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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

TANIA ARRAIS DE CAMPOS

O Affaire Cavalcanti: Um produtor de cinema no Brasil nos anos 1950

The Affaire Cavalcanti: A film producer in Brazil in the 1950’s

CAMPINAS 2019

TANIA ARRAIS DE CAMPOS

O Affaire Cavalcanti: Um produtor de cinema no Brasil nos anos 1950

The Affaire Cavalcanti: A film producer in Brazil in the 1950’s

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Multimeios.

Dissertation presented to the Institute of Arts of the University of Campinas in partial fulfillment of the requirements for the degree of Master in Multimedia.

Orientador: Noel dos Santos Carvalho

Este trabalho corresponde à versão final da dissertação defendida pela aluna Tania Arrais de Campos, e orientada pelo Prof. Dr. Noel dos Santos Carvalho.

CAMPINAS 2019

Agência de fomento e nº de processo: CAPES – 001

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Artes Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Campos, Tania Arrais de, 1993- C157a CamO Affaire Cavalcanti : Um produtor de cinema no Brasil nos anos 1950 / Tania Arrais de Campos. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

CamOrientador: Noel dos Santos Carvalho. CamDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

Cam1. Cavalcanti Alberto de Almeida, 1897-1982. 2. Diretores e produtores de cinema. 3. Política no cinema. I. Carvalho, Noel dos Santos, 1962-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The Affaire Cavalcanti : A film producer in Brazil in the 1950's Palavras-chave em inglês: Cavalcanti Alberto de Almeida, 1897-1982 Motion picture producers and directors Politics in motion pictures Área de concentração: Multimeios Titulação: Mestra em Multimeios Banca examinadora: Noel dos Santos Carvalho [Orientador] Arthur Autran Franco de Sá Neto Alfredo Luiz Paes de Oliveira Suppia Data de defesa: 06-08-2019 Programa de Pós-Graduação: Multimeios

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a) - ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-6717-5070 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/9441665128672629

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BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO

TANIA ARRAIS DE CAMPOS

Orientador: Noel dos Santos Carvalho

Membros:

1. Prof. Dr. Noel dos Santos Carvalho 2. Prof. Dr. Arthur Autran Franco de Sá Neto 3. Prof. Dr. Alfredo Luiz Paes de Oliveira Suppia

Programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da Comissão Examinadora encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

Data da Defesa: 06/08/2019

Agradecimentos

Agradeço ao Departamento de Multimeios da UNICAMP e à CAPES. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Aos funcionários da Cinemateca Brasileira e da Biblioteca do Instituto de Artes da UNICAMP pelo auxílio nas buscas por bibliografias e arquivos específicos, bem como pela constante disposição em auxiliar os pesquisadores que tanto dependem da preservação de arquivos, livros, filmes e quaisquer fontes de acesso ao conhecimento. Ao prof. Fernão Ramos pela contribuição na fase de Qualificação desta dissertação, ao prof. Alfredo Suppia pela participação na Banca de Defesa, bem como ao prof. Arthur Autran pela colaboração na pesquisa tanto durante a Qualificação quanto na Defesa. Ao orientador desta pesquisa, prof. Noel dos Santos Carvalho, sempre presente diante de novos questionamentos nascentes do desenvolvimento do trabalho, agradeço pela orientação e confiança em mim depositada. Às colegas de pesquisa sobre cinema Paula Gomes, Cristina Couto e Natasha Romanzoti, e a tantos outros, pelos diálogos e esclarecimentos em meio às inquietações próprias do trabalho de pesquisa. A Yuri Zacra, pelas discussões e conselhos, pela paciência e confiança, enfim, pela companhia ao longo do trabalho. Agradeço, enfim, minha família, sobretudo meus pais, Silas R. V. de Campos e Maristel A. S. V. de Campos, pelo apoio incondicional durante esse tempo de dedicação aos estudos.

Resumo

O trabalho discute a trajetória percorrida pelo cineasta Alberto Cavalcanti no Brasil, com foco na sua atuação como produtor cinematográfico. O objetivo da pesquisa é investigar a sua curta passagem pelo país a partir das produções que ele realizou durante aquele momento, bem como a conjuntura em que elas estavam inseridas. A partir deste enfoque, consideramos relevantes para o estudo o desenrolar de seu ofício como Produtor-Geral na Vera Cruz e os filmes lá produzidos (Caiçara, Terra É Sempre Terra, Painel e Santuário), a produção de O Canto do Mar através da Kino Filmes e a elaboração do projeto de criação do Instituto Nacional de Cinema, junto de uma comissão presidida por Cavalcanti. Ressaltando a repercussão destas realizações no meio cinematográfico, tentamos, enfim, situar o produtor no quadro social brasileiro.

Palavras-chave: Alberto Cavalcanti, produtor cinematográfico, política cinematográfica.

Abstract

The work discusses the trajectory of the filmmaker Alberto Cavalcanti in Brazil, focusing on his role as a film producer. The objective of the research is to investigate his short passage in the country, from the productions that he took part during that moment, to the conjuncture in which they were made. From this approach, we consider relevant to the study the his role as General Producer in Vera Cruz and the films he produced there (Caiçara, Terra É Sempre Terra, Painel and Santuário), the production of O Canto do Mar through Kino Films and the elaboration of the project that would create the Instituto Nacional de Cinema, by a commission presided by Cavalcanti. Emphasizing the repercussion of these achievements in the cinematographic field, we will try to place the producer in the Brazilian social frame.

Key words: Alberto Cavalcanti, film producer, film policy.

Lista de abreviaturas e siglas

APC – Associação Paulista de Cinema EMP – Empire Marketing Board CNC – Conselho Nacional de Cinema DEIP – Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda GEICINE – Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica GPO – General Post Office INC – Instituto Nacional de Cinema INCE – Instituto Nacional de Cinema Educativo SNIC – Sindicato Nacional da Indústria Cinematográfica

Sumário

Apresentação ...... 10

Capítulo 1: A trajetória formativa de Alberto Cavalcanti no cinema ...... 21 Juventude: o encontro da vocação com o trabalho no cinema ...... 22 A posição de produtor: consolidação e reconhecimento no meio cinematográfico ... 32 Abordando a trajetória de Cavalcanti ...... 46

Capítulo 2: A produção cinematográfica de Cavalcanti no Brasil ...... 49 Da à Vera Cruz ...... 53 Caiçara ...... 66 Painel e Santuário ...... 71 Terra É Sempre Terra ...... 76 O Canto do Mar ...... 82

Capítulo 3: Instituto Nacional de Cinema: formulando políticas de Estado ...... 93 Relatório Geral Sobre o Cinema Brasileiro ...... 95 O meio cinematográfico diante do INC de Cavalcanti ...... 113

Últimas considerações ...... 124

Bibliografia ...... 130

Filmografia ...... 137

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Apresentação

Quando surgiu em São Paulo a efervescência cinematográfica dos fins dos anos 1940, descobriu-se subitamente que o Brasil possuía, também em cinema, um Santos Dumont, um Rui Barbosa, isto é, revelou-se ao grande público que Alberto Cavalcanti existia: como aqueles no Campo de Bagatelle ou na tribuna de Haia, este triunfara nos estúdios cinematográficos de França e Inglaterra. É uma perda de tempo imaginar o que teria acontecido se Santos Dumont tivesse recebido a missão de fabricar aeroplanos no Brasil, na década de 1920. Mas o fato de Rui Barbosa não ter conseguido eleger-se presidente da República deve reter nossa atenção, pois confirma a ideia de que a função desses homens não era a de resolver problemas nacionais, e sim de serem admirados, não eram messias, mas astros. Se fosse permitido inventar uma expressão útil, eles poderiam ser definidos como “bodes exultórios”.1

A proposta desta pesquisa foi estudar o cineasta brasileiro Alberto Cavalcanti, particularmente pela sua atuação como produtor cinematográfico, durante a época em que ele permaneceu no Brasil. Partindo de uma perspectiva ampla a respeito de sua formação no meio cinematográfico internacional, chegaremos ao estágio da vida do cineasta no qual ele iniciava sua carreira como produtor de cinema, e em seguida, ao seu retorno ao Brasil. Abordamos, então, as seguintes iniciativas: o trabalho de Produção-Geral de Cavalcanti na Companhia Cinematográfica Vera Cruz, onde produziu dois longas-metragens, Caiçara e Terra É Sempre Terra, e dois curtas- metragens, Painel e Santuário; sua participação na Kino Filmes, pela qual produziu e dirigiu O Canto do Mar; e, por último, o desenvolvimento do projeto de criação do Instituto Nacional de Cinema solicitado diretamente ao produtor pelo então presidente Getúlio Vargas. As inúmeras possibilidades oferecidas pelo estudo, cujo ponto de partida é Alberto Cavalcanti, nos causaram, desde o início da pesquisa, dificuldades ao tentar estabelecer o recorte apresentado acima. O problema não era lidar com a longa e heterogênea trajetória do cineasta, marcante em diferentes épocas e países por sua contribuição em movimentos cinematográficos de grande relevância para o meio. Ao longo de nossas leituras, a clareza do caráter multifacetado de Cavalcanti tornou desnecessário que o definíssemos através de uma categoria específica, por mais que isso fosse recorrente em diversos trabalhos. Compreendemos que a categorização é

1 GOMES, Paulo Emilio Sales. Uma situação colonial? São Paulo, SP : Companhia das Letras, 2016, p. 69. 11 relevante para o desenvolvimento de pesquisas específicas e da própria organização dos diferentes campos de estudo. O nosso trabalho, inclusive, precisou se inserir em um determinado recorte que o encaixasse sob uma categoria, mesmo que de forma ampla: a dos estudos sobre produtores cinematográficos. Tais classificações, contudo, nos pareciam problemáticas. Tal percepção estaria relacionada com a reflexão proposta por Norbert Elias (1995) na sua abordagem sobre a trajetória de Mozart. O autor afirma que “estamos acostumados a operar com conceitos estáticos” e a presunção da visão a posteriori “impede nossa compreensão do significado que, num tempo passado, o curso dos eventos tinha para os próprios seres humanos que os viviam”2. Seria insuficiente apenas admitir certas “categorias” e “conceitos” sem maiores investigações a respeito dos objetos que os agrupam abstratamente. Embora saibamos dos limites de nossa pesquisa, buscamos orientá-la no sentido da abordagem de Elias, segundo o qual, para entender melhor o indivíduo, “É preciso indagar o que esta pessoa considerava ser a realização ou o vazio de sua vida”3, ou ainda, “É preciso ser capaz de traçar um quadro claro das pressões sociais que agem sobre o indivíduo” 4 . Sendo assim, apesar de nos atentarmos, principalmente, aos momentos da trajetória de Cavalcanti em que ele atuou como produtor cinematográfico, não deixamos de lado a compreensão do cineasta como um indivíduo com interesses e ambições particulares, que poderiam ou não entrar em conflito com as circunstâncias sociais nas quais ele estava inserido. Ao longo do estudo sobre Cavalcanti que partiu da abordagem mencionada acima, contudo, nos deparamos com outras determinações, as quais nos exigiam também outras perspectivas. Tanto no trabalho como produtor, quanto nas demais funções exercidas por Cavalcanti, o modo como ele parece pensar e exercer a prática do cinema impossibilita a particularização desta atividade, tal como, de certa forma, fazemos aqui. É como Pierre Sorlin (1977) em sua Sociologie du Cinéma, estabelece o modo de produção do filme enquanto um “produto cultural” e problematiza os seus “sistemas de classificação”. O autor propõe que os estudos sobre o cinema partam das seguintes afirmações:

1) um filme é o resultado de um trabalho em equipe, no qual é muito difícil reconhecer a parte de cada um. 2) Existe um « meio cinematográfico », um

2 ELIAS, Norbert. Mozart, sociologia de um gênio. , RJ : Zahar, 1995, p. 15 – 16. 3 Ibidem, p. 10. 4 Ibidem, p. 18 – 19.

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conjunto parcialmente homogêneo, cujas orientações, tendências, posição no campo social contam mais que as ideias de quaisquer pessoas, mesmo se essas pessoas possuam uma responsabilidade considerável nos filmes dos quais elas participam.5

A primeira afirmação se avizinha com certas crenças presentes no discurso de Cavalcanti a respeito da produção cinematográfica, pois, como veremos com mais profundidade ao longo do texto, apesar de ressaltar a importância de certas funções, como o produtor e o diretor, ele defende a valorização do trabalho no cinema como um trabalho necessariamente feito em equipe. A segunda afirmação descreve a pertinência absoluta do meio cinematográfico (“milieu du cinéma”) para a composição dos filmes, sendo estes produtos culturais. De acordo com Sorlin, o meio cinematográfico constituí, deste modo, um “conjunto social de produção cultural”:

um grupo de pessoas que trabalham sobre um produto determinado (um filme) cuja competência é atestada pela formação social no interior das quais elas estão inseridas e que, subjetivamente, se definem diante do « conjunto da produção » pelo lugar ocupado no processo de fabricação, diante da formação social, em geral, pelo pertencimento no grupo que possui o monopólio legítimo da realização fílmica.6

Ele critica, em seguida, o fato das realizações culturais serem apresentadas de forma isolada, através de um só autor, sem referências ao grupo produtor ou à formação social receptora7. Logo, as concepções do autor são pertinentes para a compreensão do trabalho de Cavalcanti no cinema, por mais que demonstrem também a ambiguidade de particularizarmos as produções do cineasta ao utilizá-lo como tema e conteúdo das discussões. Por sua vez, a escolha pelo viés da produção cinematográfica se deu principalmente pela pouca diversidade de trabalhos dedicados a esta função. Os

5 SORLIN, Pierre. Sociologie du cinéma: ouverture pour l’histoire de demain. : Éditions Aubier Montaigne, 1977, p. 95, tradução nossa. (“1) un film est le résultat d’un travail d’équipe, où il est très difficile de reconnaître la part de chacun. 2) Il existe un « milieu du cinéma », un ensemble partiellement homogène dont les orientations, les tendances, la position dans le champ social comptent davantage que les idées de quelques personnes, même si ces personnes assument une responsabilité considérable dans les films dont elles s’occupent.”) 6 Ibidem, p. 100, tradução nossa. (“un groupe de personnes qui travaillent sur un produit detérminé (le film) dont la compétence est admise par la formation sociale à l’intérieur de laquelle elles sont insérées et qui, subjectivement, se définissent vis-à-vis de « l’ensemble de production » par la place occupé dans le processus de fabrication, vis-à-vis de la formation sociale en général par l’appartenance au groupe qui a le monopole légitime de la réalisation filmique.”) 7 Ibidem, p. 100.

13 estudos cinematográficos são comumente característicos, por exemplo, por realizarem análises fílmicas, abordarem teorias de cinema ou discutirem um determinado diretor, sobretudo, o tipo “diretor-autor”. O seu valor é indiscutível e existem certos estudos sobre Cavalcanti nessas e em outras linhas que contribuíram enormemente para o nosso trabalho. Há biografias em formatos diversos, como a escrita por Sérgio Caldieri (2005), Alberto Cavalcanti: O Cineasta do Mundo, a reunião de artigos realizada por Lorenzo Pelizzari e Cláudio M. Valentinetti (1995), Alberto Cavalcanti: Pontos sobre o Brasil, e a tese de doutorado de Norma Couri (2004), O estrangeiro Alberto Cavalcanti e a ficção do Brasil. Tais obras contribuem para uma compreensão da trajetória do cineasta na forma de panorama, apesar de cada trabalho ter sua particularidade. Outros artigos isolados ou pesquisas acadêmicas se dedicam a assuntos específicos, como a análise fílmica de Coal Face8 e o estudo sobre a “jornada pelas vanguardas europeias” de Cavalcanti9. No entanto, há uma fragilidade de estudos sobre a função do produtor, principalmente no caso brasileiro. A dificuldade de encontrarmos trabalhos dedicados ao estudo de produtores cinematográficos específicos, a fim de avaliarmos seus métodos e formas de pesquisa, é uma demonstração da necessidade de se explorar melhor este ramo dos estudos sobre o cinema. Contudo, uma obra em especial nos indicou um caminho possível para a discussão relativa ao caso de Cavalcanti. Além da relevante contribuição a respeito de sua trajetória europeia em Alberto Cavalcanti: Realism, Surrealism and National Cinemas, Ian Aitken (2000) dedica um capítulo às atividades da Ealing Studios e de seu produtor , o qual foi bastante iluminador. Os principais pontos ressaltados pelo autor sobre a influência de Balcon naqueles estúdios eram relativos ao seu poder de decisão sobre a equipe e os projetos empreendidos, bem como à manutenção de uma ordem que assegurasse a produção do ponto de vista comercial e ideológico. Além disso, Aitken faz breves resumos sobre os filmes produzidos e a recepção da crítica a seu respeito. Dessa forma, ele uni o modo de produção dos filmes com a sua existência no mercado, diante de um público, tornando aparente a

8 BARTZ, Carla Dórea. , um filme de Alberto Cavalcanti. Dissertação (Mestrado em Língua Inglesa e Literaturas Inglesa e Norte-Americana). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 2003. 9 DEMÉTRIO, Sílvio; MEDEIROS, Gutemberg. O mais estrangeiro de todos os brasileiros: Alberto Cavalcanti e sua jornada pelas vanguardas europeias, in Revista ECO-Pós. Rio de Janeiro, vol.19, n. 2, 2016.

14 complexidade do cinema em suas diferentes instâncias. Esse modo de apresentação que descrevemos serviu como uma espécie de guia no qual nos inspiramos para traçar o caminho de Cavalcanti como produtor cinematográfico no Brasil. Seguimos, então, para a pesquisa das fontes disponíveis sobre o assunto. Escolhemos priorizar as duas únicas obras escritas pelo próprio Cavalcanti, o que será justificado mais adiante. Filme e Realidade é uma obra contemporânea ao período em que o cineasta permaneceu no Brasil e, apesar dele ter se baseado nas suas experiências pessoais na Europa e no Brasil para escrevê-la, o livro se assemelha a um manual de cinema teórico. Em sua introdução, ele afirma:

A ocasião me parece realmente oportuna para a publicação desta obra, de vez que a minha difícil experiência com a Vera Cruz foi, em parte, aproveitável. Graças a ela é possível enunciar e discutir alguns dos múltiplos problemas do cinema nacional. É oportuna também porque certos críticos estranharam que no plano de criação do Instituto Nacional de Cinema, por mim estudado para o Presidente Getúlio Vargas, com vistas à reorganização de nossa indústria cinematográfica, eu não tivesse incluído o projeto de uma escola de cinema.10

A outra obra é One Man and The Cinema11, o livro de memórias do cineasta que não foi publicado. Escrito em inglês, ele pode ser lido na Cinemateca Brasileira. Diferente daquele tom mais teórico adotado em Filme e Realidade, aqui o autor conta de forma bastante pessoal suas experiências de vida, intrinsecamente ligadas ao cinema, demonstrando a importância do trabalho para si. A primeira entre diversas citações à outros autores ao longo do texto demonstra o modo como as suas memórias seriam narradas. Ela se refere a Orlando, de Virginia Woolf: “A memória é uma costureira, e caprichosa no que faz, a memória passa sua agulha pra dentro e pra fora, pra cima e pra baixo, aqui e ali. Não sabemos o que vem a seguir, ou o que virá depois.” 12 Essa perspectiva faz com que os acontecimentos não sigam um determinado padrão, apesar de organizados cronologicamente, as histórias são contadas a partir do que parece compor de forma mais intensa, e por vezes bastante afetuosa, as lembranças de Cavalcanti. É muito diferente, por exemplo, das

10 CAVALCANTI, Alberto. Filme e Realidade. São Paulo, SP : Livraria Martins Editora S.A., 1953, p. 2. 11 Idem. One man and the cinema. Introductions by Donald Richie, Henri Langlois and Jorge Amado. S.l. : s.n., 197-. 12 Tradução nossa. (“Memory is the seamstress, and a capricious one at that, memory runs her needle in and out, up and down, hither and thither. We know not what comes next, or what follows after.”)

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“Memórias de um Produtor” de Mário Audrá Jr. que se dedica especificamente a descrever o seu trabalho de produtor de cinema na Cinematográfica Maristela nos anos de 1950. Inclusive, o livro é uma fonte relevante, por remeter à mesma época do trabalho desenvolvido por Cavalcanti no Brasil, bem como por revelar as relações existentes entre os dois produtores. Evidentemente, utilizar apenas estas fontes para nossa investigação seria insuficiente diante daquela proposta já mencionada antes, na qual indicamos nosso desejo em compreender a complexidade das circunstâncias sociais que envolveram as produções de Cavalcanti. Além disso, a época na qual elas se passaram compõe um momento já bem demarcado na história do cinema brasileiro, com características estabelecidas por bibliografias que podem ser consideradas canônicas, porque influenciam quaisquer trabalhos que vieram a seguir, passíveis de grandes questionamentos. Esta condição da bibliografia básica da nossa pesquisa poderia ser, por um lado, conveniente por garantir algumas constatações consideradas “corretas” por um consenso do meio intelectual, mas por outro lado, ela nos provocou grandes inquietações por não conseguirmos encontrar fontes que fizessem um contraponto ou que propusessem outras perspectivas sobre os mesmos objetos de análise. Não é nosso objetivo suprir esta deficiência aqui, no entanto, ao mencionarmos essa nossa percepção sobre o assunto, também estamos justificando a escolha por priorizarmos aquelas fontes escritas por Cavalcanti. Através do recorte das produções do cineasta, buscamos versar um olhar sobre o cinema brasileiro da década de 1950, o qual tenta se distanciar de alguns paradigmas de bibliografias sobre a época, mas que, inevitavelmente, ainda amparam as novas pesquisas, como a nossa. Nos referimos principalmente aos trabalhos de Maria Rita Galvão (1976, 1981), sua tese de doutorado Companhia Cinematográfica Vera Cruz: A fábrica de sonhos, bem como o livro que se originou da pesquisa acadêmica, Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz, e aquele escrito em conjunto com Jean-Claude Bernardet (1983), Cinema: repercussões em caixa de eco ideológica (as ideias de “nacional” e “popular” no pensamento cinematográfico brasileiro). Como os próprios títulos indicam, eles abordam o momento da criação da Companhia Vera Cruz e o seus desdobramentos, levando em consideração uma série de depoimentos de personalidades que viveram a experiência em questão, incluindo o de Alberto Cavalcanti. A Tese de Doutorado (1976) de Galvão é um documento extenso e rico sobre a Companhia, e sua contribuição para os estudos de cinema é patente, pois

16 tornou-se uma fonte inevitável sobre o assunto. Mas vemos, ainda, mesmo que de forma muito mais sutil, é claro, indicações de uma disputa latente no meio cinematográfico que começava a se acirrar nos anos de 1950 e se prolongaria nas décadas seguintes, esclarecidas em Cinema, Estado e Lutas Culturais: anos 50, 60 e 70, por José Mário Ortiz Ramos (1983), e em Congressos, patriotas e ilusões e outros ensaios de cinema, de José Inácio de Melo Souza (2005). Assim como as produções cinematográficas e as políticas exercidas para e pelo meio do cinema demarcavam posições ideológicas conflitantes, a produção de livros de caráter historiográfico ao longo daqueles anos também serviria como baliza na defesa de certos ideais, camuflados por uma impressão de autenticidade inerente à ideia de “história”. A Introdução ao Cinema Brasileiro de Alex Viany (1993) e a Revisão Crítica do Cinema Brasileiro de Glauber Rocha (2003) são exemplos do que buscamos demonstrar. Devemos ressaltar, porém, que a profundidade dos trabalhos de Galvão é incomparável em relação às produções dos autores da geração anterior, tais como Viany e Rocha, os quais efetivamente viveram aquele período de acirramento político e ideológico no cinema dos anos de 1950 e 1960. Mas na arguição de Antonio Candido (2007) na defesa da tese de doutorado da autora, transcrita em Teresina etc13, ele ainda sugeriu a necessidade de “matizar as análises ideológicas” em relação as diferenciações operadas por Galvão, sobretudo, relativas à “cultura burguesa”:

Eu ainda diria que no caso da Vera Cruz, mas sobretudo do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), que foi a sua matriz, ocorreram mais fatos de radicalização do que aparece no seu trabalho. A sra. sabe que vários dos jovens diretores italianos do TBC (que em seguida trabalharam na Vera Cruz) eram homens de esquerda? Eles dirigiram peças que quase suscitaram problemas com a polícia. [...] Portanto, dentro desse mundo que a sra. descreve como risonho e maciçamente aderente a uma visão eufórica, limpa e polida da burguesia, houve, pela dinâmica própria da vida brasileira, muitos sinais de contracorrente.14

Uma possível reflexão a respeito disso estaria relacionada com a análise realizada pela autora sobre o curta metragem documental da Vera Cruz, Santuário. Tanto este filme quanto Painel, realizados por Lima Barreto, foram muito bem recebidos pelo meio cinematográfico da época, gerando um momento raro de

13 Cf. CANDIDO, Antonio. Teresina etc. 3 ed. Rio de Janeiro, RJ: Ouro sobre Azul, 2007. 14 Ibidem, p. 96.

17 consenso, quase que generalizado, entre os diversos grupos concorrentes. Galvão, em retrospecto, conforma os documentários à ideologia da Vera Cruz, alinhados à concepção de Cavalcanti sobre a produção documental. Prefere analisar Santuário, porque Painel ainda era “fraco” diante dos objetivos da empresa. O filme, então, é duramente criticado por seu “estetismo exagerado”, bem como pela montagem didática, que além de ser demorada, objetificava o único personagem da obra por torna-lo um mediador entre o público e as estátuas de Aleijadinho. Nesse sentido, Galvão se refere àquela produção, que na época de seu lançamento teve resultados bastante diferentes em relação aos longas-metragens de ficção da empresa, submetendo-as aos mesmos paradigmas de produção “aburguesada”, cujo objetivo era ser nacional utilizando-se da cultura brasileira apenas de forma superficial15. Mas outras pesquisas relativas à Vera Cruz foram realizadas, ora com foco na companhia de forma específica, ora no contexto mais amplo do cinema nacional. Vera Cruz – Imagens e Histórias do Cinema Brasileiro, organizado por Sérgio Martinelli (2002), apresenta tanto depoimentos de técnicos que trabalharam na empresa, quanto análises sobre o assunto realizadas por outros intelectuais, como Amir Labaki e Carlos Augusto Calil. Em Cinema e identidade nacional no Brasil 1898 – 1969, o autor Maurício R. Gonçalves (2009) realiza análises de diversos filmes do período indicado no título do livro, propondo interpretações fora do comum de filmes já estigmatizados, entre eles, Caiçara, o qual mais nos interessa. É bastante curioso, ainda, o encontro com “Aspectos do Alto Xingu” e a Vera Cruz, de Manoel Rodrigues Ferreira (1983). O autor reivindica um lugar significativo na história do cinema nacional para o seu filme documentário Aspectos do Alto Xingu, realizado em 1949, o qual teria repercutido nos meios cinematográficos na época, influenciando na criação do ambiente propício para a fundação da Vera Cruz. Outro trabalho, cujo objetivo é abordar as companhias cinematográficas fundadas na “efervescência” daquele época, é A sombra da outra – A

15 “Eis as lições do Documentarismo Inglês incorporadas ao cinema brasileiro em versão Vera Cruz. […] Cinema refletindo o povo, na sua humildade, e fazendo dele objeto digno de atenção, ao torná-lo componente de uma obra de arte. Se o preto velho é incapaz de falar por si, pouco importe: utiliza-se a sua imagem muda, e uma cantora lírica conta – ou canta – a sua história com muito mais eficiência e refinamento. Se ele mal entende a grandiosidade do que o cerca, também não tem importância: basta que se comporte com o devido respeito, tire o chapéu para cumprimentar na entrada a agradeça na saída, como um bom preto bem-educado. Zé Cristino conhece o seu lugar, e isto importa.” Cf. GALVÃO, Maria Rita. Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1981, p. 255 – 263.

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Cinematográfica Maristela e o cinema industrial paulista no anos 50, de Afrânio Mendes Catani (2002). A obra segue um esquema análogo ao de Galvão, já que ambas abordam temas parecidos, mas a abordagem de Catani não incide diretamente sobre as disputas que apresentamos acima, possivelmente porque os seus objetos, a Cinematográfica Maristela e a Kino Filmes, ocupavam espaços distintos daquele profundamente marcado pela Vera Cruz, ainda que integrassem o quadro geral de produção cinematográfica daquele momento. Paralelamente, a tese de doutorado do mesmo autor, Cogumelos de uma só manhã: B. J. Duarte e o cinema brasileiro Anhembi: 1950 – 1962, também iluminou nosso trabalho, já que optamos por pesquisar também em periódicos da época, como a revista Anhembi. Entre as outras fontes deste tipo estão a Revista Fundamentos, A Cena Muda, Cine Reporter, e de forma mais pontual, jornais como Última Hora, Diario Carioca e Manchete. As duas primeiras revistas, Anhembi e Fundamentos, representam as principais tendências culturais concorrentes do momento, enquanto A Cena Muda e Cine Reporter estariam informando as notícias e opiniões voltadas para o meio cinematográfico de forma mais ampla. Voltando a tais fontes, encontramos a possibilidade de recompor um pouco do universo social em que Cavalcanti viveu e realizou suas produções, além de encontrarmos nelas os discursos originais a partir dos quais já foram realizadas tantas pesquisas e interpretações. Quando passamos para o assunto do projeto de criação do Instituto Nacional de Cinema, o enfoque é alterado. Das companhias de cinema privadas para a iniciativa pública, Cavalcanti seguia se desdobrando nas oportunidades que lhe eram oferecidas, conforme demonstraremos ao traçarmos a sua trajetória de formação no cinema. Para introduzirmos o projeto do INC propriamente dito, uma bibliografia relativa às relações entre o estado e o cinema foram extremamente necessárias. Estado e cinema no Brasil, de Anita Simis (1996), foi imprescindível diante de nosso objetivo em abordar um projeto para criação de uma instituição estatal, bem como as obras O pensamento industrial cinematográfico brasileiro, de Arthur Autran (2013), e The film industry in Brazil: culture and state, de Randal Johnson (1987), uma vez que o desenvolvimento da indústria cinematográfica brasileira, sempre em iminência, estaria intrínseco às políticas estatais. Com isso, adentramos no projeto do INC preservado pela Cinemateca Brasileira. O conhecimento sobre o conteúdo do arquivo parece ser mínimo quando tentamos buscar discussões a seu respeito, com exceção, devemos mencionar, dos trabalhos de Simis e Autran. Logo, escolhemos por

19 apresentar o projeto nesta pesquisa, tecendo comentários a seu respeito quando necessário, assim como mencionando as relações mais próximas entre o presidente da comissão que o redigiu, Alberto Cavalcanti, e as ideias ali propostas. Com isso, pretendemos visualizar como o projeto do Instituto Nacional de Cinema foi, em parte, resultado do encontro entre um produtor de cinema e uma agência política institucional. Conforme esta apresentação, o trabalho foi divido em três capítulos. O primeiro apresenta a trajetória formativa de Cavalcanti no cinema, através de sua inserção no meio cinematográfico na França e depois na Inglaterra, tentando assim recompor a sua formação profissional, em especial, como produtor, mas também a formação de suas próprias ideias sobre o cinema. O segundo capítulo acompanha o retorno de Cavalcanti para o Brasil e o seu envolvimento em empreendimentos privados, nos quais atuou produzindo filmes. Também comentaremos um aspecto de aparente relevância na sua carreira no país: a existência de um jogo de expectativas em relação a Cavalcanti e suas novas produções. Baseado nos sucessos alcançados anteriormente na Europa, a crítica especializada, realizadores e produtores estabeleciam parâmetros altos para o resultado dos trabalhos de Cavalcanti no Brasil, nem sempre alcançados. Por fim, o terceiro capítulo é focado sobre o projeto de criação do INC e as circunstâncias que envolveram o seu desenvolvimento e recepção pelo meio cinematográfico. Ao longo de toda essa trajetória de Cavalcanti no Brasil, buscamos identificar as posições ocupadas por ele no meio do cinema nacional, bem como o significado que elas assumiam diante das particularidades daquele contexto. Em 1953, Alberto Cavalcanti lançou seu livro Filme e Realidade, cujo título poderia aludir à concepção do autor sobre o cinema, de modo geral, vinculada estreitamente ao seu desejo de representação da vida real. Mais tarde, em 1960, Paulo Emilio Sales Gomes (2016) publicava a crônica: Um mundo de ficções16, na qual ele criticava o hábito, no meio cinematográfico brasileiro, da criação de aglomerados de ideias que se tornavam consistentes e alimentavam suas próprias ilusões, estagnados pela condição de ter seu mercado ocupado pelo produto importado. Apesar dos criadores da Vera Cruz terem sido, assim como seus predecessores, guiados por ficções e terem malogrado, as aventuras industriais paulistas teriam provocado algo

16 GOMES, Paulo Emílio Sales. Op. cit. p. 55.

20 novo na consciência cinematográfica brasileira: “o gosto da realidade”17. Assim como para aquele cineasta e este crítico de cinema, a procura por uma compreensão da realidade em que se desdobraram determinados eventos na história do cinema brasileiro instigaram também esta pesquisa. Não apenas pela curiosidade sobre um ou outro fato específico do passado, mas também por considerarmos relevante a sua compreensão para um melhor entendimento de questões atuais.

17 Ibidem, p. 68 – 72.

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Capítulo 1 A trajetória formativa de Alberto Cavalcanti no cinema

Alberto Cavalcanti constituiu uma trajetória eclética ao longo de sua carreira no cinema: compôs movimentos canônicos da história do cinema mundial e dos estilos cinematográficos. A medida que essa história se formava, o cineasta, assim reconhecido nos dias atuais, também modelava sua própria carreira. Logo, ao retrocedermos na trajetória de Cavalcanti, buscamos ressaltar as experiências constitutivas dessa formação cinematográfica, com especial interesse em seu desempenho como produtor, que é o eixo norteador dessa pesquisa. Não é possível afirmar com certeza que um ou outro evento tenha determinado seu modo de pensar e fazer cinema, contudo, acreditamos que esclarecer o seu percurso poderia contribuir na compreensão a respeito deste “homem do cinema” que foi Cavalcanti. Como veremos adiante, em seus escritos o cineasta delineia com cuidado os eventos, praticamente todos relativos ao cinema, vividos em épocas e lugares diferentes, realçando aqueles que, segundo ele, teriam sido ou não determinantes em sua trajetória. Como base para a pesquisa temos como fontes primárias não apenas o seu livro Filme e Realidade, mas também outros textos, nos quais a palavra de Cavalcanti se faz presente: depoimentos, entrevistas e artigos de sua autoria. Além disso, contamos com o seu livro de memórias, intitulado One man and the cinema, prefaciado por Henri Langlois e por Jorge Amado, que nunca foi publicado, mas que está arquivado na Cinemateca Brasileira, doado à instituição por seu amigo Benedito Junqueira Duarte. A obra representa um acesso direto a Cavalcanti, comum às autobiografias, à sua perspectiva em relação a sua história de vida e sobre o seu trabalho no cinema. Sua leitura e utilização como fonte também nos parece importante por trazer a luz este arquivo pouco conhecido e lido a respeito de uma das grandes figuras do cinema mundial. Não poderíamos deixar de lado outros materiais que compõem a bibliografia fundamental a respeito de sua trajetória, escritos por outros autores, alguns cujo tema principal é o próprio Cavalcanti e outros nos quais ele é coadjuvante. Livros, dissertações, teses e artigos de pesquisadores brasileiros e estrangeiros servem como fontes complementares na medida em que contribuem na compreensão de caráter mais amplo a respeito dos lugares e meios sociais por quais o cineasta passou.

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A escolha de tais fontes para a elaboração deste capítulo, caracterizadas pelo estilo autobiográfico das memórias e pela construção de narrativas sobre o cinema e sobre a própria vida do autor por ele mesmo, coloca em evidência o problema da “ilusão biográfica” discutida por Pierre Bourdieu, sobretudo porque este capítulo se fundamenta a partir do discurso de Cavalcanti, com o objetivo de delinearmos parte de sua trajetória, concebida tal como uma “história de sua vida”. A ilusão estaria justamente em tratar essa história “como a narrativa coerente de uma sequência significativa e coordenada de eventos”18, ou seja, como se a vida do cineasta tivesse se desenrolado através de causas e consequências determinadas que o levaram de um lugar a outro, de uma posição a outra no meio cinematográfico. De certa forma a trajetória de Cavalcanti é realmente tratada, na maior parte da literatura sobre ele, como um encadeamento de eventos que, embora representem sempre alterações significativas na vida do cineasta, aparentam e por vezes até mesmo possuem conexões entre si. Possivelmente isso se deve a um desejo em dar um sentido totalizante a sua trajetória, que é, entretanto, heterogênea. Cientes de que também corremos o risco de buscar por elementos de coesão entre suas distintas experiências, levaremos a cabo o objetivo aqui proposto, compreendendo e aceitando as narrativas e histórias de Cavalcanti. Em contrapartida, não deixaremos de evidenciar momentos de descontinuidade ou de pluralidade em sua trajetória quando expostas nas mesmas fontes, o que é, de certa forma, comum no caso de Cavalcanti.

Juventude: o encontro da vocação com o trabalho no cinema

Rien que les heures (1926) foi o primeiro filme de Cavalcanti como diretor a marcar época, realizado no contexto do cinema francês dos anos de 1920. A obra foi integrada, posteriormente, ao conjunto de filmes documentários conhecidos por retratarem diversas metrópoles e suas particularidades, realizados com poucos anos de distância entre si, designados como “sinfonias urbanas”, como O homem e sua câmera (1929) de Dziga Vertov, Berlim: Sinfonia de uma Cidade (1927) de Walter Ruttman, São Paulo, Sinfonia da Metrópole (1929) de Adalberto Kemeny e Rodolfo Lustig, entre outros. Era a segunda obra que o cineasta dirigia, após Le Train Sans

18 BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP : Papirus, 1996, p. 76.

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Yeux (1926)19, e já estabelecia Cavalcanti em uma nova posição naquele meio: a de diretor cinematográfico20, sendo que ele fora introduzido no cinema como cenógrafo em produções de Marcel L’Herbier e Louis Delluc, cujo trabalho acabou estabelecendo o movimento impressionista francês. Considerando que o brasileiro se formara como arquiteto na Suíça e passara por alguns trabalhos anteriormente que teriam sido pouco prazerosos e recompensadores, conforme ele mesmo conta, a entrada no meio do cinema era a realização de um anseio antigo e pessoal, limitado por condições econômicas e pelos laços familiares. Cavalcanti escreve em suas memórias a respeito do contato com Marcel L’Herbier: “nós tivemos uma longa conversa juntos, ao fim da qual eu me senti ainda mais convencido de que minhas tendências artísticas poderiam ser colocadas todas em uso naquele campo criativo. Ao mesmo tempo, a vida me chamava para outras coisas...”21. Apenas após o falecimento de seu pai ele pode iniciar de fato sua participação no cinema. O movimento impressionista francês se desdobrava em meio a outras artes e linguagens, de modo que tal conjunto heterogêneo seria considerado, mais tarde, como a primeira vanguarda francesa. Até mesmo os cineastas tinham personalidades e estilos muito diferentes, no entanto, conseguiriam “estabelecer o importante fato de que o filme era um novo meio de expressão artística, e portanto deveria possuir características próprias, e a sua própria linguagem”22. Elizabeth Sussex, em um de seus artigos, ressalta o que teria instigado o desenvolvimento daquele cinema, levando em consideração o que o próprio Cavalcanti anunciara:

19 Em uma resenha de Filme e Realidade em Anhembi (dezembro de 1953, Ano III, Vol. XIII, nº 37) Marcos Marguliés elogia Cavalcanti e esclarece que a imagem de um homem saltando de um trem em chamas na capa do livro teria sido transposta do cartaz de Le Train Sans Yeux. 20 Pensamos no posicionamento de Cavalcanti no campo do cinema nos termos de Pierre Bourdieu ao discorrer sobre a formação da história do campo: “É a luta entre os detentores e os pretendentes, entre os detentores do título (de escritor, de filósofo, de sábio etc.) e seus desafiantes, como se diz no boxe, que faz a história do campo: o envelhecimento dos autores, das escolas e das obras é resultado da luta entre aqueles que marcaram época (criando uma nova posição no campo) e que lutam para persistir (tornar-se ‘clássicos’) e aqueles que, por seu turno, só podem marcar época enviando para o passado aqueles que tem interesse em eternizar o estado presente e em para a história.” Cf. BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP : Papirus, 1996, p.69. 21 CAVALCANTI, Alberto. One man and the cinema. Introductions by Donald Richie, Henri Langlois and Jorge Amado. S.l. : s.n., 197-, p. 43, tradução nossa (“we had a long chat together, after wich I felt even more convinced that my artistic tendencies could be put to full use in that creative field. All the same, life was calling me for other things...”). 22 GALVÃO, Maria Rita. Companhia Cinematográfica Vera Cruz: A Fábrica de Sonhos. Volume 4. Tese (Doutorado em Linguística e Línguas Orientais) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 1976, p. 726.

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Retrospectivamente, Cavalcanti estima que a própria pesquisa [de uma linguagem cinematográfica] não era o único elemento construtivo e que a atmosfera de crítica mútua também foi um deles. ‘Não sei se o ódio que tínhamos uns pelos outros não era uma boa coisa. Creio que sim. E possuíamos um trunfo decisivo. Éramos ligados por amizade a todos os grandes artistas da época, em Paris, todos os pintores, escultores, escritores. Eles gostavam de nós e nos sustentavam.’ 23

Com isso, o cineasta sugere também que o ambiente de trabalho naquele contexto, assim como a linguagem cinematográfica, estava em vias de formação. Estaria em jogo, na verdade, a ambição por certa autonomização do meio cinematográfico enquanto um campo de produção de arte independente das demais expressões artísticas, e em oposição ao cinema norte-americano, o qual já se espalhava e dominava o mercado como uma forma particular de entretenimento24. Dessa forma, a definição do cinema não mais seria reduzida ao “divertimento da multidão”. Por isso o movimento impressionista se ocupava de realizar experimentações estéticas e tinha certo preciosismo formal, por vezes relegando a narrativa e os personagens a um segundo plano. Essa alteração no foco dos cineastas para os aspectos criativos do filme implicaria também em mudanças nos processos produtivos, uma vez que, a partir de então, começava a surgir a demanda por técnicos especializados, fazendo com que aqueles considerados como meros operários viessem a se profissionalizar em determinada função.25 No entanto, quando os filmes estavam prontos, eram entregues para “certos personagens que se diziam distribuidores” 26 e os diretores não tinham qualquer retorno financeiro, fosse porque os filmes não tinham sucesso ou porque o lucro permanecia entre o exibidor e o distribuidor. Sendo assim, as circunstâncias daqueles artistas que haviam adotado o cinema como trabalho poderiam até ser favoráveis do ponto de vista criativo, mas eram economicamente insustentáveis.27

23 PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. (org.). Alberto Cavalcanti: Pontos sobre o Brasil. São Paulo, SP : Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1995, p. 321. 24 Cf. XAVIER, Ismail. Sétima Arte: um culto moderno: o idealismo estético e o cinema. São Paulo, SP : Edições Sesc São Paulo, 2017. 25 Cf. MARTINS, Fernanda A. C. Impressionismo Francês, in MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. Campinas, SP : Papirus, 2012. 26 CAVALCANTI, Alberto. Filme e Realidade. São Paulo, SP : Livraria Martins Editora S.A., 1953, p. 67. 27 Em uma entrevista realizada em 1972 por Fabiano Canosa, Cavalcanti fala sobre as diferenças entre a Vanguarda, referente a sua geração, e a Nouvelle Vague. Ele e os diretores de sua época saíram todos

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Em suas memórias Cavalcanti conta brevemente sobre a oportunidade de ter se mudado para Paris e sua incursão no mundo do cinema. Além do falecimento do pai, como já comentamos, ele indica outra particularidade que teria possibilitado a mudança e que, do ponto de vista financeiro, pode ser considerada bastante relevante. Na época, em Liverpool, Cavalcanti trabalhara no Consulado à serviço de um colega de sua família, o cônsul Dario Freire. Diante da possibilidade de partir para a França e dada a relação mais próxima com Freire, este aceitou a sua partida e ainda permitiu que continuasse recebendo seu salário, agora em Paris, durante um ano, contanto que dentro desse período o cineasta obtivesse uma posição satisfatória e que cuidasse das filhas do cônsul, que estudariam na mesma cidade. Com isso, supomos que ao menos no início de sua trajetória naquele meio instável, Cavalcanti pode contar com uma renda de origem completamente diversa daquela com que efetivamente trabalhara e com a qual, como vimos, não obtinha grandes rendimentos. O contexto nos levaria ao menos a duas questões a serem apresentadas que refletiriam na formação de Cavalcanti. A primeira se refere a realização de Le Train Sans Yeux, a qual teria interferido na concepção sobre os modos de produção do diretor iniciante:

Após uma série de demarches mal sucedidas, consegue uma co-produção franco-alemã para o projeto, e parte para Berlin afim de filmar os interiores no estúdio da co-produtora alemã. Trabalha num imenso angar onde duas outras produções estão sendo filmadas ao mesmo tempo que a sua. ‘Saltava aos olhos a diferença entre a organização industrial da cinematografia alemã e o método da improvisação [...] tão próprio da displicência francesa’. Cavalcanti se impressiona realmente com a racionalidade do trabalho, a disciplina da equipe e o rigor da administração.28

Ele ainda diz que “se orgulha de ter contribuído para a racionalização da produção cinematográfica na França, introduzindo inovações sobretudo no que diz

da técnica e tinham em comum apenas a ideia de que o cinema não devia ser algo improvisado e que deviam inventar uma linguagem cinematográfica, o que os distinguiria do fato de que os diretores da Nouvelle Vague saíram todos da crítica e eram “garotos riquíssimos que não precisavam trabalhar, com algumas exceções”. Cf. PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. (org.). Alberto Cavalcanti: Pontos sobre o Brasil. São Paulo, SP : Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1995, p. 289. 28 GALVÃO, Maria Rita. Companhia Cinematográfica Vera Cruz: A Fábrica de Sonhos. Volume 4. Tese (Doutorado em Linguística e Línguas Orientais) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 1976, p. 723 – 724.

26 respeito ao planejamento prévio das filmagens”29, o que podemos especular que tenha ocorrido em suas outras produções, já que o cineasta ainda dirigiu alguns filmes naquele contexto. É importante ressaltar o fato de que logo no início de sua trajetória no cinema e ainda bastante jovem, Cavalcanti tenha tido tal impressão a respeito dos modos de produção cinematográficos, pensando além da feitura particular do filme como obra de arte independente de uma organização mais ampla, uma vez que tivera a oportunidade de executar produções cinematográficas distintas e passíveis de comparação. Isso nos levaria a abordar a segunda questão relativa ao momento e que parece ser recorrente ao longo do percurso do cineasta no meio cinematográfico. Para Cavalcanti a possibilidade de realizar filmes não responderia apenas a um desejo latente de aplicação de suas tendências artísticas, mas seria a oportunidade de trabalhar efetivamente no cinema, tendo encontrado finalmente uma carreira que, embora não transmitisse confiança para sua família - de origem nordestina e de tradições oligárquicas30 -, nele inspirava a perspectiva de desenvolvimento em um só campo de atuação. Recaía então certo peso sobre o rapaz que, até aquela altura, não havia nem seguido o caminho tradicional dos herdeiros das grandes famílias brasileiras como a dele, nem obtido sucesso nas demais tentativas de profissionalização. Apesar de Cavalcanti ter nascido no Rio de Janeiro, em 1987, seus pais eram de famílias tradicionais da oligarquia brasileira. A mãe, Ana Olinda do Rego Rangel, era de origem pernambucana, e o pai, Manoel de Almeida Cavalcanti, de origem alagoana. Este foi um professor de arquitetura militar e matemática, de tendência positivista, na Escola Militar da Praia Vermelha no Rio de Janeiro, e muito cedo contraiu uma doença que o deixara muito debilitado. Os irmãos de Cavalcanti seguiram as carreiras tradicionais militares, enquanto ele, o caçula, não se habituara com o mesmo, quando já despertava seu interessava pelo teatro e pelo cinema. Passando do Colégio Militar para a também tradicional Faculdade de Direito, acabou sendo expulso, falhando mais uma vez. Por isso fora enviado para estudar na Europa, onde cursou Arquitetura, primeiro na Suíça e depois na França. Em 1921, Cavalcanti

29 Ibidem, p. 725. 30 Em suas memórias Cavalcanti escreve algumas vezes sobre as inquietações de sua família a respeito de seu futuro profissional e da manutenção de suas condições financeiras, reunindo-se inclusive para discutir o assunto: “they tried to find a pratical solution in keeping with my aptitudes and qualifications”. Cf. CAVALCANTI, Alberto. Op. cit., 197-, p. 42.

27 ainda tentou voltar para o Rio de Janeiro, onde montou uma sofisticada loja com modernidades parisienses, representando a Companhia das Artes Francesas, uma casa de decoração. Devido ao fracasso ele retorna à Europa, quando arruma o emprego no Consulado em Liverpool graças ao cônsul, colega de sua família. A debilidade de seu pai levou a família à decadência, sobrevivendo graças a 31 favores de outros parentes . Além da preocupação familiar com a manutenção de sua colocação social, o pai adoecido e a mãe acompanharam Cavalcanti em seu “desvio de trajetória” pela Europa e mais tarde acabaram ficando sob a sua responsabilidade, de modo que a partir de certo momento também dependia dele a estabilidade financeira da família. Apesar de contar com o impulso inicial no meio do cinema garantido pelo auxílio financeiro do colega de sua família, o cônsul Dario Freire, este o fizera sob a condição de que Cavalcanti obtivesse sucesso e consolidasse uma posição no cinema dentro de um tempo determinado, pois, do contrário, teria que retornar ao antigo trabalho burocrático no Consulado ao qual não se adaptara. Com isso em mente e observando seu envolvimento na vanguarda francesa, podemos ver, de um lado, a chance de desenvolver seus conhecimentos de cinema na prática das filmagens, ao mesmo tempo em que o cinema enquanto linguagem e técnica estava em vias de desenvolvimento. De outro lado, havia a necessidade de tornar o aprendizado e o envolvimento profissional em um trabalho efetivo que lhe provesse os recursos financeiros necessários para nele continuar. Antecipando o desenrolar da trajetória de Cavalcanti, acreditamos que ambos os lados estariam conciliados no esquema industrial descrito por ele mais tarde em seus escritos. O primeiro diria respeito aos aspectos de ordem criativa relacionados particularmente ao estatuto de arte do cinema, enquanto o segundo estaria relacionado com as condições mercadológicas de sustentação do cinema, as quais funcionariam enquanto indústria. Quando Cavalcanti critica o mercado cinematográfico norte-americano e sua poderosa indústria, por exemplo, ele não se refere particularmente ao funcionamento daquele mercado, mas sim ao “nível baixo” de seus filmes, ou seja, ao desequilíbrio entre o potencial artístico do cinema e sua organização industrial. Ainda assim, ele

31 O estudo de Sérgio Miceli, Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil (1920 – 45), possibilitou que olhássemos para a trajetória familiar dos Cavalcanti sob uma ótica mais apurada em relação ao desenvolvimento Cavalcanti naquele determinado contexto, contado com detalhes nas memórias do cineasta. Cf. MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo, SP : Companhia das Letras, 2001.

28 abre algumas exceções: “não se pode negar que os filmes de ‘gangster’ e ‘western’ estão acima do nível geral da produção de Hollywood”32. A crítica à indústria norte- americana também se deveria a sua contribuição no esfacelamento de outros mercados cinematográficos, como o francês e o inglês, e ao imaginário dos cineastas franceses da época, ávidos pela elevação do cinema de entretenimento para um cinema como arte.33 Ainda a respeito de seu trabalho na vanguarda francesa, Cavalcanti comenta em suas memórias que a recepção de sua adaptação da história de Guy de Maupassant, Yvette (1927) 34, parece retratar a incompreensão do público em torno de seu modo de realizar filmes: “A opinião do público sobre este filme foi um pouco curiosa: os intelectuais acharam que era muito comercial, enquanto pessoas preocupadas com o comércio, o consideraram muito intelectual. Como resultado, o filme não teve muito sucesso financeiro”35. Assim se revelava também a questão da disputa por uma definição do cinema como arte ou indústria, desde então característica marcante do meio. Apesar de identificarmos no cineasta uma tendência conciliadora de ambos, que poderia ser considerada mesmo como condição intrínseca da existência do cinema, no decorrer da história do cinema tal união é, sobretudo, um ponto de tensão, que ora se acirra, ora se dilui. Assim como Cavalcanti, o crítico e teórico de cinema Anatol Rosenfeld teria um “pensamento estético-cinematográfico” decorrente “de uma vivência de eventos e experiências importantes na fase áurea da configuração e sedimentação da Sétima Arte”36. Em seu texto Cinema: Arte e Indústria ele ressalta que:

No caso do cinema, bem ao contrário, o fenômeno marginal é precisamente a arte, pois as empresas cinematográficas não têm, em geral,

32 Cf. CAVALCANTI, Alberto. Op. cit., 1953, p. 31. 33 Cf. XAVIER, Ismail. Sétima Arte: um culto moderno: o idealismo estético e o cinema. São Paulo, SP : Edições Sesc São Paulo, 2017. 34 Na tese de Maria Rita Galvão, a autora faz o mesmo comentário a respeito da recepção de um filme de Cavalcanti, mas relativo a outra obra, a adaptação da farsa de Molière, La Jalousie du Barbouillé (1929): “a experiência se frustrou em dois sentidos: segundo os produtores, tratava-se de obra ‘intelectualizada demais’ para o gosto do público; para o meio cinematográfico culto, era uma manifestação a mais de que Cavalcanti se encaminhava decididamente para uma linha de produção comercial e sem interesse”. Cf. GALVÃO, Maria Rita. Op. cit., 1976, p. 727 – 728. 35 CAVALCANTI, Alberto. Op. cit., 197-, p. 67, tradução nossa (“The public’s opinion of this film was somewhat curious: the intellectuals thought it was too comercial, whereas comercially minded people considered it too intelectual. As a result, the film wasn’t very succesfully financially”). 36 ROSENFELD, Anatol. Cinema: Arte e Indústria. São Paulo, SP : Editora Perspectiva, 2002, p. 15.

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intenções estéticas. Um dos momentos essenciais de toda arte é o fato de que através dela um artista se expressa, de que ela lhe serve de expressão. Ora, a Paramount não dirá a um diretor: ‘Mr. Ford, tome aí um milhão de dólares e vá expressar-se!’ Sem dúvida, as empresas cinematográficas recorrem também a recursos estéticos. Fazem-no a modo dos comerciantes que acondicionam as suas mercadorias, antes de entrega-las ao freguês, em embrulhos bem feitos, amarrados com fitinhas cor-de-rosa ou azul-celeste. Não chegam, portanto, a se oporem a uma moderada dose de elementos estéticos, mas tais aspectos se subordinam a outros interesses, geralmente alheios à arte.37

Mas Rosenfeld ainda fala a respeito de como a liberdade irrestrita do artista seria uma ideia ilusória, recuperando na história de outras artes a produção de grandes obras sob condições específicas de encomenda, como aquelas de Virgílio, Michelangelo e Mozart. Se, por um lado, a obra é reconhecida como expressão individual de seu criador, por outro lado, a encomenda realizada através de um representante da sociedade tornaria a obra também uma expressão dela, um possível veículo de comunicação de seu contexto. Haveriam, porém, ressalvas quanto a encomenda das indústrias de cinema pois seria possível questionar a sua legitimidade enquanto porta-voz da sociedade em que estão inseridas e de suas intenções ao representá-las. Além disso, seriam indústrias do entretenimento responsáveis pela mera diversão. Mas Rosenfeld não exclui a arte de tal função: “Só uma parcela do entretenimento é arte, mas toda arte é – para aqueles que a amam – entretenimento e prazer.”38 Então, o cineasta teria uma condição dupla e ambígua enquanto artista. Primeiro, encarar a situação precária do cinema como arte, e segundo, considerar as vantagens de criar obras de arte sob encomenda. Como o próprio nome do texto de Rosenfeld anuncia, o autor se preocupa em conciliar arte e indústria no meio do cinema, o que nos parece latente também no decorrer da trajetória de Cavalcanti. Diante disso, nos chama a atenção Rosenfeld ter usado como exemplo de empresa cinematográfica a Paramount, pois, no início dos anos 1930, Cavalcanti aceitaria justamente um trabalho na Paramount francesa onde faria refilmagens de originais americanos com atores franceses e portugueses sem pretensão de alguma originalidade estética, uma vez que eram meras reproduções. Lorenzo Pellizzari esclarece as circunstâncias do momento:

37 Ibidem, p. 35. 38 Ibidem, p. 42.

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A crise econômica e o advento do sonoro chegam juntos. A primeira é inexorável, a segunda, por conseguinte, se dá muito lentamente. [...] Aos problemas de investimentos e às custosas transformações industriais acrescentam-se as hesitações ou as recusas categóricas de muitos diretores. Uma invasão em massa de filmes estrangeiros já se anuncia; será preciso contrariar através da fixação de um contingente (solução pouco provável) ou recorrendo às duplas versões, o que pelo menos tem a vantagem de criar empregos.39

Mais uma vez estavam em jogo as condições financeiras do cineasta, sempre ressaltadas também por Maria Rita Galvão no capítulo dedicado à Alberto Cavalcanti em sua tese de doutorado40. A oportunidade de trabalhar em um sistema de estúdios com melhores condições materiais de produção, sobretudo no momento da introdução do som no cinema, teria contribuído decisivamente no aperfeiçoamento técnico do cineasta. Mas as condições de reprodução às quais a realização dos filmes estava limitada, tornaria clara a necessidade do cineasta de aliar criação à técnica, o que logo tornaria aquele trabalho insustentável. Por isso devemos retomar o célebre antes de avançar na trajetória do então diretor. O ponto a ser esclarecido é relativo à uma preocupação de ordem sobretudo temática, que seria recorrente ao longo de toda a sua filmografia. No documentário o diretor explora a cidade de Paris a partir de impressões que ele tivera ao conhecê-la, um lugar de aparência diversa daquela que ele imaginara a partir de leituras que realizara anteriormente: o filme se opõe à exaltação dos suntuosos monumentos parisienses e Cavalcanti revela um olhar crítico sobre a cidade e seu meio social, tendo inclusive algumas cenas censuradas em suas primeiras exibições públicas. A introdução do filme anuncia sua abordagem:

Ce n’est pas la vie mondaine et élégante...

O que é representada por uma foto de moças bem vestidas ao pé de uma escadaria, rasgada por uma mão que adentra o quadro.

...c’est la vie quotidienne des humbles, des déclassés...

39 PELLIZZARI, Lorenzo e VALENTINETTI, Claudio M. (org.). Alberto Cavalcanti: Pontos sobre o Brasil. São Paulo, SP : Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1995, p. 24. 40 Cf. GALVÃO, Maria Rita. Op. cit., 1976.

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Ele anuncia que pintores de todo o mundo viam a cidade e tentavam traduzi-la em suas pinturas, mostradas uma a uma no filme,

mais seule une sucession d’images peut nous en restituer la vie.41

Com isso Cavalcanti não só diferencia o cinema da arte da pintura e de sua expressividade, como apresenta uma função específica do cinema, a qual suspeitamos que seria também uma característica de sua própria filmografia, por vezes determinante em sua trajetória: a capacidade de “restituir” a realidade ao exibir sucessivas imagens em movimento, uma função que extrapolaria a qualidade técnica do cinema, sendo então uma função social. Seu filme não trata de uma narrativa convencional, mas propõe ao espectador que ele acompanhe o decorrer da vida cotidiana na cidade de Paris, através de seus moradores, suas obrigações diárias e seus momentos de lazer. E além destes, daqueles cuja condição material os mantêm à margem do convívio social. A experiência estética de Cavalcanti, naquele contexto de liberdade artística no cinema francês, seria justamente ressaltar a expressão da realidade social no cinema, revelando o potencial poético da vida comum. Haveria ainda a forte influência da obra O Encouraçado Potemkin (1925) e de seu diretor Sergei Eisenstein entre os cineastas de vanguarda daquela época. Ele, por sua vez, também expressaria conhecimento sobre o próprio Cavalcanti e suas realizações. Os filmes soviéticos teriam impactado o diretor brasileiro pelo uso de um registro que não era restrito ao documental, mas que mesmo assim eram vistos como documentos. Esta capacidade de “harmonizar ficção e elementos da realidade”42 estaria presente em Rien que les heures e permearia grande parte das produções de Cavalcanti como diretor e como produtor. A filmografia do cineasta seria marcada pela expressão da “realidade”, tanto através de mecanismos documentais de captação de imagens quanto através da recriação delas em formato ficcional, fosse em filmes documentários ou de ficção. O diretor explicita no início da sinfonia urbana parisiense a capacidade do cinema em restituir a vida, de modo que mesmo uma ficção poderia conter elementos

41 Tradução livre das cartelas do filme: Não é a vida mundana e elegante… / é a vida cotidiana dos humildes, dos desclassificados… / mas apenas uma sucessão de imagens pode nos restituir a vida. 42 DEMÉTRIO, Sílvio; MEDEIROS, Gutemberg. O mais estrangeiro de todos os brasileiros: Alberto Cavalcanti e sua jornada pelas vanguardas europeias, in Revista ECO-Pós. Rio de Janeiro, vol.19, n. 2, 2016, p. 62.

32 documentais e um documentário poderia se utilizar de elementos da ficção que contribuíssem na construção de determinada realidade. Essa característica estaria ligada diretamente à função social do cinema que apresentamos anteriormente, e que se refere também ao conteúdo do filme – o próprio cineasta afirmaria que “Como produtor e como diretor, sempre me preocupei com o conteúdo social dos filmes que tenho realizado”43.

A posição de produtor: consolidação e reconhecimento no meio cinematográfico

Prosseguir na trajetória de Cavalcanti no cinema é também dar continuidade a discussão sobre a sua função social, pois a posição que ele assumiu em seguida tinha como condição uma compreensão a respeito das funções do filme e de seu formato, relacionados com o novo ambiente de trabalho na General Post Office Film Unit. Em decorrência do aperfeiçoamento técnico relativo principalmente ao cinema sonoro nos estúdios da Paramount, o cineasta conta que recebeu uma proposta de trabalho de John Grierson44, autoridade máxima daquele órgão estatal inglês, interessado no uso do som nos filmes desenvolvidos por sua unidade. Grierson era um escocês formado em filosofia moral e metafísica, especializado em ciências sociais e que ganhara uma bolsa de estudos nos Estados Unidos, onde realizou pesquisas em Hollywood sobre opinião pública, especialmente voltada para as preferências cinematográficas do público norte-americano. De retorno à Inglaterra, procurou “os meios para colocar em prática um projeto de educação pública através do cinema”45, sendo que este lhe parecia o meio mais conveniente para sua realização.

Grierson cercou-se de um pequeno círculo social que treinou e tutelou a respeito da arte de purposive filmmaking. Este grupo veio a se chamar, e ficou conhecido como o movimento documentário Britânico. No coração daquele movimento estava um pequeno número de jovens de classe média e alta que caíram nos feitiços da personalidade e ideologia de Grierson. [...] Outra seção dentro do movimento consistia em cineastas que eram comprometidos com as políticas e ideias de Grierson apenas enquanto este exercia alguma autoridade sobre eles. Os mais importantes membros deste

43 CAVALCANTI, Alberto. Filme e Realidade. São Paulo : Livraria Martins Editora S.A., 1953, p. 229. 44 Cf. Ibidem, p. 69. 45 DA-RIN, Silvio. Espelho Partido. Rio de Janeiro, RJ : Azougue Editorial, 2006, p. 55.

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grupo consistiam em Alberto Cavalcanti e seus protegidos, Harry Watt e . Estes cineastas se tornaram importantes quando herdaram o controle sobre a General Post Office Filme Unit no fim dos anos de 1930.46

Na origem da GPO, Grierson organizava a produção praticamente de forma autônoma e dificilmente aceitava subordinar-se às diretrizes indicadas por conselhos administrativos superiores. Apesar de choques causados por conflitos internos de ordem burocrática, havia um consenso em relação a ideologia vigente naquela unidade, de modo que os filmes cumpririam uma finalidade educativa e social, condição primordial do projeto de Grierson. Ele mesmo teria sido o responsável pela criação e pelo desenvolvimento inicial desse tipo de filme na Inglaterra, cuja produção se originou no Empire Marketing Board e teve continuidade em sua dissolução na General Post Office Film Unit47. Tais produções serviam como um plano de relações públicas, abordando temas através de documentários curtos que serviriam como propaganda indireta dos serviços do estado e como estratégia de engajamento da sociedade. Quanto ao modo de produção do Post Office, Grierson ocupava o cargo de maior hierarquia, sendo o produtor. Entre os demais membros de sua equipe não havia uma distinção hierárquica tão bem delineada, de modo que o trabalho era desenvolvido majoritariamente de forma coletiva, por mais que cada um assumisse determinada função em cada filme. Em relação às condições materiais oferecidas pelo trabalho, sabemos que o salário era muito baixo. O imaginário da equipe, porém, se baseava na liberdade de criação que tinham e na possibilidade de aprender e experimentar em seus filmes48. Seria interessante lembrar que Grierson recrutara

46 SWANN, Paul. The British Movement, 1926 – 1924. Cambridge : Cambridge University Press, 1989, p. 16, tradução nossa. (“Grierson surrounded himself with a small coterie whom he trained and tutored in the art of purposive filmmaking. This group came to call themselves, and remain known as the British documentary movement. At the heart of this movement were a small number of young middle-and-uper-class people who fell under the spell of Grierson’s personality and ideology. [...] Another section within the movement consisted of filmmakers who were commited to Grierson’s policies and ideas only while he exerted authority over them. The most important members of this group consisted of Alberto Cavalcanti and his protégés, Harry Watt and Humphrey Jennings. These filmmakers became important when they inherited control of the General Post Office Film Unit in the later 1930s.”) 47 Para mais informações a respeito da inserção de Grierson no Empire Marketing Board, Cf. DA-RIN, Silvio. Op. cit. 48 Cf. BARTZ, Carla Dórea. Coal Face, um filme de Alberto Cavalcanti. Dissertação (Mestrado em Língua Inglesa e Literaturas Inglesa e Norte-Americana). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 2003, p. 38

34 jovens ainda estudantes ou recém formados em universidades como Cambridge e Oxford, intelectuais assim como ele49. De origem distinta, Cavalcanti revelou que durante essa época de sua vida ele vivera praticamente na miséria e o que recompensava era a possibilidade de explorar a linguagem do cinema. Supomos que a organização coletiva do trabalho estava relacionada com o número pequeno de membros efetivamente contratados pela unidade e pelo caráter de pesquisa e aprendizagem presente nas produções. Por mais que Cavalcanti fosse, entre os seus colegas de trabalho, o único cineasta com uma trajetória no cinema reconhecida, tendo inclusive mais idade que os demais, ele se dedicaria tanto quanto os outros a cumprir diferentes funções, relativas à montagem e ao som principalmente, e não apenas aquela de maior prestígio, a saber, de direção. Mas a sua experiência certamente era atraente e acabou servindo como exemplo aos jovens com quem trabalhava lado a lado, especialmente porque havia a intenção de formar técnicos através da produção dos filmes. A contratação do cineasta foi considerada a mais importante vinda da indústria comercial, devido a sua passagem pelos estúdios franceses da Paramount, de modo que isto teria um efeito decisivo na qualidade dos filmes realizados naquela Film Unit 50. Por essas razões, Cavalcanti apontaria em seu livro que, em um dado momento, “Uma divisão de tendências então se precisa: Grierson acentua o estilo direto, funcional, enquanto que, em tôrno de mim mesmo, se agrupam os fieis à pesquisas, experimentando, até os limites de um certo preciosismo, com o som e a côr.”51 Tal contextualização aponta para questões substanciais relativas ao trabalho desenvolvido por Cavalcanti. Assim como o meio cinematográfico da vanguarda francesa onde o cineasta iniciou sua trajetória passara por um processo de formação de uma linguagem autônoma, o documentário britânico dava também seus primeiros passos em direção a uma história própria desse estilo cinematográfico. Ou seja, a concepção de documentário tal como a entendemos no presente começaria a se formar precisamente naquele momento, devido inicialmente às produções de Robert Flaherty, as quais foram uma chave de entrada para o trabalho desenvolvido por , e também por Alberto Cavalcanti. A manifestação de Richard Barsam transcrita

49 Cf. Ibidem, p. 31. 50 Cf. SWANN, Paul. Op. cit., p. 66. 51 CAVALCANTI, Alberto. Op. cit., 1953, p. 72.

35 abaixo, acerca das três personalidades, adianta algumas disputas relativas às nuances da definição do filme documentário:

Talvez a diferença mais importante seja a ênfase de Cavalcanti na inter- relação entre os elementos fundamentais do filme documentário: o social, o poético e o técnico. Grierson provavelmente insistiria que o social era mais importante, e Flaherty que o poético era o mais importante; é a medida do lugar de Cavalcanti no desenvolvimento do filme de não-ficção que enfatiza que todos os três elementos são importantes.52

Houvera um conflito sobre a definição daqueles filmes: Cavalcanti tinha a impressão de que a palavra “documentário” defendida por Grierson era imprópria para uma arte tão nova e moderna quanto o cinema, pois remetia às coisas do passado, cobertas de poeira. A sua sugestão era usar o termo “neo-realismo”, mais tarde adotado pelos cineastas italianos no pós-guerra para designar o movimento que ampliaria as alternativas nos modos de produção e de expressão da linguagem cinematográfica. Apesar disso, Cavalcanti reconheceu que o uso da designação “documentário” estaria relacionada não apenas com o tipo de filmes que realizavam, mas com o meio em que os filmes eram realizados: a dureza da palavra era uma isca para o mundo oficial do qual eles dependiam53. Além da questão da designação, Cavalcanti e Grierson tinham concepções distintas a respeito do filme documentário. A finalidade social e didática atribuída por Grierson aos filmes fazia com que o seu caráter artístico fosse relegado a um plano secundário. A atuação de Cavalcanti alteraria tal distinção: o filme documentário deveria ser concebido e realizado como qualquer outro filme de ficção, de modo que a criação artística não deveria ser afetada.

Alberto Cavalcanti e Harry Watt ficaram com o Post Office Film Unit. Eles nunca foram parte do grupo interno de Grierson. Eles, junto das mudanças

52 BARSAM, Richard. The Non-Fiction Film. New York : P Dutton, 1973, apud DEMÉTRIO, Sílvio; MEDEIROS, Gutemberg. O mais estrangeiro de todos os brasileiros: Alberto Cavalcanti e sua jornada pelas vanguardas europeias, in Revista ECO-Pós. Rio de Janeiro, vol.19, n. 2, 2016, p. 64, tradução nossa. (“Perhaps the most important difference is Cavalcanti’s emphasis on the inter- relationship among the fundamental elements of documentary film: the social, the poetic and the technical. Grierson would probably insist that the social was more important, and Flaherty that the poetic was more important; it is the measure of Cavalcanti’s place in the development of non-fiction film that the emphasizes all three elements being important.”) 53 Cf. CAVALCANTI, Alberto. Le mouvement néo-réaliste en Anglaterre. In LAPIERRE, Marcel. Anthologie du Cinema. La Nouvelle Édition : França, 1947, p. 273.

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no controle burocrático da unidade cinematográfica, levariam a uma mudança fundamental na sua abordagem ao cinema. [...] Cavalcanti logo seria nomeado produtor sênior em seu lugar [J. B. Holmes], e Holmes se juntara à Watt como diretor sênior. Este triunvirato controlou a produção na unidade cinematográfica até que ela fosse tomada pelo Ministério de Informação no começo da guerra. Sobre a sua orientação, houve uma quebra completa com o resto do movimento do documentário. Também há indicações de hostilidade entre os campos de Cavalcanti e de Grierson naquela época.54

Outra diferença entre ambos era relativa à exibição do produto final. O fato da produção de Grierson servir como utilidade pública com objetivos educacionais, com filmes em formato documental, fazia com que a distribuição fosse voltada principalmente para escolas e meios de exibição não-comerciais. Além disso, havia a crença de que as obras não seriam atraentes o suficiente para competirem com filmes em cartaz em cinemas comerciais, e os próprios exibidores não acreditavam que seria apropriado abrirem suas portas para produtos de propaganda do estado. Contudo, mais uma vez Cavalcanti discordaria de tal distinção sobre os filmes realizados pela GPO. Assim como ele defendia que deveriam ser concebidos e realizados a partir de todas as potencialidades narrativas e formais que as tecnologias do cinema ofereciam, sobretudo quando havia certa liberdade para a experimentação, acreditava que os filmes também deveriam ser distribuídos e exibidos como produtos cinematográficos, ou seja, em salas de cinema comerciais. Tal opinião de Cavalcanti parece indicar a produção cinematográfica como um meio específico, o qual poderia ter as mais diversas funções e destinos, mas que sendo produto da arte do cinema, deveria ser pensada, de modo geral, em sua realização, distribuição e exibição enquanto tal. Em um capítulo de seu livro, dedicado à contribuição britânica ao filme documentário, Cavalcanti defende que:

O público, apesar dos preconceitos dos distribuidores e exibidores, aclama êste gênero de filmes. Só na Grã-Bretânha mais de mil cinemas passam , e os espectadores aplaudem longamente, enquanto o filme

54 SWANN, Paul. Op. cit., p. 80, tradução nossa. (“Alberto Cavalcanti and Harry Watt both stayed with the Post Office Film Unit. They had never been part of Grierson’s inner circle. They, along with the changes in the bureaucratic control of the film unit, were to bring about a fundamental change in its approach to filmmaking. [...] Cavalcanti was soon appointed sênior producer in his place [J. B. Holmes], and Holmes joined Watt as a senior director. This triumvirate controlled production at the film unit until it was taken onver by the Ministry of Information at the beggining of the war. Under their guidance, there was a complete break with the rest of the documentary movement. There are also indications of hostility between the Cavalcanti and Grierson camps dating from this time.”)

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comercial, que o acompanha, termina numa indiferença e num silêncio completos.55

Independente das disputas entre essas personalidades, haveria ainda outra indagação, agora relativa ao caráter institucional da General Post Office Film Unit. Se a princípio o órgão estatal era quase uma extensão de John Grierson e de suas políticas cinematográficas, com o passar do tempo a GPO se tornaria independente de seu criador. Desde a sua criação já haviam conselhos institucionais que orientavam a administração das produções e a organização da equipe responsável56. Poderíamos compreender então, que a unidade funcionava sob um fluxo de encomendas de filmes cujas abordagens temáticas não eram tão específicas, mas suficientemente direcionadas, de modo que, a produção cinematográfica naquele contexto poderia ser, ao que parece, limitada. Diante disso, não seriam os filmes produtos confeccionados a partir de um mesmo molde sem que houvesse a possibilidade de criação sobre as narrativas e as imagens? A atuação de Cavalcanti e de seus colegas provaria justamente que era possível desenvolver um cinema sob as condições de encomendas e ainda construir uma linguagem de potencial artístico diferenciado, mostrando que as relações entre arte e encomenda, entretenimento e educação social, poderiam se misturar e se confundir constantemente. Por esse motivo o cineasta seria lembrado pela capacidade em equilibrar os elementos fundamentais do documentário: a poesia, o social e a técnica, como mencionado anteriormente. Naquele contexto, Cavalcanti chegaria a ser considerado até mesmo um “esteta”. Ele defende o teor técnico de seu trabalho da GPO, mas a sua forte preocupação com o “conteúdo social” de seus filmes parece entrar em conflito com essa sua tendência. Poderíamos acreditar que essa dedicação à técnica teve espaço nesse momento justamente porque as diretrizes ligadas ao conteúdo das obras já estavam dadas. Mas na realidade, em sua trajetória, o cineasta parecia se equilibrar constantemente entre ambos os lados, nos quais a atenção seria voltada ora para questões de ordem temática e ora para as de ordem formal, justamente porque o movimento entre eles seria muito mais natural e complementar do que acusa a própria divisão feita aqui. Possivelmente, este movimento seria um dos fatores da poesia que envolve o cinema de Cavalcanti. Um modo de ver isso em seu trabalho, é notar que o

55 CAVALCANTI, Alberto. Op. cit., 1953, p. 74. 56 Cf. SWANN, Paul. Op. cit.

38 aprimoramento da técnica servia ao aperfeiçoamento da expressão da realidade tão almejada por ele, o que é patente em filmes como Coal Face (1935) e Night Mail (1936). O cineasta foi responsável pela direção, roteiro e som em Coal Face. Pelo conjunto de funções exercidas e pelo reconhecimento do filme na história do cinema, ele nos parece exemplar a respeito do trabalho desenvolvido por Cavalcanti na GPO Film Unit. A obra tem como motivo apresentar e caracterizar o funcionamento da principal indústria de base do Reino Unido, a mineração do carvão. O público toma conhecimento a respeito da atividade carvoeira, de sua complexidade e de seus riscos, mas, sobretudo, de sua importância para a nação. A função didática é clara, mas o filme não se encerra aí. Ele foi realizado com o uso de imagens de arquivo de caráter documental, filmadas em campo, e contou também com algumas filmagens feitas em estúdio por Cavalcanti, complementares para a construção da narrativa.

Com esta idéia e algumas imagens já filmadas, ele escreveu um roteiro, organizou o material, utilizou os recursos que havia e sua experiência para ir além de um mero filme educativo. As cenas previamente escolhidas se alinharam com outras, tendo como grande fio condutor o som na forma da música de , dos versos de Auden, da narração e dos inúmeros efeitos sonoros ali incluídos no processo de finalização.57

O som do filme teria um impacto decisivo tanto na concepção do filme, dada a contribuição do músico e do poeta apresentados acima, quanto em sua recepção enquanto uma obra cinematográfica com linguagem particular naquele contexto. A utilização do som no filme se diferenciava da adoção comum da tecnologia recém chegada ao cinema, primeiro porque se tratava de um filme não-ficcional, de linguagem sem aspecto cristalizado ainda, e segundo porque no filme ficcional o som respondia sobretudo ao desejo imediato de correspondência e sincronia entre a imagem e seu respectivo som. Além disso, os elementos formais e a montagem dão abertura para reflexões mais complexas a respeito da indústria mineradora e de seus trabalhadores. A pesquisadora Carla Dórea Bartz realizou uma análise detalhada sobre Coal Face, na qual ressaltou os principais elementos da obra e realizou interpretações interessantes sobre a circularidade e o trabalho. Estes temas parecem se relacionar

57 BARTZ, Carla Dórea. Op. cit., p. 47.

39 bastante com o cinema de Cavalcanti. O documentário começa e termina com a indicação do motivo de sua própria realização:

Coal mining is the basic industry of Britain58

A sentença reafirma a importância da indústria e indica a continuidade de todo o processo que não termina junto ao filme. A noção de circularidade estaria relacionada com tal estratégia da montagem, uma repetição indicativa da soberania da indústria e do discurso econômico inerente a ela. Além disso, diversos motifs apresentam a mesma noção, tais como máquinas, roldanas e rodas em movimentos constantes, ritmados com a banda sonora, e que já eram marcas da modernidade desde as experiências surrealistas na França. O funcionamento das máquinas ainda poderiam ter um sentido metalinguístico, dada a sua semelhança com o das próprias máquinas de captação e de projeção do cinema. Em relação à representação do trabalho, a ausência de um teor crítico mais claro não coincidia com as posições políticas do grupo de documentaristas e do caráter social de suas produções. Isso se explicaria principalmente por sua subordinação a um órgão estatal, que não permitiria críticas fortes e explícitas contra si. Contudo, tanto Cavalcanti quanto Grierson exaltam a sua contribuição em terem colocado a classe trabalhadora nas telas do cinema, cuja imagem era comumente usada como alívio cômico em função de outras narrativas, dando a ela agora um aspecto heroico e dignificante.

Neste sentido, o choque entre [...] uma roldana girando e o rosto em close up de um homem, vai além da mera relação a máquina x o homem. Neste contexto há uma simbiose entre o homem (herói) e a máquina (representante do progresso) e como resultado desta combinação há um ideograma que é a própria definição de modernidade. Esta é uma relação de dependência: a estrutura econômica depende da interação perfeita entre o homem e a máquina. Este é o ideograma criado a partir do contraste entre essas duas imagens.59

Coal Face então representaria a possibilidade de união entre a realização de um filme com os propósitos estabelecidos pela Film Unit e o exercício de criação da arte cinematográfica a partir das técnicas disponíveis, sobretudo relativas a montagem e ao som. Cavalcanti teria sido responsável também pelo tratamento sonoro de Night

58 Tradução livre da cartela: A mineração de carvão é a indústria de base da Grã-Bretanha. 59 BARTZ, Carla Dórea. Op. cit., p. 91.

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Mail, filme a respeito do complexo funcionamento dos correios e sua efetividade. A obra seria meramente descritiva através da narração do caminho que uma carta percorre para chegar ao seu destino se não fosse pelo aprimoramento da trilha sonora, na qual inseriram, por exemplo, os versos de W.H. Auden, em diálogo direto com o ritmo da montagem. O documentário tomava também a forma de arte. Uma última, mas importantíssima, consideração a respeito da GPO Film Unit e de sua contribuição na trajetória de formação de Cavalcanti deve ser sobre a sua tomada de posição como produtor. Todas as demais funções que o cineasta realizara no contexto britânico já faziam parte de seu repertório profissional, ainda que as condições de trabalho tivessem sido distintas em cada experiência, nas vanguardas francesas e na Paramount. Ao assumir o cargo de produtor, Cavalcanti ocupava uma nova posição no meio cinematográfico, a única posição que, em certas circunstâncias, estaria acima daquela do diretor. Nas circunstâncias de produção da GPO, inspirada por um projeto em escala tal como de uma indústria, a hierarquia era personificada sobretudo pela figura do produtor. A explicação para que ele pudesse ocupar essa posição poderia estar justamente na sua trajetória no meio cinematográfico. Seu conhecimento acerca das funções de cada integrante de uma equipe e sua devida importância fora obtido através de experiência própria, tornando Cavalcanti em um produtor capacitado para liderar o trabalho de organização institucional voltada para produção. Se enquanto diretor de cinema ele já havia acumulado uma filmografia significativa com obras de prestígio, como produtor ele ainda percorreria um caminho marcado por êxitos e fracassos, o que não o impediria de continuar trabalhando incansavelmente com a produção cinematográfica. Um pouco antes de voltar para o Brasil, em 1947, Cavalcanti publicou um texto no livro Working for the films, cujo tema era o trabalho do produtor. Além da descrição pragmática a respeito dos deveres de tal cargo, o autor expressa sua impressão sobre como seria a formação adequada de um produtor de cinema. Dada a grande responsabilidade do profissional e a sua necessidade de compreensão geral relativa a todos os ramos da realização fílmica, Cavalcanti acredita que os jovens deveriam passar por escolas, usando o Institute des Hautes-Etudes Cinematographiques na França como exemplo, o único lugar sobre o qual ele tinha conhecimento que oferecia cursos específicos de produção fílmica. Ele esperava que algo parecido logo fosse criado na Grã-Bretanha, uma escola na qual os melhores homens estariam entre aqueles que escolhessem tornar-se produtores:

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A escolha de homens-chave depende da vocação dos escolhidos. Então é um imperativo que a atuação do produtor deve ser bem esclarecida. Depois a escola daria aos jovens produtores não apenas um repertório de conhecimento teórico e habilidades técnicas, mas também de apreciação de aspectos estéticos e históricos [...] De tal escola, se espera que lidem com problemas sociais e éticos conforme eles atinjam o produtor cinematográfico.60

Apesar de sua expectativa, até aquele momento a realidade era que os produtores britânicos tinham como formação o trabalho em diferentes departamentos do cinema, assim como ele mesmo teve em sua carreira. Ou seja, a formação dos produtores em questão se dera na prática durante anos de experiência no estúdio específico que ele usa como referência para o texto, os Ealing Studios. Então apesar de conceber as condições ideais de aprendizado pelas quais se formaria um produtor, ele explicita que a prática, na verdade, era outra. Ele não deixa, porém, de estabelecer as premissas necessárias para que haja sucesso nesse processo que se efetivava.

Se adicionar ao conhecimento especializado sobre um departamento, a compreensão geral de toda a atividade dos estúdios de cinema, terá uma ideia grosseira do que um produtor precisa. E é por isso que eu considero que apesar de um diretor poder aprender seu trabalho em dois ou três anos, um produtor, hoje em dia, leva ao menos cinco.61

A experiência indispensável à formação de um produtor poderia ser demonstrada pela própria trajetória que Cavalcanti percorreu até alcançar a posição, como dissemos anteriormente. O período de trabalho na General Post Office Film Unit como produtor se encerraria após a unidade passar a servir, durante a Segunda Guerra Mundial, ao Crown Film Unit, “uma ramificação do Ministério da Informação encarregada de realizar obras de propaganda de guerra e de instrução para defesa

60 CAVALCANTI, Alberto. The Producer. In BLAKESTON, Oswell (org.). Working for the films. Michigan : The Focal Press, 1947, p. 67 – 68, tradução nossa. (“The choice of key men depends on the vocation of the chosen. So it is imperative that the part the producer has to play should be set forth clearly. Then the school would give young producers not only a background of theoratical knowledge and technical skill, but also an appreciation of aesthetic and historical [...] aspects. Such a school, one hopes would deal with social and ethical problems as they affect the film producer.”) 61 Ibidem, p. 67, tradução nossa. (“If you add to the specialised knowledge of one department, a general understanding of every other activity in the film studios, you’ll have a rough idea of what a producer needs. And this is why I consider that whereas a director might be able to learn his job in two or three years, a producer nowadays requires at least five.”)

42 civil”62. Ele teria se ocupado do cargo por pouco tempo, pois recebera um convite do produtor Michael Balcon para trabalhar na Ealing Studios, companhia cinematográfica de caráter comercial, onde ele praticaria tanto a função de direção quanto a de produção. Em um texto sobre o período, Pellizzari afirma que “Ao obter a colaboração de Cav, Balcon possuía um duplo objetivo: assegurar a presença de um diretor-produtor que sabia coordenar o inevitável setor dos filmes de propaganda da guerra, e reenviar à ficção um autor que já deu provas no passado.”63 Seria justamente a vasta experiência do cineasta em diferentes funções que o tornaria atraente para ocupar o cargo. Neste novo cargo, Cavalcanti produziria principalmente documentários, e dirigiria filmes de ficção comerciais para entretenimento do público, como Champagne Charlie e The Life and Adventures of Nicholas Nickleby. O cineasta conta em suas memórias sobre a necessidade de realização de tais filmes na época, uma vez que os espectadores estariam saturados com tanto conteúdo patriótico e bélico ocasionado pela Segunda Guerra Mundial64. O trabalho na Ealing Studios seria representativo do funcionamento de uma indústria cinematográfica em sua relação com o público, pois mostra como a produção estava condicionada às necessidades do contexto. Por um lado, filmes documentais que contribuíssem na manutenção de um imaginário nacionalista para fortalecimento do país durante a guerra, e por outro lado, filmes ficcionais de entretenimento que aliviassem o público das experiências provocadas pelo momento. Cavalcanti teria adquirido experiência de trabalho em estúdios desde o início de sua carreira, como vimos, na realização do filme Le Train Sans Yeux e nas refilmagens a serviço da Paramount francesa. A passagem pela indústria cinematográfica estabelecida na Inglaterra, contudo, teria ainda mais contribuições em sua carreira, levando em conta agora a influência que o contexto da época exercia sobre o meio cinematográfico. Quando se lembra da época ele diz que “na vida de um diretor de cinema, a maior parte de filmes com que eles se compromete é o resultado de proposições feitas em circunstâncias acidentais. O número de filmes que ele sente

62 PELLIZZARI, Lorenzo. O sonoro, a Paramount e o cinema inglês (1929 – 1949). In PELLIZZARI, Lorenzo; VALENTINETTI, Claudio M. (org.). Alberto Cavalcanti: Pontos sobre o Brasil. São Paulo, SP : Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1995, p. 33. 63 Ibidem, p. 33. 64 Cf. CAVALCANTI, Alberto. One man and the cinema. Introductions by Donald Richie, Henri Langlois and Jorge Amado. S.l. : s.n., 197-, p. 84.

43 que pode e deve fazer e que permanecem por nascer é muito maior...” 65 . A compreensão a respeito do trabalho do cineasta em relação a diversas circunstâncias limitadoras torna-se evidente, ao contrário da ideia de que ele responderia apenas aos seus próprios anseios de criação individual. Isso estaria relacionado também com o que Cavalcanti diz a respeito das responsabilidades que os profissionais daquele campo teriam em suas mãos: “Produtores, diretores e roteiristas devem sempre lembrar de que carregam a esmagadora responsabilidade pelo conteúdo e valor social dos filmes.”66 Dessa forma, ele lembra da necessidade do comprometimento dos profissionais do cinema em relação ao resultado de seu trabalho, do âmbito particular da criação da obra, para em seguida existir perante um público e um mercado com determinadas demandas, com os quais os técnicos teriam grande responsabilidade. Certamente, os conflitos mundiais provocados pela Segunda Guerra criavam condições ainda mais restritas às quais a produção cinematográfica se adequaria, mas também evidenciam esse compromisso com o conteúdo e valor social dos filmes, uma preocupação típica de Cavalcanti, como vimos, desde seus primeiros trabalhos no meio cinematográfico. Devemos lembrar ainda da diferença estabelecida pelas relações de trabalho no esquema industrial do cinema. Diferentemente da multiplicidade de funções exercidas pelos integrantes das produções da GPO Film Unit, nos estúdios da Ealing havia um grau de profissionalização determinante na segmentação dos técnicos e especialistas. Apesar disso, a produção cinematográfica teria como uma de suas principais características o fator da coletividade do trabalho, enfatizado por Cavalcanti67. A organização complexa de planejamento e realização dos filmes demandaria profissionais especializados que trabalhariam tanto de modo individual, em relação às suas diferentes funções, quanto de modo coletivo, para articularem as diversas partes a fim de construírem a obra final. Diante das experiências do cineasta, nos deparamos com diferentes possibilidades de funcionamento de uma produção.

65 Ibidem, p. 93, tradução nossa (“in the life of a film diretor, the majority of the films he actually undertakes is the result of propositions issued from acidental circumstances. The number of films he feels he can and must do and which remain still born is much larger...”). 66 CAVALCANTI, Alberto. The Producer. In BLAKESTON, Oswell (org.). Working for the films. Michigan : The Focal Press, 1947, p. 68, tradução nossa (Producers, directors and screen-writers must always remember that they carry the added and over-whelming responsability of the social content and value of pictures.”). 67 PELLIZZARI, Lorenzo; VALENTINETTI, Claudio M. (org.). Alberto Cavalcanti: Pontos sobre o Brasil. São Paulo, SP : Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1995, p. 285

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Sobre o período na avant-garde francesa, ele recorda que cada diretor organizava sua produção a sua maneira e quando ela chegava ao fim, buscavam distribuidores pouco criteriosos que aceitavam de tudo, sem o compromisso, porém, de efetivamente exibirem os filmes. Cavalcanti acreditava que a incerteza e a falta de organização eram extremamente prejudiciais ao cinema francês e em nada teriam contribuído ao seu desenvolvimento. Por isso o cineasta lamentava a ausência de alguém como John Grierson no movimento: “É este produtor, ou na falta de uma personalidade dominante, um grupo de produtores, que sempre faltou na França.”68 Se na GPO Film Unit as produções eram realizadas em um formato predominantemente coletivo, a figura de Grierson como produtor representava a presença de uma hierarquia que era fundamental para que o restante do trabalho, sobretudo, aquele de natureza criativa, pudesse ser concebido. Dessa forma, o produtor tornaria possível a execução de um filme que poderia nascer como um projeto individual, contanto que fosse mantido o funcionamento contínuo de sua cadeia produtiva, com a realização de diversos filmes com trajetória garantida até uma sala de exibição. Esse modo de produção ideal seria característico de um estúdio cinematográfico tal como o da Ealing Studios. A hierarquização e a segmentação decorrentes do sistema industrial não inibiriam, como já indicamos, a existência da coletividade do trabalho. Na verdade, por mais que exista uma hierarquia presente nesse sistema, ela também pressupõe a coletividade necessária para a realização de um trabalho em equipe. Ao falar sobre o diretor de cinema em seu livro, por exemplo, Cavalcanti critica a caricatura criada sobre essa figura, colocada sobre um pedestal no qual os demais técnicos, imprescindíveis para a produção, ficam obscurecidos. Ele reconhece a existência de diretores cujo trabalho teria evoluído em relação a sua própria “concepção” do cinema, e não apenas para a criação de uma personalidade, o que no meio cinematográfico se definiria como o “cinema de autor”. Mas de modo geral, no contexto industrial, estes diretores não seriam a regra. No trecho a seguir, apesar de Cavalcanti apresentar a hierarquia da produção de cinema, ele também coloca o diretor no lugar de igualdade perante os demais membros de uma equipe:

68 CAVALCANTI, Alberto. Le mouvement néo-réaliste en Anglaterre. In LAPIERRE, Marcel. Anthologie du Cinema. Paris : La Nouvelle Édition, 1947, p. 273, tradução nossa (“C’est ce producteur, ou même à defaut d’une personnalité dominante un groupe de producteurs, qui a toujours manqué en France.”).

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Mas o diretor tende, cada vez mais, a se colocar como um simples ser humano na hierarquia dos técnicos. Seu papel, num filme, pode ser comparado ao do regente numa orquestra. Acima dele só existe um poder, que é produtor; abaixo, as equipes técnicas e artísticas.69

O discurso de Cavalcanti nos remete rapidamente à hipótese de Pierre Sorlin de que o filme é o resultado de um trabalho em equipe, tornando difícil, por vezes, identificarmos exatamente qual a parte de cada um70. Ele comenta que o prestígio do cargo do diretor, e também de sua elevação ao status de “autor”, estariam relacionados com a nossa dificuldade em abordar uma produção do tipo intelectual sem individualiza-la, bem como com a nossa propensão em buscar por “marcas de fabricação pessoal” nessas produções. Enquanto isso, o produtor é raramente considerado um “homem de cinema”, de modo que, independente de seu interesse pela realização, ele deve se “apagar” diante dos demais trabalhadores do meio do cinema. O objetivo do autor seria, então, demarcar da melhor forma possível a importância do trabalho em equipe na realização cinematográfica, já que frequentemente o sucesso da atuação de um grupo de pessoas junto do diretor, ao longo de diversas produções, acaba atribuído apenas ao diretor, dado o seu prestígio preestabelecido no meio. Sendo assim, nos parece que as experiências de trabalho de Cavalcanti discutidas anteriormente poderiam servir de exemplo para a reivindicação de Sorlin, uma vez que em grande parte delas a relevância da equipe era demonstrada tanto pelos seus modos de produção, tanto pela defesa do cineasta da valorização de todos os técnicos. Sorlin ainda vai além do caráter técnico das funções em uma produção de cinema, indicando também a possibilidade dos integrantes da equipe contribuírem com o filme do ponto de vista de cultural ou ideológico. Contudo, tal processo não seria evidente, compondo o projeto formalizado pelo diretor, roteirista ou por aquele que definiu as suas diretrizes. A sua contribuição seria “invisível”, presente na obra apenas de forma secundária, paralela. Cavalcanti não chega à tal ponto, mas seria interessante especular a respeito da possibilidade anunciada por Sorlin nas produções em que o cineasta fez parte.

69 CAVALCANTI, Alberto. Op. cit., 1953, p. 89. 70 Cf. SORLIN, Pierre. Sociologie du cinéma: ouverture pour l’histoire de demain. Paris : Éditions Aubier Montaigne, 1977, p. 95, 99.

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A atuação de Cavalcanti na Ealing Studios, como diretor e produtor, parece nos aproximar, finalmente, do seu trabalho na Companhia Cinematográfica Vera Cruz, no Brasil. Do ponto de vista da formação do cineasta, poderíamos supor que entre a sua “promoção” ao cargo de produtor na GPO Film Unit e a passagem para a Ealing, ele já tinha sua carreira bastante consolidada. Buscamos demonstrar a singularidade da posição de Cavalcanti no meio cinematográfico não apenas através dos trabalhos que ele desenvolveu, mas também pelas suas ideias sobre o cinema e comentários sobre suas experiências a partir de suas memórias e de outras fontes.

Abordando a trajetória de Cavalcanti

Durante a trajetória de formação cinematográfica de Cavalcanti, notamos uma aparente heterogeneidade em seu caminho, sobre o qual poderia haver a impressão de descontinuidade constante. Diversos estudiosos já se expressaram sobre o assunto: Maria Rita Galvão, por exemplo, ao escrever sobre o encerramento do primeiro período da carreira do cineasta, resume a sua trajetória da seguinte forma:

Da iniciação cinematográfica ao apogeu do prestígio, de figura chave da Avant-Garde francesa a diretor comercial de baixa categoria, Cavalcanti perfaz pela primeira vez o ciclo completo de ascenção e queda que se repetiria tantas outras vêzes na sua carreira, reconduzindo-o a cada uma de volta à estaca zero.71

Já Pellizari, sob uma outra ótica, defende que: “O que não se perdoa em Cavalcanti é sua permanente perseguição ao risco e à pesquisa, sua vontade de estabelecer prioridades e se permitir mudanças, a constância de suas ambições e a inconstância dos meios utilizados para realizá-las.” 72 Há, ainda, a abordagem constantemente adotada ao justapor cada “período” ou “fase” na linha cronológica da vida do cineasta, usando um processo de individualização de cada momento e de cada “Cavalcanti”: Cavalcanti-diretor, Cavalcanti-produtor, Cavalcanti-documentarista, o que comporia uma longa lista. Em seu livro, o próprio Cavalcanti criticaria o que ele

71 GALVÃO. Maria Rita. Companhia Cinematográfica Vera Cruz: A fábrica de sonhos. Tese (Doutorado em Linguística e Línguas Orientais) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 1976, p. 730. 72 PELLIZZARI, Lorenzo. O sonoro, a Paramount e o cinema inglês (1929 – 1949). In PELLIZZARI, Lorenzo; VALENTINETTI, Claudio M. (org.). Alberto Cavalcanti: Pontos sobre o Brasil. São Paulo, SP : Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1995, p. 25.

47 chama de “praga das falsas especializações”, da qual teria sido vítima diversas vezes, pois se pressupunha que uma vez tendo trabalhado com determinado gênero do cinema, tal cineasta deveria nele permanecer 73. Apesar de compreender que o uso de tais “esquemas analíticos” seja importante para iluminar aspectos específicos sobre determinados temas, como o do próprio Cavalcanti, esses esquemas também podem levar à interpretações totalizantes que, nesse caso, descaracterizariam a personalidade e a carreira do cineasta brasileiro. A pluralidade parece ser, então, fundamental no estudo desta figura. Porém, buscamos sugerir aqui como há, na verdade, certa coerência relativa ao seu modo de fazer e pensar o cinema, por mais que nem sempre fosse possível tornar efetivas as suas convicções. Os casos de divergência entre Cavalcanti e Grierson, por exemplo, demonstraram tal dificuldade do cineasta, que já alcançara uma posição madura no meio cinematográfico e começava a defender suas próprias ideias. Tal interpretação vai ao encontro da reflexão de Gilberto Velho a respeito das noções de memória e projeto. Segundo o autor, no mundo moderno há uma certa tendência à formação de sociedades com ideologias individualistas, nas quais a fragmentação no indivíduo decorre de uma multiplicidade de referências, oferecidas por um campo de possibilidades. A partir disso, a biografia e a memória seriam imprescindíveis no contexto social, organizando a trajetória dos indivíduos. A noção de projeto, baseada em Alfred Schutz, forneceria os indicadores básicos do passado para a organização da memória, dando então um significado social e consistente à vida e às ações dos indivíduos, por mais que eles estejam expostos à “múltiplas experiências, contraditórias e eventualmente fragmentadoras.” 74 Gilberto Velho aponta: “São visões retrospectivas e prospectivas que situam o indivíduo, suas motivações e o significado de suas ações dentro de uma conjuntura de vida, na sucessão das etapas de sua trajetória”75 Compreendendo ainda que o “projeto” é “dinâmico”, ele se torna um instrumento básico de “negociação da realidade”, pois resulta, em parte, de uma deliberação consciente a partir das circunstâncias do campo de possibilidades, fazendo com que a memória seja constantemente reorganizada.

73 CAVALCANTI, Alberto. Filme e Realidade. São Paulo, SP : Livraria Martins Editora S.A., 1953, p. 91. 74 VELHO, Gilberto. Um antropólogo na cidade: ensaios de antropologia urbana. Rio de Janeiro, RJ : Zahar, 2013, p. 65 – 66. 75 Ibidem, p. 65.

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Compreendendo o mecanismo, torna-se mais clara a possibilidade de vermos certa coerência ao longo da trajetória de Cavalcanti com relação ao seu trabalho no cinema. E existem ainda duas percepções a respeito de suas experiências de vida que gostaríamos de comentar brevemente. A primeira é relativa à formação cultural do cineasta. Durante a vivência na Europa, ele se relacionava não apenas com aqueles pertencentes ao meio cinematográfico, mas com artistas de todos os tipos, músicos, escritores, dramaturgos. Em todos os capítulos de suas memórias ele fala sobre as personalidades que conheceu, com quem estabeleceu relações e aqueles com quem teve problemas, de modo que as amizades ocasionadas tanto pelo convívio social, quanto pelo trabalho aparentam ter sido de grande importância na vida de Cavalcanti. Além disso, ele demonstra considerável estima sobre outras artes além do cinema, sobretudo, a literatura. Dois indícios provocam nossa percepção: as epígrafes que antecedem cada capítulo de suas memórias e o recorrente assunto das adaptações literárias que Cavalcanti gostaria de realizar para o cinema. A segunda questão se refere ao fato de que Cavalcanti não era um ideólogo, nem em seus escritos, nem em seus filmes, apesar deles poderem ser lidos sob diversas chaves. Poderíamos falar das suas amizades e dos meios de convívio do cineasta, apontar tendências através de seu discurso, de modo que, pessoalmente, ele poderia ter de fato alguma tendência política. Mas constatamos que isso não condicionava ou direcionava suas produções. Pelo contrário, a trajetória e as obras de Cavalcanti provocam confusões e incertezas naqueles que tentam inseri-lo em uma determinada caixa ideológica. Ambas as questões abrem diversas possibilidades de discussão – e algumas serão realizadas nos próximos capítulos.

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Capítulo 2 A produção cinematográfica de Cavalcanti no Brasil

Muitas vezes um produtor de cinema é arrastado para uma festa na qual a anfitriã orgulhosa diz com uma amibilidade firme: Agora, Sr… Conte nos tudo sobre o seu trabalho! O que pode alguém dizer em resposta, além de parecer asustadoramente embaraçado, sorrir vagamente e parecer um perfeito idiota? 76

Na seção Cinema de 30 dias da revista Anhembi de Setembro de 1953, era anunciado que o livro Filme e Realidade de Alberto Cavalcanti fora posto à venda. O responsável pela seção do periódico mensal de cultura geral, Benedito Junqueira Duarte77, também escrevera o prefácio da obra de Cavalcanti e agora a anunciava como “uma publicação importantíssima, tanto pela integridade de seu autor, como pelo valor da matéria versada”78. Ao longo de onze capítulos, a discussão sobre cinema varia entre aspectos técnicos do filme, domínios da produção cinematográfica, panoramas de cinematografias até sobre as funções sociais do cinema. Ainda que Cavalcanti afirme na Introdução que o livro “não se trata propriamente de um compêndio sôbre cinema, mas de uma série de considerações baseadas na minha experiência pessoal”79, ele não deixa de ser considerado como um manual de cinema para os seus estudiosos, dada à amplitude dos temas, bem como sua forma concisa. Na medida em que ele discorre, em determinado capítulo de seu livro, a respeito das funções estruturais na realização do filme de ficção, o produtor e o diretor de cinema80, Cavalcanti evidencia principalmente o caráter industrial da produção cinematográfica. O esquema a respeito do trabalho desenvolvido por um produtor de cinema, descrito pelo autor a seguir, serve como exemplo dessa constatação:

76 CAVALCANTI, Alberto. The Producer. In BLAKESTON, Oswell (org.). Working for the films. Michigan : The Focal Press, 1947, p. 64, tradução nossa. (“Many a time a film producer is dragged to a party at which the accomplished hostess says with a firm amiability: Now Mr..., tell us all about your job! What can anyone say in reply, except to look frightfully embarrassed, smile vaguely and appear to be a perfect halt-wit?”) 77 Cf. CATANI, Afrânio Mendes. Cogumelos de uma só manhã: B. J. Duarte e o Cinema Brasileiro Anhembi, 1950 – 1962. Tese (Doutorado em Sociologia) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 1992. 78 Anhembi, V. XII, nº 34, São Paulo, 1953, p. 198. 79 CAVALCANTI, Alberto. Filme e Realidade. São Paulo, SP : Livraria Martins Editora S.A., 1953, p. 20. 80 Ibidem, p. 79.

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Concluído o filme, o produtor seguirá o seu destino na apresentação ao público e servirá como elemento de ligação entre a companhia produtora e os distribuidores. O tipo de propaganda a ser feita, a escolha dos cinemas lançadores e a avaliação comercial do filme para certos países não podem ser decididos sem a opinião de um produtor que se preze. Numa produção organizada industrialmente, o trabalho do produtor não se limita à realização de cada filme de per si. Paralelamente, outros filmes, em diferentes estágios, seguem o seu curso, exigindo do produtor uma atividade constante e um grande discernimento no dedicar a cada um o tempo e a atenção que necessitam em proporção ao seu desenvolvimento. Os interêsses gerais de uma companhia de produção e o seu prestígio estão na dependência direta do produtor.81

O trecho demonstra a ligação das condições de realização do filme à determinada conjuntura, aliadas às demais redes da cadeia produtiva do cinema: a distribuição e a exibição. A produção ocupou grande parte da carreira do cineasta e, associada ao conjunto de experiências acumuladas no meio cinematográfico, desde o emprego inicial como cenógrafo até o prestígio do cargo de diretor, teria influenciado o seu modo de pensar o cinema. Do ponto de vista de uma história dos modos de produção cinematográficos, a visão de Cavalcanti exposta em seu livro se relaciona com o paradigma do funcionamento de uma companhia produtora e seu studio system, cristalizado pela hegemonia da indústria cinematográfica norte-americana 82 . Efetivamente, o cineasta trabalhara anteriormente em estúdios, sobretudo de médio e pequeno porte, com a diferença de que suas experiências foram na Europa, e não nos Estados Unidos, o que implicaria em certas peculiaridades. Aqueles estúdios também contavam com uma organização do tipo industrial, autossustentável. Neles, Cavalcanti pode observar tais empreendimentos e admitir o sucesso de seus funcionamentos, por mais que também lamentasse certas limitações relativas à sua liberdade de criação enquanto diretor. A publicação do livro foi uma das últimas realizações de Alberto Cavalcanti no Brasil. Em 1949, quando ainda morava na Inglaterra, ele fora convidado por Assis Chateaubriand para realizar conferências sobre o cinema em São Paulo, no Museu de Arte de São Paulo (MASP), um dos primeiros cursos de cinema no país. O cineasta brasileiro com forte reputação internacional foi bem recebido em sua terra natal. Um

81 Ibidem, p. 84. 82 Cf. SCHATZ, Thomas. The genius of the system: Hollywood filmmaking in the studio era. Minneapolis : First University of Minnesota Press edition, 2010; BORDWELL, David; SINGER, Janet; THOMPSON, Kristin. The classical Hollywood cinema: Film style & mode of prodution to 1960. New York : Columbia University Press, 1985.

51 outro convite para que realizasse um filme foi feito por um grupo de industriais italianos cujo mais recente empreendimento cultural era a criação de uma indústria cinematográfica, a Companhia Cinematográfica Vera Cruz. Cavalcanti não poderia aceitar o convite, pois toda sua vida estava consolidada entre os ingleses. Então, motivados pelo entusiasmo do novo projeto e confiantes naquele brasileiro de fama cosmopolita, ou simplesmente interessados no status do cineasta reconhecido internacionalmente83, tais industriais acabaram ampliando a proposta para Cavalcanti, na qual ele seria o “cabeça de produção” da Companhia. Conforme ele afirmou posteriormente, teria notado a inexperiência de Franco Zampari, Francisco Matarazzo Sobrinho, Adolfo Celli e Ruggero Jaccobi em relação ao meio cinematográfico, e acabou aceitando o convite84. Na onda industrialista e modernizante de São Paulo iniciada em meados dos anos 1940, o cinema seria a arte industrial por excelência, satisfazendo tanto os desejos desta classe paulista interessada no acúmulo de capital cultural aliado ao seu poder econômico, quanto a ambição de consolidar um pensamento cinematográfico, o qual permeava o imaginário brasileiro desde a década de 192085. Além disso, em 1949 o Sindicato Nacional da Indústria Cinematográfica (SNIC) conseguira isenção, pelo período de 5 anos, de tarifas aduaneiras e de taxas de importação para compra de equipamentos, em vista da instalação de estúdios e laboratórios no Brasil, o que incentivara a criação de produtoras de cinema no país86. No caso, a Vera Cruz seria administrada por F. Zampari e teria Cavalcanti como Produtor-Geral, a ponte entre o setor administrativo/financeiro e a equipe técnica dos filmes, manejando a organização industrial da empresa, tal como descrevera pouco tempo depois em Filme e Realidade87. Quando usamos como referência o livro de Cavalcanti para discutir o seu trabalho no Brasil, nos deparamos com certo problema em relação à ordem dos

83 AITKEN, Ian. Alberto Cavalcanti: Realism, Surrealism, and National Cinemas. : Flicks Books, 2000, p. 183. 84 CAVALCANTI, Alberto. One man and the cinema. Introductions by Donald Richie, Henri Langlois and Jorge Amado. S.l. : s.n., 197-, p. 159. 85 Cf. AUTRAN, Arthur. O pensamento industrial cinematográfico brasileiro. São Paulo, SP: Hucitec Editora, 2013, p. 27. 86 Cf. JOHNSON, Randal. The film industry in Brazil: culture and state. Pittsburg: University of Pittsburgh Press, 1987, p. 60. 87 A obra é uma reunião de textos antigos e outros inéditos de Cavalcanti, revistos e atualizados pelo autor no Brasil.

52 eventos. O livro foi publicado após grande parte de suas experiências no país, mas fora composto por textos escritos em diferentes épocas da vida do autor, revisados antes de sua publicação. Se houvesse, contudo, uma inquietação, ou mesmo certa curiosidade, a respeito da época em que ele escrevera sobre as funções específicas do produtor cinematográfico, ao fim do texto ele nos indica: “Anacapri, Pascoa de 1948”. Não podemos afirmar que o propósito do livro era sustentar os seus conhecimentos teóricos, contudo, ele não deixaria de cumprir tal função, e suspeitamos que na época do lançamento da obra o reconhecimento de suas competências teria importância considerável para Cavalcanti. A leitura da obra aponta para o entendimento de que o funcionamento efetivo da indústria cinematográfica teria como pressuposto uma produção perene e subsistente. E uma administração sólida daria as condições para o desenvolvimento de um setor criativo, dado o caráter duplo, e por vezes ambíguo, do cinema em poder ser ao mesmo tempo obra de arte e produto comercial. Nesta organização industrial do filme seria fundamental a compreensão da hierarquia cinematográfica. Isso se deve ao fato de que o cinema é fruto de uma tarefa coletiva, na qual há uma estrutura de cargos com responsabilidades específicas, deveres e limites de atuação. Por isso o autor se dedica a apresentar não apenas o produtor e o diretor de cinema, mas também o argumentista, o cenógrafo, o músico, o ator. Ainda, ao ser questionado em uma entrevista sobre quem ele considerava ser o artista criador no cinema, Cavalcanti escolhe “A equipe. (...) Não há obra sem equipe. Uma parte dela fica detrás da câmera, a outra diante dela, como os pratos de uma balança. Se seu equilíbrio se romper, a perfeição fica comprometida.”88 A definição do cineasta sobre a produção cinematográfica é significativa tanto como um amparo teórico na medida em que o trabalho de Cavalcanti no Brasil for apresentado, quanto como instrumento de compreensão a respeito de uma dimensão totalizante que parece existir no modo de pensar no cineasta. Isso se revelaria não apenas por escrever sobre a produção sob uma ótica industrial, na qual um sistema amplo de cadeias interdependentes seria essencial para se obter os resultados almejados. A própria dimensão dos assuntos abordados no livro expõe o entendimento do autor de que a composição, neste caso, do cinema, abrange as mais específicas técnicas e teorias de seu próprio meio, mas também as de outras artes e do

88 PELLIZZARI, Lorenzo; VALENTINETTI, Claudio M. (org.). Alberto Cavalcanti: Pontos sobre o Brasil. São Paulo, SP : Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1995, p. 285

53 contexto no qual está inserido, não apenas por sua relação íntima com o público, mas porque os filmes se relacionam diretamente com a realidade. Essa especulação a respeito do modo de pensar de Cavalcanti poderia ser um ponto de partida para uma teoria do cinema própria do cineasta. No entanto, aqui ela nos interessa apenas como uma forma de proposta de reflexão possível, e paralela, para pensarmos o trabalho do produtor no Brasil. A seguir abordamos os trabalhos de Alberto Cavalcanti como produtor, bem como a relevância das posições assumidas por ele no meio cinematográfico brasileiro, entre o fim do ano de 1949 e meados de 1954. O emprego como Produtor-Geral na Vera Cruz marca o início dessa trajetória, responsável também pela permanência de Cavalcanti no país, pelo menos no ano de 1950. Em seguida, ele se envolveu na realização do projeto de criação do Instituto Nacional de Cinema, através do então presidente Getúlio Vargas, em 1951. E, por último, em 1952 Cavalcanti ainda se associou à criação da Kino Filmes, empresa através da qual ele produziu e dirigiu filmes. Dessa forma, visamos ressaltar não apenas a relevância da função de produtor cinematográfico, ora ligado ao empresariado, ora ao Estado, mas também os efeitos do trabalho de produtor desenvolvido por Cavalcanti no Brasil.

Da Ealing Studios à Vera Cruz

Apesar de sua aparente estabilidade na Inglaterra, Cavalcanti aponta em suas memórias dois motivos responsáveis por sua mudança para o Brasil, confiante de que seria um retorno definitivo. O primeiro se devia ao seu trabalho na época: após sair da Ealing Studios, não obteve outro contrato fixo, de modo que fazia filmes eventuais, e se irritava com o argumento de que as suas escolhas de temas estavam acima do entendimento do público, o que o deixava com poucas oportunidades de colaboração futura. O segundo motivo estava relacionado com a lembrança dos lamentos de sua mãe por seu desinteresse em trabalhar em seu próprio país durante os 36 anos que viveram na Europa89. É possível compreender, então, o consentimento ao convite de trabalho oferecido a Cavalcanti tanto como uma forma de recompensar o seu país de origem com a sua experiência acumulada no meio cinematográfico europeu, quanto como uma oportunidade de colocar em prática o “seu cinema”, ou seja, com a

89 CAVALCANTI, Alberto. One man and the cinema. Introductions by Donald Richie, Henri Langlois and Jorge Amado. S.l. : s.n., 197-, p. 157 – 158.

54 liberdade de fazer cinema a partir de suas próprias convicções, sobretudo com a hierarquia que o cargo de Produtor-Geral parecia lhe garantir. Não seria o caso de exercer um papel autoritário na Companhia, já que acima de sua função haviam ainda cargos administrativos, e, como vimos anteriormente, ele compreendia a importância da coletividade do trabalho e da participação de toda a equipe na produção cinematográfica. No entanto, devemos perceber o momento da carreira do cineasta, já com 53 anos de idade e incontáveis trabalhos em seu currículo, e reconhecer que este seria um novo desafio de grandes responsabilidades, assim como vários que Cavalcanti aceitara ao longo de sua trajetória, mas agora com uma dose de autonomia muito maior, por meio do qual poderia colocar toda sua experiência de vida em prática. Ainda, ao fechar o contrato de quatro anos com a Vera Cruz, Cavalcanti ressaltava o fato de que lhe haviam prometido “carta branca” para que desenvolvesse seu trabalho. A título de exemplo, podemos comentar a atuação do produtor Michael Balcon na Ealing Studios. Ian Aitken, em seu livro sobre Alberto Cavalcanti90, apresenta com riqueza o funcionamento daquele estúdio inglês. O produtor organizava o funcionamento da empresa com amplos poderes: fazia contratações, designava cargos, escolhia os argumentos. A sua função ia além da produção individual de um filme, na realidade, sua relevância estaria muito mais na capacidade de manejar as produções do estúdio assegurando que uma certa ordem fosse mantida. Por sua vez, a ideia de ordem também estaria relacionada com alguns princípios de Balcon, pertinentes à uma moral segundo a qual os filmes não poderiam escapar. Por mais que o produtor apreciasse e até incentivasse o esforço particular de cada diretor na criação de seus filmes, seu campo de atuação era delimitado pelas diretrizes morais balconianas, referentes, por exemplo, aos “valores tradicionais ingleses”. Apesar de Cavalcanti ter atuado como produtor e diretor de filmes na Ealing, Balcon apreciava mais o trabalho de produção do brasileiro, pois via muitas fraquezas em sua direção. Aitken ressalta: “A melhor aptidão de Cavalcanti como produtor é baseada na sua habilidade em trazer o que há de melhor no trabalho dos outros ao fazer sugestões que invariavelmente resultariam em tornar o filme melhor, mais sutil e

90 Cf. AITKEN, Ian. Alberto Cavalcanti: Realism, Surrealism, and National Cinemas. England, Flicks Books, 2000.

55 mais complexo.”91 Ora, a função de diretor era de natureza criativa, através da qual Cavalcanti não priorizava a dimensão tradicionalista estimada por seu produtor. Pelo contrário, ele era capaz de ironizar tais valores, conforme apresentado por Aitken, “Champagne Charlie [dirigido por Cavalcanti], uma comédia que não foi bem classificada por Balcon, e que efetivamente faz caricaturas de muitos valores ingleses que o último promovia em outros filmes da Ealing, é um bom exemplo deste tipo de humor subversivo, e, portanto, de maneira modesta, é também uma espécie de ‘revolta contra a ordem estabelecida.’”92. Tornam-se mais claros, então, os motivos tanto de Balcon, para a preferência de um Cavalcanti produtor, quanto os de Cavalcanti, para querer dirigir filmes fora da Ealing, onde era muito limitado. Logo, pudemos ver como o trabalho do produtor de um estúdio se expande para a manutenção de toda uma ordem que garanta o seu funcionamento e os seus valores, inevitavelmente traspostos aos filmes produzidos. Quando o produtor brasileiro ressalta a “carta branca” garantida para a sua atuação na Vera Cruz, ele poderia esperar por ter uma autoridade tal como aquela que Balcon tivera sobre a Ealing, possivelmente contando com a ambição de reproduzir nos estúdios brasileiros a experiência inglesa. Aliás, o fato da Companhia Vera Cruz estar, naquele momento, literalmente levantando suas paredes para dar os pontapés iniciais da produção possibilita uma observação a respeito do pensamento de Cavalcanti sobre a constituição ideal de uma empresa cinematográfica. Não era o caso de simplesmente ser contratado para um emprego no qual tudo ao seu redor já estaria pré-estabelecido. Se por um lado, esse estágio inicial do projeto dava certa liberdade para criar as próprias condições de trabalho de sua preferência, por outro lado, havia grande responsabilidade pelas decisões tomadas e seu decorrente sucesso ou fracasso. Sendo assim, Cavalcanti relataria em seus escritos, em entrevistas e em depoimentos, os seus primeiros planos para a Companhia, identificando aqueles que foram ou não admitidos e praticados pelos administradores e donos da empresa.

91 Ibidem, p. 111, tradução nossa (“Cavalcanti’s greatest aptitude as a producer lay in his ability to bring out the best in the work of others by making suggestions which would invariably result in the resulting film becoming better, subtler and more complex.”) 92 Cf. Ibidem, p. 122, tradução nossa (“Champagne Charlie [dirigido por Cavalcanti], a comedy which Balcon did not rate highly, and which effectively caricatures many of the values which the latter promoted in other Ealing films, is a good example of this kind of subversive humour, and, therefore; in its modest way, is also a kind of ‘revolt against the established order.’”.)

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A ideia inicial de criação da Vera Cruz fora traçada a partir do estabelecimento de estúdios de cinema nas terras de Matarazzo em São Bernardo do Campo. A industrialização da produção contaria com estúdios e maquinário próprios, uma equipe de técnicos, atores e atrizes com contratos de longa duração, no formato de um star system. Tinham como objetivo realizar, conforme as previsões de Cavalcanti, três filmes no primeiro ano, cinco no segundo ano, e assim sucessivamente, até que fosse atingido o resultado de doze filmes anuais93. Devemos ressaltar que o foco da Companhia era a produção cinematográfica, do mesmo modo que outras empresas produtoras no Brasil pretenderam anteriormente. Logo, para exibir seus filmes a Vera Cruz firmou um acordo de distribuição com a Universal, e mais tarde, com a Columbia Pictures, conforme Cavalcanti havia aconselhado de início94. Tanto a primeira escolha, quanto a segunda, contudo, demonstram um certo conservadorismo em optarem por estas majors como distribuidoras de seus filmes, com expectativas de que elas alavancassem as produções brasileiras no exterior. O setor de distribuição no Brasil já havia sido incrementado pela Atlântida, no Rio de Janeiro, a qual funcionava de maneira verticalizada desde 1947, produzindo, distribuindo e exibindo seus próprios filmes, através do monopólio de Luiz Severiano Ribeiro95. Há, ainda, outras diferenças significativas na criação da Vera Cruz em relação às suas antecessoras. Apesar da pretensão de fundar uma cinematografia nacional, considerada inexistente por não verem relevância na produção local realizada até então, o que diferenciou efetivamente a produção da Vera Cruz e de seus filmes foi a alta qualidade técnica atingida e a capacidade de comercialização e de obter sucesso de alguns filmes no exterior, resultados de um investimento financeiro particular muito grande. Contudo, a diferença seria insuficiente para superar o frequente malogro das produtoras brasileiras, as quais continuadamente priorizaram a produção em detrimento da distribuição de seus próprios filmes, com exceção do caso da Atlântida, o que acabava inviabilizando a continuidade de seu funcionamento:

93 GALVÃO, Maria Rita. Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1981, p. 97. 94 Ibidem, p. 99. 95 Cf. JOHNSON, Randal. The film industry in Brazil: culture and state. Pittsburg : University of Pittsburgh Press, 1987, p. 58.

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É sintomático o fato de que a Vera Cruz, quando surge, não reivindica nada: ela é auto-suficiente. Cinema se faz com bons técnicos, bons artistas, maquinaria adequada, grandes estúdios e dinheiro, e a companhia tem tudo isso. A idéia de que fazer um filme é apenas chegar à metade do caminho, de que, terminado o filme, é então que começam os problemas realmente graves, não ocorreria a ninguém. O que justamente caracterizou o desenvolvimento da companhia foi um movimento de progressiva conscientização dos problemas de mercado, que acabou resultando numa aproximação com o cinema brasileiro corrente muito maior do que desejaria a Vera Cruz.96

Em vista dessa organização industrial, Cavalcanti instruiu os industriais a respeito de uma forma ideal para a construção das instalações, imaginando a existência de diversos estúdios nos quais produções distintas seriam feitas simultaneamente, associados aos demais escritórios e laboratórios. Sua instrução, contudo, não foi seguida, e os estúdios foram construídos de forma improvisada nas antigas instalações já existentes no local. A aquisição da maior parte dos equipamentos fora providenciada pelos empresários, mas para o produtor certas escolhas dependeriam da preferência dos técnicos responsáveis pelo trabalho, dado seu conhecimento e familiaridade com um ou outro equipamento, o que também não fora respeitado97. No quesito da contratação de técnicos, apesar de um contingente escolhido pela administração devido aos laços de amizades ou mesmo familiares, uma outra parte significativa foi constituída por Cavalcanti. Ele buscou técnicos estrangeiros, com experiência na área cinematográfica, e formou uma equipe com membros da Inglaterra (Henry C. Fowle – chefe-iluminador, Bob Huke – operador, Rex Endsleigh – montador, Michael Stoll – operador de microfone, e o austro-britânico Oswald Haffenrichter – chefe-editor), da França (Jacques Deheinzelin – operador de câmera) da Dinamarca (Eric Rassmussen – engenheiro-chefe de som), da Argentina (Tom Payne – assistente de direção), entre outros. As contratações realizadas pelo produtor e aquelas determinadas pela administração, a dizer, por Franco Zampari, parecem ser também um ponto de distinção expressivo quanto à natureza de suas decisões. Adolfo Celi e Ruggero

96 GALVÃO, Maria Rita. Op. cit, 1981, p. 53. 97 Cavalcanti contratara um técnico de som na Europa e o consultaria a respeito do aparelhamento sonoro mais adequado para o trabalho. Quando Eric Rassmussem foi contratado e apontou o sistema Western Eletric para compra, Cavalcanti foi informado que já haviam comprado um aparelho RCA de segunda mão no Rio de Janeiro. O produtor considerou o evento uma intromissão nas suas atribuições, mas para evitar discussões logo no início do trabalho, não teria feito reclamações. Cf. Ibidem, p. 98.

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Jacobbi, por exemplo, eram diretores do Teatro Brasileiro de Comédia, formado pouco tempo antes pelo mesmo grupo de industriais e onde tiveram experiência e sucesso. Entretanto eram apenas iniciantes no cinema e ambos seriam indicados por Zampari para dirigir os primeiros filmes da Vera Cruz. Ou ainda, poderíamos citar a designação do antigo oficial da marinha Carlo Zampari, irmão de Franco, para o cargo de chefe de produção. A contratação do próprio Cavalcanti, como dissemos antes, pode ter realmente decorrido do reconhecimento de sua experiência no cinema, mas também do mero prestígio que sua figura incorporava à Companhia. A formação da equipe por Cavalcanti parece ser orientada por outros princípios. É difícil supor os motivos exatos de suas escolhas, e existem depoimentos de técnicos da Vera Cruz e de críticos de cinema da época contrários e favoráveis à elas, por isso recorremos ao que o próprio produtor defendera. A sua escolha por profissionais de diversas nacionalidades tinha como objetivo não contaminar a produção com um estilo de determinado lugar98, conforme as especialidades básicas para a realização de um filme, formando então uma equipe técnica de alta qualidade. Cavalcanti não fala muito sobre o assunto a seguir, e talvez tal silêncio revele que ele conhecia tão pouco da filmografia brasileira quanto daqueles que trabalhavam com cinema no país, mas haviam algumas exceções. Contratou, por exemplo, Lima Barreto como documentarista para seu projeto de realização de documentários culturais na Vera Cruz99. Conhecia também a obra e o estilo cinematográfico de caráter experimental de Mário Peixoto, e diante da proposição para que ele trabalhasse na Companhia, Cavalcanti esclarecera:

Vim para o Brasil bater os fundamentos de uma indústria de cinema. (...) O sr. Mário Peixoto merece toda a minha consideração, e algum dia, talvez, quando esta indústria estiver implantada, eu mande chamá-lo para trabalharmos juntos. Agora, porém, enquanto está tudo por fazer, não vamos gaspear dinheiro sendo eu o responsável pela produção desta companhia.100

98 Ibidem, p. 109. 99 CALIL, Carlos Augusto. A Vera Cruz e o Mito do Cinema Industrial. In MARTINELLI, Sérgio. Vera Cruz: imagens e história do cinema brasileiro. São Paulo, SP: Books, 2002, p. 169. 100 GALVÃO, Maria Rita. Companhia Cinematográfica Vera Cruz: A fábrica de sonhos. Tese (Doutorado em Linguística e Línguas Orientais) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 1976, p. 753.

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Logo, podemos supor que, para Cavalcanti, a melhor forma de compor a equipe da Vera Cruz era trazer profissionais do meio cinematográfico internacional que assegurassem a execução das produções, uma vez que seu conhecimento limitado sobre o país apontava para a inconsistência de um contingente capacitado para as demandas da nova produtora. Além disso, pode ter levado em conta também o desejo da Companhia em se afastar do estilo e do modo de produção já existente no país. Além da construção das instalações, de parte da equipe contratada e da compra de equipamentos, Zampari também determinara o argumento e o diretor da primeira produção da Vera Cruz: Caiçara, por Adolfo Celi. Se as primeiras decisões diziam respeito às condições materiais de funcionamento da indústria, a concepção sobre o seu filme de estreia nos leva ao plano das ideias, as quais fundamentavam também a criação da própria empresa. O projeto dos fundadores da Vera Cruz se baseava na criação de um cinema nacional, defendendo a sua inexistência e demarcando sua diferenciação em relação aos filmes brasileiros que a antecederam ou mesmo de seus contemporâneos, como por exemplo, as chanchadas cariocas da Atlântida101, sucessos de público na época. Orbitando ao redor do desenvolvimentismo predominante nas ações daqueles industriais, pairava também a ideia de nacional aliado ao ideal universalista, que se tornaria patente alguns anos mais tarde102. Em 1949, os críticos de cinema Benedito Junqueira Duarte e Carlos Ortiz escreviam a respeito do assunto, com diferentes abordagens, mas ressaltando o caráter universal das artes. B. J. Duarte dizia que “no dia em que tivermos de fato cinema no Brasil, não importa que ele seja nacional. Basta que seja universal”. Ortiz recusa tal separação entre os termos, “Da síntese do conteúdo ‘universal’, com o toque ‘nacional’ e ‘pessoal’ é que se fizeram sempre as obras-primas de todas as arquiteturas, pinturas e literaturas. Também em cinema entendo que há de ser este o caminho.”103 A ideia, então, é recorrente nos meios artísticos e no caso do cinema da Vera Cruz, referia-se também à ambição de realizar filmes brasileiros que contemplassem o grande público: “afirmando seu caráter nacional e internacional ao mesmo tempo, usa o slogan ‘Do Planalto Abençoado de Piratininga para as Telas do Mundo’, divulga a

101 GALVÃO, Op. cit., 1981, p. 42. 102 Cf. RAMOS, José Mario Ortiz. Cinema, Estado e Lutas Culturais: anos 50, 60, 70. Rio de Janeiro, RJ : Paz e Terra, 1983. 103 BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Carlos Ortiz e o cinema brasileiro na década de 50. São Paulo, SP : Secretaria Municipal de Cultural, Departamento de Informação e Documentação Artísticas, Centro de Documentação e Informação sobre Arte Brasileira Contemporânea, 1981, p. 36.

60 frase: ‘Produção Brasileira de padrão internacional, eis o lema da Cia. Vera Cruz.’”104 Para a efetividade de tal empreendimento, a presença de Alberto Cavalcanti, estimado como um grande cineasta formado na Europa, e a de seus técnicos estrangeiros, além da aquisição de equipamentos e construção de estúdios, confirmavam a pretensão internacionalista da Companhia. Os filmes eram concebidos a partir das fórmulas genéricas de um cinema clássico, cuja consolidação se realizou através da indústria hollywoodiana e da disseminação de seus filmes pelo mundo. Ao elevar o cinema nacional ao mesmo patamar que o cinema estrangeiro, do ponto de vista técnico, mas também estilístico, acreditavam garantir o seu sucesso em qualquer mercado. Logo, restava ao tema do filme a parcela do nacional, como o próprio título da primeira produção da Vera Cruz evidenciava: Caiçara. Contudo, um dos principais debates sobre os filmes da Companhia se concentrariam na opinião de que o tema brasileiro parecia servir apenas como um pano de fundo para as narrativas, fosse um drama, um romance ou uma comédia, através do qual se revelava algo de brasileiro. Quanto às ideias de Cavalcanti, há certa afinidade com o programa defendido pela Companhia, pois conforme fora apresentado o empreendimento, o produtor também supunha uma produção do tipo industrial, tendo como referências as suas experiências europeias. A questão da forma fílmica, então, seria um consenso: a linguagem clássica cinematográfica. No tocante ao assunto dos filmes, as produções de Cavalcanti costumavam apresentar roupagens nacionais, bem como sua preocupação com o conteúdo social das obras, como em Rien que les heures, Coal Face, Night Mail e Went the day well? Contudo, ao falar sobre os filmes que produziu na Vera Cruz, os quais não teriam sido escolhidos por ele, o produtor tece diversas críticas quanto à qualidade dos roteiros e ressalta a urgente necessidade da Companhia realizar um “filme genuinamente brasileiro”105, ideal que fomenta discussões e controvérsias ao longo de toda a história do cinema nacional. Como resolução ele teria proposto a realização de uma biografia de Noel Rosa, O Escravo da Noite, cuja produção se encerrou na fase de roteiro devido à demissão daquele que seria o seu diretor, Ruggero Jaccobi106. Além disso, Cavalcanti teria iniciado um projeto de realização de documentários

104 GALVÃO, Maria Rita; BERNARDET, Jean-Claude. Cinema: repercussões em caixa de eco ideológica (as ideias de “nacional” e “popular” no pensamento cinematográfico brasileiro). São Paulo, SP: Brasiliense, 1983, p. 112. 105 GALVÃO, Maria Rita. Op. cit., 1981, p. 97. 106 Ibidem, p. 100.

61 culturais107, para o qual contratara o inglês John Waterhouse108 e o brasileiro Lima Barreto. Os resultados foram os filmes Painel e Santuário, ambos de Barreto, e bem recebidos pela crítica, caracterizados pelo caráter artístico e por se basearem em assuntos nacionais: o primeiro se refere à obra Tiradentes de Cândido Portinari, e o segundo às esculturas de Aleijadinho, Os doze profetas. Waterhouse dirigiria um outro documentário de produção de Cavalcanti mas fora da Vera Cruz, Volta Redonda (1952). Antes de continuarmos na discussão acerca do Produtor-Geral na Companhia Vera Cruz, e diante da apresentação da ideologia que permeava os seus modos de produção, seria interessante apontar a questão de uma certa anacronia recorrente do cinema brasileiro em relação às tendências do cinema estrangeiro. Conforme exposto por Autran, durante o período de transição do cinema mudo para o sonoro, por exemplo, teria existido no meio nacional a expectativa em poder se aproveitar das circunstâncias para finalmente ganhar o mercado local com seus filmes mudos, ainda compreensíveis para o público. Mas os filmes estrangeiros rapidamente reverteram a sua perda de espaço ao desenvolverem um sistema de dublagens e de refilmagens de seus filmes em outras línguas. Com a novidade tecnológica atualizada para outros países, o filme americano ganhava novamente da produção local, que ainda se baseava em métodos ultrapassados109. O auge da indústria cinematográfica moldada no sistema de estúdios de Hollywood fora consolidado nos anos de 1930, e no momento em que a Vera Cruz dava seus primeiros passos no início dos anos 1950, tal sistema já se encontrava desgastado, em plena decadência, obrigado a se moldar a novas formas de produção e exibição110. Por sua vez, Cavalcanti vinha da Inglaterra para o Brasil após um longo período sob as atividades da Ealing Studios. A produção inglesa nesse formato, contudo, também passara por fases que ocasionaram na necessidade de adaptação, o que pode ser demonstrado pelo produtor Michael Balcon e sua experiência no meio:

107 CALIL, Carlos Augusto. Op. cit., p.169. 108 BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Op. cit., p. 44. 109 Cf. AUTRAN, Arthur. O pensamento industrial cinematográfico brasileiro. São Paulo, SP : Hucitec Editora, 2013, p. 274 – 276. 110 Cf. SCHATZ, Thomas. The genius of the system: Hollywood filmmaking in the studio era. Minneapolis : First University of Minnesota Press edition, 2010; BORDWELL, David; SINGER, Janet; THOMPSON, Kristin. The classical Hollywood cinema: Film style & mode of prodution to 1960. New York : Columbia University Press, 1985.

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O passado de Balcon no setor corporativo inicialmente o levou a advogar uma política de produção cinematográfica baseada nas produções de grande orçamento para o mercado internacional, e ele firmemente acreditava que esta estratégia representava a melhor esperança da indústria cinematográfica Britânica para atingir sucesso comercial diante da competição com Hollywood. No entanto, o impacto do colapso da indústria em 1936 fez com que ele revisasse suas opiniões relativas aos méritos do “internacionalismo”, e, em vez disso, que advogasse pela produção de filmes Britânicos mais “paroquiais” voltados para o mercado Britânico.111

É notável a semelhança entre a primeira política de produção de Balcon, isto é, filmes de grandes orçamentos para o mercado internacional como solução para o sucesso comercial, e as ideias que regiam a produção da Companhia Vera Cruz, com uma diferença, porém, de quase 15 anos. Na Ealing Studios, o estilo de produção balconiano poderia ser resumido por: orçamento moderado, filmagens em estúdio e em locações e a associação entre um proto-realismo e as convenções de gênero no tratamento fílmico. Seriam, então, sob tais condições que Cavalcanti trabalhara. Não houve no Brasil experiência semelhante que garantisse o desenvolvimento de uma indústria cinematográfica por um período contínuo, moldando as produções conforme as demandas do mercado. Logo, a Vera Cruz se instalava como uma espécie de marco zero no mercado brasileiro, por se afirmar dessa forma, mas também por se lançar ao passado adotando uma política cinematográfica relativamente superada no contexto mundial. Em meio a criação da Companhia, Cavalcanti não teria interferido no sentido de alterar tais políticas, pelo contrário, ele correspondeu ao modelo industrial, seu sistema de estúdios e de estrelato, concebido por F. Zampari e seus colegas. A adoção de tal modelo acabaria se mostrando inviável, de modo que ele perdurava nos mercados estrangeiros devido a constantes reformulações. A forma como as produções se realizam era problemática: os orçamentos e o estilo dos filmes não dialogavam com as demandas do mercado exibidor. Estes detalhes, contudo, não pareciam entrar em pauta no projeto de criação e desenvolvimento da Vera Cruz, de

111 AITKEN, Ian. Op. cit., p. 101, tradução nossa. (“Balcon’s background within the corporate sector initially led him do advocate a film production policy based on the production of big-budget films for the international Market, and he firmly believed that this strategy represented the British film industry’s best hope of achieving comercial success in the face of competition from Hollywood. However, the impact of the industry’s colapse in 1936 caused him to revise his opinions on the merits of “internationalism”, and instead to advocate the production of more “parochial” British films for the British Market.”)

63 modo que baseavam-se, sobretudo, na crença de que um cinema brasileiro que fosse equiparado ao cinema estrangeiro se tornaria automaticamente um sucesso, tanto no mercado interno quanto externo. Após termos demonstrado as diretrizes da fundação e os objetivos de produção da Companhia Vera Cruz, cabe agora elucidar o papel do Produtor-Geral no funcionamento da empresa e em relação aos filmes produzidos. Apesar de ter iniciado algumas atividades logo após o fechamento de seu contrato, dando direcionamentos a respeito da construção de estúdios, da compra de equipamentos e contratando técnicos, além de algumas indicações de trabalho sobre o primeiro roteiro a ser filmado pela Companhia – Caiçara – foi apenas no início do ano de 1950, que Cavalcanti iniciou efetivamente as produções da Vera Cruz. Durante seu primeiro e único ano no cargo, ele concluiu a produção completa de dois longas-metragens, Caiçara (1950) e Terra É Sempre Terra (1951), e dois curtas-metragens, Painel (1951) e Santuário (1951), sobre os quais esclarecemos anteriormente a responsabilidade de Cavalcanti por sua existência. Os dois primeiros filmes de ficção não teriam sido fruto de sua escolha. O primeiro fora uma determinação que antecedera a sua contratação, designado à direção de Adolfo Celi. O segundo filme fora resultado de um improviso, pois o roteiro que Cavalcanti preparava para Ruggero Jacobbi dirigir, O Escravo da Noite, fora adiado após um desentendimento entre o diretor e F. Zampari, desencadeando a demissão de Jacobbi. Terra É Sempre Terra era uma adaptação de Paiol Velho, peça de Abílio Pereira de Almeida, proposta por Tom Payne. Segundo Cavalcanti, o argentino trabalharia como assistente de direção e após a experiência de trabalho em quatro ou cinco filmes poderia então assumir a direção. Contudo, diante da oportunidade, teria se disposto a adaptar e dirigir o segundo filme da companhia. Apesar de demonstrar certo descontentamento, o produtor-geral aceitara a proposta, sem encontrar outra solução para não interromper as atividades da Vera Cruz e cumprir com a sua palavra de entregar ao menos dois filmes longos naquele primeiro ano. Entre tais decisões, retomavam ainda a proposta para que Cavalcanti dirigisse um terceiro filme. Com uma agenda cheia e sem treinar nenhum diretor brasileiro – Celi e Jacobbi eram italianos – ele não poderia aceitar a proposição: “Eu estava certo de que, sem ter técnicos em pleno direito, eu não poderia encarar a responsabilidade atribuída a um

64 diretor, que necessariamente seria intensa e me deixaria com pouquíssimo tempo para os meus deveres como Produtor Geral”112. A partir de tais fatos e aludindo ao que Cavalcanti escrevera em seu Filme e Realidade, destacamos que o seu cargo pressupunha uma organização ampla das atividades da Companhia. Ele se ocupava dos roteiros, do elenco, dos cenários, do planejamento de cada produção e depois da montagem e finalização dos filmes, verificando o funcionamento de cada setor técnico e certificando a continuidade das produções, interferindo nas atividades quando fosse necessário. Somavam-se os trabalhos das produções em andamento e os projetos das futuras produções. Essa gama de funções requeria, então, não apenas confiança no trabalho dos demais, como também a eficiência da equipe. Basta lembrarmos da ênfase de Cavalcanti sobre a importância da coletividade nas atividades cinematográficas. A produção do primeiro filme da companhia, Caiçara, seria uma demonstração tanto deste espírito de trabalho coletivo por Cavalcanti, quanto da constatação dos efeitos causados pela negligência de partes da equipe. A começar pelo consentimento do produtor em relação ao argumento e ao diretor do filme em questão, para não parecer ditatorial logo no início de seu trabalho, ajudando o iniciante Adolfo Celi em sua aventura de direção e fazendo o máximo para melhorar o tema, considerado muito fraco113. Em novembro de 1949 o semanário cinematográfico paulista Cine Repórter anunciava a criação da Companhia Vera Cruz e a sua diretoria, além de sua primeira produção em longa metragem, Caiçara114. A equipe também era apresentada, ainda apenas com os técnicos contratados por F. Zampari, já que Cavalcanti estava, naquele momento, na Europa fazendo outras contratações. Nos meses seguintes apareceram diversas colunas a respeito da companhia, de seu funcionamento e de seus empregados, dado que a Vera Cruz tinha um setor específico de publicidade ligado à imprensa, fazendo com que todas as suas empreitadas fossem acompanhadas de perto pelo público, através das notas e textos em diversos jornais ou periódicos. Como efeito das diversas propagandas da Companhia e dos filmes, seriam criadas constantes

112 CAVALCANTI, Alberto. One man and the cinema. Introductions by Donald Richie, Henri Langlois and Jorge Amado. S.l. : s.n., 197-, p. 162, tradução nossa (“I was certain that, without having fully fledged technicians, I could not envisage the responsability of a director’s assignment that would necessarily be absorbing and would leave little time to my duties of General Producer”). 113 Ibidem, p. 161 – 162. 114 Cine Reporter – Semanário cinematográfico. Ano XVI – Número 721, São Paulo, 12/11/1949, p. 1, 3.

65 especulações e expectativas sobre tudo que envolvia ambos, o que inevitavelmente interferia na posterior constatação dos resultados efetivos. A presença massiva da Vera Cruz na imprensa alimentaria uma aura que não pode ser desconsiderada ao tratarmos dos eventos em que estava envolvida, sobretudo na ocasião dos lançamentos dos filmes, quando as obras eram cotejadas com o ideal propagandeado pela companhia durante o seu desenvolvimento. Na revista de cinema A Cena Muda uma extensa notícia é publicada na qual é delineado o funcionamento daquela “cidade cinematográfica”, da qual Cavalcanti é quase sempre o protagonista, ao lado das estrelas e dos diretores que variavam a cada produção.

Nem sempre encontramos Cavalcanti nos estúdios. O cineasta de “Na Solidão da Noite” faz questão de acompanhar de perto, passo por passo, todas as filmagens, e se move, guiando sua equipe, às localidades previamente escolhidas para cenário de seus filmes. [...] Mesmo quando Cavalcanti está ausente, São Bernardo vive grande agitação, com o recebimento diário do material para ser revelado, copiado ou “montado”115

Para o agrado da Vera Cruz, o texto confirmava a inexistência de um cinema brasileiro, o qual finalmente seria criado com a fundação da companhia e da “conquista” de Cavalcanti. Citando repetidamente o nome do produtor-geral, mas ainda não tendo conhecimento de quaisquer resultados de seu trabalho no país, já consideravam inquestionável o avanço do cinema nacional. A sua experiência e sensibilidade do “verdadeiro artista” garantiam produções diversas de tudo que fora feito antes no Brasil. E ainda, de antemão admitem a insensatez de exigir de Caiçara “as características próprias aos grandes filmes”, visto que qualquer novo estúdio precisaria passar por uma “fase de ajustamento de suas diversas seções”. Era necessário apenas que o filme fosse bem feito, digno de exibição no mercado estrangeiro, o que já seria um “fenômeno inédito no panorama cinematográfico brasileiro”116. Nesse sentido, A Cena Muda produz um sentido para a criação da Vera Cruz exatamente ao seu gosto: engrandece o empreendimento e ao mesmo tempo é modesto em relação ao nível de qualidade de suas primeiras produções. E dessa forma, consideravam que o sucesso seria inegável.

115 A cena muda, 07/11/1950. 116 A cena muda. Ano 29, nº 45, 07/11/1950.

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Caiçara

Apesar do argumento de Caiçara ter sido escolhido rapidamente, Cavalcanti revelaria que o diretor A. Celi não havia trabalhado na história conforme lhe fora instruído, pois estava dirigindo uma peça no Teatro Brasileiro de Comédia. O contratempo teria feito o produtor adiar o início das filmagens em dois meses. Posto que os estúdios em São Bernardo ainda estavam em construção, a produção começaria em locação externa, em Ilha Bela. Para Cavalcanti, essa fase das filmagens teria corrido normalmente, apenas “com as dificuldades habituais desse gênero de trabalho”, entre elas, a necessidade de substituir o técnico de som Eric Rasmussem que adoecera por outro contratado por Zampari. Contudo, depoimentos dos demais técnicos apontariam imensas dificuldades na produção devido a sua localização: uma ilha de caiçaras de difícil acesso. Com efeito, o transporte de todo o equipamento e maquinaria por barco não era algo simples. A impressão da “dificuldade” poderia ser interpretada também por ser uma novidade, ou pela ambição do projeto, já que a experiência de produção proposta pela Vera Cruz era algo diverso, grandioso, em relação às produções brasileiras de então. Para o produtor, a real complicação era a inexperiência de muitos dos técnicos de F. Zampari. O substituto de Rasmussem, “provou ser incapaz de exercer as funções de técnico efetivo e de gravar os sons necessários à película”117. O próprio diretor A. Celi não teria conhecimento da técnica cinematográfica, sendo lento e hesitante com os atores. Abílio Pereira de Almeida explicou que sendo um diretor muito inseguro, Celi filmava os planos de diversos ângulos e formas possíveis118. Ainda, ao voltarem aos estúdios para filmarem os interiores, o responsável pelos cenários Aldo Calvo não teria preparado as decorações. O 2º assistente de produção, Renato Consorte reiterou a questão da inexperiência geral: muitos técnicos não sabiam quais eram suas funções, obrigações ou direitos. No entanto, a Vera Cruz teria sido uma “escola de cinema”, pois entre os novatos haviam também os grandes técnicos trazidos da Europa119. Apesar dos percalços, Cavalcanti carregava a ampla responsabilidade de produtor-geral da companhia e, estando diante de sua primeira produção no Brasil, ele

117 GALVÃO, Maria Rita. Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1981, p. 98 – 99. 118 MARTINELLI, Sérgio. Vera Cruz – Imagens e Histórias do Cinema Brasileiro. São Paulo, SP : Abooks, 2002, p. 149. 119 Ibidem, p. 28, 34.

67 afirma que atuara com “estrita fiscalização” sobre o filme, realizando inclusive tarefas além de seu encargo, como as de A. Calvo, e instruindo de perto a direção de Celi. Com isso, ao fim das filmagens em Ilhabela, Cavalcanti afirmava que Caiçara:

foi terminado com o mínimo de atraso e sem que houvesse necessidade alguma de refilmagens, significando isso um grande triunfo numa equipe ainda não ambientada, vivendo sem conforto algum e não possuindo senão a maquinaria mais elementar.120

O filme conta a história de Marina (Eliane Lage), órfã de pais adoecidos pela Lepra, levada a se casar com José Amaro (Abílio Pereira de Almeida). O casal se muda para uma vila de pescadores em Ilha Verde, onde Marina estabelece diferentes relações com outras personagens: Sinhá Felicidade (Joaquina Rocha), ex-sogra e inimiga de José Amaro, a quem culpa pela morte de sua filha; Manuel (Carlos Vergueiro), sócio de José Amaro, que se apaixona pela moça; e Alberto (Mário Sérgio), marinheiro por quem Marina acaba se apaixonando. Para que o desejo de união de Marina e Alberto se concretize, uma série de eventos dramáticos ocorrem e aparentam ser ocasionados pelo mando religioso e social que Sinhá Felicidade tem sobre aquela comunidade caiçara121. O primeiro deles é a morte de José Amaro, por meio da qual Marina se liberta do casamento infeliz arranjado. O segundo é o acerto de contas com Manuel, responsável pelo assassinato do neto de Sinhá. Acuado pelos caiçaras diante de tal revelação, ele acaba morrendo em sua fuga de barco. Por fim Marina se liberta tanto da perseguição amorosa daquele homem, quanto do poder que ele exercia sobre o estaleiro do qual era sócio junto de José Amaro. Marina e Alberto selam sua relação e herdam o negócio do estaleiro – o mal parece ser expurgado, permitindo que haja harmonia entre os moradores da Ilha. A narrativa é predominantemente dramática, não apenas pelo sofrimento da personagem central protagonizada por Eliane Lage até encontrar o seu final feliz, mas também pela forma como os eventos se desdobram, nos quais se sobressaem os aspectos da cultura local que poderiam justificar o caráter nacional da ideologia promovida pela Vera Cruz. Um deles é a religiosidade expressa através da figura e das ações de Sinhá Felicidade, uma caiçara de forte influência na vila. Ou ainda, as

120 GALVÃO, Maria Rita. Op. cit., 1981, p. 100. 121 GONÇALVES, Maurício R. Cinema e identidade nacional no Brasil 1898 – 1969. São Paulo, SP : LCTE Editora, 2009, p. 177 – 182.

68 manifestações culturais dos caiçaras, como a congada e o caiapó122, além da própria expressão de seu trabalho na pesca, daqueles que vivem a beira-mar. A recepção crítica da obra não foi um consenso. Um ano após apresentar a criação da Companhia, o Cine Reporter anunciava em sua manchete o pré-lançamento da obra como “Um dia de jubilo na cidade cinematográfica Vera Cruz”, consentindo com o fato de que a companhia teria cumprido com a sua promessa de realizar um cinema de qualidade no país, promovendo então o filme como uma marca de “uma nova época para o cinema brasileiro”. Mais relevante é a consideração de que Caiçara era uma prova de que o país passava a conversar com o mundo no que diz respeito à sétima arte123, demonstrando o desejo de internacionalização do filme, partilhado pela Vera Cruz. Além dos elogios generalizados, ressaltam os aplausos para Franco Zampari, Alberto Cavalcanti e Adolfo Celi, principais responsáveis pelo sucesso da produção. Na coluna de Leon Eliachar, no semanário de arte A cena muda, malgrado as reclamações das má-organizadas pré-estreias e de sua incompreensão pelo convite a um público completamente desconhecido e que seria alheio ao meio cinematográfico, tudo se abstraíra após a projeção da obra, a qual confirmava a existência do cinema de boa qualidade no Brasil. A técnica é ressaltada e equiparada com a de qualquer cinema do mundo, fazendo referência ao neorrealismo de Rossellini em Stromboli (1950). Celi é considerado uma revelação, contudo teriam notado perfeitamente a “constante influência de Cavalcanti [...] em várias sequências da película.” E em relação ao tema do filme, afirmaram que “há de louvar a escolha de um argumento tipicamente brasileiro, do caboclo que vive à beira da praia, numa ilha, e que teve uma cenarização, senão perfeita, ao menos bastante cinematográfica e inteligente, mantendo o interesse da história da primeira à ultima cena”. Mas o próprio autor reconhece que haveria quem recusasse a nacionalidade do filme, em razão dos estrangeiros na equipe. Contudo, o autor termina seu artigo defendendo-a:

o fato é que a película foi rodada no Brasil, em estúdios brasileiros, com capital brasileiro, com artistas brasileiros e sob a supervisão geral de um

122 COSTA, Cláudio. A Vera Cruz e Caiçara: uma alegoria da nação brasileira, in Cinemais, nº 1, p. 86, 92, 100, apud GONÇALVES, Maurício R. Cinema e identidade nacional no Brasil 1898 – 1969. São Paulo: LCTE Editora, 2009, p. 178. 123 Cine Reporter – Semanário cinematográfico. Ano XVII – Número 772, São Paulo, 4/11/1950.

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brasileiro: Cavalcanti. ‘Caiçara’ é uma ‘amostra’ apenas do que se pode realizar e do que, efetivamente, se realizará no Brasil.124

Já na coluna de crítica de A cena muda, Alex Viany demonstra sua decepção com o filme. A obra é comparada com diversos filmes brasileiros, melhores que o da Vera Cruz, em relação à fraqueza narrativa da trama do italiano Adolfo Celi, à obviedade da música de Francisco Mignone, à mera funcionalidade da fotografia de Chick Fowle. Diferente da atuação dos personagens principais, cuja falta de direcionamento por Celi era evidente, aquela dos atores secundários e dos coadjuvantes, “tipos apanhados na Ilha Bela”, era a mais natural e, “assim como outros motivos folclóricos, estão deslocados do conjunto, como coisas e pessoas reais num todo irreal.”. Logo, a crítica de Viany parece se basear na superficialidade dominante do filme, a qual impossibilita a conexão verdadeira da história com aquilo que compõe o seu lado brasileiro. A despeito do desgosto por Caiçara, o autor torna explícita sua crença no trabalho de Alberto Cavalcanti, em vista de sua importância na formação da escola documentarista inglesa:

Tenho a certeza de que, uma vez ambientado no Brasil, e uma vez conseguindo desenvolver uma boa turma de cenaristas patrícios, suas histórias começarão a ter relações diretas com a nossa terra e a nossa gente, e seus filmes poderão ser apresentados em todo o mundo como legítimos representantes da cultura popular do Brasil.125

Na mesma linha retórica de Viany, Nelson Pereira dos Santos é ainda mais enfático em Fundamentos, com o seu artigo A negação do cinema brasileiro. Após esclarecer ao leitor o que seria o cinema brasileiro – aquele que reproduz nas telas a vida, as histórias, as lutas, as aspirações da gente brasileira, que respeita a verdade da realidade, mesmo que falho na técnica e na forma, aquele que mostra os pontos altos da riqueza material, moral e cultural que o povo constrói apesar das condições adversas – acaba denotando Caiçara como a sua negação. A equipe do filme é um dos alvos da crítica, pois seus integrantes não conheciam e não queriam ver a vida verdadeira dos caiçaras, de modo que teriam utilizado seu nome apenas pela sua sugestividade. Tal discussão demonstra como cada lado reivindica para si a realidade, neste caso, a de Nelson Pereira e de Fundamentos, acusando aquela revelada pelo

124 A cena muda, 23/11/1950 125 A cena muda, 21/12/1950

70 filme da Vera Cruz. A representação dos caiçaras é considerada depreciativa, ignorando o realismo de sua condição, já que o filme abordaria apenas um triângulo amoroso. Os costumes e festas presentes na obra teriam servido como meros recursos do “curioso e do anedótico”. O produtor Alberto Cavalcanti, contudo, seria isento de tais críticas, pois Nelson Pereira considera que ele tinha “sua liberdade tolhida” já que sua posição estaria “seriamente comprometida pela dominação do truste Universal Internacional, que agora amplia sua garras no Brasil, por meio da Vera Cruz.”126 Considerando o vínculo da revista Fundamentos com o Partido Comunista Brasileiro, e a ligação deste crítico e também de Alex Viany aos ideais partidários, é compreensível a sua posição diante da primeira obra da Companhia Vera Cruz, tão orientada pelas fórmulas estrangeiras, tanto como fonte direta de inspiração, no que tange os modos de produção, quanto pela adoção de uma linguagem universal para promover o diálogo com o grande público. A discussão a respeito das tendências políticas terá lugar mais adiante, no entanto, a apresentação dessas críticas a respeito de Caiçara requer tais esclarecimentos, para que seja possível compreender como o caráter universal pretendido pela Vera Cruz parecia ser entendido como um cosmopolitismo “desmoralizante”, como escrito por Nelson Pereira em sua crítica à Caiçara, pois não demonstravam de forma adequada o que deveria haver de “nacional” em um cinema “efetivamente brasileiro”. Até mesmo em Anhembi Benedito Junqueira Duarte tece críticas sobre os aspectos técnicos e temáticos do filme, definindo-o como um “misto de romantismo folhetinesco e de documentarismo folclórico”. Mas o significado de Caiçara iria além da obra em si, “promissora apesar de seus surpreendentes e inesperados defeitos”, tratava-se da “significação de um Cinema que nasce, de uma indústria que se instala, [...] começando por onde realmente deveria começar”127. Nesse sentido, B. J. Duarte reafirma o apoio que a revista dava à Companhia Vera Cruz e a Cavalcanti, possibilitando a interpretação de que o valor de seu desenvolvimento se sobrepunha ao resultado de sua produção. Quem realiza uma análise, de modo geral, mais positiva de Caiçara é Anatol Rosenfeld, na revista de fotografia Iris. Apesar de concordar que o argumento “não é grande coisa”, considera que há uma integração hábil dos “conflitos e aventuras amorosas [...] ao ambiente primitivo de Ilha Bela”:

126 Fundamentos. Nº 17, janeiro de 1951, p. 45. 127 Anhembi. V.1, nº1, dezembro de 1950, p. 179 – 180.

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Nota-se segurança técnica, a fotografia é extremamente bem cuidada, atingindo em certas cenas alto nível de expressividade. A montagem é boa e o som excelente; em suma, o filme possui as qualidades básicas que se espera de uma boa produção de distribuição universal. Mas Caiçara ultrapassa as ‘condições indispensáveis’ pela vigorosa apresentação da população litoral – e não hesitamos em dizer que foi esse o aspecto – não o caso amoroso – que comoveu o autor destas linhas.128

Se lembrarmos daquela concepção de cinema imaginada pelos criadores da Vera Cruz, a percepção de Rosenfeld sobre o filme parece responder às expectativas criadas: uma união equilibrada entre o nacional e o universal, ainda que ele tenha enfatizado mais os caiçaras do que propriamente o caso amoroso que norteia a narrativa. Estaria de acordo, também, com aquela reflexão do autor apontada no capítulo anterior a respeito da relação intrínseca entre a arte e a indústria na existência do cinema. Quando ele diz que o filme “ultrapassa as ‘condições indispensáveis’”, nos parece querer dizer que a obra, além de ser digna de uma produção de caráter técnico industrial, teria alcançado um patamar artístico digno de comover o público. Mas a tendência não foi essa e, como vimos, grande parte da crítica cinematográfica demonstrou certo desapontamento em relação ao filme, ou ao menos considerou que o resultado ficara aquém do esperado.

Painel e Santuário

Inspirado no famoso painel de Portinari, “Tiradentes”, a Cia. Vera Cruz pretende iniciar o seu primeiro documentário. Aproveitando um roteiro de um elemento capaz, que é Lima Barreto [...] a grande empresa paulista vai inaugurar um novo campo para suas atividades. [...] Alberto Cavalcanti está animado em impor um sentindo eminentemente brasileiro às produções da Vera Cruz, circunstância que, além de ter inspirado a ideia do primeiro filme dramático – “Caiçara”, cujos preparativos continuam – já passou para o setor do documentário.129

Conforme fora planejado, enquanto a produção de Caiçara se desenrolava nas instalações da Vera Cruz em São Bernardo, Cavalcanti colocava em marcha outros projetos futuros, sobretudo trabalhando na feitura e no aprimoramento de outros

128 ROSENFELD, Anatol. Na Cinelândia Paulistana. São Paulo, SP : Editora Perspectiva, 2002, p. 33. 129 A cena muda, 14/02/1950

72 roteiros. Além dos longas-metragens de ficção, os documentários curtos começavam a ser realizados. O primeiro deles, Painel, deveria ser exibido junto de Caiçara, e na sequência fora realizado Santuário, lançado com um ano de intervalo. As informações a respeito desse setor de documentários são poucas em comparação com as das produções dos longas-metragens. Sabemos que Lima Barreto fora contratado por Alberto Cavalcanti, indicado por Moniz Viana como um “grande documentarista”. No entanto, o produtor comenta que Barreto estava entre os técnicos com quem F. Zampari tinha “bate-bocas tremendos”130, e o próprio diretor revelaria que ele não era bem creditado na Vera Cruz. A realização de seu longa-metragem, realizado após a saída de Cavalcanti da empresa, O Cangaceiro, teria sido muito difícil por ser constantemente colocada em dúvida 131 . Além disso, um dado contraditório é exibido nos créditos de Santuário, no qual o diretor do filme é também apresentado como o seu único produtor. Mais tarde, em 1952, participando de uma Mesa Redonda na Rádio TUPI em São Paulo, Cavalcanti teria exposto a incompreensão a respeito da exclusão de seu nome nos títulos de apresentação do filme que ele havia produzido, um “esquecimento deliberado do sr. Lima Barreto, depois de minha saída da ‘Vera Cruz’”132. No meio da imprensa, notamos que apesar de noticiarem o começo do trabalho da Vera Cruz no campo do documentário, conforme foi ilustrado no texto de A Cena Muda, o desenvolvimento dos curtas não é acompanhado e eles reaparecem nos textos apenas quando são finalmente exibidos. Logo, apesar de investirem em suas realizações, os curtas-metragens documentais não aparentam ser prioridades nas notícias. Isso poderia ser explicado pelo fato de que a Vera Cruz almejava se consolidar como uma produtora de cinema de nível internacional. Para isso era necessário construir sua imagem através da imprensa priorizando a divulgação de filmes longos de ficção que poderiam competir com aqueles de fora do país. Os curtas, então, permaneciam como um setor paralelo, secundário em relação aos demais. No Brasil, o curta-metragem, principalmente o documental, já tinha um histórico em relação ao qual as produções da Vera Cruz teriam que se situar. Em um

130 GALVÃO, Maria Rita. Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1981, p. 102. 131 Cf. Ibidem, p. 143. 132 Anhembi. V.6, nº17, abril de 1952, p. 388.

73 primeiro momento, esse tipo de filme servira, sobretudo, como instrumento de promoção pessoal ou institucional, e também de ensino, conhecidos por filmes de “cavação”. Conforme cunhados por Paulo Emílio Salles Gomes, os temas poderiam ser resumidos por “berço esplêndido” e “ritual de poder”, já que eram, em sua maioria, produtos de encomendas de políticos e de altas classes da sociedade, através dos quais exaltavam o seu prestígio133, além daqueles que se debruçavam sobre as belezas naturais e o progresso urbano das cidades. Após a tomada de poder por Getúlio Vargas, uma nova época surgia para o cinema brasileiro, inclusive com a criação de departamentos voltados para a produção de filmes, sobretudo, de curtas- metragens documentais, como o DIP, os DEIP’s e o Instituto Nacional de Cinema Educativo. Contudo, conforme apontado por Autran, a perspectiva culturalista sobre o cinema e sua função educativa inibiam o desenvolvimento de uma produção voltada para o mercado134. Em 1932 fora instituído o primeiro decreto pela obrigatoriedade de exibição do curta-metragem filmado, revelado e copiado no Brasil, o que teria incentivado a produção desse tipo de filme, por exemplo, pela Cinédia, empresa carioca de produção e distribuição de cinejornais e de documentários que remetiam à antiga “cavação”. O próprio diretor da Vera Cruz, Lima Barreto, realizara nos anos 1930 um filme sob encomenda do Estado de São Paulo, Como se faz um jornal, e nos anos 1940 trabalhara para o Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda e também para uma produtora intitulada Sonofilms, dirigindo outras obras. A produção do curta-metragem foi uma constante no cinema brasileiro, principalmente aquela documental. Mas diante da dominância do longa-metragem de ficção como modelo hegemônico da sétima arte no contexto mundial e como principal produto de comercialização, o curta permanecia lateralizado, justificado por finalidades diversas, como “o livro de imagens luminosas” de Vargas. A produção de um curta-metragem em uma empresa como a Vera Cruz não nos parece um dado óbvio se lembrarmos da ambição da Companhia em realizar um cinema diverso da filmografia nacional anterior à sua criação, em vista de alcançar um cinema de nível internacional e de se consolidar como uma indústria. Contudo, a produção conforma-se com a presença contínua do curta na história da produção

133 Cf. BERNADET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: propostas para uma história. São Paulo, SP : Companhia das Letras, 2009, p. 41. 134 Cf. AUTRAN, Arthur. O pensamento industrial cinematográfico brasileiro. São Paulo, SP : Hucitec Editora, 2013, p. 352 – 353.

74 nacional. E também é inevitável supormos a influência de Alberto Cavalcanti na criação de um setor de documentários curtos na empresa, já que a sua experiência na escola documentarista inglesa e mesmo em outros estúdios demonstrara que tal produção era um complemento positivo na formação de uma empresa cinematográfica completa. Em seus textos, por exemplo, o produtor ressalta a realização de curtas- metragens documentais como boas oportunidades para o aprendizado, a prática e o experimentalismo cinematográfico, sem deixar de lado, contudo, o potencial de sucesso desses filmes no mercado exibidor. E de um ponto de vista temático, o formato possibilitava retratar a nação, o seu povo e a sua cultura, o que se acomodava muito bem com os objetivos da Vera Cruz. O filme Painel começa com o seguinte texto informativo, que coaduna com a nossa suspeita:

Este filme é o primeiro de uma série de documentários de curta metragem que a Cia. Cinematográfica Vera Cruz presente realizar em torno dos mais variados assuntos: desde as obras de arte – folclóricas ou não, às belezas naturais de nossa terra, os fatos da nossa história e os usos e costumes de nossa gente.

Após a apresentação da produção, direção e música, os únicos nos créditos do filme, adentramos em uma escola onde um professor fala sobre o trágico fim de Tiradentes na Inconfidência Mineira e a representação de sua história no painel do artista Cândido Portinari. Ele leva um aluno para ver a obra com o objetivo de fazê-lo compreender o episódio ali retratado. Apesar de sua estética moderna ser complexa para a compreensão do aluno, a obra serviria como instrumento de conhecimento, assim como o próprio filme servia ao seu público. Conforme o painel é mostrado em recortes e detalhes, os principais pontos da história são esclarecidos através de uma narrativa composta pelos cortes da filmagem e pela música de Francisco Mignone, articulados na montagem. O filme Santuário também tem uma abertura com informações ao público, agora com uma indicação de seu objetivo:

Além de reter e dar a conhecer às gentes um pouco da arte impressionante do escultor máximo do Brasil, êste documentário pretende ser, também, o preito que ao nosso primeiro artista presta a última das artes: o cinema.

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A forma através da qual ele realiza tais intenções é adotando uma dramatização no interior do documentário. O filme acompanha Zé Cristino à São Bom Jesus do Matozinho em Congonhas do Campos/MG, onde vai para pagar uma promessa, passando então pelos Doze Profetas de Aleijadinho. Apesar da narrativa percorrer da chegada ao fim da viagem do homem, o fato mais relevante do filme é o seu encontro com as esculturas dos profetas. A relação ali estabelecida é enfatizada pelos planos intercalados das figuras religiosas e de Zé Cristino, sob diversos ângulos, ora em detalhes, ora em perspectiva com a paisagem ao fundo. Além disso, textos religiosos são lidos por uma voz sóbria, sobre um fundo musical. A subida de Zé Cristino pelas escadas entre as esculturas ocupa a maior parte do filme, e sua aparência vagarosa parece não significar exatamente o tempo real da ação do homem, mas o tempo da construção de sua relação com os profetas, inclusive despedindo-se de um deles antes de partir. Ao fim, o público foi apresentado às esculturas de Aleijadinho através da experiência de Zé Cristino. Ambos os filmes foram muito bem recebidos pela crítica de cinema. É interessante ressaltar algumas formas de tal recepção. Uma delas é que, tendo sido apresentado na mesma época de Caiçara, mas nem sempre no mesmo programa que o longa, Painel acaba sendo mais apreciado que o outro filme, apesar de suas enormes diferenças. No mesmo texto em que Alex Viany fala de Caiçara, ele critica a sua trilha sonora e faz um comentário comparativo: “Muito melhor é a pequena partitura que Mignone compôs para o documentário ‘Painel’, de Lima Barreto, inexplicavelmente ausente do programa inaugural da Vera Cruz.”135 Outra avaliação foi a de garantia de qualidade do segundo filme do diretor diante do sucesso de sua estreia na Vera Cruz, constatada em Cine Reporter, antes mesmo do filme ter sido finalizado: “Os profetas do Aleijadinho são o motivo principal do filme, que pode ser considerado o melhor documentário já feito sobre a obra do famoso escultor mineiro.”136. Apenas dois meses depois o semanário anunciava que Santuário fora exibido em São Paulo, confirmando então os “não poucos aplausos” da crítica137. Em Iris, Rosenfeld mais uma vez enaltece a produção da Vera Cruz, afinado com as expectativas da empresa. Considera Painel um enriquecimento “não só do cinema

135 A cena muda, 21/12/1950, p. 10. 136 Cine Reporter – Semanário cinematográfico. Número 789, São Paulo, 3 de março de 1951, p. 8. 137 Cine Reporter – Semanário cinematográfico. Número 801, São Paulo, 26 de maio de 1951, p. 1.

76 nacional, mas do cinema universal”, um filme que “transforma-se em uma nova obra- prima, tendo por argumento a obra-prima de Portinari.”138 O reconhecimento das obras de documentário se estendeu após esse primeiro momento de seus lançamentos. Em setembro de 1951, o Cine Repórter noticiou a premiação em 1º lugar na seção de Arte em Geral, um dos prêmios mais importantes do Segundo Festival de Veneza de Films Cientificos e Documentários, “considerado como um dos mais categorizados certames cinematográficos da Europa”, tendo competido com produções da Europa e da América do Norte139. Mais tarde, em fevereiro 1952, a Anhembi informou que Painel e Santuário foram os filmes que representaram o Brasil no Festival Internacional de Cinema da Bienal de São Paulo, levando à escolha de Painel como a Melhor Película Brasileira140.

Terra é Sempre Terra

Na medida em que a produção de Caiçara se encaminhava para o final, Terra é Sempre Terra já começava a ser filmado. Como dito anteriormente, a realização deste filme não fora uma escolha de Alberto Cavalcanti, e ele se queixaria por não ter autoridade sobre as produções da empresa onde era, justamente, o Produtor-Geral. O filme que ele preparava seria a segunda produção da Vera Cruz, O Escravo da Noite, dirigido por Ruggero Jacobbi. No entanto, Franco Zampari e o diretor, que provinha do Teatro Brasileiro de Comédia, se desentenderam, ocasionando a demissão de Jacobbi, sem que Cavalcanti fosse consultado a respeito dos efeitos de tal ação. O produtor proporia então entregar à Adolfo Celi a direção do filme, agora um diretor de cinema já treinado. A decepção de Cavalcanti foi ter recebido a notícia de que Celi não desejava fazer outro filme antes de montar uma peça no Teatro Brasileiro de Comédia, sobre isto o produtor disse: “rebelei-me contra a insensatez de tal atitude, que denotava não somente falta de consciência profissional, como também ingratidão para comigo que tanto o tinha ajudado no seu primeiro filme”141. Apesar disso, para que não interrompessem a continuidade das produções da companhia, ele acabou

138 ROSENFELD, Anatol. Na Cinelândia Paulistana. São Paulo, SP : Editora Perspectiva, 2002, p. 34 – 35. 139 Cine Reporter – Semanário cinematográfico. Número 816, São Paulo, 8 de setembro de 1951, p. 1. 140 Anhembi. V.5, nº15, fevereiro de 1952. 141 GALVÃO, Maria Rita. Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1981, p. 102.

77 aceitando a proposta de Tom Payne da adaptação da peça Paiol Velho em Terra é Sempre Terra, a quem seu autor Abílio Pereira de Almeida havia confiado o trabalho, tendo considerado o argumento uma “produção relativamente fácil”. Contudo, rapidamente as dificuldades se revelariam, desde a adaptação, considerada muito fraca por Cavalcanti: “fui obrigado, com o sr. Guilherme de Almeida, durante noites consecutivas [...] a remendar às pressas o argumento deste segundo filme, Terra é Sempre Terra”142. A respeito do andamento das filmagens, o produtor conta que devido à rodagem do filme em locações externas, na Fazenda Quilombo em Campinas, enquanto a montagem de Caiçara era terminada nos estúdios de São Bernardo, ele viajava entre as dois locais de produções e não podia acompanhar “com rigidez” a direção de Tom Payne, assim como fizera com a de Adolfo Celi. Ao fim das filmagens fora necessário realizar algumas refilmagens, o que Cavalcanti considerava inevitável diante das circunstâncias, somadas à sua percepção de que Payne era um diretor muito pouco qualificado143. O filme retrata a circunstância do Paiol, antiga fazenda de café que sobrevivia do trabalho de seu administrador desonesto, Tonico (Abílio Pereira de Almeida). O herdeiro das terras, João Carlos (Mário Sérgio), praticamente abandonara aquele negócio diante do crescimento do meio urbano e da atividade industrial, pela qual crescia seu interesse, já que a atividade cafeeira decaía. Diante do retorno do aristocrata João Carlos à fazenda para cuidar dos negócios da família, as relações se tensionam. Lina (Marisa Prado), a esposa de Tonico, se apaixona pelo recém- chegado, conquista-o rapidamente, e acaba engravidando. O marido, mais interessado em alcançar a sua ambição em comprar as terras do Paiol, releva o caso da esposa. Tragicamente, ao fim do filme, quando Tonico finalmente realizara o seu desejo, descobre a gravidez de Lina e morre de um ataque fulminante. A conquista das terras pelo empregado é completamente desfeita, pois agora elas retornariam à família de João Carlos através do herdeiro que Lina carregava em seu ventre. Apesar do melodrama centrado no triângulo amoroso da narrativa, o contexto da história remete a um passado recente que chegava a se estender até aquele momento de sua realização. O declínio do negócio cafeeiro144, a ascensão das

142 Ibidem, p. 101. 143 Ibidem, p. 102. 144 É curioso lembrarmos do caso de um casal particularmente envolvido nos negócios da Vera Cruz e que servem de exemplo de tal contexto. Trata-se de Yolanda Penteado, herdeira da Fazenda Empyreo e

78 indústrias nas cidades, a valorização do estilo de vida urbano, a inalterável exploração dos patrões sobre seus empregados em diferentes instâncias. Mesmo assim, a crítica cinematográfica não teria reconhecido no filme uma relação verdadeira da história com o país, com a sua cultura, e o seu povo. Em Anhembi, o parecer começa pela percepção da fraqueza dos técnicos da equipe no tratamento do tema relevante, porém mal explorado. Acusava-se a falta de sensibilidade já presente em Caiçara, relativa ao “drama do homem do litoral” e agora ao “drama do homem da terra”: “Ambos os cineastas, adstritos à má cenarização de ambas as fitas, nada mais fizeram do que friamente conduzir um melodrama vulgar, impassíveis antes a grandiosidade de um tema social, candente de realismo e de atualidade” 145 . Mais tarde, em uma pesada crítica da revista Fundamentos, os dois longas-metragens da Vera Cruz são colocados entre outros filmes brasileiros da época, sobre os quais é feito o seguinte diagnóstico:

não podem ser tidos como brasileiros se nada apresentaram de brasileiro e nada contribuíram para a formação de uma tradição cinematográfica brasileira. [...] podem ser condenados em grupo como desnacionalizantes, mórbidos, pessimistas – e, naturalmente, cosmopolitas146

E até mesmo em Iris, na qual o autor das críticas de cinema normalmente elogia as obras da Vera Cruz, Rosenfeld considera o argumento como “superado e pouco adequado aos problemas do nosso tempo”. Ainda assim reconhece que os filmes da empresa teriam uma “viva consciência cinematográfica”, a qual inspirava “fé na capacidade da Vera Cruz de criar verdadeiras obras de arte, ao lado da necessária e constante produção de bons filmes de entretenimento que, afinal, garantem a base comercial de toda a empresa cinematográfica”147. Passado o primeiro ano de existência da Vera Cruz sob a produção geral de Alberto Cavalcanti, as quatro produções realizadas confirmavam o planejamento do produtor, com dois longas e dois curtas-metragens. As ideias para filmes futuros e a de suas plantações de café, que acabou sendo obrigada a reestruturar os desígnios produtivos de sua fazenda: vendeu parte das terras, cultivou bichos de seda e depois cana de açúcar. Ainda, casou-se com Francisco Matarazzo Sobrinho, um grande industrial em São Paulo, e ambos desfrutavam de uma vida cultural bastante rica na cidade, inclusive incentivando financeiramente o desenvolvimento de aparatos culturais, como a própria Vera Cruz. Cf. PENTEADO, Yolanda. Tudo em cor-de-rosa. Rio de Janeiro, RJ : Nova Fronteira, 1976. 145 Anhembi. V. 2, nº 6, maio de 1951, p. 586. 146 Revista Fundamentos, 02/1952, p. 45. 147 ROSENFELD, Anatol. Op. cit., 2002, p. 118 - 120.

79 preparação efetiva de outros roteiros era uma tarefa constante, com o propósito de não interromper a continuidade de produções da empresa. A média de filmes realizados por ano aumentaria com a adequação tanto da parte de estrutura física da companhia, como de seus estúdios, quanto da equipe técnica, da adaptação dos estrangeiros no país e da especialização dos aprendizes brasileiros. Estavam planejados para o ano seguinte, com argumentos em fase de preparação, cinco filmes: Os Irmãos das Almas, O Canto do Mar, As Doutoras, Salvo Seja e Ângela, estando este último mais avançado que os demais. Ele seria o primeiro filme da Vera Cruz escolhido por Cavalcanti, sobre o qual ele pensara há muitos anos e agora o preparava com a colaboração de outras pessoas para que um brasileiro, Martim Gonçalves, finalmente assumisse o papel de diretor naquela Companhia148. De acordo com o produtor, um terço de Ângela fora rodado sob a sua responsabilidade149, mas após sua saída da Vera Cruz, o argumento teria sido alterado e o resultado do filme não fora o que ele planejara: “A sutil atmosfera do original não pareceu, por certo, interessar ao gôsto dos meus sucessores”150. Ao fim de seu primeiro ano de trabalho, um balanço geral sobre a Companhia Vera Cruz teria sido realizado por Cavalcanti. As circunstâncias apresentadas a seguir baseiam-se em duas fontes: One Man and The Cinema151, texto referente às memórias do produtor, e o capítulo dedicado à sua trajetória na Vera Cruz escrito por Maria Rita Galvão, baseado no depoimento do produtor152. Em relação à equipe, ele acreditava que os atores contratados teriam sido bem aceitos pelo público e não lhes custavam muito, de modo que caberia somente à distribuidora aumentar a publicidade sobre eles. Também não considerava a unidade de filmagem muito grande, pois cada membro realmente exercia sua função e nenhum salário era do “nível de estrelas”. Considerava apenas que Terra é Sempre Terra fora o ponto negativo da empresa, dada à fraqueza dos diretores de cena envolvidos na produção.

148 GALVÃO, Maria Rita. Companhia Cinematográfica Vera Cruz: A fábrica de sonhos. Tese (Doutorado em Linguística e Línguas Orientais) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 1976, p. 749. 149 GALVÃO, Maria Rita. Op. cit., 1981, p. 108. 150 CAVALCANTI, Alberto. Filme e Realidade. São Paulo, SP : Livraria Martins Editora S.A., 1953, p.19 – 20. 151 Idem. One man and the cinema. Introductions by Donald Richie, Henri Langlois and Jorge Amado. S.l. : s.n., 197-, p. 190 – 192. 152 GALVÃO, Maria Rita. Op. cit., 1976, p. 751 – 752.

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Em certo momento, ele afirma ter constatado nas folhas de balanço financeiro da companhia a inclusão, além das despesas convencionais do filme, da construção dos estúdios, da compra de maquinaria, das viagens dos técnicos, um subsídio para o Teatro Brasileiro de Comédia, também administrado por Franco Zampari. Logo, o produtor deixaria claro para o administrador que qualquer laço financeiro entre a Companhia Vera Cruz e o seu Teatro deveriam ser evitados, além de queixar-se do mau comportamento dos diretores do TBC empregados para as produções fílmicas. Em um relatório para a diretoria redigido por Cavalcanti a respeito de seu primeiro ano de trabalho, ele teria reiterado o sucesso de bilheteria de Caiçara e faria algumas “sugestões construtivas”, entre elas, “a importação de um técnico europeu especialista em administração de estúdio, ‘porquanto o sr. Carlo Zampari não poderia dar conta, no próximo ano, dos trabalhos decorrentes da filmagem de cinco produções’” 153. Em relação aos gastos, teriam sido “razoáveis” considerando a fraqueza da administração. De modo geral, o produtor estava satisfeito com o andamento de seu trabalho: “Eu senti que estava em uma posição forte mas tive um tremendo choque. Os dois irmãos [Franco e Carlo Zampari] me disseram que queriam contratar um produtor que pudesse fazer filmes baratos. E que minha ambição de fazer filmes internacionais não funcionava no Brasil.” 154 A partir disso se encaminharia efetivamente a saída de Cavalcanti da Vera Cruz, pois o seu contrato garantia que ele fosse o produtor único da empresa, impedindo a contratação que os irmãos Zampari almejavam. Além disso, a ambição de fazer filmes internacionais não deve ser atribuída apenas a Cavalcanti, uma vez que este era um dos planos da Companhia desde a sua fundação. Apesar de ter sido convencido por Ciccilo Matarazzo a aceitar tal mudança, suas sugestões em benefício da companhia não foram acatadas, e Cavalcanti acusa a criação de um “ambiente de animosidade” contra ele pelos “elementos italianos” da Vera Cruz, fazendo referência principalmente ao seu administrador. Ele ainda permaneceu na companhia por algum tempo, mas rapidamente as interferências constantes de F. Zampari em seu trabalho e no seu contrato, inclusive com a proposta para que deixasse de trabalhar e continuasse

153 Ibidem, p. 751. 154 CAVALCANTI, Alberto. Op. cit., 197-, p. 192, tradução nossa (“So I felt I was in a very strong position but got a tremendous shock. The two brothers [Franco e Carlo Zampari] told me they wanted to sign on a producer who could make cheap films. They added that my ambition to make international films didn’t work in Brazil.”)

81 recebendo seu salário, fizeram com que o produtor saísse da Vera Cruz em meio à produção de Ângela. Dos eventos recordados, temos a impressão de que assim como Cavalcanti não consentia com as abordagens adotadas por Zampari na gerência da companhia, este também não se ajustara ao produtor-geral da Vera Cruz. Dado que os motivos esclarecidos por Cavalcanti a respeito dessa espécie de afastamento forçado teriam naturezas diversas, como a difamação de seu caráter por um lado, e por outro a quebra de contrato, suspeitamos que tais justificativas estivessem ligadas a um contexto social mais complexo, e que o recorte sobre o funcionamento interno da Vera Cruz limita a nossa capacidade de averiguar a profundidade de tal desconfiança. Os diversos depoimentos de pessoas envolvidas no processo de criação e de desenvolvimento da Companhia Vera Cruz, coletados por Maria Rita Galvão155, esclarecem a impossibilidade de se efetuar uma reconstituição precisa dos acontecimentos, uma vez que entre eles as informações são frequentemente ambíguas, contraditórias, além de envolverem não apenas dados a respeito do trabalho realizado, mas de desavenças pessoais, bem como de julgamentos morais. A escolha de basearmos nosso trabalho majoritariamente pelos relatos de Cavalcanti pode aparentar um mero interesse em defender a sua posição nesse emaranhado de vozes. Não se trata, contudo, de sua defesa, mas da perspectiva de uma personalidade relevante, na história do cinema brasileiro, sobre aquele período vivido. Preferimos então continuar pensando sobre a atuação de Cavalcanti como produtor cinematográfico no Brasil, ampliando então as possibilidades de compreensão sobre o seu trabalho e posição no Brasil. Por último, desejamos apontar uma reflexão do produtor que parece resumir a sua impressão a respeito dessa fase de sua trajetória: “Byron diz em algum lugar, de forma muito simples: ‘E quando achamos que estamos conduzindo, estamos sendo conduzidos […] Este foi o meu caso na Vera Cruz.”156

155 Cf. GALVÃO, Maria Rita. Op. cit., 1981, p. 94 – 224. 156 Ibidem, p. 178, tradução nossa. (“Byron says somewhere, very simply: ‘And when we think we lead, we are most led.’ [...] Such was my case in the Vera-Cruz.”)

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O Canto do Mar

Rompendo com a cronologia dos eventos ocorridos na época, daremos um curto salto na trajetória de Cavalcanti no Brasil para nos atermos à produção cinematográfica que ele executou em seguida. Todavia, entre a saída da Vera Cruz e a realização de O Canto do Mar, alguns acontecimentos relevantes marcaram a carreira do produtor. O convite de Getúlio Vargas para o desenvolvimento do projeto de criação do Instituto Nacional de Cinema nos parece ter grande importância para este estudo, pois o documento que resultou do pedido do presidente é um ponto importante na trajetória de Cavalcanti no país como produtor de cinema. Por isso, nosso próximo capítulo se dedica inteiramente ao projeto do INC. Outro empreendimento foi a direção do filme Simão, o Caolho (1952), ou seja, o primeiro filme dirigido por Cavalcanti no Brasil. Uma das demais produtoras abertas em São Paulo na época da Companhia Vera Cruz foi a Cinematográfica Maristela, em 1951, compondo o grupo de outros empreendimentos industriais da Família Audrá157. Mário Audrá Jr, Marinho, o filho responsável pela nova empresa, começava a entrar no mundo do cinema e ficou responsável pela parte da produção, enquanto Ruggero Jacobbi, o qual rompera anteriormente com a Vera Cruz, cuidaria da parte artística. Apesar dos primeiros planos de Marinho serem inspirados no neorrealismo italiano, em termos de estilo e de orçamento, a ideia inicial foi transformada e passou a se inspirar no modelo de grandes estúdios da “prima rica”158, a Vera Cruz. A produtora se desenrolava em tentativas de obter sucesso com seus filmes e lucro para seu sustento, sendo O Comprador de Fazendas (1950) uma de suas melhores produções nesse sentido. Quanto a Cavalcanti, ele teria sido contratado por Marinho antes mesmo de saber em qual projeto estaria envolvido, e apenas posteriormente surgiria Simão, o Caolho, no qual começaria a trabalhar de fato. As memórias de Marinho em relação a Cavalcanti demonstram grande admiração, pois ambos teriam trabalhado juntos em diversas circunstâncias que aprofundariam a amizade. Além disso, nos parece que a ligação entre os dois se estreitaria em decorrência do sentimento constante de luta enfrentado

157 Cf. CATANI, Afrânio Mendes. A sombra da outra - A Cinematográfica Maristela e o cinema industrial paulista nos anos 50. São Paulo, SP: Panorama do saber, 2002. 158 Catani chama a Cinematográfica Maristela de “prima pobre” da Companhia Vera Cruz, o que parece que a torna, por sua vez, a “prima rica”.

83 pelo produtor cinematográfico no Brasil, expresso diversas vezes por Audrá Jr. em suas memórias:

Reuníamo-nos para lutar pelos direitos e pela valorização de uma profissão que sofria as mais absurdas discriminações. O produtor cinematográfico era considerado, na melhor das hipóteses, um aventureiro e explorador de incautos – ou seja, um autêntico ‘picareta’.159

Devido ao fato de que Cavalcanti não trabalhou como produtor em Simão, o Caolho, não nos alongaremos muito a seu respeito, contudo, identificamos em seu trabalho na Maristela dois pontos importantes. O primeiro deles foi a presença de um certo alívio recorrente nos meios cinematográficos nacionais relativo à permanência de Cavalcanti no Brasil, pois, após tempos tão curtos em projetos diferentes – na Vera Cruz e com o INC – surgiam boatos sobre o seu retorno para a Europa, até que o surgimento do novo contrato com a Maristela assegurava o contrário160. O segundo ponto importante é a singularidade da função assumida por Cavalcanti neste momento em relação às suas demais posições no meio cinematográfico brasileiro. Pela primeira vez desde a sua chegada no país ele devia exercer uma função - a de diretor cinematográfico – a qual acreditamos ter um caráter mais bem delineado em comparação com aqueles de seus trabalhos anteriores – Produtor-Geral na Vera Cruz e formulador do projeto do INC. Isso se deve, sobretudo, ao fato de que ele fora contratado por um empreendimento já estabelecido, diferentemente das circunstâncias nas quais suas funções passadas se desenrolaram. Por mais que a Maristela tivesse sido fundada há aproximadamente um ano e que ainda lutasse para encontrar a melhor forma de fazer seus negócios terem sucesso, podemos considerar que ela já tinha uma base formada no momento em que Cavalcanti começava seu trabalho na produtora. Sendo assim, caberia agora à ele “simplesmente” dirigir um filme em uma companhia pela qual ele não era o grande responsável. Por mais que a direção conservasse uma parcela grande de prestígio no meio cinematográfico, não apenas pelo valor simbólico e artístico incutido no papel do diretor, mas também pela dificuldade enfrentada por realizadores em desfrutar da oportunidade de dirigir um filme em um produtora relativamente grande, ponderamos que, naquela época, contraditoriamente, o papel do produtor ganhava ares de maior relevância. Isso se deve, possivelmente, ao modelo de

159 AUDRÁ JÚNIOR, Mário. Cinematográfica Maristela: memórias de um produtor. São Paulo, SP : Silver Hawk, 1997, p. 97. 160 CATANI, Afrânio Mendes. Op. cit., 2002, p. 139.

84 produção que as empresas da época seguiam, no qual o papel do produtor está relacionado não só com o desenvolvimento de projetos fílmicos individuais, mas especialmente, com a responsabilidade sobre o conjunto de produções que sustentariam o negócio cinematográfico. Precisamente nesta posição à frente da Maristela, Mário Audrá Jr. afirma que “Se um filme fracassa, o produtor arca com o prejuízo e além disso é o responsável direto, pois foi quem escolheu o diretor. E se o filme é um êxito, a glória cabe ao diretor, que o realizou”161. Sendo assim, Cavalcanti poderia desfrutar de uma situação mais confortável que as enfrentadas anteriormente. Na ocasião do lançamento de Simão, o Caolho, o diretor teria dado uma entrevista à Folha da Manhã, na qual uma de suas falas parece trazer um consenso à nossa reflexão: “a única coisa que desejo fazer é trabalhar e não desejo me ligar a nenhuma atividade coletiva do cinema brasileiro, pelo menos até que a parte ética seja compreendida. O problema técnico no cinema brasileiro está resolvido. O que falta resolver é o lado ético”162. Podemos suspeitar que o “lado ético” sobre o qual ele fala estaria ligado parcialmente àquelas revelações de Mário Audrá Jr. a respeito da “praga” da “descaracterização da função de produtor”163. O que causaria contradição, porém, é o fato de que logo em seguida Cavalcanti entrou em um novo projeto coletivo: a criação da Kino Filmes. A fim de continuar trabalhando com cinema no Brasil, distante agora de atividades envolvidas com a política, ele aderiu a esta nova produtora cinematográfica, cuja responsável era uma jornalista carioca, Elsa Soares Ribeiro. Conforme Afrânio Mendes Catani esclarece, ela teria feito “promessas fascinantes” ao produtor, mas,

a verdade é que se levantou dinheiro na base dessa política financeira [cooperação valiosa e boa vontade dos achegados ao Catete], cerca de 12 milhões do Banco do Brasil, além de outras somas provindas de grande número de acionistas particulares, levados pela sua confiança no nome de Cavalcanti que, posto na direção técnica e por isso participante da administração da Kino Filmes, longe estava de imaginar em que quadrilha se metia164

De acordo com Catani, Cavalcanti fora uma fachada para a criação de uma sociedade anônima cuja mercadoria, na verdade, eram ações. Mesmo assim a empresa

161 AUDRÁ JÚNIOR, Mário. Op. cit., p. 45. 162 CATANI, Afrânio Mendes. Op. cit., 2002, p. 141. 163 AUDRÁ JÚNIOR, Mário. Op. cit., p. 155. 164 CATANI, Afrânio Mendes. Op. cit., 2002, p. 158.

85 se organizava e ele acreditava de fato estar envolvido com um grupo “preocupado apenas em fazer cinema”165. Em A cena muda, Jurandyr Noronha, que acompanhara o produtor desde o projeto do INC, expunha em uma entrevista os planos da Kino Filmes166. Planejavam construir seus estúdios ou em Mogi das Cruzes ou na estrada de Campinas, os quais seriam os mais modernos da América do Sul. No entanto, a Kino acabou comprando os estúdios em Jaçanã da Cinematográfica Maristela, a qual encontrara o aluguel e a venda de seus bens como solução para a crise que enfrentava. Quanto às produções, almejavam realizar nove filmes por ano, sendo que alguns deles já estavam em processo de roteirização. Destacava três obras biográficas: a de Santos Dumont, a de Vital Brasil e a de Aleijadinho. Os demais filmes eram “mais leves”, do gênero de Simão, o Caolho. Cavalcanti, apesar de ser o Diretor-Geral da Kino, dedicou-se às filmagens do seu novo filme, O Canto do Mar, do qual ele era produtor e diretor. O projeto já existia desde os tempos da Vera Cruz, mas só agora Cavalcanti conseguia concretizá- lo. O filme era uma adaptação de uma de suas primeiras realizações como diretor na França, En Rade (1927), mas agora a história se passava no Recife. Em uma entrevista na cidade, Cavalcanti antecipava informações sobre o filme:

É meu desejo aproveitar o mais possível os temas regionais. Porque como você sabe, é através do regional que melhor atingimos o universal. Naturalmente que com uma boa fatura técnica. A ação deste meu próximo filme está situado no nordeste, captando a vida e os verdadeiros costumes da região.167

Posteriormente, em suas memórias, ele daria mais detalhes a respeito da circunstância do momento. Conta que entre os três roteiros que tinham sido deixados com ele pela Vera Cruz, os quais seriam difíceis de ser produzidos sem estúdios e uma unidade treinada, escolhera O Canto do Mar, pois era o menos complicado e poderia ser filmado sem a necessidade de interiores em estúdios168. Contudo, a escolha pelo deslocamento das filmagens de São Paulo para Recife não nos parece tão simples assim. Podemos apenas especular sobre outros motivos, mas as circunstâncias

165 Ibidem, p. 161. 166 A cena muda. 14-11-1952. 167 ARAÚJO, Luciana. Crônica de Cinema no Recife dos anos 50. Recife, PE: Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco, 1997, p. 140. 168 CAVALCANTI, Alberto. One man and the cinema. Introductions by Donald Richie, Henri Langlois and Jorge Amado. S.l. : s.n., 197-, p. 205.

86 conflituosas da presença de Cavalcanti em São Paulo podem ter influenciado no seu afastamento para outro estado, um lugar menos afetado pelos seus conflitos. A reação da imprensa recifense, porém, foi prolífica e muito diversa. Questionavam tanto o potencial de Cavalcanti quanto a possibilidade de se realizar um bom filme no estado de Pernambuco169, mas mesmo assim o projeto foi levado à cabo. O produtor foi para o Recife e começou a pré-produção das filmagens. Sendo ele mesmo diretor, produtor e um dos donos da empresa produtora, podemos deduzir que finalmente agia com maior liberdade, sem precisar convencer ninguém de sua equipe sobre a sua capacidade em desempenhar suas funções. Cavalcanti dependia, contudo, do envio de dinheiro e de películas virgens pela Kino Filmes, situada no estado de São Paulo. Os equipamentos e os técnicos, entre eles, o fotógrafo Cyrill Arapoff, o cenógrafo Ricardo Sievers, o diretor de produção Oswaldo Katalian e o compositor Guerra-Peixe, também vinham de lá. Quanto aos atores do filme, a decisão fora a de compor todo o elenco com profissionais pernambucanos, vindos do teatro e do rádio. Contando com um orçamento modesto, o produtor procurou o governador Agamenon Magalhães “para pedir facilidades de filmagem, hospedagem e localização do pessoal técnico e da aparelhagem” 170 , o qual teria apoiado a iniciativa cinematográfica. Além disso, Cavalcanti conseguiu uma série de outros apoios oficiais171 durante a produção do filme, sobretudo porque muitas das filmagens foram feitas nas ruas da cidade, em locais públicos que dependiam de uma organização de ordem do município: filmaram em uma casa de pescador, construída para que pudessem tirar qualquer um de seus quatro lados, em armazéns das docas, em um antigo hospital, no mercado e em casas distintas. Compunham ainda o roteiro do filme festejos e manifestações culturais próprias da região, de modo que a produção contava com a contribuição da população local para tornar os eventos tradicionais o mais

169 Cf. ARAÚJO, Luciana. Op. cit. 170 Ibidem, p. 140. 171 Luciana Araújo detalha os significativos apoios oficiais que Cavalcanti conseguiu para a produção de O Canto do Mar: Patrimônio Histórico do Estado de Pernambuco – engenheiro-chefe dr. Airton de Carvalho: alojamento da equipe em preparação em Olinda; Departamento de Documentação e Cultura: preparação de um Bumba-meu-boi e um Maracatu, escolha de dançarinos de frevo; Fundação Joaquim Nabuco: fornecimento de informações sobre o Xangô; Secretário de Agricultura dr. Gomes Maranhão: cede avião para a equipe de Cavalcanti em viagem para a zona sertaneja do Estado; Arcebispo do Recife: facilitou a escolha de ambientes e esculturas de estilo barroco; Corpo de Bombeiros: molha o calçamento da rua Vigário Tenório para as primeiras filmagens noturnas; Polícia: isola um quarteirão para filmarem na rua de São José. Cf. Ibidem, p. 150 – 152.

87 verossimilhantes possíveis. Luciana Araújo estudou a crônica de cinema do Recife nos anos 1950 e sua pesquisa nos revelou muito a respeito da produção de O Canto do Mar. Sobre o assunto em questão, ela expõe o seguinte:

Uma das ‘Notas de Filmagem’ agradece à Marinha, e especialmente ao Almirante Cox, por interromper os trabalhos de demolição do Forte do Buraco, para que pudessem ser filmadas cenas de amor entre os personagens Aurora e Raimundo (DP, 29/mar/53, 2ª Seção, p.3). Também não faltou apoio para a realização da sequência do xangô.172

O próprio Cavalcanti também contaria a respeito da ajuda que recebeu do irmão que era da Marinha: “Com a ajuda da Marinha, graças ao meu irmão almirante, emprestaram caminhões com motores e lampas elétricas, e alojamentos para a nossa pequena unidade na escola de treinamento para marinheiros.”173 O andamento das filmagens, muito comentado pela crônica local, sofreu algumas interrupções, sobretudo ocasionadas pela falta de filme virgem. A produção lidava também com constantes dificuldades acentuadas pela “apatia inexplicável” dos colaboradores de Cavalcanti em São Paulo174. Toda essa circunstância teria causada um enorme desgaste ao produtor e à sua equipe175. Após quase um ano desde o início da pré-produção, em junho de 1953, as filmagens foram enviadas para os estúdios da Kino Filmes, onde foram feitos os trabalhos de dublagem, montagem e música do filme. Quatro meses depois O Canto do Mar foi lançado no Recife. O filme retrata a família de Raimundo (Ruy Saraiva), um rapaz jovem, que tenta conciliar as relações entre seus parentes próximos, perturbadas por diferentes motivos, sem desordenar também o seu próprio envolvimento amoroso com Aurora (Aurora Duarte). Mas antes de adentrarmos neste universo somos guiados pela partida de retirantes do sertão, onde tudo abandonaram devido à condição de seca acentuada na região, em direção ao litoral. A sua chegada é marcado pelo encontro comovente com o mar e pela aproximação da realização de seus objetivos: partir para o Sul do país em busca de uma vida melhor. O estilo deste início do filme é característico daquele dos documentários, nos quais um narrador complementa as imagens com

172 Ibidem, p. 152. 173 CAVALCANTI, Alberto. Op. cit., 197-, p. 205, tradução nossa (“With the help of the Navy, thanks to my admiral brother, I was loaned trucks with motors and eletric lamps and given lodgings for our small unit in the training school for the sailors”). 174 CATANI, Afrânio Mendes. Op. cit., 2002, p. 161. 175 CAVALCANTI, Alberto. Op. cit., 197-, p. 205 – 206.

88 informações sobre o que se vê, como se fôssemos acompanhar toda a trajetória daqueles retirantes para o sua nova terra. No entanto, quando eles chegam à praia, o filme é revestido pelo caráter ficcional, por meio do qual se instala um drama familiar: a mãe de Raimundo (Margarida Cardoso) dialoga com suas companheiras de trabalho sobre os recém-chegados à cidade enquanto lavam roupas na beira do rio. A família vive em uma pequenina casa no que parece ser uma vila de pescadores perto do mar. Raimundo e Ponina (Cacilda Lanuza), sua irmã, se recusam a permanecer naquelas condições miseráveis em que viviam, na qual o caçula Silvino morrera. Ponina se encantara com a vida elegante e urbana de uma prostituta para quem sua mãe trabalhava e acabaria fugindo de casa para seguir o mesmo caminho. Raimundo, contudo, carregava nas costas o fardo familiar: queria ajudar o pai, Zé Luis, que tivera complicações psicológicas após um acidente no mar e acabara expulso de casa pela esposa, e desejava leva-lo para o Sul, junto com Aurora. Os desejos de mudança são constantemente confrontados pela mãe, a qual negava a possibilidade de qualquer alteração nas suas condições. O Canto do Mar termina sem qualquer redenção: Ponina torna-se uma prostituta que trabalha no cais, Aurora parte para o Sul com outro rapaz, o pai da família, Zé Luis, morre, e Raimundo acaba sendo chantageado pela mãe, que descobrira o seu roubo de uma mercearia local para conseguir comprar as passagens da sonhada viagem, agora completamente frustrada. O drama é patente, e a história não foge dos lugares-comuns das narrativas tradicionais. No entanto, podemos dizer que é o ambiente e a cultura de onde se passa a história que enriquecem o filme. A circunstância social dos retirantes e dos protagonistas do filme, cujo principal objetivo é partir para outro lugar e ter melhores condições de vida, de imediato remete a uma realidade brasileira. Ainda assim, a riqueza das manifestações culturais da região a que pertencem é demarcada no decorrer de toda a narrativa, com sequências longas demonstrando o Frevo, a festa folclórica e tradicional do Bumba Meu Boi, o ritual religioso do Xangô, o Maracatu e o Galope a Beira Mar. Os eventos não determinam necessariamente a continuidade da história e ainda assim ocupam grande parte do filme, dando uma forma particular aos dramas das personagens. As escolhas de Cavalcanti na realização deste filme teriam provocado opiniões bastante polarizadas. Ele mesmo revelou, posteriormente, que havia sido avisado a respeito da perigosa recepção que O Canto do Mar poderia ter:

89

Eu havia sido avisado que o tema de “O Canto do Mar” era perigoso, já que a maior parte dos brasileiros é muito orgulhosa dos ‘ricos’ do nosso país e eles se opõem à exibição da pobreza. Então eu tive sérias apreensões a respeito da recepção do filme no mercado nacional e apostara no internacional. Muitas vezes, enquanto filmávamos em Recife, éramos interpelados e as vezes insultados por passantes.176

Mas se de um lado houveram críticas impiedosas ao filme, de outro lado Cavalcanti recebera os melhores elogios desde a sua chegada ao Brasil. Antes da estreia começaram as especulações a seu respeito. Cine Repórter publicou uma nota na qual ressaltava os “sacrifícios” vividos durante as filmagens, aliviados pelo término da produção do primeiro filme da Kino Filmes. A expectativa era grande:

A película que, como se sabe, foi rodada no interior e na capital de Pernambuco, promete grandes surpresas, pois foi feita pelo sistema néo- realista, usado pelos italianos. Gira em torno do drama do êxodo nordestino e os artistas foram todos escolhidos pelo “mestre.”177

Poucos dias depois, o semanário informava ao leitor a respeito dos trabalhos de dublagem do filme, dando ênfase ao papel de Cavalcanti, “à frente de todas as iniciativas, interessado em que a produção de estreia de sua companhia apresente nível técnico e artístico que venha a marcar um avanço para o Cinema Brasileiro”178. As atrizes teriam vindo para São Paulo dado o desejo de que “a fala constante da gente de lá esteja também em ‘O Canto do Mar’. Cavalcanti quer a autenticidade e realismo apesar de a primeira apresentação da KINO FILMES trazer também a maior poesia e beleza”. Notamos então, que a esperança depositada em Cavalcanti como alguém cujas ações no país marcariam profundamente o cinema nacional perdurou desde a sua entrada na Vera Cruz até a realização deste filme, do qual ele era responsável pela produção e direção. Também se acentuava o sentimento pelo caráter de novidade da criação de sua própria companhia produtora, a Kino Filmes. O acolhimento do filme pela imprensa teria assumido, por vezes, ares contraditórios na medida em que era necessário não apenas levar em conta o filme,

176 CAVALCANTI, Alberto. Op. cit., 197-, p. 206, tradução nossa. (“I had been warned that the subject of “O Canto do Mar” was a dangerous one, as most Brazilians are very proud of the ‘riches’ of our country and they object to the showing of poverty. So, I had serious fears about the reception of the film in the national Market and bidded for the international one. Many times, while shooting around Recife, we were interpelled and sometimes insulted by passers-by.”) 177 Cine Reporter, 20/6/1953. 178 Cine Reporter. 4/7/1953.

90 mas também a atuação de Cavalcanti. Uma crítica em A cena muda apontava que O Canto do Mar era uma “fita incompleta, irrealizada”179. O autor responsabilizava o escritor José Mauro de Vasconcelos pela fraca adaptação do filme: “Sente-se a falta de unidade, o filme parece contado aos pedaços. As cenas não parecem se suceder uma em consequência da outra”. O problema constatado, no entanto, não nos parece ser exclusivamente do escritor, sendo apropriado considerar também a montagem e mesmo a direção. Mas o texto faz questão de esclarecer que “a contribuição estética de Cavalcanti, a sua direção, não ficaram comprometidas.” Ao fim, o diretor se tornava a exceção elogiosa em meio a um “melancólico resultado.” De um lado, intelectuais como Jorge Amado, Vinícius de Moraes, Roger Bastide e José Lins do Rego aplaudiram a obra, enquanto de outro lado, boa parte da crítica especializada considerava O Canto do Mar “pretensioso”, “mistificador” e “decepcionante”180. Na época do lançamento do filme, outra divisão de opiniões foi constatada na revista Manchete: “Mas embora elogiada a fotografia e a música, ‘O Canto do Mar’ foi recebido com sérias reservas pelos assistentes e pela crítica local. [...] A crítica paulista (que já viu o filme) discorda dos pernambucanos. Os cariocas desempatarão” 181 . Pouco tempo depois, o crítico desse mesmo jornal carioca, Salvyano Cavalcanti de Paiva, anunciou o filme como a “maior decepção cinematográfica de 1953” e lamentou a “decadência do outrora grande cineasta Alberto Cavalcanti”182. A beleza do filme decorria apenas da paisagem natural do Nordeste, sendo que a história era de um “pessimismo que não se justifica” e o folclore pernambucano não funcionava no enredo. Ao todo, a obra era “indefensável” e o autor ainda provocava os amigos de Cavalcanti, “os B.J., os almeida salles, os trigueirinhos”, pois considerava que nem eles encontrariam argumentos a respeito das possíveis qualidades do filme. Mas em Anhembi, o amigo B. J. Duarte encontrou os tais argumentos de defesa do filme, o qual fazia jus ao seu diretor e à sua participação na escola de documentário inglês. A obra era “um puro documentário do norte do Brasil, com suas imagens despojadas de qualquer virtuosismo”183. Além disso, em O Canto do Mar ele concretizava o seu desejo de realizar um “cinema brasileiro”, mais no conteúdo do

179 A cena muda. 20/1/1954. 180 CATANI, Afrânio Mendes. Op. cit., 2002, p. 165. 181 Manchete. 24/10/1953. 182 Manchete. 26/12/1953. 183 Anhembi. Dezembro de 1953, vol. XIII, nº 37.

91 que na forma, perceptível desde Caiçara, alcançando agora o seu máximo sucesso. Uma das principais críticas de alguns sobre o filme, era também o seu ponto alto para outros:

Esta linguagem original de “O Canto do Mar”, acusando-se o seu autor de haver encaixado, “a martelo”, em sua peça, situações avulsas, apenas para mostrar o folclore, o “pitoresco” do Nordeste. Nada disso aconteceu, como se vê. Tudo foi feito preconcebidamente, incrustando-se as situações ao esquema dramático já delineado no argumento e transposto e completado, em seguida, na cenarização.184

No mês seguinte, na mesma revista, Roger Bastide escrevera um texto sobre o filme, no qual ele reconhecia em Cavalcanti um artista, por sua capacidade de revelar a realidade nordestina em O Canto do Mar. “Costuma-se às vezes opor a arte à realidade, mas só se atinge a verdadeira realidade, que está sempre cheia do humano, por intermédio da arte [...] A película realiza, pois, numa unidade perfeita, a totalidade complexa do Nordeste.”185 Sucesso ou decepção por completo, os resultados de bilheteria foram um fracasso186, ao contrário da recepção prestigiosa em festivais e premiações. O Canto do Mar conseguiu ser indicado ao Grand Prize do Festival de Cannes de 1954, e foi “laureado” pelo Prêmio Governador do Estado de 1954 nas categorias de Produção – Alberto Cavalcanti, Coadjuvantes Femininos – Cacilda Lanuza, Música – Guerra Peixe, e Montagem – José Canizares187. Recebeu ainda o primeiro prêmio do 8º Festival Cinematográfico de Karlovy-Vary, na Tchecoslováquia188. Para a Kino Filmes, o fraco retorno dos investimentos financeiros no filme teria ampliado os rumores a respeito da instabilidade da empresa, o que era negado por Cavalcanti. No semestre seguinte de 1953, ele já começava as filmagens de Mulher de Verdade, nos estúdios de Jaçanã, terminadas após 52 dias, do qual ele foi responsável apenas pela direção e não pela produção, realizada por Alfredo Palácios. Como Cavalcanti diria mais tarde, “não é estendendo o chapéu, pedindo esmolas que sairemos da crise. A única forma de vencer a crise é trabalhando”.189 Contudo, a

184 Anhembi, Dezembro de 1953, vol. XIII, nº 37. 185 Anhembi. Janeiro de 1954, vol. XIII, nº 38. 186 CATANI, Afrânio Mendes. Op. cit., 2002, p. 171. 187 Anhembi. Janeiro de 1955, vol. XVII, nº 50. 188 Cine Reporter. 31/7/1954. 189 Afrânio Mendes Catani. Op. cit., 2002, p. 173.

92 montagem do filme fora interrompida devido aos problemas financeiros da Kino: a vendas das ações sofreu uma grande queda, demitiram técnicos e funcionários e pararam de pagar as dívidas com os Audrá, relativas à compra dos estúdios e equipamentos. O rompimento do contrato fez com que a Kino devolvesse os bens à família, impossibilitando a continuidade das produções da empresa. Apesar dela não ter se encerrado naquele momento, Cavalcanti precisou buscar trabalhos alternativos para continuar vivendo no Brasil, até que em 1954, após não conseguir se assentar devidamente em nenhum trabalho, nem vê-los como promissores, deixou o país e voltou para a Europa. Seu filme Mulher de Verdade foi deixado incompleto pelo diretor, mas foi montado e lançado pela Kino Filmes em 1955.

93

Capítulo 3 Instituto Nacional de Cinema: formulando políticas de Estado

Apesar de Cavalcanti ter se mudado para o Brasil para assumir a produção- geral da Vera Cruz e contribuir na instalação dessa indústria cinematográfica brasileira, outras oportunidades surgiram para ele a despeito do revés inicial, ou seja, de sua saída da Vera Cruz e da relativa decepção da crítica cinematográfica sobre as suas primeiras produções no país. É curioso, inclusive, o questionamento feito ao produtor em uma Mesa Redonda da Rádio Tupi em São Paulo, em abril de 1952: “o sr. Cavalcanti parece não ter aprovado 100% o resultado de ‘Caiçara’ e ‘Terra é Sempre Terra’, por que então assinara essas duas películas?” Ao que ele teria respondido: “Sendo eu funcionário de uma companhia, não devo à ela somente meu trabalho, mas também o meu nome, parte integrante e inseparável de meu trabalho.”190 Apesar dos filmes terem desagradado muitos críticos, realizadores e, de certa forma, o próprio produtor, este assume a responsabilidade pelos resultados, dos quais a sua separação seria impossível, e seguiria trabalhando naquele que era seu campo de trabalho há quase 30 anos. Houveram boatos de que Cavalcanti voltaria para a Europa, os quais comoveram muitos brasileiros confiantes na capacidade de contribuição do produtor no estabelecimento do cinema nacional, de forma que sua partida seria uma grande perda para o país.

Não podendo conformar-se com aquela irritante situação, homens do cinema e do teatro, das letras e da vida pública, jornalistas e pessoas influentes, apelaram para a boa vontade do grande cineasta, a fim de que não nos abandonasse, no momento crítico em que a nossa sétima arte dava os seus passos definitivos e seguros para a perfeição e maturidade.191

O reconhecimento também foi demonstrado através de uma reunião para qual Cavalcanti foi convidado pelo então presidente Getúlio Vargas. Na ocasião, foi feito o convite para que o produtor preparasse um projeto de criação do Instituto Nacional de Cinema. Ele aceitou a proposta e assim passou do contexto de um empreendimento privado industrial para o campo das políticas de governo. Contudo, essa alteração da

190 Anhembi. V. 6, nº 17, abril de 1952, p. 389. 191 A Cena Muda. 26-7-1951, p. 26.

94 natureza do trabalho não nos causa tanta estranheza se lembrarmos da trajetória de Cavalcanti, sobretudo no período em que foi empregado da General Post Office Film Unit, um órgão estatal do governo britânico. Sua associação com cinemas oficiais não era uma novidade. Devemos ressaltar, contudo, a diferença fundamental entre aquela atividade prática exercida na Inglaterra, onde o alicerce de seu campo de atuação já estava melhor assentado, e o seu novo encargo, um trabalho básico de fundação que demandava a pesquisa sobre as condições do cinema no Brasil e a elaboração teórica para criação de um órgão do Estado em um meio extremamente instável como o cinema, e que ainda carregava uma grande carga ideológica por sua vinculação com o governo Vargas. O novo presidente eleito herdava o legado dos anos do Estado Novo, instaurado após o golpe de Estado de 1930. Desde aquela época, Vargas estabelecera um papel relevante ao cinema, considerado como um “livro de imagens luminosas” 192 , ou seja, um instrumento educacional para uma sociedade majoritariamente analfabeta. Mas se por um lado a criação e o desenvolvimento do INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo) foi uma espécie de boa herança do Estado Novo, de um outro lado, suspeitamos que a atuação do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) sobrevivera na memória de produtores, realizadores e críticos de cinema como um trauma. O principal problema era o controle da censura exercido pelo órgão. Todos os filmes brasileiros eram obrigados a se submeter à ela para serem exibidos, e principalmente para se tornarem elegíveis à cota obrigatória de exibição de filmes nacionais. Muitas vezes a obrigatoriedade era a única porta de entrada para os produtores conseguirem exibir seus filmes. Logo, a possibilidade do retorno à centralidade e ao controle do poder, por um Estado cujo legado era ditatorial, sobre as tomadas de decisões influentes nas atividades cinematográficas em geral, assombrava o setor que recentemente dera uma guinada no sentido dos empreendimentos privados e que presava pela liberdade em seus negócios e em suas produções. No âmbito das políticas públicas para o cinema, quando Vargas assumiu o poder em 1951, já existia um projeto de autoria do então deputado pelo Partido Comunista Brasileiro Jorge Amado em tramitação no Congresso desde o seu encaminhamento em 1947, cujo objetivo era criar o Conselho Nacional de Cinema (CNC) em vista de regular normas de produção, importação, distribuição e exibição

192 Cf. SIMIS, Anita. Estado e cinema no Brasil. São Paulo, SP : Annablume, 1996, p. 23 – 66.

95 de filmes. O órgão planejado era uma autarquia, “abrigado nas estruturas do Estado sob o controle do setor produtor, corporativizando a política a ser implementada, subordinando e coordenando todos os outros setores ligados à atividades cinematográficas”193. No entanto, Vargas estabeleceu contato com Cavalcanti e este ficou responsável por presidir uma comissão que pesquisaria sobre o estado atual do cinema no Brasil e seus antecedentes, bem como desenvolveria um projeto de criação para o Instituto Nacional de Cinema. Apenas em 1957 o projeto do CNC seria anexado ao projeto do INC, sendo que ambos sofreram diversas modificações no Congresso ao longo dos anos, até a criação efetiva do Instituto Nacional de Cinema em 1966194.

Relatório Geral Sobre o Cinema Brasileiro

A comissão de planejamento do INC tinha como presidente Alberto Cavalcanti, e fora composta pelo relatores Paulo F. Gastal, Vinicius de Moraes, Jurandyr Noronha, Décio Vieira Ottoni e José Sanz, pelos assistentes Francisco Araujo e Oswaldo Katalain e pelas auxiliares Candida Dias Ribeiro e Zuleika de Vasconcellos. Sobre os relatores, todos haviam exercido a função de crítico de cinema em algum momento de sua trajetória; dois já haviam trabalhado à serviço do Estado, Vinícius de Moraes, que foi vice-cônsul do Brasil em Los Angeles na década de 1940, e, com cargos de mais importância, Jurandyr Noronha, que trabalhou no DIP durante o Estado Novo e depois no INCE, e, posteriormente à sua participação na comissão de planejamento do INC, foi representante do Ministério da Educação e Cultura no GEICINE e chefiou a Seção da Filmoteca do INC. 195 A comissão contou com um escritório disponibilizado pelo Governo no prédio do Ministério da Educação no Rio de Janeiro196. O Relatório Geral Sobre o Cinema Brasileiro197, acompanhado do Projeto de Lei para criação do Instituto Nacional de

193 SIMIS, Anita. Estado e cinema no Brasil. São Paulo, SP : Annablume, 1996, p. 140. 194 Ibidem, p. 255. 195 Cf. RAMOS, Fernão; MIRANDA, Luiz Felipe (orgs). Enciclopédia do Cinema Brasileiro. São Paulo, SP : SESC, 2000, p. 334, 494, 516. 196 CAVALCANTI, Alberto. One man and the cinema. Introductions by Donald Richie, Henri Langlois and Jorge Amado. S.l. : s.n., 197-, p. 201. 197 Devido à ausência de paginação no documento, não faremos referência ao texto nas citações, indicando apenas o seu pertencimento ao Relatório Geral Sobre o Cinema Brasileiro. Cf.

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Cinema, data de 11 de setembro de 1951, e foi dividido em três partes: Estrutura do Cinema Brasileiro, Cinema Oficial e Instituto Nacional de Cinema. De início esclarecem sob qual fundamento organizaram o texto e o trabalho propriamente dito: era necessário olhar atentamente para o passado a fim de se tirar as devidas lições e enfim pensar no que se deveria planejar para o futuro. A Estrutura do Cinema Brasileiro é uma breve recapitulação do desenvolvimento do cinema brasileiro, desde os seus primeiros tempos no começo do século XX até a contemporaneidade, separada em três momentos. O primeiro recupera as circunstâncias do cinema nacional até 1930, com atenção para a evolução do mercado exibidor que contava com filmes americanos, europeus e mesmo alguns brasileiros, mas ainda muito amadores em comparação com aqueles estrangeiros. Apesar da produção local não conseguir alcançar o ritmo devido para a formação de uma indústria, em razão da dificuldade de aquisição do “material indispensável à confecção das películas”, e da ausência de um pensamento capaz de “atrair os investimentos necessários ao negócio antes que os filmes estrangeiros, que começavam a ser importados, sedimentassem um mercado capaz de devolver, no futuro, os financiamentos que por acaso se fizessem”, concluem que a “pequena produção brasileira não sofria nenhuma concorrência, uma vez que toda a produção que houvesse era logo solicitada.” Essa dinâmica seria afetada em 1925 devido à instalação das distribuidoras americanas no país. No segundo momento desta primeira parte do texto, fazem um levantamento histórico igualmente breve do cinema norte-americano, pois para entender a “endêmica” má qualidade dos filmes brasileiros era preciso entender o papel da concorrência estrangeira em nosso mercado. O ponto principal dessa apresentação estaria na compreensão de dois grandes movimentos daquela indústria: um de natureza intrínseca, ligado à consolidação industrial e sedimentação dos quadros no setor, e outro de natureza expansionista, de conquista e domínio de mercados estrangeiros. Por fim, em um terceiro momento, retomam o contexto brasileiro e os desdobramentos no meio cinematográfico local. O mercado já dominado pelo cinema estrangeiro, garantido pelas distribuidoras e o pelo ritmo lento da produção nacional que impossibilitava a formação de profissionais e de um apuro técnico, acabara

CAVALCANTI, Alberto. Relatório Geral sobre o cinema nacional. Rio de Janeiro, 11-09-1951. ABJ-DT/2a, 2b e 2c. Cinemateca Brasileira.

97 levando os produtores à recorrerem ao Estado, como é comum aos industriais de um país que sofre com a esmagadora concorrência estrangeira. Ao longo do texto, reconhecem o grande sucesso de algumas poucas obras brasileiras, bem como recordam das primeiras legislações relacionadas à proteção do cinema nacional, que nunca teriam atingido de fato seu real objetivo. E ainda ressaltam que as medidas que seriam recomendadas no Relatório (...) já foram reivindicadas no Convênio Cinematográfico Educativo em 1933, por membros da Associação dos Produtores, pois uma de suas propostas era justamente a criação de um órgão especializado responsável por todo o serviço cinematográfico. Esse retrospecto sobre o cinema brasileiro é amplo porém relativamente superficial, sobretudo porque não adentram nos impasses enfrentados pelos produtores particulares de cinema, sintetizando-os às “justificativas de sempre para explicar a necessidade do apoio do Estado: a influência ‘desagregadora’ dos filmes estrangeiros e a evasão de divisas pelas remessas de lucros das distribuidoras estrangeiras”198. Em seguida, delineiam a segunda parte, Cinema Oficial, de forma muito mais específica e pragmática. Trata-se de um relatório sobre os departamentos de cinematografia do Governo, realizado com o objetivo principal de compreender os seus problemas. Os órgãos analisados são o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), o Gabinete de Cinema do Serviço de Informação Agrícola do Ministério da Agricultura, o Laboratório Cinematográfico da Agência Nacional, o Serviço de Censura de Diversões Públicas e os demais serviços e departamentos de cinema do governo. Cada um deles foi estudado sobre os seguintes aspectos: Finalidade e Estrutura; Pessoal, Acervo Material e Despesas; Realizações e por fim havia um item de Comentário. Ao longo da leitura relativa aos departamentos torna-se claro que, além de tomar conhecimento a respeito do campo do cinema oficial no país, o principal interesse era o de reunir o que havia de útil em termos de estrutura física com qualidade – laboratórios, equipamentos, maquinaria – e de profissionais capacitados, distribuídos entre os diversos órgãos, a fim de reaproveitá-los na composição do futuro INC. Nas Conclusões dessa parte do documento, os autores especificam as condições dos equipamentos existentes, notando como eram muito ultrapassados e não seguiam qualquer padrão, desde aqueles usados nas filmagens, até

198 AUTRAN, Arthur. O pensamento industrial cinematográfico brasileiro. São Paulo, SP : Hucitec Editora, 2013, p. 155.

98 os das salas de montagem e dos laboratórios. Após a exposição específica de câmeras, equipamentos de luz e de som, esclarecem:

Eis, num exame sucinto, o que nos foi dado ver e observar. Pelo que somos de opinião que, apenas os equipamentos destacados como aproveitáveis poderão ser requisitados para os futuros trabalhos do INC, quanto aos demais, com excessão dos que interessam à Cinemateca Brasileira, não deverão sequer entrar em cogitação pelos responsáveis pela administração técnica da futura instalação.

O INCE é o órgão sobre o qual obtiveram a maior parte das informações pretendidas, além de ser o mais representativo em termos quantitativos e mesmo qualitativos na produção de filmes. Era a entidade mais bem organizada entre todas, mas os autores consideravam que ainda assim ela não correspondia com as solicitações de um país como Brasil: tendo em vista que sua finalidade era “promover e orientar a utilização da cinematografia como meio de educação popular em geral, e especialmente como processo auxiliar de ensino”, faltava orientação pedagógica e uma técnica adequada. Ainda, constatam o problema do INCE ter se ocupado apenas da produção de filmes, de modo que a distribuição e a exibição foram deixadas de lado: “deixando de atuar com eficiência qualquer um destes três setores básicos um filme deixa de preencher sua função”. Resumindo, haveriam então três fatores responsáveis pela “inadequação” ou “inoperância” do cinema educativo nacional: o restrito interesse pedagógico com péssimo nível técnico, a baixa quantidade de películas destinadas a atender as necessidades do país, e a inexistência da distribuição, contando ainda com o fato de que faltavam projetores nas escolas. Diante disso, trazem informações a respeito de um estudo realizado por técnicos no Film Centre de Londres para a UNESCO, no qual “chegaram à conclusão de que a utilização do cinema nos países onde a densidade de analfabetos é maior deve se orientar no sentido de constituir um processo auxiliar da educação de base, o que não é, precisamente, o processo que vem sendo adotado no Brasil.” Tais filmes para a educação de base deveriam abordar as principais fontes de riqueza do país, na forma de um “documentário social”. Ensinariam o trabalho rural ou nas indústrias, meios de profilaxia, de higiene, e outros temas da mesma natureza, abordados de forma didática, destinados à alfabetização. Com isso, uma série de filmes seriam exibidos em um mesmo programa, elucidando os espectadores sobre diversos

99 assuntos, alguns voltados especificamente para a alfabetização e outros que respondessem aos demais interesses do público. Para que isso se efetivasse, indicam a

instalação de um sistema itinerante de cinema capaz de eliminar o problema das distâncias e da falta quase que absoluta de comunicações e transportes para fazer os processos pedagógicos, através do filme, atingirem dentro de um padrão quantitativo de justa equidade, todos os que necessitam.

Em relação ao problema financeiro ocasionado pela alto custo da produção, propõem que ela seja feita em larga escala e que sejam feitos “documentários de interesse”, os quais recuperariam parte de seu custo em exibições comerciais, diminuindo o preço aparentemente exorbitante dos programas itinerantes. Ao nos depararmos com a ideia de produzir “documentários de interesse”, parece apropriada a sua associação com o discurso de Cavalcanti, da época da GPO Film Unit, a respeito da possibilidade de estender a exibição dos filmes documentários educativos para além de estabelecimentos voltados para instrução, e de efetivamente obter sucesso de público com eles. O “documentário de interesse” parece esclarecer tal discurso do produtor por propor um tipo específico de filme que consegue se adequar ao conceito de educativo mas sem o didatismo necessário em outras produções que cumprem a finalidade específica de ensino. Essa categoria fílmica seria importante por servir como instrumento de auto-sustentação da produção, pois ao ampliar a exibição para o mercado comercial, cria-se a possibilidade de um retorno financeiro relativo aos investimentos para a realização dos filmes, o que não seria possível se eles servissem apenas para projeções escolares, por exemplo. Considerando que o objetivo de uma instituição estatal era a produção de filmes voltados para a educação pública, seria condenado o interesse pela comercialização ou pela pretensão de obter alguma renda com eles. Contudo, o próprio sustento desses serviços que requerem alto investimento seria oneroso ao Estado, fonte única de proventos. Usar a oportunidade de fazer com que os próprios filmes rendam e contribuam para a continuidade das produções seria uma elucidação óbvia do ponto de vista mercadológico, mas polêmica devido a mediação pública estatal. Ainda assim, a ideia era defendida por Cavalcanti desde muito cedo em sua carreira, partindo da noção de que o cinema era um meio industrial dependente do bom funcionamento de seus três pilares de sustentação: a produção, a distribuição e a

100 exibição, por mais que o emprego dos filmes tivesse uma finalidade outra além do puro entretenimento mercadológico. Após a apresentação do principal órgão estatal voltado à produção cinematográfica e de antecipar alguns de seus problemas e possíveis soluções, o relatório segue apresentando as demais entidades. Sobre o Gabinete de Cinematografia do Serviço de Informação Agrícola, voltado para a produção, organização, distribuição e promoção de filmes e fotografias a respeito de assuntos relacionados com o Ministério da Agricultura, seria constatado que a precariedade de sua estrutura impossibilitaria a realização de “qualquer obra de objetivo interesse no cumprimento de sua finalidade maior, que é a divulgação de assuntos técnicos relacionados com a agricultura através da utilização do cinema”, por mais que tivessem realizado o total de 298 filmes. A análise de suas atividades levava à dois fatores negativos que seriam onipresentes nas instituições oficiais de cinematografia: a insuficiência de meios financeiros para produção, distribuição e exibição, e a falta de planejamento e de profissionais especializados, de modo que os demais técnicos iniciantes também não conseguiam aperfeiçoar o seu trabalho devido a carência de bons instrutores. Por fim, concluem:

A solução do problema é vir o cinema preencher sua função pedagógica no plano da informação agrícola. Mas isso se prende, como nos demais setores, à centralização do serviço de maneira a que, sob a constituição de um órgão mais potente e capaz, fique assegurada a penetração do filme especializado no meio que o solicita. De um tronco único, com um máximo de penetração, deverá derivar toda a produção oficial, sem exceção.

Quanto ao Laboratório Cinematográfico da Agência Nacional, cuja finalidade era “a divulgação de acontecimentos ocorridos no âmbito do Poder Executivo, a mando deste, de fatos nacionais que possam interessar ao público”, constatam que a maior parte dos filmes eram jornais cinematográficos, realizados semanalmente. Considerando a baixa produção e uma distribuição de pouco alcance, as despesas do órgão eram muito altas. Em seguida, a fim de apresentar o Serviço de Censura de Diversões Públicas, discorrem a respeito da instituição e da evolução da censura cinematográfica no Brasil. O principal problema da atuação de tal Serviço seria a precariedade e a imprecisão em relação à equipe responsável pela realização da censura, levando em conta a demanda do trabalho. E por último, relatam brevemente

101 o trabalho de outros departamentos de cinema do governo cuja atividade era menor, sendo eles o Conselho Nacional de Geografia, a Secção de Estudos do Serviço de Proteção aos Índios e o Serviço de Alimentação da Previdência Social. De modo geral, todos possuíam deficiências semelhantes relacionadas com a falta de estrutura para a realização e exibição dos filmes, além da fraqueza no tratamento dos temas, apesar de serem grandes suas potencialidades. Essa ampla pesquisa apresentada teria levado a comissão do Relatório Geral Sobre o Cinema Brasileiro às conclusões expressas na Apreciação Generalizada da Produção de Filmes do Governo Federal. Acreditamos que o capítulo seja o mais conhecido de todo o trabalho, pois foi publicado no livro de Cavalcanti, Filme e Realidade, sob o título de Cinema Oficial. Aqui, o produtor revela que após o estudo para a criação do INC, ele teria uma “opinião serena” sobre o sistema do cinema oficial no país. Ressalta a existência de diversos setores autônomos com seu próprio serviço de cinema, dos quais a organização burocrática completa era capaz de uma produção bem superior à realizada. No entanto, faltavam técnicos especializados, de modo que entre eles só se formavam três categorias: os cinegrafistas, os engenheiros de som e os técnicos de laboratório, além disso, a maquinaria estava muito deteriorada por ser ultrapassada e pouco utilizada. Haveria, então, um certo comodismo com tais condições, justificada pelo tipo de filme realizado. Cavalcanti considerava aquilo como “falta de competência dos interessados na permanência do atual estado de coisas do cinema oficial, como também sua ignorância da técnica dêste gênero de filme.” Do ponto de vista da abordagem temática, a defasagem era igualmente grande:

Não se tocou ainda, nem de longe, na educação social de nosso povo, nem na divulgação de características das diferentes regiões do Brasil, que permitam aos brasileiros o conhecimento de si próprios. Nosso folclore, nossas tradições, nossa indústria, nosso progresso têm sido tratados, nesses filmes, e também nos particulares, com um amadorismo vergonhoso. Ainda não mostramos no estrangeiro nenhum documentário que faça justiça ao nosso país.

Todos esses problemas estariam relacionados com o fato de que os departamentos eram muito autossuficientes e não colocavam em dúvida a sua capacidade, quando na realidade desconheciam produções estrangeiras do mesmo gênero, do filme documentário ou do filme educativo. Contudo, reconhece que

102 haviam exceções e que o trabalho de muitos deveria ser reconhecido, ressaltando ainda que seus salários eram baixíssimos. Diante disso, Cavalcanti propõe a seguinte solução para o filme oficial: a centralização de maquinaria, de materiais, de serviços, de técnicos especializados, em um só órgão, otimizando a produção e eliminando os dispêndios desnecessários. Assim o relatório era direcionado para a sua finalidade principal: o projeto de criação do Instituto Nacional de Cinema, um órgão centralizador das atividades cinematográficas do estado. A terceira parte do Relatório Geral Sobre o Cinema Brasileiro começa com um capítulo dedicado à necessidade do INC e à justificativa da escolha de sua forma autárquica. Trata-se, agora, de apresentar também os problemas enfrentados pelos produtores particulares brasileiros, sufocados pela atividade dos trustes norte-americanos, indicando que:

Uma proteção mais efetiva por parte do Estado, feita em bases de rigorosa observância dos princípios democráticos, mas incisiva nos processos de fiscalização e punição dos faltosos e contraventores, tem resultado dos maiores benefícios para o desenvolvimento do cinema nos países onde se processaram, dentro desses princípios.

Assim como Cavalcanti expressara em Filme e Realidade 199 , criticam Hollywood por ter deixado os lucros sufocarem a parte criadora do cinema, acostumando o público a um mau cinema, “narcotizado que está pela satisfação do polimento técnico dos filmes mais que do seu conteúdo”, e por fazerem pressão sobre todos os mercados importadores do mundo, prejudicando os seus cinemas nacionais. A partir dessa compreensão a respeito das circunstâncias desfavoráveis nas quais o produtor brasileiro se encontrava, em “falência constante” por sua “impossibilidade de manter a produção em escala normal”, acabam por entender “o seu desinteresse progressivo em fazer bons filmes e a sua descrença no cinema brasileiro”. Relembram então casos de produtores que tentaram organizar suas produções sobre bases industriais mais sólidas, como a própria Vera Cruz e o filme produzido por Cavalcanti, Caiçara, o qual poderia ser considerado bom, mas não teria “consistência técnica”.

199 Cf. CAVALCANTI, Alberto. Filme e Realidade. São Paulo, SP : Livraria Martins Editora S.A., 1953, p. 31 - 32.

103

A criação de um órgão que enfeixe em sua estrutura o controle e a coordenação, a assistência e o amparo econômico ao cinema nacional, impõe-se, depois desse minucioso exame dos problemas e condições do cinema nacional, como a única medida capaz de promover o seu desenvolvimento em bases realistas.

Com isso, começam a elucidar a constituição do Instituto Nacional de Cinema, o qual centralizaria a produção, distribuição, financiamento, ensino técnico e artístico, planejamento, pesquisa, censura, controle e fiscalização. O órgão se empregaria, de um lado, da feitura e distribuição de documentários, nos moldes da General Post Office Film Unit, e de outro lado, criaria condições para o desenvolvimento do cinema nacional, protegendo efetivamente a sua produção, através da censura - sob aspectos morais mas também qualitativos - e de departamentos especializados no planejamento de filmes. Ainda fiscalizaria, em todo o país, o cumprimento das leis, a arrecadação das taxas cinematográficas e a qualidade das projeções nas salas de espetáculo das capitais e do interior. O INC seria composto por dois setores: um destinado à produção de documentários para o governo e particulares, mediante aprovação e financiamento, sediado no Distrito Federal, e outro setor destinado à proteção da indústria nacional privada e ao controle da entrada de filmes estrangeiros, da censura, além de outras atribuições, sediado em São Paulo, onde já havia um amplo meio cinematográfico em atuação. Por fim, a escolha da forma autárquica para o Instituto é justificada pelos seguintes itens:

a) Liberdade de gestão de patrimônio, que garante a indispensável independência de que necessita um órgão de tal natureza. b) Liberdade de ação para a organização adequada do Quadro do Pessoal, dentro das normas do serviço público. c) Liberdade para contrato de serviços especializados, dentro das normas do serviço público, mas sem depender da interferência ou aprovação de um órgão superior que nada tenha de comum com a orientação de serviços técnico-profissionais. d) Possibilidade imediata de correção das normas de regulamentação interna à medida que se desenvolvam as suas atividades. e) Unidade de orientação, sob a responsabilidade de um Presidente, responsabilidade essa que seria apenas fiscalizada por um Conselho Fiscal, mas sem a interferência de um órgão estranho aos problemas tão especializados de cinema.

Nesta justificativa é notável a preocupação em esclarecer a independência e a liberdade que a atividade cinematográfica teria em relação ao estado, uma vez que um

104

órgão estatal com tamanhos poderes causaria inquietação no setor por deter relativo controle sobre a sua indústria. Em seguida, apresentam finalmente o Projeto de Lei através do qual seria criado o INC. A introdução dada anteriormente sobre o Instituto antecipa as principais competências do órgão e seu funcionamento, detalhadas nos 32 artigos que compõem o projeto. A amplitude de suas atribuições é surpreendente, já que o órgão estaria vinculado à praticamente qualquer atividade relativa ao cinema no país. Além das já mencionadas - a produção de documentários de interesse social, a fiscalização do cumprimento da legislação referente ao cinema, a realização da censura cinematográfica - competiria ao INC outras funções que nos parecem importantes e/ou inovadoras no meio do cinema. Do Capítulo 1, Artigo 2, são elas:

d) aplicar as normas legais vigentes sobre a garantia dos direitos autorais e artísticos, complementando as leis existentes com as medidas que se tornarem necessárias à proteção dos direitos autorais e patrimoniais do cinema (...) j) exercer ação educativa sobre o pessoal encarregado das projeções cinematográficas nas casas de espetáculo (...) n) criar um registro de profissionais da indústria cinematográfica, nacionais ou estrangeiros, que satisfaçam as exigências regulamentares para o exercício das profissões respectivas

E do Artigo 3:

O INC creará um registro de títulos de filmes, argumentos originais, roteiros técnicos originais, adaptações cinematográficas de obras literárias conhecidas e efeitos visuais e sonoros, para fins cinematográficos. Parágrafo único – Esse registro definir-se-á a garantir os direitos de proprietário e independe do que, nos termos da legislação em vigor, houver de ser feito, com a mesma finalidade, na Biblioteca Nacional, no Instituto Nacional de Música e na Escola Nacional de Belas Artes.

Tais competências teriam uma relevância diferenciada porque concernem os trabalhadores da indústria cinematográfica, ou seja, reconhecem no desenvolvimento desse meio no Brasil a necessidade de formalização dos profissionais através de leis que garantiriam os seus direitos, como em qualquer outro setor industrial. Outro ponto imprescindível é a indicação das fontes de renda para o funcionamento do Instituto e de seus serviços. No Capítulo IV, Artigo 12, são esclarecidas as possíveis relações de comércio que existiriam no órgão estatal e a parcela de participação direta do Estado em seu sustento. Eram elas:

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a) a contribuição anual a ser arbitrada pela Presidente da República, a qual constará do anexo do Orçamento Geral da União, atinente ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores; b) a renda resultante da cobrança da taxa de censura cinematográfica, em que fica transformada a atual taxa cinematográfica para a educação popular, criada pelo Decreto nº 21 240, de 4 de Abril de 1932; c) a renda auferida com a realização de documentários, para terceiros; d) a renda proveniente da exibição de documentários realizados pelo INC em circuitos privados; e) a renda resultante da exibição de documentários estrangeiros obtidos por compra ou por permuta com documentários realizados pelo INC; f) a renda proveniente da venda ou locução, para o estrangeiro, de documentários da propriedade do INC; g) a renda auferida com a venda de cópias de efeitos fotográficos e sonoros de propriedade do INC; h) as doações, legados e outras rendas que, a êsse título receber de pessoas físicas ou jurídicas; i) a renda da aplicação de bens patrimoniais.

Seria ainda adicionada às fontes de renda do Instituto o valor proveniente de um “sêlo cinematográfico para a educação popular”, aplicado em cada bilhete de ingresso das salas de exibição cinematográficas, criado pelo Artigo 25 do Capítulo VI. De forma resumida, os demais artigos do projeto de lei tratam de: garantir poderes ao INC em relação ao meio cinematográfico através da criação e reformulação de leis; determinar cargos para efetivar o funcionamento do instituto; estabelecer a alçada de seu Conselho Fiscal; apresentar seu regulamento ao Presidente da República; extinguir o INCE e os demais setores de cinema de ministérios civis, com exceção de alguns; e por fim, do investimento financeiro para criação do órgão e seu funcionamento no primeiro ano pelo Estado, através da abertura de um crédito especial de Cr$25.000.000,00. Em seguida há um diagrama demonstrando como seria a constituição do INC, através do qual podemos ver a hierarquia existente entre os departamentos e suas divisões, ou seja, a quem cada setor responderia. O Relatório Geral Sobre o Cinema Brasileiro ainda apresenta uma longa e detalhada explicação a respeito dos objetivos de cada um desses departamentos e divisões, esclarecendo os seus deveres, suas funções e seu funcionamento em termos de equipe e de estrutura física. O documento prepara, efetivamente, as diretrizes para a criação e o início dos trabalhos do Instituto Nacional de Cinema. Devemos, então, apresentar aqueles considerados os principais

106 pontos para esta pesquisa, antecipando a compreensão sobre o projeto do INC diante das críticas sofridas na época de sua realização.

Reprodução do diagrama incluído no Relatório Sobre o Cinema Brasileiro.

Apesar da aparente totalidade da atuação do INC no meio cinematográfico brasileiro, fazendo se presente em todas as suas esferas de trabalho, nos parece que o departamento sobre o qual há maior ênfase é o Departamento de Documentários. Temos a impressão de que a sua elaboração seria uma das principais contribuições de Alberto Cavalcanti para o projeto, pois tendo atuado como produtor no órgão estatal inglês, a GPO, no momento do desenvolvimento do movimento do documentário e tendo obtido resultados significativos, é muito possível que ele desejasse reproduzir aquelas condições de produção no Brasil e obter semelhante sucesso. O trecho a seguir demonstra precisamente a necessidade do país em passar por experiência semelhante para conseguir construir seriamente a sua indústria:

A escola do documentário tem sido o processo usado em todos os centros cinematográficos do mundo e ao qual o Brasil, de modo algum, poderá fugir, se desejarmos, realmente, treinar um grupo de técnicos e artistas capazes de consolidar a indústria do cinema entre nós.

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O projeto estabelecia três tipos de documentários, diferentes em estilo e em finalidade: documentários de educação (abordam assuntos básicos e de forma didática, para circulação ampla e nunca em exibição comercial), documentários de prestígio (destinados ao mercado interno e externo, comercial ou não, sendo eficientes como propaganda do país no estrangeiro) e documentários de interesse (uma síntese dos tipos anteriores, voltado para o mercado interno na forma de complemento nacional obrigatório nas exibições comerciais). A Divisão de Produção indica um planejamento ambicioso. Já no primeiro ano haveriam de oito e dez equipes realizando filmes paralelamente, sendo que cada equipe seria composta por um diretor, um cameraman e dois assistentes-aprendizes. Em seguida, o texto apresenta de forma extremamente didática como seriam realizadas as etapas de uma produção cinematográfica. Por fim, a Divisão de Distribuição estabelece três possibilidades de exibição para os filmes: as salas de cinema com propósito comercial, a programação em escolas e as unidades volantes, cujo objetivo era atender ao público da região rural. Ainda, um “programa-tipo” aconselhado pela UNESCO serviria como base para o INC, composto da seguinte maneira:

1 Documentário ligeiro, gênero informativo; 1 Desenho animado (quando possível, ou comédia curta); Intervalo 1 filme educativo; 1 filme de interesse geral.

Ao longo da explicação sobre o Departamento torna-se evidente a expectativa da comissão relatora de que o Instituto Nacional de Cinema seria criado de forma imediata. Além de prepararem no relatório todas as diretrizes para o estabelecimento e o funcionamento do INC, como uma espécie de guia de trabalho, também foi adicionado nos Anexos do arquivo alguns roteiros e orçamentos de curtas-metragens que o Departamento de Documentários poderia realizar. Certamente, eles também serviam como exemplos do tipo de filmes que se esperava produzir ali. São sete títulos, dos quais quatro eram voltados para a educação social (Três Vidas, de John Waterhouse, Valor do Silêncio, de Anibal Machado e Alberto Cavalcanti, O Aprendiz, de John Waterhouse e Tarimba), um para o turismo (Campos do Jordão, de John Waterhouse), um era considerado como filme de prestígio, cujo assunto era o transporte (Aeroporto, de Jurandyr Passos Noronha), um sobre a indústria (Volta Redonda, de John Waterhouse) e por fim mais nove trailers, filmes curtíssimos,

108 voltados para a campanha contra a sonegação de impostos em São Paulo. São apresentados os roteiros de todos os filmes, com exceção de Tarimba, e os projetos de orçamento de dois filmes, um de 300m de metragem e outro de 600m de metragem. O roteiro que mais nos interessa é o de Volta Redonda, pois ele é uma fonte através da qual podemos imaginar o filme dirigido por John Waterhouse que foi de fato produzido por Alberto Cavalcanti, pela Kino Filmes, em 1952. As únicas imagens de Volta Redonda às quais tivemos acesso estão inseridas em Um Homem e o Cinema (1977), a última obra dirigida por Cavalcanti no Brasil, produzida pela Embrafilme. Este documentário é dividido em duas partes e composto por uma seleção de trechos de filmes nos quais o cineasta teve alguma participação ao longo de sua carreira, feitos em diversos países, e organizados por temas200. O trecho de Volta Redonda compõe a seção O homem e o trabalho, junto dos filmes ingleses North-Sea (Harry Watt, 1938), Line To Tchierva-Hut (Alberto Cavalcanti, 1937), Spare-Time (Humphrey Jennings, 1939) e Men In Danger (Pat. Jackson, 1938). Apesar da distância temporal de aproximadamente 20 anos, a integração de Volta Redonda às obras produzidas no contexto inglês do fim dos anos 1930, na General Post Office, é bastante adequada. Além disso, os esclarecimentos a respeito do tipo de produção objetivado por Cavalcanti e sua comissão para ser realizado pelo INC já revelaram as afinidades entre aquele órgão inglês e a instituição brasileira. O roteiro de Volta Redonda indica a duração de 24 minutos. A obra é concebida a partir de um esquema dividido em duas colunas, uma referente à imagem e outra ao som. A imagem demonstra o que a fala de um narrador explica, ao longo de todo o documentário. Seu objetivo é demonstrar a importância do desenvolvimento industrial relativo às reservas de minério de ferro no Brasil, uma de suas maiores fontes de riqueza. Por isso, então, o filme conta a história da Usina de Volta Redonda e a evolução urbana da cidade que foi construída ao seu redor. Além disso, demonstra o passo a passo de sua produção de aço e evidencia a sua relevância: “O aço é o sangue vivo da civilização moderna...”. É uma destas etapas da produção, então, que aparece em Um Homem e o Cinema.

200 Um Homem e o Cinema tem a duração de 2 horas e 30 minutos. A 1ª parte é dividida em 6 temas: Cenografia, Depoimentos, Cenas de Amor, Assassinatos, Dança e Os Absurdos da Guerra. Já a 2º parte possui 4 seções: O Homem e o Trabalho, Pesquisa em Comédia, Pesquisa em Drama e Pesquisa em Ritmo.

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No entanto, o narrador não aborda o trabalho de forma técnica ou pragmática, pelo contrário, sobre aquela etapa ele ressalta que “estes operários devem se conservar em permanente estado de alerta, pois por detrás desta tênue camada há uma pressão de 250 toneladas de metal em fusão”. Enquanto isso, vemos um trabalhador trajando equipamentos de segurança, luvas e óculos, em meio a grandes máquinas, manuseando ferramentas, executando sua função. Em preto e branco, o contraste se intensifica com as crescentes faíscas e o metal em alta temperatura, e a sombra escura do interior da usina onde se desenrola o trabalho. Uma trilha sonora incidental sugere o perigo eminente ao qual os operários estão sujeitos, já anunciado pelo narrador, enquanto a fumaça proveniente do processo turva a visibilidade do espectador sobre o mesmo. As imagens dos operários e das máquinas tornam-se praticamente só silhuetas, e a trilha sonora é crescente, dramática, enquanto uma sucessão de planos rápidos demonstram o curso do trabalho, que não se torna menos violento. O trecho de apenas um minuto e trinta segundos não deixa dúvidas a respeito do “estado de atenção” necessário à realização daquele trabalho. Apesar de só conseguirmos ver esta cena, o estilo do filme é semelhante ao das obras inglesas, junto às quais Volta Redonda foi colocado no documentário por Cavalcanti, e também de outras do mesmo contexto, como Coal Face. Apesar da aparente digressão no andamento de nossa apresentação sobre o Instituto Nacional de Cinema, a rápida apresentação sobre o filme nos parece bastante conveniente já que a obra representa o tipo de produção que se almejava realizar naquele órgão, bem como ilustra certa coerência no estilo de produções documentais empreendidas por Cavalcanti como produtor vinculado a entidades estatais. Dando continuidade à estruturação do INC, outro Departamento cujo trabalho deve ser esclarecido é aquele de Controle e Censura, transformado em assunto de muitas polêmicas entres os produtores de cinema, dada à possível herança das políticas exercidas pelo governo Vargas durante o Estado Novo, principalmente através do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) e dos DEIP’s (Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda). A Divisão de Censura Cinematográfica do INC teria uma lista de censores rotativos, os quais comporiam um grupo com quinze integrantes: cinco funcionários do INC, cinco educadores e cinco críticos de cinema. Sobre os critérios de avalição dos filmes, esclarecem:

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Ao contrário do que vem acontecendo até agora, a censura não se limitará apenas a julgar o aspecto moral ou de segurança pública dos filmes a serem censurados, nacionais ou estrangeiros. Além deste critério, terá como atribuição específica verificar a qualidade técnica e artística dos mesmos, catalogando-os em três categorias, a saber: A, B e C.

Além de tais categorias, haveria ainda o selo de “Má qualidade”. Ressaltam, contudo, que mesmo os filmes que recebessem tal declaração não seriam proibidos, apenas não poderiam se beneficiar da lei da obrigatoriedade de exibição nos cinemas. Caberia então ao exibidor a escolha de seu lançamento, o que poderia impactar negativamente a venda do filme em questão. Outra determinação problemática era o sistema de proporcionalidade da taxa paga por todo filme censurado, sendo o valor mínimo referente à categoria A, e o mais alto ao de “Má qualidade”. Quanto à Divisão de Fiscalização, a Secção de Fiscalização seria responsável por garantir o cumprimento das leis relativas ao meio cinematográfico, a qualidade das projeções e das estruturas físicas dos cinemas e por realizar pesquisas a respeito das audiências. A Secção de Controle de Filme Virgem provocaria ainda maiores inquietações, justamente por seu caráter controlador ao intermediar a aquisição de película para produtoras e laboratórios, ainda que esta pudesse ser feita também de forma direta. O texto aborda a matéria prima da produção de cinema como um de seus grandes problemas, propondo então, a seguinte medida:

Retirar o filme virgem do regime de licença prévia, permitindo a sua aquisição livre. Visa esta medida permitir a entrada de maior quantidade de filme virgem no país, uma vez que a quota atualmente recebida já é insuficiente para atender as necessidades do consumo, insuficiência essa que se agravará com a instalação de novos estúdios e laboratórios. Além disso, a liberação do filme virgem, e a sua consequente venda livre no varejo, trará o imediato desaparecimento do mercado negro.

Há certa ambiguidade entre o discurso da medida apresentada e as atribuições da Secção de Controle do Filme Virgem. Apesar de garantir a liberação do filme virgem e sua venda livre no varejo, a Secção também defende sua intermediação na aquisição da película, controlando as metragens de acordo com o planejamento das produções e de seu uso real após as filmagens, em vista de garantir sempre o melhor aproveitamento de todo o material. Entre a garantia de liberdade ao produtor e o

111 anseio por um gerenciamento centralizado pela instituição, o texto é impreciso quanto às facilidades de acesso à película virgem. O Departamento de Planejamento e Pesquisas finalmente representa a parcela do INC dedicada à produção cinematográfica privada, com foco na industrialização:

Este departamento visa estabelecer as relações entre o capital, representado pelas companhias, de produção, de distribuição ou de exibição, e os técnicos por ele empregados, sejam nacionais ou estrangeiros; prestigiar e desenvolver o cinema brasileiro numa base industrial, de modo não somente a elevá-lo entre nós, mas também a torná-lo um veículo de propaganda do nosso país no estrangeiro, chamando a ele elementos altamente credenciados; e melhorar o nível cultural do filme nacional, protegendo a participação na sua estrutura de outros setores artísticos brasileiros, quer literários, quer musicais ou plásticos.

Sua Divisão de Relações Com a Indústria estabelecia a composição mínima de membros brasileiros em uma equipe de cinema, variável em relação à hierarquia dos cargos, e a porcentagem mínima de 50% de investimentos brasileiros nas produções consideradas “genuinamente nacionais”. Esta definição de caráter econômico parece estabelecer uma orientação à realização de coproduções, visto que a ausência de uma legislação a seu respeito criava impasses aos produtores brasileiros que buscassem investimentos estrangeiros para seus filmes. Um exemplo está presente nas memórias de Mário Audrá Jr., o produtor da Cinematográfica Maristela, na qual ele expõe diversas circunstâncias em que tentou empreender coproduções com outros países, muitas vezes frustradas devido à ausência de uma legislação que orientasse o trabalho no Brasil.201 No entanto, as regras para coprodução estavam longe de ser um consenso no meio cinematográfico nacional. Havia uma cisão entre produtores que acreditavam no investimento estrangeiro como forma de desenvolvimento da indústria cinematográfica brasileira, como Mário Audrá Jr., e outros grupos que negavam a ampliação do capital internacional no país, posto que ele já dominava grande parte dos setores do cinema nacional, como a distribuição, impedindo a sua autonomia. A Divisão ainda era responsável por rever tais parâmetros com o passar do tempo, pois a tendência era a diminuição de membros estrangeiros, bem como por

201 Cf. AUDRÁ JÚNIOR, Mário. Cinematográfica Maristela: memórias de um produtor. São Paulo, SP : Silver Hawk, 1997.

112 estudar formas de aperfeiçoar o mercado cinematográfico, por exemplo, através de programas ideais de exibição, acordos vantajosos de coprodução e os ajustes necessários para regular a lei de obrigatoriedade. Ela teria ainda outros papeis, sempre relativos ao desenvolvimento da indústria nacional. Com forma mais específica, a Divisão de Proteção dos Direitos Autorais parece ser uma resposta ao problema das adaptações literárias para o cinema, as quais sofriam invariavelmente pelas críticas negativas de caráter comparativo, ora dos autores das obras, ora do público aficionado pela literatura. O filme não alcançava sua própria autonomia enquanto obra, de modo que uma legislação definidora dos parâmetros de proteção aos direitos autorais referentes ao cinema, ainda não contemplado pelas leis existentes, estabeleceria as condições e limites da feitura de adaptações literárias, tornando o campo de atuação deste tipo de produção cinematográfica um espaço legal. O Departamento Cultural é o último setor deste tipo que apresentaremos, e sua importância se deve principalmente ao desejo de criação da Cinemateca Brasileira, junto de uma Biblioteca e uma Divisão de Fototeca. A proposta de criação da Cinemateca é justificada pela necessidade incontestável de preservação da história referente ao cinema nacional, além da contribuição imensa que a aquisição e exibição de outros filmes canônicos trariam à evolução de nosso meio. Por isso já apresentam três listas de filmes: uma com obras previstas para doação ao Instituto, outra com as produções oficias brasileiras que interessariam à Cinemateca, e por último a lista de filmes básicos para aquisição (através de compra ou troca), contendo por volta de 190 títulos de origem dos mais diversos países. Ao fim do Relatório Geral Sobre o Cinema Brasileiro, nos deparamos com um arquivo anexado referente à um rapport de autoria de Paulo Emílio Sales Gomes. De acordo com o que o conteúdo do texto sugere, ele era possivelmente adereçado a FIAF (Fédération Internationale des Archives Filmiques), da qual o autor era o vice- presidente na época. O curto relatório aborda três temas: o Instituto Nacional de Cinema, a Filmoteca de São Paulo, e a preparação das comemorações para o Quarto Centenário da cidade de São Paulo. Sales Gomes relata a iniciativa de Cavalcanti a respeito do INC, o qual compreenderia a Cinemateca Brasileira, tratando-o como um plano de grande envergadura, “de importância decisiva para o futuro do Cinema

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Brasileiro e da cultura cinematográfica no Brasil.”202 E por fim, ele expressa o seu contentamento em ter homens como monsieur Cavalcanti e monsieur Morais [Vinícius de Moraes] ao seu lado com objetivos comuns à FIAF. No entanto, como veremos a seguir, a recepção deste que era considerado como “o projeto de Cavalcanti” para a criação do INC não foi, de modo geral, positiva.

O meio cinematográfico diante do INC

Alberto Cavalcanti, uma espécie de Messias, voltou ao Brasil, depois de granjear fama no estrangeiro. Combatido por uns e enaltecido por outros, tem em mente, há vários meses, a criação do Instituto Nacional de Cinema, cujo projeto se encontra, até hoje, em estudo, no plenário. Não se sabe, ao certo, quais as intenções desse Instituto, e se dará, evidentemente, o resultado esperado. Nada como a prática para se julgar as teorias.203

Quando Cavalcanti deixou a Vera Cruz depois de apenas um ano de trabalho, o meio cinematográfico se espantou. O produtor era um dos principais assuntos da imprensa voltada para o cinema, reveladora das crenças e expectativas de diversos grupos em relação àquele estrangeiro-brasileiro, como vimos anteriormente nas críticas de suas produções fílmicas. O mesmo acontecia na ocasião da descoberta e do desenrolar do projeto de criação do Instituto Nacional de Cinema liderado por Cavalcanti. A revista Anhembi, cuja sessão Cinema de 30 dias era escrita por Benedito Junqueira Duarte, amigo próximo de Cavalcanti, tecia críticas negativas quando necessário, mas a polidez de seus argumentos parece visar, enfim, defender o produtor e o potencial de seu trabalho. O caráter dos textos tornou-se ainda mais latente naquele momento, explicitando a sua tendência a certas contradições. Em março de 1951, um artigo intitulado Os Mistérios da “Vera Cruz”204 foi publicado, no qual era anunciada a “triste confirmação” da saída de Cavalcanti daquela Companhia Cinematográfica, colocando em cheque as “razões ocultas” que teriam motivado o rompimento incompreensível de uma união tão certeira. O autor faz uma série de suposições a respeito dos resultados que a Vera Cruz teria caso tivesse funcionado de

202 Tradução nossa (“d’une importance decisive pour l’avenir du Cinema Bresilien et de la culture Cinematographique au Bresil.”) 203 A cena muda, 15/11/1951. 204 Anhembi, março de 1951, V. I, n. 4, p. 192 – 194.

114 outra forma, dividindo os erros entre Cavalcanti e os administradores da Companhia. B. J. Duarte considerava que a escolha do produtor não fora a mais apropriada, pois, na verdade, Cavalcanti demonstrava ser melhor como diretor, apesar de ainda não ter dirigido sequer um filme no Brasil. Ele fazia referência, então, à sua participação na avant-garde francesa, “um movimento artístico totalmente contrário à industrialização e à comercialização do cinema”. Mas esta espécie de defesa de Cavalcanti como diretor não seria tão conveniente, pois o autor também anunciava o envolvimento do cineasta nos novos planos de Getúlio Vargas para a criação de um instituto de cinema, projeto que manteria Cavalcanti vinculado, de um lado, à figura de produtor, e de outro lado, a um trabalho sistemático que não poderia ser associado a um movimento artístico, tal como aquele em que B. J. Duarte situava o sucesso do diretor-produtor. Não existiam ainda documentos sobre os quais a imprensa poderia se basear para discutir o tema, de modo que as fontes de acesso sobre o projeto de Cavalcanti não eram explícitas. Isso estimulou especulações, tanto à nós ao lermos as notícias veiculadas na época, quanto à própria imprensa que publicava artigos de opinião sobre o assunto sem revelar em que baseavam suas constatações. A Anhembi, por exemplo, apresenta o INC como uma sociedade baseada no regime de economia mista, “nos moldes do que rege a Usina de Volta Redonda”. Sua crítica estaria relacionada especialmente com a divisão das ações, pois 51% delas ficariam com o Governo e os 49% restantes nas mãos de particulares interessados, quando o mais adequado seria o contrário, garantindo assim a liberdade de pensamento e ação da empresa. Ao questionarem Cavalcanti a respeito da filiação entre Vargas e o DIP, ele respondeu: “tudo dependerá do produtor, que servirá de para-choque entre a vontade e o pensamento do governo e a liberdade de ação do cineasta; se porém vencer o governo, nada mais simples: pedirá demissão o produtor...”. Apesar de duvidar dos resultados do projeto, o amigo acreditava nas boas intenções de Cavalcanti. Em um polo oposto à Anhembi, ao menos do ponto de vista ideológico, havia a revista Fundamentos, cuja tendência era criticar incisivamente e de forma negativa o modo de produção e os filmes da Vera Cruz, por associá-los à influência norte- americana, como vimos no capítulo anterior. Contudo, muitas vezes ela livrava Cavalcanti da responsabilidade pelos erros da Companhia. A discussão a respeito do projeto do Instituto Nacional de Cinema durante o ano de 1951 é escassa. Em maio, publicam um texto de Rodolfo Nanni, no qual ele apresenta o “incomparável” Instituto da União Soviética, o único país a manter um grande instituto de cinema, já

115 que o francês e o italiano estariam decadentes. Apesar de crer que o cinema no Brasil estava dando os seus primeiros passos, isso ocorria sob a égide do imperialismo norte- americano, através da uma produção “standard” e de seu reacionarismo. Mas não há menção a respeito do projeto do INC que estava em desenvolvimento naquela época, e o autor apenas exalta que o progresso cinematográfico do país “está dependendo de nossa luta contra o atraso e a dominação imperialista anglo-americana e pela instauração de um governo democrático-popular que impulsione o progresso”205. Apenas em julho, em uma edição voltada para os problemas do cinema nacional206, a revista faz referência ao trabalho de Cavalcanti no andamento do projeto do INC, sem quaisquer julgamentos valorativos. Além disso, há uma entrevista com o produtor, marcada principalmente pelo tom dramático que ele emprega ao abordar o assunto do desenvolvimento da indústria cinematográfica brasileira: haveria um “completo caos” e risco de “aniquilamento total”. Por isso ele discorre sobre alguns dos principais impasses na evolução do setor, para enfim expor o trabalho de sua equipe nos estudos relativos à criação do INC. Os porta-vozes do cinema em Fundamentos, no entanto, dariam mais ênfase à discussão sobre o projeto de Cavalcanti ao participarem das Mesas-Redondas organizadas pela recém-criada Associação Paulista de Cinema – APC. Segundo José Inácio de Melo Souza, elas teriam sido impulsionadas, a princípio, precisamente pelo acesso ao documento do projeto do INC. De modo geral, o evento era

uma consequência natural do trabalho político desenvolvido pela esquerda, no caso, notadamente comunistas, encontrando-se aí mais uma forma de discussão e arregimentação do meio cinematográfico para análise dos problemas atinentes ao cinema brasileiro207

Dentre as três mesas-redondas realizadas, a terceira teria discutido o projeto do INC, em meio à ampla comoção. Cavalcanti não comparecera ao evento e enviara Décio Vieira Ottoni como representante de sua equipe. Havia um consenso de que o órgão não devia ser burocrático e verticalizado, pois corria o risco de funcionar como o antigo DIP do Estado Novo de Vargas, isto é, controlador dos meios de

205 Fundamentos, nº 18, maio de 1951. 206 Fundamentos, nº 20, julho de 1951. 207 SOUZA, José Inácio de Melo. Congressos, patriotas e ilusões e outros ensaios de cinema. São Paulo, SP : Linear B, 2005, p. 12.

116 comunicação, de modo que a forma ideal seria a de um Conselho. A ausência de Cavalcanti e a falta de oportunidade de defesa à Ottoni fez com que a mesa resultasse em um completo ataque ao projeto do INC. O produtor também não participou dos congressos organizados nos anos seguintes, apesar de ter declarado à Alex Viany que era “solidário ao espírito” do I Congresso Paulista do Cinema Brasileiro208. Durante o I Congresso Nacional do Cinema Brasileiro, em 1952, o projeto de criação do INC continuou sendo uma grande questão:

Elas [as divergências] se fixavam no “monopólio do filme virgem”, a ser exercido pelo INC, cuja decorrência maior seria a sujeição da iniciativa particular e do parque cinematográfico aos poderes inapeláveis do Instituto e da dependência ao Estado, já que “toda a direção deste aparelho dependeria da nomeação do chefe de governo”, corporificando um futuro DIP do Cinema Brasileiro.209

Podemos notar, então, uma condição quase onipresente de tal pensamento no meio cinematográfico brasileiro, cujo discurso é caracterizado por uma extrema desconfiança da atuação do Estado sobre os negócios do cinema, por mais que o INC tivesse sido projetado como uma autarquia. Tal percepção ecoava em outros jornais, com pequenas diferenças de posição em relação aos autores do projeto. Enquanto ele era gestado, não faltavam especulações. A cena muda, por exemplo, publicou em um artigo de opinião a seguinte percepção:

O maior perigo para o INC se afigura a odiosa burocracia, que não perderá tempo para tentar transformá-lo em mais um simples ministério, com um mundo de preguiçosos vivendo às custas do dinheiro público; preciso e urgente é, portanto, tomar um extremo cuidado com a intromissão naquele órgão de pessoas desejosas de ocupar um convenientíssimo (para os seus bolsos) cargo público, prejudicando terrivelmente o nosso cinema. Elas certamente não faltarão, pois existem às centenas, porém se o governo deixar tudo nas mãos de Cavalcanti e seus auxiliares, saberão eles a maneira de livrar-se desses <>, porque não se admite que o Brasil sofra e se veja prejudicado por causa de elementos ociosos e incapazes de mover uma mão sequer pelo progresso do país.210

No Diário Carioca, Danton Jobim era ainda mais pessimista e não eximia Cavalcanti da responsabilidade pela possível atuação controladora do Estado,

208 Ibidem, p. 19. 209 Ibidem, p. 40. 210 A cena muda, 26/07/1951.

117 associando ainda o seu projeto com aquele responsável pela criação do Conselho Nacional de Cinema, inicialmente redigido por Jorge Amado, mas cuja alteração deixou-o mais conhecido como projeto do deputado Brígido Tinoco211. Na coluna do articulista, o Intermezzo Cinematográfico, foi publicado o seguinte:

Agora chegou a vez dos cineastas [se aproveitarem do poder exercido pelo presidente no Congresso]. Trouxeram para o Rio o notável sr. Cavalcanti, clássico do cinema inglês. Todo mundo pensava que a ideia dos que o trouxeram era levantar capitais, estabelecer uma indústria, lançar os fundamentos de produção cinematográfica séria, na base da experiência e do renome do grande Cav... Nada disso. Já estão batendo às portas do Congresso para pleitear uma lei que enfeixe nas mãos de meia dúzia de pessoas, com o sr. Cavalcanti à frente, a ditadura da produção cinematográfica. Essa meia dúzia de cidadãos, na forma do projeto apresentado pelo sr. Brígido Tinoco, terão o poder de controlar e distribuir o filme virgem, ou seja, a matéria-prima na indústria de cinema.212

Entretanto, uma exceção pode ser bem acompanhada no jornal Última Hora, no qual o integrante da comissão de Cavalcanti e crítico de cinema, Vinícius de Morais, mantinha uma coluna sobre o assunto. Através de três artigos publicados em dias diferentes, ele escrevera a série: “Alberto Cavalcanti e o INC”, na qual apresentava ao público alguns aspectos de “uma das mais impressionantes, e desconhecidas, batalhas” que ele havia visto, “a batalha em torno do Instituto Nacional de Cinema”213. De início o autor faz a defesa de Cavalcanti, desmentindo a fama de “perdulário” que lhe fora atribuída após sua saída da Vera Cruz e reconhecendo que a grandiosidade da Companhia se devia principalmente à gestão do produtor, afinal, sua “probidade moral e competência técnica pode se provar pelo fato de lhe ter o governo inglês confiado, durante a guerra, a chefia da sua propaganda no setor do cinema, a ele, um estrangeiro que nunca quis se naturalizar”214. Outro problema enfrentado por Cavalcanti relacionado com a Vera Cruz fora a perda dos seus direitos sobre o filme Ângela, cujo argumento era do produtor, e já estava sendo produzido quando ele saiu da Companhia. Vinícius de Moraes lista, então, as principais leis que protegeriam o produtor independente, “que é quem mais trabalha e quem menos ganha no cinema nacional”: quota de proventos, propriedade de direitos autorais, condições de estabilidade para o cinema nacional, controle do

211 Cf. SIMIS, Anita. Estado e cinema no Brasil. São Paulo, SP : Annablume, 1996, p. 147. 212 Diário Carioca, 27/07/1951. 213 Última Hora. 27-7-1951. 214 Última Hora. 28-7-1951.

118 mercado negro, facilitação da censura de qualidade, através do uso de categorias, e da exportação para o mercado estrangeiro. Logo, concluía que seria impossível a concretização de tudo isso sem a criação de um “órgão oficial de fiscalização e proteção, nos moldes do Instituto Nacional de Cinema”, com a ressalva de que a sua existência não representaria de modo algum uma “intervenção estatal”, sendo que os boatos a respeito de sua influência sobre a produção privada constituía “o maior dos absurdos”215. A defesa do INC como uma “entidade planejada nos moldes mais liberais do mundo”, continua ao longo de outros artigos, nos quais responde aos ataques de Danton Jobim 216 , os quais expusemos anteriormente, e de Carmen Santos. A produtora de cinema teria dado uma entrevista à Tribuna Popular, na qual afirmava não acreditar que o Instituto realizaria coisas positivas, além de expressar o medo, generalizado no meio cinematográfico, da censura prévia. Mas Vinícius de Moraes esclarece os diversos pontos das críticas, exemplificando casos nos quais a censura, por exemplo, seria útil aos produtores217. Mais tarde, o autor também divulgaria parte das pesquisas realizadas pela comissão de Cavalcanti que compunham o Relatório Geral Sobre o Cinema Brasileiro, antecipando um dos principais motivos da crise do cinema nacional: os benefícios concedidos ao cinema estrangeiro no Brasil, inexistentes em outros países do mundo, os quais impediam o desenvolvimento de quaisquer setores ligados ao cinema.

Atentai bem nisso, quando o Relatório Geral sobre o Cinema Brasileiro, que dispõe também sobre a criação do Instituto Nacional do Cinema, chegar às vossas mãos. E há mais a acrescentar: ao contrário do que acontece na maioria dos países importadores de filmes, nos quais é permitida apenas a entrada de uma cópia do filme, chamada ‘master positive’ (no idioma do país de origem da cópia) – cabendo à indústria nacional do país importador fazer um contratipo negativo, a tradução, a

215 Última Hora. 31/7/1951. 216 Cf. Última Hora. 2/8/1951. 217 O autor esclarece que a função da censura estaria justamente associada às demandas dos produtores, relacionada com “os temas genuinamente brasileiros, o folclore, a nossa música, todo o nosso patrimônio cultural”, além de ser “uma censura diretamente vinculada ao problema dos direitos autorais no cinema, de que o Instituto, feito como o quer Cavalcanti, protegerá de modo cabal. Assim é que ninguém poderá fazer Capitu, de Machado de Assis, dançar samba de gafieira, porque a censura prévia mandará o roteiro de volta ao produtor.” Em seguida, esclarece a censura de qualidade: “com as categorias A, B e C, - meu Deus - já foi dito milhões de vezes que ela não interfere na produção e exibição de filme algum, exercendo-se apenas numa questão que me parece ultra decente de onerar menos com taxas os filmes de qualidade melhor, e dar-lhes prioridade no tocante à distribuição dos prêmios previstos por lei e a exportação para o mercado externo.” Última Hora. 21/8/1951.

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dublagem ou a confecção das legendas, e todas as cópias para a exibição – ao contrário disso, o que acontece no Brasil é diferente. É sempre diferente o que acontece no Brasil. A nós, os países estrangeiros fornecem também as cópias necessárias à exibição, fornecimento esse computado em cerce de US$4.000.000,00, para o qual licenças de importação são dadas pelo órgão competente.218

Sendo que em um artigo no dia anterior já anunciara seu objetivo em:

esclarecer o público em geral sobre a premente necessidade de proteger esse ramo da indústria brasileira – de modo não só a criar em bases sólidas uma nova fonte de propaganda e riqueza para o país, como a evitar a enorme evasão de preciosas divisas. Sem a compreensão e o patriotismo das autoridades constituídas, da Imprensa, dos intelectuais e do público, nada será possível fazer, de vez que os inimigos do cinema brasileiro são poderosos e agem na sombra.219

Nos parece claro o desejo do autor em convencer o público, através dos dados e das pesquisas realizadas pela comissão da qual fazia parte, da necessidade da criação de um órgão tal como o INC. E ainda ressaltava a importância da união de todo o meio cinematográfico brasileiro no desenvolvimento de um plano único de proteção ao cinema nacional, já que todos teriam um único inimigo real: o produtor estrangeiro. O apelo de Vinícius de Moraes começava pelo título dos artigos: “Essa Mamata Precisa Acabar, Senhores Congressistas!” (I e II), começando pelo setor que tinha maior potencial de ação na resolução dos problemas indicados e no encaminhamento do INC, a classe política. Todavia, para o desagrado do autor, de Cavalcanti e dos demais membros de sua comissão, a recepção do projeto causou muitas controversas no meio do cinema, e não haveria a possibilidade de uma conciliação unívoca em torno daquele responsável pelo INC: Alberto Cavalcanti. Como vimos, não faltaram críticas e dúvidas relativas ao empreendimento, muitas vezes condenado apenas pelo vínculo com Getúlio Vargas. Mas, para certos grupos, o discurso talvez fosse, de um lado, um pretexto para lutar contra a manutenção do poder estatal sobre o cinema nacional, ou, de outro lado, contra o monopólio da produção cinematográfica por uma classe sustentada por seu capital econômico particular. E Cavalcanti esteve ligado à cada um desses lados em diferentes momentos de sua permanência no Brasil.

218 Última Hora, 8/11/1951. 219 Última Hora, 07/11/1951.

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O artigo “Cavalcanti e os escribas da difamação”220 publicado em Anhembi parece nos indicar esta percepção relativa às lutas internas existentes no meio cinematográfico brasileiro. Haviam alguns meses que o projeto do INC fora entregue ao Presidente da República e Cavalcanti já embarcava em novas produções fílmicas. Por mais que a revista não tivesse, desde o início, acreditado na consolidação do Instituto, com suas críticas ferrenhas ao ex-ditador Getúlio Vargas, defendiam Cavalcanti, não apenas quanto ao seu envolvimento político na articulação do INC - “É possível até que ao escrevermos estas linhas em sua defesa, ele próprio já não tenha a mesma fé inicial na futura atividade do Instituto, com cuja criação sonhou um dia” – mas também de uma “campanha de difamação” instaurada contra Cavalcanti desde a sua saída da Vera Cruz. Os responsáveis teriam sido os próprios administradores daquela Companhia, instigados, provavelmente, pelas discussões que antecederam o rompimento com o ex-Produtor-Geral, e possivelmente pela necessidade de um “bode expiatório” culpado pelas críticas contra à empresa. Esta campanha teria tentado difamar o produtor moralmente, causando extremo desconforto e dificultando a sua permanência no Brasil. Em suas memórias, Cavalcanti conta que após a sua saída da Vera Cruz, os administradores da Companhia haviam se aproximado da família Audrá, dona da Cinematográfica Maristela, para que não dessem trabalho para o produtor. Contudo, os Audrá estavam cientes de toda a situação e teriam ajudado Cavalcanti221. Ele também conta que diante das notícias da criação do INC, mais ataques, agora de caráter político, começaram: “Eu queria ser o ‘ditador do cinema nacional’ e não era nada além de um ‘comunista sujo’”222. O grupo ao qual Cavalcanti havia se associado quando voltara para o Brasil seguia a tendência “universalista-cosmopolita”, vertente que se consolidou na década de 1960 mas cuja origem estava no “processo específico de luta por um cinema brasileiro que vinha ocupando o espaço cultural desde a década anterior”223. O

220 Anhembi. Janeiro de 1952. V.V, n.14. 221 Cf. CAVALCANTI, Alberto. One man and the cinema. Introductions by Donald Richie, Henri Langlois and Jorge Amado. S.l. : s.n., 197-, p. 196. 222 Ibidem, p. 199, tradução nossa (“I wanted to become ‘the dictator of the national cinema’ and I was nothing but a ‘dirty comunist’”). 223 RAMOS, José Mario Ortiz. Cinema, Estado e Lutas Culturais: anos 50, 60, 70. Rio de Janeiro, RJ : Paz e Terra, 1983, p. 39.

121 esquema teórico das tendências explicitado por José Mário Ortiz Ramos 224 – “universalista-cosmopolita” versus “nacionalista” - não delineava apenas estilos e modos de produção diferentes, mas a concorrência na disputa pela hegemonia naquele meio, ou seja, para produzir e exibir seus filmes de forma livre e contínua. Não é de se estranhar, então, que o deslocamento de Cavalcanti para o campo político representasse uma ameaça para os “universalistas”, cujo maior interesse naquele momento era a manutenção de seus empreendimentos privados com pouca intervenção do Estado. Naquelas circunstâncias polarizadas, se o produtor não pertencia mais ao grupo universalista, só poderia estar associado com os nacionalistas, influenciados pela política do PCB, patente nas disputas decorrentes da Guerra Fria. Isso explica, então, a sua acusação em ser um “comunista sujo”. No entanto, o grupo dos nacionalistas, ao qual estavam associados os membros da revista Fundamentos que também levaram a cabo as Mesas-Redondas e os Congressos de Cinema, foram contra o projeto do INC, o que dera à Cavalcanti o melhor argumento contra o seu suposto comunismo. 225 Logo, B. J. Duarte considerava que os ataques ao projeto de Cavalcanti nas mesas-redondas da APC configuravam uma “segunda fase da campanha de difamação” 226 contra Cavalcanti, agora pelos nacionalistas. Nesse sentido, ao mesmo tempo que o produtor transitava pelo meio cinematográfico e exercia diferentes funções, ele não assumia nenhuma posição determinada o suficiente, sobretudo do ponto de vista ideológico, para se fixar em um grupo ou outro. Se naquele momento tal divisão poderia já ser notável no meio social do cinema, após certo distanciamento temporal a realização de estudos sobre a época tornaria sistemáticas as categorizações existentes, bem como as divisões sociais que delas decorriam. Apesar desta dificuldade que temos em situar Cavalcanti entre os grupos do cinema, notamos que ele conseguira ocupar cargos de muito prestígio, provocando as mais diversas reações desses diferentes grupos, como apresentamos ao longo do trabalho. O principal questionamento entre eles pode ter sido precisamente a resposta para a nossa dificuldade em situá-lo: por que um brasileiro, considerado muito mais um estrangeiro, deveria tomar as principais decisões a respeito do cinema nacional,

224 Cf. Ibidem. 225 CAVALCANTI, Alberto. Op. cit., 197-, p. 200. 226 SOUZA, José Inácio de Melo. Op. cit., p. 57.

122 enquanto os brasileiros do meio cinematográfico, que há tanto tempo e com tanto custo lutavam para mantê-lo vivo, não podiam opinar? Nesse sentido, José Mário Ortiz Ramos considera que “O projeto de criação do INC – de seu envio ao Congresso à decisão autoritária – passa a ser, então, um novo marco de referência em torno do qual se colocarão os grupos do campo cinematográfico que, desde os anos 50, lutavam por uma política de cinema”227. Em outubro de 1952, a Anhembi noticiou que o projeto de criação do INC fora enviado ao Congresso Federal, mas não em sua versão original. Ele sofrera “modificações substanciais” que alteravam significativamente certas funções do

órgão, como a “substituição da censura cinematográfica «baseada em critérios morais e qualitativos» em censura moldada em «critérios morais e de conveniência 228 pública»”. O projeto original de Cavalcanti finalmente fora reconhecido pela revista, considerado “uma obra de fôlego, a primeira, talvez, que haja englobado totalmente o problema do cinema brasileiro e que, contendo dados concludentes, haja apresentado o esquema de uma possível solução.” No entanto, as alterações que teriam sido guiadas por interesses das mais diversas naturezas tornavam mais uma vez suspeita a criação do Instituto, ao qual Cavalcanti dificilmente voltaria a ser associado. O projeto ficaria em tramitação no Congresso até 1966, quando o INC foi criado através de um Decreto-Lei pelo Regime Militar.229 Posteriormente, em suas memórias, Cavalcanti escreveu com certo pesar a respeito do assunto:

É bastante possível que o instituto e seu sucessor, EMBRAFILME, que sofreram tantas mudanças devido à esta forte oposição às suas atividades, tenham retido muito pouco de sua concepção inicial. De qualquer modo, em oposição aos Institutos Britânico, Americano e do Leste-Alemão, que ocasionalmente trabalharam comigo, as organizações nacionais nunca demonstraram qualquer gratidão pela minha paternidade. Em 1971, eu submeti uma proposta de co-produção francesa para um filme adaptado do último romance (na época) de Jorge Amado. ‘Tenda dos Milagres’. Eu nem mesmo recebi uma resposta.230

227 RAMOS, José Mario Ortiz. Op. cit., p. 51. 228 Anhembi. Outubro de 1952. V.VIII, n. 23. 229 Cf. SIMIS, Anita. Op. cit., p. 251 – 259. 230 CAVALCANTI, Alberto. Op. cit., 197-, p. 200, tradução nossa. (“It is quite possible that the institute and its sucessor, EMBRAFILMS, which have suffered so many changes because of this Strong opposition to their activities, have retained very little of their initial conception. Anyway, as opposed to the British, American and East German Institutes, which have occacionally worked with me, the national organizations have never shown any gratitude for my paternity. In 1971, I submitted a

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O comentário de Cavalcanti é compreensível. Ele ressalta que as instituições estatais surgidas posteriormente ao seu projeto, o INC e a Embrafilme, teriam pouquíssima relação com o Instituto formulado por ele e por sua comissão. Sendo assim, ele não reivindica a autoria por políticas cinematográficas específicas. O que lhe incomoda é a ausência de quaisquer referências ao seu nome e seu envolvimento naquele primeiro projeto. As pesquisas realizadas sobre o assunto demonstraram que, de fato, Cavalcanti é raramente lembrado pela paternidade do INC brasileiro, com raras exceções, como mencionamos anteriormente, em Simis 231 e Autran. 232 O distanciamento temporal entre a idealização do projeto e sua criação efetiva (por volta de 15 anos) pode ser um dos motivos desse esquecimento a respeito do envolvimento de Cavalcanti. Ou ainda, a sua forte associação com a Companhia Vera Cruz também pode ter obscurecido as suas demais iniciativas no país.

proposal of a French co-production for a film adapted from Jorge Amado’s latest novel (at that time). ‘The Fair of Miracles’. I didn’t even get a reply.”.) 231 SIMIS, Anita. Op. cit. 232 AUTRAN, Arthur. O pensamento industrial cinematográfico brasileiro. São Paulo, SP : Hucitec Editora, 2013.

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Últimas considerações

Em um dos artigo da revista A Cena Muda, ao fim do ano de 1952, foi publicado o seguinte: “Na história do cinema brasileiro que agora estamos fazendo e que um dia será escrita, chamar-se-á este capítulo de ‘O Affaire Cavalcanti’”.233 Nos parece bastante apropriado, após termos passado por muitos dos eventos vividos pelo produtor aqui estudado, dedicar o título deste trabalho à expectativa de tal jornalista, que naquela época já vislumbrava o fato daquele momento vir a tornar-se um caso importante para se lembrar na história do cinema brasileiro. De modo geral, apresentar as atividades lideradas por Cavalcanti como produtor, as condições nas quais elas foram realizadas e a sua recepção pelo meio cinematográfico compuseram este trabalho. Outros assuntos se desdobraram a partir do que foi discutido. Esclarecer os motivos da falência dos projetos industriais da década de 1950, por exemplo, seria algo relevante, pois consideramos que atribuir a responsabilidade por tais resultados às personalidades específicas não é o caminho certo, apesar de já termos encontrado tal justificativa algumas vezes. Uma explicação mais coerente seria a existência de políticas de cinema muito desfavoráveis à produção brasileira, mas que beneficiavam o filme estrangeiro através de sua distribuição no Brasil, como apresentado por Paulo Emílio Sales Gomes:

A fim de compensar a diminuição do lucro provocado pelo congelamento [do preço dos ingressos], autorizou-se às companhias cinematográficas estrangeiras a exportação, pelo câmbio oficial, das rendas auferidas pelas suas fitas em território nacional. Tudo ocorria como se os preços das entradas tivessem sido substancialmente majorados, mas exclusivamente em benefício do filme estrangeiro. Para este, o congelamento era uma ficção, mas para a fita brasileira uma dura e inapelável realidade.234

Além disso, poderíamos pensar nas transformações ocasionadas no ambiente cinematográfico pelo desenvolvimento dos empreendimentos de caráter industrial. Uma delas teria decorrido da contratação de técnicos estrangeiros por Cavalcanti na Vera Cruz, ou ainda por Audrá Jr. na Maristela, já que muitos permaneceram no Brasil após o fechamento das empresas e continuaram atuando em diferentes

233 A Cena Muda. 14/11/1952. 234 GOMES, Paulo Emilio Sales. Uma situação colonial? São Paulo, SP : Companhia das Letras, 2016, p. 79 – 83.

125 mercados, não só de cinema, mas de televisão e de publicidade, contribuindo na sua evolução técnica.235 Voltando, porém, ao nosso recorte, seria interessante retomar algumas indagações que apontamos anteriormente. Elas poderiam ser explicadas, de um lado, pelo quadro social em que os indivíduos estão inseridos e no qual se relacionam um com os outros, e de outro lado, pelo indivíduo e sua trajetória, a formação de si, de seu modo de pensar e agir, bem como de suas ambições e realizações. Em relação ao quadro social brasileiro, buscamos mostrar a distinção com que o meio cinematográfico tratou Cavalcanti. Desde a notícia de que o cineasta viria ao Brasil, instalou-se a perspectiva de que um verdadeiro “salvador do cinema brasileiro” mudaria por completo a condição daquele meio, esquecendo-se daquela característica primordial da produção cinematográfica tanto valorizada por Cavalcanti: a do trabalho em equipe. A observação de Marcos Margulière publicada em Anhembi sobre o livro Filme e Realidade ilustra muito bem o pedestal sobre o qual o produtor fora colocado. Esperava-se que a obra contasse “algo de inesquecível, de grandioso [...] uma espécie de magnífico relatório daquele período que enriqueceu tanto a arte cinematográfica, período do qual Cavalcanti foi um dos fulcros. Encontrei, em vez disso, lembranças humanas, simpáticas e pitorescas”236. Ele não poderia ser apenas mais um brasileiro trabalhando com cinema. Outra questão estaria relacionada com a posição do produtor nos grupos em que atuou e o que isso significava em meio às disputas políticas e ideológicas existentes no meio do cinema. No caso particular de O Canto do Mar, Luciana Araújo nos revela uma percepção análoga por parte de um crítico da época:

“No começo, isto é, quando o sr. Alberto Cavalcanti chegou ao Recife, houve nervosismo por parte de alguns ex-futuros artistas de cinema e muitos fricotes por parte de certos cronistas especializados. (...) Passado o primeiro mês, todas as posições estavam solidificadas: um grupo mais firme do que nunca ao lado do homem; outro grupo com receio de se aproximar do homem, uns três que não tomaram conhecimento da presença do homem; e uma grande maioria desgostosa porque não fora escolhida para trabalhar ao lado do homem. (FM/V, 08/out/53, p.4)” 237

235 Cf. SCHETTINO, Paulo B. C. Diálogos sobre a tecnologia do cinema brasileiro. Cotia, SP : Ateliê Editorial, 2007. 236 Anhembi. Vol. XIII, nº 37, Dezembro de 1953. 237 ARAÚJO, Luciana. Crônica de Cinema no Recife dos anos 50. Recife, PE : Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco, 1997, p. 141.

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Tal percepção pode ser ampliada para as demais circunstâncias em que Cavalcanti esteve envolvido no país, já apresentadas antes: ora cosmopolita, ora estrangeiro, ora comunista. Mas o produtor não reivindica o pertencimento a um grupo específico, ou por alguma tendência ideológica explícita. É possível, então, que o seu trânsito por esses diversos grupos fosse precisamente o fator inconveniente de sua personalidade, sobretudo, em um contexto nos quais as divisões sociais pareciam ser bastante evidentes. Ao falar de Cavalcanti, Henri Langlois disse: “Suas raízes não pertencem a uma nação, mas a um tipo de civilização ligada a um período no qual ainda podia ser encontrada, acima de todas as nações, a sociedade sem fronteiras que o formou. É por isso que eles está sempre em casa em Roma e em Paris, em Londres e em Berlim, em Viena e no Rio.” 238 Ao pensar sobre Cavalcanti do ponto de vista do indivíduo e de suas realizações, tentamos esboçar um pouco de sua trajetória na Europa em vista de compreender a formação de sua carreira no cinema, até o ponto em que tornou-se um produtor. A constatação de Richard Barsam de que Cavalcanti conseguia dar ênfase à inter-relação entre todos os elementos fundamentais do filme documentário, o social, o poético e o técnico239, demonstrava o diferencial deste cineasta em relação à John Grierson, mais dedicado ao social, e Robert Flaherty, ao poético. Se para Barsam a medida estabelecida por Cavalcanti para tais elementos caracterizava o desenvolvimento do filme de não-ficção, arriscamos dizer que ela permeia todo o cinema de Cavalcanti e a forma como o cineasta encarava o seu trabalho. O elemento social é latente nas suas produções, independente da função que ele exercesse. Desde Rien que les heures, passando pelos filmes da General Post Office Film Unit, com Coal Face e Night Mail, na Ealing Studios, com Went The Day Well?, até as produções brasileiras, com Santuário e O Canto do Mar. A compreensão do social se dá aqui por duas vias. A primeira através do tema, do conteúdo do filme, conforme o próprio Cavalcanti afirmou: “Como produtor e como diretor, sempre me

238 CAVALCANTI, Alberto. One man and the cinema. Introductions by Donald Richie, Henri Langlois and Jorge Amado. S.l. : s.n., 197-, p. 2, tradução nossa (“His roots don’t belong to a nation, but to a kind of civilization tied to a period where there could still be found, above the nations, the society without frontiers wich made him. That’s why he is Always at home in Rome and in Paris, in London and in Berlin, in Vienna and in Rio.”) 239 BARSAM, Richard. The Non-Fiction Film. New York: P Dutton, 1973, p. 63, apud DEMÉTRIO, Sílvio; MEDEIROS, Gutemberg. O mais estrangeiro de todos os brasileiros: Alberto Cavalcanti e sua jornada pelas vanguardas europeias, in Revista ECO-Pós. Rio de Janeiro, vol.19, n. 2, 2016, p. 32.

127 preocupei com o conteúdo social dos filmes que tenho realizado”. 240 A segunda via está relacionada com a função social do cinema, demonstrada através do envolvimento do cineasta em instituições estatais como a GPO e no projeto do Instituto Nacional de Cinema, já que ambos tinham setores voltados para a produção de filmes de caráter educativo. Mas mesmo quando Cavalcanti escreve sobre produções de caráter industrial e de filmes de ficção, ele menciona a responsabilidade que técnicos como o roteirista e o diretor deviam ter com o público de suas obras, ressaltando a necessidade da compreensão destes sobre o contexto e o momento histórico em que elas teriam lugar241. O elemento técnico aparece sob duas facetas: a do experimentalismo e a da produção industrial. Cavalcanti acompanhou o desenvolvimento técnico do cinema, a chegada do som e da cor. Com isso, ele defendia a experimentação como forma de expandir as possibilidades narrativas e estéticas do filme, como, por exemplo, na época em que trabalhou na GPO Film Unit. Mas compreendendo que o cinema se tratava de uma arte industrial, que dependia de um mercado, era necessário seguir determinado modo de produção que garantisse a continuidade do trabalho. Esse tipo de produção também garantiria o estabelecimento de técnicos especializados, capazes de realizar filmes de qualidade, independente de seu gênero ou finalidade. Haveria espaço tanto para uma produção voltada para o mercado, quanto para o experimentalismo, importante para o desenvolvimento do cinema enquanto arte e tecnologia. Cavalcanti diz, por exemplo, que “Experiência sem fim determinado não é experiência.”242 O elemento poético, enfim, escapa de um definição tão precisa. Contudo, ele pode ser melhor compreendido quando colocado como contraponto ao projeto cinematográfico de documentário de Grierson, no qual a função social e educativa era primordial e o filme era apenas um meio conveniente para os seus objetivos. A cisão na GPO entre o grupo de Grierson e o de Cavalcanti teria se dado precisamente porque o último não considerava o cinema como um simples meio de comunicação para a finalidade social. Era possível cumprir tal objetivo e ainda assim realizar um filme como qualquer outro que não tivesse uma função específica. É o lado do cinema

240 CAVALCANTI, Alberto. Filme e Realidade. São Paulo : Livraria Martins Editora S.A., 1953, p. 229. 241 Cf. CAVALCANTI, Alberto. The Producer. In BLAKESTION, Oswell (org.). Working for the films. Michigan : The Focal Press, 1947. 242 CAVALCANTI, Alberto. Op. cit., 1953, p. 194.

128 como arte que parece estar em jogo, no qual a poesia se revela. Em outras palavras, ao avaliar a rapidez do desenvolvimento do cinema, Cavalcanti afirma que é necessário sempre retroceder no tempo e analisar as mesmas facetas da história do cinema. Só assim seria possível estudar “os três grandes períodos do seu desenvolvimento – o filme mudo, o filme sonoro e o filme colorido, e as suas três grandes funções – o cinema como meio de expressão, a sua poesia e o seu valor social”243. Seguindo sua orientação, é possível retroceder na história do cinema e pensar como o próprio Cavalcanti articulou essas grandes funções em seus trabalhos com o cinema. No caso de sua produção no Brasil, acreditamos que há coerência entre o seu discurso e a sua prática. É evidente que esta hipótese demandaria análises mais profundas, contudo, é possível apontar, após as breves análises dos filmes produzidos por ele no país e das iniciativas em que esteve envolvido, tanto na Vera Cruz, quanto no projeto de criação do INC, que ao menos os aspectos técnicos e sociais do cinema atravessaram as suas preocupações. Por fim, após lermos a obra de Norbert Elias, Mozart – Sociologia de um Gênio, na qual o autor se esforça para avaliar a vida do compositor tal como ele mesmo a sentiu, ou seja, a partir de suas ambições e realizações em face de limitações da época e da sociedade, tornou-se inevitável que especulássemos como teria sido para Cavalcanti a sua experiência no cinema brasileiro, tomando como base os seus depoimentos e livros. Nas suas memórias, One Man and The Cinema, Cavalcanti transparece como um contador de histórias que relembra momentos curiosíssimos a respeito de sua vida na Europa, além de casos e percalços de filmes específicos, ou da amizade com certas personalidades – a ocasião do encontro com Bertrold Brecht, por exemplo, decorrente da produção do filme Herr Puntilla und sein Knecht Matti (1960), ou ainda, quando precisou se uniformizar com uma roupa militar cáqui à serviço do Ministério da Informação Britânico em uma viagem à Paris, durante a II Guerra Mundial. Entretanto, o estilo da escrita se altera quando ele passa a falar do retorno ao Brasil e das experiências aqui vividas. Demonstrando muito cuidado, Cavalcanti parece não querer evidenciar mágoas, nem mesmo realizar um acerto de contas, apesar de narrar os eventos da passagem pelo país com todas as dificuldades que existiram, tornando clara a singularidade daquele período da sua vida entre os demais.

243 Ibidem, p. 207.

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Não é nossa intenção analisar as suas memórias, e tentamos dar lugar a elas ao longo de nosso texto com o cuidado de não sermos tendenciosos. A obra, contudo, é bastante pungente, e não poderíamos deixar de fazer este breve comentário sobre ela. Poucas são as passagens em que ele se refere aos amigos e às comemorações, como ao lembrar que recebia em sua casa, aos sábados à noite, amigos como Silvio Caldas, Inezita Barroso e Dorival Caimmy, que cantavam belas canções brasileiras com seus violões244, sendo que a lembrança deste tipo de convívio social é recorrente e de aparente importância para Cavalcanti nas suas demais estadias em outros países. Parece haver uma constante frustração em relação às suas experiências no país. Por fim, nos permitimos a audácia de questionar se a ocasião do retorno ao Brasil teria sido a maior expectativa de realização no cinema da vida de Cavalcanti. As suas iniciativas no país certamente foram grandiosas, assim como outras também foram em diferentes lugares. A sua percepção sobre o resultado delas, no entanto, não parece ser equivalente.

Cavalcanti é um homem do século XVIII, perdido no XX, e que além disso, faz filmes.245

244 Cf. CAVALCANTI, Alberto. Op. cit., 197-, p. 183. 245 LANGLOIS, Henri. Preface. In CAVALCANTI, Alberto. One man and the cinema. Introductions by Donald Richie, Henri Langlois and Jorge Amado. S.l. : s.n., 197-, p. 2, tradução nossa. (“Cavalcanti is a man of the 18th century, lost in the 20th, and who what is more, makes films.”)

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