Você Já Foi a Portugal Dos Pequenitos? Da Fruição Lúdico- Educativa À Reflexão (Anti)Colonial
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DOI: 10.21057/10.21057/repamv14n1.2020.23560 Recebido: 11-03-2019 Aprovado: 26-09-2019 Você já foi a Portugal dos Pequenitos? Da fruição lúdico- educativa à reflexão (anti)colonial Ana Clara Giannecchini1 Bárbara Ramalho2 Lúcia Helena Alvarez Leite3 Você já foi a Portugal dos Pequenitos? Um encantamento nos olhos de quem pergunta sugere um lugar imperdível na cidade portuguesa de Coimbra. Às vezes, pode-se até perceber certo orgulho do lugar. Fomos à Universidade de Coimbra complementar nossos estudos de doutorado e usufruir do ambiente de diversidade cultural e pensamento interdisciplinar proposto pelo Centro de Estudos Sociais, um espaço para se (re)pensar discursos dominantes e suas oposições. Somos mulheres brasileiras. Duas de nós são educadoras e, a outra, arquiteta atuante na área do patrimônio cultural e mãe. A educação das crianças e as marcas da colonização têm, portanto, centralidade em nosso cotidiano. Desde os primeiros dias na cidade, em plenas férias de verão, muitas pessoas sugeriram uma visita ao Portugal dos Pequenitos, um lugar, em suas palavras, “divertido para levar as crianças e ir em família”. O Parque aparece na narrativa espontânea local equiparado ao Pátio das Escolas4 – o monumento por excelência de Coimbra, celebrado como Patrimônio Mundial pela Unesco – e, portanto, tão digno de visita quanto o centenário complexo universitário. 1 Doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília. Contato: [email protected]. 2 Doutora pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Contato: [email protected]. 3 Professora associada da Universidade Federal de Minas Gerais. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação e Movimentos Sociais, atuando principalmente nos seguintes temas: educação integral e integrada, educação indígena. Coordena o grupo de pesquisa e extensão - TEIA (Territórios, Educação Integral e Cidadania) da Faculdade de Educação da UFMG. Contato: [email protected]. 4 Para maiores informações, acessar: http://visit.uc.pt/patio/ Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas V.14 N.1 2020 ISSN: 1984-1639 233 DOI: 10.21057/10.21057/repamv14n1.2020.23560 A sugestão, entretanto, já de partida nos deixava com ‘dois pés atrás’: De um lado, o alerta de uma atividade do curso de verão ‘Epistemologias do Sul’, coordenado pelo mesmo Centro de Pesquisa a que estávamos vinculadas, sobre a complicada rede de narrativas coloniais ali expressas; de outro, a crítica já consagrada no campo do patrimônio sobre o fetichismo dos parques temáticos, dos falsos históricos5 e das cópias descontextualizadas6. Foi com os olhos que temos: habitantes de uma ex-colônia, ao mesmo tempo turistas do século XXI, professoras e mãe, estudiosas daquilo que temos chamado de estudos anticoloniais7 que, munidas de uma câmera e buscando identificar evidências da narrativa colonial, em nosso terceiro mês na cidade, decidimos visitar o local. Ocasião em que fotografamos especialmente os monumentos dispostos no espaço e os totens que os identificavam. Com o objetivo de compreender, do ponto de vista de três mulheres latino-americanas, a forma pela qual o processo de colonização é concebido e, consequentemente, materializado e difundido no Parque, este artigo , dada a natureza das discussões e a forma adotadas, assume características de um ensaio (Machado et al., 2005). Nosso olhar se deterá especificamente sobre as galerias que se referem às ex-colônias portuguesas e, portanto, aos atuais territórios de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Índia, Macau, Moçambique, São 5 A formulação moderna do patrimônio surge, no século XVIII, exatamente da necessidade de distinguir passado e presente. A ideia do autêntico, ou do original, em relação aos testemunhos históricos culturais, perpassa os debates do século XIX e XX. Na década de 1960 o crítico de arte italiano Cesare Brandi usa o termo “falso histórico” em sua Teoria do Restauro como premissa ao sustentar que "a restauração deve visar ao restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, desde que isso seja possível sem cometer um falso artístico ou um falso histórico, e sem cancelar nenhum traço da passagem da obra de arte no tempo". Trata-se de compreender a restauração dos monumentos históricos, ou dos bens culturais, como ato crítico diferente das práticas de falsificação histórica. Supõe-se que bens culturais não devem ser reconstruídos como se originais fossem, porque desse modo perdem autenticidade, conceito central para a Teoria do Restauro. Essa ideia está claramente expressa na Carta de Veneza, de 1964, documento que se tornou basilar do campo do patrimônio, cuja denominação completa é Carta Internacional sobre Conservação e Restauração de Monumentos e Sítios, elaborada por ocasião do II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos do ICOMOS, o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios. 6 A indissociabilidade entre o monumento e seu contexto de origem para a preservação do valor cultural também é central no campo do patrimônio. A Carta de Veneza (1964) sustenta que “O monumento é inseparável da História – da qual é testemunho – e também do meio em que está situado.” 7 Utilizaremos neste texto o termo anticolonial para nos referir a um conjunto de discussões realizadas por intelectuais vinculados às teorias pós-coloniais, decoloniais, aos Estudos Subalternos e às Epistemologias do Sul. O ponto de convergência entre tais campos será explicitado na terceira seção deste texto. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas V.14 N.1 2020 ISSN: 1984-1639 234 DOI: 10.21057/10.21057/repamv14n1.2020.23560 Tomé e Príncipe e Timor. Suportes que ocupam, concreta e simbolicamente, proeminência naquele espaço. São as abordagens de Frantz Fanon, especialmente aquelas por ele realizadas em Os condenados da terra (1952), mas também suas reflexões em Pele negra, máscaras brancas (1968) que irão nos auxiliar nesta reflexão. Isto porque, ao se dedicar à análise do caso concreto de colonização de Martinica, o autor escancara as características violentas do processo colonial. Um pertinente contraponto, como o leitor poderá compreender ao longo do texto, à narrativa predominante em Portugal dos Pequenitos que, negando a centralidade da brutalidade engendrada no processo de colonização português, soma-se a versões soft (Silva, 2016) ou idealizadas do papel desempenhado por aquele país na história colonial (Santos, 2013; Martins, 2015). São, em nosso entendimento, quatro os aspectos constitutivos da narrativa colonial no parque, os quais assumiremos como seções neste texto: A benevolência do colonizador; O pacifismo do projeto colonial; A exaltação do colonizador; e O primitivismo do colonizado. Antes de nos dedicarmos a elas, apresentamos uma breve contextualização histórica sobre esta espécie de ‘parada obrigatória’ para os turistas, mas, sobretudo, para as crianças portuguesas. O Parque Lúdico Imagem 1: Fachada do Parque Temático Portugal dos Pequenitos na cidade de Coimbra, Portugal. Fonte: Imagem elaborada pelas autoras, 2018. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas V.14 N.1 2020 ISSN: 1984-1639 235 DOI: 10.21057/10.21057/repamv14n1.2020.23560 Há uma extensa literatura crítica produzida sobre Portugal dos Pequenitos centrada na sua criação enquanto obra glorificante do Estado Novo português (1933-1974), em especial na função que a arquitetura desempenha enquanto instrumento de mitificação da nação e de um modo de ser naquele país (Bandeirinha, 1996; Matos, 2010; Sebastião, 2013; Silva, 2016). Embora não seja este nosso tema, tais trabalhos nos ajudam a contextualizar o projeto em curso. O pequeno parque localizado à margem esquerda do Rio Mondego foi inaugurado em 8 de junho de 1940 com a parte que hoje se denomina de ‘casas regionais’. A intenção do médico-cirurgião Bissaya Barreto (1886 – 1974)8 era então a de construir um jardim infantil, “A Aldeia do Ninho dos Pequenitos”, ao lado da Casa da Criança Rainha Santa Isabel, um dos infantários também por ele idealizado. Nos anos seguintes, o parque ganhou outras seções temáticas, tendo sido finalizado apenas em 1962. No mesmo ano de inauguração do parque e, ainda que por força das circunstâncias, poucos dias depois, foi aberta em Lisboa a Exposição do Mundo Português9 em comemoração aos centenários da Fundação do Estado Português (1140) e da Restauração da Independência (1640). A Exposição vinha sendo planejada e preparada muito antes que o projeto do parque coimbrense10 e pretendeu ser a principal vitrine da expressão da identidade do país, “encenando uma visão épica e glorificadora da História Nacional de que o presente – o do Estado Novo – pretendia ser uma refundação e um renascimento” (Silva, 2016, p. 85). A literatura especializada aponta o Portugal dos Pequenitos como uma cópia regionalista e miniaturizada desse evento maior, destinada a “inculcar” nas crianças o espírito nacional (Silva, 2016). Na realidade, as comemorações do 8 Bissaya foi um professor influente da Universidade de Coimbra e político, amigo íntimo de António de Oliveira Salazar (1889-1970). Interessou-se pela assistência pública e social, deixando uma obra ímpar que compreende hospitais, maternidade e casas de saúde, escola e instituto superior, hoje administrados pela fundação que leva seu nome (Silva, 2016, p. 85). 9 A Exposição do Mundo Português foi pensada como um paralelo das Exposições Universais, iniciadas em 1851 na Inglaterra. Esses eventos internacionais funcionavam como vitrines do avanço da indústria e das ciências, um ‘estado da arte’ da época. Negociantes e administradores de variados países prestigiavam as inovações expostas em busca de soluções e novos negócios. Com o tempo, especialmente após a primeira guerra mundial, esses eventos passaram a adquirir viés cultural. Assim, fica clara a tentativa da exposição portuguesa de coroar uma época como próspera no país, equiparável aos avanços internacionais civilizatórios de então. 10 Ver as informações recolhidas por Silva, 2016, p. 261. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas V.14 N.1 2020 ISSN: 1984-1639 236 DOI: 10.21057/10.21057/repamv14n1.2020.23560 duplo centenário, cujo evento maior foi a exposição lisboeta, compreenderam eventos regionais em outras cidades.