NARRADOR EM ESAÚ E JACÓ Benito Petraglia
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NARRADOR EM ESAÚ E JACÓ Benito Petraglia Resumo: O autor procura examinar a condição especial do narrador em Esaú e Jacó. Na advertência, informa-se que Aires, personagem da história, é também o autor da narrativa. É certo que semelhante fato passou em branco aos primeiros recebedores da obra. Com o tempo, foram se somando diferentes pontos de vista. A duplicidade Aires- narrador e Aires-personagem é homóloga ao “pensamento único’ que atravessa o romance, à idéia central de que a ambigüidade, a dúvida, a contradição regem a existência humana em suas várias dimensões. Palavras-chave: Aires-narrador, Aires-personagem, duplo. Parece matéria já transitada em julgado no tribunal da crítica o fato de que os romances da chamada fase da maturidade machadiana se caracterizam, entre outras particularidades, pela intromissão do narrador na economia do relato. Característica que se mantém até para os romances contados em terceira pessoa – Quincas Borba e Esaú e Jacó. Se há algum consenso em relação a esse aspecto, o mesmo não se pode dizer em relação aos efeitos que se visa atingir ou que se produzem. Para Roberto Schwarz: “A novidade está no narrador, humorística e agressivamente arbitrário, funcionando como um princípio formal, que sujeita as personagens, a convenção literária e o próprio leitor, sem falar na autoridade da função narrativa, a desplantes periódicos. As intrusões vão da impertinência ligeira à agressão desabrida. Muito deliberadas, as infrações não desconhecem nem cancelam as normas que afrontam, as quais entretanto são escarnecidas e designadas como inoperantes, relegadas a um estatuto de meia-vigência, que capta admiravelmente a posição da cultura moderna em países periféricos. Necessárias a essa regra de composição, as transgressões de toda sorte se repetem com a regularidade de uma lei universal. A devastadora sensação de Nada que se forma em sua esteira merece letra maiúscula, pois é o resumo fiel de uma experiência, em antecipação das demais regras ainda por atropelar. Quanto ao clima artístico de época, este final em Nada, é uma réplica sob outro céu, do que faziam os pós-românticos franceses, descritos por Sartre como os ‘cavaleiros do não-ser’.”(SCHWARZ, 2004, p. 9; grifos do autor). A atitude do narrador, “princípio formal”, teria a serventia de revelar as relações de classe no interior de uma sociedade situada no perímetro do mundo moderno. No que tange ainda a essa questão, Alfredo Bosi, a partir de colheita seletiva na fortuna crítica machadiana, compreendeu as estripulias do narrador em três leituras diferentes. Uma leitura formalizante, que remonta à tradição literária da sátira menipéia, e em cuja interpretação pontifica Sérgio Paulo Rouanet; uma leitura cognitiva e existencial, que toma as piruetas do narrador como auto-análise moral, ressumando as angústias do “homem subterrâneo”, cujo representante é Augusto Meyer; e uma leitura sociológica, que se expressa pelas considerações de Roberto Schwarz, como vimos.(BOSI, 2006, p. 51) É certo que essas leituras, ou versões, se referem especificamente às Memórias póstumas de Brás Cubas, no entanto, creio que possam se estender aos outros romances, uma vez que neles ficam mantidas, de maneira, mais ou menos pronunciada, as interferências do narrador. É certo também que outras leituras seriam possíveis. De resto, sempre são possíveis outras leituras quando o texto é Machado de Assis. Tal variedade evidencia, de um lado, a grandeza e, de outro, a ambigüidade de sua literatura. Há de tudo. Gente que diz que nele os fatos sociais não são importantes, gente que diz o contrário. Gente que diz que falta perfume de mulher, gente que contrapõe com “Missa do Galo”. Astrojildo Pereira e Luís Viana, Roberto Schwarz e Barreto Filho, Antonio Candido e Haroldo de Campos, Eugênio Gomes e John Gledson. Análises estruturalistas, marxistas, historicistas, econômicas, antropológicas, culturalistas, filosóficas, psicológicas, psicanalíticas, psiquiátricas, bíblicas... Pois em Esaú e Jacó, a ambigüidade se amplifica, tornando-se um elemento estrutural. Tal ambigüidade, no entanto, vem acompanhada, ou talvez mais propriamente seja causa, de uma circunstância agravante: a presença de um personagem (Aires) que é ao mesmo tempo autor da narrativa; é, pelo menos, o que está escrito na advertência do livro, a qual cito na íntegra: “Quando o conselheiro Aires faleceu, acharam-se-lhe na secretária sete cadernos manuscritos, rijamente encapados em papelão. Cada um dos primeiros seis tinha o seu número de ordem, por algarismos romanos, I, II, III, IV, V, VI, escritos a tinta encarnada. O sétimo trazia este título: Último. “A razão desta designação especial não se compreendeu então nem depois. Sim, era o último dos sete cadernos, com a particularidade de ser o mais grosso, mas não fazia parte do Memorial, diário de lembranças que o conselheiro escrevia desde muitos anos e era a matéria dos seis. Não trazia a mesma ordem de datas, com indicação da hora e do minuto, como usava neles. Era uma narrativa; e, posto figure aqui o próprio Aires, com o seu nome e título de conselho, e, por alusão, algumas aventuras, nem assim deixava de ser a narrativa estranha à matéria dos seis cadernos. Último porquê? “A hipótese de que o desejo do finado fosse imprimir este caderno em seguida aos outros, não é natural, salvo se queria obrigar a leitura dos seis, em que tratava de si, antes que lhe conhecessem esta outra história, escrita com um pensamento interior e único, através das páginas diversas. Nesse caso, era a vaidade do homem que falava, mas a vaidade não fazia parte dos seus defeitos. Quando fizesse, valia a pena satisfazê- la? Ele não representou papel eminente neste mundo; percorreu a carreira diplomática, e aposentou-se. Nos lazeres do ofício, escreveu o Memorial, que, aparado das páginas mortas ou escuras, apenas daria (e talvez dê) para matar o tempo da barca de Petrópolis. “Tal foi a razão de se publicar somente a narrativa. Quanto ao título, foram lembrados vários, em que o assunto se pudesse resumir, Ab ovo, por exemplo, apesar do latim; venceu porém, a idéia de lhe dar estes dous nomes que o próprio Aires citou uma vez: Esaú e Jacó”(ASSIS, 1975, p. 61)1 Prefácios ou advertências, via de regra, têm o objetivo de esclarecer o leitor sobre o livro que se vai ler. Não esta advertência. Ela não é assinada por ninguém. Ao final, em lugar do nome aparece o título da obra. O narrador da “Advertência” é uma espécie de editor ou só alguém que teve acesso aos manuscritos do Conselheiro e o conhece? A marcas de impessoalidade nada permitem afirmar: “acharam-se-lhe”, “não se compreendeu”, “se publicar”, “foram lembrados”, “venceu”. E, se editor, teria manipulado ou de alguma forma alterado o manuscrito? Nesse caso, ao menos o título – Esaú e Jacó – seria dele. Mas, afora essa contribuição, uma passagem do romance – “falha” de edição? – sugere que o romance terá sido publicado na íntegra: “Nada disso foi escrito como aqui vai, devagar, para que a ruim letra do autor não faça mal à sua prosa.”(EJ, 84; grifos meus). Por outro lado, em outra passagem: [...] “não rezam as notas que servem a este livro”(EJ, 116; grifo meu) Como se vê, estamos diante do mesmo tom vago e ambígüo que vamos encontrar no corpo da história. Augusto Meyer, referindo-se à “Advertência”, chama-a de “falso prefácio, onde há tanta ou mais ficção que no próprio texto do romance.” (MEYER, 1986, p. 329). Algo, entretanto, parece afirmado: que o “Último” caderno é uma narrativa escrita por Aires. Não é comum alguém falar de si em terceira pessoa. E o mesmo narrador também semelha compartilhar da estranheza – “posto figure aqui o próprio Aires”. Esse tópico tem merecido as mais diversas análises. É verdade que as críticas iniciais não cuidaram dele. J. dos Santos (pseudônimo de Medeiros e Albuquerque), Mario de Alencar, Alcides Maya, Walfrido Ribeiro, Oliveira Lima, Leopoldo de Freitas e José Veríssimo, em artigos que vão de setembro a dezembro de 1904, não tocam nele. Reputariam eles tal questão irrelevante? ou ela estaria fora do “horizonte de 1 As referências a Esaú e Jacó são tomadas da seguinte edição: Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975. As próximas citações passam a ser designadas pelas iniciais EJ e o número da página. expectativas” dos primeiros recebedores da obra?, para usar a expressão cunhada por Hans Jauss, o teórico alemão da estética da recepção e do efeito. Essas indagações não insinuam, bem entendido, adotar o critério de conceber a valorização do juízo literário como sendo um processo de acúmulo de conhecimento. Pelo contrário, devemos enaltecer a flexibilidade das disciplinas humanas em face do caráter unívoco e vetorial do discurso científico. Assim, se, por exemplo, o historiador Jérôme Baschet afirmar que a Idade Média não se encerra em 1453, como consignam os manuais, mas se prolonga até o século XVIII, nenhuma conseqüência funesta advirá de tal afirmação. No máximo, uma ou outra polêmica, mais ou menos acerba dependendo do temperamento dos contendores. Agora, se um heteróclito cientista, ávido por novidades, anunciar ao mundo a impressionante descoberta de que o coração e os rins exercem funções diametralmente opostas às que se sabem, ou seja, as de bombear e filtrar o sangue, tal descoberta terá como corolário uma temerária terapêutica – o cardiopata receberá o mesmo tratamento que se dispensava ao doente renal. Viva então o discurso das ciências humanas, que só produz discórdias e não defuntos! Mas a observação que fazem, por maneiras diferentes, alguns daqueles primeiros críticos, como Walfrido Ribeiro – [...]“desse pudor, que organiza o mais original, o mais homogêneo, ou, antes, o único temperamento literário do Brasil”(MACHADO, 2003, p. 272); Oliveira Lima – “A razão da sua delicadeza parece-me antes estar em que o seu temperamento corresponde ao dos citados autores do século XVIII [Sterne, Swift]”(MACHADO, 2003, p.