Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Caroline Nogueira Accioly

A autonomia desportiva na Constituição da República de 1988

Mestrado em Direito

São Paulo 2016 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Caroline Nogueira Accioly

A autonomia desportiva na Constituição da República de 1988

Mestrado em Direito

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Desportivo, vinculado à área de concentração Efetividade do Direito sob a orientação do Prof. Dr. Paulo Sérgio Feuz.

São Paulo

2016 Folha de aprovação

BANCA EXAMINADORA:

1. ______

2. ______

3. ______“As leis do jogo são as únicas que em toda parte são justas, claras, invioláveis e executadas.” Voltaire Aluna bolsista do CNPq no período de dezembro de 2015 a agosto de 2016. Dedico este trabalho a todos que contribuíram de forma direta ou indireta para a conclusão do meu curso de mestrado, em especial: Marcelo Costa, Cristina Nogueira, Ricardo Pinto, Claudia Hartje, Jorge Cruz, Prof. Dr. Angelo Vargas e Prof. Dr. Aurelio Wander Bastos. Agradecimentos

&HUWDYH]OLXPDIUDVHTXHPHLQWULJRXSURIXQGDPHQWH³ Estudar é a melhor forma de se rebelar contra o sistema. ´$FKHLWmRLQWHUHVVDQWHTXHGHFLGLQDTXHOH momento que tal assertiva encontraria espaço nesta dissertação. Isso porque o caminho do estudo não é dos mais fáceis, mas certamente é dos mais gratificantes. Meu pai costumava dizer que a melhor herança que podemos dar a um filho é o conhecimento. Ele estava certo. Com estudo vamos a qualquer lugar e as barreiras geográficas, sociais, culturais ficam em segundo plano quando o objetivo maior é o aprendizado.

Traçar um caminho e segui-lo, mesmo quando este caminho não é dos mais tradicionais, cria nas pessoas próximas um misto de curiosidade e objeção. O Direito Desportivo ainda é disciplina insipiente no meio jurídico e a pouca informação somada ao mercado fechado, causa certamente desconfiança até nos próprios profissionais do meio jurídico. Iniciativas que objetivem a expansão do ramo são bem-vindas e nesta empreitada eu embarquei confiante.

Durante essa jornada e esse desafio que foi cursar a primeira turma do primeiro mestrado em Direito Desportivo no país, promovido pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ± PUC SP, pude contar com a torcida de muitas pessoas, que não só me aconselharam como também, de forma ou outra, viabilizaram a continuidade dos meus estudos.

Ocorre que, vez ou outra, nossas vidas se tornam tão caóticas e mecanizadas que nos esquecemos de aperceber daqueles que atuam como verdadeiros anjos da guarda.

A trajetória não foi simples. Muitas vezes a desistência vinha como uma ideia quase sem oposição no meu coração, mas o sofrimento com a imagem da derrota me fez seguir em frente. Ainda assim nada seria possível sem o incansável e incondicional apoio do meu orientador, Professor Dr. Paulo Sérgio Feuz, que de forma paternal me trouxe apoio, conforto e motivação. A paixão pelo Direito Desportivo é o que nos une e permitiu que o curso se tornasse o sucesso que é.

Professor, obrigada por guiar a mim e seus demais alunos apaixonados pelo Direito Desportivo pelo caminho da ciência, pesquisa e aprendizado contínuo. CAROLINE NOGUEIRA ACCIOLY

A autonomia desportiva na Constituição da República de 1988

RESUMO: Após a Constituição de 1988 o esporte obteve lugar de maior destaque em nossa sociedade, através de sua inserção na Carta Magna na forma de um capítulo. Essa inovação trouxe consigo aquele que representa a mola central de todo o sistema desportivo pátrio: o principio da autonomia desportiva. O objetivo deste trabalho é caracterizá-lo, entendê-lo e delimitá-lo para que sua aplicabilidade não seja menosprezada nem alargada, fornecendo ao Direito Desportivo a proteção de que este necessita para seu contínuo desenvolvimento em nosso país.

Palavras-chave: direito desportivo, esporte, autonomia, Constituição de 1988.

ABSTRACT: After the 1988 Constitution sports received a more prominent place in our society, through its inclusion as a chapter in our Lex Mater. This innovation created the backbone of our sports system: the principle of autonomy of sport. The purpose of this study is to characterize, understand and delimit it so that its applicability is neither overlooked or enlarged, providing the necessary protection to the Sports Law and for its continued development in our country.

Keywords: sports law, sports, autonomy, Constitution of 1988. SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 12

1. O QUE É ESPORTE...... 13

1.1 Origens ...... 13

1.2 Esporte ou Desporto? ...... 19

1.3 Uma proposta de conceituação do esporte hoje ...... 20

2. DIREITO DESPORTIVO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988...... 24

3. DA AUTONOMIA DESPORTIVA...... 32

3.1 O que é um princípio ...... 32

3.2 O que é autonomia ...... 36

3.3 Do princípio da autonomia desportiva ...... 38

3.4 Do limite da autonomia no esporte ...... 41

3.5 Do fomento estatal ...... 46

3.6 Das decisões dos tribunais acerca da autonomia desportiva ...... 49 CONCLUSÃO...... 51

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...... 53

ANEXOS...... 58 12

INTRODUÇÃO

Ousar perante as novas ideias que inquietam a sociedade na qual estamos inseridos é o desafio dos pesquisadores do Direito, que para isso lutam contra atitudes limitadas, combatendo a tendência jurídica de concentrar esforços nas normas e não na realidade social.

O acelerado progresso de questões ligadas ao esporte exigiu respostas jurídicas imediatas, haja vista a mudança em torno de tudo que envolve o desporto, hoje ocupando um lugar de destaque nas sociedades modernas, onde empresta seu clamor para contribuir com a manutenção da paz e a congregação entre os povos.

Não obstante, o conceito clássico de esporte que girava em torno de saúde e bem-estar já resta superado pela definição que engloba um movimento multidisciplinar e altamente rentável, que suscita a atenção de todos os povos, se firmando como aspecto imprescindível da vida contemporânea e atraindo a atenção do Estado enquanto agente fomentador.

O prazer e ludicidade da prática desportiva deram lugar a grandes espetáculos que fazem do esporte um negócio que cresce em ritmo acelerado. Essa mudança de paradigma trouxe com ela a sanha arrecadatória dos governos, assim como uma maior necessidade de regulamentação e controle.

Considerando o aperfeiçoamento dos conceitos que envolvem o desporto e sua organização, não poderíamos deixar de antever que tais remates chegariam à seara jurídica algum dia, fortalecendo e direcionando as entidades que compõem o cenário esportivo recente.

Com base nisso a presente dissertação tem por escopo tecer considerações a respeito daquele que representa o maior dogma da legislação desportiva: a autonomia.

Por ser a mola central de todo o ordenamento jurídico-constitucional desportivo e também o tema de maior repercussão nos círculos daqueles que militam na área, o princípio em comento merece uma análise aprofundada e que 13

destaque suas origens, aplicabilidade e limites, que quase sempre são traduzidos de forma apaixonada e por vezes imprecisas na seara desportiva.

O estudo se revela de suma importância para aqueles que militam na área e os demais que estudam o tema, posto que estabelecer um conceito objetivo da autonomia desportiva e fincar seus limites ajuda a compreender a importância do instituto, suas vantagens e limitar assim interferências estatais que prejudicariam o bom andamento das competições.

O trabalho em comento, longe de esgotar o tema, tem a missão de ser mais um a perfilhar os (ainda) pouco conhecidos caminhos que encampam o Direito Desportivo.

1. O QUE É ESPORTE

1.1 Origens

O esporte, numa visão contemporânea, é fruto da lenta evolução da sociedade na qual estamos inseridos. Até pouco tempo atrás seria impensável um trabalho que abordasse tal temática haja vista o caráter meramente lúdico que acompanhava a prática desportiva.

As mais longínquas origens do que podemos chamar de legislação desportiva rudimentar está nos povos primitivos que praticavam atividade física atrelada a cultos religiosos que tinham por finalidade exaltar um Deus ou herói. Os povos antigos cumpriam fielmente as regras do que podemos chamar de rascunho de uma legislação desportiva. Isso porque os exercícios sempre finalizavam com cultos às divindades, o que deixava bem claro a estreita relação entre o misticismo e a atividade física. Nesse sentido preleciona Álvaro de Melo Filho:

“(...) já há 4.000 anos a.C. os egípcios faziam exercícios físicos e as Leis de Manu emprestavam à ginástica um sentido religioso, impondo a sua prática obrigatória. Na China, no ano 3.000 a.C., houve uma seita cujo rito constava de ginástica, entremeada de exercícios respiratórios, massagens, fricções e hidroterapia. Assim, nos primórdios preponderava, antes de tudo, um sentido eminentemente místico (desporto e religião eram inseparáveis). 14

Atribui-se, aqui, aos exercícios físicos a presença de uma atitude espiritual capaz de atrair o favor dos deuses (...)” 1 Já os jogos greco-romanos pendiam para um cunho social e político, alimentados pela preocupação dos governantes locais de manter o povo na mais absoluta ignorância sobre os assuntos estatais.

O termo desporto tem origem no século XIV quando então designava os passatempos que envolviam habilidades físicas, realizados pelos marinheiros que VHHQFRQWUDYDP³GHSRUWR´ 2

No Brasil Colônia, com a vinda dos padres jesuítas veio também a inserção de práticas corporais ensinadas aos indígenas, que eram desde a tenra idade LQVHULGRV QRV ³MRJRV GH PHQLQRV GR UHLQR¶ TXH QDGD PDLV HUDP TXH SUiWLFDV aristocráticas que atravessaram o tempo e incluíam técnicas de postura, andar e gesticular, aplicadas ao cotidiano.

Os jogos faziam parte da vida diária também dos adultos que durante as festas públicas praticavam a cavalhada como forma de entretenimento. Os primeiros relatos que temos destas demonstrações desportivas remontam as festas promovidas por João Mauricio de Nassau em janeiro de 1641 e da aclamação de D. João VI.

As cavalhadas consistiam em desfiles de cavalos, corridas de cavaleiros e jogos de argolinhas que tinham como objetivo demonstrar uma maneira de se comportar, de se portar. Seu valor era simbólico e representava a polidez em detrimento do bárbaro. Os cavaleiros eram admirados por homens e mulheres, pois expressavam a cultura do corpo adaptado à nobreza, um saber singular e invejado.

Neste mister os portugueses eram especialistas, sendo os mais extraordinários cavaleiros de sua época e por conta disso as cavalhadas foram rapidamente incorporadas ao cotidiano da vida na colônia.

Em relação a este que pode ser considerado o primeiro esporte praticado por aqui, vários estrangeiros deixaram sua impressões acerca dos belíssimos

1 MELO FILHO, 1995, p. 19 2 TUBINO, 1999, p. 8 15

combates simulados travados com extrema habilidade por cavalheiros e cavaleiros: cavalheiros não portavam espadas e somente a nobreza possuía o direito de ostentar uma durlindana. 3

Mais tarde a equitação de trabalho, antes desprezada em detrimento da cavalgada clássica e que consistia em tarefas como transpor rios e laçar animais, disseminou-se na colônia, tanto entre as elites, como entre a classe trabalhadora:

“Os tropeiros paulistas, como classe, diferem muitíssimo dos mineiros e condutores que visitam o Rio de Janeiro. Têm certa rusticidade de aspecto, que, misturada à inteligência e algumas vezes à benignidade, dá às suas feições uma expressão peculiar. Usam geralmente uma grande faca pontuda, metida atrás da cinta. Essa faca de ponta é para eles talvez mais essencial do que a faca do marinheiro é para este. Serve para cortar mato, para consertar arreios, para matar e preparar um animal, para cortar o alimento, e em caso de necessidade, para defender ou assaltar. ”4 No Brasil do século XIX um esboço do que viria a ser a prática desportiva como a conhecemos hoje chegava à capital do Império (Rio de Janeiro) 5 trazida pelos viajantes que aqui aportavam e davam notícia da nova forma de divertimento/vivência social já tão difundida na Europa.

Com a edição do Código do bom-tom ou Regras da Civilidade e de bem viver no século XIX , em Portugal, que trazia algumas regras basilares que forjavam os cavalheiros da época, D SUiWLFD GRV GHQRPLQDGRV ³MRJRV GH FDYDOKHLURV´FRQVWLW uíam aspecto da civilidade e WUDEDOKDYDPD³JUDFLRVLGDGH´TXH os nobres deveriam exibir, frutos de sua herança e formação.

Neste aspecto, o corpo são e a capacidade para exercitar-se refletiam qualidades morais, boa disposição mental, caráter e equilíbrio. Esse ³DGHVWUDPHQWR´GHFRQWUROHFRUSRUDOHUDIUHTXHQWHPHQWHLQYRFDGRQD(XURSDSDUD diferenciá-los dos bárbaros.

Baseada na conhecida notabilidade dos cavaleiros portugueses, que gozavam de imensa tradição junto aos seus vizinhos europeus, um dos primeiros

3 Um tipo de espada. 4 KIDDER e FLETCHER apud DEL PRIORE, 2009, p. 27. 5 Única capital imperial das Américas! 16

esportes que de forma organizada por aqui se estabeleceu foi o turfe, conforme descreve Mary Del Priore:

“Depois das experiências pioneiras realizadas desde a década de 1810, foi mesmo a partir de 1825 que as corridas de cavalo se tornaram mais organizadas e começaram a chamar a atenção das elites cariocas (...). Ainda assim, é somente em 1847 que se observa um decisivo avanço. Mais do que um anúncio convocando para as corridas, foi publicado no Jornal do Commércio 6 um manifesto que futuramente daria origem ao primeiro clube de turfe brasileiro. Foi a partir dessa iniciativa que surgiu definitivamente a ideia de desenvolver no país o esporte de acordo com o que já existia na Europa.” 7 O desenvolvimento do campo esportivo nas sociedades onde ele primeiramente se organizou no século XIX (Estados Unidos, França e Inglaterra) foi fortemente influenciado pela revolução industrial e o crescimento das cidades e de uma cultura urbana de culto ao corpo, à saúde e à higiene.

Nessa época o Brasil era ainda um país agrícola e pouco populoso que só viu o crescimento do esporte aflorar com a vinda da família real em 1808 que com ela, além de ouro, arte e nobreza, trouxe também o esboço das atividades praticadas pela corte europeia que incluía o turfe, o remo, as corridas a pé e algumas atividades que jamais conseguiram se estruturar como esporte, mas eram noticiadas na época como tal, em especial os banhos de mar e o jogo do bicho.

O desenvolvimento do desporto na Idade Moderna foi impulsionado pelos estudantes ingleses que reinventaram várias provas do atletismo, além da criação do rugby e das regras do futebol como o conhecemos hoje. Em relação à legislação, os bretões instituíram conjuntos de regras fixas para diversas modalidades desportivas com a finalidade de homogeneizar a prática.

Assim como no restante do mundo, a inserção do esporte na sociedade pátria foi permeada por aspectos que no decorrer do tempo tomaram outros contornos, transformando e, por que não dizer, reinventando o papel da atividade física nas nossas vidas:

6 Jornal do Commércio, Rio de Janeiro, 6 mar. 1847, p. 03 apud DEL PRIORE, 2009. 7 DEL PRIORE, 2009, p. 47. 17

“Em um mundo no qual se cultiva de forma intensa o conflito, o esporte propicia o desenvolvimento de princípios aplicáveis a outras áreas do comportamento humano, tais como integração social e racial (...) Quando falei da função social, pensei nessa ideia da tolerância, porque aprendemos a ganhar, mas também a perder. Isso é fundamental como regra de civilidade, do contrário se instauraria uma selvageria, o vale-tudo. ”8 Apesar da prática já iniciada no século XVIII, as touradas adquiriram por aqui importante aspecto relacionado às festividades, e as corridas de touros eram bastante apreciadas pela população. Uma das mais famosas corridas realizadas foi aquela feita por ocasião do casamento de nosso então futuro imperador D. Pedro com Dona Carolina Leopoldina nos idos de 1817. Questão interessante diz respeito a arena para tal festividade construída na época onde hoje se localiza o Campo de Santana, no Centro, lugar onde concentra hoje também o prédio da Faculdade Nacional de Direito (FND) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ ± Universidade do Brasil) 9 e que já abrigou o Senado e anos depois a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea.

Também em São Paulo as touradas tiveram papel importante, principalmente a que foi organizada por ocasião da aclamação de D. João VI em 1818 e cuja arena foi construída onde hoje se localiza a Praça da República. Tempos depois essas touradas começaram a receber muitas críticas, seja porque as promovidas pela família real eram bancadas às custas do erário nacional 10 , seja por sua brutalidade que fez com que aos poucos outras atividades fossem ocupando seu espaço. O próprio Machado de Assis 11 chegou a publicar crônica se manifestando contra as touradas por entendê-las não condizentes com uma sociedade civilizada:

“O certo é que se eu quiser dar uma descrição verídica da tourada de domingo passado, não poderei, porque não a vi. Não sei se já disse alguma vez que prefiro comer o boi a vê-lo na praça. Não sou homem de touradas; e se é preciso dizer tudo, detesto-as.” 12 Pouco a pouco as touradas foram dando lugar às corridas de cavalo: modismo vindo da Europa e importado juntamente com os laços comerciais entre

8 MACHADO, 2007 apud ADIN 2937/DF. 9 Salve, salve! 10 Qualquer semelhança com o contexto atual é mera coincidência! 11 Primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras. 12 Gazeta de Notícias de 15 de março de 1877. 18

Brasil e Inglaterra após o retorno de grande parte da família real a Portugal, em 1820.

Já no fim do século XIX a preocupação com a estética corporal, outrora centrada em corpos magros e de olheiras profundas começou a dar sinais de mudança e um novo tipo físico, forte e hercúleo, colocou o remo no centro da cultura física que aflorava na época. A influência europeia foi marcante no desenvolvimento dos primeiros clubes de remo no país, que transmitiam a ideia de domínio corporal, saúde e leveza. A primeira federação esportiva criada no Brasil foi o Comitê de Regatas na cidade de Porto Alegre em 1894.

O reinado do remo só foi abalado quando outro esporte desembarcou no país revolucionando toda a relação da população com o esporte: o futebol.

Nascido com o capitalismo, o futebol logo ganhou força por ser uma atividade que congregava grupos, não exigia nenhum atributo físico específico, admitia o acaso e podia ser disputado em qualquer condição. Rapidamente a atividade se tornou uma espécie de religião dentre a classe operária inglesa.

Com o consumo transitando entre os povos, não tardou que os primeiros chutes fossem dados por aqui por marinheiros britânicos que desembarcavam nas costas e escolhiam o esporte como lazer. Logo as primeiras partidas envolvendo operários brasileiros e funcionários ingleses em gramados improvisados empolgaram a população.

Mas de fato o futebol só passou a fazer parte da realidade do povo brasileiro alguns anos depois, com a difusão do esporte nas escolas e o retorno do então estudante Charles Wiliam Miller, que após ter passado dez anos na Inglaterra estudando, voltou a São Paulo trazendo o primeiro livro de regras do football , além de duas bolas, uma bomba de ar, um par de chuteiras e camisas de times bretões.

Em 1895 foi promovido o primeiro jogo que se tem relato: funcionários da Companhia de Gás versus os funcionários da São Paulo Railway. Em dezembro de 1901 nasceu a primeira liga de clubes do país que começou a promover o 19

Campeonato Paulista de Foot-ball e logo depois o primeiro confronto Rio de Janeiro ± São Paulo, que colocava em evidência o eixo econômico de nosso país:

³E tudo estava muito certo, muito direito. Os filhos no campo, as filhas nas arquibancadas. Pais, filhos, a família toda. Podia-se dizer: as famílias todas. O que havia ali, no campo, na arquibancada, havia nos bailes do Clube das Laranjeiras, mais do Fluminense e Paissandu, havia nas festas e festinhas da Casa da Dona Chiquitota, da casa dos Hime, mais do Botafogo.”13

1.2 Esporte ou desporto?

O esporte como conhecemos é fruto da evolução social e existe enquanto produto da modernidade que se difundiu de tal forma que podemos dizer que já nasceu globalizado.

A veloz disseminação da cultura esportiva no final do século XIX e primeiras décadas do século XX veio embalada pela revolução industrial e encontrou seu ápice apoiado em dois argumentos que legitimam a prática desportiva: a educação e promoção da saúde.

Enquanto fenômeno sócio-cultural, o esporte conquista, a cada ano, um número maior de participantes e mesmo dentre os não praticantes, o crescente interesse midiático ratifica a importância do tema.

Frequentemente nos deparamos com a clássica divergência acerca da denominação esporte ou desporto. No Brasil, por influência portuguesa que até hoje utiliza o termo desporto, o adotamos também no Decreto-Lei nº 3.199 de 1941. 14

A expressão permanece entre nós até os dias atuais através do artigo 217 da nossa Carta Magna que intitula o capít XOR ³'R 'HVSRUWR´ Apesar disso, o professor Manoel Tubino declara preferir o termo esporte por sua universalidade e ligação com uma ciência do esporte. 15

13 RODRIGUES, 2003, p. 44-45. 14 Primeira lei do esporte no Brasil. 15 TUBINO, 1999, p. 10 20

Particularmente entendo não haver grande diferença entre os termos, ambos designando os mesmos institutos, porém, filio-me à corrente que prefere a expressão esporte, por ser este o verbete de maior difusão em vários idiomas, como o inglês, o alemão e o italiano.

1.3 Uma proposta de conceituação do esporte hoje

Apesar de não constituir o tema central deste trabalho, a conceituação de esporte sempre gerou dúvidas dentre os estudiosos do tema. Isso porque quando pensamos na Copa do Mundo ou nos Jogos Olímpicos, é fácil imaginar o que seja o esporte. Porém, em um estudo aprofundado, esse conceito pode soar deveras complexo. Isso porque alguns fenômenos, como o jogo, a brincadeira e o trabalho às vezes podem ser confundidos com ele, levando ora a um entendimento muito restrito, ora muito elástico do que vem a ser o esporte.

O jogo, segundo Huizinga, é muito anterior a noção de cultura e se caracteriza por ser gênero que tem como uma de suas espécies o esporte:

“(o jogo) é limitado no tempo, não tem contato com qualquer realidade exterior a si mesmo e mantém seu fim em sua própria realização. Caracteriza-se, além disso, pela consciência de se tratar de uma atividade agradável, que proporciona um relaxamento de tensões da vida cotidiana .”16

A brincadeira pode ser diferenciada do esporte por ser um fim em si mesma, além de não seguir as rígidas normas de organização atribuídas ao esporte. Apesar da imprevisibilidade do resultado e do uso de habilidades relativamente complexas estarem presentes, ela é imbuída de ludicidade e se encerra em seu sentido recreativo.

Em relação ao trabalho, cabe aqui ressaltar que para muitos atletas de alto rendimento o esporte é meio de sustento, sendo sua participação motivada pelo fator extrínseco relacionado aos prêmios. Ocorre que a diferença entre esses dois conceitos é tênue, cabendo aqui a reprodução do que escreveu Huizinga:

16 HUIZINGA, 1951, p. 16 21

³A indeterminação das fronteiras entre o jogo e a seriedade tem um exemplo perfeito na expressão ‘jogar na Bolsa’. O jogador de roleta não terá dúvida alguma em reconhecer que está jogando, mas já o mesmo não sucederá com o corretor de valores. Este último sustentará que a compra e venda, ao sabor das altas e baixas da Bolsa, fazem parte das coisas sérias da vida, ou pelo menos da vida dos negócios, e constitui uma função econômica da sociedade. Em ambos os casos, o fator operante é a esperança do lucro. Mas enquanto no primeiro caso o caráter puramente fortuito da coisa é geralmente reconhecido (não obstante todos os ‘sistemas’); no segundo, o jogador se ilude a si mesmo com a ideia de que é capaz de prever a tendência futura do mercado. Seja como for, é ínfima a diferença de mentalidade entre ambos os casos.” 17

O fato é que por longo tempo o esporte era visto sob a ótica do alto rendimento. O mundo o enxergava como forma de demonstrar uma supremacia racial, econômica ou cultural. Somente em 1964 com a assinatura do Manifesto do Desporto, outras manifestações esportivas foram levadas em consideração como o esporte escolar e o de participação.

Em 1978 a Unesco publicou sua Carta Internacional de Educação Física e Esporte, ampliando consideralvelmente a magnitude da prática esportiva:

“Artigo 1 – A prática da educação física, da atividade física e do esporte é um direito fundamental de todos.

1.1 Todo ser humano tem o direito fundamental de acesso à educação física, à atividade física e ao esporte, sem qualquer tipo de discriminação com base em etnia, gênero, orientação sexual, língua, religião, convicção política ou opinião, origem nacional ou social, situação econômica ou qualquer outra.

1.2 A liberdade de desenvolver habilidades físicas, psicológicas e de bem-estar, por meio dessas atividades, deve ser apoiada por todos os governos e todas as organizações ligadas ao esporte e à educação.” Atualmente o esporte é visto sob um prisma que abrange suas três dimensões: esporte educacional, esporte de participação e esporte de rendimento, todos eles abarcados pela Constituição da República de 1988:

³Art . 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um, observados:

(...)

17 HUIZINGA, 1951, p. 61 22

§ 3º O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.” Todavia, o desporto, antes atividade recreativa, deu lugar a um negócio rentável na atualidade, deixando margem a uma maior regulação estatal e ganhando até mesmo acaloradas discussões em nossa Corte Suprema. 18

A diferenciação entre as práticas esportivas formais e não formais se encontra de maneira bastante didática na Lei nº 9.615/98 (Lei Pelé):

“Art. 1o O desporto brasileiro abrange práticas formais e não formais e obedece às normas gerais desta Lei, inspirado nos fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito.

§ 1o A prática desportiva formal é regulada por normas nacionais e internacionais e pelas regras de prática desportiva de cada modalidade, aceitas pelas respectivas entidades nacionais de administração do desporto.

§ 2o A prática desportiva não formal é caracterizada pela liberdade lúdica de seus praticantes.”

Levando em consideração o disposto na Constituição de 1988 e também na Lei Pelé, fica fácil deduzir que hoje o conceito de esporte é mais amplo do que outrora, e abrange outras formas de prática além daquela que visa as competições de alto rendimento. Ocorre que com a ampliação do vocábulo, mais árdua é a tarefa de diferenciá-lo de outras menifestações.

Em conversas com o Prof. Dr. Paulo Sergio Feuz, meu orientador na PUC São Paulo, o mesmo me apresentou seu conceito de esporte que peço vênia para compartilhar:

“Esporte é uma atividade física ou mental, praticada pelo ser humano, com o intuito de lazer, recreação, competição, medicinal ou educacional e tem como fundamento o respeito ao próximo, à ética, à solidariedade, à competitividade em igualdade de condições, à superação física e mental e, principalmente, à valorização da dignidade da pessoa humana.”

Apesar do conceito amplo e atualizado do professor paulista, fato é que a maioria da doutrina nacional e estrangeira ainda entende que a competição faz parte do conceito de esporte:

18 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2937/DF.

23

“Esporte é uma atividade competitiva institucionalizada que envolve esforço físico vigoroso ou o uso de habilidades motoras relativamente complexas, por indivíduos, cuja participação é motivada por uma combinação de fatores intrínsecos e extrínsecos”. 19

“A human activity capable of achieving a result requiring physical exertion and/or physical skill, which, by its nature and organization, is competitive and is generally accepted as being a sport.” 20

“An activity involving physical exertion and skill in which an individual or team competesagainst another or others for entertainment.” 21

Ousarei discordar dos conceitos vigentes tendo como norte o fato de que a Constituição de 1988 considera em seu artigo 217 as três dimensões do esporte: educacional, de participação e de rendimento, somente este último embasado pela necessidade da competição.

Além disso, sendo o desporto educacional aquele que objetiva a congregação, a interação e a educação de seus partícipes, é mister que se inclua nesse contexto os esportes da mente, aqueles que, mesmo não gozando da primazia do esforço físico, trazem à baila as noções de disciplina, educação e fair play .

Em relação aos jogos da mente, há de se ressaltar o advento dos badalados E-Sports, que arrebanham milhares de jovens que competem em grandes arenas onde os jogos são transmitidos a um sem número de torcedores.

Não há como negar o fato de que quando alguém se dispõe a praticar uma atividade física com regularidade está a fazer esporte, ainda que não participe de nenhuma competição. Além disso, atividades que demandam outros esforços além do físico devem ser contempladas num conceito de esporte mais condizente com a realidade atual.

Isso posto, esporte pode ser definido como qualquer atividade física ou mental, competitiva ou não, que contenha regras pré-definidas em consonância

19 BARBANTI, 2006, p. 56 20 Definição dada por Australian Sport Commission (ASC). 21 Definição trazida pela Oxford Dictionaries. 24

com os ideais olímpicos e que vise a superação do indivíduo através de sua prática:

a) Atividade física ou mental: um moderno conceito de esporte deve abarcar atividades de cunho eminentemente mental, mas já consagradas pela doutrina como esportes, como é o caso do xadrez e da Fórmula 1, além dos recém-criados E-Sports. b) Competitiva ou não: o conceito de esporte não pode estar atrelado a competições haja vista que a própria Constituição englobou o desporto de participação e o educacional como dimensões atuais. c) Regras pré-definidas: o conceito de esporte passa pelo de normatização e uniformização das regras, que asseguram, dentre outras coisas, a igualdade de condições entre os participantes. d) Em consonância com os ideais olímpicos: esses princípios expressos na Carta Olimpica 22 dizem respeito à amizade, saúde, bem-estar e fair play que deve nortear a prática desportiva. e) Que vise a superação do indivíduo através de sua prática: o objetivo precípuo do esporte é a oportunidade de autoconhecimento e superação advinda de seu contínuo exercício. Às vezes é necessário superar o adversário, mas mais frequentemente, nosso maior adversário somos nós mesmos. Ainda que não integre competições, o partícipe deve estar atento aos benefícios frutos da persistência e força de vontade que permeiam o desporto e fazem com que este seja um dos maiores movimentos sócio-culturais de nossa época.

2. DIREITO DESPORTIVO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Não obstante ser o esporte um aspecto importante na vida do homem moderno, não podemos olvidar que em relação a ele houve um abandono

22 "Est une philosophie de la vie, exaltant et combinant en un ensemble équilibré les qualités du corps, de la volonté et de l'esprit. Alliant le sport à la culture et à l'éducation, l'Olympisme se veut créateur d'un style de vie fondé sur la joie dans l'effort, la valeur éducative du bon exemple et le respect des principes éthiques fondamentaux universels." 25

intelectual, e principalmente jurídico, posto que muitos ainda o consideram uma manifestação de caráter pueril e desprovida de cientificidade:

“Este relativo abandono no resulta fácil de explicar; em todo caso únicamente puede hacerse relacionándolo com la consideración como “cuestión menor” que los intelectuales em general y los juristas em particular han tenido de lo desportivo y de todo aquello que fuera proyección meramente corporal del actuar humano. Este extendido demérito por lo físico nos impone realizar uma brevísima reflexión al respecto. La falsa dicotomia entre físico e intelecto _ a buen seguro influída por la hipervaloración de lo espiritual propia del cristianosmo, a su manera ratificada por el racionalismo_, es fruto de uma visión míope de la existência humana. Los planteamientos derivados de esa disyuntiva resultan hoy superados.” 23

O desporto moderno traz cinco traços bastante marcantes e que merecem destaque: a estipulação de “records” com o precípuo fim de comparar as proezas desportivas dos competidores; a generalização da prática desportiva, deixando esta de ser uma atividade basicamente burguesa; a correlação do esporte ao conceito associativo; o amadorismo como fim em si mesmo, não atrelando o esporte a quaisquer retribuições e a codificação das regras visando à expansão das competições.

Em diversas constituições estrangeiras, o ponto comum da regulamentação do desporto está no fato de que este aparece com função multidisciplinar que inclui a promoção da saúde e lazer, fator de integração social e parte do processo educacional.

Em algumas nações o desporto se insere na constituição como garantia não onerosa, tais como as liberdades individuais. Noutras, seu caráter é de garantia onerosa que depende das limitações econômicas da sociedade e/ou do Estado.

Politicamente, o esporte constitui elemento importante na escala de valores da vida atual e vez ou outra, esse aspecto é desviado para gerar favorecimento ideológico, político ou eleitoral. Como exemplo, podemos citar os Jogos Olímpicos

23 FERRER apud MELO FILHO, 1995, p.10. 26

de 1936, em Berlim, quando Hitler se utilizou do evento para fazer propaganda política de seu regime e consagrar a supremacia da raça ariana. 24

No Brasil o primeiro sopro de regulamentação desportivista se deu com a criação do Conselho Nacional de Cultura 25 , que regulamentava atividades que incluíam a educação física. Efetivamente a legislação ganhou fôlego com o Decreto 1.056 de 19 de janeiro de 1939 criando a Comissão Nacional de Desportos, que nasceu com o escopo de estudar a questão desportiva pátria e apresentar um plano de regulamentação.

O ordenamento jurídico brasileiro atual, sem se deixar intimidar pelos extremos presentes em todo poder constituinte originário, conseguiu dar ao desporto uma normatização específica, bem de acordo com a especificidade que o esporte exige e consagrou princípios que mais do que norteadores da atividade jurídica, funcionam como verdadeiros pilares de sustentação do sistema desportivo, garantindo a gestão autônoma, descentralizada e participativa das entidades, além do esporte como forma de promoção da convivência pacífica e integração:

“O desporto é fenômeno social universal compartilhado ativa e passivamente por significativa parcela da população brasileira, sendo, portanto, capaz de influenciar processos de mudança social, formação educacional e consolidação da identidade cultural, daí ter-se convertido, constitucional e legalmente, não só em direito de cada um, mas também dever do Estado, por configurar-se como importante meio de formação do homem, de liberdade e de democratização. A propósito, os analistas registram que o sufrágio universal, a escola republicana e o desporto configuram-se como as três grandes instituições que postulam, na teoria, a igualdade de todos e que materializam, na práxis, a “sensibilité democratique” de nosso tempo.” 26 Ocorre que anteriormente a promulgação da nossa Carta Magna de 1988, o então presidente José Sarney convocou, em 1986, uma comissão provisória de

24 Apesar de seus esforços em fazer daquela uma competição única, Hitler, que compareceu a diversos ginásios durante os jogos, teve que presenciar a vitória do afro-americano Jesse Ownes, que venceu os 100 metros rasos, escrevendo seu nome na história olímpica e enterrando de vez o mito da supremacia ariana. 25 Decreto-Lei nº 526 de 1º de julho de 1938. 26 MELO FILHO, 1995, p.36 27

estudos constitucionais para elaborar o anteprojeto do que então viria a ser a nossa Constituição. 27

Essa comissão que mais conhecida ficou pelo nome de seu presidente, Affonso Arinos, reuniu juristas e estudiosos de várias áreas e elaborou um texto com 436 artigos jamais apreciado pelo governo, que preferiu redigir o texto elaborado com base em propostas apresentadas por suas comissões. Apesar do insucesso do anteprojeto Affonso Arinos, o mesmo acabou por exercer forte influência no texto constitucional final.

A redação dada pela comissão de 1986 incluiu o esporte no capítulo referente à saúde:

“Art. 356 – O Plano Nacional de Saúde abrangerá, entre outras iniciativas:

27 “Excelentíssimos Senhores Membros do Congresso Nacional: É com a mais profunda confiança no discernimento e na vocação do povo brasileiro, para organizar-se pacificamente em regime de liberdade e justiça, que proponho a Vossas Excelências a convocação da Assembleia Nacional Constituinte. Compromisso histórico firmado no curso do movimento cívico que congregou brasileiros de todas as condições, com o propósito de democratizar a sociedade e o Estado, é a convocação da Assembleia Nacional Constituinte ato de coragem e fé. De coragem, porque pressupõe, por parte de cada indivíduo que constitui a comunhão nacional, a disposição de submeter ao escrutínio da nação direitos e situações, quantas vezes duramente conquistados, para vê-los disciplinados por novas regras, de conteúdo e alcance não conhecidos, que se espera mais justas, equânimes e conformes ao ciclo histórico que reponta no presente e se projeta em um futuro de extensão desconhecida. Ato de fé é a convicção da Constituinte, porque todos os anseios e temores do futuro repousam, afinal, na confiança que cada cidadão deposita nos sentimentos de seus irmãos, de procurarem, juntos, uma lei fundamental que a todos proporcione os bens necessários à vida digna, vivida em paz e liberdade. O compromisso, antes aludido, de convocação da Assembleia Nacional Constituinte, de par com os traços de generosa confiança e incontida esperança que o exornam, singulariza-se pelo fato de estar em plena vigência uma ordem jurídica e suas instituições políticas e civis, cujo império se estenderá até o momento em que for promulgada a nova Constituição. Até lá, e sob pena de instalar-se o caos normativo, que a ninguém aproveitaria, é necessário respeitar a lei que temos e modificá-la segundo os processos por ela própria admitidos, para que a vontade de alguns não seja erigida em mandamento supremo de todos. Da inelutável necessidade de manter e operar as instituições governativas vigentes, harmonizando-as à imperiosa aspiração de instaurar outras mais livres e justas, resulta o texto que ora submeto à deliberação dos Senhores Membros do Poder Legislativo da União. Por isso, nele se prevê a investidura de poder constituinte pleno nos Deputados Federais e Senadores escolhidos pelo sufrágio do povo brasileiro. Evitando tutelar o órgão de tão alta atribuição, a Proposta de Emenda limita-se a prover quanto à direção das sessões de instalação e eleição do Presidente da Assembleia Nacional constituinte e a indicar que ela funcione na sede do Congresso Nacional, como corpo único, sem a divisão própria do sistema bicameral. Esta, contudo, subsistirá nos trabalhos da Legislatura, enquanto Poder constituído e segundo as normas constitucionais em vigor. E, finalmente, fixa a duração da 1ª Sessão Legislativa da 48ª Legislatura para a promulgação da nova Constituição, e o quorum da maioria absoluta, que determinará a adoção do projeto e das emendas respectivas. Cumpro o dever assumido com a Nação pela Aliança Democrática. A Assembleia Nacional Constituinte realizará, sem dúvida, o grande e novo pacto nacional, que fará o País reencontrar-se com a plenitude de suas instituições democráticas. Espero que, de agora, a sociedade se mobilize para criar a mística da Constituição, que é o caminho do Estado de Direito.” 28

I – medicina social, compreendendo assistência médico-sanitária preventiva;

II – medicina curativa, compreendendo assistência médico- hospitalar e multiprofissional;

III – expansão dos serviços de atenção primária;

IV – reabilitação;

V – assistência odontológica preventiva e curativa;

VI – assistência farmacêutica;

VII – estímulo e amparo ao esporte e à educação física.”

Já no anteprojeto que efetivamente se tornou nossa Lei Maior, o desporto ficou a cargo da comissão VIII responsável pelas matérias: família, educação, cultura, esportes, ciência e tecnologia e comunicação. O desporto foi alocado no capítulo intitulado Da Educação e Cultura:

“Art. 396 - Compete à União criar normas gerais sobre o desporto, dispensando tratamento diferenciado para o desporto profissional e não profissional.

Art. 397 - São princípios da legislação desportiva:

I - respeito à autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações quanto à sua organização e funcionamento internos;

II - destinação de recursos públicos para amparar e promover prioritariamente o desporto educacional, não profissional e, em casos específicos, o desporto de alto rendimento;

III – incentivo e proteção às manifestações desportivas de criação nacional.

Art. 398 - A lei assegurará benefícios fiscais e outros específicos para fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um.” Nos Anais do anteprojeto, a relatoria explica a normatização menos tímida que o esporte recebeu em relação à comissão Affonso Arinos:

“Entendeu a relatoria que, noutra parte, necessária se faz planejado trabalho nacional, co-atuando, também, Estado e sociedade, na evolução dos esportes como dado indíspensável a intercomplementar saúde plena da pessoa, que não se restringe à intelectual, mas sublima-se com a interação de vários aspectos vitais, dentre os quais a saúde física, desenvolvida no desporto, que o Anteprojeto bem distingue entre desporto educacional, não 29

profissional e de alto rendimento, assegurando-se a cada um tratamento legal apropriado.” As audiências públicas para a discussão da matéria desporto na Constituição da República, a cargo da VII Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação, ocorreram entre os meses de abril e maio de 1987 e contou com representantes das mais diversas entidades da sociedade civil e dentre os nomes que contribuíram para o prestígio que o desporto alcançou com a promulgação do novo texto constitucional, destacamos: Roberto Pasqua 28 , Manoel Espiridião Pereira 29 , Cleber Soares do Amaral 30 , Alberto Jesus Afonso 31 , Carlos Henrique de Carvalho Saraiva 32 e Paulo Roberto de Guimarães Moreira 33 .

Após o lançamento da Carta Internacional de Educação Física e Esportes pela UNESCO em 1976, que alterou substancialmente o conceito de esporte, inserindo a prática desportiva na vida de todas as pessoas, a nossa Suprema Lei incorporou as intenções da organização internacional, regulando a atividade física e ampliando a abrangência social do desporto.

A ligação do esporte com o direito se deu de forma mais intensa no Brasil a partir da promulgação da Constituição da República Federativa em 1988, que normatizou o desporto como direito social.

A profissionalização do desporto, os contratos, a tributação, os incentivos fiscais e o marketing lacraram definitivamente a antiga visão do esporte como meio de obtenção de saúde e bem-estar. Isso fez com que os aspectos econômicos associados ao esporte, juntamente com as altas cifras que movimenta, elevasse a prática desportiva a condição de negócio que emprega milhões de pessoas e gera altos lucros.

A Carta Magna de 1988 trouxe um capítulo dedicado ao desporto, alçando-o ao status de direito social. Essa inovação serviu para evidenciar o arcaísmo da

28 Presidente da Associação Brasileira de Clubes de Futebol. 29 Representante do Conselho Administrativo do Fundo de Assistência ao Atleta Profissional – FAAP.

30 Representante do Conselho Administrativo do Fundo de Assistência ao Atleta Profissional – FAAP. 31 Presidente da Associação Brasileira de Cronistas Esportivos – ABRACE. 32 Presidente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva. 33 Representante da Organização Nacional das Entidades de Deficientes Físicos – ONEDEF. 30

então norma vigorante referente ao esporte, Lei nº 6.251/75, chamada de arbitrária e intervencionista, além de não mais restar em consonância com a realidade do desporto pátrio existente:

“Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um, observados:

I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;

II - a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;

III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não profissional;

IV - a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.

§ 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.

§ 2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.

§ 3º O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.” 34

Em relação à constituição anterior, que instituía como competência privativa da União o poder de legislar sobre desporto, a Carta Magna de 1988 inovou ao estabelecer a competência concorrente entre estados, União e Distrito Federal:

“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

(...)

IX - educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação.” 35

Apesar do avanço, nossa lei maior perdeu a oportunidade de especificar os órgãos estatais que teriam o dever de fomentar as práticas desportivas. Isso certamente nos traria uma maior garantia, além da certeza de cobrar ações daqueles que possuem legitimidade para executá-las.

34 Constituição da República Federativa do Brasil. 35 Redação dada pela Emenda Constitucional nº 85, de 2015. 31

Após a promulgação da Carta Magna, já foram oito PECs 36 propondo alterações no capítulo referente ao esporte. 37

Fechar os olhos para movimentos da dimensão do desporto é vedar uma janela para o mundo e ignorar o maior fenômeno social da atualidade, deixando de regular aspectos importantes ligados às competições, à segurança, à saúde, aos direitos sociais, aos contratos, aos direitos da criança e do adolescente, à tributação das entidades, e a tantos outros, posto que se trata de ramo vastíssimo e, portanto, multidisciplinar.

De acordo com o Ilustre Professor e também baluarte do Direito Desportivo nacional, Álvaro de Melo Filho:

“A história da legislação desportiva, dentro de sua complexidade e da sua riqueza, com suas linhas de força e de contradição, representa a própria história viva das sociedades, das relações

36 Câmara Federal:

PEC 175/2007 – Acrescenta parágrafos ao artigo 217 da Constituição da República para destinação de recursos ao esporte;

PEC 191/2007 – Acrescenta o artigo 217-A a Carta Magna para assegurar recursos mínimos de 1% (um por cento) anualmente, na União, nos estados, no Distrito Federal e nos municípios para promoção do desporto;

PEC 417/2009 – Altera os artigos 34, 35, 167 e acrescenta o § 4º ao artigo 217 da Constituição Federal, e acrescenta artigo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para assegurar os recursos mínimos para o financiamento das ações e serviços públicos do desporto.

Senado Federal:

PEC 42/2000 – Dá nova redação ao artigo 217 da Constituição Federal, para vedar a recondução dos dirigentes de entidades de administração do desporto por mais de um período consecutivo.

PEC 08/2005 – Dá nova redação ao artigo 217 para vedar a recondução dos dirigentes das entidades de administração do desporto por mais de um período consecutivo;

PEC 10/2007 – Acresce parágrafo ao artigo 217 definindo a destinação e redistribuição dos recursos financeiros e origem pública que são administrados por entidade de prática desportiva, incluindo os repassados a CBF;

PEC 12/2012 – Dá nova redação ao inciso I do artigo 217 da Constituição Federal, para limitar a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações de acordo com os interesses da sociedade;

PEC 202/2012 – Acrescenta o § 4º ao artigo 217 para determinar a organização da administração desportiva no país, na forma da lei, segundo os princípios da democracia, da participação da sociedade, da transparência, da moralidade, do humanismo, da justiça e da popularização desportiva.

37 CAMARGOS, 2015, p. 153 e 154. 32

dos homens entre si, dos constrangimentos que eles enfrentam, das liberdades que conquistam e dos sonhos que possuem.”38 Analisando os dispositivos acerca do tema, nota-se a preocupação do legislador com os elementos da integração social oportunizados pelo esporte, como agente no processo educacional, coadjuvante na política pública de saúde e ainda como propiciador do lazer.

Apesar de sua elevação ao direito constitucionalmente tutelado, o esporte não deve ser visto como dever ou obrigação pública tão somente, mas sim como um direito do homem, conforme prelecionou também a UNESCO.

3. DO PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DESPORTIVA 3.1. O que é um princípio

Princípio, segundo os dicionários, vem do latim principium e significa causa primária, origem, fundamento ou essência de algo. O princípio já foi objeto de investigação de vários filósofos. Para Tales de Mileto 39 , considerado o pai da filosofia, o princípio era a água. A matéria-prima do cosmos era algo do qual tudo podia se formar, era essencial a vida, capaz de se mover e mutável, logo, para o filósofo nascido onde hoje se localiza o território da Turquia, tudo era composto de água e essa caracterizava o princípio de tudo.

Já para Anaximandro, discípulo de Tales, o princípio era o infinito. Para Anaxímenes, o ar.

Pitágoras 40 , mais tarde, desenvolveu sua teoria baseando-se na premissa de que o princípio de tudo são os números. Seus estudos estabeleceram que tudo no universo se conformava às relações matemáticas e que, compreendendo a matemática, compreenderíamos também a estrutura do cosmos, logo a matemática seria o modelo para o pensamento filosófico e a origem de tudo.

38 MELO FILHO, 1995, p.101. 39 Tales de Mileto viveu entre 624 e 546 a.C. Tinha domínio da geometria e astronomia, prevendo inclusive um eclipse total em 585 a.C. Além de ser considerado o pai da filosofia era também político e um homem de negócios bem-sucedido. Foi o primeiro professor da chamada Escola de Mileto. 40 Pitágoras viveu entre 570 e 495 a.C. na região onde hoje se localiza a Turquia. Pouco se sabe sobre a vida do filósofo que não deixou textos escritos. Sabe-se que quando jovem viajou bastante e se tornou um líder na comunidade que criou em Crotona, no sul da Itália. 33

O princípio a que se refere o tópico vai além daquele estudado pelos filósofos. O cerne da questão acerca deste estudo passa pelos princípios jurídicos, esses sim de interesse dos juristas e objeto deste trabalho.

Os princípios jurídicos são espécies de norma. As normas se dividem em princípios e regras e aqui cabe uma diferenciação importante. A discussão acerca dessa matéria ganhou força com os estudos de Ronald Dworkin e Robert Alexy.

Segundo Dworkin, o positivismo jurídico não consegue julgar casos mais complexos se entender o Direito como um conjunto exclusivo de regras. Isso porque somente com as regras que compõe um ordenamento jurídico, o juiz não consegue fundamentar todas as situações que lhe são exigidas uma solução, simplesmente porque não encontra sempre uma norma aplicável. Para o jusfilósofo, somente incluindo princípios no ordenamento haveria a possibilidade de solucionar os casos concretos que frequentemente o juiz tem que decidir. Isso porque diferentemente das regras, que possuem somente uma dimensão de validade (ou valem e são aplicáveis, ou não valem e não são aplicáveis), os princípios possuem peso. A questão da validade, quando sopesamos princípios, não é relevante, o que se analisa é o peso que eles têm. Terá prevalência aquele princípio que se mostrar mais relevante no caso concreto, contudo, não deixando o princípio preterido de pertencer ao ordenamento jurídico, ao contrário, em situações diferentes, este poderá prevalecer.

Robert Alexy obteve solução, a priori , semelhante, afirmando que princípios são mandamentos de otimização e que a diferenciação entre estes e as regras deve se dar no campo qualitativo e não de grau. Ademais, sopesando-se princípios o juiz procura chegar a um resultado ótimo e para isso a limitação de um ou mais princípios se faz necessária. Além disso, as regras, que expressam deveres e direitos, devem realizar aquilo que prescrevem, ao contrário dos princípios que podem variar seu grau de realização.

Se entendermos princípio por sua fundamentalidade, então falar em princípio da legalidade ou da dignidade da pessoa humana é aceitável para as doutrinas tradicionais, porém, pela teoria de Alexy, se não podemos fazer o sopesamento deles no confronto com outros, então na verdade ele seria classificado como uma 34

regra. Assim, no caso do princípio da dignidade humana, se entendermos que ele se sobrepõe a todos os demais pela sua essencialidade, então estaríamos de fato na presença de uma regra.

Vários autores nacionais teceram considerações acerca da problemática conceituação de princípio e todos chegaram a conclusões parecidas, afirmando que tratam-se de normas mais fundamentais de um sistema.

-RVp $IRQVR GD 6LOYD DILUPD VHU ³SULQFtSLR´ XPD H[SUHVVmR HTXLYRFDGD porque abrange vários significados: pode ser conceituado como origem, início, mas a acepção da palavra levada a cargo pelo legislador ordinário em nossa Constituição da República certamente difere dessa primeira. O constituinte quis XWLOL]DUDVLJQLILFDomRUHIHUHQWHD³PDQGDPHQWRQXFOHDUGHXPVLVWHPD´

Ainda segundo o jurista paulista, os princípios constitucionais são variados e podem ser divididos em fundamentais e gerais:

Os princípios fundamentais constitucionais integram o direito positivo, traduzindo-se em normas matriz que contêm decisões políticas fundamentais do legislador ordinário.

Já os princípios gerais acabam formando temas de uma teoria geral do direito constitucional porque envolvem objetos e conceitos gerais.

Outro que discorreu longamente acerca dos princípios e mais especificamente dos princípios constitucionais foi o professor da Universidade do estado do Rio de Janeiro ± UERJ e atual ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso:

“Os princípios constitucionais são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui. A atividade de interpretação da Constituição deve começar pela identificação do princípio maior que rege o tema a ser apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie.”

O professor carioca também estabeleceu uma divisão de princípios com 35

base em seu grau de destaque no âmbito do sistema e sua consequente abrangência, variando de acordo com seu raio de abrangência: a) Princípios fundamentais ± esses princípios contêm as decisões políticas estruturais do Estado, estabelecendo nossa organização e decisões políticas. Para que haja modificação dessas decisões estabelecidas no texto magno é necessário um novo processo constituinte originário, pois constituem o núcleo imutável da Constituição. São princípios fundamentais do Estado: princípio republicano, princípio federativo, princípio do Estado democrático de direito, princípio da separação de poderes, princípio presidencialista e o da livre iniciativa. b) Princípios gerais ± esses princípios se irradiam por toda a ordem juridical e tem menor grau de abstração, ensejando a tutela imediata dos fatos contemplados por eles. Eles limitam o poder estatal e não possuem decisão política. Além disso a maior parte se encontra expressa no capítulo dedidicado aos direitos e garantias fundamentais. São exemplos: princípio da legalidade, princípio da liberdade, princípio da isonomia e princípio do acesso ao Judiciário. c) Princípios setoriais ± esses princípios afetam determinado tema ou capítulo da Carta Magna, de forma sectorial, como o próprio nome indica. São exemplos: princípio da legalidade administrativa, princípio do concurso público e o princípio da prestação de contas, todos estes ligados à Administração Pública.

Segundo o Prof. Alvaro Melo Filho, existem duas categorias de princípios constitucionais:

“Os princípios estruturantes, constitutivos e indicativos das ideias diretivas básicas de toda a ordem constitucional, insculpidos no estatuto político, como no Brasil há o princípio democrático, o princípio republicano, o princípio do Estado de direito; e os princípios específicos que decorrem dos princípios gerais, como o princípio da separação e interdependência dos poderes, o princípio da igualdade civil e política, o princípio da autonomia e tantos outros.” 41

41 MELO, 1995, p. 70 36

Valores são preferências individuais ou coletivas quanto aquilo que é bom para a minha vida e princípios são estruturas de dever-ser com pretensão de universalidade e que permite a crítica a valores, partindo de modelos universalistas e pragmáticos:

“Os princípios servem para abrir e enriquecer a cadeia argumentativa. Eles envolvem argumentos primariamente substantivos, referentes à adequação social do Direito. Eles têm um caráter reflexivo em relação às regras. Eles atuam em forma de Hidra.

As regras é que servem ao fechamento da cadeia argumentativa. Envolvem argumentos primariamente formais, referentes à consistência do sistema jurídico. Elas é que têm um caráter hercúleo.

A relação entre princípios e regras importa, portanto, um paradoxo da busca incessante de um equilíbrio instável entre consistência jurídica e adequação social. O mero principialismo leva a um realismo com capa moral, deixando o Direito afogar-se nos particularismos dos interesses de grupos e pessoas. O puro modelo de regras conduz ao formalismo e à rigidez, tornando o direito insensível aos problemas sociais.” 42

3.2. O que é autonomia

O primeiro a dissertar sobre o princípio da autonomia da vontade foi Immanuel Kant. Em seus estudos, Kant definia a autonomia como a característica da vontade de se submeter livremente a lei moral instituída pela razão. Ele caracterizou a autonomia como sendo o único princípio da moralidade.

Segundo Kant somente os seres racionais teriam as condições necessárias para agir de acordo com as leis vigentes, pois só estes possuem vontade autônoma.

Para Habermas, crítico da autonomia na ética kantiana, o conceito de autonomia não está ligado somente à moralidade, mas também deve ser entendido como princípio da democracia posto que não deve existir subordinação do direito para com a moral, o que deve existir é uma complementação.

42 NEVES, 2012. 37

Para o professor Marcelo Neves, a autonomia está ligada a capacidade de criticar as normas que o grupo criou para ele, sejam as normas mais institucionalizadas, sejam elas familiares, e isso está muito ligado à tradição kantiana.

O sociólogo Niklas Luhmann se apropriou de um conceito da biologia, muito difundido nos anos setenta, e o relacionou a autonomia jurídica: a autopoiesis.

Segundo o professor Willis Santiago, da PUC São Paulo:

“Sistema autopoiético é aquele dotado de organização autopoiética, em que há a (re)produção dos elementos de que se compõe o sistema e que geram sua organização pela relação reiterativa (‘recursiva’) entre eles. Esse sistema é autônomo porque o que nele se passa não é determinado por nenhum componente do ambiente, mas sim por sua própria organização, isso é, pelo relacionamento entre seus elementos. Essa autonomia do sistema tem por condição sua clausura, quer dizer, a circunstância de o sistema ser ‘fechado’, do ponto de vista de sua organização, não havendo ‘entradas’ (inputs) e ‘saídas’ (outputs) para o ambiente, pois os elementos interagem no e através dele, que é ‘como o agente que conecta as extremidades do sistema (como se fosse uma gigantesca sinapse) e o mantém fechado, autopoiético’.” 43

A tese de sistemas autopoiéticos se baseia em dois fundamentos básicos: a auto-organização e a autopoiesis. A auto-organização está relacionada à construção da própria ordem, gerando-as independentemente do meio. A autopoiesis também chamada de autorreprodução significa criar seus próprios elementos e condições originárias de produção:

“Na concepção autopoiética do social de Luhmann, o sistema social global da sociedade complexa é particularizado pela coexistência de vários sistemas, como a Economia, o Direito, a ciência, a religião, etc. Cada sistema tem uma função específica no interior do sistema social, cabendo ao subsistema jurídico, por exemplo, o papel de reforçar e estabilizar as expectativas de comportamento. O sistema social tem nas comunicações seu elemento fundamental, comunicações que constroem um sentido e que conferem unidade ao sistema. No paradigma autopoiético os sistemas são autônomos no nível das operações, pois produzem as operações necessárias para reproduzir-se, servindo- se da rede de suas próprias operações.” 44

43 GUERRA FILHO, 2009, p. 209 44 SILVA, 2004. 38

Para Luhmann, não existe meio termo quando falamos em sistemas autopoiéticos, ou eles são ou não são, sem direito à gradação:

“Un sistema no puede ser un - poco — autopoiético. Esta disposición de teoria es práticamente obvia en la biología: un organismo o está vivo o está muerto (con excepciones muy extremas de casos en los que no es posible reconocer la vida o la muerte); una mujer o está embarazada o no lo está...” 45

Partindo de conceitos similares aos do sociólogo alemão, Teubner rompe com a concepção sistêmica de Luhmann quando explicita seu conceito de autonomia relativa, partindo do fato de que nos sistemas jurídicos existe uma evolução do conceito de autopoiesis, podendo-se falar em estágios de autonomia.

Os questionamentos de Teubner acerca da influência que o direito receberia de outras áreas as quais também influenciaria, levou-o a conceituar autopoiesis de uma forma menos inflexível e rígida. 46

3.3 Do princípio da autonomia desportiva

Na Carta Magna de 1988 o legislador entendeu por bem fomentar a participação das associações no sistema desportivo pátrio, concedendo-lhes uma prerrogativa que faz com que sua vontade interna prevaleça tanto no que diz respeito à organização, quanto no que diz respeito ao seu funcionamento. Significa ter a posse de uma capacidade exercitável. Autonomia é

45 LUHMANN apud SILVA, 2004. 46 “No caso do Direito, a clausura autopoiética configura-se quando o sistema jurídico constitui elementos próprios, os atos jurídicos, que operam como agentes de mudança, colocando o sistema ou ‘ciclo autopoiético’ em movimento. Então, um ato jurídico gera urna mudança jurídica, que por sua vez gera outro ato jurídico. O ato jurídico é, na leitura de Teubner, o elemento vital que confere autonomia ao sistema jurídico. Desse modo, a autorreferência e a autopoiesis são tornadas corno indicadores do grau de autonomia, nurna concepção, segundo o autor, ‘mais elaborada e complexa da autopoiesis jurídica’, expressa na noção de hiperciclo. A autorreferencialidade e autonomia do sistema jurídico apresentarn diferentes graus à medida que o sistema evolui, através das etapas de auto-observação, autoconstituição e autorreprodução. Na etapa da auto-observação ocorre a definição autorreferencial de seus componentes; na autoconstituição, o sistema incorpora e utiliza operativamente os componentes auto-observados até a etapa da autorreprodução, quando se efetiva a articulação hipercíclica dos componentes sistêmicos autogerados enquanto elementos que se produzem entre si, numa circularidade recíproca. Aqui as normas jurídicas têm como ponto de referência não fontes extrajurídicas, mas componentes do próprio sistema, as operações jurídicas. Essa autorreprodução, a partir das normas, doutrina e processo jurídico implica em que novos atos de decisão judicial podem ser criados, os atos jurídicos, mas tendo-os sempre como referência e fundamento de sua validade. Isso significa, em outros termos, a criação jurisprudencial do Direito.” 39

autodeterminação nos limites da lei, um poder limitado. Obviamente esse princípio não se traduz em desrespeito no que tange ao restante do ordenamento jurídico haja vista que não se confunde com soberania nem independência, posto que sofre do condicionamento geral atribuído pelo Estado.

Ao contrário, ter autonomia é ter liberdade levando sempre em consideração os pressupostos da limitação inerente a todos os institutos que permeiam nossa legislação.

A autonomia não foi algo arbitrariamente concedido aos entes que tratam do desporto. Ela é necessária para garantir o equilíbrio das competições e evitar a ingerência alheia ao mundo esportivo. Essa autonomia, que não deve ser entendida como soberania, é conditio sine qua non 47 ao bom andamento da lógica própria e peculiar que permeia as competições:

“A previsão do direito ao esporte é preceito fundador, em vista de cuja realização histórica se justifica a autonomia das entidades dirigentes e associações, quanto à sua organização e funcionamento.

Logo, é imprescindível ter-se em conta, na análise das cláusulas impugnadas, a legitimidade da imposição de limitações a essa autonomia desportiva, não, como sustenta o requerente, em razão de submissão dela a ‘legislação infraconstitucional’, mas como exigência do prestígio e da garantia do direito ao desporto, constitucionalmente reconhecido (art. 217, caput).” 48

Essa liberdade condicionada está explícita em diversos diplomas legais que, de formas diferentes, procuram resguardar as competições de interferências alheias ao mundus sportivus e principalmente da mão patriarcal do Estado, que vez ou outra insiste em interferir onde só deveria fomentar.

A autonomia desportiva presente no texto constitucional se desdobra em duas acepções bastante distintas: autonomia de gestão das entidades desportivas quanto a sua organização e funcionamento e a autonomia das decisões da justiça desportiva.

47 Expressão que se originou do termo legal em latim que pode ser traduzido como “sem a/o qual não pode ser”. Refere-se a uma ação cuja condição ou ingrediente é indispensável e essencial. 48 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2937/DF. 40

A autonomia de gestão se refere ao fato de que quanto a sua organização e funcionamento, as entidades desportivas gozam de liberdade para instituir suas próprias regras, sempre levando em consideração a ordem jurídica nacional, como não haveria deixar de ser, haja vista que a autonomia está relacionada à face interna da entidade, jamais podendo se confundir com independência ou soberania, que só geraria um verdadeiro caos desportivo.

Neste diapasão surge o termo lex sportiva designando uma ordem desportiva transnacional e autônoma, que alinha os regulamentos das federações nacionais, as normas estatais, as regras das federações internacionais e as sentenças emanadas por tribunais e cortes desportivas. O termo tomou corpo com a consolidação da autonomia do Direito Desportivo, este enquanto ramo do Direito.

De acordo com Vinícius Machado Calixto:

“A Lex Sportiva seria, portanto, um ordenamento jurídico transnacional baseado na prática contratual que transcende limites nacionais e que possui organismos próprios capazes de formar o que Teubner chama de “triângulo institucional de jurisprudência, legislação e contrato.” 49

O moderno conceito da lex sportiva, que prevê uma ordem jurídica desportiva transnacional e autônoma, embasa o argumento de que apesar de haver liberdade no que tange ao seu modus operandi , as entidades desportivas estão adstritas aos limites de uma legislação nacional que permeia todas as relações sociais aqui presentes.

O objetivo do legislador em conferir tal benesse às entidades tem uma finalidade bastante aparente: ao Estado, hoje em uma posição de normatizador, não cabe adentrar no seio dessas entidades privadas e ditar as regras que devam seguir, pois isso além de suscitar desconfiança levaria a uma burocratização dos procedimentos e que são incompatíveis com a dinâmica do esporte.

Quanto à autonomia das decisões da justiça desportiva, esta tem se mostrado bastante benéfica e mais adequada à solução das lides causadas no âmbito das competições. Isso porque a justiça desportiva possui composição

49 CALIXTO, 2015, p. 26 In CAMARGOS (Org.) 41

representativa de várias entidades que estão inseridas no cenário desportivo pátrio, tornando as decisões mais de acordo com um tema que nos é tão particularizado. Além disso, todo o procedimento na justiça desportiva deve ser bastante célere, conforme inclusive preceitua o capítulo da Constituição destinado ao desporto. Isso faz com que as situações envolvendo as competições tenham rápida solução, em consonância com o princípio desportivo da continuidade das competições ( pro competitione).

Não seria razoável transferir o espetáculo das arenas para os tribunais de uma justiça comum já tão assoberbada e morosa, além de pouco afeita às questões esportivas. Ademais, com a proliferação de concessão de liminares, não seria raro que tais decisões, que para o esporte acabariam por ter um caráter de definitividade, prejudicariam o bom andamento das competições, gerando verdadeira insegurança e inegável injustiça.

Alguns autores, como Álvaro Melo Filho 50 , consideram a justiça desportiva como uma justiça administrativa, posição a qual me filio tendo em vista que inegavelmente ela não faz parte do Poder Judiciário e seu poder disciplinar é eminentemente administrativo, tendo como exemplo mais próximo os tribunais arbitrais.

3.4 Do limite da autonomia no esporte

O princípio da autonomia desportiva assegurado na nossa Carta Magna não se traduz em independência e assim como todos os princípios insculpidos em nossa legislação, não é absoluto. Uma recorrente confusão relacionada à interpretação do princípio em comento costuma relacionar a autonomia com a desnecessidade de subordinação aos demais regramentos normativos:

“Os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de

50 MELO FILHO, 1995, p. 58 42

medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas — e considerado o substrato ético que as informa — permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas de um lado, a proteger a integridade do interesse social, e de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.” 51

A despeito disso, ele se traduz em auto-organização e autofuncionamento, características indispensáveis a um movimento basicamente desenvolvido por entidades privadas, apartadas de ingerência pública, apesar do pressuporto de fomento estatal que permeia o texto magno.

Essa autonomia, que constitui garantia constitucional e também cláusula pétrea, vem ao encontro de uma democracia amadurecida e configura característica indispensável à continuidade das atividades desportivas no país. Além disso, guarda estreita correlação com a liberdade de associação, esta também amparada pela legislação pátria:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;

XVIII - a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;

XIX - as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trânsito em julgado;

XX - ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado;

51 MS nº 23.452, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 12.05.00 apud ADIN 2937 EDT x CR.

43

XXI - as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente.”

O artigo 217, ao contrário do que possa parecer numa primeira leitura, guarda estrita consonância com o que dispõe o artigo 24, IX do mesmo diploma legal:

“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

IX - educação, cultura, ensino e desporto.” Isso se deve ao fato de que, apesar do princípio enaltecido no capítulo referente ao desporto, a Constituição da República não traz uma exceção, concedendo competência à União para legislar sobre o desporto, sendo esta responsável por instituir normas gerais sem o condão de colocar em xeque o princípio que é a base de toda a legislação desportivista.

Em relação a essas normas gerais, tratam-se estas de diretrizes, direcionamentos aplicáveis ao desporto respeitando os limites instituídos na própria Carta Magna.

A autonomia também não pode ser confundida com soberania, conceito existente somente nas relações entre Estados, nunca entre entidades de administração ou prática desportiva.

O esporte é matéria tão peculiar que mesmo dentro do conceito de autonomia existe diferença entre outras autonomias previstas no texto constitucional, como, por exemplo, àquela concedida às universidades:

“Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático- científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

§ 1º É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei.

§ 2º O disposto neste artigo aplica-se às instituições de pesquisa científica e tecnológica.” 44

Nesse caso, apesar de gozarem dos pressupostos de organização e administração, as universidades estão submetidas a outras regras também apostas na Constituição da República, subordinando-se ao próprio Texto Básico, diferentemente do desporto que tem capítulo próprio e traz somente normas gerais.

Muito embora o princípio em comento seja vislumbrado como norteador de toda a trama que permeia o sport enviroment, isso não se converte em anarquia no que diz respeito aos ditames legais que regem nosso país. A regra basilar de que em nosso ordenamento nenhum princípio é absoluto também encontra vez por aqui.

Um caso envolvendo a questão da mitigação dos princípios ocorreu quando da análise de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade ± ADIN pelo STF. Na ocasião o Partido Democrático Trabalhista ± PDT impetrou ação objetivando a declaração da inconstitucionalidade, sem redução de texto, do artigo 59 e seu parágrafo único do então noviço Código Civil (Lei nº 10.406) promulgado em 2002:

“Art. 59. Compete privativamente à assembleia geral:

I – destituir os administradores;

II – alterar o estatuto.

Parágrafo único. Para as deliberações a que se referem os incisos I e II deste artigo é exigido deliberação da assembleia especialmente convocada para esse fim, cujo quorum será o estabelecido no estatuto, bem como os critérios de eleição dos administradores.”

Isso porque, segundo o impetrante, tal artigo feriria o princípio da autonomia desportiva previsto no Texto Maior e que, sendo essas organizações livres para se auto-organizarem, poderiam estabelecer em seus estatutos regras diferentes daquelas trazidas pelo novo codex civilista. Na manifestação trazida aos autos pelo então Consultor Geral da União este pensamento fica claro. 52

52 "Em primeiro lugar, há de se notar que, mesmo gozando de autonomia quanto a sua organização e funcionamento, as entidades desportivas dirigentes e associações estão sujeitas a incidência de normas de ordem pública. Ou seja, sua autonomia não é absoluta, nem poderia ser. Trata-se de autonomia a ser exercitada dentro de certos parâmetros. Sobretudo daqueles que dizem respeito ao próprio conceito de 45

O Ministro Celso de Melo, relator do processo, proferiu voto onde defendeu a manutenção do artigo 59 do Código Civil, não excluindo sua aplicabilidade às entidades desportivas, informando que a regra insculpida no códex civilista se reveste de matriz determinante nos limites do ordenamento estatal, permitindo aos destinatários da norma uma atuação com certa liberdade decisória e que não extrapola o que determina o artigo 217, I da Constituição da República. Aduz ainda que o conceito de autonomia, visto como autonomia privada ou autonomia normativa, significa uma capacidade de se autodeterminar essencialmente exercitável, porém sem deixar de obedecer os limites do ordenamento positivado. Ademais, ainda que se reconheça as entidades desportivas como núcleos de emanação do poder normativo, estas não estão imunes quanto a incidência das regras jurídicas de caráter geral e nem se qualificam como elementos de restrição ao Congresso Nacional. Para o ministro, o preceito do artigo 59 do Código Civil é norma de ordem pública e possui caráter imperativo estabelecendo disciplina e ordem no seio das associações e de modo algum impede que estas exerçam seu poder autônomo de conferir a este mesmo órgão colegiado outros encargos compatíveis com seus estatutos sociais. Além disso, informa que a autonomia das entidades não se traduz em independência ou em qualquer outro tipo de desvinculação jurídica ao poder estatal, especialmente naquilo que este resolve disciplinar mediante lei, e conclui:

“Entendo, desse modo, Senhora Presidente, que se revelam revestidos de legitimidade constitucional os dispositivos legais impugnados nesta sede de controle normativo abstrato, que se examine a questão sob o enfoque da autonomia das entidades desportivas, que se analise a controvérsia à luz do postulado da liberdade de associação. Concluo o meu voto, Senhora Presidente, tendo em consideração as razões expostas e, acolhendo ainda, as doutas manifestações dos eminentes Advogado Geral da União e Procurador-Geral da associação, que é estabelecido em lei. Nesses termos, só se enquadra como associação aquela união de pessoas organizadas para fins não econômicos, de acordo com o conceito legal - art. 53 do Código Civil. Assim, não obstante as associações e entidades desportivas terem autonomia para se organizar, não é possível que se organizem para fins diversos daqueles previstos na lei, sob pena de se descaracterizarem como associações. Também não podem dispor sobre a conceituação de associação e seus elementos essenciais, o que desvirtuaria a sua natureza. Em resumo, a condição de associação decorre de conceito legal. Uma agremiação de entidades desportivas será ou não uma associação consoante atenda ou não os requisitos constantes da lei. Além disso, vale lembrar que a disciplina relativa à associação de entidades desportivas é objeto de lei especial, qual seja a Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, e, não exclusivamente, dos arts. 53 a 61 do Código Civil.” 46

República, julgo improcedente a presente ação direta e, em consequência, declaro a plena constitucionalidade do artigo 59 e seu parágrafo único do Código Civil. É o meu voto.”

Destaque-se que desde a sua entrada em vigor na Constituição de 1988, esse princípio tem gerado inúmeras discussões no que tange a sua real aplicabilidade e limites, sendo a causa de algumas dezenas de contendas judiciais e debates acalorados dentre aqueles que militam na área.

Apesar da prerrogativa constitucional, cada vez mais nos deparamos com leis intervencionistas que aumentam consideravelmente as responsabilidades e deveres das entidades envolvidas com o desporto e criando mais burocracias e obrigações sem, contudo, trazer em contrapartida mais vantagens orçamentárias.

Isto posto, cabe esclarecer que a autonomia deve ser sempre pautada pela ordem jurídica vigente, essencial para que se mantenha a liberdade concedida às entidades desportivas, sem, contudo, fazer dessa autonomia uma desculpa para o descumprimento desenfreado das normas mais basilares que guiam o Estado brasileiro.

3.5 Do fomento estatal

A primeira questão que vem a mente quando pensamos que o Estado se comprometeu a fomentar as atividades esportivas em nosso país é: por quê? Por que o Estado escolhe alguns temas e resolve, em relação a eles, ser um incentivador?

Antes de explicitar o papel do Estado no esporte é preciso fazer algumas considerações acerca dessa modalidade de intervenção na ordem econômica.

Essa intervenção pode se dar de três formas: através de uma atuação direta do Estado, através da propositura de normas que tenham como fim precípuo disciplinar o tema ou através de atividades de fomento.

Fomentar significa incentivar um comportamento, estimulando-o. Quando o ente estatal decide estimular um comportamento, ele está intervindo indiretamente na ordem econômica, posto que tal comportamento não o coloca na 47

linha de frente da prática de determinada atividade. Se comprometer constitucionalmente a fomentar determinadas atividades, em detrimento de tantas outras, é considerá-las de suma importância para o interesse público.

Um aspecto interessante desta modalidade de intervenção é o fato de que no fomento o Estado não se envolve diretamente na atividade, tampouco obriga que os particulares pratiquem determinado comportamento. Ao contrário, o que se tem é a oferta de estímulos para que estes executem as atividades que tem relevância social.

A adesão ao comportamento sugerido constitui opção do particular que, para tal, gozará de certos benefícios em prol da execução de determinada atividade. Cabe ressaltar que, aderindo a sugestão estatal, estará ele obrigado aos deveres específicos relacionados ao caso concreto, não restando impune quanto a eventuais inadimplementos contratuais.

A administração pública pode atuar no fomento de três maneiras distintas: por meios honoríficos, meios jurídicos e meios econômicos.

Os meios honoríficos premiam com títulos e condecorações aqueles que se dispõem a exercer determinada atividade de relevante cunho público.

Os meios jurídicos reservam aos particulares tratamento diferenciado, regulando-os por legislação excepcional que lhes confere certos privilégios. Um excelente exemplo são as microempresas, reguladas por legislação mais benéfica, como forma de incentivar o empreendedorismo e a geração de empregos.

Os meios econômicos constituem o fomento mais relevante na atual conjuntura social, e dizem respeito a concessão de vantagens patrimoniais reais ou financeiras. Vantagem real pode se traduzir na cessão de uso de determinados bens públicos ao particular. Já a vantagem financeira pode ser direta ou indireta, variando conforme o repasse de recursos do Estado ou não, e que tem na subvenção sua modalidade mais popular.

Trata a subvenção de transferência pecuniária ao particular, constituindo-se de verdadeira doação, haja vista que a administração pública não tem o intuito de 48

reaver os valores repassados. Essa transferência, obviamente, deve ser utilizada naquela atividade com a qual o particular se comprometeu e o Estado tem o interesse de fomentar.

Uma outra forma de subvenção consiste em facilitar empréstimos junto a entidades ligadas a administração, sendo aqueles concedidos pelo BNDES um ótimo exemplo.

Questão importante se deve ao fato de que as atividades de fomento muitas vezes são questionadas por ferirem o princípio da isonomia, afinal, o que leva o (VWDGRD³EHQHILFLDU´FHUWDVDWLYLGDGHVHPGHWULPHQWRGHRXWUDV"

A máxima de Aristóteles que preconiza o tratamento igual para os iguais e desigual para os desiguais não poderia levar a administração pública a fomentar atividades ao seu bel prazer, ao arrepio da lei e do princípio da isonomia?

Para evitar atitudes estatais com finalidades escusas, o tratamento desigual deve promover os valores protegidos pela nossa Carta Magna. É a preocupação constitucional com o tema que gerará a concessão de incentivos plasmados em fomento a determinados temas de relevância social porque ela legitimará um regimento jurídico diferenciado.

Antes tema sem maior respaldo, carente de normatização, agora elevado a direito social pela Constituição de 1988, o legislador entendeu por bem fomentar a prática desportiva e para tal, promulgou a Lei nº 11.438/2006:

“Art. 1 o A partir do ano-calendário de 2007 e até o ano-calendário de 2022, inclusive, poderão ser deduzidos do imposto de renda devido, apurado na Declaração de Ajuste Anual pelas pessoas físicas ou em cada período de apuração, trimestral ou anual, pela pessoa jurídica tributada com base no lucro real os valores despendidos a título de patrocínio ou doação, no apoio direto a projetos desportivos e paradesportivos previamente aprovados pelo Ministério do Esporte.”

Os benefícios advindos desta lei se traduzem em renúncia de receita tributária, abatimento do imposto de renda pelo financiador, competitividade dos projetos (que devem ser previamente aprovados pelo Ministério dos Esportes) e sujeição a fiscalização permanente dos órgãos públicos com o fim de combater a concessão fraudulenta de recursos públicos. 49

Em relação ao esporte, tal fomento visa estimular a inclusão social, a educação física, a descoberta de novos talentos esportivos e promover a saúde e bem-estar de seus partícipes.

O papel do Estado fomentador não se confunde com aquele que pretende intervir no funcionamento das entidades desportivas. Isso porque fomentar está intimamente ligado ao conceito de estimular, dar suporte, incentivar, não se relacionando com ingerência.

Ultrapassar o limite do incentivo, instituindo leis que atentem contra a autonomia desportiva, presente no texto constitucional tanto quanto o fomento, é intervir de forma inconstitucional em um tema que, para cumprir seu papel, necessita possuir uma autossuficiência capaz de lhe livrar das amarras burocráticas da máquina estatal que só retardariam o seu funcionamento.

3.6 Das decisões dos tribunais acerca da autonomia desportiva

Nem todos os temas relacionados ao Direito Desportivo encontram na Justiça Desportiva a sua resolução. Esta só cuida dos casos envolvendo a disciplina e as competições, deixando à justiça comum as respostas acerca das questões envolvendo os contratos de trabalho dos atletas, o estatuto do torcedor, os aspectos tributários e empresariais das agremiações entre outras.

Com a mudança de paradigma inerente a ampliação do conceito até então reinante de esporte e seu desenvolvimento englobando suas três dimensões sociais, o Estado deixou de ser um tutor e passou a ser normatizador do desporto nacional. A inclusão do tema como capítulo em nossa Carta Magna é a maior constatação desse novo papel governamental.

Com o inegável crescimento do esporte, os tribunais desportivos passaram a gozar de maior holofote, tendo inclusive seus julgamentos mais expressivos televisionados, algo totalmente impensável tempos atrás. Além disso, frequentemente instado a decidir sobre questões que impactarão diretamente em 50

campeonatos em curso, os tribunais desportivos passaram a fazer parte da conversa nas rodas de bar, incitando debates acalorados e interesse do grande público.

O Estado normatizador traz consigo uma maior intervenção do Poder Judiciário, quem vem sendo incitado a resolver questões atinentes ao desporto enquanto negócio.

Como anexo trazemos duas grandes decisões envolvendo a autonomia desportiva: o anexo 1 trata da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2937/2012, de relatoria do Ministro Cezar Peluzo, primeira ADI que discorre sobre a autonomia das entidades desportivas, em processo que debatia a constitucionalidade de alguns artigos do Estatuto do Torcedor (Lei nº 10.671/2003).

A ação, que teve como requerente o Partido Progressista, gozou de enorme repercussão e um voto magistral do Ministro Relator Cesar Peluzo, que decidiu pela manutenção dos artigos atacados na lide, no que foi acompanhado pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes, notório entusiasta da matéria desportiva.

Já o anexo 2 traz a decisão do Tribunal Arbitral Internacional (TAS) acerca do doping do jogador Dodô. Essa decisão é bastante emblemática posto que um dos argumentos de defesa do atleta era exatamente o questionamento acerca da autonomia da nossa justiça desportiva para decidir, em último grau, questões envolvendo as infrações cometidas aqui. A defesa entendia que o Tribunal Arbitral não era competente para rever a decisão do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), mas os árbitros do TAS se utiizaram das normas formadoras da Lex Sportiva para rechaçar esse argumento e estabeler que o então artigo 136 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) não teria relevância internacional capaz de obstar a revisão do mérito pela corte indicada no artigo 61, $7º do Estatuto da Fifa. 51

Esse resultado constituiu novo paradigma e seu argumento acabou FXOPLQDQGRQDDOWHUDomRGR&%-'³$VGHFLV}HVGR7ULEXQDO3OHQRGR67-'VmR irrecorríveis, salvo disposição diversa neste código ou na regulamentação internacional especí ILFDGDUHVSHFWLYDPRGDOLGDGH´

Assim resume o ilustre professor Carlos Francisco Portinho: “Esse precedente ampliou definitivamente o limite final da jurisdição desportiva, mesmo em competições nacionais reduzidas ao território brasileiro, indo além do que supunha o antigo artigo 136 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), fazendo-o definitivamente ‘letra morta’, o que justamente motivou a recente reforma que passou a prever no parágrafo primeiro do artigo 136 a possibilidade de recurso sobre as decisões finais do STJD, desde que previsto na lei nacional ou mesmo na legislação internacional da modalidade.” 53

CONCLUSÃO

A autonomia desportiva é tema de grande interesse dentre os operadores do direito desportivo, suscitando dúvidas e frequentemente interpretações equivocadas acerca da sua aplicabilidade e limites.

Essa autonomia encontrada na Constituição de 1988 se fragmenta em duas acepções bastante distintas: a autonomia de gestão das entidades desportivas quanto a sua organização e funcionamento e a autonomia das decisões da justiça desportiva.

Em que pese o fato de que a autonomia deve permear todo o mundus sportivus , de modo que as interferências patriarcais do Estado possam ser evitadas, essas entidades não estão acima da lei e nem lhe são permitidas legislar de modo que tenhamos organismos amórficos.

Nem mesmo os entes federados que possuem ampla autonomia organizacional, financeira, administrativa e política estão afastados dos limites mínimos instituídos pelo Código Civil. Ora, se o legislador não exceptuou nem mesmo seus entes, com mais razão ainda incluiu a iniciativa privada.

53 PORTINHO apud CAMARGOS, 2015. 52

Apesar disso, a autonomia é princípio constitucional que faz o sistema desportivo se mover com significativa flexibilidade e por conta disso não pode nem deve sofrer restrições que lhe diminua o sentido.

Intromissões doutrinárias ou jurisprudenciais são afrontas que não devem ser toleradas sob pena de inação das entidades desportivas e intervenção estatal muitas vezes eivadas de interesses escusos e com a nítida finalidade de intervir em benefício próprio ou de terceiros nada bem intencionados.

É natural que um movimento tão afeito a sociedade contemporânea como é o esporte hoje sofra uma maior regulamentação estatal. As cifras em torno do movimento desportivo e, em especial no nosso país do futebol, chamam a atenção do poder governamental, porém só com a autonomia o esporte avança, deixando ao Estado apenas os papéis que não possam ser assumidos pelas entidades desportivas.

O desporto autônomo cria condições de participação ativa de seus entes e dá a estes a responsabilidade de escrever sua própria história, sem a árdua tarefa de aguardar por soluções prontas do Estado, que só engessariam toda a sistemática envolvida. 53

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Sites: Anteprojeto Affonso Arinos, disponível em: http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/constituinte/AfonsoArinos.pdf

Artigo do Professor Marcelo Neves para o Conjur disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-out-27/observatorio-constitucional-abuso- principios-supremo-tribunal

Australian Sport Commission (ASC), disponível em: http://www.topendsports.com/sport/what-is-a-sport.htm

Carta Internacional de Educação Física e Esportes, disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0023/002354/235409POR.pdf acessada em 07 de setembro de 2016.

O princípio da autonomia na ética kantina e sua recepção na obra Direito e Democracia de Jürgen Habermas, disponível em: http://www.anima-opet.com.br/pdf/anima5-Seleta-Externa/Haide-Maria- Hupffer.pdf 57

Oxford Dictionaries, disponível em: http://www.oxforddictionaries.com/definition/english/sport

Palestra do Professor Marcelo Neves, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=axSOBmlFv4Y

Regime Jurídico e Princípios do Direito Desportivo ± Paulo Schmitt, disponível em: http://www.esporte.pr.gov.br/arquivos/File/regime_juridico.pdf

Senado Federal, disponível em: http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/constituinte

Tribunal Arbitral Internacional ± TAS/CAS, disponível em: http://www.tas-cas.org/fileadmin/user_upload/Bulletin01112010.pdf

58

ANEXO 1

Dia 23 de fevereiro de 2012.

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.937 DISTRITO FEDERAL

RELATOR : MIN. CEZAR PELUSO

REQTE.(S) : PARTIDO PROGRESSISTA - PP

ADV.(A/S) : WLADIMIR SÉRGIO REALE

INTDO.(A/S) : PRESIDENTE DA REPÚBLICA

ADV.(A/S) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

INTDO.(A/S) : CONGRESSO NACIONAL

EMENTA : INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Arts. 8º, I, 9º, § 5º, incs. I e II, e § 4º, 11, caput e §§ 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 6º, 12, 19, 30, § único, 32, caput e §§ 1º e 2º, 33, § único, incs. II e III, e 37, caput , incs. I e II, § 1º e inc. II, e § 3º, da Lei federal nº 10.671/2003. Estatuto de Defesa do Torcedor. Esporte. Alegação de incompetência legislativa da União, ofensa à autonomia das entidades desportivas, e de lesão a direitos e garantias individuais. Vulneração dos arts. 5º, incs. X, XVII, XVIII, LIV, LV e LVII, e § 2º, 18, caput , 24, inc. IX e § 1º, e 217, inc. I, da CF. Não ocorrência. Normas de caráter geral que impõem limitações válidas à autonomia relativa das entidades de desporto, sem lesionar direitos e garantias individuais. Ação julgada improcedente. São constitucionais as normas constantes dos arts. 8º, I, 9º, § 5º, incs. I e II, e § 4º, 11, caput e §§ 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 6º, 12, 19, 30, § único, 32, caput e §§ 1º e 2º, 33, § único, incs. II e III, e 37, caput , incs. I e II, § 1º e inc. II, e § 3º, da Lei federal nº 10.671/2003, denominada Estatuto de Defesa do Torcedor .

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Senhor Ministro 59

CEZAR PELUSO, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, em julgar improcedente a ação direta. Ausentes o Senhor Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, representando o Tribunal em visita oficial à Suprema Corte do Japão e, neste julgamento, o Senhor Ministro JOAQUIM BARBOSA. Falaram, pelo requerente, o Dr. WLADIMIR SÉRGIO REALE e, pela Advocacia-Geral da União, o Ministro LUÍS INÁCIO LUCENA ADAMS, Advogado-Geral da União. Brasília, 23 de fevereiro de 2012.

Ministro CEZAR PELUSO Presidente e Relator

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.937 DISTRITO FEDERAL

RELATOR : MIN. CEZAR PELUSO

REQTE.(S) : PARTIDO PROGRESSISTA-PP

ADV.(A/S) : WLADIMIR SÉRGIO REALE

INTDO.(A/S) : PRESIDENTE DA REPÚBLICA

ADV.(A/S) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

INTDO.(A/S) : CONGRESSO NACIONAL

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - (Relator): 1. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, proposta pelo Partido Progressista (PP) e tendente à declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos, a seguir sublinhados, da Lei federal nº 10.671, de 15.05.2003 (Estatuto de Defesa do Torcedor): “Art. 8º - As competições de atletas profissionais de que participem entidades integrantes da organização desportiva do País deverão ser promovidas de acordo com calendário anual de eventos oficiais que: 60

I - garanta às entidades de prática desportiva participação em competições durante pelo menos dez meses do ano;

Art. 9º - É direito do torcedor que o regulamento, as tabelas da competição e o nome do Ouvidor da Competição sejam divulgados até sessenta dias antes de seu início, na forma do parágrafo único do art. 5º. § 5º - É vedado proceder alterações no regulamento da competição desde sua divulgação definitiva, salvo nas hipóteses de: I- apresentação de novo calendário anual de eventos oficiais para o ano subsequente, desde que aprovado pelo Conselho Nacional do Esporte – CNE; II- após dois anos de vigência do mesmo regulamento, observado o procedimento de que trata este artigo.

Art. 10. É direito do torcedor que a participação das entidades de prática desportiva em competições organizadas pelas entidades de que trata o art. 5º seja exclusivamente em virtude de critério técnico previamente definido. § 4º - Serão desconsideradas as partidas disputadas pela entidade de prática desportiva que não tenham atendido ao critério técnico previamente definido, inclusive para efeito de pontuação na competição.

Art. 11. É direito do torcedor que o árbitro e seus auxiliares entreguem, em até quatro horas contadas do término da partida, a súmula e os relatórios da partida ao representante da entidade responsável pela organização da competição. § 1º - Em casos excepcionais, de grave tumulto ou necessidade de laudo médico, os relatórios da partida poderão ser complementados em até vinte e quatro horas após o seu término. § 2º - A súmula e os relatórios da partida serão elaborados em três vias, de igual teor e forma, devidamente assinadas pelo árbitro, auxiliares e pelo representante da entidade responsável pela organização da competição. § 3º - A primeira via será acondicionada em envelope lacrado e ficará na posse de representante da entidade responsável pela organização da competição, que a encaminhará ao setor competente da respectiva entidade até as treze horas do primeiro dia útil subsequente. 61

§ 4º - O lacre de que trata o § 3º será assinado pelo árbitro e seus auxiliares. § 5º - A segunda via ficará na posse do árbitro da partida, servindo-lhe como recibo. § 6º - A terceira via ficará na posse do representante da entidade responsável pela organização da competição, que a encaminhará ao Ouvidor da Competição até as treze horas do primeiro dia útil subsequente, para imediata divulgação.

Art. 12. A entidade responsável pela organização da competição dará publicidade à súmula e aos relatórios da partida no sítio de que trata o parágrafo único do art. 5º até as quatorze horas do primeiro dia útil subsequente ao da realização da partida.

Art. 19. As entidades responsáveis pela organização da competição, bem como seus dirigentes respondem solidariamente com as entidades de que trata o art. 15 e seus dirigentes, independentemente da existência de culpa, pelos prejuízos causados ao torcedor que decorram de falhas de segurança nos estádios ou da inobservância do disposto neste capítulo.

Art. 30. É direito do torcedor que a arbitragem das competições desportivas seja independente, imparcial, previamente remunerada e isenta de pressões.

Parágrafo único. A remuneração do árbitro e de seus auxiliares será de responsabilidade da entidade de administração do desporto ou da liga organizadora do evento esportivo.

Art. 32. É direito do torcedor que os árbitros de cada partida sejam escolhidos mediante sorteio, dentre aqueles previamente selecionados. § 1º O sorteio será realizado no mínimo quarenta e oito horas antes de cada rodada, em local e data previamente definidos. § 2º O sorteio será aberto ao público, garantida sua ampla divulgação.

Art. 33. Sem prejuízo do disposto nesta Lei, cada entidade de prática desportiva fará publicar documento que contemple as 62

diretrizes básicas de seu relacionamento com os torcedores, disciplinando, obrigatoriamente: (...) Parágrafo único. A comunicação entre o torcedor e a entidade de prática desportiva de que trata o inciso III do caput poderá, dentre outras medidas, ocorrer mediante:

I- a constituição de um órgão consultivo formado por torcedores não sócios; ou II- reconhecimento da figura do sócio-torcedor, com direitos mais restritos que os dos demais sócios.

Art. 37. Sem prejuízo das demais sanções cabíveis, a entidade de administração do desporto, a liga ou a entidade de prática desportiva que violar ou de qualquer forma concorrer para a violação do disposto nesta Lei, observado o devido processo legal, incidirá nas seguintes sanções: I– destituição de seus dirigentes, na hipótese de violação das regras de que tratam os Capítulos II, IV e V desta Lei; II- suspensão por seis meses dos seus dirigentes, por violação dos dispositivos desta Lei não referidos no inciso I; § 1º - Os dirigentes de que tratam os incisos I e II do caput deste artigo serão sempre: I- o presidente da entidade, ou aquele que lhe faça as vezes; e II- o dirigente que praticou a infração, ainda que por omissão.

§ 3º A instauração do processo apuratório acarretará adoção cautelar do afastamento compulsório dos dirigentes e demais pessoas que, de forma direta ou indiretamente, puderem interferir prejudicialmente na completa elucidação dos fatos, além da suspensão dos repasses de verbas públicas, até a decisão final.”

2. Alega o autor que os dispositivos impugnados contrariam o art. 5º, incisos X, XVII, XVIII, LIV, LV, LVII e § 2º, o art. 18, caput , o art. 24, inciso IX e §1º e, por fim, o art. 217, inciso I, todos da Constituição da República.

3. Expõe os fundamentos a seguir sintetizados para sustentar a contrariedade dos preceitos impugnados ao texto constitucional: (i) extravasamento da competência legislativa da União em matéria de desporto, afrontando-se o artigo 24, inciso IX e § 1º, da Constituição 63

Federal. A competência da União para legislar sobre desporto, prevista no artigo 24, inciso IX, não seria ampla e irrestrita, pois o § 1º do mesmo artigo limitaria seu poder legiferante à emissão de normas gerais a respeito do assunto, sendo-lhe vedado descer a pormenores e minudências. Por conseguinte, qualquer dispositivo sobre esporte, constante de lei federal, que ultrapasse a noção de norma geral (lei de base ou de SULQFtSLR  VHUi LQFRQVWLWXFLRQDO HP UD]mR GH ³ exorbitância ou invasão do espaço legislativo de um centro de poder por outro ´ IOV (D/HLQž 10.671/03, de feição detalhista e aplicável apenas ao desporto profissional, não se amoldaria ao conceito de norma geral sobre desporto, afrontando, assim, a Constituição Federal.

(ii) desrespeito à dimensão jurídico-constitucional da autonomia desportiva, assegurada em seu artigo 217, inciso I. O princípio da autonomia desportiva, aplicável às associações e entidades desportivas dirigentes, no que toca a sua organização e funcionamento, impediria a existência de leis que se imiscuíssem nas questões internas da administração esportiva, ostentando tal garantia plena compatibilidade com um regime democrático e não autoritário. A forma de organização e funcionamento das entidades desportivas é assunto interna corporis, a respeito do qual não deve haver intromissão estatal.

2 GHVSRUWR SURILVVLRQDO RULJLQiULR GH ³ iniciativas espontâneas privadas, apartadas de qualquer ingerência pública, conta, exclusivamente, com recursos privados” (fls. 14), cumprindo função que deveria caber ao Estado, consoante previsão constitucional (artigo 217, caput ). Teria recebido em troca, contudo, uma legislação desportiva estatizante e intervencionista, que aumentou as responsabilidades e obrigações dos envolvidos no desporto profissional, sem nenhuma contrapartida orçamentária.

2 SRVWXODGR GD DXWRQRPLD GHVSRUWLYD TXH ³ não se confunde com independência (em face do monopólio e da hierarquização organizacional das estruturas desportivas internacionais), nem tampouco com soberania (em razão deste conceito aplicar-se tão só às relações entre Estados e não entre entes desportivos privados de diferentes países”, QmRVLJQLILFD³ impermeabilidade total ao 64

ordenamento estatal” (fls. 14). Seu conceito deve ser depurado, levando-se em conta a singularidade do desporto, decorrente de sua dupla especificidade ³ specificité de l’activité sportive ´ H ³ specificité des féderations sportives ´ TXH VH teria refletido num tratamento constitucional específico e peculiar, no Brasil. A autonomia desportiva, nesse passo, não poderia ser confundida nem considerada análoga à autonomia universitária, tendo em vista que esta se encontraria submetida ³a diversas outras normas gerais previstas na Constituição” – noutras SDODYUDV D DXWRQRPLD XQLYHUVLWiULD ³ subordina-se a outros limites previstos no próprio Texto Básico, ou seja, ‘cumprimento das normas gerais de educação nacional’ (art. 209, I) e ‘autorização e avaliação da qualidade pelo Poder Público’ (art. 209, II)” (fls. 15). De forma diversa, a autonomia desportiva não teria nenhum condicionante ou limitação nos princípios e normas constitucionais, não havendo nenhuma restrição, explícita ou ± o que seria inadmissível ± implícita, a ela. Portanto, a legislação ordinária desportiva não pode derrogar, e nem mesmo regulamentar (à falta da expressão ³nos termos da lei ´ RSULQFtSLRGDDXWRQRPLD desportiva, cuja sede é constitucional, devendo-se afastar o dirigismo desportivo consubstanciado no estatuto do torcedor. A autonomia, que é garantia constitucional e cláusula pétrea, traduz-se nos direitos à autorregulação e à auto- organização, compreendidos no direito de associação (liberdade de associação e vedação de interferência estatal no seu funcionamento, previstos no artigo 5º, XVII e XVIII), afigurando-se inconstitucional restringi-la por intermédio de legislação ordinária.

(iii) previsão indevida de dupla sanção, nos artigos 19 e 37 do estatuto do torcedor, em afronta, respectivamente, aos artigos 5º, LIV e 5º, X, XVII, XVIII, LIV, LV, LVII, § 2º e 217, I, da Constituição da República. De um lado, prevê-se a penalidade atinente à responsabilidade solidária em caso de prejuízo ao torcedor decorrente de falhas de segurança, e de outro, a destituição ou suspensão do dirigente. Entretanto, ³um só ato de infração não pode gerar uma dupla apenação, que se tornaria demasiado onerosa e desequilibrada, afrontando o princípio constitucional da proporcionalidade” (fls. 29) previsto no artigo 5º, LIV, do texto constitucional, tanto em sua acepção negativa (vedação de excessos, arbítrio 65

e restrições a direitos fundamentais) quanto positiva (exigência de razoabilidade nos atos do poder público).

O artigo 37 do estatuto do torcedor estabelece sanções que não são UD]RiYHLV YLRODQGR ³ o postulado constitucional do devido processo legal, nada obstante, retórica e ardilosamente, a ele faça menção no seu caput” (fls. 31). Assim, as cominações legais de destituição e suspensão por seis meses, cumuladas com a previsão de afastamento cautelar compulsório dos dirigentes, são incompatíveis com a exigência constitucional de razoabilidade e proporcionalidade ± cita- VHFRPRH[HPSORRFDVRGHXPGLULJHQWHTXHSHUPLWD³que um torcedor ocupe um lugar diferente do número constante no ingresso (...), ‘violação tão grave’ que pode resultar na destituição cumulativa dos dirigentes.” (fls. 33). O afastamento cautelar compulsório, ademais, ofende os princípios da ampla defesa e do contraditório (artigo 5º, LV, da CF), mostrando-se a imposição de alteração de seus estatutos para a inserção dessa penalidade ofensiva à autonomia desportiva. A imposição das sanções de destituição e suspensão, por sua vez, configura ingerência indevida em assuntos intestinos das entidades desportivas (ofensa ao art. 5º, XVII e XVIII, da CF), já que pode nem mesmo haver previsão estatutária das referidas sanções. Nem um dos três Poderes pode interferir no funcionamento de uma associação privada, nem mesmo por meio de emenda constitucional. As penalidades previstas no estatuto do torcedor, em suma, UHSUHVHQWDP XPD ³ universalização da incidência sancionatória, sem qualquer dosimetria, decorrente até de atos de terceiros ou fatos alheios à vontade dos dirigentes, configurando-se como um verdadeiro, arbitrário e inquisitorial ‘Código Penal do Dirigente Desportivo’, e, o que é pior, sem contemplar qualquer atenuante nem excludente de punibilidade” (fls. 36), conducente, até, à maculação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem dos dirigentes desportivos, ao arrepio do artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal. Demais disso, desprezam a presunção constitucional de inocência ou de não culpabilidade, inscrita no inciso LVII do artigo 5º da CF, que não se aplica apenas aos procedimentos que resultem em sentença penal condenatória por força do Pacto de São José da Costa Rica, artigo 8º, I, incorporado ao ordenamento jurídico pátrio com status constitucional. 66

O autor pleiteia, ao final, o recebimento e processamento da ação direta de inconstitucionalidade, para que seja julgada procedente, com a declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos apontados (inciso I do art. 8º; incisos I e II do § 5º do art. 9º; § 4º do art. 10; trechos em destaque do caput e do § 1º e íntegra dos §§ 2º a 6º do art. 11; art. 12; art. 19; parágrafo único do art. 30; caput e §§ 1º e 2º do art. 32; incisos II e III do parágrafo único do art. 33; incisos I e II do art. 37, bem como incisos I e II do § 1º e § 3º do mesmo artigo), cuja incompatibilidade vertical com normas constitucionais entende demonstrada. Requer, subsidiariamente, a declaração de inconstitucionalidade in totum do Estatuto do Torcedor, caso a análise segregada dos trechos da lei impugnada possa tornar o texto remanescente assistemático.

Houve pedido de liminar inaudita altera parte , em razão da plausibilidade das alegações e do perigo na demora, consistente na possibilidade de que dirigentes de HQWLGDGHV GHVSRUWLYDV SRVVDP ³ ser vítimas de arbitrariedades, ante a possibilidade de afastamento preventivo, imediato, automático e compulsório” (fls. 39), bem como na perspectiva de que “referidos dispositivos já produziram prejuízos e danos irreparáveis e, se mantidos, levarão, celeremente, a organização e o funcionamento dos entes desportivos à inviabilização e ao caos” (fls. 40). Foi determinada, pelo então Presidente Min. MAURÍCIO CORRÊA, a aplicação do artigo 12 da Lei nº 9.868/99, diante da relevância da matéria (p. 80).

A Presidência da República apresentou informações às fls. 89-101, elaboradas pela Advocacia-Geral da União, com apoio em pronunciamento da Consultoria Jurídica do Ministério do Esporte, nas quais defende a improcedência do pedido, argumentando, em resumo, que:

a) o Estatuto do Torcedor não invadiu o direito de livre associação, não interferiu no funcionamento das associações ou na autonomia das entidades de prática desportiva quanto a sua organização, nem tampouco invadiu competência legislativa concorrente;

b) a Lei nº 10.671/03 cuida apenas do direito do torcedor, 67

equiparado à figura do consumidor pelo artigo 42, § 3º, da Lei nº 9.615/98, que estabelece normas gerais sobre desporto. Logo, o Estatuto do Torcedor é indissociável do Código de Defesa do Consumidor, pois o organizador do evento esportivo também se equipara ao fornecedor;

c) o tratamento preferencial do consumidor justifica a adoção da responsabilidade objetiva, fundada na teoria do risco do negócio, independentemente de culpa. A responsabilidade objetiva dos dirigentes e organizadores do evento está em harmonia com o artigo 927 do Código Civil;

d) o Estatuto visa a garantir que se respeitem direitos básicos do torcedor, como o direito público subjetivo e constitucionalmente assegurado à integridade física e moral e o direito à transparência na organização das competições;

e) assegurou-se aos acusados o devido processo legal, por meio do contraditório e da ampla defesa, do procedimento previsto no artigo 14, § 1º, do Estatuto do Torcedor, e também da aplicação subsidiária dos Códigos de Processo Civil ou Penal;

f) não houve invasão de competência estadual pela União, que a exerceu nos limites constitucionalmente previstos. Ainda que o Estatuto do Torcedor contemple regras sobre desportos, tem caráter genérico e destina a proteger direito do torcedor. E, mesmo que contemple detalhes eventuais, esse é ³o veículo que assegura o atendimento da regra geral da qual é indissociável” ;

g) não ocorreu ofensa à autonomia das entidades GHVSRUWLYDV³ que não são livres para atuar acima ou contrariamente à lei” (fls. 100), nem ao artigo 5º da Constituição Federal.

O Congresso Nacional enviou informações, elaboradas pela Advocacia do Senado Federal, nas quais aduz que ³os dispositivos da Lei nº 10.671/2003 em 68

nenhum momento afrontam a Constituição Federal, ao contrário, está ela a preservar bens e institutos jurídicos que são tutelados pela Lei Maior de forma rigorosa e prevalente” , propondo a total improcedência da ação. Fundamenta seu entendimento nas razões a seguir resumidas:

a) o Estatuto do Torcedor tem por objetivos defender a vida, a segurança e a dignidade da pessoa humana (o torcedor), promover o desporto brasileiro, considerado patrimônio cultural brasileiro, de elevado interesse social;

b) a Lei nº 10.671/03 busca garantir os direitos do torcedor, na qualidade de consumidor, que ³é quem movimenta toda a indústria do esporte” , estando a sobrevivência desta condicionada ao respeito aos direitos humanos e de consumidor do torcedor, que merece ³ter sua paixão reconhecida e valorizada, com a garantia de que as competições que aprecia e participa se constituam em eventos honestos, transparentes e equânimes” (fls. 113). Inúmeros acidentes ocorridos em estádios, bem como manipulação de resultados de competições esportivas, levaram à edição do Estatuto do Torcedor;

c) o evento esportivo é um espetáculo no qual há relação de consumo, entre as entidades desportivas e seus dirigentes e o torcedor- consumidor, devendo-se ver a gestão do esporte profissional como atividade empresarial, submetida às disposições constitucionais sobre a ordem econômica e financeira (que inclui a proteção ao consumidor);

d) não há interferência indevida aos princípios da livre iniciativa ou da liberdade de associação, que não são fins em si mesmos e subordinam- VH j OHJtWLPD LQWHUIHUrQFLD HVWDWDO ³ quando essa interferência, na medida em que busca garantir valores jurídicos fundamentais, justifica a mitigação dos princípios insculpidos respectivamente no art. 5º, inciso XVIII, e no art. 217, inciso I, ambos da Carta Maga” ; 69

e) os princípios da igualdade e isonomia exigem que se FRUULMD SRU PHLR GD OHL R GHVHTXLOtEULR GHFRUUHQWH GD ³ supremacia do poder econômico das entidades esportivas sobre os torcedores ´;

f) o futebol, principal esporte profissional do país, tem sido JHULGRjPDUJHPGDOHLSRLVFRPRGHPRQVWUDUDPDV&3,VVREUHRDVVXQWR³ não parece haver regras para a atuação dos dirigentes de clubes. São contratos informais, movimentações financeiras em paraísos fiscais, propinas, administração temerária de toda sorte (...)” , justificando-se a intervenção estatal para proteger o esporte, bem jurídico da sociedade, cujos efeitos e repercussão são públicos e de interesse coletivo;

g) deve o legislador, pois, conceber mecanismos que preservem o interesse coletivo nacional, tais como a publicação com antecedência GRV FDOHQGiULRV GH FRPSHWLo}HV HVSRUWLYDV D IL[DomR GH ³ sanções para coibir a inobservância dos seus dispositivos, de acordo com a natureza da infração, assim como (...) a possibilidade de adoção de medidas acautelatórias visando garantir o devido processo de apuração de infrações, a aplicação da lei e a manutenção da ordem jurídica. O devido processo legal está garantido na medida em que os indiciados estarão sujeitos à jurisdição criminal, com audiência do Ministério Público e com direito a todos os meios de defesa previstos na lei dos juizados especiais criminais.” ;

h) a autonomia desportiva não é absoluta, devendo-se avaliar o limite entre liberdade de organização e independência administrativa, de um lado, e o respeito ao ordenamento jurídico pátrio, de outro. Deve-se harmonizar a autonomia desportiva com a fixação de normas gerais sobre desporto, pois não se pode confundir aquela com ausência anárquica de normas. As entidades GHVSRUWLYDV H DVVRFLDo}HV ³ devem respeito integral às normas previstas na legislação. (...) Ao mesmo tempo em que são livres para decidir sobre questões interna corporis de suas organizações, não estão desobrigadas do cumprimento dos demais ditames constitucionais, bem como das diretrizes estabelecidas pelas 70

legislações civil, tributária, trabalhista, penal e previdenciária” e

i) o desporto tem natureza social, elevado interesse social e compõe o patrimônio cultural brasileiro, nos termos da Lei nº 9.615/95, integrando o campo dos direitos difusos. As atividades das entidades desportivas nacionais não envolvem apenas matéria de cunho desportivo, mas, como atividade HPSUHVDULDO³ questões econômicas, comerciais, tributárias, trabalhistas, sanitárias, cíveis, etc.” ± DVVLP TXDQGR R (VWDGR HGLWD XPD OHL DSOLFiYHO DR DVVXQWR ³ não necessariamente está legislando apenas sobre desporto, mas cumprindo suas atribuições constitucionais de garantir a ordem pública, os direitos fundamentais, o cumprimento da ordem jurídica vigente e, sobretudo, respeitando e fazendo respeitar os legítimos interesses da sociedade”.

As entidades Avaí Futebol Clube, Ceará Sporting Club, América Futebol Clube, Santa Cruz Futebol Clube, Clube Atlético Paranaense, Associação Atlética Portuguesa de Desportos, Cruzeiro Esporte Clube, Sociedade Esportiva Palmeiras, Santos Futebol Clube, Futebol Brasil Associados, Esporte Clube, Vila Nova Futebol Clube, São Raimundo Futebol Clube, União São João Esporte Clube, Sociedade Esportiva e Recreativa Caxias do Sul, Grêmio Foot-ball Porto Alegrense, Esporte Clube Juventude, Sport Club Internacional, Clube Atlético Mineiro, Ltda. e Londrina Esporte Clube requereram sua admissão ao feito na qualidade de amici curie . Mas, em razão da ocorrência do fenômeno processual conhecido como preclusão consumativa, indeferi os pedidos.

Manifestou-se à AGU, às fls. 129-130, reiterando o teor das informações prestadas pela Presidência da República, fls. 89-101, no sentido da improcedência da ADIN.

A Procuradoria Geral da República opinou, outrossim, pela improcedência da ação, apresentando as seguintes ponderações, em parecer da lavra do então Vice- Procurador Geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza:

(i) a interpretação dada pelo autor à liberdade de 71

associação destoa da exegese do texto constitucional, que não garante, às associações, total independência ou desnecessidade de subordinação a regramentos normativos. A proibição de interferência estatal no funcionamento das associações restringe-se às intervenções arbitrárias, e esse não é o caso do Estatuto do Torcedor, TXH ³ representa o atendimento aos anseios de inúmeros cidadãos, que na qualidade de torcedores, eram obrigados a suportar o descaso e os desmandos dos dirigentes das mais diversas associações esportivas”. É, SRUWDQWR³ perfeita e exigível a intervenção do Poder Público, a fim de que sejam protegidos os direitos de uma camada expressiva da população que, em última análise, financia o desenvolvimento do esporte no país” ;

(ii) não há ofensa à autonomia das entidades de prática desportiva, quanto à sua organização e funcionamento, porque a lei impugnada não às disciplinas, apenas protege o direito do torcedor. Autonomia não se confunde com independência, soberania ou total falta de compromisso com o bem- estar público ± tem cunho administrativo, relativo a sua organização e funcionamento, e não pode ensejar desprezo aos interesses da coletividade. O Estatuto do Torcedor, ademais, não altera em nenhum dispositivo ³o funcionamento e a organização administrativa das entidades e associações desportivas, sendo fixados, na verdade, preceitos a serem obedecidos a fim de que sejam protegidos os direitos de sujeito estranho a esta estrutura interna: o torcedor” ;

(iii) o artigo 42, § 3º, da Lei nº 9.615/98, equipara o torcedor ao consumidor, donde perfeita a consagração da responsabilidade objetiva no artigo 19, caput, do Estatuto do Torcedor, fundada na teoria do risco e na hipossuficiência do consumidor-torcedor; e

(iv) não se verifica invasão de competência legislativa pela União, por suposta infração ao art. 24, I, porque o Estatuto, como o CDC, ³fixa os princípios norteadores da proteção dos direitos do torcedor, estabelecendo ainda, os instrumentos que garantirão efetividade a tais princípios”. 72

O Partido Progressista se manifestou em outras oportunidades. Noticiou, às fls.153-193, a existência de casos de afastamento de dirigentes esportivos (da Federação de Futebol do Rio de Janeiro), bem como a divulgação dos fatos pela ³JUDQGHPtGLD´-XQWRXjVIOV -323, cópias de decisões que deram aplicação à Lei 10.671/03, especialmente ao artigo 37, § 3º (afastamento compulsório de dirigentes), aduzindo a existência de danos irreparáveis ao desporto. E aduziu às fls. 338-348 que a inicial não confundiu autonomia desportiva com soberania, mas que aquela decorreu desta e não pode sofrer limitações infraconstitucionais. Também se insurge contra a aproximação entre o estatuto do torcedor e o CDC e repete argumentos já expendidos na inicial, anexando cópias de reportagens alusivas a vicissitudes do esporte profissional envolvidas, em seu entendimento, com a aplicação do estatuto.

É o relatório.

V O T O

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - (Relator):

1. Esclareço, desde logo, que as diversas modificações introduzidas no chamado Estatuto de Defesa do Torcedor pela Lei nº 12.299, de 27 de julho de 2010, em nada atingiram o teor e o alcance das normas atacadas nesta ação, cujo objeto não está, pois, prejudicado.

2. Vou-lhe ao mérito. A ação direta proposta contra a validez constitucional do Estatuto do Torcedor , posto que envolva assunto de relevante impacto social e de consideráveis efeitos sobre o esporte pátrio, não me parece de difícil resolução. As informações prestadas, bem como as manifestações da AGU e da PGR, no sentido da total improcedência da ação, indicam-lhe o desfecho apropriado.

A inconsistência das alegações do requerente não é sutil, pois, em síntese, nenhuma das normas impugnadas fere o texto constitucional, o que desnuda a 73

absoluta inaplicabilidade dos princípios que invocou.

Os argumentos todos da inicial ± muitos dos quais, aliás, guardam estreita VHPHOKDQoDFRPWUHFKRVGDREUD³ Direito Desportivo: novos rumos ´GHÈOYDURGH Melo Filho, sendo as de fls. 10 a 28 nitidamente inspiradas no teor constante das páginas 93 a 120 desse livro ± fundamentam, em essência, as três principais arguições da causa: (i) extravasamento da competência da União, em razão da edição de normas não gerais; (ii) ofensa à autonomia das entidades desportivas; e (iii) lesão a diversos direitos e garantias individuais por força das sanções irrazoáveis e desproporcionais previstas no Estatuto . Não tem razão.

2. O diploma questionado não deixa de ser um conjunto ordenado de normas de caráter geral. Sua redação não só atende à boa regra OHJLVODWLYDVHJXQGRDTXDO³ de minimis non curat lex ´FRPRHVWDEHOHFH preceitos que, por sua manifesta abstração e generalidade ± em relação assim ao conteúdo, como aos destinatários ± configuram bases amplas e diretrizes gerais para disciplina do desporto nacional, no que toca à defesa do torcedor.

Não vislumbro, no diploma, nenhuma norma ou tópico que desça a ³peculiaridades locais ´ FRPR VH DOXGLX QD $', Qž  5HO 0LQ &$5/26 9(//262'-GH QHPD³ especificidades ´RX³ singularidades ´HVWDGXDLV ou distritais, como se tachou na ADI nº 3.669, (Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, DJ de 29.06.07, e Informativo STF nº 472 ). A lei não cuida de particularidades nem de PLQXGrQFLDV TXH SXGHVVHP HVWDU UHVHUYDGDV j GLWD ³ competência estadual concorrente não cumulativa ou suplementar ´ $', Qž   GRDUW † žGD Constituição da República. A União exerceu a competência estatuída no inciso IX desse artigo, sem dela desbordar, em se adstringindo a regular genericamente à matéria.

É muito evidente, por outro lado, que as normas gerais expedidas não poderiam reduzir-se, exclusivamente, a princípios gerais, sob pena de completa inocuidade prática. Tais normas não se despiram, em nenhum aspecto, da sua vocação genérica, nem correram o risco de se transformar em simples 74

recomendações. Introduziram diretrizes, orientações e, até, regras de procedimentos, todas de cunho geral, diante da impossibilidade de se estruturar, normativamente, o subsistema jurídico-desportivo apenas mediante adoção de princípios.

Neste passo cabe observação adicional. As competições esportivas são, por natureza, eventos fortemente dependentes da observância de regras, designadamente as do jogo. Nesse sentido, o Estatuto do Torcedor guarda, em certas passagens, índole metanormativa, porque, visando a proteção do espectador, dita regras sobre a produção de outras regras (os regulamentos). E daí vem a óbvia necessidade da existência de regras, ao lado dos princípios, no texto normativo, que nem por isso perde o feitio de generalidade.

Nenhum intérprete racional, por mais crédulo que seja, poderia ter convicção sincera de que uma legislação federal sobre competições esportivas que fosse pautada apenas pelo uso de substantivos abstratos, como, por exemplo, princípios GH ³WUDQVSDUrQFLD´ ³UHVSHLWR DR  WRUFHGRU´ ³SXEOLFLGDGH´ H ³VHJXUDQoD´ SXGHVVH atingir um mínimo de efetividade social, sem prever certos aspectos procedimentais imanentes às relações de vida que constituem a experiência objeto da normação. Leis que não servem a nada não são, decerto, o do que necessita este país e, menos ainda, a complexa questão que envolve as relações entre dirigentes e associações desportivas.

Ainda nos dispositivos mais pormenorizados ± como, v. g ., o art. 11, que trata das súmulas e relatórios das partidas ±, existe clara preocupação com o resguardo e o cumprimento dos objetivos maiores do Estatuto , à luz do nexo de instrumentalidade entre regras e princípios. Além disso, o fato de aplicar-se à generalidade dos destinatários é providência fundamental nas competições de caráter nacional, cuja disciplina não poderia relegada ao alvedrio de leis estaduais fortuitas, esparsas, disformes e assistemáticas. Ao propósito, notou a Procuradoria- Geral da República: 75

³$V afirmações no sentido de que o legislador fixou minúcias as quais somente poderiam ter sido determinadas pelos Estados e Municípios não possuem fundamento, porquanto o que se verifica, na realidade, é que o Estatuto fixa os princípios norteadores da proteção dos direitos do torcedor, estabelecendo ainda os instrumentos que garantirão efetividade a tais princípios. (...) Caso a União não estabelecesse, desde já, os meios que garantem a concretização dos princípios consagrados no diploma legal, estes poderiam permanecer no mundo da abstração, tornando o Estatuto do Torcedor um mero rol de dispositivos normativos destituíd RVGHIRUoDFRJHQWH´

Ademais, embora possa ter inspiração pré-jurídica em características do futebol, de certo modo o esporte mais popular e que movimenta as maiores cifras no planeta, aplica-se o Estatuto às mais variadas modalidades esportivas (art. 2º), tanto do ângulo dos torcedores, quanto das entidades que as promovam, sem prejuízo das particularidades de cada qual.

Deve-se ressaltar, ao depois, que a Lei nº 10.671/03 se destina a reger ações apenas no plano do desporto profissional, circunstância que o autor parece tomar FRPR IRQWH GH VXD VXSRVWD ³QmR JHQHUDOLGDGH´ e D SUySULD &RQVWLWXLomR GD 5HS~EOLFD QR HQWDQWR TXH LPS}H HVVD GLVWLQomR DR H[LJLU QR DUW  ,,, ³ o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não profissional ´ O discrímen na regulação, portanto, é mais que legítimo, já que encontra amparo no texto mesmo da Constituição da República, sem que as normas voltadas ao só campo profissional deixem de estar, nesse âmbito de incidência, revestidas de generalidade.

3. No que tange à autonomia das entidades desportivas, ao direito de livre associação e a não intervenção estatal, tampouco assiste razão ao requerente. Seria até desnecessário a respeito, mas faço-o por excesso de zelo, relembrar a velhíssima e aturada lição de que nenhum direito, garantia ou prerrogativa ostenta caráter absoluto. Como acentua VIEIRA DE ANDRADE, que se debruça largo sobre as três vertentes da limitação a que estão sujeitos, não ³é 76

novidade afirmar... que os direitos fundamentais não são absolutos nem ilimitados ´.54

É o que já assentou esta Corte:

“Os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas — e considerado o substrato ético que as informa — permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social, e de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros." 55 Tem-se a alegação de ofensa aos incisos XVII e XVIII do art. 5º da &RQVWLWXLomR GD 5HS~EOLFD VRE GHVDYLVDGD DVVHUomR GH TXH ³ a autonomia desportiva (art. 217, I), diferentemente da mencionada autonomia universitária, não tem qualquer condicionante nos princípios e normas da Carta Política, do mesmo modo que inexiste qualquer limitação insculpida no corpo normativo da Constituição Federal”.

Penso se deva conceber o esporte como direito individual, não se afigurando viável interpretar o caput do artigo 217 - que consagra o direito de cada um ao esporte - à margem e com abstração do inciso I, onde consta a autonomia das entidades desportivas. Ora, na medida em que se define e compreende como

54 VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976 . Coimbra: Almedida. 1967, p. 213. Ver, ainda, p. 215 e segs. Sobre certa relativização do próprio valor da dignidade humana, segundo boa parte da doutrina constitucional contemporânea, cf. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais . Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2007. p.128-145. 55 MS nº 23.452, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 12.05.00.

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objeto de direito do cidadão, o esporte emerge aí, com nitidez, na condição de bem jurídico tutelado pelo ordenamento, em relação ao qual a autonomia das entidades é mero instrumento de concretização, que, como tal, se assujeita àquele primado normativo. A previsão do direito ao esporte é preceito fundador, em vista de cuja realização histórica se justifica a autonomia das entidades dirigentes e associações, quanto à sua organização e funcionamento.

Logo, é imprescindível ter-se em conta, na análise das cláusulas impugnadas, a legitimidade da imposição de limitações a essa autonomia desportiva, não, como VXVWHQWD R UHTXHUHQWH HP UD]mR GH VXEPLVVmR GHOD j ³ legislação LQIUDFRQVWLWXFLRQDO´ mas como exigência do prestígio e da garantia do direito ao desporto, constitucionalmente reconhecido (art. 217, caput ).

O esporte é, aliás, um dentre vários e relevantes direitos em jogo. As disposições do Estatuto homenageiam, inter alia , o direito do cidadão à vida, à integridade e incolumidade física e moral, inerentes à dignidade da pessoa humana, à defesa de sua condição de consumidor, ao lazer e à segurança.

Não me impressionam, por isso, os argumentos ad terrorem desfiados pelo requerente, segundo os quais muitos incidentes lamentáveis (brigas em estádios, YLROrQFLD PRUWHH³EDUEiULHHQWUHWRUFLGDV´ GHFRUUHULDP GD vigência do Estatuto. Esta inconcebível relação de causalidade é expressamente sugerida pelo UHFRUUHQWH TXH UHOHYD DR SHGLU XUJrQFLD QR MXOJDPHQWR GR IHLWR ³RV WXPXOWRV H LQFHUWH]DVTXHDVQRUPDVLPSXJQDGDVYrPFDXVDQGRDRGHVSRUWR QDFLRQDO´ IOV 338). Parece, até, fazer crer que os torcedores se revoltam contra a maior transparência nas competições ou com a possibilidade de os maus dirigentes serem punidos, entranto, levando-os, por consequência, a agir de maneira violenta nas praças esportivas. Trata- se de absurdo que o transcurso do tempo só avigorou.

As regras do Estatuto têm por objetivo, precisamente, evitar ou, pelo menos, reduzir, como tem reduzido, em frequência e intensidade, os episódios e incidentes narrados nas sucessivas petições do requerente. Sua adoção e observância 78

estritas ± DRFRQWUiULRGRTXHVHDGX]VREDWtSLFDIDOiFLD³ post hoc , ergo propter hoc” ± não são nem nunca foram causa de tais problemas, senão exemplo frisante de legítimo esforço para conjurá-los. E é bom não esquecer que se ainda com todas as medidas alvitradas no Estatuto e postas em prática, os problemas não foram de todo extintos, decerto mais caótica e preocupante seria a situação se o diploma não estivesse em vigor.

4. De todo modo, no que concerne ao alegado desrespeito a direitos e garantias individuais, anoto que, sobre não se revestirem de caráter absoluto, como já afirmado, não encontro sequer vestígio de ofensa aos incisos X (intimidade, honra, imagem dos dirigentes), LIV (devido processo legal), LV (contraditório e ampla defesa), LVII e § 2º (proibição de prévia consideração de culpabilidade), todos do art. 5º da Constituição da República.

A responsabilização objetiva prevista no art. 19 é consectário da textual equiparação das entidades desportivas, consoante o disposto no art. 3º, à figura do fornecedor do Código de Defesa do Consumidor. Tal equiparação não é apenas obra da lei, mas conclusão necessária da relação jurídica que enlaça os eventos desportivos profissionais e os torcedores. Fere qualquer conceito de justiça imaginar que pequena lavanderia possa ser responsabilizada, quando cause dano ao cliente, mas organizadores de eventos milionários, de grande repercussão, com público gigantesco, e que se mantêm graças à paixão dos torcedores que pagam pelo ingresso e pelos produtos associados, já não suportem nenhuma responsabilidade sob pretexto de se não enquadrarem no conceito ou classe dos fornecedores. Todo fornecedor ou prestador de espetáculo público responde pelos danos de suas falhas.

E a solidariedade atribuída aos dirigentes tipifica hipótese de desconsideração direta, ope legis, da personalidade jurídica, positivada em estratégia normativa análoga ao que, além doutras leis, o Código de Defesa do Consumidor já prevê em termos de poder conferido ao magistrado (art. 28, caput e § 5º), em consideração de intuitivos propósitos inibitórios e de garantia. Será ou é, deveras, medida dura, que, necessária, adequada e explicável no contexto dos riscos aos direitos do 79

torcedor, não insulta nenhum preceito constitucional.

Não há falar, ainda, em indevida imposição de sanção dupla, desproporcional ou irrazoável pela razão manifestíssima de que as penalidades do art. 37 são aplicáveis a hipóteses diversas, à vista da gravidade das condutas, segundo consideração do legislador. O inciso I do art. 37 prevê destituição por violação das regras dos Capítulos II (transparência à organização), IV (segurança do torcedor) e V (ingressos), enquanto o inciso II concerne aos demais dispositivos.

Por sua vez, o afastamento prévio e compulsório dos dirigentes e de outras pessoas que, de forma direta ou indireta, possam comprometer ou prejudicar a completa elucidação dos fatos, encontra sua ratio iuris na necessidade de assegurar resultado útil ao processo de investigação, e somente será determinado pelo Poder Judiciário, donde não constituir sanção, mas autêntica medida cautelar que, compatível com a Constituição da República, é regulada em diversas áreas do Direito.

Não há, nesse instituto, contrariedade alguma à chamada presunção constitucional de inocência. E, no particular, bem advertiu a AGU que as normas do Estatuto  ³ (...) ao indicar punições por desrespeito às regras de direito público, inafastáveis por interesses particularistas (...), guardam plena e equilibrada relação de causa e efeito, mediante apuração em devido processo legal, que ocorrerá perante o juiz de direito.”

As reportagens e decisões juntadas pelo requerente, relativas ao afastamento compulsório de dirigentes, antes que apoiar, reforçam-lhe a inconsistência da argumentação, ao revelarem a aplicabilidade, a efetividade e a aceitação social das normas impugnadas, as quais guardam consonância rigorosa com a Constituição.

Por fim, ainda do ponto de vista extrajurídico, a válida legislação, além de tutelar, diretamente, o torcedor, favorece, indiretamente ± até porque em nenhum dispositivo estabelece normas tendentes a alterar o funcionamento e a organização administrativa das entidades ±, o aperfeiçoamento das instituições, incentivando- 80

lhes a profissionalização e a busca da eficiência na gestão esportiva, com benefício a toda a sociedade. Pertinente, aqui, a observação do Min. Gilmar Mendes, quando, supondo o correto desempenho da função social do esporte, nos relembra:

“Em um mundo no qual se cultiva de forma intensa o conflito, o esporte propicia o desenvolvimento de princípios aplicáveis a outras áreas do comportamento humano, tais como integração social e racial (...) Quando falei da função social, pensei nessa ideia da tolerância, porque aprendemos a ganhar, mas também a perder. Isso é fundamental como regra de civilidade, do contrário se instauraria uma selvageria, o vale-tudo.” 56 Eventuais maus dirigentes, únicos que se não aproveitam da aplicação da lei, esses terão de sofrer as penalidades devidas, uma vez apuradas as infrações e as responsabilidades, sob o mais severo respeito aos direitos e garantias individuais (due process of law ), como, aliás, prevê o Estatuto . Não lhes é dado questionar lei que, de cunho tuitivo, suplementar ao Código de Defesa do Consumidor, UHYHUHQFLD WRGDV DV SURYLV}HV FRQVWLWXFLRQDLV $ SURWHomR WUD]LGD ³ representa o atendimento aos anseios de inúmeros cidadãos, que na qualidade de torcedores, eram obrigados a suportar o descaso e os desmandos dos dirigentes das mais diversas associações e entidades desportivas” . E, a título de derradeiro efeito positivo, o Estatuto SRGHUi³ colocar para escanteio” a nefasta figura do cartola, cuja GHILQLomROH[LFDOpDGH³ dirigente de clube ou de qualquer entidade esportiva, visto geralmente como indivíduo que se aproveita de sua posição para obter ganhos e prestígio” (Dicionário Houaiss).

5. Ante o exposto, julgo improcedente a presente ação direta de inconstitucionalidade.

VOTO

A SENHORA MINISTRA ROSA WEBER - Senhor Presidente, embora paixão

56 Direito Desportivo: função social dos desportos e justiça desportiva In: MACHADO, Rubens A. et al. Curso de direito desportivo sistêmico . São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 335- 343.

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e segurança não costumam andar de mãos dadas, compartilho da compreensão de que este Estatuto de Defesa do Torcedor visa a assegurar ao torcedor o exercício da sua paixão com segurança, o máximo da segurança possível. Isso implica, necessariamente, imputar responsabilidade aos organizadores dos eventos desportivos. Como o Código de Defesa do Consumidor, ele tem por objeto e objetivo a defesa do torcedor. É o próprio artigo 1º que estipula que o Estatuto estabelece normas de proteção e defesa do torcedor.

Fiz a leitura atenta de todos os preceitos acoimados de inconstitucionais nesta ADI e compartilho do entendimento de Vossa Excelência no sentido de que, observado o objetivo da lei, não se vislumbra o vício de inconstitucionalidade. Ao contrário, entendo que tais dispositivos guardem absoluta consonância com o nosso texto fundamental e, por isso, acompanho o voto de Vossa Excelência na íntegra.

VOTO

O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX - Senhor Presidente, egrégio Plenário, ilustre representante do Ministério Público, senhores advogados presentes.

Senhor Presidente, todas as peças que instruem o processo, oriundas das autoridades públicas, na realidade deixam entrever que o Estatuto do Torcedor, mutatis mutandis, é um código de defesa do torcedor, que é quem subvenciona esses espetáculos.

Confesso a Vossa Excelência que, em um primeiro momento, antes de ouvir o voto de Vossa Excelência, eu me deparei com uma certa perplexidade com o artigo 19, responsabilizando solidariamente os dirigentes. Pareceu-me que esse dispositivo não perpassaria pelo critério da razoabilidade e da proporcionalidade, haja vista essas infrações multitudinárias que ocorrem nos estádios de futebol: pode-se imaginar duas torcidas grandiosas do futebol carioca e do futebol paulista gerando danos múltiplos em inúmeras pessoas e a insuficiência patrimonial natural de um dirigente para implementar esta obrigação. 82

Por outro lado, Senhor Presidente, os benefícios da lei são tão relevantes, pelo que se lê até da exposição de motivos, e, ato contínuo, o ordenamento jurídico defende de maneira tão eficaz aquele que pode até ter a obrigação ex legis (mas não tem como cumpri-la, porque tem o bem de família, tem a insuficiência patrimonial, a pena não passa da pessoa do condenado e, quando vai aos sucessores, obedece àquele limite do que foi transmitido) e há tantos instrumentos de defesa desses dirigentes - e, como Vossa Excelência também destacou, essa responsabilidade vai ser apurada casuisticamente e já era antevista pelo próprio Código Civil, antes mesmo do Código de Defesa do Consumidor -, que eles fazem com que efetivamente se mantenha a higidez da norma. Sob o ângulo formal, entendo que esses dispositivos se encartam na competência da União para legislar sobre desporto e, de forma alguma, têm interferência na vida interna corporis das entidades associativas e das agremiações. Por isso, acompanho o brilhante voto de Vossa Excelência.

VOTO

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA ² Senhor Presidente, eu também acompanho Vossa Excelência e faço brevíssimas observações.

A primeira é que, especialmente em se tratando ² só para citar o que foi referido várias vezes nos trabalhos e, agora, na tribuna ² do futebol, que é o que mais chama atenção quando se fala no torcedor, se é verdade que, como disse Nelson Rodrigues, o Brasil é a pátria de chuteiras, o torcedor é o cidadão que usa essas chuteiras e, por isso mesmo, como tudo o que diz respeito ao cidadão e à cidadania que se exerce no espaço público, há de merecer, nos termos do artigo 17, o tratamento normativo competente.

Num primeiro momento, a alegação de que não se trataria apenas de normas gerais ² que Vossa Excelência enfatizou também no início do voto ² chama atenção porque esta não é uma matéria que tenha tido um tratamento que possa ser considerado um tratamento brasileiro do Direito, uma teoria brasileira dessas normas. Raul Machado Horta, que tanto se debruçou sobre isso, fala em normas 83

quadro, mas trazendo um pouco de modelos estrangeiros que traçam apenas uma moldura, que seria preenchida, conforme a federação, pelos Estados.

Não é isso que se tem no Brasil. Como Vossa Excelência bem afirmou, pensamento do qual partilho inteiramente, essas normas gerais não deixam em desvalia a necessidade de normas que deem substância a isso que está posto; quer dizer, não é apenas de enunciado, nem lei é aviso só por ser norma geral, nem é uma proposta. Não me parece que tenha havido nenhuma exorbitância, ao contrário do que alegado na petição inicial e nos documentos que, depois, vieram a, mais uma vez, reiterar o quanto dito.

Quanto à liberdade de associação, que também foi objeto de muitos cuidados, tenho que não há nenhuma possibilidade que se considere inconstitucional, pela circunstância de que o que se veda é apenas arbítrio do legislador ou do Estado de interferir, não de ausência de normas. Por essa razão, eu também considero que a liberdade de associação, garantida pela Constituição, de nenhuma forma foi tisnada, maculada neste caso.

O artigo 19, que inicialmente também tinha me causado preocupação, posteriormente mostrou, a meu ver, num estudo mais detalhado, que não interfere realmente em nada, nem agride nenhum dispositivo constitucional. A explicação de Vossa Excelência agora enriquece, pois que os precedentes que nós já temos na própria legislação autorizam, e isso será devidamente verificado.

Não vejo nenhuma exorbitância no que se refere ao artigo 18, que foi também tido como um dos agredidos, ou seja, que a autonomia dos Estados estaria comprometida pela circunstância de que a União teria ido além daquilo que lhe é garantido. Vejo nessa legislação um resguardo dos torcedores. Vossa Excelência GL]TXHHODQmRPDQGRX³SUDHVFDQWHLR´HXDLQ da sou do tempo em que se falava em corner e que se falava "retrato", não "foto". Então, acho que realmente essa OHJLVODomRQmRPDQGD³SUDHVFDQWHLR´ ² para usar o que Vossa Excelência disse ² nenhum dos princípios ou normas constitucionais, razão pela qual tenho a ação como improcedente, tal como Vossa Excelência, acompanhando, portanto, a 84

conclusão do brilhante voto de Vossa Excelência. É como voto, Presidente.

V O T O

O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO ² Senhor Presidente também acho que Vossa Excelência fez excelente, um voto que me lembra aquela imagem de alguém que consegue bater o escanteio e cabecear ao mesmo tempo.

Vossa Excelência fez um imbricamento, um enlace da matéria desporto com outros bens jurídicos, com outras matérias constitucionais também de primeira grandeza. De fato, as práticas desportivas se colocam numa linha de intersecção com a economia, a cultura brasileira, o exercício de profissões e a defesa do consumidor, conforme Vossa Excelência bem retratou numa análise mais abrangente, numa macroanálise ² e tudo de lastro constitucional.

Vossa Excelência lembra muito bem que o mais popular dos esportes, em todo o planeta, é o futebol. Pelo refinamento artístico em que consiste o futebol, sobretudo aqui no Brasil ² outros dizem que não mais aqui, no Brasil, com preponderância, a partir do exemplo do Barcelona, na Espanha, que, sem dúvida, é o time de futebol melhor do mundo, hoje ², é o esporte mais popular por características interessantes de envolvimento emocional, que toca as raias da paixão. Daí a Ministra Rosa Weber dizer com muita propriedade: o exercício da paixão do torcedor com segurança, debaixo de segurança.

E segurança é outro setor constitucional lembrado por Vossa Excelência porque, de fato, essas práticas esportivas, a partir do futebol ² hoje do vôlei, que coloca tão bem o Brasil no cenário internacional ², significam a concentração de multidões em determinados espaços físicos, sob um clima de acirramento de ânimos, de revelação de impulsos emocionais que, realmente, tocam os debruns do apaixonamento, da paixão. Aí entra o item da segurança, da saúde, da incolumidade física de cada torcedor. 85

O futebol, por exemplo, no Brasil é a profissão de milhares e milhares de pessoas, entre jogadores, organizadores, técnicos, massagistas, roupeiros, assistentes técnicos, médicos. Há toda uma estrutura econômica em torno de certas práticas desportivas, e a figura do consumidor não pode deixar de ser considerada, como Vossa Excelência muito bem lembrou.

Podemos colocar no enfoque dessas práticas desportivas a dicotomia fornecedor do espetáculo público/consumidor. Quando a Constituição fala de competência concorrente legislativa e estabelece esse condomínio legislativo para legislar sobre determinados bens jurídicos, em alguns deles a legislação se fará no sentido protetivo; a Constituição usa o substantivo "proteção". É o que faz essa lei: protege o torcedor-consumidor sem prejuízo, também disse Vossa Excelência, da autonomia das entidades esportivas, que são verdadeiras associações, protegidas, portanto, pelo artigo 5º da Constituição, porque a autonomia imposta, preservada ou garantida pela Constituição é quanto à organização e ao funcionamento dessas instituições. Não é autonomia para ditar as regras do jogo, não é autonomia para dotar essas instituições de um poder normativo, de um poder regulamentar sobre práticas esportivas, absolutamente.

Depois, subjaz ao regramento constitucional um outro tipo de autonomia que a lei reforça. É uma autonomia implícita. É aquela que se traduz na proibição de o Estado aparelhar ideologicamente as entidades para alcançar objetivos político- ideológicos, objetivos que não sejam propriamente do esporte.

Então, a lei impede esse apoderamento, essa apropriação das instituições e das organizações esportivas para fins ideológicos do Estado ou de eventuais dirigentes do Estado.

Enfim, Senhor Presidente, eu teria muita coisa ainda para dizer sobre esse tema do desporto, mas terminaria como Vossa Excelência começou: é dever do Estado fomentar práticas esportivas, formais e não formais, como direito de cada um de nós, como direito de cada assistente, como direito de cada torcedor. E esse enfoque jurídico subjetivo, investindo os torcedores numa situação jurídica ativa, 86

Vossa Excelência colocou muito bem como tratado por maneira constitucionalmente irretocável pela lei agora posta em xeque.

Cumprimento Vossa Excelência pelo acerto, pela judiciosidade do seu voto e também julgo improcedente a ADI.

VOTO

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES ² Presidente, eu também vou me manifestar no sentido da improcedência da ação. Vossa Excelência já demonstrou bem que, ao tratar do desporto, no artigo 217, o próprio texto constitucional estabelece claramente um dever geral de proteção no sentido de "ser dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um".

E aí diz: "(…) observados: I- a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;

II- a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;

III- o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não profissional;

IV- a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional".

Ao exigir que o Estado atue aqui, obviamente a Constituição não supôs uma ausência de atuação do Estado, muito menos uma ausência de disciplina normativa. Por outro lado, se houvesse qualquer dúvida ² e dúvida não há em relação a isso ², o próprio texto constitucional define as competências das entidades: "Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: 87

...... IX - educação, cultura, ensino e desporto."

A base para legislação está claramente aqui fixada quanto à competência concorrente.

Todos nós sabemos que decorre desse próprio modelo do artigo 24 a ideia de que a competência da União para legislar sobre essas chamadas normas gerais, como esclarece o § 1º, não exclui a competência suplementar dos Estados. Daí, então, vem a questão ² que já foi colocada de forma magnífica no voto de Vossa Excelência e, depois, considerada nas outras observações aqui trazidas pelos demais Ministros ², na qual, muitas vezes, a imposição de uma regulação, de uma disciplina universal decorre da necessidade de um tratamento uniforme. Se há exatamente uma imposição desse tipo, é na seara que envolve essa prestação de serviço/espetáculo e da necessidade de que haja a definição de responsabilidade de forma geral, de forma global.

Não seria admissível que nós tivéssemos, num campeonato nacional, por exemplo, disciplinas diversas sobre a temática relativa ao chamado Direito do Consumidor, utente, expectador, e as responsabilidades dos eventuais apresentadores, prestadores. Isso exige uma disciplina uniforme.

Tanto isso é verdade que, fora mesmo do contexto legislativo, também as próprias regras ² essa é uma área, inclusive, muito interessante ² têm sido objeto de uma série de elucubrações por parte de importantes teóricos do Direito: a área do desporto e a sua autonomia. O notável Gunther Teubner, por exemplo, fala que aqui é um campo em que a autopoiese se realiza de maneira muito forte, muito evidente, citando como exemplo o poder da FIFA; quer dizer, consegue conglomerar um número elevado de países, federações que a compõem, muito mais até do que a ONU, estabelece regras mais ou menos uniformes e tem um poder coativo enorme. Vejam as dificuldades das discussões que nós estamos a assistir quanto à chamada Lei Geral da Copa, que, na verdade, é quase que uma 88

disciplina mais ou menos universal, aqueles modelos que se estabelecem mundo afora, uma condição, um tipo de acordo, de agreement, que se faz com uma organização ² e realmente não seria reconhecida como organização internacional, mas, talvez, uma das mais internacionais das organizações.

No plano interno, é interessante verificar que essa organização também se faz de maneira efetiva, tanto é que repudia-nos a ideia ² e o próprio texto constitucional valida isso ² de uma certa intervenção do Estado em algumas searas da atividade desportiva, na medida em que o texto clama alguma intervenção, mas, ao mesmo tempo, também limita. Por exemplo, diz no § 1º do artigo 217 que "O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei;".

O Ministro Ayres Britto gosta de fazer esse tipo de análise. Salvo engano, talvez seja o único ponto no texto constitucional em que expressamente se faz uma ressalva àquela disposição quanto à proteção judicial de caráter universal. É um exemplo típico para, realmente, destacar a autonomia. E nós, de qualquer forma, incorporamos um pouco esse sentimento, tanto é que consideramos como um jogo não muito fair o recurso à Justiça para essas questões de anulação das punições dos tribunais desportivos. Veja também a eficácia das decisões, que muito rapidamente já se aplicam às suspensões, sem que haja muita discussão. É um setor que realmente chama atenção por todas as suas singularidades.

Exatamente por isso, tendo em vista a repercussão que esse tema desperta em todos nós, especialmente no Brasil, por causa da nossa sensibilidade para a questão do desporto ² inicialmente para o futebol, mas, hoje, já ampliado para outras áreas ², é que é importante mostrar, como Vossa Excelência mostrou no seu voto, a necessidade de uma disciplina minimamente uniforme e igualitária. Também aqui eu não vejo sentido ² embora também já tenha feito coro às manifestações, em outro momento, de que é preciso valorizar a autonomia dos entes federados. Acho que há quase que uma imposição de uma disciplina normativa uniformizada para que nós não tenhamos dissensos nesse campo. 89

Como o Ministro Fux ² e Vossa Excelência também já havia destacado ², tive um pouco de dúvida em relação à questão da responsabilidade solidária. Parece-me até que é uma opção técnica inevitável. A AGU e o Ministério Público chamam a atenção para o modelo preexistente do Código do Consumidor, que trabalha com a ideia de responsabilidade solidária, talvez até estimulando uma atitude de prevenção. E veja que no esporte internacional essa é mais ou menos a regra, tanto que se cancelam jogos. Quer dizer, pune-se, às vezes, o país; pune-se um determinado clube, de forma geral, por ali terem verificado atos de vandalismo ² como ocorria, por exemplo, no futebol europeu, no futebol inglês ²; pune-se o local, o estádio. Ele deixa de ser palco, por exemplo, de atividades esportivas internacionais.

O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO ² Aqui no Brasil já se faz isso também, interditando estádios.

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES ² Há uma interdição ao próprio estádio. Ele deixa de ser parte ou palco dessas atividades. Veja, portanto, que é uma tentativa de estimular não a sanção, mas um atitude de prevenção, para que todos os dirigentes e todas as pessoas envolvidas nesse espetáculo, que é complexíssimo, possam tomar as medidas adequadas para desestimular essas práticas.

O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO ² E em prol da credibilidade do próprio esporte, ou do desporto como um todo, o Estado adota essas medidas.

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES ² Assim, também, toda a discussão e a responsabilização dos clubes pelas chamadas "torcidas organizadas", porque elas é que acabam, muitas vezes, causando esse tipo de dano generalizado. Quer dizer, é um estímulo para essa responsabilidade. Portanto, é uma técnica que o legislador quis utilizar para obter, talvez, não o resultado responsabilização, pois o que não se quer aqui é que ocorram essas tragédias, mas para que haja uma atitude ativa no que concerne à prevenção. 90

Com essas brevíssimas considerações, também voto no sentido da improcedência, destacando este aspecto que é realmente singular: a busca dessa autonomia e a disciplina que o texto constitucional, acredito que de forma muito feliz, conferiu à matéria nesse contexto de esporte.

Para encerrar, Presidente, eu lembrava que, numa das muitas conversas que tive com o professor Peter Rabele, eu ² adepto do futebol, e ele sem compreender qualquer coisa ligada ao futebol ² dizia que existe uma identidade constitucional EUDVLOHLUD (OH XP SRXFR HP WRP GH EULQFDGHLUD GL]LD ³e HQWUH RXWUDV FRLVDV talvez, no futebol. O futebol compõe essa alma mater do sistema constitucional EUDVLOHLUR´'HDOJXPDIRUPDSRGHPRVSHUFHEHULVVRQXPDVpULHGHPDQLIHVW ações. A Ministra Cármen Lúcia já falou nessa ideia da pátria de chuteira ² algo com um quid de identidade nacional, no que diz respeito à essa questão ligada ao desporto, muito especialmente ao futebol.

O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO ² Essa questão da identidade de certas práticas, atividades ou artes que são portadoras de referência à própria identidade do país, está regrada pela Constituição no art. 216. Lembrou bem o Ministro Peluso que o futebol é identificado com o nosso País. Ele porta consigo uma referência de perfeita identificação com a nação brasileira.

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA ² Eu acho que é um fenômeno político-social. O futebol, no Brasil, é um fenômeno político-social, não é apenas um dado da cultura da sociedade.

O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO ² Por isso que Vossa Excelência citou, magnificamente, a metáfora de Nelson Rodrigues: A pátria de chuteiras.

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES ² Presidente, eu acompanho o voto de Vossa Excelência, com essas brevíssimas considerações.

V O T O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Senhor Presidente, também 91

entendo que as normas impugnadas revestem-se de plena legitimidade constitucional, quer analisadas sob a égide da cláusula que estabelece a discriminação constitucional de competências normativas no âmbito do Estado Federal, quer examinadas sob a perspectiva do princípio básico da liberdade de associação, quer, ainda , discutidas em face do postulado da autonomia das associações desportivas.

Observo que o tema pertinente à autonomia das entidades desportivas já foi por mim examinado, nesta Suprema Corte, quando do julgamento plenário da ADI 3.045/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, que resultou consubstanciado, no ponto , em acórdão assim ementado:

“A QUESTÃO DA AUTONOMIA DOS ENTES DE DIREITO PRIVADO, INCLUSIVE DAS ENTIDADES DESPORTIVAS, E O PODER DE REGULAÇÃO NORMATIVA DO ESTADO — O POSTULADO CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO — A EVOLUÇÃO DESSA LIBERDADE DE AÇÃO COLETIVA NO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO — AS MÚLTIPLAS DIMENSÕES DA LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO (...).”

As razões que então expus aplicam-se, por inteiro , ao litígio constitucional ora em exame, notadamente no ponto em que reconheço a plena legitimidade jurídica de o Congresso Nacional exercer a competência normativa que lhe foi atribuída pelo próprio legislador constituinte, que admitiu a possibilidade de o Estado formular, em sede legislativa, os lineamentos básicos e os parâmetros conformadores do exercício da liberdade de associação.

Em uma palavra: o maior grau de autonomia concedido aos entes associativos, de um lado , e o princípio da liberdade de associação, de outro , não privam nem destituem o Estado do exercício do seu poder de conformação legislativa .

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES ² Ministro Celso de Mello, se Vossa Excelência me permite? 92

Eu só acho que há uma confusão muito corrente que apareceu quando da discussão da chamada Lei Pelé, a qual dizia não poder haver disciplina sobre a organização dos clubes, porque eles eram instituições de caráter social e que não poderiam ser balizados pela legislação. Mas, veja, o próprio texto constitucional, quando assegura a liberdade de associação, já formula a possibilidade de disciplina legislativa ao dizer, no artigo 5º, XVII: ³e plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;"

E depois diz, no inciso XVIII, do mesmo artigo: ³$ criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;"

Mas o texto constitucional não impede que o legislador estabeleça as bases estatutárias das associações, tanto é que é tradição a disciplina no próprio Código Civil.

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: O próprio Código Civil estabelece regulação normativa que subordina e rege o processo de institucionalização das entidades de direito privado.

A cláusula constitucional de autonomia não pode ser invocada para excluir as organizações desportivas da necessária observância das regras positivadas em diplomas legislativos, como se tais agremiações desportivas fossem entidades marginais, infensas e imunes à ação normativa do Estado.

Por tais razões, Senhor Presidente, além daquelas, já por mim , expostas no julgamento da ADI 3.045/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, acompanho, integralmente , o magnífico voto de Vossa Excelência, para julgar improcedente a presente ação direta.

É o meu voto. 93

PLENÁRIO

EXTRATO DE ATA

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.937

PROCED. : DISTRITO FEDERAL

RELATOR: MIN. CEZAR PELUSO

REQTE.(S): PARTIDO PROGRESSISTA - PP

ADV.(A/S): WLADIMIR SÉRGIO REALE

INTDO.(A/S): PRESIDENTE DA REPÚBLICA

ADV.(A/S): ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

INTDO.(A/S): CONGRESSO NACIONAL

Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, Ministro Cezar Peluso (Presidente), julgou improcedente a ação direta. Ausentes o Senhor Ministro Ricardo Lewandowski, representando o Tribunal em visita oficial à Suprema Corte do Japão e, neste julgamento, o Senhor Ministro Joaquim Barbosa. Falaram, pelo requerente, o Dr. Wladimir Sérgio Reale e, pela Advocacia-Geral da União, o Ministro Luís Inácio Lucena Adams, Advogado-Geral da União. Plenário, 23.02.2012.

Presidência do Senhor Ministro Cezar Peluso. Presentes à sessão os Senhores Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux e Rosa Weber.

Procurador-Geral da República,

Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos. 94

ANEXO 2

Arbitration CAS 2007/A/1370 Fédération Internationale de Football Association (FIFA) v. Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol (STJD) & Confederação Brasileira de Futebol (CBF) & Mr Ricardo Lucas Dodô

&

Arbitration CAS 2007/A/1376 World Anti Doping Agency (WADA) v. Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol (STJD) & Confederação Brasileira de Futebol (CBF) & Mr Ricardo Lucas Dodô

11 September 2008

Football; doping (fenproporex); CAS jurisdiction; applicable law; no fault or negligence; no significant fault or negligence; burden of proof; duty of care of the athlete; commencement of the suspension period.

Relevant facts:

0U 5LFDUGR /XFDV EHWWHU NQRZQ DV 'RG{ WKH ³3OD\HU´ RU ³0U /XFDV´ RU ³'RG{´ LVD%UD]LOLDQIRRWEDOOSOD\HUERUQRQ 2 May 1974 in São Paulo. He has been registered in the last couple of seasons with the Confederação Brasileira de Futebol (CBF), having played in 2007 for the club Botafogo de Futebol e Regatas ³%RWDIRJR´RUWKH³&OXE´ DQGLQIRUWKHFOXE)OXPLQHQVH .

On 14 June 2007, Dodô was selected for an incompetition anti-doping control on the occasion of the Brazilian championship match between Botafogo and Vasco da Gama. The test was performed by the WADA-accredited LADETEC laboratory of Rio de Janeiro. The urine sample provided by the Player revealed the SUHVHQFH RI ³)HQSURSRUH[´ D SURKLELWHG VXEVWDQFH DSSHDULQJ RQ WKH  Prohibited List under category S6, stimulants. Fenproporex is a strong stimulant, precursor to amphetamine.

The Player had already undergone in-competition doping tests on 6 and 16 May 2007, and was tested again on 30 June 2007, always with negative results. $IWHU WKH 3OD\HU ZDV QRWLILHG WKDW KLV ³$´ 6DPSOH RI  -XQH  KDG WHVWHG 95

SRVLWLYHKHUHTXHVWHGWKHDQDO\VLVRIWKH³%´6DPSOH7 he test on the B Sample confirmed the adverse analytical finding.

On 9 July 2007, the Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol (STJD), the highest sports court in Brazilian football, provisionally suspended the Player for 30 days. On 11 July 2007, on the advice of Dr Alexandre Pagnani (President of the Brazilian Association of Studies and Fight on Doping, ABECD), Botafogo sent several nutritional supplements regularly used by the team to the University of São Paulo Laboratory for Toxicological An DO\VHV WKH ³863 /DERUDWRU\´  WR EH WHVWHG LQ RUGHU WR DVFHUWDLQ WKH SRVVLEOH SUHVHQFH RI )HQSURSRUH[7KH863/DERUDWRU\¶VUHSRUWGDWHG-XO\DQGFRQVLVWLQJRID single page signed by the laboratory director and by the person in charge of the analysis, stated that the analysis had found the presence of Fenproporex in some FDIIHLQHFDSVXOHVSURGXFHGE\³)DUPiFLDGH0DQLSXODomR3KDUPDF\´

The analysed capsules were taken from three containers, two sealed (lots no. 348877 and 348873) and one unsealed and partially used (lot no. 3419560), ZKLFKKDGEHHQVHQWWRWKH863/DERUDWRU\E\%RWDIRJR7KH863/DERUDWRU\¶V report did not specify which, nor how many, caffeine capsules were found to be FRQWDPLQDWHGEXWGLGVWDWHWKDWWKH863/DERUDWRU\³GRHVQRW assume liability for WKHRULJLQRIWKHPDWHULDOGHOLYHUHGIRUDQDO\VLV´

In the disciplinary proceedings brought by the Brazilian Sports Prosecutor DJDLQVW WKH 3OD\HU EHIRUH WKH QG 'LVFLSOLQDU\ &RPPLVVLRQ WKH ³'LVFLSOLQDU\ &RPPLVVLRQ´ WKH3OD\HUUHOLHGRQWKH863/DERUDWRU\¶VUHSRUWWRDUJXHWKDWWKH prohibited stimulant had entered his bodywithout his knowledge and will through the contaminated caffeine capsules manufactured by the local producer Pharmacy  0DQLSXODomR /WGD ³3KDUPDF\  0DQLSXODomR´  WKDW WKH %RWDIRJR PHGLFDO staff had given him to ingest before the match. The Player has declared throughout the Brazilian and CAS proceedings that he trusted the team doctors and essentially took whatever was given to him, as he had no reason to make particular inquiries or to have doubts about the various products that were regularly administered to him. On 24 July 2007, the Disciplinary Commission imposed a 120 days suspension to the Player, stating that the explanation given 96

by the Player was implausible, especially in light of the fact that no other Botafogo player had tested positive in that or in other matches.

The Player lodged an appeal with the STJD. On 2 August 2007, the STJD GHFLGHGE\PDMRULW\YRWHWRVHWDVLGHWKH'LVFSOLQDU\&RPPLVVLRQ¶VG ecision and to DFTXLW WKH 3OD\HU WKH ³$SSHDOHG 'HFLVLRQ´  7KH 67-' DFFHSWHG WKH 3OD\HU¶V argument that he had been an innocent victim of contamination and that he had not been negligent. The CBF notified the Appealed Decision to FIFA on 20 August 2007. WADA was informed of the Appealed Decision on 22 August 2007.

On 6 and 11 September 2007, respectively, FIFA and WADA filed statements of appeal against the decision of the STJD with the CAS. On 10 December 2007, the Panel issued an Order on Application for Provisional Measures which dismissed a request for provisional measures filed by FIFA. The Panel held that it was not satisfied that FIFA had discharged the burden on it of demonstrating that a provisional suspension of the Player was necessary to protect its position or that the harm or inconvenience that it would have suffered from the refusal of the provisional suspension would have been greater than the harm or inconvenience that the Player would have suffered if such measure had been ordered. By letter dated 26 March 2008, the Player objected to the request of WADA to hear as witness a representative of Pharmacy 65 Manipulação since (i) Dodô had filed a claim against such company with a Brazilian court and (ii) this evidentiary request of WADA was not mentioned in its appeal brief. On 31 March 2008, the President of the Panel decided to accept the request. On 29 April 2008, WADA sent to the CAS the written witness statement of Mr Milton Luis Santana Soares, owner and chief executive officer of Pharmacy 65 Manipulação. A hearing took place in Lausanne on 19 and 20 May 2008.

Extracts from the legal findings:

1. CAS jurisdiction over the CBF and the STJD First of all, the Panel observes that the CBF is a member of FIFA and, as such, is contractually bound to respect the Statutes of FIFA to which it has voluntarily adhered. Article 61 of the applicable 2007 version of the FIFA Statutes provides that, once all internal remedies have been exhausted, FIFA and WADA 97

are both entitled to appeal to the CAS against doping-related decisions adopted by FIFA members such as the CBF. Hence, the CBF is legally bound to yield to an appeal to the CAS brought by FIFA and/or WADA against one of its final doping- related decision. However, the CBF argues that Article 61 of the FIFA Statutes is of no relevance here because the Appealed Decision was not adopted by the CBF but rather by the STJD, that is a wholly independent judicial body. Nevertheless, having reviewed Brazilian law and Brazilian sports rules, as well as the documents on file, the Panel has formed the view that the STJD is a justice body which, although independent in its adjudicating activity, must be considered part of the organisational structure of the CBF. With regard to Brazilian law, first of all the Panel observes that Article 217, paras. 1 and 2, of the Constitution of the Federal 5HSXEOLF RI %UD]LO PHQWLRQV ³VSRUWV MXVWLFH ERGLHV´ ³MXVWLoD GHVSRUWLYD´  IR r the purposes of providing that Brazilian ordinary courts have jurisdiction over sporting matters only when sports proceedings have been exhausted and that sports justice bodies must exhaust such proceedings within sixty days. It is worth mentioning that, contrary to what the Player alleges, Article 217 of the Brazilian Constitution does not specify how sports justice bodies must be structured and whether they are to be independent and set up inside or outside the organisational structure of sports federations. Article 217 leaves the regulation of those details to ordinary laws.

Then, the Panel notes that pursuant to Article 23, para. I, of Lei Pelé, the statutes of Brazilian sports federations must provide for the institution of sports justice bodies in accordance with the requirements of Lei Pelé. In compliance with Lei Pelé, the STJD and the Disciplinary Commissions have been instituted as independent and autonomous sports justice bodies by Articles 69-71 of the CBF Statutes and have been given authority to judge whether disciplinary violations have been committed by anyone ± associations, clubs, players, coaches, etc. ± directly or indirectly affiliated to or registered with the CBF. In other words, the CBF has wholly entrusted its vested disciplinary power to the STJD and the Disciplinary Commissions. In independently exercising such disciplinary power on EHKDOIRIWKH&%)WKH67-'LVREOLJHG³WRFRPSO\ZLWKWKH6WDWXWHVUHJXODWLRQV FLUFXODUV DQG GHFLVLRQV DQG &RGH RI (WKLFVRI ),)$´ DV ZHOO DV ³WR U espect the 98

principles and rules of the FIFA Disciplinary Code, of universal application, and the %UD]LOLDQ&RGHRI6SRUWV-XVWLFH &%-' RIQDWLRQDODSSOLFDWLRQ´ $UWLFOHSDUD 3, of the CBF Statutes). The Panel also notes that under Article 50, para. 4, of Lei Pelé, sports federations must finance the functioning of the sports justice bodies that operate with them. Then, the Panel notes that Article 70, para. 1, of the CBF Statutes confers on the President of the CBF the formal power to appoint the nine judges of the STJD. Pursuant to Article 55 of Lei Pelé, such appointment is done upon indication by the CBF (two judges), by the clubs participating in the top professional championship (two judges), by the Brazilian Bar (two judges), by the referees (one judge) and by the players (two judges). Therefore, seven judges out of nine are designated by the CBF itself or by bodies or individuals operating within the CBF, being affiliated thereto (the clubs) or registered therewith (the referees and the players). Moreover, according to Article 41, para. XXIII, of the CBF Statutes, the President of the CBF must enforce the rulings of the sports justice bodies. The Panel also notes that Article 22, para. 3-VII, of the CBF Statutes provides that the General Assembly of the CBF has the power to decide on appeals against the final rulings of the sports justice bodies concerning the loss of affiliation or exclusion of affiliated entities (such as clubs). So, there is at least RQHWRSLFLQZKLFKWKH67-'¶VMXGJPHQW\LHO ds to that of the main body of the CBF.

,Q DGGLWLRQ WKH 3DQHO QRWHVWKDW WKH 67-'¶V3UHVLGHQWLQ DOHWWHU GDWHG  6HSWHPEHU  WR WKH &%)¶V 6HFUHWDU\ *HQHUDO KDV FOHDUO\ VWDWHG WKDW ³WKH Superior Tribunal de Justiça Deportiva do Futebol, thus, has no own legal personality. It is just one of the bodies of the CBF, as well as the Board of Directors (with executive powers) and the General Meeting (with internal legislative powers). As one of the bodies of CBF, the STJD does not constitute a governmental body. Despite that, Article 52 of Law 9615 of 1998 attributes organizational autonomy and decision- PDNLQJLQGHSHQGHQFHIURP&%)WR67-'´ [Emphasis added] In the light of the foregoing, the Panel is of the opinion that the STJD is a justice body which is an integral part of the organisational structure of the CBF, with no legal personality of its own. The fact that in Lei Pelé, in the CBF Statutes and in the Brazilian Code of Sports Justice there are rules protecting the autonomy and independence of the STJD vis-à-vis the executive and legislative 99

powers of the CBF does not alter the fact that the STJD has been instituted by (and thus owes its legal birth and existence to) the CBF Statutes and is financially DQG DGPLQLVWUDWLYHO\ GHSHQGHQW RQ WKH &%) ³GHSHQG ência físico- ILQDQFHLUD´ DV characterized by Dr Paulo Marcos Schmitt in his article Organização e competência da justiça desportiva, published in Código Brasileiro de Justiça Desportiva ± Comentários e Legislação: Ministério do Esporte, ass. Comunicação Social, Brasília/DF, 2004, pp. 23-   ,Q WKH 3DQHO¶V YLHZ LW LV D FRPPHQGDEOH feature of the Brazilian sports system that sports federations are organised in accordance with the principle of separation of powers. This means that the Presidency, the Secretariat and the Board, the executive branch of the CBF ±of Directors ± is not permitted to encroach on the domain of the judicial branch ±the STJD, the Disciplinary Commissions and the Arbitration Court ± and vice-versa. This happens also in other football associations. However, the praiseworthy independence and autonomy of the STJD in adjudicating the disputes brought before it does not entail that the STJD is a body which could legally stand alone if WKH&%)GLGQRWH[LVW,QGHHGLQWKH3DQHO¶VRSLQLRQWKH³ stand- DORQHWHVW´LVWKH decisive test to reveal whether a given sports justice body pertains in some way to the structure of a given sports organization or not. If the CBF did not exist, the STJD would not exist and would not perform any function. In this respect, the similarity that the STJD suggested between itself and the CAS ± ³-XVWDVWKH&$6 is independent of the IOC and the other sports institutions that finance the CAS or QRPLQDWH LWV PHPEHUV WKH 67-' LV LQGHSHQGHQW RI WKH &%)´ ± is wholly misplaced. Apart from the fact that CAS arbitrators are appointed by a private Swiss foundation, the International Council of Arbitration for Sport, which is also responsible for the financing of the CAS, the CAS would legally stand alone and exist as an arbitration institution even if the IOC or any of the international federations suddenly disappeared (or simply withdrew their choice of the CAS as arbitration forum). In contrast, the STJD would not legally stand alone if the CBF did not exist. Accordingly, the Panel is of the view that (at least) for international purposes the decisions of the STJD, although independently reached, must be considered to be the decisions of the CBF. In other words, the CBF is to be considered responsible vis-à-vis FIFA (or other international sports bodies) for the decisions adopted by the STJD. This is exactly the same legal situation as we 100

have in public international law, where States are internationally liable forjudgmentsrendered by their courts, even if under their constitutional law the judiciary is wholly independent of the executive branch. In conclusion, the Panel finds that the STJD has no autonomous legal personality and may not be considered as a Respondent on its own in a CAS appeal arbitration concerning one of its rulings; consequently, the procedural position of the STJD before the CAS must be encompassed within that of the CBF. Therefore, the Panel holds that the Appealed Decision must be considered as a dopingrelated decision adopted by a national federation and thus, pursuant to Article 61 of the FIFA Statutes, the &$6KDVMXULVGLFWLRQWRKHDU:$'$¶VDQG),)$¶VDSSHDOVDJDLQVWWKH&%)

2. CAS jurisdiction over the player The Panel notes that the Player is registered as a professional athlete with the CBF and that, by his deliberate act of registering, he has contractually agreed to abide by the statutes and regulations of the CBF. The Panel also notes that in the third clause of the employment contract which the Player signed with Botafogo on 16 January 2007, the Player has explicitly declared to be cognisant of and to pledge to respect, besides his contract, the rules of the CBF. Article 1, para. 2, of the CBF Statutes provides inter alia that all athletes must comply with the rules of FIFA. Article 61 of the FIFA Statutes entitles FIFA and WADA to appeal to the CAS against dopingrelated decisions adopted by national federations. In the 3DQHO¶VYLHZZKLOHWKH3OD\HU¶VDUJXPHQWEDVHGRQWKHIDFWWKDW$UWLFOHRIWKH Brazilian Code of Sports Justice provides that the 67-'¶V GHFLVLRQV DUH QRW subject to appeal may be relevant at national level, it is irrelevant for international purposes, because Article 61, para. 7, of the FIFA Statutes specifies that appeals WRWKH&$6DUHLQIDFWGLUHFWHGDJDLQVW³LQWHUQDOO\ILQDOD nd binding doping-related GHFLVLRQ´,QFRQQHFWLRQZLWKWKHSURYLVLRQRIWKH&%)6WDWXWHVUHTXLULQJDOO&%) players to comply with FIFA rules, the Panel remarks that it is the Brazilian legislation itself which strengthens the status of international sports rules within the Brazilian sports system. Indeed, Article 1, para. 1, of Lei Pelé expressly states that official sports practice in Brazil is governed by national and internationalrules and by sporting practice rules of each type of sport, accepted by the respective national federations. The Panel also observes that Article 3, para. III, of Lei Pelé 101

specifically imposes on athletes practising professional sport the duty to abide by international sports rules, besides Lei Pelé and national sports rules. The Panel finds these provisions of Lei Pelé particularly wise, insofar as international disciplinary rules are concerned. Indeed, strengthening by law the application of LQWHUQDWLRQDOUXOHVWHQGVWRUHPRYH³WKHWHPSWDWLRQWRDVVLVWQDWLRQDOFRPSHWLWRUV by overindulgence. The objective is to subject all athletes to a regime of equal treatment, which means that national federations must be overruled if they look the RWKHU ZD\ ZKHQ WKHLU DWKOHWHV EUHDFK LQWHUQDWLRQDO UXOHV´ &$6 $  2007/A/1211, para.   ,Q WKH 3DQHO¶V YLHZ DV D UHVXOW RI WKH DERYH TXRWHG express legislative provisions, international sports rules are directly applicable to Brazilian sport; accordingly, any athlete registered with a Brazilian federation is directly bound by the international rules accepted by that federation, including any provision therein giving jurisdiction to the CAS, as is the case here with doping- related decisions under Article 61 of the FIFA Statutes. In this respect, the Panel observes that a player who has been exposed to an international experience, having played international matches with both his clubs and his national team, must be particularly aware of the existence of international rules directly applicable to him. Accordingly, the Panel does no more than to observe that the Player has accepted to be bound by the rules of the CBF and by the rules of FIFA. In light of the foregoing, in accordance with Article R47 of the Code of Sports-related $UELWUDWLRQ WKH³&$6&RGH´ WKH&$6KDVMXULVGLFWLRQWRKHDU:$'$¶VDQG),)$¶V appeals against the two Respondents CBF and Mr Ricardo Lucas Dodô.

The Panel wishes to point out, by analogy to what another CAS Panel stated in the above quoted CAS 2006/A/1149 & 2007/A/1211 case, that it would be a mistake to consider this conclusion to be contrary to Brazilian interests. First, the prosecution of antidoping violations is in the interest of all Brazilian clubs and players who respect the anti-doping rules. Secondly, all Brazilian federations, clubs and players obviously benefit from the coherent and effective anti-doping regime which FIFA has sought to establish whenever Brazilian clubs or selections are engaged ±as often happens, due to the worldrenowned excellence of Brazilian football ± in international matches and tournaments. 102

3. Applicable law The Panel has noted above that Brazilian law explicitly imposes on Brazilian federations and athletes the observance of international sports rules. It is worth adding that, with specific reference to doping and anti-doping controls, the Brazilian Code of Sports Justice confirms and reinforces the status of international anti-doping rules within the Brazilian sports system, providing for the obligation to comply also with international rules (Article 101). In line with such provisions of the Brazilian Code of Sports Justice, Article 65 of the CBF Statutes provides that the prevention, fight, repression and control of doping in Brazilian football must be done complying also with international rules. The Panel has already noted that the CBF itself dictates its own compliance, as well as that of its clubs, athletes etc., with FIFA rules (see Articles 1, para. 2, and 5, para. V, of the CBF Statutes). 0RUHRYHUWKH&%)LPSRVHVWKHDSSOLFDWLRQRIWKH³SULQFLSOHVDQGUXOHVRIWKH),)$ Disc LSOLQDU\&RGH´LQDQ\GLVFLSOLQDU\SURFHHGLQJVFRQFHUQLQJLWV FOXEV DWKOHWHV HWF FRQVLGHULQJ WKRVH SULQFLSOHV DQG UXOHV ³RI XQLYHUVDO DSSOLFDWLRQ´ DQG WKH %UD]LOLDQ&RGHRI6SRUWV-XVWLFH³RIQDWLRQDODSSOLFDWLRQ´ VHH$UWLFOHSDUDRI the CBF S WDWXWHV  ,Q WKH 3DQHO¶V YLHZ WKLV &%) VWDWXWRU\ SURYLVLRQ acknowledging the legal primacy of FIFA disciplinary principles and rules, although drafted as a rule concerning the law that must be applied by the STJD, implies the obvious consequence of its applicability in any international proceedings reviewing a decision issued by the STJD. The Panel has also already observed that the Player, in addition to the duty imposed on him by Lei Pelé to respect international sports rules, has contractually agreed, by his deliberate act of registering as a professional athlete with the CBF, to comply with CBF rules and, thus, with FIFA rules too.

The Panel also remarks that Article 60, para. 2, of the FIFA Statutes ± contractually accepted by the CBF and the Player, as already explained ± provides WKDWLQ&$6SURFHHGLQJV³&$6VKDOOSULPDULO\DSSO\WKHYDULRXVUHJXODWLRQVRI),)$ DQGDGGLWLRQDOO\6ZLVVODZ´,QOLJKWRIWKHIRUHJRLQJWKH3DQHOLVRIWKHRSLQLRQ WKDWWKH³DSSOLFDEOHUHJXODWLRQV´XQGHU$UWLFOH5RI the CAS Code are primarily the rules of FIFA ± accepted by all parties ± and, subsidiarily, the rules of the CBF. In other words, in case of inconsistency between a CBF provision and a FIFA 103

provision, the FIFA provision must prevail. Otherwise, the deference to international sports rules proclaimed in Brazilian legislation and the obligation assumed by CBF in its own Statutes (and accepted by its clubs, players, etc.) to comply with FIFA rules would become mere lip service. The compliance with and enforcement of FIFA rules is even indicated in Article 5, para. V, of the CBF 6WDWXWHVDVRQHRIWKH&%)¶VEDVLFSXUSRVHV,QSDUWLFXODUFRQVLGHULQJWKDWWKLVLV a disciplinary case involving an athlete of international status, the Panel is of the view that the FIFA Disciplinary Code ± incorporating by express reference (at Article 63, para. 1) the FIFA Doping Control Regulations ± must prevail, in case of conflicting provisions, over the Brazilian Code of Sports Justice and the CBF Doping Control Regulation because, as expressly acknowledged by the CBF 6WDWXWHV WKH ),)$ GLVFLSOLQDU\ UXOHV DUH RI ³XQLYHUVDO DSSOLFDWLRQ´ ZKHUHDV WKH FRUUHVSRQGLQJ&%)UXOHVDUHPHUHO\RI³QDWLRQDODSSOLFDWLRQ´ $UWLFOHSDUDRI the CBF Statutes). In addition, the right of appeal to CAS against national decisions ± granted to FIFA and WADA under Article 61, paras. 5 and 6, of the FIFA Statutes ± confirms that national football associations (which, as members of FIFA, have the collective legislative power to enact and modify the FIFA Statutes) have expressed the clear wish to pursue uniform interpretation and application of anti-doping rules and sanctions vis-à-vis athletes of international status throughout the football world. Such uniform interpretation and application would be imperilled or impeded if the CAS ± absent any mandatory rule or public policy principle imposing such legal course ± had to accord precedence to domestic anti-doping rules over a FIFA disciplinary system contractually accepted, on a basis of reciprocity, by all national football associations and their affiliated clubs and registered individuals. Furthermore, the Panel notes that the Player, in his appeal WR WKH 67-' ORGJHG RQ  -XO\   DJDLQVW WKH 'LVFLSOLQDU\ &RPPLVVLRQ¶V decision, expressly invoked in his favour (in addition to some national rules) the DSSOLFDWLRQ RI WKH :$'$ &RGH LQ SDUWLFXODU RI $UWLFOH  ³(OLPLQDWLRQ RU 5HGXFWLRQ RI 3HULRG RI ,QHOLJLELOLW\ %DVHG RQ ([FHSWLRQDO &LUFXPVWDQFHV´  PRWLRQLQJ IRU KLV DFTXLWWDO ³RU HYHQWXDOLWHU IRU W he application of a sanction in DFFRUGDQFHZLWKWKHSURYLVLRQVRIWKH:$'$&RGH´ ³RXHYHQWXDOPHQWHOKHDSOLFDU DSHQDHPFRQVRQkQFLDFRPRVDUWLJRVGR&yGLJR0XQGLDO$QWLGRSLQJ´ 'XULQJ the CAS proceedings, the Player has slightly modified his position, arguing at the 104

hearing that the WADA Code is applicable only on a subsidiary basis. In any event, it seems to the Panel that, by explicitly invoking the rules of the WADA Code, the Player has accepted the application of those rules in his favour as well as to his detriment. The applicability of the WADA Code is confirmed by the fact that the STJD did apply the WADA Code (in addition to Brazilian rules, FIFA rules and general principles of law) in performing its disciplinary function on behalf of the CBF. Indeed, as the President of the STJD himself explained in his letter to the &$6 GDWHG  6HSWHPEHU  WKH 67-'¶V GHFLVLRQ WR DFTXLW WKH 3OD\HU ³ZDV based on general principles of law, the provisions of the CBJD and the rules of international sports law, particularly articles 2.1 and 10.5.1 of the World Anti- 'RSLQJ&RGH>@ZKLFKLQVSLUHGDUWLFOHRIWKH),)$'LVFLSOLQDU\&RGH )'& ´ Therefore, considering that (i) FIFA and WADA have also invoked during these proceedings the application of the WADA Code; (ii) various Brazilian rules impose deference to normas internacionais, i.e. international rules (see Articles 1, para. 1, and 3, para. III, of Lei Pelé, Articles 101 and 248 of the Brazilian Code of Sports Justice and Article 65 of the CBF Statutes); and (iii) the WADA Code inspired the antidoping rules of FIFA, the Panel finds that the rules of the WADA Code can also be complementarily applied in this arbitration as regulations whose application has been invoked, and thus accepted, by all parties. In WKH3DQHO¶VYLHZ%UD]LOLDQODZ may be applied on a subsidiary basis as the law of the country in which the body which has issued the challenged decision is domiciled. Taking into account Article 60, para. 2, of the FIFA Statutes, Swiss law may also be additionally applied, particularly in reference to the interpretation and application of FIFA rules, which are rules issued by a private association incorporated in Switzerland. In conclusion, the Panel holds that the present case must be adjudicated on its merits applying primarily FIFA rules, complementarily the WADA Code and, subsidiarily,CBF rules andBrazilian law.Additionally, Swiss law might also be applied in connection with the interpretation and application of FIFA rules.

The Panel deems also worth clarifying that, as to the applicable rules setting RXWWKHOLVWRISURKLELWHGVXEVWDQFHVDQGPHWKRGV WKH³3URKLELWHG/LVW´ WKH Prohibited List of CBF and FIFA is perfectly consistent with that of WADA. Indeed, the CBF Doping Control Regulation provides that any modification to the list 105

determined by WADA and accepted by FIFA prevails over the CBF list, and the ),)$'RSLQJ&RQWURO5HJXODWLRQVH[SUHVVO\VWDWHWKDWWKH),)$OLVWLV³WDNHQ from the 2007 [WADA] Prohibited List, International Standar G´ DQG ³LV DGDSWHG DFFRUGLQJWRWKHUHYLVHGYHUVLRQVLQWKH:RUOG$QWL'RSLQJ&RGH´

4. Sanction In this respect, the Panel wishes to recall the WADA Code warning clause to be found at the very beginning of the Prohibited List and which any athlete or FOXE¶V VWDIIRUGRFWRUVKRXOGDOZD\VEHDULQPLQG³7KHXVHRIDQ\GUXJVKRXOGEH OLPLWHGWRPHGLFDOO\MXVWLILHGLQGLFDWLRQV´ It is undisputed that the analysis of both urine samples A and B delivered by the Player on 14 June 2007, on the occasion of the match between Botafogo and Vasco da Gama, showed evidence of an adverse analytical finding of Fenproporex, that is a stimulant included in section S6 of the 2007 Prohibited List. As a result, the Panel finds that the objective SUHVHQFHRI)HQSURSRUH[LQWKH3OD\HU¶VXULQHVDPSOHVUHJDUGOHVVRIWKHDWKOHWH¶V subjective attitude (i.e. his possible intent, knowledge, fault or negligence), constitutes an anti- GRSLQJ UXOH YLRODWLRQ SURYHQ WR WKH 3DQHO¶V FRPIRUWDEOH satisfaction, bearing in mind the seriousness of the allegation. Under Article 65, para. 1(a), of the FIFA Disciplinary Code, the sanction for a first offence is a two- year suspension. In light of the above discussion on the law applicable in this appeal arbitration, the Panel cannot take into account the lesser sanction set out by Article 244 of the Brazilian Code of Sports Justice (between 120 and 360 days of suspension) because (i) this sanction is merely of national application whereas the FIFA sanction is of universal application, as acknowledged by the CBF Statutes; and (ii) the twoyear sanction is among the FIFA mandatory rules that must be incorporated without exception in the national disciplinary regulations (Article 152 of the FIFA Disciplinary Code). The Panel remarks that, under the FIFA Disciplinary Code, the two-year sanction may be eliminated or reduced if the 3OD\HU GLVFKDUJHVWKH EXUGHQ RI SURYLQJ WKDW ³KH EHDUV QR IDXOW RU QHJOLJHQFH´ $UWLFOHSDUD RUDWOHDVWWKDW³KHEHDUVQRVLJQLILFDQWIDXOWRUQHJOLJHQFH´ (Article 65, para. 2). According to CAS jurisprudence, the possible application of VXFKWZRIROGH[FHSWLRQ³LVWREHDVVHVVHGRQWKHEDVLVRIWK e particularities of the LQGLYLGXDO FDVH DW KDQG´ &$6 $  $UWLFOH  SDUD  RI WKH ),)$ 106

'LVFLSOLQDU\&RGHSURYLGHVWKDWLQ³FDVHRIDGRSLQJRIIHQFHLWLVLQFXPEHQWHXSRQ the suspect to produce the proof necessary to reduce or cancel a sanction. For sanctions to be reduced, the suspect must also prove how the prohibited VXEVWDQFHHQWHUHGKLVERG\´$FFRUGLQJO\UHO\LQJRQDORQJOLQHRI&$6FDVHV VHH e.g. CAS 2006/A/1067, para. 6.8) and on the WADA Code principles related to the DWKOHWHV¶ ID ult or negligence, the Panel observes that the Player, in order to establish that he bears no fault or negligence, must prove: (a) how the prohibited substance came to be present in his body and, thus, in his urine samples, and (b) that he did not know or suspect, and could not reasonably have known or suspected even with the exercise of utmost caution, that he had used or been administered the prohibited substance. The proof of both (a) and (b) would HOLPLQDWH WKH 3OD\HU¶V WZR -year sanction. In order to establish that he bears no significant fault or negligence, in addition to the proof of (a) above, the Player must prove: (c) that his fault or negligence, when viewed in the totality of the circumstances and taking into account the requirement of (b) above, was not significant in relationship to the anti-doping rule violation. The proof of both (a) and F ZRXOGUHGXFHWKH3OD\HU¶VVDQFWLRQWRDSHQDOW\UDQJLQJEHWZHHQRQH\HDUDQG WZR\HDUV $UWLFOHSDUDRIWKH),)$'LVFLSOLQDU\&RGH³WKHVDQFWLRQ may be UHGXFHGEXWRQO\E\XSWRKDOIRIWKHVDQFWLRQ´ 7KH3DQHOREVHUYHVWKDWLQOLJKW of the CAS jurisprudence, the burden of proving the above is a very high hurdle for an athlete to overcome (cf. e.g. CAS 2005/A/830; TAS 2007/A/1252). Indeed, the W$'$ &RGH¶V RIILFLDO FRPPHQW WR $UWLFOH  XQHTXLYRFDOO\ VWDWHV WKDW WKH PLWLJDWLRQ RI PDQGDWRU\ VDQFWLRQV LV SRVVLEOH ³RQO\ LQ FDVHV ZKHUH WKH FLUFXPVWDQFHV DUH WUXO\ H[FHSWLRQDO DQG QRWLQ WKH YDVW PDMRULW\ RI FDVHV´:LWK regard to the standard of proof required from the indicted athlete, the Panel observes that, in accordance with established CAS case-law and the WADA Code, WKH3OD\HUPXVWHVWDEOLVKWKHIDFWVWKDWKHDOOHJHVWRKDYHRFFXUUHGE\D³EDODQFH RISUREDELOLW\´$FFRUGLQJWR&$6MXULVSUXGHQFH , the balance of probability standard means that the indicted athlete bears the burden of persuading the judging body that the occurrence of the circumstances on which he relies is more probable than their non-occurrence or more probable than other possible explanations of the doping offence (see CAS 2004/A/602, para. 5.15; TAS 2007/A/1411, para. 59). a) (YLGHQFH RI KRZ WKH SURKLELWHG VXEVWDQFH HQWHUHG WKH 3OD\HU¶V ERG\ ,Q WKHVH 107

proceedings, exactly as in the STJD proceedings, the Player has argued that the prohibited stimulant came to be present in his system because the caffeine capsules that were administered to him before the match against Vasco da Gama had been contaminated with Fenproporex during the production process at the premises of Pharmacy 65 Manipulação. As evidence of such alleged contamination, the Player relies essentially on the report dated 13 July 2007 issued by the USP Laboratory. However, in light of the balance of probability standard, the Panel finds the evidence provided by such USP L DERUDWRU\¶VUHSRUW to be inadequate to discharge the burden on the Player. The Panel accepts the evidence given by Dr Pagnani that the USP Laboratory is a reliable laboratory and does not wish to speculate as to why the caffeine capsules were sent to be analysed all the way from Rio de Janeiro to São Paulo (rather than to the local WADA-accredited laboratory). Nor the Panel wishes to cast any doubt on the correctness of the analyses performed by the USP Laboratory and on the accuracy of its report. However, WKH3DQHOFDQQRWUHDGLQWKH863/DERUDWRU\¶V report more than what is expressly stated therein. Having carefully scrutinized the 863/DERUDWRU\¶VUHSRUWWKH3DQHOKDVQRWHGWKHIROORZLQJVSHFLILFPDWWHUV - In comparison to many detailed laboratory reports that these arbitrators have seen in RWKHU GRSLQJ FDVHV WKH 863 /DERUDWRU\¶VUHSRUWLV YHU\ VKRUW DQG VNHWFK\ DQG gives scant details of the analysis. - The disclaimer at the bottom of the report (the 863/DERUDWRU\³GRHVQRWDVVXPHOLDELOLW\IRUWKHRrigin of the material delivered IRU DQDO\VLV´  ZDUQVDERXW WKHDEVHQFH RI DQ\ FXVWRGLDO SURFHGXUHV SULRU WR WKH delivery of the caffeine capsules to the USP Laboratory and, thus, raises serious doubts as to what was truly given to be analysed. The Player has argued, relying on the testimony of Dr Pagnani, that this is a standard annotation that bears no relevance. However, the Panel observes that the annotation has been typed and signed by the USP Laboratory Director and by the person responsible for the analysis; given the described reliability of the USP Laboratory, it is an annotation that can by no means be ignored. - The report, in describing the containers in which the caffeine capsules were contained, does not indicate the presence of any SOD\HU¶V QDP e on the labels although, according to the evidence heard at the KHDULQJHDFKFRQWDLQHUZDVSHUVRQDOLVHGZLWKWKHSOD\HU¶VQDPHZULWWHQRQLWGXH to the different weight of the players and the consequent different quantity of 108

caffeine needed (2 mg for each kg of weight). - The USP Laboratory received three containers of caffeine capsules, two of them sealed and one open and partially used. According to the evidence provided by Dr Vilhena, the two sealed containers had been delivered by Pharmacy 65 Manipulação to Botafogo (for the players Dodô and L.) on 27 June 2007, whereas the open container had been delivered to Botafogo on 20 April 2007 and used by Dodô during May and June  6R JLYHQ WKDW 'RG{¶V SRVLWLYH WHVWLQJ ZDV RQ  -XQH  WKH RQO\ relevant analysis to provide evidence of how Fenproporex came to be in the 3OD\HU¶VERG\LVWKDWRIWKHFDSVXOHVFRQWDLQHGLQWKH FRQWDLQHU GHOLYHUHG RQ  $SULO  KRZHYHU WKH 863 /DERUDWRU\¶V UHSRUW KDV QRW LQGLFDWHG KRZ PDQ\ capsules were in that container nor how many of them were found to contain Fenproporex. - Indeed, in the report it is only generically stated that there was a positive result of the presence of Fenproporex. The Panel has heard the evidence of Dr Pagnani testifying that the USP Laboratory found that all capsules in all three containers tested positive for Fenproporex. The Panel does not consider it QHFHVVDU\ WR H[SUHVV DQ\ FRQFOXVLRQ DV WR ZKHWKHU LW DFFHSWV 'U 3DJQDQL¶V evidence in this regard, because the Panel finds it quite extraordinary that the USP /DERUDWRU\¶VUHSRUWGRHVQRWVSHFLI\ZKLFKFDSVXOHV DQG IURP ZKLFK FRQWDLQHUV nor how many, were found to be positive for Fenproporex, nor how much Fenproporex was found, nor whether the positive result came from contaminated caffeine capsules or whether it came from Fenproporex capsules found in the containers given for the analysis. In addition to the above unusual elements, the Panel observes that, strangely, nobody from the USP Laboratory was called by the Player to give direct evidence on the analysis performed. Such evidence could have possibly clarified some of the doubts raised by the disappointingly LQDGHTXDWH FRQWHQW RI WKH 863 /DERUDWRU\¶V UHSRUW 7KH 3DQHO ILQGV DOVR QRWHZRUWK\WKDWWKH3OD\HU¶VXULQHVDPSOHVGHOLYHUHGDWWKHD nti-doping controls of 6 May, 16 May and 30 June 2007 showed no presence of Fenproporex. Indeed, on the basis of the evidence provided by Dr Vilhena, in that period the Player ingested before matches ± except for night matches starting at 21:45 ± the caffeine capsules taken from the container delivered by Pharmacy 65 Manipulação to Botafogo on 20 April 2007, and later sent to the USP Laboratory for analysis. Accordingly, the Panel is asked to conclude that inside the container delivered in 109

April only the capsules ingested by the Player on 14 June 2007 and those analysed by the USP Laboratory on 13 July 2007 were contaminated, while the other capsules contained pure caffeine. The Panel finds this possibility quite implausible. With regard to the implausibility of the contamination explanation, it is to be noted that Pharmacy 65 Manipulação, as testified by its owner and CEO, Mr Milton Luís Santana Soares, provided to Botafogo a total of 808 caffeine capsules in 2006 and 2007 with not a single case of adverse analytical finding, except for 'RG{¶V FDVH ,W LV DOVR LQWHUHVWLQJ WR QRWH WKDW )HQSURSRUH[ LV D YHU\ FRVWO\ substance ± much more expensive than caffeine ± subjected to strict controls by public authorities, in particular by the Brazilian agency of health vigilance, $19,6$0U6RDUHVDOVRWHVWLILHGWKDWLQKLVFRPSDQ\¶VSUHPLVHVDVUHTXLUHGE\ the law, the production of caffeine capsules and Fenproporex capsules is done at different times and in different places. In addition, the Panel finds quite remarkable the evidence provided by Mr Soares that the caffeine capsules can be easily opened and closed again and the containers can be unsealed and sealed again, rendering a deliberate contamination possible at any time after the end of the production process. The Panel also notes that on the occasion of the antidoping controls related to the matches of 1 April 2007 (Botafogo-Vasco da Gama) and 29 April 2007 (Flamengo- %RWDIRJR WKH%RWDIRJR¶VWHDPGRFWRUGLGGHFODUHRQERWK medications list forms that all players had been administered caffeine, while the tested players A., T. (twice) and M. did declare on their respective doping control forms that they had taken caffeine. However, as already mentioned, on the RFFDVLRQ RI WKH GRSLQJ FRQWURO WKDW \LHOGHG 'RG{¶V DGY erse analytical finding neither the team doctor nor Dodô declared the use of caffeine on the same forms. Therefore, the proof that the Player did ingest a caffeine capsule on the day of his SRVLWLYHWHVWLQJLVOHIWWRWKH3OD\HU¶VRZQZRUGVJLYHQWKDWWKH &OXE¶VQXWULWLRQLVW Dr Vilhena, acknowledged at the hearing that she did not personally witness the 3OD\HU¶VLQJHVWLRQRIFDIIHLQH,QWKHOLJKWRIDOOWKHDERYHHOHPHQWVWKH3DQHOLV QRW ZLOOLQJ WR VKDUH WKH 67-'¶V FRQFOXVLRQ WKDW WKH H[SODQDWLRQ RIIHU ed by the 3OD\HULVDFFHSWDEOH,QWKH3DQHO¶VYLHZWKHHYLGHQFHVXEPLWWHGE\WKH3OD\HUDV to both the ingestion of a caffeine capsule prior to the match and the contamination of that caffeine capsule is unsatisfactory. In particular, the Panel would have expected a much more detailed and unambiguous report by the USP 110

Laboratory, thoroughly illustrating its analytical findings.The Panel finds also quite difficult to believe, considering the high cost of Fenproporex and the public controls to which is subject, that a producer might inadvertently mix Fenproporex with the much cheaper and unrestricted caffeine. Besides, if the production process of Pharmacy 65 Manipulação was so unreliable as to lend itself to such an accidental contamination, it would be a quite unlikely event that only a few caffeine capsules out of many hundreds ended up being contaminated. Given the Botafogo SOD\HUV¶LQWHQVLYHLQJHVWLRQRIWKRVHFDIIHLQHFDSVXOHVEHIRUHPDWFKHVRQHZRXOG expect some more adverse analytical findings in the many anti-doping controls which they underwent, particularly in the period of May and June 2007. Given the stringent requirement for the Player to offer persuasive evidence of how the positive finding of Fenproporex occurred, the Panel finds that the Play HU¶V explanation would have needed more persuasive evidence to pass the balance of probability test. In other terms, the Panel is not persuaded that the occurrence of the alleged ingestion of Fenproporex through a contaminated caffeine capsule is more probable than its non-occurrence. The Panel has no reason to think that the 3OD\HU LV D FKHDW +RZHYHU LQ YLHZ RI L  WKH IDFW WKDW %RWDIRJR¶V VWDII ZDV accustomed to dispensing to their players before or during matches no less than five nutritional supplements (declaration by Dr Vilhena) including a stimulant such as caffeine ± forbidden until 2004 and permitted nowadays, but still subject to the WADA monitoring program ± and (ii) the circumstance that the Player, as he explicitly admitted, essentially ingest HG ZKDWHYHU WKH &OXE¶V VWDII JDYH KLP WKH Panel finds the occurrence of contamination less likely than the possible deliberate administration of a Fenproporex capsule to the Player. Accordingly, the Panel holds that, on the balance of probability, the Player has failed to establish how the SURKLELWHGVXEVWDQFHHQWHUHGKLVV\VWHPE 3OD\HU¶VFDXWLRQDQGGHJUHHRIIDXOWRU negligence With regard to the duty of caution required under the applicable rules, the Panel shares the following opinion expressed by a QRWKHU&$63DQHO³1RIDXOW´ PHDQVWKDWWKHDWKOHWHKDVIXOO\FRPSOLHGZLWKWKHGXW\RIFDUH>«@³1RVLJQLILFDQW IDXOW´PHDQVWKDWWKHDWKOHWHKDVQRWIXOO\FRPSOLHGZLWKKLVRUKHUGXWLHVRIFDUH The sanctioning body has to determine the reasons which prevented the athlete in a particular situation from complying with his or her duty of care. For this purpose, the sanctioning body has to evaluate the specific and individual circumstances. 111

However, only if the circumstances indicate that the departure of the athlete from the required conduct under the duty of utmost care was not significant, the VDQFWLRQLQJERG\PD\>«@GHSDUWIURPWKHVWDQGDUGVDQFWLRQ´ &$6&   ,QWKHOLJKWRIVXFKGHILQLWLRQRIWKHDWKOHWH¶VGXW\RIFDUHHYHQLIWKH3OD\HU¶V explanation of how Fenproporex had come into his body was supported by SODXVLEOHHYLGHQFH TXRGQRQ LWVHHPVWRWKH3DQHOWKDWWKH3OD\HU¶VEHKDYLRXU was significantly negligent under the circumstances. His departure from the required duty of utmost caution was clearly significant. Indeed, the Player did not exercise the slightest caution. Questioned at the hearing on the caution that he took before ingesting the caffeine capsules and the other nutritional supplements WKDWWKH%RWDIRJR¶VVWDIIUHJXOD rly gave him, the Player candidly answered that he simply trusted his employer and the team doctors and never knew exactly how and where the products were manufactured nor who produced them. Apart from the MXVWLILFDWLRQWKDWKHUHOLHGRQWKH&OXE¶VGRFWRUV , the Player has not even attempted to demonstrate that he exerted some particular care before ingesting those products. Questioned about his experience with his current club (Fluminense), the Player testified that he was still being administered several products before matches, but was not able to mention their names or what they were. The Panel ILQGV H[WUDRUGLQDU\ WKLV 3OD\HU¶V DGPLVVLRQ WKDW GHVSLWH KDYLQJ DOUHDG\ KDG D positive test, he is still passively ingesting a variety of products administered to him by his current club without asking any information or doing any research on his own. As seen above, the Player has the burden to establish that he did not know or suspect, and could not reasonably have known or suspected even with the exercise of utmost caution, that he had used or been administered a prohibited VXEVWDQFH$OWKRXJKWKH3DQHOLVVDWLVILHGWKDWWKH3OD\HUGLGQRW³NQRZRUVXVSHFW´ that the caffeine capsule could be contaminated by a prohibited substance, the Panel cannot accept that the Pl D\HU ³FRXOG QRW UHDVRQDEO\ KDYH NQRZQ RU VXVSHFWHG´ WKDWWKLV ZDV VR 7KH 3DQHO QRWHV LQ SDUWLFXODU WKH FOHDU DQG SXEOLF warning issued by the CBF to Brazilian football players (and their doctors) as to the risk of contaminated nutritional supplements. Article 8 of the CBF 2007 Doping &RQWURO5HJXODWLRQUHDGVDVIROORZV³&20021 0,67$.(6 %< 7+( $7+/(7( 253+<6,&,$17+$7&$1%5,1*$%287$326,7,9(7(67>«@'2127XVH medications, nutritional supplements or vitamins of dubious origin. DO NOT trust 112

the composition declared on leaflets and labels of medications, nutritional supplements and pharmaceutical and homeopathic productions. Verify the reliability of the supplier, as there are many cases of omitted mention in labels of VWLPXODQWV DQG DQDEROLF DJHQWV´ 7 he Panel also notes that the WADA Code ± published even in a Portuguese version in the WADA internet site ± provides at DUWLFOH WKDW LW ³LV HDFK $WKOHWH¶V SHUVRQDO GXW\ WRHQVXUH WKDW QR 3URKLELWHG 6XEVWDQFH HQWHUV KLV RU KHU ERG\´ 7KLV PHDQV WKDW WK e Player is personally responsible for the conduct of people around him from whom he receives food, drinks, supplements or medications, and cannot simply say that he trusts them DQGIROORZVWKHLULQVWUXFWLRQV7KHQWKH:$'$&RGH¶VRIILFLDOFRPPHQWWR$UWL cle 10.5 (provision whose application was expressly invoked by the Player) reads as IROORZV³DVDQFWLRQFRXOGQRWEHFRPSOHWHO\HOLPLQDWHGRQWKHEDVLVRI1R)DXOWRU Negligence in the following circumstances: (a) a positive test resulting from a mislabeled or contaminated vitamin or nutritional supplement (Athletes are responsible for what they ingest (Article 2.1.1) and have been warned against the possibility of supplement contamination); (b) the administration of a prohibited VXEVWDQFHE\WKH$WKOHWH¶V personal physician or trainer without disclosure to the Athlete (Athletes are responsible for their choice of medical personnel and for advising medical personnel that they cannot be given any prohibited substance); DQG F VDERWDJHRIWKH$WKOHWH¶VIRRG or drink by a spouse, coach or other person ZLWKLQ WKH $WKOHWH¶V FLUFOH RI DVVRFLDWHV $WKOHWHV DUH UHVSRQVLEOH IRU ZKDW WKH\ ingest and for the conduct of those persons to whom they entrust access to their IRRGDQGGULQN ´7KHFLUFXPVWDQFHVRIWKHSUHVHQ t case are quite typical and fall squarely in the warnings set out in the quoted Article 8 of the CBF 2007 Doping &RQWURO5HJXODWLRQDVZHOOLQWKH:$'$&RGH¶VFRPPHQWWR$UWLFOH,QGHHG there have been so many anti-doping cases where the athlete has attempted to justify himself on the basis of a contaminated supplement that practically every sports or antidoping organization in the world has issued warnings against the use of nutritional supplements. In addition, the Panel notes that, according to the concurrent evidence put forward by Dr Pagnani and Dr Vilhena, there have been in Brazil various publicly known cases of contaminated nutritional supplement that yielded positive anti-doping tests. Such cases, showing the high risk of contamination of nutritional supplements in Brazil, should have rendered the 113

Player acutely aware of the risk and induced him to refuse the caffeine capsules given to him. All the more so, as the Player has declared that he never felt that caffeine contributed any particular benefit to his sporting performance. Notwithstanding the extensive information available that should have alerted him to the risk of a doping offence, the Player chose to do nothing, simply and without question ingesting every product administered to him. Even accepting that the Club has a serious responsibility towards the Player, the Panel finds that the 3OD\HU¶VFRQGXFWLQWKHFLUFXPVWDQFHVDPRXQWHGWRDVLJQLILFDQWGLVUHJDUGRIKLV positive duty of caution. Indeed, nothing prevented the Player from complying with such duty and refusing the products given to him or, at least, checking personally how, where and by whom the products were manufactured. The Panel finds that QRZDGD\VDQDWKOHWHRI'RG{¶VVWDWXUHDJHDQGH[SHULHQFHFDQQRWPHUHO\UHO\RQ his te DP¶V VWDII LQ XVLQJ VXSSOHPHQWV DQG YLWDPLQV $V DQRWKHU &$6 3DQHO KDV YLYLGO\SXWLWWKLV3OD\HU¶VDWWLWXGHLV³WDQWDPRXQWWRDW\SHRIZLOIXOEOLQGQHVVIRU ZKLFKKHPXVWEHKHOGUHVSRQVLEOH7KLV³VHHQRHYLOKHDUQRHYLOVSHDNQRHYLO´ attitude in the face of what rightly has been called the scourge of doping in sport ± this failure to exercise the slightest caution in the circumstances ± is not only unacceptable and to be condemned, it is a far cry from the attitude and conduct expected of an athlete VHHNLQJWKHPLWLJDWLRQRIKLVVDQFWLRQIRUDGRSLQJYLRODWLRQ´ &$6$ 7KHUHIRUHWKH3DQHOILQGVWKDWWKH3OD\HU¶VGHJUHHRI³IDXOWRU QHJOLJHQFH´YLHZHGLQWKHWRWDOLW\RIWKHFLUFXPVWDQFHV LV FOHDUO\ ³VLJQLILFDQW´LQ relation to the anti-doping rule violation. Notwithstanding the fact that the Panel is ILQGLQJDJDLQVWWKH3OD\HUWKHDFFRXQWJLYHQE\WKH&OXE¶VQXWULWLRQLVWSURPSWVWKH 3DQHOWRPDNHFOHDUWKDWWKH&OXE¶VKDELWRIKDQGLQJRXWQXPHURXVFDSVXOHVDQG supplements to its players a V ZHOO DV WKH &OXE¶V V\VWHP RI REWDLQLQJ NHHSLQJ guarding and dispensing those capsules and supplements seem, to say the least, imprudent. Indeed, what this case has highlighted is that it is the players who end up bearing any consequences of such a club ¶VDWWLWXGHLQWHUPV .

In conclusion, the CAS has jurisdiction ratione materiae and ratione personae to entertain the appeals of the FIFA and the WADA in respect of the CBF and Mr Ricardo Lucas Dodô, while it has no jurisdiction ratione personae in respect of the 114

STJD. The appeals of FIFA and WADA against the decision dated 2 August 2007 of the STJD are upheld.