O Acontecimento Beijo Gay Na Telenovela “Amor À Vida” E a Constituição De Públicos
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acontecimento Beijo Gay na telenovela “Amor à Vida” e a O constituição de públicos Pâmela Guimarães da Silva1 Sexta-feira, 31 de janeiro de 2014. Como de costume, é de conhecimento nacional que iria ao ar o último capítulo da telenovela Amor à Vida.2 Horas antes, porém, espalhou-se a informação de que havia sido gravado o beijo entre os perso- nagens Felix (Mateus Solano) e Niko (Tiago Fragoso). Pouco antes do término do capítulo, inicia-se uma cena de 3m31, na qual a rotina do casal Felix e Niko e seus filhos se desenrola, após o café da manhã da família, quando vão se despedir, o casal se beija. “Galera gritou na Rua Augusta, hahahahaha! S2 #beijogay” (@flaviadurante. Twitter). “Tem gente gritando na vizinhança #BeijaFelixENiko” (@flavianavarro. Twitter).3 É justamente esse o acontecimento foco do presente trabalho: o beijo gay exibido por Amor à Vida. Partindo 1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universi- dade Federal de Minas Gerais (UFMG). 2 Telenovela brasileira produzida pela Rede Globo, que esteve no ar de 20 de maio de 2013 a 31 de janeiro de 2014. Escrita por Walcyr Carrasco com colabo- ração de Daisy Chaves, Eliane Garcia, Daniel Berlinsky, Marcio Haiduck. Direção geral de Mauro Mendonça Filho e direção de núcleo de Wolf Maya. 3 Disponível em: <http://vejasp.abril.com.br/blogs/pop/2014/01/31/amor-a- vida-mostra-beijo-gay-de-felix-e-niko-veja-repercussao-na-internet/>. Aces- so em: 14 nov. 2014. 198 Pâmela Guimarães da Silva da interação entre a mídia4 e a sociedade, procuraremos apreender e compreender os públicos constituídos por este acontecimento e as diferentes formas de afetação deles. O texto está dividido em três partes. Na primeira, ar- ticulamos o conceito acontecimento e experiência. A se- gunda parte expõe nossa apreensão desse quadro teórico- conceitual para a construção da metodologia empregada na composição da grade analítica que embasará nossa atividade de análise. A terceira parte tem por finalidade evidenciar, de forma prática, como acontecimento foi in- dividualizado, e seus atores sociais se posicionaram sobre a temática. Para tanto faremos um exercício de análise de uma parte do corpus da pesquisa. DA EXPERIÊNCIA À SEGUNDA VIDA DO ACONTECIMENTO O primeiro conceito que apresentamos é o da experiên- cia, pois é baseado nesse conceito que entendemos essa rela- ção mídia e sociedade, na qual se insere a relação da teleno- vela com seus espectadores e com o próprio mundo. Dewey (2010), em seu texto Ter uma experiência, aponta que “a ex- periência ocorre continuamente, porque a interação do ser vivo com as condições ambientais está envolvida no próprio processo de viver”. (Dewey, 2010, p. 109). Louis Quéré (2005) nos chama atenção para outro as- pecto da experiência, o acontecimento. Segundo o autor, as experiências são um sucessivo devir de acontecimen- tos, que podem ser planejados ou inesperados; alguns são mais marcantes do que outros na trajetória da qual fazem 4 “A expressão mídia [...] engloba os velhos e novos meios: os meios massivos, os meios de acesso individual, enfim, tudo aquilo que serve para comunicar, para transmitir uma informação, criar uma imagem” (França, 2012, p. 10-11). O acontecimento Beijo Gay na telenovela “Amor à vida” 199 parte (Quéré, 2005, p. 59). Para o autor, o acontecimento é essa experiência que se destaca da continuidade e afe- ta a vida de sujeitos de diferentes maneiras (nem sempre previsíveis e/ou controláveis). Essa é a passibilidade do acontecimento, discutida por Quéré (2005). Ainda se- gundo o autor, o acontecimento desdobra-se para o pas- sado e alonga-se para o futuro. Vera França (2012, p. 13) destaca que o acontecimen- to faz falar (2012, p. 14) ela convoca as considerações de Quéré (2012) para explanar sobre o assunto, mostrando que o “fazer falar” concede uma segunda vida ao aconte- cimento: “a primeira vida é da ordem do existencial [...]. A segunda vida é o acontecimento tornado narrativa, tor- nado um objeto simbólico” (França, 2012, p. 14). Ao tor- nar-se um objeto simbólico, o acontecimento pode ser apreendido por sua dupla dimensão de poder, seu poder de afetação e seu poder hermenêutico. Como caracteriza Simões (2012, p. 91), a afetação, ou a passibilidade, que caracteriza todo e qualquer aconteci- mento, pode ser entendida como um processo de mútua afetação, onde os “sentidos desencadeados pelo aconteci- mento afetam os sujeitos e, ao mesmo tempo, são afetados por estes; [...] o acontecimento instaura uma descontinui- dade na experiência dos sujeitos”. É a partir desse universo de sentidos desencadeados que se torna possível apreen- der o poder hermenêutico do acontecimento, ou seja, “os efeitos de sentido que produz, que contribuem para indi- vidualizá-lo” (Quéré, 2010, p. 35). A dimensão da existência, ou primeira vida do acon- tecimento, fica evidente ao olharmos para a multiplicidade de ocorrências que emergem em sua concretude na expe- 200 Pâmela Guimarães da Silva riência dos sujeitos. Ela perpassa, dialoga e se entrecruza com nossas vidas cotidianas. Já a segunda vida, quando ele se torna um objeto simbólico, também pode ser eviden- ciada na medida em que esse acontecimento - mesmo fic- cional - é capaz de “desvelar o não-visto, iluminar o opaco, estabelecer distinções que não haviam sido percebidas. [...] ele rompe uma sequência e quebra as expectativas, uma interrogação e um vazio se colocam” (França, 2012, p. 13). Acreditamos que essa seja a base conceitual para elucidar como a cena do chamado beijo gay, que diz da representa- ção da intimidade, e que iluminou e fez a sociedade falar sobre problemas públicos imbricados na temática da ho- mossexualidade. Dessa forma, passaremos agora para ar- ticulação entre esses conceitos e o nosso objeto de estudo. O BEIJO GAY COMO ACONTECIMENTO O gênero televisivo telenovela constrói discursos que são veiculados diariamente para milhões de pessoas e ali- mentado por outros meios de comunicação, tais como jor- nais, revistas. Dessa forma, constitui-se como um impor- tante lugar de construção de valores e de representações sobre a sociedade brasileira (Simões, 2003). Em concor- dância com as proposições de Lopes (2003), a respeito da interação desse gênero com os padrões culturais, em uma dada sociedade, cremos que essas ficções descortinam um palco para representação e para construção de sentidos so- bre a vida pública e a vida privada (2003, p. 32). Em outros termos, observamos a telenovela “por seu significado cultu- ral” e por configurar um inventário de produções que per- mitem “entender a cultura e sociedade de que é expressão” (Lopes, 2004, p. 125). O acontecimento Beijo Gay na telenovela “Amor à vida” 201 Nesse sentido, a telenovela Amor à Vida se destacou ao representar/apresentar núcleos com personagens ho- moafetivos, famílias homoparentais e várias das tensões vivenciadas por esses sujeitos cotidianamente. A nosso ver, uma grande e diferenciada contribuição à temática foi em seu último episódio, quando a Rede Globo de Televisão exibiu pela primeira vez em sua programação um beijo en- tre pessoas do mesmo sexo - os personagens Félix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso) – o chamado beijo gay.5 A expectativa da audiência em torno da exibição ou não do beijo fomentou um espaço de debate.6 Poucas horas antes, era sabido que o beijo havia sido gravado, mas a expectati- va ainda se sustentava, uma vez que em outros momentos, cenas similares foram gravadas, mas não foram ao ar.7 A cena do beijo teve grande repercussão e destaque ao apresentar sentidos e significados diferentes dos tradicio- nais, tornou-se uma experiência que se destacou das ex- periências rotineiras ou cotidianas. Amparados por esse 5 Consideramos nesse trabalho o beijo entre os personagens Félix e Niko como sendo o primeiro entre personagens do mesmo sexo biológico, não da teledramaturgia em geral, mas da Rede Globo de Televisão. Destacamos que em Mulheres Apaixonadas (2003), Alinne Moraes e Paula Picarelli viveram um casal - Clara e Rafaela - e houve uma cena que as personagens interpretavam uma peça de teatro na escola, uma como Romeu e a outra no papel de Julieta e no ato final, elas se beijaram. Esse beijo não foi considerado o primeiro beijo gay da Rede Globo, pois as personagens encenavam a peça Romeu e Julieta – ficção dentro da ficção. 6 No último capítulo, com beijo entre Félix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso), Amor à vida teve seu recorde de audiência em São Paulo com 48 pontos de média e 44 pontos no Rio. Disponível em: <http://kogut.oglobo. globo.com/noticias-da-tv/audiencia/noticia/2014/02/ultimo-capitulo-de-am- or-vida-iguala-recorde-de-audiencia-com-48-pontos.html>. Acesso em: 12 set. 2014. 7 Na telenovela América (2005), Bruno Gagliasso gravou uma cena de beijo gay com Eron Cordeiro, mas ela foi vetada pela emissora. 202 Pâmela Guimarães da Silva destaque proporcionado por essa ocorrência e por essa ruptura com a continuidade, que agenciamos o conceito de acontecimento para refletir sobre a cena. O fato em si durou poucos segundos, mas sua repercussão foi gigantes- ca e imediata. Minutos após a cena ir ao ar, as redes sociais foram tomadas pelas manifestações (contrárias e favorá- veis) em relação ao beijo, as quais duraram algumas se- manas e refletiram em outros produtos midiáticos como jornais, telejornais, revistas, programas de entretenimento e nas novelas seguintes, veiculadas pela mesma emissora. Essa ocorrência se destacou na história da teledrama- turgia brasileira. Indubitavelmente estabeleceu um “mar- co” na teledramaturgia, mas também assumiu um papel diferente, ou vários papéis diferentes, nas histórias (pes- soais) dos públicos que lidam diariamente com questões relativas à homossexualidade, como destacaremos ao apre- sentarmos os comentários das matérias que noticiaram a cena. Embora a cena tenha sido produzida e houvesse uma expectativa quanto a sua ocorrência, o potencial de afeta- ção desencadeado por ela, não tinha como ser controlado ou previsto.