Investig. Geogr. Chile, 51: 103-114 (2016)

As inundações de 1967 na região de Lisboa Uma catástrofe com diferentes leituras

Francisco da Silva Costa1, [email protected]; Miguel Cardina2; António Avelino Batista Vieira1

RESUMO Na noite de 25 para 26 de Novembro de 1967, chuvas intensas abateram-se sobre a área da Grande Lisboa (Lisboa, , , e Alenquer), com as inundações a causarem um elevado número de mortos, milhares de desalojados e inúmeras habitações destruídas. Apesar dos impressionantes impactes então originados, o episódio permanece pouco evocado. As abordagens teóricas e académicas ao assunto têm mais em conta o fenómeno meteorológico e os efeitos produzidos no território e menos as consequências sociais e a observação dos impactos de natureza política. Com base na consulta e análise de fontes documentais de diferentes proveniências, tentamos reconstituir alguns episódios sociais e políticos que marcaram o pós-crise das inundações de 1967, na região de Lisboa. Palavras chave: Lisboa, 1967, inundações, censura, solidariedade.

Flooding in , in 1967. A disaster with different readings.

ABSTRACT On the nights of 25 and 26 November 1967, heavy rains swept over the area of Lisbon (Lisboa, Loures, Odivelas, Vila Franca de Xira and Alenquer), with flooding causing a high number of deaths, thousands of homeless and countless homes destroyed. Despite the impacts originated the episode remains poorly evoked. The theoretical and academic approaches to the subject have focused more on the weather phenomenon and the effects produced in the territory and less on the social consequences and the observation of the impacts of a political nature. Based on consultation and analysis of hundreds of documentary sources, we have tried to document some social and political events that marked the post-flood crisis in 1967 in the Lisbon region. Keyterms: Lisbon, 1967, floods, censorship, solidarity.

Recibido el 30 de mayo de 2016; aceptado el 17 de julio de 2016.

1 Departamento de Geografia e CEGOT, Universidade do Minho, Campus de Azurém, 4800 Guimarães. 2 Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Colégio de S. Jerónimo, Largo de D. Dinis, 3000-995 Coimbra.

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INTRODUÇÃO Este trabalho exploratório procura identificar o modo como o fenómeno das A Região de Lisboa conheceu uma forte inundações rápidas foi apropriado no pressão urbana, especialmente a partir da campo político, produzindo-se leituras década de 1960, traduzida, entre outros sobre o acontecimento que enveredaram aspetos, pelo grande aumento da área por dois sentidos distintos. De um lado, o construída e, dentro desta, das áreas urbanas Estado e organizações de socorro próximas de génese ilegal (AUGI). O desordenamento ou que colaboravam com o regime ditatorial do território daí resultante refletiu-se, não só focalizaram no impacto das causas naturais no agravamento da perigosidade potencial e acionaram, por isso, um discurso ancorado das cheias, mas também no incremento da na fatalidade, no sofrimento e nos modos vulnerabilidade decorrente da ocupação de minorá-lo. Por outro lado, as diferentes indevida dos leitos de cheia e, por vezes, oposições avançaram com enquadramentos dos leitos menores dos cursos de água que se vincavam nas causas sociais que (DUARTE et al. 2007). estiveram na base da destruição produzida pelas inundações. Num segundo momento, O caso mais dramático deste tipo de atuação tomar-se-á como ponto de observação a das águas em meio urbano conhecido em atuação dos estudantes nas ações de auxílio. Portugal foi o da região de Lisboa, na noite de 25 para 26 de Novembro de 1967, que Para este trabalho recorremos a um grande Fernando Rebelo define como uma das número de fontes documentais, quer três grandes catástrofes verificadas em primárias, quer secundárias. A investigação Portugal no último milénio, juntamente baseou-se sobretudo na consulta e análise de com o terremoto de 1755 em Lisboa e da jornais nacionais e internacionais, revistas, aluvião de 1803 no Funchal (REBELO blogues, artigos científicos, relatórios e 2010). Particularmente afetada foi a área da correspondência, bem como fotografias e Grande Lisboa (Lisboa, Loures, Odivelas, vídeos da época. Vila Franca de Xira e Alenquer), com as inundações a causarem um elevado número A cheia rápida de 25 para 26 de Novembro de mortos, milhares de desalojados e de 1967 – uma abordagem do ponto de inúmeras habitações destruídas. vista geográfico

Apesar dos impressionantes impactes que Do ponto de vista meteorológico, as originou, o episódio permanece pouco inundações de Lisboa estão associadas evocado. A sua inscrição na memória às elevadas quedas pluviométricas que pública é escassa e as abordagens teóricas e se fizeram sentir no dia 25 de novembro académicas ao assunto têm assentado mais de 1967, resultado de um sistema na análise do fenómeno meteorológico e depressionário formado na região do dos efeitos produzidos no território e menos arquipélago da Madeira e que, desde 24 as consequências sociais e na observação de Novembro, se começou a deslocar para dos impactes de natureza política. A isto não nordeste, em direção à região de Lisboa será alheia a forma como o fenómeno foi (Fig. 1). tratado à época na imprensa. A este respeito, importa frisar que Portugal vivia então sob Aos efeitos desta depressão juntaram-se um regime ditatorial liderado por António os de um sistema frontal que precedia uma de Oliveira Salazar, o Estado Novo, que massa de ar polar, de trajeto marítimo, impunha fortes limitações à liberdade de transportada na circulação de um anticiclone expressão e exercia a censura prévia aos centrado a norte dos Açores, deslocando-se jornais e a outras publicações periódicas. com vento forte (AMARAL 1968; RAMOS & REIS 2001).

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Embora muito significativo, o quantitativo em Monte e 111 mm em S. Julião diário do dia 25 de novembro de 1967 não do Tojal (Fig. 2), o que equivale a uma espelha de forma categórica a extrema intensidade média horária superior a 20 intensidade das precipitações: das 19 mm, ao longo das 5 horas consideradas. horas à meia-noite, registaram-se 129 mm

Fig. 1. Trajeto do centro de depressão e carta meteorológica de superfície referentes a 25-26 de novembro de 1967. Fonte: AMARAL 1968. Fig. 1. Drive from the center of depression and surface weather map of 25-26 November, 1967. Source: AMARAL 1968.

Fig. 2. Udograma do temporal de 25 de novembro de 1967: estações de São Julião do Tojal e Aeroporto da Portela. Fonte: LENCASTE e FRANCO 1984; RODRIGUES et al. 2011. Fig. 2. Rainfall pluviogram, 25 November 1967: São Julião do Tojal and Portela airport metorological station. Source: LENCASTE & FRANCO 1984; RODRIGUES et al. 2011.

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O valor da quantidade de precipitação 112,5 mm na estação de Lisboa/Tapada equivaleu a 1/5 do total anual, sendo que (AMARAL 1968; RAMOS & REIS 2001; foram registrados valores de 88,6 mm na OLIVEIRA & RAMOS 2001; ZÊZERE estação de Lisboa/Geofísico (Tabela 1) e 2001 & REBELO 2008).

tabela 1. Precipitação a 25 de Novembro de 1967. Fonte: Oliveira et al. (2002).

table 1. Rainfall, November 25, 1967. Source: Oliveira et al. (2002).

P. Máx. Horária (l/ P. Máx. em relação ao P. Média Horária Valor total (l/m2) Duração (h) m2/h) valor total (l/m2)

88,6 14 26,1 29 6,3

Embora o solo não se encontrasse saturado largamente a capacidade de infiltração dos por chuvas antecedentes (ZÊZERE 1988), terrenos (Tabela 2). a intensidade da precipitação ultrapassou

Tabela 2. Máximo de precipitação (mm) registado na cheia de 1967. Fonte: leal 2011.

Table 2. Rainfall maximen (mm) recorded during flood, 1967. Source: leal 2011.

Máximo de precipitação (mm)

1h 6h 24h

60,0 129,7 158,7

A precipitação intensa levou a uma subida e alagamentos (Colares, Oeiras, Cacém, da água da ordem de 3 a 4 metros do rio Barcarena, Caxias, Cruz Quebrada, Linda- Tejo e afluentes, o que inundou, segundo a-Pastora, Queluz, Bucelas, Loures, PAVIANI (1968), não só os pisos térreos, Odivelas, Póvoa de Santo Adrião, Olival onde se localizava o comércio, mas também Basto e Sacavém). o piso superior, geralmente de habitação das áreas afetadas. Apesar de se terem verificado ocorrências em quase toda a Península de Lisboa, foi nas bacias em torno da capital que Outro impacto sentido esteve associado se observaram mais problemas (Póvoa, à erosão brutal dos leitos menores, sendo Jamor e Barcarena), refletindo a maior responsável por múltiplos deslizamentos/ vulnerabilidade dos seus elementos (LEAL desabamentos por erosão lateral nas margens 2011). das ribeiras e barrancos (FERREIRA & ZÊZERE 1987; ZÊZERE et al. 2005; Embora as cheias rápidas constituam TRIGO et al. 2005). um fenómeno natural, as inundações consequentes e os prejuízos delas As precipitações intensas abrangeram decorrentes são atribuíveis, em grande parte, uma área relativamente extensa da região a intervenções antrópicas desajustadas. de Lisboa e vale do Tejo (Fig. 3), dando De entre estas destacam-se a destruição origem a 14 ocorrências de inundações do coberto vegetal natural e a recessão da

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Fig. 3. Enquadramento administrativo de Lisboa e vale do Tejo. Fonte: https://lugaresmaisbelosdeportugal.wordpress.com/ Fig. 3. Administrative scheme of Lisboa and Vale do Tejo. Source: https://lugaresmaisbelosdeportugal.wordpress.com/ atividade agrícola nos últimos 40 anos, com Além de todos os impactes hidrológicos o abandono das práticas tradicionais de e geomorfológicos verificados durante e conservação do solo (COUTINHO 1984); após a noite de 25 de Novembro de 1967, é a expansão urbana, impermeabilização dos também de referenciar um possível surto de terrenos e drenagem em canais artificiais, leptospirose, ainda que não seja assinalado responsáveis pela diminuição drástica da o número de infetados (SEAMAN et al. infiltração, aceleração do escoamento e 1989; SIMÕES et al. 1969). redução do tempo de concentração das bacias hidrográficas (SEQUEIRA & CASTRO A Imprensa e suas leituras perante a 1987); a criação de estrangulamentos catástrofe artificiais que constituem obstáculos ao escoamento, produzindo sobreelevações As cheias de 1967 foram as mais catastróficas dos níveis de água a montante (QUINTELA de todas, e são encaradas como algo que 1984); a insuficiência e inadequação dos ficou marcado na história dos últimos 50 esgotos pluviais, que se mostram impotentes anos em Portugal, essencialmente pelo para drenar a água da chuva, contribuindo número de mortes contabilizadas (LEAL antes para aumentar a extensão das áreas 2011). inundadas, como aconteceu em a 25 de novembro de 1967 (ZÊZERE 2001). Na primeira edição do dia 26 de Novembro,

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o título da primeira página do Diário de de Novembro, pode explicar cabalmente a Lisboa refere “Chuva e morte: mais de 200 grandeza dos prejuízos causados...” (Diário vítimas”. Quatrocentos e vinte e sete mortos de Lisboa, 1967). Numa leitura distinta, indicava o Diário de Notícias a 29 de o Solidariedade Estudantil, boletim de Novembro de 1967, pouco antes da censura estudantes organizados para prestar auxílio ter imposto a cessação da contagem pública às populações sinistradas, apresentava (Diário de Notícias, 29/11/1967, nº 13060). estatísticas baseadas em dados do Serviço Os números oficiais falarão posteriormente Meteorológico Nacional, mostrando que de 462 vítimas mortais. A verdade é que o máximo de pluviosidade havia ocorrido ainda hoje não se sabe com rigor quantas no Estoril, numa zona rica nos arredores pessoas morreram naquela tragédia. Sendo da capital, apesar das mortes terem certo que os números apresentados pecam acontecido nos bairros de lata de Lisboa e por defeito, também é certo que alguns arredores, assim como nas zonas pobres do dados indicados, dezenas de anos depois, Ribatejo (Solidariedade Estudantil, 1967, podem pecar por excesso (cerca de 700 nº 2). Também o Comércio do Funchal, mortos, segundo RAMOS & REIS, 2001). particularmente lido pela juventude mais Na verdade, é plausível aceitar-se um politizada, chamava abertamente a atenção número certamente superior a 500 mortos, para as causas sociais que haviam estado na atendendo a que uma semana após a tragédia base da catástrofe: “nós não diríamos: foram ainda se retiravam alguns cadáveres das as cheias, foi a chuva. Talvez seja mais justo lamas acumuladas em Algés e se continuava afirmar: foi a miséria, miséria que a nossa a falar de vários desaparecidos que teriam sociedade não neutralizou, quem provocou sido arrastados até ao rio Tejo (REBELO a maioria das mortes. Até na morte é triste 2008). Esse elemento explicará o facto das ser-se miserável. Sobretudo quando se contagens de mortos se terem interrompido morre por o ser” (Comércio do Funchal, alguns dias após a tragédia, quando esses 1967, nº 1963). números ainda não estavam determinados e persistiam ações de auxílio no terreno. O tipo de linguagem usada era também Nestas situações, e em especial quando os reveladora: enquanto os jornais mais poderes públicos não querem revelar toda a próximos do regime utilizavam uma dimensão da tragédia, a imprecisão é grande linguagem marcada pela ideia de fatalidade, (COSTA et al. 2014). os jornais de oposição colocavam o acento tónico nas causas sociais que teriam estado Observando os jornais, é possível na base da tragédia (Fig. 4). O Diário de descortinar também modos distintos de Lisboa do dia 30 Novembro realça, na sua 1ª reportar o tema. Jornais mais próximos edição, que “o movimento de solidariedade do regime colocam a tónica no carácter que espontaneamente surgiu entre a inesperado da catástrofe e acentuam a onda população de todo o país”, se traduziu de comoção gerada. O Diário da Manhã, por “em múltiplas iniciativas”, enquanto o exemplo, refere a “cadeia de solidariedade Comércio do Funchal, dias mais tarde (a 10 humana (…) sem distinção de classes», que de dezembro) questiona: “Na realidade, a havia significado a «vitória do homem, que água foi muita. Foi sem sombra de dúvida a natureza tinha esmagado”. O Ministério a grande culpada da catástrofe, mas se as de Interior divulgou uma nota oficiosa a «casas» (barracas) fossem verdadeiras propósito das trágicas ocorrências em que casas teriam sido arrastadas pelas águas?”. destaca ser “...a área atingida muito mais vasta e somente a violência do fenómeno Também crítico se mostrava o PCP de caráter excepcional, registrado nas (Partido Comunista Português), então na horas dramáticas da noite de 25 para 26 clandestinidade. Em Dezembro de 1967,

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Fig. 4. Populações afetadas e bairros de lata destruídos pelas inundações de 1967 na região de Lisboa. Fonte: Século Ilustrado de 2 de Dezembro de 1967. Fig. 4. People affected and tin neighborhood destroyed by flood, in 1967 in . Source: Século Ilustrado, December 2, 1967. o Avante!, órgão do partido, concluía que As campanhas de solidariedade e “As inundações…não teriam originado voluntariado social semelhante tragédia se o governo se tivesse preocupado em resolver da habitação As inundações na região de Lisboa para os trabalhadores, se tivesse cuidado produziram avultados danos materiais e da regulamentação dos rios e da defesa produziram uma imediata necessidade das populações ribeirinhas, se tivesse de mantimentos e remédios, de água e tomado as medidas de emergência que as comunicações. Os seus efeitos foram circunstâncias impunham...”. E questiona atenuados pela ação organizada de setores “... porque não foram destruídos pelas da população, pelos soldados, cantoneiros chuvas diluvianas os bairros residenciais e trabalhadores voltados à ingente e pesada de Lisboa, mas sim os bairros de Urmeira, tarefa de recuperar casas e limpar ruas Olival Basto, Pombais...Quinta do Silvade, da lama invasora (COSTA et al. 2014). Enquanto isso, chegavam medicamentos, Odivelas…” respondendo que “... os agasalhos, alimentos e assistência sanitária, bairros arrasados encontravam-se em zonas numa cena que se repetia por toda a área baixas, circundadas de colinas, facilmente atingida (PAVIANI 1968). inundáveis, construídos de tábuas e latas…”. Interessante também é a análise feita aos Num ambiente de comoção geral, fatores de risco que identificam na mesma promovem-se em diferentes localidades edição da seguinte forma: “... desde há peditórios, espetáculos e subscrições, muito que se clama contra o assoreamento visando recolher fundos para apoio aos dos rios, contra a falta de diques. Desde há sinistrados. Os estudantes, por exemplo, muito que se protesta contra os fenómenos participam nas ações de auxílio que se de erosão… Nem a mais pequena verba efetuam no terreno, desdobrando-se para a regularização das águas do Tejo… em tarefas como a vacinação em massa Pergunta: ignorava porventura o Governo a contra a febre tifoide, a desobstrução de insuficiência e o estado da rede de esgotos casas e ruas e a instrução sanitária das na cidade de Lisboa, onde desde há muito populações. A dimensão real do desastre e existem zonas mártires de inundações. Não das condições de vida de uma vasta camada sabia o governo que essas zonas se alagam da sociedade portuguesa não ultrapassou quando de chuvadas normais?” (Avante!, a espessa cortina da censura, mas muitos 12/1967, nº 386). estudantes universitários, que agiram de

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forma imediata para prestar ajuda, tiveram sobretudo de Medicina, que integram a possibilidade de entrar em contacto com a brigadas de auxílio aos sinistrados. situação verdadeira. A participação de quase Chegados ao local, o voluntarismo terá sido seis mil estudantes nas atividades de socorro matizado por certa impotência em fazer não agradou às autoridades, que intervieram face à dimensão da tragédia, para a qual não procurando dificultar e desacreditar este estavam preparados a nível técnico. O jornal trabalho, também através da intervenção Comércio do Funchal elenca as tarefas da PSP (Polícia de Segurança Pública). desenvolvidas por estes estudantes no dia A participação de estudantes, apesar do 17 de Dezembro de 1967: “...vacinação em sentimento de impotência face à dimensão massa contra a febre tifoide; instalação de da tragédia para a qual não estavam postos clínicos; informações sanitárias à preparados, permitiu criticar as deficiências população, separação das populações em dos serviços sanitários e sociais do maior risco de contraírem febre tifoide; Governo, revelar a eficácia de organismos inquérito profilático às populações, ideia democraticamente organizados (como a que também teve a aprovação da DGS; velas rede de apoio estudantil) e denunciar as noturnas para casos urgentes; organização miseráveis condições de vida em várias de creches com os devidos cuidados zonas do país (DUARTE 1997; CARDINA médicos e de puericultura… Apesar disso, 2008; ACCORNERO 2009). a participação dos estudantes nestas ações possibilitou, num mesmo lance, criticar Em Lisboa, a planificação das ações de a impreparação e desorganização dos socorro encontrou-se a cargo de uma organismos sociais e sanitários do Governo, Comissão Coordenadora Central, instalada enaltecer a capacidade realizadora de na associação de estudantes do Instituto Organizações Democráticas e Livres e, Superior Técnico, da qual fazem parte a ainda, denunciar a existência de condições Juventude Universitária Católica e várias de vida miseráveis em várias localidades do associações de estudantes. Tendo durado país (Comércio do Funchal, 17/12/1967, nº cerca de duas semanas, abrangeram 1964). centenas de estudantes. Em cada jornada, divulgavam o sucedido à população que Os testemunhos dos estudantes relatados pouco sabia da dimensão da catástrofe, dada pelo Comércio do Funchal revelam esta a ação da censura. Merece especial realce mesma denúncia: “A nossa participação nesta divulgação o periódico Solidariedade carateriza-se, ao contrário da oferecida por Estudantil, que chegou a ter uma tiragem outras entidades, pelo conhecimento exato de 10.000 exemplares e se esgotou numa e desmistificado da extensão do desastre, manhã (OLIVEIRA 2013). Este Boletim foi que não atribuímos à imprevisibilidade distribuído pelo «Secretariado Coordenador das chuvas, à conformação do terreno ou da Informação e Propaganda» (SCIP) das quaisquer condições naturais inimputáveis Associações de Estudantes de Lisboa e e de acaso, mas sim a condições sociais, publicado a propósito da ação, procurando económicas e administrativas bem relatar o trabalho efetuado pelos estudantes concretas. Como pode isso acontecer, sem e apresentar um conjunto de comentários sequer se tenha verificado o rebentamento críticos ao acontecido, equacionando-o de diques ou barragens, ventos ciclónicos, em termos de uma análise das causas (e desmoronamentos em série…? A resposta das consequências) sociais da tragédia apresenta-nos agora, na sua realidade (FERREIRA 1969). indesmentível: acentuadas condições de desenvolvimento em que viviam No Porto, grupos estudantis organizam uma as populações atingidas sem os mais recolha de donativos a favor dos atingidos. elementares requisitos de sanidade e De Coimbra partem alguns estudantes, segurança; ausência quase total de sistemas

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de segurança e socorro, prevenção de oficialmente e com laivos de hostilidade epidemias, redes de escoamento de águas, relativamente ao regime, aparecessem condições de estabilidade de terrenos, defesa como mais empenhadas do que o governo contra aluimentos de terrenos, inundações; na assistência ao desastre. Ao mesmo previdência social precariamente montada, tempo, a intervenção estudantil no auxílio quase inexistente, de tal forma que não foi à catástrofe serviu, assim, como um possível organizar desde a primeira hora importante motor de politização das jovens o serviço complexo do auxílio às vítimas, gerações que, a partir das universidades, deixando ao sabor da iniciativa individual vinham ensaiando modos de contestação ou de organizações, mais ou menos menos elitistas e mais aguerridos. Longe oficiais…” Ibidem( ). das preocupações elitistas de outrora, os estudantes ensaiavam já uma efetiva Por sua vez o Ministério de Interior tornou abertura à sociedade, efetuada num liame uma nota oficiosa a propósito das trágicas de contornos marxizantes, através do ocorrências em que destaca a mobilização encontro com as faixas mais pauperizadas de “… todos os meios disponíveis, da população. De qualquer forma, o incluindo os do Exército, da Marinha, da aspecto mais importante com respeito a Força Aérea e de outras instituições como estes episódios, foi a difusão e extensão a Cruz Vermelha, a Cáritas, o Movimento da iniciativa e do estímulo à participação Nacional Feminino, a Legião Portuguesa, (CARDINA 2008b: 65-66). os escuteiros, a Misericórdia de Lisboa… aproveitando todas as boas vontades, A ação da censura designadamente as de estudantes…” (Diário de Lisboa), versão, aliás, seguida Apesar de num primeiro momento se e verificada no Seventh report da Agency permitirem notícias sobre o assunto, a ação for International Development (USAID censória agiu para evitar leituras políticas 1967): “Action taken by the Government da catástrofe e evitar que a comoção geral of Portugal and National and local instalada adquirisse laivos críticos, como organizations. There was immediate action é possível perceber em alguns exemplos on the part of the government of Portugal to referidos por César Príncipe. No dia 27 de bring assistance to the disaster victims. The Novembro, um telegrama da Direcção da military and Portuguese Red Cross assisted. Censura enviou a seguinte informação às Ambulance services of the Portuguese Red Cross were quickly at the scene of the delegações locais: “Gravuras da tragédia: é disaster and the Society established a camp conveniente ir atenuando a história. Urnas near Ulmeira, one of the regions won’t hit. e coisas semelhantes não adianta nada e é The Public Health Department initiated a chocante. É altura de acabar com isso. É program of vaccination and inoculation to altura de pôr os títulos mais pequenos”. prevent epidemics and was assisted in this Dois dias depois, a 29 de Novembro, by the Red Cross” (USAID 1967). determinava-se: “Inundações: os títulos não podem exceder a largura de 1/2 página Esta campanha marcou, para muitos e vão à censura. Não falar no mau cheiro estudantes, a rutura definitiva com o Estado dos cadáveres. Atividades beneméritas Novo. Rita Veiga, evocando em 1997 a de estudantes – Cortar” Dias mais tarde sua participação nesta jornada, fala da eram emitidas novas orientações pelo lama como uma força maligna que deixava mesmo órgão como mostram os seguintes atrás de si um cheiro ácido a humores exemplos: “Deliberação do Senado orgânicos como se tivesse conservado em universitário de Coimbra acerca do auxílio si a miséria das barracas que destruíra. A a prestar às vítimas das enxurradas. Cortar. lógica corporativa do regime não podia A notícia só pode sair nos Jornais de tolerar que organizações não enquadradas Coimbra” (PRÍNCIPE 1979).

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Lembre-se que, ao mesmo tempo que REFERENCIAS tentaram ocultar a divulgação atualizada do número de mortos da tragédia das ACCORNERO, GUYA, 2009. cheias, as autoridades portuguesas Efervescência Estudantil. Estudantes, acção acusaram a imprensa estrangeira de contenciosa e processo político no final notícias tendenciosas acerca da forma do Estado Novo (1956-1974). Dissertação como o governo havia atuado. Pelo mesmo de Doutoramento em Ciências Sociais, motivo, e como refere Irene Pimentel, Especialidade de Sociologia Histórica, a Polícia Internacional e de Defesa Universidade de Lisboa, Instituto de do Estado (PIDE) também interrogou Ciências Sociais, Lisboa, 350 p. então o correspondente da United Press International, Edouard Khavessian, AMARAL, I., 1968. As inundações de acerca de uma informação dada por essa 25/26 de Novembro de 1967 na região de agência, sobre protestos estudantis contra Lisboa. Finisterra, Revista Portuguesa de a atuação do governo português em Geografia, 3(5): 79-84. relação aos socorros prestados à população (PIMENTEL 2007: 48-49). CARDINA, MIGUEL, 2008a. Memórias incómodas e rasura do tempo: Movimentos CONCLUSÕES estudantis e praxe académica no declínio do Estado Novo. Revista Crítica de Ciências As cheias ocorridas na região da Grande Sociais, 81: 111-131. Lisboa, na noite de 25 para 26 de Novembro de 1967, constituem ainda hoje um objeto pouco estudado. Permanece por contabilizar CARDINA, MIGUEL, 2008B. A Tradição da Contestação. Resistência Estudantil em com rigor o número de vítimas mortais e Coimbra no Marcelismo. Coimbra: Angelus a dimensão da tragédia que exigiria uma Novus. maior visibilidade do episódio no espaço público. Esta apresentação procurou resgatar o acontecimento, focalizando COSTA, F. S., M. CARDINA & A. A. B. nos seus impactes enquanto um evento VIEIRA, 2014. Inundações na região de pluviométrico extremo, assim como Lisboa (1967). Um olhar sobre o impacto algumas dinâmicas políticas e sociais que político e social. Actas do VIII SLAGF desencadeou. Num tempo em que Portugal Simposio Latinoamericano de Geografia vivia sob uma ditadura que intervinha Fisica, IV SIAGF Simposio Iberoamericano através da censura na imprensa e que não de Geografia Fisica, Facultad de permitia partidos políticos para além do Arquitectura y Urbanismo, Universidad do partido único (União Nacional), as cheias Chile, Santiago, Chile: 1263-1271. inscreveram-se ainda assim no debate político, motivando posicionamentos COUTINHO, M.A., 1984. Intervenção distintos (COSTA et al. 2014). O regime, na bacia e na rede hidrográfica. Seminário e os órgãos em sintonia com a ditadura, sobre as cheias de Novembro de 1983, procuraram enquadrar o ocorrido na publicação 3/84, I.S.T.: 3.1-3.33. categoria de desastre natural, vincando a inevitabilidade e a cadeia de solidariedade DUARTE, M. B., 1997. Foi apenas um estabelecida; as estruturas oposicionistas começo. A crise académica de 1969 na colocaram na tónica nas condições sociais história do movimento estudantil dos anos que fizeram com que as fortes chuvadas se Sessenta e da luta contra o Estado Novo. transformassem num desastre humano e, Tese de mestrado, Universidade Nova de portanto, de certo modo evitável nas suas Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e consequências. Humanas.

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