por outros discursos, por meio dos quais ela se constrói. Os analistas do discurso, assim, são levados a desenvolver não somente abordagens que se apoiam nas fronteiras, mas também abordagens que as subvertem. (MAINGUENEAU, 2015, p. 81).

A noção de formação discursiva é compreendida “como um sistema de restrições invisíveis, transversal às unidades tópicas” (MAINGUENEAU, 2015, p. 81). A autoria do termo pertence a Michel Foucault e Michel Pêcheux. Pêcheux, em especial, teve influência de P á g i n a | 46

Althusser e seus cooperadores no que diz respeito aos termos “formação social” e “formação ideológica”. Podemos interpretar a formação ideológica como:

Um elemento capaz de intervir – como uma força confrontadora a outras forças – na conjuntura ideológica característica de uma formação social, em um momento dado. Cada formação ideológica constitui, desse modo, um conjunto complexo de atitudes e de representações nem “individuais” nem “universais”, mas que se relacionam mais ou menos diretamente com posições de classes em conflito umas em relação às outras. [...] formações ideológicas assim definidas comportam necessariamente, como um de seus componentes, uma ou várias formações discursivas interligadas, que determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma alocução, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa etc.) a partir de uma posição dada em uma conjuntura dada. (PÊCHEUX et al, 1971, p. 102 apud MAINGUENEAU, 2015, p. 81-82).

O autor explica o parêntese aberto e o itálico na citação de Pêcheux:

O parêntese aberto nessa passagem (“articulado sob a forma de...”) pode ser objeto de duas leituras diferentes, segundo se ponha o acento em “o que pode e deve ser dito” ou em “articulado sob a forma de uma alocução...”. Optando pela primeira leitura, os exemplos de gêneros de discurso mencionados entre parênteses (“alocuções”, “sermões”...) servem apenas para evocar, que, no nível mais imediato, os enunciados se apresentam repartidos em diversos gêneros de discurso, mas que a formação discursiva ignora esse recorte. Optando pela segunda leitura, considera-se que a formação discursiva é necessariamente “articulada” por meio de gêneros: é necessário, então, estudar a relação entre a “posição” na luta de classes, de um lado, e a natureza dos gêneros de discurso concernidos, de outro. O destaque em “o que pode e deve ser dito” assim como o conjunto de pressupostos teóricos de Pêcheux, incita a optar pela primeira leitura; a formação discursiva é concebida como um sistema de restrições oculto, transversais às unidades tópicas que são os gêneros [...]. Resulta disso que a formação discursiva não recobre uma realidade homogênea. (MAINGUENEAU, 2015, p. 83).

Dando prosseguimento aos tipos de formação discursiva, o autor também fala sobre duas categorias existentes: formações discursivas de identidade e formações discursivas temáticas. As formações discursivas de identidade são posicionamentos dentro do campo discursivo de entidades tópicas. No entanto, o autor sugere ao analista desenvolver a formação discursiva a partir de um tema:

“[...] que toma habitualmente a forma de uma expressão nominal com artigo definido: “a droga”, “a eutanásia”, “a guerra no Afeganistão” [...]. O objetivo da pesquisa não é estudar o referente correspondente (mesmo que ele seja apenas psicológico: uma representação coletiva), mas – no interior de certos limites espaciais e temporais que convém definir – os enunciados que falam dele. (MAINGUENEAU, 2015, p. 86). P á g i n a | 47

Deixando de lado, portanto, uma análise que construa a formação a partir de uma instância produtora. Dentro dessas formações discursivas temáticas podemos verificar quatro categorias: a primeira é sobre as entidades, que dizem respeito aos humanos ou seres que equivalem ao humano, como uma instituição como o governo, podem ser também figuras prototípicas como um terrorista, ou um indivíduo “dotado de um nome famoso” (MAINGUENEAU, 2015, p. 88), em um dado momento histórico ou em um determinado lugar. Em suma:

[...] trata-se, para a análise de discurso, de apreender as entidades por meio dos funcionamentos discursivos e não como a expressão de realidades que estariam acima, fora da linguagem [...]. Os autores integram nela não apenas gêneros de discurso, mas “discursos” – para nós formações discursivas – [...] em um processo de encaixamento. (MAINGUENEAU, 2015, p. 87-89).

A noção de acontecimentos associa-se à ideia de momento discursivo que se centra não no ator, mas em, por exemplo, casos, catástrofes, crises etc.; a segunda categoria diz respeito aos cenários e ao resultado da relação entre os actantes e suas atividades.

Para Maingueneau, a noção de nó – terceira categoria –, enquanto elemento da formação discursiva, nada mais é do que “um tema que constitui um assunto de debate recorrente em determinada comunidade”. (MAINGUENEAU, 2015, p. 90). A terceira categoria pode ser organizada, em sua maioria, em duas categorias: a das questões e a dos problemas. Sucintamente, a primeira entende que tais questões se projetam como alternativas enquanto a segunda não pode ser reduzida a alternativas. Para diferenciar um nó de um cenário, o autor resolve exemplificar com os enunciados A ameaça do Estado Islâmico e o problema das periferias:

No caso de “a ameaça do Estado Islâmico” focalizam-se os actantes (os adeptos do EI) e sua ação, enquanto no caso de “o problema das periferias” a abordagem se faz preferencialmente em termos de situação na qual estão implicados atores e fatores muito diversos. Mas tudo depende da maneira pela qual o tema é construído nos discursos. É capaz de até mesmo a expressão nominal figurar em várias categorias de temas, em função do processamento que se dê a eles. (MAINGUENEAU, 2015, p. 91).

Verificamos, portanto, que a noção de formação discursiva considera principalmente as unidades não tópicas. Elas correspondem a unidades transversais deixando de lado, mas não excluindo, as configurações pré-programadas da formação discursiva “previsível”, relativamente estável, ou melhor, das unidades tópicas.

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2.2. Cenas de enunciação e enunciados sobreasseverados

Para Maingueneau, falar de cena de enunciação evoca ao mesmo tempo um quadro e um processo. Isso significa que “[o termo cena] é, ao mesmo tempo, o espaço bem delimitado no qual são representadas as peças [...] e as sequências das ações, verbais e não verbais que habitam esse espaço”. (MAINGUENEAU, 2015, p. 117). É nos gêneros que já foram instituídos, ou melhor, nas unidades tópicas que o papel prévio dos interlocutores está mais visível, ressaltando que os indivíduos podem e provavelmente desenvolverão inúmeros papéis durante a vida, uns mais predeterminados, outros mais improvisados.

A cena da enunciação, para o autor, não é um todo fechado que se explica por si só. Ela é uma interação entre três cenas denominadas cena englobante, cena genérica e cenografia. A primeira cena “corresponde à definição mais usual de “tipo de discurso” que resulta do recorte de um setor da atividade social caracterizável por uma rede de gênero de discurso”. (MAINGUENEAU, 2015, p. 118).

A segunda, denominada cena genérica, diz respeito “a realidade tangível, imediata, são os gêneros de discurso. As cenas genéricas funcionam como normas que suscitam expectativas”. (MAINGUENEAU, 2015, p. 120). E todo gênero está vinculado a alguma finalidade e é requerido que os locutores possam identificar tal finalidade “para poder regular as estratégias de produção e interpretação dos enunciados. (MAINGUENEAU, 2015, p. 120- 121). Os gêneros também requerem papéis para os parceiros em que direitos e deveres estabelecem as competências específicas de atuação de cada um. Além disso, é requerido um lugar, seja real, virtual, imaginário etc.

Também se exigem mais quatro elementos: o primeiro é “um modo de inscrição na temporalidade, que atua em diversos eixos: a periodicidade, ou a singularidade das enunciações, sua duração previsível, sua continuidade, seu prazo de validade”. (MAINGUENEAU, 2015, p. 122). O segundo diz respeito ao suporte no qual é considerado indissociável do modo de existência material, o terceiro é sobre a composição que permite entender seu modo de encadeamento enquanto gênero e o quarto diz respeito a um repertório relativamente extenso das possiblidades linguísticas dentro do gênero determinado.

O terceiro e último componente da cena da enunciação é a cenografia:

A noção de cenografia se apoia na ideia de que o enunciador, por meio da enunciação, organiza a situação a partir da qual pretende enunciar. P á g i n a | 49

Todo discurso, por seu próprio desenvolvimento, pretende, de fato, suscitar adesão dos destinatários instaurando a cenografia que o legitima. Esta é imposta logo de início, mas deve ser legitimada por meio da própria enunciação. Não é simplesmente um cenário; ela legitima um enunciado que, em troca, deve legitimá-la, deve estabelecer que essa cenografia da qual a fala vem é precisamente a cenografia requerida para enunciar como convém num ou noutro gênero do discurso. (MAINGUENEAU, 2015, p. 123).

Em outras palavras, a cenografia é um modo particular de encenação da cena genérica. A cenografia só pode se desenvolver plenamente caso o locutor tenha em mãos o poder de controle sobre o desenvolvimento. Tal controle permite perceber que a construção da cenografia se apresenta em duas modalidades distintas: a exógena, que podemos interpretar como o empréstimo de outra cena genérica para compor o seu próprio; e a endógena, que resulta da não superposição de outra cena genérica. (MAINGUENEAU, 2015).

Podemos ainda incluir os modos de genericidade que correspondem aos modos como as cenografias se comportam dentro de um gênero: os tipos são instituídos de modo um ao quatro. Abaixo faremos uma tabela para explicar como se comportam os gêneros instituídos em seus modos:

Modo 1 Quase não sofrem alterações em sua composição genérica e cenográfica. Isso significa que a possibilidade de alteração se enquadra “em fórmulas e esquemas composicionais preestabelecidos”. (MAINGUENEAU, 2015, p. 126). Modo 2 Os gêneros instituídos neste segundo modo correspondem aos gêneros do dia a dia que necessitam da criação de uma cenografia endógena inédita cada vez que são evocados. Por exemplo: o gênero jornal televisivo deve produzir uma cenografia a cada dia. Modo 3 Os gêneros aqui são reconhecíveis, porém não se sabe qual cenografia será enunciada porque o próprio gênero necessita de uma manifestação que tome emprestado outra cena genérica. Por exemplo: o comercial de um sabão em pó pode ter diferentes encenações para a mesma finalidade: vender a imagem de um produto eficiente. As encenações podem ser mais pessoais, retratando o cotidiano de uma família. Podem ser também mais técnicas, com especificações sobre o uso do produto, dados estatísticos de eficiência em comparação com outras marcas. Modo 4 São os gêneros que estão associados a um posicionamento que o autor chama de etiqueta. Ela “dá sentido à atividade discursiva, especificando a que título o texto P á g i n a | 50

deve ser recebido pelo destinatário”. (MAINGUENEAU, 2015, p. 127). Meditação, tratado e confissão são exemplos de etiquetas.

Propomos também apresentar a noção de enunciados sobreasseverados. Inicialmente é necessário diferenciar as noções de sobreasseveração e aforização, visto que o autor trabalha com as duas noções de maneira conjunta, porém suas significações e seus usos são distintos. Segundo Maingueneau (2013), a sobreasseveração permite que uma sequência seja destacada em um texto, seja porque essa sequência tenha um valor generalizante, seja porque ela esteja em uma posição acentuada ou estratégica, ou ainda porque ela esteja enquadrada em um destacamento forte (enunciados destacados e separados do texto) ou destacamento fraco (encontra-se no paratexto).

A aforização, no entanto, torna o enunciado autônomo do texto pelo qual ela perpassa. O aforizador, ou seja, aquele que enuncia uma aforização, não se dirige para um interlocutor imediato, sua postura é de enunciar a uma espécie de auditório universal. É o caso, por exemplo, dos provérbios, dos ditados, dos slogans e das máximas. Ainda se considera que:

A aforização implica a figura de um enunciador que não somente diz, mas que mostra que diz aquilo que diz. Ele representa a força de uma enunciação que engaja a responsabilidade do locutor, uma tomada de posição exemplar diante do mundo. O paradoxo da aforização é que ela implica uma descontextualização do enunciado aforizado, que só tem sentido no novo contexto onde ele é colocado. (MAINGUENEAU, 2013, p. 236).

Ainda sobre os enunciados sobreasseverados, sabemos que são destacáveis, potencialmente candidatos a se tornarem enunciados aforizantes. Por esta razão, Maingueneau (2014) apresenta os enquadres informacional, testemunhal, acional, histórico, sapiencial, moralista e hermenêutico e os regimes de atualidade e de memória. Os regimes e enquadres de enunciados permitem projetar a interpretação orientando, dessa forma, as decisões de quem interpreta um enunciado destacado.

Os enquadres informacional, testemunhal e acional fazem parte do regime de atualidade enquanto, dentro do regime de memória, verificamos a presença dos enquadres histórico e sapiencial. Dentro deste último, temos o desdobramento em moralista e hermenêutico.

Apresentaremos de maneira sucinta qual a função de cada um deles dentro dos regimes. O enquadre informacional tem o objetivo de fazer saber algum dado que é anunciado por um ponto de vista do enunciador. Já o enquadre testemunhal é motivo de cuidado, pois pode ser confundido com o informacional: P á g i n a | 51

O enquadre “informacional” frequentemente se mistura a um enquadramento que podemos chamar testemunhal que tende a reduzir, quando não anular, a dimensão informacional em favor da expressão de uma convicção, de uma emoção, de uma experiência. Isso pode se manifestar por um apagamento enunciativo que podemos qualificar de sentencioso quanto por um superinvestimento subjetivo personalizante. (MAINGUENEAU, 2014, p. 121).

O enquadre acional, por sua vez, também deve ser tratado com cautela. A relação entre este e os outros dois enquadramentos é passível de equívocos, em suma, o enquadre acional possui uma dimensão informacional e testemunhal. No entanto, a característica singular deste enquadramento é a ação responsiva que o interlocutor será convocado a realizar. De alguma maneira será gerado um ato devido à presença do enunciado aforizado. E, como oposição ao regime de atualidade onde residem os três enquadres apresentados acima, o autor apresenta o regime de memória:

A esse regime de atualidade podemos opor os enquadramentos que concernem a um regime que pode ser chamado de memorial, em que a aforização se inscreve em uma memória coletiva de longa duração. As aforizações relacionadas ao regime memorial são os ditos, referentes a um autor identificado e inscritos em um thesaurus. (MAINGUENEAU, 2014, p. 124).

Um dos componentes do regime de memória é o enquadre histórico. Nele “a aforização é inseparável de uma narrativa, é uma parte e um traço de um acontecimento que se perpetua como singular e exemplar”. (MAINGUENEAU, 2014, p. 124). Outro componente do regime de memória é o enquadramento sapiencial que:

Não se inscreve a aforização em um acontecimento, mas a apreende como ponto de vista de um sujeito privilegiado. Esse enquadramento sapiencial pode se manifestar como enquadramento moralista ou como enquadramento hermenêutico. (MAINGUENEAU, 2014, p. 124). Isso significa que a aforização tem um valor apreciativo de um sujeito sobre algum acontecimento, ao contrário do enquadre histórico que se inscreve em um fato, acontecimento. O primeiro desdobramento do enquadramento sapiencial, o enquadre moralista, tem o objetivo de enunciar um julgamento, logo “a aforização enuncia julgamentos – de bom senso ou paradoxais – sobre a ordem do mundo”. (MAINGUENEAU, 2014, p. 124).

Enquanto que no enquadre hermenêutico:

O destinatário explora ao máximo as potencialidades da enunciação aforizante. Ele se obriga a identificar um sentido oculto, uma “mensagem” postulada como importante para o intérprete. Como em toda situação hermenêutica, o enunciado reserva um sentido que não pode ser dado imediatamente, que exige um verdadeiro trabalho de interpretação. À P á g i n a | 52

autoridade do aforizador corresponde, assim, a competência do destinatário, sobretudo quando ambos são membros de uma mesma comunidade restrita, que desenvolve procedimentos de interpretação de um thesaurus. Este é particularmente o caso nos domínios religioso, literário, filosófico.... Quer se trate de uma aforização destacada do Evangelho, do Corão, da Odisseia, das obras de Platão ou de Shakespeare, o essencial é relacioná-la à totalidade textual de que ela participa, que tira sua autoridade do fato de ter um autor inspirado que está além do comum dos mortais. (MAINGUENEAU, 2014, p. 125). Por fim, o autor acrescenta de maneira geral considerações a respeito dos enquadres:

A esses diferentes enquadramentos correspondem diferentes figuras de aforizador: ao enquadre informacional se associado ao especialista, ao enquadre testemunhal, o que podemos chamar de “testemunha”, ao enquadre acional, o “ator”, ao enquadre histórico, o “personagem”, ao enquadramento sapiencial, o “sábio”. Cada uma dessas figuras implica um fundo sobre o qual ela se sobressai: uma comunidade de especialistas ligada a uma disciplina (o especialista), o conjunto de uma experiência (a testemunha), uma certa conjuntura (o ator), um acontecimento histórico (o personagem), uma visão de mundo (o Sábio). (MAINGUENEAU, 2014, p. 128).

2.3. Gênero do discurso

Maingueneau (2013, p. 65) afirma que

Todo texto pertence a uma categoria de discurso, a um gênero de discurso. Os locutores dispõem de uma infinidade de termos para categorizar a imensa variedade dos textos produzidos em uma sociedade: “conversa”, “manual”, “jornal” [...].

Tal afirmação implica em algumas considerações que o próprio autor levanta no decorrer do texto. A primeira delas é que existem nomenclaturas em grande quantidade para definir os textos e que a escolha desta ou daquela nomenclatura está alicerçada em, por exemplo, um tipo de conteúdo, como um romance sentimental que corresponde a conteúdo sentimental, narrativa. Por ser heterogêneo, o alicerce pode também corresponder a um modo de organização, como o jornal, quando diz respeito ao seu modo de organização periódico (diário, semanal, quinzenal). (MAINGUENEAU, 2013).

A segunda consideração é que se tem a possibilidade de entender os alicerces por tipologias. Elas podem, a princípio, ser categorias comunicacionais e obter duas classificações: funções da linguagem ou funções sociais:

A tipologia das “funções da linguagem” de R. Jakobson (funções “referencial, “emotiva”, “conativa”, “fática”, “metalinguística”, “poética”) é a mais célebre dessas classificações de ordem comunicacional. Os discursos são classificados de acordo com a função predominante. Por exemplo, nos textos em que a P á g i n a | 53

função conativa predomina (folhetos publicitários, instruções de uso, nos textos, normas...), o locutor busca agir sobre o outro; no caso das gramáticas ou dos dicionários, dominaria a função “metalinguística” (quando a língua toma a si mesma por objeto) etc. (MAINGUENEAU, 2013, p. 66).

Esta segunda consideração é percebida por seu caráter alicerçado na história, enquanto aquela não necessariamente está fixada em um dado momento. Logo, os gêneros de discurso são “dispositivos de comunicação que só podem aparecer quando certas condições sócio- históricas estão presentes” (MAINGUENEAU, 2013, p. 67) e estão intimamente ligados às tipologias de situação de comunicação. As tipologias de gêneros do discurso divergem das tipologias comunicacionais por serem historicamente variáveis.

Pode-se ainda entender a classificação de um texto alicerçado na história pelo seu lugar institucional, como uma escola, uma empresa ou qualquer instituição nesse sentido. Pode-se entender a classificação também pelo estatuto dos interactantes como um discurso entre criança e adultos ou pela natureza ideológica, como o discurso democrata, o discurso socialista etc. Acrescenta-se a presença das tipologias enunciativas – presença da dupla eu-você-aqui-agora da enunciação – e a tipologia discursiva:

As tipologias enunciativas estão muito distantes da inscrição social dos enunciados. Por sua vez, as tipologias comunicacionais ou situacionais não levam em consideração os fundamentos linguísticos dos textos. Para a análise do discurso, o ideal seria poder apoiar-se também sobre as tipologias que não separassem, por um lado, as caracterizações ligadas às funções, aos tipos e aos gêneros de discurso e, por outro, as características enunciativas. (MAINGUENEAU, 2013, p. 69).

O autor entende que ter vários gêneros do discurso como conhecimento armazenado significa ter uma economia cognitiva expressiva para, por exemplo, antecipar adequadamente o que o produtor do gênero quer. Isso instaura que um gênero deve ter uma finalidade reconhecida. Os interlocutores, lugar e momento têm que ser legitimados para o uso daquele gênero. Sobre isso sabe-se que:

Graças ao nosso conhecimento dos gêneros do discurso, não precisamos prestar uma atenção constante a todos os detalhes de todos os enunciados que ocorrem à nossa volta. Em um instante somos capazes de identificar um dado enunciado como sendo um folheto publicitário ou como uma fatura e, então podemos nos concentrar apenas em um número reduzido de elementos. (MAINGUENEAU, 2013, p. 70).

Para assegurar a comunicação, é necessário que ambos os participantes da interação partilhem da competência genérica, ou seja, eles devem ter, ainda que superficial, noção de qual gênero deve ser usado para que as regras e os direitos estabelecidos não sejam transgredidos. P á g i n a | 54

Usar o gênero convocação de reunião de pais, por exemplo, para um aluno de pós-graduação seria algo inusitado e sem legitimidade devido ao contexto, seria ainda mais inusitado se, caso a reunião fosse legítima, ela não acontecesse dentro de uma sala de aula ou ambiente educacional.

A diferença entre tipo de discurso e gênero de discurso é que aquele engloba setores de atividade social enquanto este é uma manifestação específica dentro de determinado recorte. Por exemplo:

[...] o “talk-show” constitui um gênero de discurso no interior do tipo de discurso “televisivo” que, por sua vez, faz parte de um conjunto mais vasto, o tipo de discurso “midiático”, em que figurariam também o tipo de discurso radiofônico e o da imprensa escrita. (MAINGUENEAU, 2013, p. 68).

Para o autor, um gênero pode ser concebido por comportamentos estereotipados que se consolidam aos poucos - chamados de rotinas - ou por protótipos para serem seguidos, estes são chamados de obras. Porém, não é somente pela forma que se pode garantir o sucesso de determinado gênero do discurso. É necessário que haja uma finalidade reconhecida entre os sujeitos, é necessário também que, além da finalidade, os sujeitos saibam como desempenhar os seus respectivos papéis.

Legitimar os lugares e os momentos da enunciação também ajuda a estabilizar a relação entre os interlocutores. Um gênero do discurso também está inscrito em uma temporalidade: pode se tratar de um período, por exemplo, um culto religioso, pode se tratar de uma duração de encadeamento “a competência genérica indica aproximadamente qual é a duração de realização de um gênero de discurso. Certos gêneros implicam mesmo a possibilidade de várias durações”. (MAINGUENEAU, 2013, p. 74).

A duração pode ter a ver com a continuidade em encadeamento ou validade presumida: a primeira, em um gênero piada, por exemplo, exige que seja enunciada de uma só vez. A segunda diz respeito ao tempo de legitimidade do gênero. Um texto religioso como a bíblia, por exemplo, propõe-se em ser atemporal, com validade ilimitada, enquanto um jornal pode ser diário, semanal etc.

Além disso, o suporte material – a mídia por onde o gênero é veiculado –, a organização textual e os recursos linguísticos específicos para cada gênero. Estes recursos, se necessários, também compõem elementos de legitimidade e previsibilidade para o sucesso comunicativo. Por fim, o autor expõe mais algumas considerações a respeito da noção de gênero de discurso: P á g i n a | 55

Dizer que o gênero de discurso é um contrato significa afirmar que ele é fundamentalmente cooperativo e regido por normas [...]. Todo gênero de discurso exige daqueles que dele participam que aceitem um certo número de regras mutuamente conhecidas e as sanções previstas para quem as transgredir. Evidentemente, esse “contrato” não necessita ser objeto de um acordo explícito. Falar de papel é insistir no fato de que cada gênero do discurso implica os parceiros sob a ótica de uma condição determinada e não de todas as suas determinações possíveis [...]. Falar de jogo é, de alguma forma, cruzar as metáforas do contrato com as do teatro, enfatizando simultaneamente as regras implicadas na participação em um gênero de discurso e sua dimensão teatral. (MAINGUENEAU, 2013, p. 78-80).

A aplicação dos conceitos discutidos neste capítulo constará no próximo capítulo. O capítulo três será composto do histórico do discurso dos três primeiro discos de estúdio da banda Within Temptation, análise das letras Our solemn hour, Iron e Covered by roses e o percurso discursivo dos três últimos discos de estúdio em questão: The heart of everything (2007), The Unforgiving (2011) e Hydra (2014).

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3. EMERGINDO DAS TREVAS: ANÁLISE DO DISCURSO DO GÊNERO METAL SINFÔNICO EM WITHIN TEMPTATION

O título deste capítulo antecipa qual é a hipótese com a qual trabalharemos no decorrer das análises dos álbuns: acreditamos que o percurso discursivo do gênero metal sinfônico vai das trevas para a luz, movimentando os interdiscursos que o compõem entre os territórios periférico e central. Conforme a produção de cada novo disco, vemos de maneira mais palpável a possibilidade de sair das trevas, ou seja, sair da zona de discurso na qual os enunciados são carregados com valores semânticos disfóricos.

Emergir das trevas significa, em um primeiro momento, conseguir alterar o discurso das letras do metal sinfônico de maneira que a centralidade dos elementos disfóricos seja diluída e deixe em aberto um espaço para que outro interdiscurso, que convive conflituosamente ou não, tome o lugar e passe a manejar a estrutura de produção de discurso.

Primeiramente, levantamos informações referentes aos três primeiros discos da banda. Traçamos um percurso discursivo por meio dos discos de estúdio denominados Enter (1997), Mother Earth (2000) e (2004). O percurso é composto de uma breve análise das capas dos álbuns de estúdio e de uma avaliação das letras de maneira geral com a finalidade de apresentar o posicionamento e revelar de que forma a banda imerge nas trevas.

Em seguida, na primeira subseção, apresentamos a análise da letra Our solemn hour, investigando a interdiscursividade, a formação discursiva, as cenas da enunciação e a enunciação sobreasseverada. Na segunda e na terceira subseções, analisamos a letra Iron e Covered by roses sob os mesmos critérios da primeira subseção.

Porém, antes do início da análise, situamos de maneira breve o percurso da banda. Within Temptation iniciou sua jornada de discos de estúdio com o álbum Enter (1997) e a música de mesmo nome carrega em si toda a força que permitiu ao metal sinfônico crescer. Na letra, há a relação entre um ser do sexo masculino – como expressão de força, domínio, brutalidade, um papel que poderíamos chamar, a fim de comparação, de fera – e um ser feminino – com a vocalista –, como expressão de delicadeza, de entonação aguda e de expressão de sentimentos, papel que, para fins de comparação, podemos chamar de bela. Podemos, enfim, entender a relação de oposição entre dois seres: bela e fera, medindo, respectivamente, suas forças guturais e agudas. P á g i n a | 57

O cenário da capa do álbum Enter (1997) (vide anexo p. 106) que é possível referir, mediante a combinação da letra e da capa de álbum, é um ambiente arcaico, gótico e barroco. A capa do álbum reforça a ideia de tal ambiente, pois há uma donzela que aparece desprotegida e desacordada com a mão sobre o peito esquerdo e em meio a flores, que remetem à delicadeza, à fragilidade, a um cenário de paz ou de descanso eterno, interpretado como a morte, pois a fragilidade se apresenta, muitas vezes, no papel da vida, no papel feminino de conceber um novo ser enquanto que a morte se apresenta como eterna, sombria e viril.

É a letra de Enter e o álbum como um todo que disparam o gatilho para surgir o metal sinfônico na sua expressão atual. Desde o início, o jogo entre elementos opostos configurou uma maneira particular de trabalhar o metal sinfônico: abraçar a escuridão e/ou combatê-la. O metal sinfônico se apropria, a princípio, do mergulho profundo e exaustivo nos oceanos da escuridão.

Ao usar a palavra oceano, nós a usamos no sentido de grandeza e imensidão. Não se trata de um exagero, trata-se de mais um elemento recorrente que confere poder à banda para enunciar o que deseja. Neste oceano ainda habita: o uso de elementos orquestrais, em específico o coral de vozes em harmonia, que tende a causar no ouvinte um efeito de grandiosidade. Ao mesmo tempo, causa o efeito de pertencimento, visto que coros de hinos, em geral, de futebol ou nacionais, por exemplo, fazem com que o ouvinte se prontifique a juntar-se às vozes.

A banda ganhou notoriedade pela voz aguda e estremecedora da vocalista, pelo efeito orquestral de vozes e pelos instrumentos utilizados para enunciar letras disfóricas, porém o fez com um sutil “pingo” de euforia, traduzida como uma esperança remota que aparece em meio à grande turbulência.

No segundo disco (vide anexo p. 107), Mother Earth (2000), é possível verificar que o discurso é voltado para enunciar a potência da mãe-terra em oposição à suposta força que o homem tem. O poder da vida está para a mãe-natureza, que é gentil, porém cruel e destrutiva enquanto que a morte está para o ser humano, que é egoísta, frágil e tenta agredir a portadora da vida. O discurso do disco de estúdio busca conscientizar os ouvintes do uso dos recursos naturais e, acima de tudo, busca mostrar que devemos ter respeito com a natureza, pois ela se revela destrutível e impiedosa caso não adotemos posturas de conservação e preservação.

É possível verificar que nas letras das músicas Ice Queen e Mother Earth a natureza tem um poder que deve ser temido e exaltado. Podemos, por fim, falar que há um discurso que busca P á g i n a | 58

corpos dóceis por meio de uma possível ameaça de punição por meio de, por exemplo, furacões e tsunamis.

O reconhecimento da proximidade do segundo disco com o discurso religioso pagão Wicca é fundamental, pois para os praticantes desta filosofia a presença e a harmonia com a mãe natureza permite a bruxos e bruxas evoluírem espiritualmente e encontrarem os significados até então ocultos referentes à existência.

Além disso, os wiccanianos reconhecem que a magia e a sabedoria são forças vitais que podem ser controladas para o bem. Para alcançar a magia e a sabedoria, é necessário estar conectado à força fundadora da vida que é a “Mother Earth”. Nas letras do segundo disco, observamos de forma nítida alguns dos fundamentos da Wicca, como na letra Dark Wings, na qual há o uso da força interior e da magia para alcançar um objetivo no trecho “a mágica e a força do meu poder estavam além dos meus sonhos mais selvagens”10.

Os interdiscursos presentes no disco Mother Earth são bem mais trabalhados do que no primeiro. Os motivos pelos quais isso acontece são: a quantidade muito maior de músicas, o investimento em produzir um disco de estúdio que oferecesse um impacto maior que o anterior e a temática citada acima que atraiu um público maior. É necessário perceber que a busca pela ascensão e pela tomada de poder fez com que a banda utilizasse recursos já existentes – interdiscursos – e construísse verdades.

Uma das verdades construídas foi que a banda por si só era algo inédito, algo pouco conhecido chamado metal sinfônico e, com isso, ela despertou a curiosidade de muitos fãs de vertentes diversas do metal pesado e do Rock ´n Roll. Mesmo depois de oito anos de lançamento do segundo disco, ainda era comum para muitos jovens ter acesso à produção da banda Within Temptation por indicação de algum amigo que comentava sobre a novidade musical.

Os dois primeiros discos estão situados historicamente em 1997 e 2000 respectivamente, e nos colocam também em uma curva ascendente de outro gênero musical que galga rapidamente no gosto popular: o rock gótico. A banda surgiu no final dos anos 90 e assumiu o lugar de representante do gênero rock gótico, e suas semelhanças com o metal sinfônico eram evidentes.

10 Tradução nossa. No original em Inglês: “The magic and the strength of my power it was beyond my wildest dreams”. P á g i n a | 59

Aos ouvidos pouco atentos, a diferença entre o rock gótico e o metal sinfônico é nula, pois ambos adotam expressões negativas do discurso religioso e enunciam conteúdos disfóricos. Contudo, se observarmos atentamente, o discurso no rock gótico imerge nas trevas, ou seja, imerge em enunciados disfóricos, enquanto o discurso metal sinfônico tem em sua genericidade outros interdiscursos presentes como a presença do discurso mítico como ferramenta moralizante. Considera-se também que em vez de apenas imergir nas trevas, o metal sinfônico consegue adotar uma postura em que é possível sair das entranhas da escuridão e ter esperança.

No contexto do rock gótico há expressões visuais negativas. O uso majoritário de cores escuras nos figurinos, nas capas de álbum e nos videoclipes com a finalidade de representar diversos sentimentos e estados psicológicos como a depressão, a escuridão, a confusão mental, a autodepreciação, o pesar, a vingança, a solidão e o desejo de morte.

Por vezes, o culto às forças malignas aparece e compõe o cenário com escolhas lexicais disfóricas, exemplo disso é o uso de instrumentos mais rápidos e pesados para esgotamentos sentimental do enunciatário na letra e na melodia de Going under, do grupo Evanescence. Há também o uso dos instrumentos e vocal mais lentos para quando se tratar de reflexão interior, introspecção, a busca por soluções. Por exemplo, a música Breath no more (vide anexo p. 104) em que há um jogo entre duas palavras breath e bleed, traduzidos respectivamente como respirar e sangrar, onde a relação entre vida e morte aparece de maneira que a morte se sobressai.

A banda liderada por Sharon den Adel entendeu o momento histórico de produção do rock gótico que era identificado por letras com tom mais pesado e pessimista e decidiu produzir seu terceiro álbum. O terceiro disco da banda Within Temptation é permeado por um clima altamente introspectivo. Por introspecção entendemos que é a inclinação à solidão e avaliação de si próprio. A autoavaliação nas letras acontece por diversos problemas sofridos, seja amoroso ou de ordem interna, ou melhor, os conflitos existenciais.

O álbum The Silent Force (2004) (vide anexo p. 108) apresenta introspecção em diversas letras. See who I am, It´s the fear e revelam o interior que precisa ser conhecido, avaliado e transformado. Há elementos negativos que existem neste interior e que precisam ser revelados e combatidos, porém como se trata de um clima de opinião onde a carga semântica negativa tem mais valia seria incoerente apresentar “finais felizes” ou soluções. Caso P á g i n a | 60

houvesse elementos eufóricos, eles deveriam ficar em uma zona periférica e com pouca força discursiva para encarar os elementos disfóricos.

Em suma, a capa do primeiro disco revela um ambiente arcaico em que uma donzela está desacordada em meio às flores como um sinal de extrema fragilidade, as letras de Enter retratam bem o posicionamento conflituoso e antagônico entre um ser agressivo e um ser frágil que este está próximo e em consonância com a natureza, enquanto aquele representa a agressividade destrutiva, aniquilador da vida.

A capa do segundo disco também coloca a vocalista da banda de modo central. Só que desta vez parte para um lado mais mítico: a figura feminina com asas e vestimentas brancas que sugerem pureza e poder divino – como um anjo ou um elfo - com as duas mãos em posição de entrega de algo imaterial e ao redor dela há um fundo esverdeado.

A cor verde representa a natureza no que se refere à flora. Há também escrituras na cor branca que parecem sair do objeto reluzente que a mãe natureza carrega. Acreditamos que a representação da mãe natureza na capa é a mesma apresentada nas músicas, pois o verbal e o visual ajudam a completar o sentido do discurso produzido.

A capa do terceiro disco é diferente das duas primeiras. Nesta temos um aglomerado de luzes dentro de uma esfera de proteção, ao redor da esfera há uma espécie de arabesco que se aproxima da luz e consegue romper as camadas de proteção e a cor predominante é o preto. A esfera se assemelha à bola de cristal.

Tal elemento faz parte do contexto de histórias de bruxas, elas utilizam a esfera para atividades sobrenaturais como adivinhação e conselhos. O título do álbum, traduzido livremente como “a força silenciosa”, sugere que a dimensão do conteúdo é introspectiva e, em complemento com as cores escuras, podemos afirmar que o conteúdo do disco é subjetivo e disfórico, no âmbito do pessimismo.

A relevância de entender o trajeto do primeiro ao terceiro disco e suas respectivas capas se justifica pela necessidade de entender que os interdiscursos presentes nos três primeiros discos de estúdio estão presentes nos três outros que serão analisados. Na próxima seção, analisaremos a letra Our solemn hour verificando os interdiscursos, a formação discursiva, as cenas de enunciação e os enunciados sobreasseverados no decorrer dos versos, considerando ainda elementos não verbais presentes na constituição de sentido. P á g i n a | 61

3.1. Análise da letra Our solemn hour

A primeira música que analisaremos segue abaixo traduzida, conforme informado na introdução:

Nossa hora solene

1. Sanctus Espiritus, nos salve da nossa hora solene

2. Sanctus Espiritus, a insanidade é tudo o que nos rodeia

3. Sanctus Espiritus! Sanctus Espiritus! Sanctus Espiritus!

4. Na minha hora mais sombria eu não pude prever

5. Que o curso mudaria tão rápido dessa forma

6. Não posso acreditar nos meus olhos

7. Como você pode ser tão cego?

8. É a natureza cruel, sem compaixão por dentro?

9. O tempo continua passando e nós não aprendemos

10. Então agora, no fim, o que nós conquistamos?

11. Sanctus Espiritus, nos salve da nossa hora solene

12. Sanctus Espiritus, insanidade é tudo o que nos rodeia

13. Sanctus Espiritus, é isso que nós merecemos?

14. Podemos nos libertar das correntes da agonia eterna?

15. São eles próprios a culpar, a miséria, a dor?

16. Nós não deixamos para trás, permitimos isso e deixamos crescer?

17. Se nós não podemos conter a besta que duela internamente

18. Ela encontrará seu jeito de alguma forma, em algum lugar no tempo

19. Lembraremos de todo o sofrimento?

20. Porque se nós falharmos será tudo em vão

21. Sanctus Espiritus, nos salve da nossa hora solene

22. Sanctus Espiritus, a insanidade é tudo o que nos rodeia P á g i n a | 62

23. Sanctus Espiritus, é isso que nós merecemos

24. Podemos nos libertar das correntes da agonia eterna?

25. Sanctus Espiritus! Sanctus Espiritus!

26. Sanctus Espiritus, nos salve da nossa hora solene

27. Sanctus Espiritus, a insanidade é tudo o que nos rodeia

28. Sanctus Espiritus, é isso que nós merecemos

29. Podemos nos libertar das correntes da agonia eterna?

Uma sobreasseveração acontece pela destacabilidade de um enunciado que pode ou não considerar o que precede e o que antecede para a compreensão do sentido. Retomamos este conceito porque a primeira manifestação linguística na letra é sobreasseverada: Sanctus Espiritus, uma expressão em língua latina que traduzida significa Espírito Santo.

Preservamos a expressão em latim porque no texto original causou um impacto nos ouvintes – afinal a finalidade de destacar é chamar a atenção. Se fizermos uma rápida busca na internet, é possível encontrar alguns fóruns onde fãs, que não tem tradição cristã e não são de línguas derivadas do latim, perguntam o que significa a expressão Sanctus Espiritus.

No verso 1, o aforizador chama o Espírito Santo para livrar o “nós” – que podemos interpretar como “todos nós seres humanos” – da hora solene, que interpretamos como a hora da morte. A hora na qual o ser humano se desliga do mundo carnal e passa para outro plano desconhecido, um plano espiritual.

No verso 2, o aforizador invoca novamente o Espírito Santo para relatar a agonia que está sofrendo e para falar que está cercado pela insanidade. A noção de insanidade está ligada, de maneira oposta, à da razão. O aforizador afirma que há falta de razão, ou seja, a falta de capacidade para resolver problemas de forma coerente, ponderada, consciente e considerando o eu e o outro nas inter-relações. Já no verso três, presenciamos a repetição de Sanctus Espiritus três vezes e de forma pausada por meio de um coral representando a invocação máxima. O número três é simbólico: representa o pai, Deus, o filho, Jesus Cristo e o Espírito Santo.

A ideia do latim como língua de poder, ou seja, uma língua que possibilita modificar a realidade em volta, como tramitações em relações comercias ou simbólicas, está presente em letras como Whisper do grupo Evanescence na qual temos o trecho Servantis a periculum, P á g i n a | 63

servantis a maleficum11 e Fairy Tale da banda brasileira Shaman na qual vemos também, logo de início, um coro feminino cantando Iesum, salvator mundi Tue famuli subveni Quos pretioso sanguine quos pretioso sanguine Redemisti12. A língua latina foi escolhida justamente por sua historicidade e, em específico, acredita-se que orar em latim evoca forças sobrenaturais mais antigas dotadas de grande domínio espiritual.

Portanto, temos nos três enunciados em latim, um fenômeno de sobreasseveração de enquadramento testemunhal sentencioso, ou seja, os enunciados destacados reduzem a função de informar para ressaltar uma convicção religiosa – a expressão de fé – usando sempre o “nós” em vez do “eu” para garantir a generalização e consolidar o afastamento da possibilidade de ser uma expressão subjetiva personalizante.

Além disso, as sobreasseverações também estão em uma relação interdiscursiva, pois as manifestações enunciadas partilham da ideia de que a presença da língua latina representa competência aos enunciados. A manifestação destacada pode acontecer no início para prender a atenção do ouvinte ou no final das músicas para desencadear uma surpresa, uma quebra positiva na linearidade da letra.

Entre os versos 4 e 6, é possível observar uma manifestação pessoal por meio do uso do “minha”, “eu”, “pude” “posso” e “meus”. Nesta manifestação pessoal, o enunciador quer dizer que houve uma instabilidade repentina a qual não pode antecipar. Essa instabilidade chamada de hora mais sombria é a hora da morte. É a hora em que o ser humano não tem controle algum sobre o próximo passo e está sujeito ao desconhecido.

O uso dos pronomes possessivos e dos verbos conjugados na primeira pessoa do singular não anulam o efeito de sentido de coletividade. O que há é uma breve substituição de “nós” por um “eu coletivo”, ou seja, “todos nós seres humanos” é substituído discursivamente pela “humanidade”, uma palavra que representa um grupo. Nos versos 7 e 8, ele questiona, respectivamente, como tal situação pode ter acontecido com a humanidade e se a falta de amor foi o gatilho para isso acontecer. Essa tal situação é a decadência do eu coletivo.

Acreditamos que a falta de amor ao próximo seja outro motivo da instabilidade do enunciador, pois a natureza parece egoísta, centrada nos desejos do eu, levando assim o sujeito

11 Nos salve do perigo, nos salve do mal. Tradução nossa. 12 Jesus, salvador do mundo Teus servos pedem-Te ajuda Aqueles a quem com teu precioso sangue A quem com teu precioso sangue Redimiste. Tradução nossa. P á g i n a | 64

a se exaltar, procurar triunfos e não os partilhar. Por se tratar de um interdiscurso religioso atrelado à situação de ausência de estabilidade do enunciador, recorremos novamente à bíblia e verificamos que o homem tem por dever o seguinte: “amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força [...] Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes”. (Mc 12, 30- 31).

Vemos, então, que a hora solene ganha reforço no significado da presença da morte, pois o ser humano está preocupado com o engrandecimento do eu. A morte representa, em última análise, um sinal de limitação para a humanidade. Podemos interpretar que o engrandecimento do eu por mais que seja bom para alimentar o ego, é mau para o espírito, conflituoso para a razão, não traz benefícios. Tanto é maléfico que o verso seguinte, verso 9, diz que a lição não foi aprendida e no verso 10 questiona o que foi adquirido com os erros. Sabemos que nada de positivo foi construído devido à situação negativa.

Em seguida, o refrão ocorre entre os versos 11 e 14: há repetição dos enunciados 1 e 2 no 11 e 12. No verso 13, há novamente a invocação por meio da manifestação sobreasseverada Sanctus Espiritus, porém, em seguida à invocação, há uma sentença nova questionando o Espírito Santo se é justo os seres humanos – expresso pela primeira pessoa do plural: nós – receberem as consequências da instabilidade e, no verso 14, o refrão é encerrado com um questionamento de caráter religioso.

O questionamento é se os seres humanos têm condições de se livrar da corrente da agonia eterna, entendida como o livramento da morte. Nos versos 15 e 16, nos deparamos com um questionamento que, na verdade, é uma tentativa de desviar a responsabilidade pelos erros e limitações humanas. A dor e a miséria são personificadas e apontadas como suspeitas da falha humana, no entanto volta-se a responsabilidade para a humanidade que deixou isso crescer.

Posteriormente, volta-se a falar da natureza cruel do verso 8 no verso 17, porém com o sinônimo besta, que também poderia ser traduzido como monstro, porém a escolha do significante “besta” está mais próximo do discurso religioso e mais próximo da própria palavra no original beast. Temos ciência de que se trata da natureza cruel, pois no verso 18, o enunciador afirma que de qualquer maneira ela vai voltar. Compreendemos que natureza significa essência, aquilo que está intrínseco e, por mais que se tente apagar, ela permanece no indivíduo. No caso dessa letra de música, a natureza do ser humano é falha e limitada. P á g i n a | 65

O enunciador pergunta se a humanidade lembrará de todo o sofrimento vivido pelas decisões erradas no verso 19 e justifica a pergunta, no verso 20, com a possibilidade de os esforços serem inúteis caso haja falha. Dito isto, por fim, observamos mais duas vezes o refrão dos versos 21 ao 29.

A narrativa da letra permite afirmar que há uma forte associação do texto com o gênero textual oração, elementos não verbais como os sinfônicos e orquestrais também nos direcionam a olhar a letra de música como um contato com Deus. Sabemos que se trata do campo discursivo religioso, dentro dele o espaço discursivo é que podemos chamar de espaço discursivo cristão, pois reúne elementos bíblicos e busca a regulação das atitudes humanas em forma de conselho, “puxões de orelha”.

A formação discursiva aqui é entendida como uma unidade tópica territorial em que a formação discursiva é unifocal no Thesaurus bíblico. Entendemos que a materialidade linguística apresentada reside em uma unidade tópica territorial, pois a constituição do texto está em um local pré-programado conhecido como lyric – ou em português letra de música – que está inserida no tipo de discurso de caráter soteriólogo, ou seja, aproxima-se da ideia de libertação do pecado e restituição do homem, em suma, está alicerçado no discurso religioso.

Ao mesmo tempo, afirmamos que se trata de uma formação discursiva unifocal, pois o esforço está tematizado na construção de uma intermediação entre o Espírito Santo e os humanos por meio da figura prototípica da justiça. Figura esta que será explicada após a análise dos elementos verbais.

Por fim, se o tipo de discurso é religioso e de caráter soteriólogo, e o gênero textual é a letra de música, estamos revelando quais são as cenas englobante e genérica respectivamente, no entanto a cenografia é o que se destaca. A cenografia é de caráter exógena, pois temos o empréstimo de elementos do ritual de oração – evocação, redenção e súplica – para compor a cena genérica predominante que é a letra de música, em suma, a cenografia pode ser interpretada como um momento de oração. Vemos que se trata de uma oração ao Espírito Santo para se livrar da morte.

Podemos, portanto, extrair disso tudo o seguinte: a vocalista exerce o papel de interlocutora entre o Espírito Santo e a humanidade. Fica evidente que a situação desta não é confortável e que somente a intervenção do Espírito Santo pode direcionar de maneira sábia e ponderada a resolução dos conflitos. No caso, um dos conflitos é não aceitar a morte. P á g i n a | 66

Acrescentamos também evidências que reforçam a ideia do discurso religioso cristão e consideramos elementos não verbais para sustentar a análise do discurso metal sinfônico.

Sobre a interdiscursividade, analisamos que a capa do álbum The heart of everything (2007) e a letra “Nossa hora solene” formam uma unidade de sentido que se situa no universo do mito. Dentro deste universo está imperativa a presença do campo de discurso religioso em um tom moralista, e dentro deste, o filtro é o espaço de religião cristã em coexistência com outras religiões, ou seja, há sincretismo religioso. Universo, campo e espaço são, para Maingueneau (2008a), partes constituintes da formação de um interdiscurso e entendê-los permite ir à essência do posicionamento discursivo de um sujeito.

O universo discursivo carrega numerosas possibilidades de formações discursivas dentro de um campo e espaço definidos e finitos. O universo do mito é o que acreditamos ser a área de maior extensão para a produção de discursos da banda no quarto disco. Para Campbell (1990) mito é, antes de tudo, a sustentação fundamental da narrativa do ser humano, sustentação pela qual o homem tem permissão de transitar entre os rituais e obter sucesso interior, a omissão ou a falta de contato com os mitos deixa uma lacuna importante. Para o autor:

Quando a história está em sua mente, você percebe sua relevância para com aquilo que esteja acontecendo em sua vida. Isso dá perspectiva ao que lhe está acontecendo. Com a perda disso, perdemos efetivamente algo, porque não possuímos nada semelhante para pôr no lugar. Esses bocados de informação, provenientes dos tempos antigos, que construíram civilizações e enformaram religiões através dos séculos, têm a ver com os profundos problemas interiores, com os profundos mistérios, com os profundos limiares da travessia, e se você não souber o que dizem os sinais ao longo do caminho, terá de produzi-los por sua conta. Mas assim que for apanhado pelo assunto, haverá um tal senso de informação, de uma ou outra dessas tradições, de uma espécie tão profunda, tão rica e vivificadora, que você não quererá abrir mão dele. (CAMPBELL, 1990, p. 4).

Moyers, que entrevista o autor, afirma que os mitos “são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação, através dos tempos”. (CAMPBELL, 1990, p. 5). E, em seguida, justifica a necessidade dos mitos:

Todos nós precisamos contar nossa história, compreender nossa história. Todos nós precisamos compreender a morte e enfrentar a morte, e todos nós precisamos de ajuda em nossa passagem do nascimento à vida e depois à morte. Precisamos que a vida tenha significação, precisamos tocar o eterno, compreender o misterioso, descobrir o que somos. (CAMPBELL, 1990, p. 5).

E defendemos a ideia de que o universo discursivo é mítico, pois na capa do quarto disco (vide anexo p. 109) temos a relação dialógica da vocalista da banda, Sharon den Adel, com a P á g i n a | 67

figura que representa a justiça. Os elementos que dialogam com o símbolo da justiça são três: primeiro, a figura de uma mulher; segundo, a venda nos olhos e, por último, as duas mãos segurando objetos: neste caso, uma pomba branca na mão esquerda e amuletos na mão direita.

Em relação aos elementos mencionados, a figura da mulher é essencial para que o leitor seja levado à figura da justiça, pois o símbolo da justiça assim como o símbolo da capa do álbum é do sexo feminino. De acordo com Gaboardi (2008) há três divindades relacionadas à justiça: Têmis, Díke e Iustitia. Ele acredita que Díke é a divindade que melhor representa a justiça atualmente.

A balança desequilibrada mostra que a justiça é a tentativa de buscar a igualdade diante de um desequilíbrio, de um descomedimento (hýbris). A igualdade não é algo dado por uma lei secreta, inacessível aos humanos (como no caso de Têmis), nem por uma lei abstrata, indiferente aos acontecimentos, como ocorre com Iustitia; precisa ser buscada diante das desigualdades reais e ser transparente ao juízo humano. No contexto escolar, [por exemplo] isso implica que as leis precisam ser construídas coletivamente, com base nas questões próprias do contexto. É preciso que se desenvolva gradativamente nos alunos a capacidade de pensar o real, a ponto [de eles] perceberem as desigualdades nele existentes e de dialogarem na elaboração de princípios que as superem. A obediência cega mantém o aluno submetido à autoridade alheia ou o incentiva a buscar esse poder por meio do qual pode oprimir os outros; os olhos abertos indicam que a deusa não pode levar em conta apenas a lei e os argumentos postos no julgamento, como Iustitia. Ela precisa acompanhar a sociedade e estar atenta às desigualdades próprias às partes em disputa. Assim, o ato de julgar visa não apenas à igualdade, mas também à equidade, não se mantendo indiferente às diferenças reais. Não basta à comunidade escolar defender a justiça; é preciso que tenha a coragem de ver as injustiças que estão aquém dos procedimentos e das formalidades. Mais do que isso, é preciso estar atento para que esses elementos que deveriam garantir a justiça não se tornem eles mesmos [as] causas das injustiças; por fim, a espada levantada indica uma postura mais ativa da justiça, que não apenas assiste indiferente, como Têmis e Iustitia, às injustiças reais; ela observa as desigualdades e está pronta para agir com o propósito de restituir o equilíbrio desfeito. (GABOARDI, 2008, p. 10).

Porém, Iustitia é a figura que a capa considera, ela é o elemento intertextual. Visualmente podemos comparar a capa com a figura a seguir: P á g i n a | 68

Figura 01 - Iustitia

Sabemos então que a representação da justiça não é única e que a representação escolhida para estampar a capa do álbum do disco The heart of everything não foi a divindade Díke, mas sim Iustitia, de origem romana, assim como a língua latina. Ela tem as seguintes características:

A balança com o fiel (lingueta) na vertical expressa a ideia de igualdade. Decisão justa é a decisão reta, em que o meio-termo foi conseguido, em que nenhuma das partes recebeu mais do que a outra. Por isso, o papel da deusa na mitologia grega era justamente dizer onde estava o meio-termo em cada situação. No direito romano, esse meio-termo é determinado pela lei; 2. A venda nos olhos indica que a deusa, ao deliberar, não poderia levar em conta as diferenças entre as partes em disputa, devendo basear-se apenas nos argumentos colocados pelas partes, permanecendo indiferente em relação a todos os demais aspectos. Ricos e pobres, poderosos e indigentes, todos deveriam ser considerados da mesma forma; 3. Por fim, a espada em repouso indica que a deusa possuía também o poder de fazer sua decisão ser cumprida (o poder de polícia); seu papel principal, entretanto, era dizer o que é correto (jus dicere). Sua espada apenas deixaria a situação de repouso se fosse requisitada. (GABOARDI, 2008, p. 2).

Vemos que há uma pomba branca repousando na mão da cantora Sharon de Adel e há outras duas pombas brancas voando pelo cenário, voando para a lateral direita da capa do disco. Há também uma ave negra, ou melhor, um corvo, que podemos interpretar que é o objeto que carrega os valores negativos. A pomba branca para as religiões cristãs representa a esperança, o Espírito Santo e aliança com Deus que é visto como a justiça divina.

Sobre o corvo, a Bíblia relata a história de Noé que, após passar quarenta dias e quarenta noites em um dilúvio, “soltou um corvo, o qual, tendo saído, ia e voltava, até que se secaram as P á g i n a | 69

águas de sobre a terra”. (Gn 8, 7). O papel do corvo foi menos significativo que a da pomba que pré-anuncia a fala de Deus para Noé:

Depois soltou uma pomba, para ver se as águas teriam já minguado da superfície da terra; mas a pomba, não achando onde pousar o pé, tornou a ele para a arca; porque as águas cobriam ainda a terra. Noé, estendendo a mão, tomou-a e a recolheu consigo na arca. Esperou ainda outros sete dias e de novo soltou a pomba fora da arca. À tarde, ela voltou a ele; trazia no bico uma folha nova de oliveira; assim entendeu Noé que as águas tinham minguado de sobre a terra. Então, esperou ainda mais sete dias e soltou a pomba; ela, porém já não tornou a ele. Sucedeu que, no primeiro dia do primeiro mês, do ano seiscentos e um, as águas se secaram de sobre a terra. Então, Noé removeu a cobertura da arca e olhou e eis que o solo estava enxuto. E, aos vinte e sete dias do segundo mês, a terra estava seca. (Gn 8, 8-14).

Com isso, vemos que a existência de um corvo na capa do álbum não é acessória, ela compõe a valoração apreciativa que remete a uma intertextualidade com o texto bíblico, pois essa informação aparece não apenas pela forma, mas caracteriza um interdiscurso/uma manifestação implícita – e até pouco visível, visto que o cenário é escuro – e que pode passar despercebida ao leitor. O corvo ainda pode simbolizar o azar, o mau presságio e sua fuga do cenário pode representar também um passo rumo à saída das trevas.

Isso quer dizer que tal manifestação está intimamente ligada à questão religiosa e que a letra da música analisada terá forte relação interdiscursiva com a capa, bem como as outras letras que compõem o disco. Por fim, para encerrar o primeiro contato com o disco, analisamos a contracapa (vide anexo p. 110) que traz, de maneira ampliada, o que a vocalista segura em sua outra mão: amuletos.

Mais uma vez vemos que há apreciação valorativa: a ampliação da mão da vocalista segurando os amuletos representa o foco na problemática religiosa. Os adereços representam diversas religiões e são objetos que tem como função a recitação de orações que são geralmente cristãs. Entretanto, nem todos os amuletos na mão de Sharon den Adel são de religiões cristãs, há outras religiões em confluência e coexistência.

Enumeremos alguns dos amuletos existentes: amuleto com a estrela de cinco pontas, ou pentagrama, refere-se, atualmente, a uma associação ocultista, ou seja, este símbolo está penetrado de sentido de fé para os bruxos e bruxas da religião Wicca; o amuleto com uma estrela de seis pontas, ou mais conhecida como a estrela de Davi, faz parte majoritariamente do contexto judaico e do hinduísmo; o terço católico que está simbolizado com Jesus Cristo crucificado; e, por fim, o terço com OM, símbolo do hinduísmo. P á g i n a | 70

Os elementos dialógicos presentes – figura da justiça, pombas, corvos e amuletos – revelam o posicionamento da banda no quarto disco: buscar a pacificação dos assuntos religiosos através de um meio-termo, sem privilegiar qualquer instituição, tratando todos de forma igual. A posição ideológica da capa do álbum nos permite interpretar que os problemas de conflitos religiosos devem cessar, assim como as águas secaram após o dilúvio e por mais que demore, e que haja corvos, a esperança sempre será maior em número e em poder, pois o espírito da justiça (Iustitia) procurará um equilíbrio para solucionar as questões.

A posição ideológica também nos permite afirmar que o medo do desconhecido, no caso a morte, é recorrente nas letras deste disco. Letras como , Frozen e Final destination retratam a presença da morte, ela está bem próxima e desperta os sentimentos negativos das mais variadas formas.

Interdiscurso: Sobreasseveração: Rock gótico = pessimismo e introspecção; Sanctus Espiritus = enquadramento Língua latina como ferramenta de poder testemunhal sentencioso; aos enunciados. Universo do mito Latim como ferramenta de destacamento (sustentação fundamental da narrativa do inicial e no refrão. ser humano, que permite ao homem transitar entre os rituais e obter sucesso interior); Campo discursivo religioso cristão e espaço discursivo calcado no sincretismo religioso. Our solemn hour + Capa The heart of everything

Cenas da enunciação: Formação discursiva: Cena englobante: discurso religioso com posicionamento soteriológico; Unidade tópica territorial no Thesaurus bíblico; Cena genérica: letra de música; Figura prototípica da justiça (Iustitia) Cenografia: Oração ao Espírito Santo para como intermediadora da oração. se livrar da morte.

Figura 02 – SmartArt: análise da letra Our solemn hour e capa do álbum The heart of everything (2007) P á g i n a | 71

Portanto, acrescentamos mais informações que ratificam o posicionamento da banda no discurso metal sinfônico. Acima está o resumo da análise da letra com os elementos não verbais. A seguir, analisamos a letra Iron do quinto álbum de estúdio nomeado The Unforgiving (2011).

3.2. Análise da letra Iron

A segunda letra de música que analisamos segue abaixo traduzida para o português:

Ferro 1. Deixada na escuridão 2. Aqui por conta própria 3. Despertou uma memória 4. Alimentando a dor 5. Você não consegue negá-la 6. Não há nada para dizer 7. É tudo o que você precisa para disparar 8. Oh maldição, a guerra está chegando 9. Oh maldição, você sente que você quer isso 10. Oh maldição, então venha com tudo hoje 11. Você não consegue viver sem o fogo 12. É o calor que te fortalece 13. Porque você nasceu para viver e lutar contra tudo isso 14. Você não consegue esconder o que mora dentro de você 15. É a única coisa que você conhece 16. Você abraçará isso e nunca irá embora 17. Não vai embora 18. Não vai embora 19. Não vai embora 20. Não vai embora 21. Criada nessa loucura 22. Você está por conta própria 23. Isso a faz destemida 24. Nada a perder 25. Os sonhos são piadas aqui P á g i n a | 72

26. Eles ficam no seu caminho 27. É o que você precisa para lutar dia após dia 28. Oh maldição, a guerra está chegando 29. Oh maldição, você sente que você quer isso 30. Oh maldição, então venha com tudo hoje 31. Você não consegue viver sem o fogo 32. É o calor que te fortalece 33. Porque você nasceu para viver e lutar contra tudo isso 34. Você não consegue esconder o que mora dentro de você 35. É a única coisa que você conhece 36. Você abraçará isso e nunca irá embora 37. Não vai embora 38. (Você não precisa nos temer 39. A menos que você tenha um coração negro 40. Um desprezível que rouba os inocentes 41. Eu prometo 42. Você não pode se esconder para sempre do vazio da escuridão 43. Porque nós vamos te caçar como animais que vocês são 44. E te puxaremos para as entranhas do inferno) 45. Oh maldição, a guerra está chegando 46. Oh maldição, você sente que você quer isso 47. Oh maldição, então venha com tudo hoje 48. Você não consegue viver sem o fogo 49. É o calor que te fortalece 50. Porque você nasceu para viver e lutar contra tudo isso 51. Você não consegue esconder o que mora dentro de você 52. É a única coisa que você conhece 53. Você abraçará isso e nunca vai embora 54. Não vai embora, não vai embora, não vai embora, não vai embora

No verso 1, escolhemos traduzir a palavra let como “deixada”, pois acreditamos que se trata da personagem da narrativa dos comic books e dos curtas-metragens chamada Sinéad. Após a análise da letra, falaremos a respeito destes dois elementos. P á g i n a | 73

Sinéad age sozinha, ela recebeu os poderes de Mother Maiden, uma figura que regula as ações de quem ela escolhe para ser seu guerreiro na luta contra o mal. Por isso, no verso 2, há a informação de que ela foi deixada por conta própria. E nos versos 3 ao 7 vemos que ao deixá-la solitária nesta luta, uma memória foi despertada e ela se alimenta dessa memória. Essa lembrança faz com que Sinéad sinta dor, no sentido sentimental, e que esse estado psicológico a fará não ter paz de espírito e a fará querer sempre estar em combate.

Nos versos 8 ao 10, temos o pré-refrão. Estes três versos começam com a expressão “oh, maldição” que revela inicialmente a insatisfação da situação que está por vir no verso 8. É declarado, no verso 9, o desejo pelo combate e por fim, no verso 10, é manifestado um posicionamento de luta, a aceitação do combate, por meio de um desafio. A expressão “venha com tudo” coloca, de fato, a personagem em uma situação na qual seu interlocutor deve potencializar seu ataque e ela por consequência deve potencializar em seu discurso e suas ações a forma como está agindo.

Em seguida, no refrão – versos 11 ao 20 – vemos que as características psicológicas de Sinéad são desvendadas. Podemos associar o refrão ao momento em que ela é despertada de sua morte no curta-metragem. A psíquica expõe as condições de Sinéad para aprimorar as potencialidades da renascida para conseguir realizar as funções de caçar os que atacam os inocentes. No verso 11, a ideia de que ela não consegue viver sem o fogo diz respeito à condição pessoal de não conseguir viver em paz, por isso no verso seguinte, é apresentado que o calor desse fogo a torna mais forte.

Nos versos 13 ao 16, há a ideia de determinismo na condição existencial de Sinéad. Determinismo no sentido de que ela já estava predestinada a ser uma guerreira de Mother Maiden. Ao enunciar “você não consegue esconder o que há dentro de você” e afirmar que a única coisa que Sinéad conhece é a guerra e a dor, o enunciador estabelece a personagem em uma condição rígida, imutável.

Já nos versos 17 ao 20, vemos a repetição de um mesmo enunciado, o sentido da repetição tem a ver com a imutabilidade das condições, quer dizer que Sinéad a partir de seu renascimento não tem outro ideal a não ser a caçar, subjugar o mal existente.

Após o refrão, nos versos 21 ao 27, volta-se a falar das condições psicológicas de Sinéad. Acreditamos que estes versos são o reforço para consolidar a ideia de que ela agora é um soldado a serviço da vingança contra o mal. Cabe notar que os versos 25 e 26 afirmam que o P á g i n a | 74

sonho, ou seja, uma expectativa a partir de um conjunto de valores e ideias, tem valor negativo porque atrapalha a função de soldado.

A função de soldado neste contexto é a de obedecer. Sinéad, de acordo com o enunciador, foi criada em um mundo de loucura. Essa loucura foi vista na letra analisada anteriormente. Isso significa que parte do conjunto da situação anterior permanece no contexto desta letra.

A condição diz respeito a situações negativas que influenciam a conduta introspectiva do enunciador, só que diferente da letra e do contexto do álbum anterior, no qual havia uma intermediação da figura da justiça, nesta letra o papel é ativo, é a própria personagem que toma a frente e se vê destemida, o medo começa a perder a força. O medo funciona como um mecanismo de hesitação e o discurso que o envolve, envolve diretamente um posicionamento de contenção, congelamento de ações e discursos.

Novamente o pré-refrão é enunciado nos versos 28, 29 e 30, e, em seguida, o refrão reaparece nos versos 31 ao 37. Logo após, nos versos 38 ao 44, temos uma quebra na música e Mother Maiden toma a fala e a música é interrompida e reconduzida de maneira a dar exclusividade à personagem. Nesta quebra, temos a reprodução exata do que a psíquica diz no primeiro curta-metragem.

Esta reprodução é a relação intertextual entre a letra de música e o filme. Consideramos também que a presença da psíquica na letra por meio de uma quebra no ritmo e na harmonia da letra revela mais uma vez o poder e o controle que ela tem sobre toda a situação, assim também é justificada a grande dimensão que ela tem na capa do álbum que discutiremos mais à frente. Ainda acreditamos que essa quebra na linearidade da letra e da música permite que a enunciação seja considerada sobreasseverada, a fala da Mother Maiden é vista como um enunciado sobreasseverado no enquadre informacional que está no regime de atualidade.

Isso quer dizer que o que é dito visa fazer saber o ponto de vista dela. O ponto de vista é advertir aos possíveis malfeitores que há forças poderosas e antigas trabalhando para deter as atrocidades do mal. Ser alguém que violenta física ou psicologicamente um inocente é o gatilho para que a psíquica envie seus soldados para caçar e enviar o mal para o inferno.

O posicionamento de Mother Maiden ainda conta com um engajamento no verso 41: ela promete investir contra quem viola os inocentes. O ato de fala de prometer coloca o sujeito em P á g i n a | 75

uma posição na qual tanto a sua face negativa quanto sua face positiva estão ameaçadas. Sobre o ato de prometer Batista (2012, p. 72-73) faz algumas considerações com exemplos:

Os atos de fala não se manifestam apenas de forma indireta. É possível explicitamente revelar a ação que empreendemos por meio do uso da linguagem, como na seguinte situação: A namorada de meu primo está muito triste porque ela vai estudar fora do país. Em uma despedida cheia de lágrimas e beijos, ela pergunta ao namorado: “Você vai me ligar toda semana?”. Ele responde que sim, mas ela insiste na pergunte mais duas vezes, até que ele diz: “Eu prometo que ligo sim”. O ato de prometer, na situação definida, só se concretizou, de fato, para a namorada apaixonada e triste quando o rapaz enunciou o verbo prometer. Ao dizer o verbo, a ação de prometer se colocou como ato de fato. Nesse contexto, apenas balancear a cabeça indicando que ligaria não seria resposta suficiente para a moça. O ato de fala só se concretizaria mesmo com o proferimento do verbo específico indicador de ação. Ao contrário do que vimos no primeiro caso, esse ato de prometer foi explícito porque a própria forma linguística utilizada – eu prometo – evidenciava diretamente o ato empreendido por meio do uso da linguagem.

Dessa forma, a promessa que a psíquica faz a coloca em uma posição na qual um dever deverá ser cumprido, ela terá que se engajar no que prometeu fazer. O enunciado sobreasseverado tem tanta força que, em seguida, não se volta ao refrão ou à voz da vocalista, dá-se lugar ao solo de guitarra para, enfim, encerrar a canção com o pré-refrão nos versos 45 ao 47 e com o refrão nos versos 48 ao 54, sem alterações nos enunciados.

Nesta letra, assim como na anterior, as cenas de enunciação são as seguintes: a cena englobante está num posicionamento de vingança devido ao contexto do álbum e das outras mídias que integram o conjunto discursivo, a cena genérica conserva-se na letra de música e as cenografias são de caráter endógeno, ou seja, diferentemente da letra “Nossa hora solene” que se apropria do gênero oração, a letra de Iron permanece como letra de música e tem como principal discurso a expressão gótica.

O gótico se apresenta de maneira a ressaltar o obscuro, o macabro e a morte. Para Kipper, a expressão gótica no contexto da música tem sua especificidade e forma de existir:

Na área da música, percebemos na subcultura Gótica uma variedade de estilos musicais que raras vezes encontramos em outras subculturas (geralmente organizadas em torno de um estilo musical e suas variações, das quais deriva seu nome, como o metal, o hip-hop, etc.). No caso do Gótico o que unifica esta variedade é o uso de recursos que buscam causar efeitos normalmente adjetivados como “escura”, “profunda” e “sombria”, mesmo que os estilos musicais mais comuns na subcultura Gótica sejam dançantes ou agitados, como o Rock, o Synth-Pop, a Darkwave, Eletro, “Indie”, etc. Os vocais masculinos tendem a ter voz profunda e grave, ou entrecortada e sussurrante. Os vocais femininos variam de fortes e mais agressivos (como no pós-punk) P á g i n a | 76

a etéricos ou sussurrantes (como na Darkwave e ethereal). Se no começo dos anos 80 tínhamos o som Gótico mais baseado em guitarras, ao longo dos anos 90 se popularizam as tendências eletrônicas ligadas aos estilos genericamente chamados de “Darkwave” (um termo que tem várias interpretações). O fato é que hoje temos uma grande variedade de estilos musicais relacionados coerentemente ao Gótico. Mesmo bandas com sonoridade mais “dance” mantiveram algum tipo de tema obscuro, vocais profundos, letras sombrias e metafóricas e “poderosos acordes atmosféricos”. (KIPPER, 2008, p. 47).

O uso recorrente de advérbios de negação tem o papel de moldar o pessimismo gótico nas letras, a mesma função é atribuída a palavras de valores semânticos disfóricos. Os significantes que carregam valor semântico eufórico estão presentes também, porém, sua função, de maneira quase absoluta, é carregar para o lugar mais sombrio.

Em uma análise sintática, é possível perceber que a função de uma palavra eufórica em uma sentença no contexto gótico é para reforçar o lado negativo. Um exemplo disso na letra em questão é o verso 25, o verso expressa que “os sonhos são piadas aqui”, o predicativo molda a palavra sonho em algo negativo, o próprio predicativo permite ter uma dupla interpretação: a mais usual é a que se trata de algo engraçado e descontraído, a segunda interpretação, que é a deste contexto, é que o significado de sonho revela seu caráter irrelevante, não é suficientemente digno de seriedade, sendo assim acessório.

Alguns temas são recorrentes na expressão gótica e por isso fazem parte de sua identidade. A referência a elementos da natureza como a lua e prata – letra de Silver moon light –, a água – letra de Aquarius –, noite – letra de in the middle of the night –, decadência – letra de Covered by roses –, feminilidade – letra de Enter –, obscuridade – letra de It´s the fear e forsaken –, anjos caídos – letra de Angels e a Demon´s fate. Todas as letras citadas são da banda Within Temptation.

Além destas e de outras músicas com expressão gótica de maneira centralizada ou periférica, temos também a questão da visão da morte ressignificada pelos góticos:

Os Góticos são muitas vezes caricaturizados pela mídia de massa como pessoas mórbidas ou obcecadas pela morte. Esta visão redutora e preconceituosa espelha mais o recalque da cultura dominante em relação aos temas morte e mortalidade, e não diz nada sobre a subcultura Gótica. Conseguimos integrar cotidianamente nossa relação com a morte, processos vitais e de envelhecimento? Como Walter Benjamin nos lembra, durante o século XX vivenciamos na sociedade urbana industrializada do ocidente o “desaparecimento” da morte e de outros processos que costumavam gerar historicidade e sentido em nossas vidas. Os nascimentos e os moribundos foram escondidos nos hospitais. Os velórios foram retirados das habitações e P á g i n a | 77

cada vez mais existem espaços públicos ou empresas privadas que tem espaços para o velório. Também os processos de preparação do morto para o enterro cada vez mais passam longe de seus familiares, lar e amigos. Assim, nossos “lares” e nossas vidas perderam muito de sua historicidade e sentido, e nossa percepção do processo vital natural foi brutalmente distorcida. Pior, ao perdermos a noção da perecibilidade e do ciclo vital [...] perdemos a noção de valor da vida que só o contato com a morte e os nascimentos nos traziam. Nesse contexto, não é nenhuma surpresa a existência de uma subcultura que faz questão de “se” lembrar da morte e do “carpe diem”, valorizar a vida constantemente. Neste aspecto, podemos considerar a subcultura Gótica mais saudável e integrada do que a cultura economificada dominante, visto que esta última se aliena e até cinde com realidades vitais e vitalizantes. Não se trata de apologia ao pessimismo ou negativismo, mas, isto sim, de uma reintegração de aspectos da vida e da realidade humana. Principalmente daqueles aspectos hoje mais rejeitados e negados socialmente. (KIPPER, 2008, p. 16-17).

Nesse sentido, os góticos contribuem para integrar a realidade de maneira a aceitar os processos naturais da vida, ideia que Campbell (1990) também compartilha ao entender que os mitos são narrativas que nos ajudam a transitar entre as fases da vida, amadurecer e lidar com a morte de maneira natural. Kipper (2008, p. 19) também dialoga com Campbell no que se refere ao mito:

Ao mesmo tempo, os símbolos, rituais, objetos, comportamentos, vocabulário, etc., constroem um tipo de mito ou sistema através do qual o membro da subcultura se vê no mundo e vê o mundo como o imagina. Através da escolha desta ou daquela subcultura, o indivíduo escolhe um sentido e significados através dos quais ele olhará e vivenciará, pelo menos em alguns momentos, o mundo. Hebdige explica como os objetos de estilo de uma subcultura são em grande parte equivalentes das questões centrais, autoimagem coletiva e estrutura social desse grupo subcultural. Nos objetos os membros podem ver seus valores centrais refletidos. [...] Desta forma, os objetos simbólicos - roupa, aparência, linguagem, ocasiões de ritual, estilos de interação, música- foram feitos para formar uma unidade com as relações, situações e experiência do grupo”.

Para encerrar a análise dos elementos que constituem a letra de música Iron do álbum de estúdio The unforgiving (2011), precisamos complementar que na expressão gótica dos últimos anos as referências à morte não têm nada a ver com a intenção de cometer suicídio, na verdade, o que há é a reflexão sobre o sentido da vida. A fugacidade da vida faz com que o gótico expresse de maneira sólida aquilo que significa viver, por isso o cemitério pode aparecer como cenário ou alusão aos góticos.

Eles acreditam e demonstram que a vida é finita para todos, dessa forma aproxima a realidade e afasta as ilusões criadas na sociedade, como a beleza jovial durante toda a vida por meio de produtos milagrosos. Sendo assim, a morte está mais ligada a aproveitar a vida do que P á g i n a | 78

tirá-la. O gótico, portanto, na expressão metal sinfônica se caracteriza de maneira muito forte no quinto disco de estúdio de Within Temptation por causa da exploração de diversas mídias – quadrinhos, curtas-metragens, videoclipes e disco – para apresentar a luta de um suposto bem contra o mal.

Passemos a seguir a considerar outros elementos que compõem o discurso apresentado na letra analisada. São eles: a capa de álbum, os curtas-metragens e os quadrinhos. O álbum de estúdio lançado em 2011 chamado The unforgiving dialoga com o álbum anterior em um movimento centrífugo, ou seja, a força do discurso religioso cristão presente no álbum The heart of everything é minada.

E, no lugar dela, temos um segundo mergulho na escuridão – o primeiro, como já vimos, foi no álbum The Silent force (2004) –, porém desta vez o lamento e a depressão tomam lugar periférico e fica em destaque uma postura mais agressiva e vingativa. A tradução do título do álbum estabelece o movimento centrífugo e permeia todo o disco, a tradução O imperdoável coloca justamente na posição contrária daquilo que o ser humano cristão almeja: o perdão e a salvação. E a partir do momento que existe algo imperdoável, dá-se a possibilidade de violência, vingança e atitudes intolerantes.

Sobre o segundo mergulho nas trevas sabemos que:

Uma coisa que se revela nos mitos é que, no fundo do abismo, desponta a voz da salvação. O momento crucial é aquele em que a verdadeira mensagem de transformação está prestes a surgir. No momento mais sombrio surge a luz [...]. Céu e inferno estão dentro de nós, e todos os deuses estão dentro de nós. (CAMPBELL, 1990, p. 41).

Acreditamos que este quinto álbum representa o fundo do abismo, porém não é, desta vez, um combate sufocante contra a escuridão como vimos na breve análise do álbum The Silent force. Desta vez, o gótico está integralmente inserido no metal sinfônico, não há um mergulho profundo e exaustivo e percebemos que os enunciados disfóricos são intrínsecos ao discurso. De maneira geral, o que temos em The unforgiving é o discurso gótico fortemente presente no discurso e a presença da intermidialidade na composição fundamental do sentido do discurso.

Sobre os processos intermidiáticos verificamos que, para entender o presente álbum de maneira integral, é necessário ouvir as músicas, assistir aos filmes de curta-metragem e ler os cinco comic books. A princípio, verificamos a entonação da capa do álbum, pois sabemos que ela é parte fundamental dos caminhos que as letras de música percorrem: P á g i n a | 79

Diferentemente dos outros álbuns nos quais a figura feminina era a vocalista Sharon den Adel, o álbum lançado em 2011 (vide anexo p. 111) traz como figura central a personagem Sinéad. Atrás dela está Mother Maiden, uma figura sobrenatural que recruta pessoas que morreram com culpas e pesares, tais pessoas integram um grupo que combate o mal. Vemos os Triplets à esquerda e à direita a detetive Janyce Beecham e o detetive Bryce Stennett, ambos os detetives fazem parte apenas do universo da HQ, eles não aparecem e nem são mencionados nos videoclipes ou nos filmes de curta-metragem.

Em suma, a capa do álbum se apresenta menos complexa, no sentido de elementos implícitos, que as anteriores, ela se instala como a porta de entrada para o comic book, revelando por meio das cores frias, ou seja, as cores que transmitem uma percepção estática, a presença discursiva disfórica. O único ponto com cor quente está na roupa vermelha que Sinéad veste, que serve como contraponto, um foco associado à excitação e ao movimento. Ou seja, é com Sinéad que a narrativa vai se desenrolar.

Como mencionamos, o discurso do quinto disco de estúdio é permeado por processos intermidiáticos e sobre isso Claus Clüver (2007, p. 9) explica que o conceito de intermidialidade diz respeito a todos os tipos de inter-relação e dinâmica entre as mídias. Porém, ressalta que se trata de mídias de comunicação e segue explicando que

A língua inglesa, onde o uso de medium e media tem uma longa tradição, oferece um leque de significados, entre os quais médium of communication e physical or technical médium são os mais relevantes para o discurso sobre intermidialidade [...]. Os meios físicos e/ou técnicos são as substâncias como também os instrumentos ou aparelhos utilizados na produção de um signo em qualquer mídia — o corpo humano; tinta, pincel, tela; mármore, madeira; máquina fotográfica; televisor; , flauta, bateria; voz; máquina de escrever; gravador; computador; papel, pergaminho; tecidos; palco; luz, etc. O uso dos meios físicos para criar uma pintura a óleo — a aplicação de tinta através de um pincel ou outro instrumento numa tela esticada no chassi — resulta na constituição dos materiais do signo pictórico: cores, linhas, formas e textura (s) numa superfície mais ou menos plana. Esses materiais representam a “modalidade material”, na terminologia de Lars Ellestrom (2009a), da mídia “pintura” (no sentido coletivo da palavra). E esse significado de “mídia” como “mídia de comunicação” que fornece a base de todo discurso sobre mídias e assim também sobre a intermidialidade. E um significado complexo, que precisa de mais de uma frase para defini-lo. Como ponto de partida podemos citar a definição proposta anos atrás por três estudiosos alemães: “Aquilo que transmite um signo (ou uma combinação de signos) para e entre seres humanos com transmissores adequados através de distancias temporais e/ou espaciais” (BOHN, MULLER, RUPPERT, 1988, p. 10; tradução nossa). Essa formulação fala da transmissão como um processo dinâmico e interativo que envolve a produção e a recepção de signos por seres humanos como emissores e receptores. P á g i n a | 80

Dessa forma, percebe-se que a noção de intermidialidade perpassa inúmeros gêneros e suportes, gerando múltiplos sentidos dependendo do texto ao qual se vincula. Para Rajewsky (2005), a intermidialidade pode ser categorizada em três segmentos: transposição midiática, combinações de mídias e referências intermidiáticas. Essas categorias, por sua vez, estão intrinsecamente ligadas ao conceito de intertextualidade definido por Julia Kristeva (1974): “Todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de outro texto”. (KRISTEVA, 1974, p.64).

Se textos ganham novos significados a partir de novos suportes, combinam-se para gerar outro tipo de suporte ou utilizam as influências, nuances e detalhes de outras mídias para enriquecerem a si mesmos, é porque contêm dentro de si uma tessitura de vários outros tipos de representações, ideologias e tendências.

O álbum The unforgiving explora duas mídias e suas linguagens: além da linguagem musical nas letras e visual nas capas dos álbuns, vemos a presença consistente da linguagem cinematográfica e da linguagem da arte sequencial. Abordaremos estas duas linguagens e mostraremos um exemplo de cada uma com o objetivo de apresentar a forma pela qual o metal sinfônico se expressa em outras mídias.

A linguagem cinematográfica compõe o discurso metal sinfônico no quinto álbum de estúdio de Within Temptation. Existem três curtas-metragens produzidos pela banda. São eles: Mother Maiden, Sinéad e Triplets. O primeiro curta-metragem diz respeito à introdução do espectador em todo o contexto da figura chamada Mother Maiden enquanto os outros dois dizem respeito à narrativa dos soldados da figura feminina misteriosa. Podemos destacar uma imagem do primeiro curta citado na qual o sentido do discurso é consolidado pela escolha do enquadramento da câmera no plano close: P á g i n a | 81

FIGURA 03 – Plano close de Mother Maiden: reprodução de uma conversação

Martin define os termos – enquadramento e close – que citamos acima:

Eles [os enquadramentos] constituem o primeiro aspecto da participação criadora da câmera no registro que faz da realidade exterior para transformá- la em matéria artística. Trata-se aqui da composição do conteúdo da imagem, isto é, da maneira como o diretor decupa e eventualmente organiza o fragmento de realidade apresentado à objetiva, que assim irá aparecer na tela. (MARTIN, 2013, p. 38).

O close, ou o primeiro plano, tem um papel de “invasão do campo da consciência, a uma tensão mental considerável, a um modo de pensamento obsessivo”. (MARTIN, 2013, p. 42). Na imagem acima que foi extraída do curta-metragem Mother Maiden vemos que a personagem principal se apresenta e de forma insistente tenta se aproximar do espectador com a finalidade de convencê-los das atitudes que ela irá tomar.

Durante a autoapresentação, vemos que a solução que ela encontra para solucionar os problemas é recrutar almas que morreram “mal resolvidas” e lutar contra o mal matando as pessoas que assolam os inocentes. Para convencer o espectador de que ela tem razão e de que escolheremos aceitar seu posicionamento discursivo, a câmera acaba por exercer papel fundamental ao se colocar em um plano próximo. Compreende-se que as cenas em que ela aparece têm a finalidade de proximidade, pois temos, em outras palavras, a tentativa de reproduzir uma conversa, olho no olho. P á g i n a | 82

As cores preta e branca que estão nos três curtas-metragens também têm significado na composição do discurso. Sabemos que a cor exerce, muitas vezes, papel simbólico, ou seja, ela quer dizer algo e não está presente apenas como acessório. A cor pode representar “valores (preto e branco) e [...] implicações psicológicas e dramáticas das diversas tonalidades (cores quentes e cores frias)” (MARTIN, 2013, p. 75), logo a intenção de colocar as cores preto e branco nos curtas-metragens é sobretudo de enunciar o estado psicológico da personagem e o estado dela é disfórico, está associado à frustração, à tristeza, a decepções e, principalmente, à vingança.

Já a linguagem da arte sequencial também se manifesta e se inter-relaciona com o discurso metal sinfônico. A arte sequencial tem, assim como a linguagem cinematográfica, suas particularidades, seus elementos constitutivos que permitem verificar que se trata desta e não de outra manifestação artística. Para Eisner (1999, p. 1):

As histórias em quadrinhos comunicam numa “linguagem” que se vale da experiência visual comum ao criador e ao público. É de esperar dos leitores modernos uma compreensão fácil da mistura imagem-palavra e da tradicional decodificação de texto.

Além de ter essa fusão entre a imagem e a palavra, as histórias em quadrinhos são vistas como uma forma legítima e específica de leitura entre tantas outras formas possíveis:

Pesquisas recentes mostram que a leitura de palavras é apenas um subconjunto de uma atividade humana mais ampla, que inclui a decodificação de símbolos, a integração e a organização de informações (...). Na verdade, pode-se pensar na leitura – no sentido mais genérico – como uma forma de atividade de percepção. A leitura de palavras é uma manifestação dessa atividade; mas existem muitas outras leituras – de figuras, mapas, diagramas, circuitos, notas musicais [...]. As histórias em quadrinhos apresentam uma sobreposição de palavra e imagem, e assim, é preciso que o leitor exerça as suas habilidades interpretativas visuais e verbais [...]. A leitura da história em quadrinhos é um ato de percepção estética e de esforço intelectual [...]. Em sua expressão mais simples, os quadrinhos empregam uma série de imagens repetitivas e símbolos reconhecíveis. Quando são usados vezes e mais vezes para expressão ideias semelhantes, tornam-se uma linguagem – uma forma literária, se se preferir. E é essa a aplicação disciplinada que cria a “gramática” da arte sequencial. (EISNER, 1999, p. 2).

Além dos quadrinhos como forma de leitura e da imagem como representação, o autor também explica sobre o timing que é outra dimensão elementar das histórias em quadrinho. O autor afirma que:

O som é medido auditivamente, em relação à distância que se encontra de nós. O espaço, na maioria das vezes, é medido e percebido visualmente. O tempo P á g i n a | 83

é mais ilusório: nós o medimos e o sentimos através da lembrança da experiência. Nas sociedades primitivas, o movimento do Sol, o desenvolvimento da vegetação ou as mudanças de clima são empregados para medir o tempo visualmente. A civilização moderna desenvolveu um dispositivo mecânico, o relógio, para ajudar a medir o tempo visualmente [...]. A medição do tempo não só tem um enorme impacto psicológico como também nos permite lidar com a prática concreta do viver. (EISNER, 1999, p. 23).

Pelo fato de a noção de tempo ser, muitas vezes, subjetiva, o autor entende que o tempo propriamente dito é o resultado de uma ação imediata igual à realidade, já o timing é o mesmo resultado, porém a duração do resultado é diferente, é mais longa, com a finalidade de destacar a emoção dos fatos. Para o autor, a capacidade de demonstrar a passagem de tempo permite que as emoções humanas sejam exploradas e a percepção de compartilhada de mudança de tempo é sentida, sendo assim o timing exerce a função de alongar um determinado tempo para enfatizar uma mensagem ou emoção específica:

Uma história em quadrinhos torna-se “real” quando o tempo e o timing passam a ser componentes ativos da criação. Na música ou em outras formas de comunicação sonora, em que se segue ritmo ou “cadência”, isso é feito com extensões reais de tempo. Nas artes gráficas, essa sensação é expressa por meio do uso de ilusões e símbolos e do seu ordenamento. (EISNER, 1999, p. 24).

Já no enquadramento da fala, o balão é utilizado para captar o som, a disposição dele em relação aos demais também é um recurso para medir o tempo, mesmo sabendo que o tempo é relativo, pois varia de acordo com a observação do leitor. Os enquadramentos dos balões ajudam a direcionar o leitor em relação à cena e à duração do ocorrido na cena. Dessa forma, “nas tiras ou revistas de quadrinhos modernas, o recurso fundamental para a transição do timing é o quadrinho” (EISNER, 1999, p. 26).

Nas histórias em quadrinho de The unforgiving verificamos que, em muitas páginas, Sinéad transpassa o limite dimensional do quadrinho e “invade” outros requadros. A imagem abaixo está circulada com uma cor verde para destacar a afirmação acima. P á g i n a | 84

FIGURA 04 – Requadro e timing nos quadrinhos de The unforgiving

O sentido que podemos apreender de Sinéad transgredir o espaço dos requadros pode ser pela intenção de mostrar que as atitudes dela serão mais incisivas, mais enérgicas. O limite da verossimilhança também é ultrapassado, pois ela recebeu ajuda de um ser sobrenatural, então vencer a morte e se aliar a uma justiceira imortal já é por si só algo fora da realidade e, com isso, Sinéad tem uma espécie de autorização para ir além nos requadros.

Sinéad parece obter controle da progressão de tempo e espaço nos quadrinhos, pois ela inicia toda a narrativa visualmente e discursivamente, ela também narra sua própria história nos balões quadrados de cor amarelada e ultrapassa os limites convencionais dos requadros para aumentar a dimensão não só de seu corpo, mas de suas potencialidades emocionais. P á g i n a | 85

Vemos também, no círculo verde inferior o timing, ou seja, a duração do tempo do tiroteio é alongada para que a emoção da ação seja ressaltada, o leitor fica, a princípio apreensivo, em estado de suspense. O espectador é levado a acompanhar o disparo das armas por meio das letras em vermelho abaixo do cano que simulam o som do disparo. O fogo que está estático revela a efetividade do disparo. Esses elementos elevam as emoções do espectador, prendem o leitor e induzem a prosseguir na leitura da história em quadrinho.

Em suma, há dois posicionamentos enunciativos com a presença da linguagem cinematográfica e da linguagem da arte sequencial. A primeira linguagem, que é apresentada em forma de três filmes de curta-metragem, é o primeiro contato dos fãs com a história. Os filmes servem como introdução da Mother Maiden, da Sinéad e dos Triplets, porém não são apresentações acessórias, eles detêm algumas informações emocionais que na história em quadrinho não são apresentadas.

Já o comic book integra toda a narrativa de The unforgiving. É possível verificar que a relação entre quadrinhos e filme é uma inter-relação onde um complementa o outro, visto que a intenção é justamente preencher o quebra-cabeça da narrativa. Ainda assim existe um elemento de discurso que não está explícito, mas que permeia as escolhas de cor, emoção, léxico, comportamento e todas as formas de expressão possíveis: o discurso gótico.

Portanto, The unforgiving exige um esforço maior do interlocutor, pois há muito mais em jogo do que somente a letra de música. É necessário ler os quadrinhos, assistir aos curtas- metragens, assistir aos videoclipes e ouvir as músicas para entender toda a narrativa do álbum. Abaixo segue o resumo da análise do quinto álbum de Within Temptation. P á g i n a | 86

Interdiscurso: Sobreasseveração: Universo do mito conforme o disco Mother Maiden toma a fala na letra de anterior, campo discursivo gótico. O música. O enunciado dela se caracteriza espaço discursivo tem o tema da vingança como enquadramento informacional em e pessimismo. Processos intermidiáticos um ato de fala de prometer vingança (capa de álbum, curtas-metragens e contra quem violenta física e quadrinhos) onde das respectivas psicologicamente os inocentes. linguagens estão em confluência.

Iron + Universo The Unforgiving

Cenas da enunciação: Formação discursiva: Cena englobante: discurso de ódio; Unidade tópica territorial e calcada nos Cena genérica: letra de música; curta-metragem destacamento o Cenografia endógena: Luta do bem contra enquadramento close e na arte sequencial o mal por meio da vingança contra os destacamos o requadro e o timing, ambos humanos que escolhem fazer maldades na formação discursiva de temática da diversas. vingança.

Figura 05 – SmartArt: análise da letra Iron e do universo The unforgiving (2011)

3.3. Análise da letra Covered by roses

Abaixo segue a letra traduzida e, em seguida, a análise dos aspectos discursivos:

Coberta por rosas 1. Eu sinto meu coração explodir em pedaços 2. O amor está aqui e eu te disse 3. Sem descanso nos sonhos, amor esculpido em pedra 4. Essa rapsódia de vida de uma maneira 5. Que eu acho que todos nós sabemos 6. De mãos dadas nós suportamos enquanto vemos você correr 7. Céu, você pode nos ajudar onde não podemos ir 8. Coberta por rosas 9. Quando esta dança acabar 10. Nós todos sabemos que toda a beleza vai morrer 11. Os coros despertaram P á g i n a | 87

12. Não deixaram palavras sem dizer 13. Lembro de você à medida que eu conseguir 14. Prendo-o em meus braços toda a noite 15. E derramo o vinho até o fim 16. Todos nós temos o nosso lugar no tempo 17. Preciso viver cada momento 18. Nós construímos nossos castelos altos 19. Transformamos nossos sonhos em ouro 20. Levamos os golpes com orgulho 21. Passamos por tudo isso 22. A madrugada está se fechando 23. Novos contos são contados 24. Esta rapsódia de vida 25. De um jeito que eu acho que todos nós sabemos 26. Coberta por rosas 27. Quando esta dança acabar 28. Nós todos sabemos que toda a beleza vai morrer 29. Os coros despertaram 30. Não deixaram palavras sem dizer 31. Lembro de você à medida que eu conseguir 32. Prendo-o em meus braços toda a noite 33. E derramo o vinho até o fim 34. Todos nós temos o nosso lugar no tempo 35. Preciso viver cada momento 36. Por tudo que somos está caindo estrelas na noite 37. Uma luz ofuscante descendo furiosamente do céu 38. A ascensão e queda, a rapsódia de nossas vidas 39. É tudo o que somos e sabemos, temos de deixar ir 40. ([Falado] Ela habita na beleza, beleza que deve morrer. 41. E a alegria cuja mão está sempre em seus lábios. 42. Sua alma provará a tristeza de sua força 43. E estará entre seus troféus nublados pendurada) 44. Coberta por rosas P á g i n a | 88

45. Quando esta dança acabar 46. Nós todos sabemos que toda a beleza vai morrer. 47. Os coros despertaram 48. Não deixaram palavras sem dizer 49. Lembro de você a medida que que eu conseguir 50. Prendo-o em meus braços toda a noite 51. E derramo o vinho até o fim 52. Todos nós temos o nosso lugar no tempo 53. Preciso viver cada momento

Na letra acima, observamos de início que a sensação de o coração explodir não tem significado negativo. Se quando a cabeça da hidra é cortada nasce outra, aqui o coração explodindo criará nova formas de sobreviver e viver melhor do que estava anteriormente, por isso observamos que é o amor que impulsiona o desenvolvimento da letra como uma engrenagem principal.

Se considerarmos o trajeto desenvolvido até aqui, podemos afirmar que é a primeira vez que o amor está tão próximo e tangível do enunciador. No verso 3, o amor citado no verso anterior é retomado. O mais próximo da intenção que pudemos compreender de “amor esculpido em pedra” são as leis escritas em duas tábuas de pedra, ou melhor, tais leis são os dez mandamentos que pela ordem são cinco relacionados de Deus para o homem e os outros cinco são do homem para o homem:

Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não as adorarás, nem lhes dará culto; porque eu sou o SENHOR, teu Deus, Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem e faço misericórdia até mil gerações daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos. Não tomarás o nome do SENHOR, teu Deus, em vão, porque o SENHOR não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão. Lembra-te do dia de sábado, para o santificar. Seis dias trabalharas e farás toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o sábado do SENHOR, teu Deus; não farás nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem tua serva, nem o teu animal, nem o forasteiro das tuas portas para dentro; porque, em seis dias, fez o SENHOR os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o SENHOR abençoou o dia de sábado e o santificou. Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o SENHOR, teu Deus, te dá. Não matarás. Não adulterarás. Não furtarás. Não dirás falso testemunho contra o teu próximo. Não cobiçarás a P á g i n a | 89

casa do teu próximo, nem o seu servo, nem sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença ao teu próximo. (Dt 5, 7-21).

A ideia de fazer referência à bíblia é apresentar uma série de regras para que o interlocutor obtenha sucesso na sua jornada interior. Ao citar “amor esculpido em pedra” observamos que é uma forma de desenhar um caminho no qual tudo o que ficou para trás permaneça de maneira definitiva no passado, temos, portanto, uma relação interdiscursiva com as outras letras analisadas.

No verso 4, também nos deparamos com algo inédito nas letras do metal sinfônico, um metadiscurso: o uso da palavra rapsódia. O significado de rapsódia pode ser, de modo geral, uma manifestação improvisada, sem uma linearidade predeterminada, uma espécie de remendo de manifestações preexistentes. Rhapsody, de acordo com Longman (2010), significa um pedaço de música que é escrito para expressar emoção.

Já no verso seguinte, por meio do pronome nós, a vocalista estabelece um diálogo com o ouvinte, pois o pronome corresponde à junção de dois pronomes “eu” mais “você”, aproximando-se assim do gênero conversacional. A intenção do verso 5 “que eu acho que todos nós sabemos” é estabelecer um ponto em comum entre o enunciador e o interlocutor. Para tanto, o enunciador estabelece um conhecimento mútuo sobre a rapsódia.

No verso 6, há outra aproximação de “nós” colocando em posição inferior um outro “você”, e para reforçar a presença do discurso religioso, observamos no verso 7 que o enunciador evoca a figura de Deus, por intermédio da palavra “céus” e tal ato fecha o ciclo inicial para dar partida ao refrão. Do verso 8 ao 17 observamos que se trata de uma transição do auge para a decadência – coberta por rosas, enterrada. Essa decadência quer dizer, na verdade, aproveitar o tempo enquanto pode, pois ele é finito para todo e qualquer ser humano, tal conceito dialoga com o conceito de carpe diem que é constantemente utilizado no cenário gótico.

Do verso 18 ao 25, temos uma nova expressão cíclica que vai de uma posição de destaque, pensamentos grandiosos – construir castelos, sonhos materializados em ouro e resistência para suportar as dificuldades – para a decadência – madrugada como palco que se fecha para que uma nova peça de teatro possa acontecer, peça enquanto uma vida, uma narrativa. Logo após essa expressão cíclica, volta-se ao refrão entre os versos 26 ao 35 sem alterações a letra. Volta-se também à expressão cíclica nos versos 36 ao 39, porém notamos que P á g i n a | 90

a expressão é reflexiva, pois ao falar explicitamente sobre ascensão e queda, temos claramente e, pela segunda vez, um metadiscurso sobre o aspecto cíclico da vida.

Notamos, em seguida, que os quatro versos adiante, versos 40 ao 43, caracterizam-se como um enunciado sobreasseverado. Afirmamos isso por causa da quebra do riff e por um outro enunciador não identificado, mas sabemos ser uma criança pela voz. Ela toma o lugar da vocalista para transmitir sua ideia. A criança representa o início de um ciclo. Podemos sugerir que nesta fase final da música, na verdade, está-se começando tudo de novo, uma renovação para melhorias do sujeito do discurso, tanto é que após esse rápido momento de quebra, volta- se, portanto, ao refrão, versos 44 ao 53, como encerramento da letra.

O conceito da letra e do álbum é claro: carpe diem. A presença da morte permanece, porém ela não é temida, não há espaço para o medo e a hesitação subjugar. Tudo que é disfórico perde força para a coragem. Arriscar e se aventurar deixam de ser sonhos e passam a ser metas. Exemplo disso é a letra Dangerous em que a parceria com Howard Jones em voz gutural como contraponto – semelhante à letra Enter – à voz suave de Sharon. O discurso expressa a finitude das ações humanas e expõe os sacrifícios que fazemos para alcançar um objetivo, em suma, esforços extremos que fazemos para realizar sonhos. A morte – ceifador – está presente, porém percebe-se que não tem tanto poder de ameaçar e subjugar, ou seja, o ceifador não tem tanta influência para alterar o estado de espírito do enunciador.

Um segundo exemplo de como a vida sobrepõe a morte está na letra de Edge of the world. A verdade que deveria ser algo de valor eufórico, na realidade, pode ser uma arma que dispara tiros que corroem e corrompem o coração do ser humano. A ideia de que conhecer a verdade libertará não se aplica aqui, pois a verdade, muitas vezes, pode ser o elemento mais nocivo. Por esse motivo, é enunciado que “a verdade não pode esconder a luz do Sol”, ou seja, a verdade não pode arrancar a esperança que é bombardeada constantemente.

Um terceiro exemplo de como a vida se sobressai à morte é a letra da música Silver Moonlight, onde há uma espécie de acuamento pelo medo e libertação por esforço próprio, sem interferências religiosas ou por motivos vingativos como nos álbuns anteriores. Um quarto exemplo é o discurso de que está pautado na fuga de elementos disfóricos. A corrida é contra tudo o que possa trazer tristeza, apatia. O chamado do cantor que acompanha Sharon den Adel é para aproveitar os momentos e encarar os problemas que surgirem. P á g i n a | 91

Dessa forma, vemos que a relação que se estabelece entre vida e morte neste álbum é a sobreposição da vida sobre a morte. Para quem está vivo o conselho é aproveitar cada fôlego, porque a morte é inevitável.

Em suma, temos uma relação interdiscursiva deste álbum com os demais. Covered by roses e o álbum Hydra podem ser considerados mais “antropocêntricos” enquanto The heart of everything é constituído indubitavelmente de um posicionamento religioso. A sobreasseveração presente na letra analisada percorre a ideia de novo ciclo, a relação interdiscursiva com os outros álbuns resulta na superação da relação vida e morte que até então era conflituosa, a cena englobante é o discurso da resistência, a cena genérica é a letra de música e a cenografia está pautada na superação e aceitação da limitação e finitude do ser humano.

Hydra (2014) tem em sua capa de álbum (vide anexo p. 112) a imagem de dragões gêmeos, ligados pelo título. Este se apresenta como corpo da besta mitológica. A história da hidra de Lerna está atrelada à história do semideus Hércules em seus dois primeiros trabalhos:

Hércules era filho de Júpiter e Alcmena. Como Juno era sempre hostil aos filhos de seu marido com mulheres mortais, declarou guerra a Hércules desde o seu nascimento. Mandou duas serpentes matá-lo em seu berço, mas a precoce criança estrangulou-as com suas próprias mãos. Pelas artes de Juno, contudo, ele ficou sujeito a Euristeus e obrigado a executar todas as suas ordens. Euristeus impôs-lhe a realização de façanhas perigosíssimas que ficaram conhecidas como “Os doze trabalhos de Hércules”. A primeira foi a luta contra o leão de Neméia. A fera causava devastações no vale daquele nome e Euristeus ordenou a Hércules que lhe trouxesse a pele do monstro. Depois de se utilizar, em vão, de sua clava e de setas contra o leão. Hércules estrangulou-o com suas próprias mãos. Voltou levando nos ombros o leão morto, mas Euristeus ficou tão amedrontado à vista daqueles despojos, e da prova da força prodigiosa do herói, que lhe ordenou que, dali em diante, prestasse conta das façanhas fora da cidade. O trabalho seguinte foi a matança da hidra de Lerna. Esse monstro devastava a região de Argos e habitava um pântano perto do povo de Amione. Esse poço fora descoberto por Amione, quando a seca devastava a região e Netuno, que a amava, deixara-a tocar na rocha com seu tridente e três nascentes surgiram dali. A hidra escolheu para moradia aquele local e Hércules foi mandado para matá-la. O monstro tinha nove cabeças sendo a do meio imortal. Hércules esmagava essas cabeças com sua clava, mas, em lugar da cabeça destruída, nasciam duas outras cada vez. Afinal, com a ajuda de seu fiel servo Iolaus, o semideus queimou as cabeças da hidra e enterrou a nona, a imortal, sob um enorme rochedo. (BULFINCH, 2015, p. 147).

A primeira impressão que a capa de Hydra transmite é uma relativa leveza em relação às cinco capas anteriores. A cor cinza ao fundo num tom leve entra em contraste com o “H” que segura o ser mitológico. É inédito que uma cor em uma tonalidade mais clara apareça na discografia de Within Temptation. P á g i n a | 92

Podemos ainda complementar que há um esvaziamento do mais escuro para o mais claro: o “H” representa a parte mais escura e pesada, a hidra com suas cabeças atravessadas na letra e inclinada para as laterais está um pouco mais clara e ameniza a escuridão enquanto todo o fundo é da cor cinza numa tonalidade leve. A hidra apesar de fazer papel de intermediário entre o mais escuro para o mais claro não deixa de mostrar sua nocividade, suas cabeças gêmeas possuem dentes afiados, olhar ameaçador e língua igual a uma seta de uma flecha bem-afiada.

Podemos interpretar que após cinco discos para resolver problemas existenciais, houve finalmente a libertação das correntes da injustiça, correntes do mal, correntes do medo etc. A liberdade pressupõe uma situação de aprisionamento, lembramos que hoje em dia a prisão não se dá mais apenas de maneira física, é possível aprisionar alguém por meio de um discurso autoritário, discurso religioso, discurso político etc., a força que uma ideia tem pode trazer tanto malefícios quanto benefícios.

Dessa forma, pensar a respeito da hidra para a banda é pensar que os fãs podem ser o ser mitológico no qual sonhos, planos, sentimentos e tantas outras “cabeças” são arrancadas, porém sempre vai brotar uma nova esperança até o limite da vida. A resistência e a coragem para trilhar o caminho da vida são o principal movimento discursivo neste último álbum. Dessa forma, vejamos abaixo uma síntese da análise do universo do sexto álbum de estúdio:

Sobreasseveração: Interdiscurso: Movimento cíclico no qual a voz de uma Diálogo com os outros álbuns na criança anuncia uma nova fase de vida e resolução dos conflitos existenciais, o seu discurso é de esvaziamento da vida e, medo e a hesitação não são mais fatores como consequência, aceitação da morte determinantes para a produção de como algo natural, como parte do discurso. Elementos disfóricos perdem a processo do ser finito. força e dão lugar à resistência e à vitalidade.

Covered by roses + Hydra

Formação discursiva: Cenas da enunciação: Elaboração de um percurso enunciativo Cena englobante: Discurso da resistência visando à motivação, à superação e à resolução de conflitos existenciais. Cena genérica: letra de música Posicionamento que ressignifica e apaga Cenografia: superação e aceitação da os elementos disfóricos que limitação e finitude do ser humano. anteriormente eram motivos de introspecção.

Figura 06 – SmartArt: análise da letra Covered by roses e do universo Hydra (2014) P á g i n a | 93

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Heavy Metal surgiu em um contexto de destruição e falta de perspectiva econômica, social e espiritual. As produções do metal pesado no final dos anos 1960 enraizaram todo o pessimismo e introspecção possíveis. As ramificações que surgiram nas décadas de 1970 e 1980 impuseram novas formas de interpretar o gênero explorando os altos e baixos de um estilo de música que ora foi considerada satânica, ora um sucesso comercial. Por fim, quando se aproxima do final dos anos 1990, um movimento com expressão feminina e musicalidade gótica ganha força e traz consigo o pessimismo em sua forma mais sólida, aguda e introspectiva.

Within Temptation inaugura de maneira definitiva o que se chama metal sinfônico, uma forma discursiva e musical distinta no cenário Heavy Metal. Diferenciada, pois enquanto a introspecção é algo constante e imutável nas letras e nos elementos musicais do gênero, o metal sinfônico se esforça para despontar a esperança e se libertar das correntes das trevas. No início, sua produção se assemelha à produção de Black Sabbath no que diz respeito ao sufocamento e ao pessimismo, o jogo entre fragilidade e agressividade foi o ponto forte.

Alguns álbuns depois, a banda se assemelha à banda Kiss, considerada até hoje elemento obrigatório no clássico do Heavy Metal. A semelhança reside em ter produzido conteúdo em diversas mídias. Neste sentido, Within Temptation explorou o universo da arte sequencial, do cinema (videoclipes e curtas-metragens), letras de música, camisetas, conteúdos por meio de QR-code, shows, turnês etc.

O processo intermidiático permitiu que aumentasse a visibilidade do trabalho da banda. É nesta fase em que a luta do bem contra o mal, no discurso das letras, chega em sua última fase. Não haveria como percorrer mais um álbum com tal confronto sem que fosse considerado “mais do mesmo”, por isso que o sexto álbum tem caráter libertador. As amarras que ora engendravam forças ocultas com gótico foram soltas e ressignificadas de modo que o discurso de hesitação presente nos cinco discos de estúdio são diluídos no sexto álbum.

A questão principal do percurso do discurso metal sinfônico é a ressignificação da vida e da morte. No início, a morte é soberana, grandiosa e absorve toda a vitalidade presente. Desse modo, é visível que o tipo de discurso é o do medo, da hesitação, da fragilidade e da impotência diante das situações adversas. Conforme a produção dos álbuns acontece, a hesitação perde espaço e o discurso de resistência ao medo começa a brotar de maneira constante e vai tomando proporções cada vez maiores. P á g i n a | 94

Enquanto o primeiro e o segundo álbuns colocam as relações de vida e morte fora do controle do ser humano, o terceiro álbum retira totalmente qualquer possibilidade de compreensão e controle da própria existência. É justamente no terceiro álbum que há um grau elevado de avaliação de si próprio. É no The silent force que o sujeito do discurso está no fundo do poço.

Campbell (1990) aponta que é no fundo do abismo que a esperança aparece. Então, é a partir do quarto álbum de estúdio que a luta contra o mal começa. Em The Heart of everything a luta é no campo religioso, em The unforgiving a luta acontece pela vingança por meio do sobrenatural e processos intermidiáticos. Por fim, em Hydra há a libertação definitiva do medo e da hesitação.

A vida é valorizada, a morte não deixa de existir, ela ainda persegue, porém, o enunciador tem a consciência de que enquanto a vida não se esgota há motivos variados para ser feliz e aproveitar o que os trajetos podem oferecer. Em suma, o último álbum está alicerçado no conceito de carpe diem. Dessa forma, a manifestação distinta do Within Temptation dentro do metal gótico (vide anexo da árvore genealógica do HM) faz com que a banda insira o metal sinfônico de maneira sólida, isso porque os precursores do symphonic metal são as bandas Therion, Tiamat e .

Por meio dos conceitos da análise do discurso foi possível verificar que o percurso das letras resultou no encontro da solução dos problemas existenciais. Possivelmente, as produções futuras da banda devem seguir um rumo no qual as letras estimulem mais os conjuntos de valores eufóricos e inter-relacionem os outros contextos discursivos produzidos como lembrança de algo já superado. Em contrapartida, caso haja um novo mergulho nas trevas, este será de maneira que o medo não consiga tornar o discurso gótico introspectivo e pessimista, haverá provavelmente estímulo e vitalidade em meio a um turbulento mar de emoções disfóricas.

Dessa forma, confirmou-se que o discurso metal sinfônico ressignifica a relação entre a vida e a morte aceitando-as como processo natural do ser humano. Ainda há uma última consideração a respeito do percurso do discurso da banda: passar do discurso religioso para o discurso da vingança para enfim se libertar talvez não fosse um caminho adequado. Talvez a cronologia The unforgiving, The heart of everything e, por fim, Hydra fosse mais adequada, no sentido de que traria a superação da vingança, a busca pela paz e, por fim, a resolução existencial em seu grau mais íntimo. P á g i n a | 95

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ANEXOS

Our solemn hour – The heart of everything – Within Temptation (2007)

Sanctus Espiritus redeem us from our solemn hour Sanctus Espiritus insanity is all around us Sanctus Espiritus! Sanctus Espiritus! Sanctus Espiritus!

In my darkest hours I could not foresee That the tide could turn so fast to this degree Can’t believe my eyes How can you be so blind? Is the heart of stone, no empathy inside? Time keeps on slipping away and we haven’t learned So in the end now what have we gained? Sanctus Espiritus, redeem us from our solemn hour Sanctus Espiritus, insanity is all around us Sanctus Espiritus, is this what we deserve, can we break free from chains of never-ending agony?

Are they themselves to blame, the misery, the pain? Didn’t we let go, allowed it, let it grow? If we can’t restrain the beast which dwells inside it will find it’s way somehow, somewhere in time Will we remember all of the suffering Cause if we fail it will be in vain

Sanctus Espiritus, redeem us from our solemn hour Sanctus Espiritus, insanity is all around us Sanctus Espiritus, is this what we deserve, can we break free from chains of never-ending agony

Fonte: http://www.within-temptation.com/discography/04-our-solemn-hour/.

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Iron – The Unforgiving – Within Temptation (2011)

Left in the darkness Here on your own Woke up a memory Feeding the pain You cannot deny it There's nothing to say It's all that you need to fire away

Oh damn, the war is coming Oh damn, you feel you want it Oh damn, just bring it on today

You can't live without the fire It's the heat that makes you strong 'Cause you're born to live and fight it all away You can't hide what lies inside you It's the only thing you've known You'll embrace it and never walk away Don't walk away

Don't walk away Don't walk away Don't walk away

Raised in this madness You're on your own It makes you fearless Nothing to lose

Dreams are a joke here They get in your way That's what you need to fight day by day P á g i n a | 101

Oh damn, the war is coming Oh damn, you feel you want it Oh damn, just bring it on today

You can't live without the fire It's the heat that makes you strong 'Cause you're born to live and fight it all away You can't hide what lies inside you It's the only thing you've known You'll embrace it and never walk away Don't walk away

(You need not fear us, Unless you are a Darkheart A vile one who preys on the innocent I promise You can't hide forever from the empty darkness For we will hunt you down like the animals you are And pull you into the very bowels of hell)

Oh damn, the war is coming Oh damn, you feel you want it Oh damn, just bring it on today

You can't live without the fire It's the heat that makes you strong 'Cause you're born to live and fight it all away You can't hide what lies inside you It's the only thing you've known You'll embrace it and never walk away Don't walk away, don't walk away, don't walk away, don't walk away

Fonte: http://www.within-temptation.com/discography/06-iron/. P á g i n a | 102

Covered by roses – Hydra – Within Temptation (2014)

I feel my heart explode to particles. Love is always here and I told you so. Restless in dreams love carved in stone This rhapsody of life in a way I guess we all know it.

Hand in hand we stand while we watch you flow Heaven can you help us, where we can't go.

Covered by roses When this dance is over We all know all beauty will die. The choirs have awoken Left no words unspoken Remember you as long as I can Hold you in my arms all night And spill the wine until the end We all have our place in time, Need to live every moment

We built our castles high Turned our dreams to gold. We took the blows with pride Went through it all. The dawn is closing in New tales are told This rhapsody of life In a way, I guess we all know.

Covered by roses When this dance is over We all know all beauty will die. The choirs have awoken Left no words unspoken Remember you as long as I can Hold you in my arms all night And spill the wine until the end We all have our place in time, Need to live every moment P á g i n a | 103

For all we are is falling stars in the night A blinding light raging down from the sky The rise and fall, the rhapsody of our lives It's all we are and know, we've got to let go

[Spoken:] She dwells with beauty, beauty that must die. And joy, whose hand is ever at his lips. His soul shall taste the sadness of her might And be among her cloudy trophies hung.

Covered by roses When this dance is over We all know all beauty will die. The choirs have awoken Left no words unspoken Remember you as long as I can Hold you in my arms all night And spill the wine until the end We all have our place in time Need to live every moment

Fonte: http://www.darklyrics.com/lyrics/withintemptation/hydra.html#2

P á g i n a | 104

Breathe No More – Anywhere but home – Evanescence (2004)

[Piano Solo Opening] I've been looking in the mirror for so long. That I've come to believe my soul's on the other side. All the little pieces falling, shatter. Shards of me, Too sharp to put back together. Too small to matter, But big enough to cut me into so many little pieces. If I try to touch her, And I bleed, I bleed, And I breathe, I breathe no more. Take a breath and I try to draw from my spirits well. Yet again you refuse to drink like a stubborn child. Lie to me, Convince me that I've been sick forever. And all of this, Will make sense when I get better. But I know the difference, Between myself and my reflection. I just can't help but to wonder, Which of us do you love. So I bleed, I bleed, And I breathe, I breathe no... Bleed, I bleed, And I breathe, I breathe, I breathe- I breathe no more. [Piano Solo Ending]

Fonte: http://www.azlyrics.com/lyrics/evanescence/breathenomore.html.

P á g i n a | 105

Árvore genealógica do Heavy Metal

P á g i n a | 106

Capa do disco Enter (1997)

P á g i n a | 107

Capa do disco Mother Earth (2003)

P á g i n a | 108

Capa do disco The silent force (2004)

P á g i n a | 109

Capa do disco The Heart of Everything

P á g i n a | 110

Contracapa do disco The Heart of Everything (2004)

P á g i n a | 111

Capa do disco The Unforgiving (2011)

P á g i n a | 112

Capa do disco Hydra (2014)