6º Encontro ABRI

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – (PUC Minas)

Belo Horizonte, 25 a 28 de Julho, 2017.

Área Temática: História das Relações Internacionais e da Política Externa

A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA PÓS-IMPEACHMENT: UMA ANÁLISE DOS GOVERNOS ITAMAR FRANCO E

Ana Regina Falkembach Simão

ESPM/Sul

RESUMO

Três décadas de democracia, sete eleições diretas e dois impeachments, esses números colocam o Brasil numa posição singular no contexto político do continente Americano. Após os processos de impeachment de Fernando Collor de Melo e de , os vice-presidentes Itamar Franco e Michel Temer, ambos do PMDB, assumiram o executivo do país, com o desiderato de dar respostas à crise brasileira e montar uma nova equipe de governo que restabeleça a governabilidade. Em que pese os distintos cenários políticos, sociais e econômicos que marcaram os dois impeachments e os dois governos, essa pesquisa analisa, numa perspectiva comparada, a política externa de Itamar Franco e de Michel Temer. Essa análise se dá através de três enfoques: o perfil da chancelaria, a relação com a América do Sul e a linha adotada pelo MRE para a inserção internacional do Brasil nos dois governos. Para o desenvolvimento dessa fase da pesquisa são utilizadas a seguintes fontes: pesquisa bibliográfica, discursos dos representantes na Abertura da Assembleia Geral da ONU e entrevistas dos presidentes e chanceleres para os meios de comunicação no Brasil. Especificamente sobre o governo Temer, que se encontra em curso, a pesquisa se dará de maio de 1916 a maio de 2017.

Palavras-Chave:

Política Externa; impeachment; Governos Itamar e Temer.

INTRODUÇÃO

Este ensaio analisa o perfil da política externa dos governos pós- impeachment de Collor de Melo e de Dilma Rousseff. Com o impedimento dos dois presidentes cujos mandatos foram interrompidos em situações certamente diversas, os vice- presidentes - Itamar Franco e Michel Temer - assumiram o poder com o desafio de dar respostas à crise econômica e política e estabelecer uma nova agenda internacional para o Brasil. Vale destacar que em vinte e três anos a jovem democracia brasileira afasta dois presidentes eleitos, repercutindo não apenas na política doméstica mas igualmente no projeto de política externa. A história e a análise da Política Externa são dois campos de estudo das Relações Internacionais que têm sido investigados e debatidos de forma consistente pela literatura especializada internacional1 e brasileira2. Em que pese a importância desta reflexão, o presente ensaio – num primeiro momento - não tem o objetivo de revisitar profundamente o debate teórico acerca da política externa, tarefa que será deixada para a continuidade da pesquisa que entendemos urgente. De qualquer maneira, sobre esta questão cabe sublinhar dois aspectos. Primeiramente, há que se destacar que a política externa é uma política de Estado que, no caso do Brasil, a partir da redemocratização, deixou de ser fechada às diversas agendas governamentais. Como, aliás, também deixou de ser imune às questões econômicas, às crises políticas e as demandas sociais, em que pese a histórica tradição de insulamento do Itamaraty. De fato, a influência de vários Ministérios, de atores subnacionais, de entidades empresariais, do mundo acadêmico e das organizações sociais promoveu na política externa uma renovação na forma de interpretar o tema. Tais mudanças deram à política externa uma nova dimensão: a de política pública. Como observa Milani (et all, 2015, p. 61), essa realidade resultou numa diplomacia pública que, através do Itamaraty, “tem respondido as demandas por informação”. Aliás, alguns setores da diplomacia brasileira têm ampliado o relacionamento com a imprensa, passando a desenvolver “verdadeiros serviços de relações públicas”. Como exemplo, temos a relação dos Ministérios das Relações Exteriores e do Turismo na elaboração de uma “marca Brasil, visando também atrair investimento estrangeiro e

1 Como referência teórica acerca da análise de política externa destaca-se fundamentalmente: SNYDER, R.;BRUCK, H.;SAPIN, B. (1963); SPROUT, H.; SPROUT, M. (1957); Martin, Lisa (2000); HERMANN, M; HERMANN, C. (1989); ALLISON, G.; ZELIKOW, P. (1999). 2 Como uma referência teórica acerca da análise política externa brasileira destaca-se: Lima, Maria Regina Soares de (2000); Lima, Maria Regina S. de; HIRST, Mônica (2002); PINHEIRO, Letícia (2003); SALOMÓN, M.; (2013); VIGEVANI, Tullo (ORG.) (2004); MILANI, C.; PINHEIRO, L. (2013). a organização de eventos internacionais no Brasil” (Milani (et all, 2015, 61). Um segundo aspecto diz respeito à importância dos atores que conduzem a política externa, em especial o perfil e a atuação da chancelaria. Como bem lembrou entre as múltiplas tarefas do Ministro das Relações Exteriores,

[...] está a de apresentar a política externa do País às diversas plateias, internas e externas. No plano interno, é necessário um diálogo permanente com parlamentares, jornalistas, setores empresariais e trabalhistas, professores universitários para que as opções de política externa sejam plenamente compreendidas e ganhem raízes na sociedade. O trabalho diplomático deve partir necessariamente de um amálgama de interesses reais da nação e será tanto mais consistente quanto mais claramente representativo (AMORIM in FONSECA JR e Gelson; CASTRO, Sérgio, 1997, p. 15).

Ainda que a diplomacia siga sendo uma área bastante singular, não há como negar que o campo das relações internacionais ou, mais especificamente, as questões de política externa, experimentaram um crescimento dentro do que podemos chamar de uma agenda da mídia, o que amplia sua repercussão na esfera da opinião pública brasileira. Assim, a análise de Celso Amorim acima revisitada torna-se, ano a ano, parte da realidade brasileira. Podemos concordar com o fato de que, mesmo numa análise superficial do campo jornalístico, por exemplo, é crescente o espaço para questões relacionadas às relações internacionais. Fenômeno que acaba atrelado à própria dimensão que a política interna ganha no país em função dos repetidos ciclos de crises. E é exatamente acerca destes contextos, no qual a política brasileira experimentou momentos de ruptura ou exceção, que a próxima sessão vai se debruçar: os dois processos de impeachment que, em pouco mais de duas décadas, sacudiram a incipiente democracia brasileira.

Dos impeachments e dos contextos políticos

Há pouca similaridade entre os contextos em que ocorreram os dois processos de impeachment no Brasil. Fernando Collor de Melo (1990-1992) se notabilizou por ter sido o primeiro presidente eleito pelo voto direto após vinte e nove anos sem eleições diretas para o executivo, por ser o mais jovem presidente do Brasil, ser “apolítico” e ter se autodenominado um rigoroso combatente da corrupção, ganhando o rótulo midiatizado de “caçador de marajás”. Além disso, Collor de Melo ficou conhecido pelos discursos eufóricos acerca do mundo globalizado e pela enfática defesa de abertura econômica do país, marcada por um viés neoliberal. Nesta agenda, aliás, o governo Collor manteve fidelidade às prescrições do Washington Consensus. Já Dilma Rousseff (2011-2016) elegeu-se na única eleição de que participou e tornou-se a primeira mulher eleita presidente do Brasil. Reconhecida pelo seu perfil “técnico”, ocupou o Ministério de Minas e Energia e posteriormente foi nomeada Chefe da Casa Civil, ambas as tarefas sob o Governo de Luis Inácio Lula da Silva, de quem recebeu a alcunha de “mãe do PAC” – Programa de Aceleração do Crescimento. Herdeira de importantes programas sociais do governo Lula que retiraram cerca de 36 milhões de pessoas da miséria extrema - a exemplo do ‘Bolsa Família’ e do ‘Minha Casa Minha Vida’ - o governo Dilma apostou num projeto “neodesenvolvimentista” que, todavia, teve resultados menos exitosos do que o governo anterior. De fato, o segundo mandato da presidente Dilma Rousseff iniciou sob a égide da crise econômica e política. Com significativa perda de apoio político e sob uma forte oposição – liderada, sobretudo, pelo Senador Aécio Neves, seu oponente derrotado nas eleições de 2014 – praticamente não governou. Isso nos leva a uma primeira e fundamental observação - e convergência - no âmbito de nosso objeto empírico. No que diz respeito especificamente aos processos de impeachment, o ponto de encontro entre os distintos governos é a existência de uma robusta crise política, que impactou diretamente na governabilidade de ambos. Como observa Brasílio Salum, em entrevista para revista Época, em 2015, com relação ao governo Collor, houve um razoável processo de mobilização, manifesto em iniciativas da CUT, CNBB e OAB, até as revelações do irmão Pedro Collor dizendo que Paulo Cesar Farias era o testa de ferro do presidente. Isso seria “uma espécie de estopim de um barril de pólvora que estava crescendo”. Para o autor em questão, a demanda popular é importante, uma vez que dá legitimidade ao impeachment.

Mas só a mobilização popular não basta. Depois dessas denúncias, houve uma articulação político-partidária do PT, do PSDB e do PMDB. Um pedido de CPI parado no Congresso ganhou força, e ela foi instaurada, somando-se à articulação da sociedade até então sem força. Contribuiu ainda a fundação do Movimento Ética na Política. Essa coalizão política foi fundamental, porque é preciso obter dois terços de votos da Câmara para que o processo de impeachment avance para julgamento no Senado. (SALUM, 2015, entrevista Revista Época).3

Ficaria claro enfim que, contra Fernando Collor de Melo foi registrado “um processo de unanimidade”, já que “os grupos estavam mobilizados numa só direção” (SALUM, 2015). Isso não vai ocorrer no impeachment da presidente Dilma Rousseff, em cujo processo de afastamento observou-se “uma clara divisão no mundo político e sociedade”. Para o analista, o caso de Dilma, do ponto de vista social, mostra uma “fragmentação de demandas, vários coletivos” e uma falta de consenso acerca da perda do mandato da presidente.4 Tal dissenso, inclusive, também ganharia destaque

3 HTTP://EPOCA.GLOBO.COM/TEMPO/NOTICIA/2015/08/BRASILIO-SALLUM-JR-NAO-HA-CONDICOES- POLITICAS-PARA-UM-IMPEACHMENT.HTML (ACESSADO EM 10 DE MARÇO DE 2017). 4 Sobre o momento político vivido por Dilma, o autor diria textualmente: “existe um conjunto de partidos e parlamentares que tem derrotado o governo sistematicamente. Nem sempre pelos melhores motivos. Esse é um exemplo da gravidade da nossa crise. Você tem uma situação em que os agentes parecem não ter um destino comum, nem ao menos horizontes em disputa. Os agentes, os partidos, as forças políticas não desenham um futuro que seja entre os notáveis, a exemplo do ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa. Ele comentaria em seu twitter no dia 31 de agosto de 20165, após definida a condenação da presidente no Senado: “não acompanhei nada desse patético espetáculo que foi o ‘impeachment tabajara’ de Dilma Rousseff”. O magistrado, que fora um julgador implacável do chamado “mensalão petista”, prosseguiu suas críticas: “Michel Temer pensa que um ‘toque de varinha jurídica’ lhe dará legitimidade. O pobre!” Nesse trecho, note-se que o ex-presidente do STF usou a expressão “coup de baguette juridique”, que, ao mesmo tempo em que significa “toque de varinha jurídica”, inclui a palavra “coup”, cujo sentido, separadamente, remete a “golpe”. Especificamente no caso de Dilma Rousseff observam-se os impasses no sistema político, sobretudo no que diz respeito às consequências do presidencialismo de coalizão. Conforme Sérgio Abranches (1988), o presidencialismo de coalizão - característica do sistema político brasileiro, que significa eleger o Presidente com mais votos que o seu partido recebeu nas eleições legislativas – faz com que o governo tenha que estabelecer um amplo leque de alianças para que a governabilidade se viabilize. Essa necessidade de costurar acordos interpartidários pode resultar num custo político alto, sobretudo quando esse custo está relacionado à pulverização dos recursos públicos e à larga distribuição de ministérios entre os diversos partidos com pequena bancada – e, em geral, expressão - que formam a base aliada do governo. Vejamos agora, de forma resumida, os caminhos dos dois sucessores dos presidentes afastados. Itamar Franco, ao assumir a presidência, se distanciou de seu antecessor em vários aspectos, especialmente ao abandonar a postura política outsider que marcou o governo Collor de Melo. Ao contrário, naquela época e momento específico, Itamar reuniu as principais lideranças partidárias do País, inclusive o PT, que embora não tenha feito parte do governo, não se tornou um oposicionista contundente, em virtude de que havia apoiado o impeachment de Collor. Para Lula6, de acordo com o Jornal O Globo, o presidente Itamar não podia “cometer o erro do Sarney e lotear os Ministérios, nem o erro do Collor de nomear os amigos”. De fato, Itamar não repetiria tais erros, procurando montar um governo com a participação de alguns ‘notáveis’, que contribuíssem para superar o clima de incertezas. Segundo a cientista política Aspásia Camargo, chamada por Itamar para ser diretora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), dois fatores foram decisivos para que o novo presidente tenha conquistado a governabilidade sem ficar atraente e que force uma articulação em prol disso. Nem governo nem ninguém aponta um horizonte para além dessa crise. Daí resulta uma boa dose da desesperança sobre nosso futuro” (SALUM, 2015). HTTP://EPOCA.GLOBO.COM/TEMPO/NOTICIA/2015/08/BRASILIO-SALLUM-JR-NAO-HA-CONDICOES-POLITICAS- PARA-UM-IMPEACHMENT.HTML. 5 Ver em (http://g1.globo.com/politica/processo-de-impeachment-de-dilma/noticia/2016/08/joaquim-barbosa-chama- impeachment-de-tabajara-e-patetico.html). 6 Ver em http://acervo.oglobo.globo.com. refém dos partidos políticos. Primeiramente, Camargo sustenta que Itamar não dava intimidade aos políticos e nem tinha telhado de vidro, o que limitaria a pressão dos partidos. Em segundo lugar e não menos importante, “o cenário político delicadíssimo levou a uma certa compreensão de todos de que o governo tinha que dar certo”7. Se esta fórmula realmente foi determinante para o sucesso de Itamar Franco, vale lembrar que as condições da mesma não se configuram no caso do segundo processo de impedimento registrado na recente história brasileira. Michel Temer, diferentemente de Itamar Franco, não iniciou sob o signo da unanimidade.8 Ao contrário, o processo de impeachment da presidente Dilma foi fortemente marcado pela ausência de consenso acerca das assim chamadas “pedaladas fiscais”. Tal justificativa abriu profundas lacunas políticas, sociais e institucionais no Brasil. Outro aspecto que o diferencia de Itamar deve-se ao seu protagonismo direto no processo de impedimento da presidente. Para muitos articulistas e formadores de opinião, o afastamento da presidente Dilma já estava sendo gestado há pelo menos alguns meses antes do impeachment. Um episódio que marcou o comportamento controvertido – e para muitos, pouco confiável - do vice-presidente foi o vazamento de uma carta pessoal supostamente dirigida à presidente Dilma em sete de dezembro de 2015, na qual Michel Temer tenta mostrar aos brasileiros que não tem a ver com o governo que, todavia, compunha: “Passei os quatro primeiros anos de governo como vice- decorativo. A Senhora sabe disso. Perdi todo protagonismo político que tivera no passado e que poderia ter sido usado pelo governo”. Outra queixa era a não valorização das suas indicações “técnicas” para atuar no governo9. Vale destacar que tais Indicações “técnicas”, hoje compõem o Ministério de Temer sob algumas restrições nada desprezíveis, em função do envolvimento de alguns nomes com diferentes investigações sobre corrupção, para além das várias fases da Lava-jato. E essa questão envolveu, inclusive, o MRE, como será visto na próxima seção.

7 http://acervo.oglobo.globo.com 8 Em “A Democracia Impedida: O Brasil no Século XXI” (2017) Wanderlei Guilherme dos Santos faz uma dura análise do processo político brasileiro que resultou na chegada de Michel Temer a presidência da República. 9 Conforme a carta do vice-presidente Temer à presidente Dilma, o distanciamento entre os dois estava muito evidente: “A senhora, no segundo mandato, à última hora, não renovou o Ministério da Aviação Civil onde o fez belíssimo trabalho elogiado durante a Copa do Mundo. [...] No episódio , mais recente, ele deixou o Ministério em razão de muitas "desfeitas", culminando com o que o governo fez a ele, Ministro, retirando sem nenhum aviso prévio, nome com perfil técnico que ele, Ministro da área, indicara para a ANAC” (http://g1.globo.com/politica/noticia/2015).

Dos Chanceleres Mesmo diante da interferência de diferentes atores na formulação da política externa brasileira, bem como do avanço e da pluralidade teórica que a academia brasileira tem apresentado nas duas últimas décadas acerca do tema, a escolha do Ministro das Relações Exteriores é um dado da realidade política importante para a análise da política externa. Considera-se que tal indicação está diretamente relacionada à dimensão estratégica que o MRE tem ou terá para o governo. Diante disso, observa-se que os governos pós-impeachment tiveram posturas marcadamente distintas quanto à escolha do Chanceler. Para Itamar Franco, a agenda internacional era uma prioridade, por isso o prestígio do chanceler era um aspecto fundamental a ser perseguido. Nesse quesito, a escolha de Fernando Henrique Cardoso e Celso Amorim pode ser considerada um indicativo que revela a relevância que o Itamaraty teve no governo de Itamar Franco (BECARD, 2009; HIRST & PINHEIRO, 1995; CANANI, 2004). Em que pese o fato de Fernando Henrique Cardoso naquele momento ser conhecido nacionalmente como um importante quadro político do PSDB10, o seu perfil acadêmico lhe recomendava ao cargo de chanceler. De fato, sua biografia contribuiu para a projeção do Brasil no contexto internacional, sobretudo após os desgastes políticos decorrentes do processo de impeachment. A consistente produção acadêmica, com mais de uma dezena de livros publicados, notabilizou sua trajetória intelectual no Brasil, sobretudo, por duas conhecidas obras: Capitalismo e Escravismo no Brasil Meridional (1962) e Dependência e Desenvolvimento na América Latina, (1970) escrito conjuntamente com o historiador e sociólogo chileno Enzo Faletto. A chegada de Fernando Henrique ao MRE, em outubro de 1992, não apenas reorientou o Ministério, após os anos de voluntarismo de Collor de Melo, como também reorganizou o Itamaraty no sentido de construir um projeto de inserção internacional que integrasse o país no sistema internacional com base na defesa da democracia, dos direitos humanos e do desenvolvimento. Com a saída de Fernando Henrique Cardoso do MRE, em maio de 1993, Celso Amorim11 ocupou a chancelaria,

10 Sociólogo, professor da USP, pesquisador ligado à Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) e à Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (FLACSO). Em 1978, entrou formalmente para a política, elegendo-se para suplente de Senador por São Paulo, pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Ao assumir a cadeira do titular, André Franco Montoro, no Senado, em 1983, Fernando Henrique se projetou nacionalmente como sendo um dos protagonistas do establishment na campanha das Diretas Já (1984) e na redemocratização do Brasil. Ainda no PMDB, foi líder do governo Sarney no Congresso em 1985-1986, foi reeleito senador, em 1986, tornando-se senador constituinte (1987-1988). Numa cisão do PMDB, FHC conjuntamente com Mário Covas e José Serra fundaram o PSDB. Cardoso deixou o Senado para assumir o Ministério das Relações Exteriores do governo de Itamar Franco. 11 Formado pelo Instituto Rio Branco em 1965, posteriormente obteve o título de pós-graduação em Relações Internacionais pela Academia Diplomática de Viena, em 1967. Durante a sua carreira diplomática assumiu diferentes atividades, dentre elas algumas peculiaridades, tal como o fato de ter sido diretor-geral da EMBRAFILME durante o governo de João Figueiredo. Com o lançamento do filme ‘Pra Frente Brasil’, em 1982, Amorim acabou sendo levado a renunciar ao cargo, após o filme ter sido avaliado pela linha dura das Forças Armadas como uma “afronta”. No governo de José Sarney, Celso Amorim foi Secretário de assuntos internacionais do Ministério de Ciência e Tecnologia, de reforçando a projeção do país no contexto internacional sob a égide da defesa da democracia e da paz. A atuação do Embaixador Celso Amorim resgataria a importância histórica do corpo diplomático no exercício da chancelaria. No outro lado do espectro de análise de política externa brasileira estaria o governo de Michel Temer. Se for avaliada apenas a questão pontual da indicação dos nomes dos chanceleres já é possível argumentar que, hoje, vive-se um notório retrocesso na diplomacia brasileira. O governo Temer, quando assumiu interinamente a presidência, em maio de 2016, anunciou que a nova equipe ministerial teria um perfil técnico e mais do que isso, de “notáveis”. No entanto, o que se viu foi a clara distribuição dos Ministérios entre os amigos do PMDB e quadros importantes dos partidos políticos que compõe a base aliada do governo. Fazem parte, justamente, da falta deste prometido critério técnico a indicação de José Serra12 e, posteriormente, de Aloysio Nunes13 para ocupar o MRE. Tais escolhas sinalizariam a periférica posição que a política externa ocupa no governo Temer. Há também que se observar que a indicação de José Serra e , importantes quadros políticos do PSDB, num cenário de polarização pré e pós- impeachment, no qual os principais protagonistas da arena política brasileira eram o PT e o PSDB, é um indicativo de ruptura de uma política externa que se pautara, até então, pelo pragmatismo, pela autonomia, pela busca de novos parceiros estratégicos e pela reafirmação dos interesses nacionais no contexto internacional.14 Contudo, mesmo considerando que a política externa do governo de Dilma Rousseff tenha sido pouco assertiva e demonstrado recuos15, os seus chanceleres – Antônio Patriota, Luiz

1987 a 1988. Foi embaixador em Genebra (1991-1992) e no Reino Unido (1993). No governo de Fernando Henrique foi embaixador do Brasil junto a ONU. Além de ter tido uma experiência docente no Instituto Rio Branco e da UNB, também ostenta uma consistente produção acadêmica. O prestígio de Amorim lhe rendeu elogios no mundo da diplomacia: um dos comentaristas da Revista norte-americana Foreign Policy, David Rothkopf, em 2009 indicou Celso Amorim como "o melhor chanceler do mundo". (http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u43525.shtml; http://www.iea.usp.br). 12 José Serra cursou Economia em Santiago e Paris. Teve uma breve carreira acadêmica. No início da redemocratização ajudou a fundar o PMDB. No governo Franco Montoro (1983-1987), foi secretário de Economia e Planejamento do Estado de São Paulo. Elegeu-se deputado federal por São Paulo em 1986 e reelegeu-se em 1990. Em 1988 foi um dos fundadores do PSDB. Em 1995, foi eleito senador por São Paulo. Ocupou os ministérios do Planejamento e Orçamento e da Saúde no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Em 2002, Serra candidatou-se à presidente da República, perdendo a eleição no segundo turno para Luís Inácio Lula da Silva. Nos anos seguintes, elegeu-se prefeito da capital paulista e governador do Estado de São Paulo. Em 2010, foi novamente candidato à presidente da República, perdendo para Dilma Rousseff. Serra protagonizou uma memorável cena em vídeo que circulou amplamente no país, durante uma entrevista, na qual teve dificuldades em saber os nomes dos países que compunham os BRICs. (http://www.joseserra.com.br/biografia/) 13 Aloysio Nunes cursou Direito e Ciências Sociais na Universidade de São Paulo. Foi militante político nos anos de 1960 e participou da luta armada contra a ditadura militar pela Ação Libertadora Nacional (ALN). Na clandestinidade, era chamado principalmente de “Mateus”. Exilou-se na França de 1968 a 1979, onde se formou em Economia Política e cursou mestrado em Ciência Política pela Universidade de Paris. Ao retornar para o Brasil entrou para a política como Deputado Estadual e Federal pelo PMDB. Posteriormente, ao ingressar no PSDB, ocupou vários cargos no executivo Federal e Estadual em São Paulo. Atualmente se destacou no cenário político nacional sendo Senador e líder do PSDB no Senado, além de ter sido candidato à Vice-Presidente na chapa de Aécio Neves, nas eleições de 2014. (http://www.aloysionunes.com/novo/bio; https://www.cartacapital.com.br/politica/o-passado-de-aloysio-nunes- 8807.html).

14 Ver MILANI, Carlos R. S. et. all (2014); VISENTINI, Paulo (2013); VIGEVANI, Tullo e CEPALUNI, Gabriel (2011); 15 Ver CERVO, Amado Luiz; LESSA, Antônio Carlos. (2014). Alberto Figueiredo e Mauro Viera – representaram a credibilidade brasileira nos assuntos de diplomacia pelo simples (e relevante) fato de serem profissionais de carreira diplomática. Tais diferenças entre os dois contextos históricos pós-impeachment, sinalizadas pelas particularidades dos perfis dos Chanceleres e pela irrupção de um quadro de acirramento político em torno do governo Temer (que não se registrara no caso de Itamar), podem ser ainda documentadas em outro aspecto igualmente relevante para a análise comparativa aqui proposta. Trata-se dos discursos de ambos os representantes da política externa brasileira na Assembleia Geral da ONU, acerca dos quais examinaremos, a seguir, alguns pontos que entendemos reveladores.

DOS DISCURSOS NA ONU

Os discursos na abertura da Assembleia Geral da ONU têm sido tema de teses, debates acadêmicos e matérias jornalísticas, que dão a ver para a opinião pública brasileira os rumos de um país cada vez mais propositivo e inserido no sistema internacional. É bem verdade que as principais lideranças do mundo ocupam aquele espaço para apresentarem à comunidade internacional suas posições acerca dos grandes temas que norteiam o sistema internacional, tais como segurança, paz, fome, democracia e direitos humanos, entre outros. Representando o governo de Itamar Franco, Celso Amorim compareceu à 48º Sessão da Assembleia Geral da ONU, em 1993, citando Araújo Castro e os fundamentos da Política Externa Independente:

Há exatamente trinta anos, outro Chanceler brasileiro, Diplomata de Carreira como eu, Embaixador Araújo Castro, assinalava que as Nações Unidas podiam ter suas tarefas resumidas numa tríade, a que chamou de os “3D’s” – Desarmamento, Desenvolvimento, Descolonização. Hoje, praticamente superados os últimos resquícios do colonialismo, posso parafraseá-lo, afirmando que a agenda internacional se estrutura novamente em torno de três “D’s”: Democracia, Desenvolvimento Desarmamento, com seus desdobramentos nas áreas dos Direitos Humanos, do Meio Ambiente e da Segurança Internacional (AMORIN in CORREA, 2007, p. 570).

Em sua fala, Amorim ressalta a democracia brasileira e aponta a importância do governo Itamar Franco no sentido de buscar a solução de questões econômicas sem ter que lançar mão de políticas de claro conteúdo anti-social (leia-se neoliberal). É exatamente isso que se depreende do trecho no qual ressalta que num ambiente “de liberdade, em que avança o projeto de construção de uma sociedade aberta, democrática e plural, estamos buscando solucionar nossos problemas macroeconômicos sem a tentação autoritária” que, segundo o Chanceler, “se

expressaria no recurso a expedientes tecnocráticos baseados em estruturas fechadas de tomada de decisão”. A ênfase na questão democrática é igualmente colocada ao reafirmar o compromisso do Brasil com o que chamou de “uma tríade indissolúvel”. Segundo Amorim,

[..] o Governo e a sociedade brasileiros estão conscientes de que as difíceis questões que enfrentamos na área de Direitos Humanos estão profundamente vinculadas com os desequilíbrios sociais herdados de décadas de insensibilidade ancorada no autoritarismo. Democracia, Direitos Humanos e Desenvolvimento formam uma tríade indissolúvel (AMORIM in CORRÊA, 2007, p. 570).

O Chanceler aponta para um Brasil desenvolvimentista marcado, todavia, pela preocupação social e apartado de tentações baseadas em soluções tecnocráticas que, não raro, tenderiam “a impor sacrifícios excessivos aos setores mais pobres e frágeis da população”. Daí a importância que o Governo de Itamar Franco atribuiria à retomada do crescimento e à geração de empregos, “acompanhada de uma mais justa distribuição da renda, única forma sólida e sustentável de garantir o desenvolvimento social e a vigência plena dos Direitos Humanos”, sinalizados pela importância de programas sociais como o do Combate à Fome, “nascidos na Sociedade Civil, e que contam com amplo e firme apoio do Governo” (AMORIM In CORRÊA, 2007, p. 570). Um aspecto igualmente relevante no discurso proferido naquela 48º Sessão da Assembleia Geral da ONU, pode ser resumido na expressão “transparência”, utilizada pelo Chanceler para definir o tom das decisões e ações do Governo, enquanto importante aspecto da política brasileira. Tal transparência estaria manifesta “no diálogo fluído e cooperativo” mantido “com os segmentos e organizações da sociedade dedicados à luta pela observância dos direitos humanos no país”. Mas esta abertura e “ânimo construtivo” não se limitariam às fronteiras nacionais, já que o Brasil buscaria e manteria “cooperação sobre as questões de direitos humanos com os demais países, as organizações intergovernamentais e não governamentais” a fim de criar, “na base do respeito mútuo, novas formas de ação em defesa do Estado de Direito e em favor da proteção adequada dos direitos humanos” (AMORIM In CORRÊA, 2007, p. 570). Sobre a questão da transparência tão destacada naquele discurso, vale lembrar um aspecto chave que norteou o governo de Itamar Franco, após o impeachment de Collor: a legitimidade. No contexto histórico daquele que foi o primeiro impedimento de um presidente na jovem democracia brasileira, não havia questionamentos de fundo sobre a legitimidade do governo que assumia o poder. A transparência, de fato, era a pauta da política doméstica. A mesma sociedade que apoiara de forma compacta a interrupção do mandato do “caçador de Marajás” apoiava Itamar Franco e dele esperava soluções para a crise política, social e econômica. Como disse Celso Amorim ao refutar pontualmente o recurso à tecnocracia, o caminho que o país e o Governo do Presidente Itamar Franco perseguia “é outro, talvez mais complexo e trabalhoso, mas, seguramente, mais democrático e mais capaz de produzir resultados consensuais e permanentes”. Vinte e três anos depois e diante de um segundo processo de impeachment, como manda a tradição desde Oswaldo Aranha, o Brasil abre a 71º Sessão da Assembleia Geral da ONU. Diferentemente do primeiro governo pós-impeachment, em 20 de setembro de 2016, Michel Temer proferiu o discurso, talvez como uma forma de mostrar ao mundo que estava no comando do país.16 Todavia, sua ênfase no “compromisso inegociável com a democracia” tinha uma outra conotação. O Brasil acabava de “atravessar processo longo e complexo, regrado e conduzido pelo Congresso Nacional e pela Suprema Corte brasileira”, que culminaria “em um impedimento”, nas palavras literais proferidas por Temer. “Tudo transcorreu, devo ressaltar, dentro do mais absoluto respeito à ordem constitucional” fez questão de salientar o presidente. Assim, o impeachment era apresentado à ONU como “um exemplo ao mundo” no qual o Estado de direito garantia normas aplicáveis a todos, “inclusive aos mais poderosos”, enquanto um “processo de depuração do sistema político” estava em curso.17 De fato, a abertura do discurso foi de certa forma, protocolar: “O Brasil traz às Nações Unidas sua vocação de abertura ao mundo. Somos um país que se constrói pela força da diversidade. Acreditamos no poder do diálogo”, disse Michel Temer. Mas diferentemente do discurso de Amorim, o presidente empossado após o impedimento de Dilma Rousseff, colocou a questão do desenvolvimento num outro patamar ao salientar que, mais do que um objetivo, ele era um “imperativo”. Depois de ressaltar a questão do direito de todos “à serviços públicos de qualidade” como educação, saúde, transportes e segurança; à “igualdade de oportunidades” e ao “acesso ao trabalho decente”, Temer afirmou: “Em uma palavra, desenvolvimento é dignidade – e a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do Estado brasileiro, conforme previsto no artigo primeiro da nossa Constituição Federal.”18 No entanto, a visão de desenvolvimento – enquanto um “imperativo” – foi conectada com a nova linha na

16 Vale observar que o evento registrou algo bastante incomum na história da diplomacia brasileira: quatro chefes de Estado de países da América Latina – Costa Rica, Venezuela, Equador e Nicarágua – abandonaram o plenário da ONU no instante em que o presidente do Brasil, Michel Temer, iniciou seu discurso. Cuba e Bolívia sequer estavam presentes naquele momento. http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,em-protesto-contra-temer-costa-rica- abandona-plenario-da-onu,10000077139. 17 Discurso na integra em: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/discursos-artigos-e-entrevistas-categoria/presidente-da- republica-federativa-do-brasil-discursos/14756-pronunciamento-do-senhor-do-presidente-da-republica-michel-temer- durante-abertura-do-debate-geral-da-71-assembleia-geral-das-nacoes-unidas-nova-york-20-de-setembro-de-2016 18http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/discursos-artigos-e-entrevistas-categoria/presidente-da-republica-federativa-do- brasil-discursos/14756-pronunciamento-do-senhor-do-presidente-da-republica-michel-temer-durante-abertura-do- debate-geral-da-71-assembleia-geral-das-nacoes-unidas-nova-york-20-de-setembro-de-2016 política externa brasileira, marcada pelo viés liberal. Assim, a questão comercial, atrelada a uma crítica ao intervencionismo do Estado, se impôs no discurso presidencial19.

O desenvolvimento depende, também, do comércio. Em cenários de crise econômica, o reflexo protecionista faz-se sentir. Há que contê-lo. O protecionismo é uma perversa barreira ao desenvolvimento. Subtrai postos de trabalho e faz de homens, mulheres e famílias de todo o Brasil vítimas do desemprego e da desesperança, igualmente do mundo. O sistema multilateral de comércio é parte da luta contra esse mal (TEMER- ONU).20

As nuances ou mudanças mais explicitas entre os dois discursos – de 1993 e 2016 – seriam apenas um prenúncio de uma nova configuração naquele que é, certamente, um dos mais clássicos temas da política externa brasileira: a questão do MERCOSUL.

DO MERCOSUL

Para o governo que se constituiria após o impeachment de Collor de Melo, o MERCOSUL foi prioritário. Durante o mandato de Itamar Franco, ele se tornaria de fato um espaço estratégico para o Brasil. Se a diplomacia presidencial não foi uma característica do governo Itamar, as viagens para a América do Sul marcaram o seu governo, assim como o recebimento de visitas dos países vizinhos. Como avaliou Raúl Bernal-Meza (2002), o Governo Itamar Franco retomou alguns temas da agenda Collor, levando adiante compromissos internacionais já pactuados. Vive-se a ideia do Brasil como um país continental e global trader, o que levaria a uma aproximação de Brasília com outras “potências médias”, como China, Índia e, posteriormente, Rússia. Por outro lado, se aprofundam as medidas de confiança recíproca com a Argentina, dá-se o relançamento da cooperação econômica e de integração em infra-estrutura com a Venezuela, Colômbia, Uruguai e Bolívia e nasce a proposição de criação do Acordo de Livre Comércio da América do Sul (ALCSA), realizada pelo próprio Presidente em Santiago do Chile, no ano de 1994. Em que pese tal projeto não ter avançado, o fato é que o bloco regional iria assumir uma dimensão cada vez mais importante na política externa brasileira, como atesta o Protocolo de Outro Preto (1994), que marcou o início da união aduaneira, dando ao bloco uma personalidade jurídica.

19 O protecionismo das grandes potências também seria lembrado. Em especial, em questões ligadas à agricultura e medidas sanitárias: “De particular importância para o desenvolvimento é o fim do protecionismo agrícola. Já não podemos adiar o resgate do passivo da OMC em agricultura. É urgente impedir que medidas sanitárias e fitossanitárias continuem a ser utilizadas para fins protecionistas. É urgente disciplinar subsídios e outras políticas distorcidas de apoio doméstico no setor agrícola. Com sua agricultura moderna, diversificada e competitiva, o Brasil é um fator de segurança alimentar. Produzimos para nós mesmos e ajudamos a alimentar o mundo.” (Ibidem) 20 Ibidem Se o MERCOSUL foi prioritário em diferentes governos dos anos 1990 até o ano de 2016 – incluindo os mandatos de Itamar Franco, Fernando Henrique, Lula e Dilma - a emergência do segundo governo pós-impeachment mudará esse quadro de forma evidente. O que se observa no primeiro ano de política externa do Governo Temer, sob a chancelaria de Serra e Nunes, é uma redução na importância do MERCOSUL tal qual tinha sido concebido nas últimas duas décadas. Para o novo governo, a aposta parece ter ficado muito mais em adensar a relação bilateral com a Argentina e na aproximação com a Aliança do Pacífico. No entanto, isso não causa estranhamento considerando que o PSDB – partido do qual saíram as duas indicações para o Ministério21 - já vinha, há alguns anos, apontando para este caminho. Como já tivemos a oportunidade de destacar, num outro contexto, o então senador e presidenciável Aécio Neves (PSDB), em palestra dada em Porto Alegre durante o Fórum da Liberdade de 2014 - promovido pelo Instituto de Estudos Empresariais (IEE) - propôs simplesmente o “fim do Mercosul”. Neves classificou o bloco econômico como “coisa anacrônica” que “não está servindo a nenhum interesse dos brasileiros” (SIMÃO, 2014), mostrando enfim a coerência do partido na matéria em questão. Os novos rumos para o MERCOSUL sob Michel Temer ficaram explicitados na Sétima e Oitava Diretriz do discurso de posse de José Serra no Itamaraty.

Um dos principais focos de nossa ação diplomática em curto prazo será a parceria com a Argentina, com a qual passamos a compartilhar referências semelhantes para a reorganização da política e da economia. Junto com os demais parceiros, precisamos renovar o Mercosul, para corrigir o que precisa ser corrigido, com o objetivo de fortalecê-lo, antes de mais nada quanto ao próprio livre-comércio entre seus países membros, que ainda deixa a desejar, de promover uma prosperidade compartilhada e continuar a construir pontes, em vez de aprofundar diferenças, em relação à Aliança para o Pacifico, que envolve três países sul-americanos, Chile, Peru e Colômbia, mais o México.[...] Vamos ampliar o intercâmbio com parceiros tradicionais, como a Europa, os Estados Unidos e o Japão. A troca de ofertas entre o Mercosul e a União Europeia será o ponto de partida para avançar na conclusão de um acordo comercial que promova maior expansão de comercio e de investimentos recíprocos, sem prejuízo aos legítimos interesses de diversos setores produtivos brasileiros.22 Serra, ainda que tenha ficado pouco tempo à frente do Ministério, acumularia outras afirmações assertivas em relação ao novo projeto da diplomacia brasileira, com

21 Esse fato não deixa de tornar irônica a Primeira Diretriz do discurso de posse de José Serra (PSDB) no Itamaraty: “A diplomacia voltará a refletir de modo transparente e intransigente os legítimos valores da sociedade brasileira e os interesses de sua economia, a serviço do Brasil como um todo e não mais das conveniências e preferências ideológicas de um partido político e de seus aliados no exterior. A nossa política externa será regida pelos valores do Estado e da nação, não do governo e jamais de um partido. Essa nova política não romperá com as boas tradições do Itamaraty e da diplomacia brasileira, mas, ao contrário, as colocará em uso muito melhor”. Ver em http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/discursos-artigos-e-entrevistas/ministro-das-relacoes-exteriores-discursos/14038- discurso-do-ministro-jose-serra-por-ocasiao-da-cerimonia-de-transmissao-do-cargo-de-ministro-de-estado-das- relacoes-exteriores-brasilia-18-de-maio-de-2016 22 Ibidem a devida repercussão na mídia e junto à opinião pública. Em matéria da revista Exame, intitulada “Diplomacia brasileira dá guinada após afastamento de Dilma”, os leitores se depararam com uma frase de efeito. “Chega de ideologia, vamos fazer negócios: foi assim que o novo ministro das Relações Exteriores, José Serra, apresentou a nova política externa brasileira, com a promessa de deixar para trás o que chamou de ‘desacertos’ da esquerda no passado” (EXAME, 2016). Tal posição resume não apenas um projeto, mas também alguns dilemas ou contradições da diplomacia nacional sobre os quais faremos algumas considerações finais, encerrando nos limites deste ensaio uma reflexão que, todavia, há de ser retomada e aprofundada numa próxima oportunidade.

DAS ESTRATÉGIAS E DO FUTURO:

É conhecida a avaliação de Maria Regina Soares de Lima sobre o movimento que se registra a partir dos anos 1990 na diplomacia brasileira. Se a agenda de política externa, nos marcos das políticas públicas, vai conquistando cada vez mais espaço – processo acompanhado por um progressivo interesse de diversos setores sociais -, o Itamaraty vai perdendo seu monopólio na formulação não apenas de políticas, mas também do que seria postulado como parte dos interesses nacionais. Vale notar que a abertura econômica “contribuiu para a politização da política externa, em função da distribuição desigual de seus custos e ganhos, enquanto a consolidação democrática fomentou debates e preferências sobre temas de agenda internacional na sociedade” como destaca Miriam Gomes Saraiva (2010). Esses dois processos “desafiaram a formulação tradicional de política externa e abriram espaço para a consolidação de correntes de pensamento diferenciadas - e identificadas com setores políticos distintos – dentro do próprio Itamaraty”; a saber: o institucionalismo pragmático e os autonomistas (SARAIVA, 2010, p. 46). Como a ilustrar esta tensão entre as correntes de pensamento acima citadas o documento “Brasil: um país em busca de uma grande estratégia”, assinado por Hussein Kalout, Secretário Especial de Assuntos Estratégicos e Marcos Degaut, Secretário Especial Adjunto, é publicado em maio de 2017, exatamente um ano após Temer assumir a presidência interinamente, ostentando em sua abertura o brasão da República e uma apresentação intitulada “Um passo à frente”, escrito por Moreira Franco, Ministro de Estado Chefe da Secretaria Geral da Presidência da República.

Esse documento oficial, destinado a detalhar a política externa brasileira, conseguiu a proeza de criticar a política externa dos governos anteriores e do próprio governo Temer, classificando as mesmas como marcadas por uma “falta de estratégia”. Como era de se esperar, o documento foi recebido com indignação por parte do corpo diplomático, incluindo aí o próprio Celso Amorim, que ficou oito anos à frente do MRE. Sua reação ficaria registrada numa matéria da Folha de São Paulo, publicada no dia primeiro de junho de 2017. O ex-chanceler dos governos Itamar Franco e Lula da Silva rebateria de forma contundente o relatório de conjuntura23: “Pode-se discordar da estratégia, mas dizer que ela não existiu revela má fé ou ignorância”. De fato, as críticas ao documento não se limitaram aos diplomatas, abrangendo também os estudiosos do campo das Relações Internacionais. Todo o episódio seria minimizado pelo Ministro Aloysio Nunes, que o classificou como uma “bobagem”. Esse contexto complexo nos levaria a quatro observações finais sobre a Diplomacia Brasileira no quadro do segundo governo pós-impeachment do país. A primeira delas, retomando uma colocação já feita, é que a atual orientação do MRE rompe com uma longa tradição da política externa em relação ao MERCOSUL, sinalizando uma inflexão na integração regional. Por outro lado, no que tange as escolhas dos Chanceleres há uma clara divergência entre os dois governos saídos das crises políticas da democracia brasileira. Celso Amorim revalorizou a tradição de diplomatas de carreira atuando na chancelaria. Já Fernando Henrique Cardoso, na época um político bastante identificado com seu partido, o PSDB, contava com um diferencial importante. Com longa carreira acadêmica e uma biografia respeitada diante do passado sombrio do governo militar, FHC tinha um capital simbólico relevante que proporcionou um diálogo entre pares no mundo acadêmico e no universo político. Michel Temer dá sequência à hegemonia ‘peesedebista’ no Ministério das Relações Internacionais, mas convoca dois políticos pouco ou nada afeitos a uma tradição diplomática de mais de um século no Brasil. E isso num momento político extremamente radicalizado, no qual a presidente impedida, Dilma Rousseff, do Partido

23 Em que pese todas as credenciais e os sinais de oficialidade do documento, após a celeuma, o Presidente Michel Temer teria dito sobre o texto: “Não reflete princípios, posições ou prioridades da política externa do Governo do presidente Michel Temer. Tampouco orienta ou subsidia sua ação diplomática. O governo reitera que se trata de produção de cunho estritamente acadêmico e pessoal, tal como mencionado na apresentação do estudo”. De fato, ao final da apresentação de Moreira Franco, há a indicação de que “os conceitos teóricos e políticos destes relatórios são de inteira responsabilidade de seus autores”. No entanto, cumpre perguntar por que um documento tão pessoal e acadêmico – ainda que qualificado como Relatório de Conjuntura número 1 - levaria o Brasão da Presidência da República e mostraria nos seus créditos de abertura a hierarquia institucional do governo, a começar justamente pelo presidente Temer. Numa outra possível interpretação do texto, poderíamos dizer que o documento aponta para uma fragilidade da política externa do próprio governo Temer. Estaríamos diante de um desencontro entre a Secretaria Geral da Presidência e o Ministério das Relações Exteriores? dos Trabalhadores, é efetivamente uma antagonista do partido tucano que teve notória e ativa participação no processo de impeachment. Por outro lado, o Governo de Michel Temer, que não é visto por uma parcela significativa da sociedade como legítimo, passa a ser acuado por diversas acusações e denúncias de corrupção que atingem seus Ministros e, posteriormente, a própria figura do presidente, fragilizando seu projeto de poder. Na costura política para se manter na presidência, Temer convoca a classe política e recebe efetivo apoio do PSDB. É neste quadro polarizado que os nomes de José Serra e Aloysio Nunes – com suas limitações no campo diplomático – são notabilizados. Isso explicaria em parte, os equívocos governamentais e o verdadeiro mal estar que este documento (ainda que desmentido) provocaria: um manifesto de repúdio inicialmente assinado por 119 diplomatas, algo inédito na história do Itamaraty.24 Isso nos leva a uma hipótese de trabalho. O fato de a política externa ter tomado uma feição de política pública é muito importante e deve ser valorizada enquanto parte do processo de democratização do país e de suas próprias instituições, incluindo o Itamaraty, que tem uma histórica tradição de insulamento. No entanto, num momento de alta radicalização política – que constituiu a marca do impeachment de Dilma Rousseff – observa-se que o Itamaraty também se tornou um espaço do embate político reducionista que norteia a política doméstica. A indicação de ministros de perfil fortemente político e pouco afeitos à diplomacia é um dos aspectos que aponta para a descontinuidade da política externa brasileira. Assim, o que seria um fator e um momento positivo no movimento histórico da diplomacia brasileira – justamente a relação da atividade diplomática e sua instituição com seu próprio país e sociedade – acaba se constituindo numa agenda negativa, que fragiliza o projeto de inserção internacional construído de forma consistente ao logo das últimas duas décadas, ainda que se considere, como já observado, os recuos da política externa no governo Dilma Rousseff. Outro aspecto inquietante refere-se ao desprestígio do próprio pragmatismo que, ao longo da história da política externa brasileira, se constituiu num valor diplomático. Um valor do qual tanto os institucionalistas/liberais quanto os autonomistas/desenvolvimentistas lançaram mão para conduzir os projetos de inserção internacional do Brasil. Parece crível que, após um ano do governo Temer, a diplomacia brasileira tenha se afastado da vocação liberal e pragmática do Itamaraty – já experimentada na chancelaria e no governo de Fernando Henrique Cardoso – além

24 http://www1.folha.uol.com.br/paywall/login.shtml?http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/06/1889337-em-carta- diplomatas-do-itamaraty-pedem-renovacao-do-dialogo.shtml de, evidentemente, colocar por terra a outra tradição e vocação do MRE, o desenvolvimentismo/autonomista, denominada de “ideológico” pelos novos Ministros do MRE. Assim, a diplomacia brasileira entra numa situação sui generis que pode ser resumida, talvez de forma esquemática, numa verdadeira não diplomacia ou, como já foi aventado no campo dos debates públicos, de uma ‘não’ política externa brasileira. Tudo isso, finalmente, aponta para a abissal diferença entre os dois processos de impeachment, os respectivos governos instituídos e as suas políticas externas.

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