Sociedade e Cultura ISSN: 1415-8566 [email protected] Universidade Federal de Goiás Brasil

Grill, Igor A herança trabalhista no : parentesco, carisma e partidos Sociedade e Cultura, vol. 7, núm. 2, julho-dezembro, 2004, pp. 225-236 Universidade Federal de Goiás Goiania, Brasil

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Como citar este artigo Número completo Sistema de Informação Científica Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto A “herança trabalhista” no Rio Grande do Sul: parentesco, carisma e partidos

IGOR GRILL*

Resumo: A pesquisa examina a dinâmica de constituição de um patrimônio político e as modalidades de sua transmissão e apropriação. As dimensões de estudo privilegiadas referem-se às alianças e às redes subjacentes à fixação de uma genealogia simbólica, o “trabalhismo gaúcho”, bem como às estratégias empregadas pelos agentes de valorização e de “resgate” da tradição política, de reprodução do capital político, de celebração de seus “fundadores”, de gestão da memória e de uso do “legado”. Palavras-chave: heranças políticas, memória, elites, recrutamento, transmissão.

A morte de ativou a discus- seus porta-vozes em associar os ícones dessa são no meio político e jornalístico sobre a “heran- “tradição” (Getúlio Vargas, Alberto Pasqualini ça” do “legado trabalhista”, possibilitando tam- e João Goulart) à história política gaúcha, logo bém a discussão sobre a construção, os condicio- em concretizar uma “genealogia” que se conso- nantes sociais de afirmação dos intérpretes e lidou como “idéias” e “marcos objetivos” (datas, sucessores, os usos e as reinvenções de uma gerações, monumentos, eventos, memória etc.) “tradição política” como um objeto de estudo e dela retirar lucros simbólicos. para a ciência política.1 Assim, o foco deste Afora isto, é uma vertente cujo patrimônio artigo recai sobre a invenção, a valorização e a é disputado por vários políticos de diversos utilização política no Rio Grande do Sul do que partidos, o que gera uma dispersão de agentes se convencionou chamar de “tradição trabalhis- e de narrativas em conflito nos diversos níveis ta”. de disputa política. Nesses diferentes partidos, As razões pelas quais os agentes procuram articulam-se redes de lealdades que permeiam sistematicamente recriá-la estão ligadas a uma distintas posições nas hierarquias partidárias e série de particularidades. Entre elas, o êxito de gerações de homens políticos e abrangem o conjunto do território sul-rio-grandense. No * Doutor em Ciência Política/UFRGS e professor da Unise e Uniritter. engajar nos processos de construção e reivindicações de 1. Esse aporte é sustentado também por Haegel (1990) para filiações. Eles não deveriam considerar mais as tradições a compreensão do funcionamento interno dos partidos po- como produtos dotados de uma consistência estável e líticos, ressaltando a relevância de aplicar as noções de percebível [...], mas antes como resultado de uma perpétua memória, herança e filiação em estudos desse tipo. Defen- produção da qual participam os agentes políticos eles mes- dendo um “retorno reflexivo” da ciência política sobre as mos” (Haegel, 1990, p. 864). Sintetizando suas proposi- “tradições políticas”, como a história, a autora identificou ções, tem-se a idéia de herança como um passado substan- a polissemia de referências existentes nos relatos cializado (referência objetiva), a memória como um passa- genealógicos no interior de agremiações partidárias. Nas do integrado (referência subjetiva) e a filiação como a utili- suas palavras: “Assim como os historiadores procuram ana- zação de signos que transmitem a continuidade com o pas- lisar os suportes institucionais do trabalho de memória so- sado (referência formalizada), complementando-se na uti- cial [...], os pesquisadores da Ciência Política deveriam se lização de um “legado”.

225 GRILL, IGOR. A “herança trabalhista” no Rio Grande do Sul:... interior dessas redes, convivem “famílias de Contudo, na dinâmica em pauta, é possível aten- políticos” com “origem trabalhista” cujos mem- tar, por meio da genealogia simbólica cons- bros herdaram fidelidades e rivalidades e cons- truída tendo como referência a crença no “tra- truíram alianças verticais e horizontais ao longo balhismo” e a fixação de sentido que lhes atribui de seus itinerários. Portanto, a luta por inscre- um caráter de “tradição política”, para o amál- ver-se nessa “história” reforça a crença e a efi- gama entre as modalidades de construção de cácia de uma genealogia simbólica (Abélès, “heranças” (transmissão familiar de patrimônios 1992). políticos, inscrição em redes de famílias e usos A disputa pela “herança trabalhista” no Rio de metáforas). Ademais, são indissociáveis nos Grande do Sul permite apresentar uma série de variados níveis (municipal, regional ou estadual) processos interligados. Possibilita expor o de disputa na política gaúcha. imbricamento entre a referência à linguagem Esse enfoque permite, por seu turno, que familiar e as relações entre agentes políticos, as os partidos políticos e as facções que utilizam redes de grupos familiares interconectadas por essa “memória política” sejam caracterizados alianças verticais e horizontais no espaço político sob um novo prisma, centrado na intersecção regional e a transmissão do patrimônio político entre os trajetos individuais e coletivos e os usos familiar. da “tradição política” como recurso de mobili- Esses níveis de análise foram empregados zação eleitoral. A propósito do uso feito pelos por Marc Abélès (1992) para estudar como a protagonistas políticos de referências que visam referência familiar desempenha um papel estabelecer um atestado de durabilidade e de importante nos processos de legitimação política. continuidade, e assim reivindicar a encarnação Abélès apreendeu as diferentes expressões de um conteúdo ideológico, Offerlé (1997) ques- dessa mescla de registros, que aciona o universo tiona a pertinência do tratamento das categorias público e o universo privado, em diferentes níveis utilizadas pelos agentes como conceitos socioló- de disputa política observadas na França. Assim, gicos. A luta por fixar “genealogias partidárias” no plano local, evidencia-se a importância da e “linhagens políticas” é, segundo ele, parte “transmissão em linha direta de um verdadeiro integrante do trabalho de classificação dos patrimônio político [isto é] a memória das próprios homens políticos e dos analistas da posições políticas que ocuparam os diferentes política. Para ele, contudo, isto não exclui a ascendentes, mas igualmente um elemento relevância do estudo da dimensão metafórica ideológico distintivo que é possível transmitir pelo que ativa a linguagem familiar (filiação, parentesco” (Abélès, 1992, p. 82). No plano parentesco, tradição, linhagem, descendência regional, o espaço político comporta e é estru- etc.) e “das lutas que se realizaram em diversos turado por redes de parentescos interconectadas, campos para o reconhecimento social de sua no qual “pode-se qualificar de elegível aquele existência e [...] as características desta exis- que é assim filiado a uma rede política de tência” (Offerlé, 1997, p.17). parentes e aliados”, ou seja, tem “uma qualidade Para tanto, é possível caracterizar os parti- principalmente relacional” pela qual “a atração dos e redes como empreendimentos e conjunto pelo viés da filiação e da aliança às redes de empreendedores em disputa, uma vez que, políticas locais é um fator não negligenciável” de acordo com Offerlé (1997), a noção de em- (Abélès, 1992. p.87). Finalmente, no plano preendimento e de empreendedores na política nacional, as metáforas com a família e com o “trata de um tipo particular de relação na qual parentesco permeiam as disputas políticas no os agentes investem capitais para recolher lucros cume da hierarquia política e a “referência políticos produzindo bens políticos” (Offerlé, simbólica a um ascendente torna-se [igualmente] 1997, p.22). Da mesma forma, eles podem ser um fator não negligenciável de ascensão apresentados como campos de forças, o que política” (Abélès, 1992, p.92). implica interações e cooperações concorren- Essas três modalidades de afirmação da ciais, ou como espaço de concorrência nos quais lógica familiar no espaço político são os eixos os agentes dotados de recursos e disposições de apresentação do espaço político neste artigo. socialmente estruturadas disputam a definição

226 SOCIEDADE E CULTURA, V. 7, N. 2, JUL./DEZ. 2004, P. 225-236 legítima acerca do partido ou da “família política” Utilizando a tipologia de Max Weber (1987, e o direito de falar em seu nome. p. 197-199), os agentes lançam mão da tradi- No que se refere à delegação do capital cionalização, da legalização, da designação, político por meio de um partido, esta funda- da entronização, da sucessão hereditária e menta-se na transmissão e nas estratégias de da objetivação em cargos e postos. Em outras apropriação de recursos coletivos, tais como a palavras, reivindicam o papel de sucessores, sigla, a legenda, as realizações e os feitos ao atribuindo a si mesmos a posse de qualidades longo do tempo. No duplo processo que envolve semelhantes ao ancestral e o reconhecimento a seleção interna seguida da designação do disto por parte dos demais seguidores; a afirma- sucessor a partir da instituição ou do líder parti- ção de técnicas de revelação que são aceitas e dário,2 e os investimentos individuais resultantes seguidas pelo séquito; a nomeação do líder; a da incorporação do patrimônio coletivo,3 está em indicação do quadro administrativo; a idéia de jogo o uso da “visibilidade”, da “antigüidade”, que o carisma é uma qualidade associada ao da “notoriedade” e da “identidade” fornecida “sangue” e à “hereditariedade”, e a crença nas pela empresa política (Offerlé, 1997, p.45). qualidades e na eficácia do posto assumido. Outro aspecto aprofundado neste momento Contribuem para tanto o desejo da comunidade refere-se à transmissão do carisma. O exame conduzida carismaticamente a identificar uma nova encarnação do líder, mas principalmente do trabalhismo no Rio Grande do Sul desvela os interesses de discípulos e partidários em simultaneamente as lógicas, as tensões e as incorporar uma parcela do prestígio e da notorie- ambivalências das estratégias de apropriação do dade desfrutada pelo líder. Em todos esses carisma do ascendente por parte dos candidatos casos, pressupõe-se a migração e transfiguração a “herdeiros”. A ambigüidade entre o caráter do carisma pessoal para uma instituição; no caso extraordinário e efêmero do líder e o uso da sua da política, para a “família” ou para o partido. “imagem” em nome de uma “tradição política” Do mesmo modo, a ascensão dos principais emerge em vários momentos históricos. Ade- “ícones” do trabalhismo ao centro da política mais, convivem e disputam agentes que se nacional e a repetição desse processo em várias sustentam na combinação e triagem de diferen- gerações fixaram um elemento de continuidade tes princípios de legitimação dessa sucessão. na “tradição política”. Recorrendo à caracteri- zação de Geertz (1997), observa-se que a trans- 2. Os trabalhos de Garraud (1989;1992) sublinham modali- cendência que os grandes líderes de vários dades de “heranças” que constituiriam fenômenos de demo- períodos desfrutaram pela raridade das posições cracias temperadas, nas quais assume maior ênfase uma alcançadas, pela exposição pública e pela proxi- modalidade de “sucessão não familiar” pela qual “É neces- sário considerar que uma parte ao menos do capital político midade com os centros da vida política atualizou de um indivíduo pode ser herdado. O novo eleito se benefi- a disputa pela encarnação do “legado” e demar- cia, então, de certos recursos acumulados pelo seu predeces- cou rituais de renovação das “imagens” dos sor [...]. O parentesco toma, pois, uma forma simbólica” (Garraud, 1992, p. 226). O desenrolar desses processos de líderes. O reconhecimento, por parte dos segui- “filiações simbólicas” pode acontecer sob o controle pesso- dores, da centralidade ocupada por seus líderes al de uma liderança local, principal responsável pela obten- e os investimentos na apropriação desse capital ção do capital político da organização partidária. Porém, pode, também, assumir o formato de empreendimentos heróico (Bourdieu, 1989, p.191), que simboliza coletivos, nos quais o “partido” responsabiliza-se pela es- “feitos” políticos e militares em tempos de crise colha do “sucessor político” (Garraud, 1992, p. 232). ou a ascensão política de descendentes de imi- 3. Hastings (1992) identificou tais lógicas em um processo local de constituição de uma “linhagem comunista”. O au- grantes com origens sociais baixas, contribuíram tor demonstra a criação da linhagem mitológica com base para a perenização dos vultos e para a reinven- na fabricação da memória dos ancestrais, relatando a tradi- ção da “tradição”. ção de protestos e revoltas (identidade operária resultante do complexo industrial instalado) e das lutas pela definição Outro viés de investigação, no que tange à étnica da localidade (fruto da chegada de imigrantes). Dessa transmissão do carisma que o trabalhismo no forma, edificou-se uma genealogia baseada numa “tradição Rio Grande do Sul permite evidenciar, dirige-se política”, o que possibilitaria o enfrentamento das dinastias patronais locais no terreno que lhes é próprio: a legitimida- aos efeitos das disputas e embates entre os de hereditária. protagonistas sobre a legitimidade de encarnar

227 GRILL, IGOR. A “herança trabalhista” no Rio Grande do Sul:... a “herança”. Como demonstrou Collovald butos capazes de vinculá-los à história local e à (1999), as apresentações biográficas que visam, “linhagem” permite a transmissão ou apropria- entre outras coisas, consagrar ou contestar o ção do carisma. estatuto de herdeiro para determinados persona- Este estudo segue ainda algumas diretrizes gens acabam reforçando a importância simbó- apontadas por Coradini (1998, p. 227-229) para lica do patrimônio político dos ancestrais e o cenário sul-rio-grandense, no tocante às moda- imputando o papel de herdeiro mesmo àqueles lidades de legitimação presentes nessa associa- sobre os quais pesam desconfianças e questio- ção com o passado e sua eficácia política. Em namentos. A sucessão do carisma é, então, primeiro lugar, a localização na fronteira e a resultante de trocas políticas cujos resultados e herança do caráter escravista e hierarquizado desfechos são imponderáveis, atuando para tanto da sociedade gaúcha, na qual o exercício da “coações e oportunidades, itinerários possíveis dominação se realizava através das armas, da e improváveis, ações e reações” (Collovald, política e das guerras de facções que marcaram 1999, p.276). Isto conduz à revisão da tese os conflitos políticos, são aspectos que contri- weberiana que se concentra sobre o reconhe- buem para a construção da “imagem” dos “he- cimento dos profanos nas virtudes extraordi- róis militares”. Em segundo lugar, a emergência nárias do líder e exige o tratamento da identi- de setores da “pequena burguesia” dotados de dade carismática como resultante de um capital cultural, e descendentes de famílias de trabalho político de constituição e apropriação, imigrantes, reflete-se nos investimentos com assim como dos “usos profissionalizados do vistas à “reafirmação e redefinição da identidade carisma que o fazem durar e perdurar para além étnica” e na criação de uma “nova simbologia” das situações de crises das quais ele origina” que exalta a “ideologia do trabalho” e da “ascen- (Collovald, 1999, p. 278). são social”. E, em terceiro lugar, a expansão Finalmente, cabe ressaltar que a associação das vias de escolarização e a propagação de entre carisma e perenidade, no caso do traba- “ideologias e posições ditas de esquerda” reper- lhismo, não necessariamente levou à mera rotini- cutiram na afirmação de novos mediadores e zação ou à perda do reconhecimento dos segui- na proliferação de reinterpretações da história dores quanto à extraordinariedade dos líderes. local e invenções de “novas mitologias”. Para Este é o argumento defendido por Sento Sé Coradini (1998, p. 232), o processo de transmis- (1999) a respeito do “brizolismo” no Rio de Janei- são do “poder político” em condições periféricas, ro e parece ser adequado para o caso do traba- como o contexto brasileiro e especificamente o lhismo no Rio Grande do Sul. Sento Sé define gaúcho, dá-se via a combinação de uma essa recriação do carisma como produto da este- concepção de política baseada no princípio da tização da política, pela qual ocorre uma “reciprocidade” ou do “dom” e na personifica- congruência entre visões de mundo, construções ção de “qualidades”. Por conseguinte, a con- discursivas e formas de enunciar, narrar e cele- cepção social hierarquizante e a naturalização brar a história da própria coletividade. Nessas da diferenciação entre representante e repre- narrativas com passado, presente e futuro, os sentado, bem como o peso dos princípios de líderes são os centros de referência, os condu- legitimação carismática e da personificação dos tores de um projeto e as encarnações da auto- trunfos, criam as condições de transmissão “imagem” da sociedade. através da fidelidade do séquito e pela encar- Assim, por um lado, as demonstrações de nação do carisma. Dessa maneira, as tentativas lealdade aos antepassados e as proximidades dos candidatos a “herdeiros” em estabelecer uma familiares, políticas e sociais com os “ícones” maior ou menor proximidade social e ideológica ligados a esferas transcendentes e perenes da com os líderes e heróis consagrados, com base vida social ativam a “tradição política”. Por outro nas dinâmicas sociais e nos princípios de lado, o trabalho político de reinvenção, de adap- hierarquização elencados acima, conformam as tação e de concorrência por encarnar o passado disputas pelas “heranças”, a apropriação dos realizado pelos agentes e as “imagens” e atri- “legados” e a perpetuação dos patrimônios.

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“Fundadores” e “sucessores” A saída de cena simultânea dos dois protagonistas em 1954, com o suicídio de Vargas Dois personagens desfrutam de um papel e o afastamento dos pleitos eleitorais de Alberto central na apresentação e na afirmação do Pasqualini, em razão de problemas de saúde, trabalhismo no Rio Grande do Sul: Getúlio Vargas deflagrou a sucessão. A afirmação dos suces- e Alberto Pasqualini. A referência mítica de sores e a formação de cisões e rupturas em “fundadores” da “tradição” repousa sobre a nome da “herança” desembocaram no processo combinação de três fatores: a aproximação que contínuo de disputas pelo “legado” e de reinven- eles teriam promovido entre “vertentes” distintas ção do trabalhismo. As estratégias de “resgate” da política gaúcha no PTB; a associação deles desses personagens empreendidas pelos agentes com os documentos “fundadores” do trabalhis- e suas inscrições como fundadores do trabalhis- mo, a saber: a carta-testamento de Vargas e a mo obedecem à lógica de reinterpretação da “obra” de Alberto Pasqualini, e o estatuto de história regional e de localização dos porta-vozes “ícones” compartilhados e disputados pelos como sucessores dessas “figuras” e de um diferentes agentes e pelos porta-vozes situados amálgama dos atributos a eles associados. em diferentes posições políticas. O processo de sucessão política no traba- A consagração dos dois vultos liga-se, lhismo tem como base um conjunto de laços de então, obviamente à antigüidade e à liderança parentesco4 e de relações pessoais. A consti- de ambos e a suas contribuições para a forma- tuição de uma rede política estadual formada ção do PTB. Porém, ampara-se também no por quadros políticos vinculados a Getúlio Vargas caráter transcendente da “carta-testamento” e e a Alberto Pasqualini fortaleceu a sigla do PTB da “obra de Pasqualini”, imortalizadas pela no Rio Grande do Sul e pautou alguns dos celebração dos seguidores. Por fim, os contínuos alinhamentos futuros no interior da “tradição”. esforços dos candidatos a sucessores em asso- Nessa contenda pela proximidade com os líderes ciarem-se a eles por meio de relações pessoais e pela encarnação do “legado”, alguns condicio- e familiares, de proximidade ideológica e pela nantes mostraram-se decisivos. Pesaram os posse de qualidades semelhantes acabam fixan- laços de parentesco entre homens políticos, a do o que Bourdieu (1989, p.179) classificou de transmissão política no interior de “famílias” e a “posição central, intermediária, o lugar neutro”, afirmação partidária pela maximização da em torno da qual se define um “sistema de ocupação de cargos, das relações pessoais e de desvios”, composto por agentes e instituições redes de reciprocidade. A fixação de “imagens” em um jogo de oposições e distinções. e trunfos compatíveis com a transformação do Esses fatores de identificação estão, por espaço político e a assimilação de novos perfis sua vez, alicerçados em princípios de consa- e critérios de legitimação atuaram também gração de homens públicos distintos e que se significativamente. Os casos “bem-sucedidos” sucederam na política gaúcha e no próprio traba- nesse processo de sucessão aliaram esses três lhismo. Com base neles, podem-se apreender registros que interagem entre si: uso do paren- dois critérios de atribuição de qualidades extraor- tesco, itinerários pessoais políticos e partidários dinárias e de personalização do carisma, como ascendentes e a difusão e o reconhecimento apontado por Coradini (1998, p. 229). Getúlio acerca da proximidade com os “fundadores” do Vargas é vinculado à “imagem” do líder militar PTB (notadamente Getúlio Vargas e Alberto e político transformado em “herói” (inclusive pelo Pasqualini). suicídio), que alcançou o centro da vida política Assim, na geração seguinte, as disputas nacional por meio da união de facções locais colocam em conflitos agentes com perfis diver- rivais e eternizou-se no culto à memória regional sificados. Entre as lideranças que se afirmaram e nacional. Alberto Pasqualini simboliza a como “herdeiros da tradição”, João Goulart e ascensão social valorizada pelos imigrantes, e a sua afirmação política e intelectual reforça a 4. Sobre o papel de políticos ligados por laços de parentesco a Getúlio Vargas, como Ernesto Dornelles e Maneco Vargas, “ideologia do trabalho” e dos investimentos em na formação do PTB no Rio Grande do Sul, ver Grill (2003, escolarização. p. 307-310).

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Leonel Brizola, observam-se a diferenciação “categoria dos contadores”, vinculando-se quanto à posição social de origem e à importância inicialmente à mediação da região de origem e, do parentesco “por aliança”. O primeiro era filho desse modo, ascendendo paulatinamente às de estancieiro e militar em São Borja, estudou posições centrais na política brasileira. Foi depu- direito na UFRGS, fazia parte do círculo de tado estadual e deputado federal (contando com relações de Getúlio Vargas e afirmou-se por meio votações expressivas ao longo das décadas de da propagação dessa proximidade, dos trunfos 1940 e 1950). Nos últimos anos da sua vida, foi adquiridos com esse vínculo e da capacidade o maior concorrente de João Goulart pela lide- de trânsito que adquiriu em um amplo espectro rança do PTB, terminando por fundar o Movi- de esferas de atuação. Esse leque de inserções mento Trabalhista Renovador (MTR). O último, incluía desde o “mundo da estância”, passando Pedro Simon, é filho de um comerciante libanês pela direção partidária e pela ocupação de e iniciou a carreira como vereador em Caxias cargos no Rio Grande do Sul e no país, até do Sul. Marcado igualmente pela formação no chegar à vinculação com o movimento sindical catolicismo, inseriu-se na rede de lideranças e com forças políticas de expressão nacional. próximas a Pasqualini, contou com o “parentesco O segundo é filho de “pequeno agricultor” em por aliança” com Siegfried Heuser (seu cunha- , que ascendeu política e socialmente. do), consolidou-se como liderança partidária A exemplaridade do percurso é demarcada pela estadual e tornou-se um dos principais quadros escalada na carreira política a partir de condições do MDB e do PMDB em âmbito estadual e desfavoráveis e de forma precoce. A “imagem” nacional. Ao longo da sua carreira foi deputado do líder é caracterizada pelo uso dos meios de estadual, senador, governador e ministro da comunicação, pela facilidade de comunicação República. com as massas, pelas iniciativas de “caráter Leonel Brizola logrou êxito em se constituir popular” e pelo “heroísmo” das ações (inclusive como o continuador da “tradição política” que armadas). A simbiose desses códigos e a com- iniciara com Getúlio Vargas e tivera prossegui- plementaridade entre os papéis dos “cunhados” mento com João Goulart. À vinculação pessoal tiveram efeitos decisivos para a conquista da e familiar que conquistou junto aos líderes da “hegemonia interna” e para a perpetuação do “linhagem”, somou a construção do carisma com “legado”. base em uma biografia de ascensão social e Os adversários internos na concorrência realizações “heróicas”. A capacidade de “comu- pelo uso do “legado” nessa “geração de traba- nicação com as massas” e a “competência lhistas” também refletem a diversificação social administrativa” demonstrada, bem como o cunho das “elites políticas”. Um deles, José Diogo social e nacionalista de programas desenvolvidos Brochado da Rocha, é filho de militar, com são elementos articulados à sua “imagem”. Além destacada atuação no PRR e irmão de outros disso, sua ligação pessoal com Getúlio Vargas e três quadros políticos que se projetaram no seu vinculo familiar (via aliança matrimonial) com cenário político e partidário nas décadas de 1930, João Goulart mostram-se decisivos.5 1940 e 1950. José Diogo ascendeu no interior Eleito deputado estadual em 1947, conviveu da máquina partidária ligada a Vargas e, poste- com João Goulart e conheceu Neuza Goulart riormente, rompeu com João Goulart e Leonel (irmã deste último), com quem se casou em Brizola, concorrendo a governador pelo PSP em 1950, tendo Getúlio Vargas como padrinho de 1954. Antes disso, foi deputado estadual e casamento. Em 1951, concorreu a prefeito, tendo deputado federal (sempre um dos mais votados como candidato a vice, Manoel Vargas (filho de do PTB). O outro, Fernando Ferrari, é filho de Getúlio Vargas). Em 1952, assumiu a Secretaria um comerciante de origem italiana que se tornou o principal mediador no município de São Pedro 5. Para uma descrição detalhada do papel dos descendentes e parentes de João Goulart com atuação política – como do Sul e prefeito dessa cidade. Fernando Ferrari João Vicente Goulart (filho), Humberto Goulart (primo), foi influenciado pela formação no catolicismo e Christophe Goulart (neto), entre outros –, assim como os de Leonel Brizola – como José Vicente Brizola (filho) e pela relação pessoal com Alberto Pasqualini, Carlito Brizola (neto) –, na disputa e reinvenção do “lega- dedicou-se à “defesa dos agricultores” e da do”, ver Grill (2003, p.314-310; p. 323-325).

230 SOCIEDADE E CULTURA, V. 7, N. 2, JUL./DEZ. 2004, P. 225-236 de Obras Públicas no governo de Ernesto com Getúlio Vargas e Alberto Pasqualini, assim Dornelles (primo de Getúlio Vargas). Candidato como também disputaram, em diferentes a deputado federal em 1954, elegeu-se com momentos, o espólio do trabalhismo no Rio expressiva votação (o mais votado do partido). Grande do Sul. As origens familiares, os itine- Chegou à Prefeitura de em 1955 rários políticos e os desfechos em termos de e, em 1958, ao governo do estado do Rio Grande adesões conquistadas sinalizam o entrecruza- do Sul. Nesse cargo, sua atuação ter-se-ia mento entre estrutura e bases do patrimônio notabilizado pela criação do Gabinete de Admi- político familiar, alinhamentos políticos, inserções nistração e Planejamento e do Instituto Gaúcho em redes, cultivo de lealdades e trunfos pessoais de Reforma Agrária, pela prioridade à educa- de disputa política. Além disso, os três associam- ção, por encampações de multinacionais e pela se de diferentes maneiras e intensidade à liderança do movimento da legalidade (mobili- “imagem” dos ícones da “tradição”. José Diogo zação popular pela defesa da posse de João Brochado da Rocha investiu, sobretudo, na Goulart). Em 1962, elegeu-se deputado federal proximidade social e política (como membro de pelo , criou a Frente Nacionalista, uma “família” integrante dos círculos de elites a Frente de Mobilização Popular e o Grupo dos sociais e políticas que precede a redemocrati- Onze. Cassado em 1964 e exilado durante o zação de 1945) e na antigüidade dos laços entre regime militar, organizou ainda (com base no ele e sua rede de parentesco com os adeptos do Uruguai) focos de resistência armada. A morte “varguismo”. Fernando Ferrari e Pedro Simon do João Goulart em 1976 e a perspectiva de apostaram na identificação com Pasqualini, por reabertura política avistada na segunda metade meio das suas origens ligadas à imigração, sua da década de 1970 convergem para a transmis- vinculação ao catolicismo e seu itinerário social são da “herança” e para a ativação da “memória e político. política”. Diferentemente de José Diogo Brochado A estratégia de reconstrução do PTB e a da Rocha e Fernando Ferrari, Pedro Simon sua liderança no futuro partido amparavam-se logrou êxito como dissidente de Leonel Brizola na biografia pessoal do líder e na idéia de no trabalhismo gaúcho. Para tanto, contou com continuidade do trabalhismo. Leonel Brizola, a relação de parentesco por aliança com Siegfrid após perder a sigla do PTB para Ivete Vargas Heuser (seu cunhado), a dissolução do PTB, a (que tinha um laço de parentesco distante com formação do MDB no regime militar e o Getúlio Vargas), fundou o Partido Democrático potencial de mobilização e de continuidade com Trabalhista e teve como móbiles de identificação o trabalhismo que tornaram essa sigla um caso o esforço de mostrar que o partido era o elo ímpar no país. Ungido como sucessor de possível com a “história trabalhista” nele mesmo Siegfried Heuser na presidência do MDB e na encarnada. Assim, concorreu duas vezes ao direção da “ala” majoritária no partido, Simon governo do Rio de Janeiro (com sucesso) e elegeu-se deputado estadual em quatro eleições disputou em duas ocasiões a Presidência da consecutivas. Em 1978, é alçado ao Senado República (sem sucesso), pelo PDT. Federal. Nesse período, não se desligou do apelo O reconhecimento e a consagração dos à “tradição trabalhista”. No final da década de “herdeiros” e da “tradição” são tributários 1970, entra em choque com Leonel Brizola, igualmente dos trabalhos de apropriação e devido às divergências quanto ao destino reivindicação do “legado” por parte de diferentes partidário dos quadros identificados com o protagonistas, bem como dos conflitos que se trabalhismo, culminando com a divisão entre o estabelecem entre os porta-vozes do trabalhis- PMDB, de Pedro Simon, e o PDT, de Leonel mo no Rio Grande do Sul, principalmente aqueles Brizola. Pedro Simon apoiar-se-ia no capital classificados como dissidentes. Entre estes, os político acumulado durante o período de bipar- casos de maior notoriedade são os de José Diogo tidarismo. Brochado da Rocha, Fernando Ferrari e Pedro No processo de disputa entre os “homens Simon. Os três apresentam carreiras intimamen- políticos”, cada qual apostava nos seus principais te ligadas ao antigo PTB e às suas vinculações trunfos. O primeiro no “resgate da história do

231 GRILL, IGOR. A “herança trabalhista” no Rio Grande do Sul:... trabalhismo”, através da legenda, da qual foi um fundadores seja compartilhada e valorizada pelo dos “construtores” e principais ícones, e da conjunto dos casos. recomposição das forças dos seus principais A rede de “famílias de políticos” que acom- seguidores, por meio de um partido (PTB) capaz panharam Leonel Brizola na formação do PDT de estabelecer as “pontes com o passado”, bem no Rio Grande do Sul é formada por lideranças como da incorporação de novas modalidades e do antigo PTB que nutriam lealdade e identifi- repertórios de identificação, como o discurso cação em relação ao ex-governador e estabele- socialista e os temas ligados às questões de ceram alinhamentos e afastamentos locais com gênero, etnia, direitos humanos etc. O segundo outras lideranças durante o regime militar. O procurava manter os elos nacionais conquistados PDT formou-se, então, majoritariamente por com políticos de outras origens partidárias como políticos com origem política no período pré-64 Ulysses Guimarães, Teotônio Vilela e Tancredo como: (Porto Alegre), Getúlio Neves (oriundos do PSD), resguardar sua Dias (Pelotas), Otávio Caruso da Rocha (Porto influência estadual por meio da manutenção da Alegre), Romildo Bolzan (Osório), Daniel Dipp unidade em torno de um partido oposicionista (o (), Beno Orlando Burmann (Ijuí), PMDB por ele controlado) e não se desvincular João Satte (Porto Alegre), Sereno Chaise (Porto das “origens trabalhistas”, cujo apelo perma- Alegre), Amauri Muller (Ijuí), Mathias Nagels- necia presente na maior parte dos quadros tein (Bagé), Eduardo Rolim (Santa Maria), entre partidários gaúchos e no seu eleitorado. outros. Na seqüência, emergiram algumas lide- ranças mais jovens e vinculadas a “famílias de militantes trabalhistas” e a algumas persona- A disputa pelo “legado”: líderes, partidos lidades com inserção regional. Entre eles, estão e seguidores os principais dirigentes do partido nas últimas décadas, como João Luiz Vargas (filho de Os itinerários desses dois políticos bifur- militantes trabalhistas em São Sepé e marido da cam-se. As opções partidárias de ambos provo- atual prefeita desse município pelo PDT), caram a mais significativa cisão entre os quadros Pompeu de Mattos (filho de agricultor assentado que se auto-intitulam seguidores do trabalhismo. no processo de reforma agrária promovido por A polarização em relação à “tradição política” Brizola na década de 1960 e cabo eleitoral do decorre de rivalidades e lealdades herdadas no PTB), Ciro Simoni (filho de uma vereadora em período de atuação ainda no antigo PTB. Esses Osório e que ingressou na carreira política com alinhamentos guardam relação também com os o apoio de Romildo Bolzan), Vieira da Cunha perfis sociais das “famílias”, demonstrando uma (genro de Romildo Bolzan), Pedro Ruas (filho “tendência” de vinculação de “famílias” com de um militante trabalhista e sobrinho de um ex- “raízes” em segmentos mais “tradicionais”, ou deputado federal pelo PTB e ex-vereadores pelo em inserções mais “populares” e de extração mesmo partido), Milton Zuanazzi (filho de um mais baixa, ao PDT, e “famílias” mais ligadas militante do PTB que chegou a ser secretário ao catolicismo e ao “empreendedorismo” comer- municipal em Bom Jesus), Emília Fernandes cial e local, bem como os descendentes de (filha de militantes trabalhistas na “fronteira- imigrantes alemães, italianos, entre outros, ao oeste”), entre outros. PMDB. Logo, há igualmente uma maior asso- Entre os primeiros, o desafio residiu em ciação dos seguidores de Leonel Brizola com transmitir a opção partidária e o alinhamento com Getúlio Vargas e João Goulart e dos aderentes o líder e fundador do partido para as gerações à liderança de Pedro Simon a Alberto Pasqualini. seguintes. Em alguns casos, tal esforço foi bem- Essa configuração delineia-se devido à identifi- sucedido, como os de João Satte (seu filho foi cação dos grupos familiares com o perfil dos vereador em Porto Alegre pelo PDT), Getúlio ícones (e a percepção das suas qualidades e Dias (o filho foi vereador em Pelotas pelo PDT), atributos neles mesmos) e com a fidelidade aos Romildo Bolzan (seu filho foi vereador, vice- egos das redes que já se posicionavam com base prefeito e prefeito de Osório pelo PDT e o genro, nessa divisão. Embora a referência aos dois vereador em Porto Alegre e deputado estadual,

232 SOCIEDADE E CULTURA, V. 7, N. 2, JUL./DEZ. 2004, P. 225-236 além de presidente estadual do PDT), Orlando Mathias Nagelstein e seu filho Valter Nagelstein. Burmann (seu filho é vereador em Ijuí e o Essas mesmas “famílias de políticos” participam sobrinho, deputado estadual, ambos pelo PDT), de redes e alianças (horizontais e verticais) entre outros. Ao mesmo tempo, as cisões pes- políticas que extrapolam suas fronteiras e tecem soais, as rupturas políticas, a instabilidade nas teias de relações com outros políticos (muitos alianças com outras siglas, o declínio eleitoral deles também vinculados familiarmente ao do PDT nas últimas eleições e o crescimento trabalhismo).6 de outras agremiações fragilizaram os elos que Entre as “famílias de trabalhistas” que opta- sedimentavam a rede de reciprocidade e contri- ram pelo PMDB, identificam-se três processos buíram para contestações internas, afastamentos que atuam simultaneamente para essa adesão. e desligamentos. A partir desses posiciona- Em primeiro lugar, a transmissão de rivalidades mentos, os sucessores dessas “famílias de anteriores cultivadas pelos antepassados princi- políticos” passaram a contribuir para a reinven- palmente com Leonel Brizola; em segundo lugar, ção da “tradição” como críticos internos ou a aproximação durante o regime militar com dissidentes, considerando que, praticamente na Pedro Simon no interior do MDB, e, em terceiro totalidade dos casos, permaneceram acionando lugar, a relevância dos alinhamentos locais e a o passado de militância da “família”. manutenção de redes de seguidores já identi- Já os últimos (oriundos de “famílias de ficadas com o MDB. trabalhistas” que ingressaram mais recente- Embora ocorram casos de grupos familiares mente na política eletiva, como João Luiz Vargas, originalmente ligados ao PTB e que perma- Pompeu de Mattos, Ciro Simoni, Milton Zua- neceram fiéis ao PMDB e à liderança de Pedro nazzi, Emília Fernandes etc.) integraram-se nesse Simon, como as “famílias” dos ex-deputados processo e passaram a participar de redes de Carlos Giacomazzi e Darcílio Giacomazzi (filhos lealdade no interior do partido e ascenderam do ex-deputado pelo PTB Guido Giacomazzi), politicamente, apoiando-se em bases eleitorais do suplente de deputado estadual Edson Brum próprias. Além disso, estabeleceram alianças (irmão do prefeito de Rio Pardo, Edvilson Brum, para cima e teceram vínculos na cúpula entre filho do vereador e ex-vice-prefeito Vilson Brum essa “nova geração trabalhista”, o que, em e neto do ex-vereador pelo PTB Nicolau Pessoa muitos casos, também significou realinhamentos de Brum) e do deputado estadual Nélson Harter internos ou a migração em bloco para outras Filho (filho de dirigente e cabo eleitoral do PTB siglas. Nélson Harter), alguns quadros originalmente Desse modo, há casos de “famílias de ligados ao PMDB migraram para outras siglas. políticos” cujos membros com participação No primeiro caso, há a convergência entre os eleitoral permaneceram no PDT e participaram seguintes fatores para a aproximação com das redefinições identitárias internas ao partido. Pedro Simon e com o MDB (PMDB): a origem Há outros nas quais os “homens políticos” comum no PTB, a rivalidade dos antepassados migraram em sua totalidade, simultaneamente em relação à liderança de Leonel Brizola e o ou separadamente, para outras siglas. Há ainda estreitamento dos laços durante o período bipar- aqueles em que, entre uma geração e outra, tidário (no qual Pedro Simon liderava o MDB). ocorreu uma divisão dos membros com militân- No segundo caso, ocorrem alinhamentos e rivali- cia eleitoral entre diferentes partidos. Entre os dades locais que reconfiguraram facções políti- primeiros, encontram-se, por exemplo, as “famí- cas municipais, ou lideranças políticas adquiriram lias” de Romildo Bolzan, de Orlando Burmann, destaque estadual e investiram na formação de de Daniel Dipp e de seus sucessores políticos. redes estaduais próprias. Entre os que se enqua- Já na segunda modalidade, situam-se casos dram na primeira modalidade de deslocamento, como a de Sereno Chaise, sua ex-mulher Tere- encontram-se as “famílias” do ex-deputado zinha Irigaray e seu filho Carlos Chaise. Por fim, uma última modalidade de distribuição dos 6. As origens, os itinerários e os alinhamentos políticos familiares entre siglas é aquela representada por desses grupos familiares encontram-se em Grill (2003, 347- Eduardo Rolim e seu sobrinho Marcos Rolim, e 366).

233 GRILL, IGOR. A “herança trabalhista” no Rio Grande do Sul:... estadual Gleno Scherer (filho do ex-prefeito de espólio trabalhista, foi a liderada por Sérgio Venâncio Aires pelo PTB Alfredo Scherer e Zambiasi para o PTB. Embora não tenha irmão do atual prefeito, Glauco Scherer, e do ascendentes que tenham ocupado cargos ex-vereador Rogério Scherer) e do atual depu- eletivos, justifica sua aproximação com o tado estadual Kalil Sehbe (neto de deputado e trabalhismo através da origem familiar. Além filho de um importante cabo eleitoral do PTB, disso, declara-se admirador de Leonel Brizola e além de ter um laço de parentesco com Pedro afirma cultuar a “imagem” e o “legado” de Simon). Já entre os que podem ser situados sob Getúlio Vargas. Sua inscrição na história da a segunda modalidade de deslocamento, estão “família política” obedece aos padrões de legi- o ex-deputado federal Paulo Mincarone (filho timação encontrados em outros perfis, lançando do ex-deputado estadual e federal Aquiles mão da origem familiar, da demonstração de Mincarone) e seu filho Marcelo Mincarone (ex- lealdade e culto aos ícones, aos documentos e deputado estadual), o atual ministro aos símbolos da genealogia simbólica. (filho do ex-vereador e vice-prefeito de Santa Porém, sua afirmação política deu-se a Maria pelo PTB Adelmo Genro) e o atual sena- partir de um itinerário distinto. Seu prestígio dor Sérgio Zambiasi e suas redes de apoiadores.7 eleitoral inicial não guarda ligações diretas com Em comum, esses políticos que migraram o trabalhismo e baseia-se fundamentalmente na do PMDB para outras siglas têm uma origem sua atuação como radialista e nos programas política familiar ligada ao PTB e a opção inicial de rádio centrados na filantropia.8 Comandando pelo PMDB centralizado por Pedro Simon, no seu programa diário na Rádio Farroupilha (uma início da década de 1980. Afora isto, optaram das emissoras com maior audiência no estado e pela inserção em legendas e facções estaduais alcance em quase todo o território gaúcho), capazes de ativar uma ponte com suas biogra- Zambiasi elegeu-se deputado estadual em 1986 fias familiares e pessoais e justificar os novos pelo PMDB com expressiva votação. Tal vota- alinhamentos. Se a opção pelo PMDB esteve ção teve como sustentação sua atuação como alicerçada em alianças verticais e horizontais radialista e a notoriedade alcançada devido ao no plano local e estadual, herdadas ou construí- encaminhamento e ao atendimento de demandas das ainda no PTB, a saída e a adesão a novos dos ouvintes ou à intermediação que realiza partidos também obedecem a rivalidades e através da sua atividade profissional. vínculos locais e alinhamentos estaduais. Chama Durante seu primeiro mandato, respaldado a atenção, porém, que os homens políticos por sua enorme votação, investiu na formação permanecem acionando um elo com o passado do Partido Trabalhista Brasileiro no estado. O familiar e político que os ligam ao trabalhismo e potencial eleitoral auxiliou no recrutamento de circunscrevem-se na órbita de siglas nas quais quadros políticos atraídos pelas chances de podem, de algum modo, inscrever-se na história eleição em uma legenda que nascia por meio da da “tradição política”. Contribuem para seus iniciativa de um “puxador de votos”. Todavia, itinerários partidários as origens familiares outros fatores contribuíram para a adesão de expressas em posições políticas, oposições e seguidores. Em primeiro lugar, a aliança com o lealdades transmitidas e, por outro lado, as deputado federal Paulo Mincarone, que tinha alianças pessoais e políticas constituídas ao longo uma vinculação familiar e pessoal com a sigla e da carreira de cada homem político, assim como uma rede de apoiadores conquistada através dos as cisões e rupturas acumuladas nos trajetos de seus mandatos na Câmara Federal. Em segundo ascensão, afirmação ou declínio político. lugar, a identificação que buscou estabelecer Uma das mais significativas migrações do entre quadros políticos por meio da associação PMDB, em termos de reflexos na composição entre filantropia e radialismo, recrutando para a de forças na política gaúcha e de disputa pelo 8. A relevância desse tipo de atividade para a carreira de Sérgio Zambiasi, para a forma como concebe a atuação 7. O perfil de tais grupos, as trajetórias dos membros com política e para a sua percepção sobre a representação dos atuação política e as lógicas dos deslocamentos podem ser “problemas sociais” é analisada por Coradini (2001, p. 44) consultadas em Grill (2003, p. 372-390). e por Angelis (2001, p.131-139).

234 SOCIEDADE E CULTURA, V. 7, N. 2, JUL./DEZ. 2004, P. 225-236 legenda lideranças ligadas a igrejas e atividade les protagonistas e a seguidores locais por alian- em rádios locais como forma de atendimento. ças verticais (para cima e para baixo). Os ele- Em terceiro lugar, ao vincular-se ao PTB, foi mentos que fornecem sentidos a essa idéia de capaz de promover uma série de adesões de “tradição política” circulam pelas redes e são lideranças ligadas por origem familiar à sigla. retroalimentados e dotados de novos significados Entre estes, estão o próprio ex-deputado federal pelos laços de reciprocidade que as formam. Paulo Mincarone e seu filho, o ex-deputado Os processos de afirmação dos diferentes estadual Marcelo Mincarone; o ex-deputado protagonistas também realçam as tentativas de estadual Gleno Scherer, o seu irmão Glauco fixação de novos trunfos políticos no espaço Scherer e o seu filho Alfredo Scherer Neto; a político gaúcho. Um longo processo de substi- ex-deputada estadual Terezinha Irigaray e tuição do perfil das “elites políticas” caracteriza- recentemente seu filho Carlos Chaise, e seus se. As “famílias tradicionais” ligadas ao “mundo colegas de bancada na Assembléia Legislativa da estância” são paulatinamente substituídas por na década de 1990 Caio Riela e Iradir Pietroski. “famílias” ligadas à imigração e com posição Paulo Mincarone e Gleno Scherer são filhos de social de origem mais baixa e que acumularam importantes lideranças do antigo PTB em Bento investimentos econômicos, sociais, escolares e Gonçalves e Venâncio Aires, respectivamente. políticos que possibilitaram a sua afirmação. No Iradir Pietroski e Caio Riela são filhos de verea- cume dessas redes, passam a desempenhar dores pelo PTB no período que antecedeu ao papéis primordiais agentes com posição social golpe militar. A composição social e política da de origem ligada a segmentos sociais outrora rede, os resultados eleitorais dos integrantes e a excluídos dos cargos e atribuições políticas afirmação política de Sérgio Zambiasi configu- centrais. Nas posições intermediárias (de lide- raram um percurso ascendente que o transfor- rança local), observa-se igualmente a ascensão maram em uma das estrelas da política gaúcha de “famílias de políticos” que apresentam uma e acabaram credenciando-o a disputar o título proximidade social, política e pessoal com os de “herdeiro do trabalhismo”. líderes e conquistam adesões nas suas áreas de influência social e política. A celebração dos per- Considerações finais sonagens e da história gaúcha por parte dos candidatos à sucessão torna manifesta não só a Essa série de alinhamentos e usos do traba- valorização dos ícones, mas os atributos ou lhismo descritas neste artigo demonstram a critérios de excelência social em pauta e as importância das alianças e das rivalidades no estratégias de aproximações (sociais, pessoais interior desse espaço composto por protagonistas e políticas) ativadas pelos intérpretes e porta- políticos que utilizam a referência ao passado vozes do trabalhismo no Rio Grande do Sul. como recurso de luta política. A combinação da Nesse processo, a política, como exercício de afirmação de determinadas personalidades, as liderança carismática e como cadeias de reci- redes de lealdade acionadas e a tentativa de procidade, permite a transmissão das fontes do “resgate de referências” que ligam atores, histó- carisma dos líderes e dos mecanismos de cultivo ria política e transmissão de patrimônios políticos de lealdades. Isto, por sua vez, depende do configuram uma dinâmica de enfrentamentos esforço de “resgate do legado” e de vinculação políticos em diferentes níveis e a reinvenção da pessoal e partidária empregados pelos atores. “tradição política”. A fixação de lealdades, enfrentamentos e “resgates” da história política, em um processo em constante atualização e redefinição, permitiram a perpetuação da crença Abstract: The present research examines the dynamics no “legado” e a consagração dos ícones e and development of a political heritage frame and the símbolos que compõem essa genealogia ways and means by which it is trasmitted and assumed by agents.. The study dimensions privileged encompass simbólica e/ou linhagem mitológica. Contri- alliances and networks underlying the fixation of a buem para tanto os protagonistas das disputas symbolic genealogy, the “trabalhismo gaúcho” (political estaduais e as lideranças locais vinculadas àque- ideology related to the historical role, partisanship and

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