O mito do personalismo na novela “O Clone” – Um estudo da interpretação de duas telespectadoras com ênfase no comportamento social feminino

Lília Junqueira e Elizabete Canuto1 [email protected] [email protected]

Resumo: Este trabalho consiste num estudo de recepção, com o objetivo de compreender a construção de significados e representações sociais, com ênfase no comportamento social feminino, por parte de duas telespectadoras na faixa etária de 20 anos, tomando-se por base as mensagens transmitidas pela “O Clone”. Trata-se de uma análise comparativa entre a recepção de uma telespectadora universitária e a de outra, não estudante, apreendendo as mediações sócio-culturais e econômicas envolvidas. Nesse sentido, sobressaiu a importância do capital cultural para explicar a diversidade de construção simbólica das receptoras, realizada com base no eixo valorativo indivíduo/pessoa. Verificou-se, ainda, que a estrutura narrativa da telenovela em questão contribui para perpetuar o mito do personalismo, predominante na sociedade brasileira.

Uma leitura sociológica das

As telenovelas brasileiras, principalmente as produzidas pela rede Globo de televisão, são hoje o principal produto da televisão aberta nacional, tanto para o mercado interno quanto para o mercado de exportação de ficção televisiva. Sob a ótica da sua importância comercial, as telenovelas têm sido exaustivamente estudadas pela comunicação. Neste texto propomos uma abordagem sociológica das novelas, ou seja, a partir de uma definição que não se esgota na idéia de simples produto da indústria cultural, mas que a considera além disso, dentro da relação de comunicação mais geral que estabelece com o público e também enquanto fator relevante para o entendimento da mudança ou permanência dos valores sociais e crenças presentes na sociedade brasileira, sobretudo no que diz respeito à desigualdade social. Partindo do princípio de que as telenovelas, ao cumprirem suas funções de “divertissement” cotidiano, preenchem funções latentes de reprodução social, pode-se considerá-las como uma das principais oficinas de construção, reformulação, mistura, reprodução, transformação e negociação de valores morais individuais e sociais que, no final do processo, participam da composição das nossas representações sociais de sujeito, família, país, mundo e sociedade. A novela é uma obra aberta, constantemente reformulada com vistas às indicações colocadas pelo público. A interatividade e a concorrência têm aumentado o diálogo entre produção e público nos últimos anos, no que concerne à construção das tramas. No vácuo crescente deixado pela educação e pela igreja, que se fragmentam e lutam contra dificuldades crescentes de acesso aos indivíduos, a telenovela brasileira, aos 38 anos de idade, mantém-se forte na difusão de valores sociais, apesar da

1 Lília Junqueira é doutora em sociologia pela Université Paris VII – Jussieu Denis Diderot e professora do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPE. Elizabete Canuto é mestranda no mencionado programa, desenvolvendo dissertação sobre o tema deste artigo. fragmentação técnica da televisão com o surgimento das TVs a cabo e satélite, além de outras novas tecnologias. O Brasil apresenta a mais rica produção de novelas para exportação do mundo. As novelas são, no mercado de audiência nacional de televisão, o item de maior importância. Cresce o acesso de todas as classes sociais aos aparelhos de televisão junto com a paixão nacional pelas novelas, somente comparável à paixão pelo futebol. No exterior, as novelas são um importante veículo de construção de uma imagem do Brasil no mundo globalizado. Internamente, as novelas são vistas pelo mercado de audiência em peso, incluindo homens e crianças. As novelas produzem um debate público que as ultrapassa e vibra em outros níveis da sociedade real: econômico, político, jurídico, etc. Este debate se realiza em qualquer lugar da vida cotidiana, tanto no lazer quanto no trabalho, sem formalidades, de maneira natural. Segundo Néstor García Canclini, na América Latina “o desconhecimento do contrato social, das grandes estruturas sócio-políticas, apontam no melodrama para o peso que assumem outras formas de sociabilidade primordial, como o parentesco, os laços de vizinhança, territoriais e de amizade” (1995:239). Além disso, a novela é um dos poucos produtos da mídia nacional que consegue produzir temas comuns de debate para discussões que interessam ao mesmo tempo à classe média e às classes subalternas, e isto se dá no momento em que crescem as distâncias reais entre estas duas classes. Esperamos, por todas estas razões, que o estudo aprofundado, não da novela em si, mas do debate que ela produz, possa detectar mecanismos de formação e transformação de representações importantes para a busca científica da eqüidade social no Brasil. Vista desta forma, a telenovela, em suas relações com a sociedade, participa da construção dos valores e crenças de duas formas. A primeira delas é a da mudança social. A novela apresenta valores novos, diferentes daqueles já estabelecidos e firmados pelo tempo histórico. Desafia os hábitos cotidianos, os preconceitos e as opiniões formadas pelo público. Dentro desta perspectiva se localiza a discussão recente nas ciências da comunicação sobre a possibilidade de a novela estabelecer um tipo específico de espaço público, no qual, dadas as possibilidades técnicas da interatividade e, consequentemente, no aumento da interferência da audiência na elaboração das tramas, haveria uma participação efetiva da sociedade civil na legitimação ou na rejeição dos valores apresentados nas novelas, através de uma discussão consciente, que ultrapassa o envolvimento emocional do público com as personagens e a narrativa encenada. A segunda forma pela qual a telenovela opera na sociedade é a da reprodução social. Nesta perspectiva, a telenovela é vista principalmente em sua especificidade técnica e pela sua forma: a narrativa. Em outras palavras, pelas possibilidades de comunicação emocional com a audiência, proporcionadas pelo uso da imagem, do som e da música e do contato diário de longo prazo com o público. Há o reconhecimento de um certo poder manipulador, visto como reprodutor de um equilíbrio social desigual e hegemônico, favorecendo determinados grupos no poder e a continuidade do staus quo. Neste aspecto se apoiaria uma crítica “apocalíptica” de base marxista, mas também, embora indiretamente, uma crítica de base pós-estruturalista segundo a qual a novela seria responsável pela renovação dos mitos sócio-culturais. Esta última é a forma adotada pela pesquisa que originou este texto. A partir destes pressupostos, podemos definir a telenovela como um produto sócio-cultural com função e eficácia próprias na reprodução de valores sociais e no estímulo à produção de debates sobre assuntos de ordem moral e social. A abordagem de temas do cotidiano brasileiro estimula um fluxo abundante de comentários elaborados pela totalidade do público das novelas. Os anos noventa viram um aumento desta produção de debates, mas também da interatividade, e o aumento da diversidade de formas de contato com o público, proporcionado pelo aprimoramento técnico. A queda da inflação permitiu, no mercado interno, um aumento do consumo de eletro-eletrônicos pela população, principalmente nas chamadas classes C, D e E, o que resultou numa modificação de padrões de pesquisa de audiência e, consequentemente, no aumento da margem de diálogo entre a televisão e o público telespectador. Todos estes elementos nos levariam a uma análise fenomenológica ou psico- social que permitiria abranger os processos subjetivos presentes na construção das representações veiculadas nas telenovelas, ou a uma análise de tipo culturalista, na qual seriam enfocados os processos de negociação entre produção e recepção. Mas, embora esta abertura para um movimento maior entre público e produção seja crescente e traga renovações no nível político, algumas relações permanecem fixas e continuam servindo de base a esse movimento. Poderíamos nos perguntar porque, apesar de toda esta mudança técnica, política e mercadológica e da conseqüente flexibilização das relações entre produção e público, os roteiros das novelas continuam sendo construídos sobre a mesma estrutura, com modelos de relações rígidos e estereotipados. A estrutura das estórias não mudou desde o “abrasileiramento” do gênero, iniciado com a célebre novela “”, de 1968. Isto significa que o público tem reforçado uma forma consolidada de construir significação a partir da narrativa. Uma certa fórmula de produção da narrativa permanece inegociável, porque toca nos índices de audiência. A participação do público proporcionada pela interatividade não tem sido capaz de transformar a matriz de produção das estórias e nem a utilização dos clichês. Por que, apesar da inovação tecnológica que possibilitou a interatividade, o crescimento do mercado e da participação do público na construção das novelas, a forma de produção de significação das relações interpessoais – representação das relações sociais reais, continua a mesma há mais de trinta anos? Por que o público, apesar de ter se tornado mais atuante, continua não aprovando qualquer outra forma de contar estórias senão a receita sempre igual que opõe um vilão a um herói em romances que têm sempre final feliz? Para responder a essas perguntas, o paradigma pós- estruturalista se revelou mais adequado. Na tentativa de compreender o processo comunicativo abordado neste trabalho, considera-se fundamental a contribuição contida nos estudos culturais em sua vertente latino-americana, representada por Martín-Barbero, além de Orozco e Canclini, entre outros. Essa linha de estudos vem se consolidando no meio acadêmico devido, sobretudo, à percepção dos processos comunicativos em seu aspecto dinâmico e dialético. De acordo com essa perspectiva, o ato da recepção de mensagens é concebido como um lugar de produção de significados e de práticas sociais, na medida em que os agentes, ao interpretar os conteúdos recebidos, transformam seus sentidos, apropriando-se de elementos específicos do discurso “(...) a partir de referências simbólicas presentes nas representações sociais construídas segundo sua vivência histórica concreta” (Junqueira, 1998:2). Dessa forma, considera-se no processo comunicativo a interferência de mediações diversas, oriundas da estratificação social, cultura, experiência de vida, etc., situando a recepção no contexto sócio-histórico no qual se realiza e percebendo-a como “(...) um modo de interagir não só com as mensagens, mas com a sociedade, com outros atores sociais e não só com os aparatos” (Martín-Barbero, 1995:58). Tal olhar sobre a recepção foi possível a partir de uma redefinição da comunicação, tal como elaborada por Martín- Barbero: “questão de mediações mais que de meios, questão de cultura e, portanto, não só de conhecimentos mas de re-conhecimento. Um reconhecimento que foi, de início, operação de deslocamento metodológico para re-ver o processo inteiro da comunicação a partir de seu outro lado, o da recepção, o das resistências que aí tem seu lugar, o da apropriação a partir de seus usos” (1997:16). Como se valoriza as práticas da vida cotidiana , é pertinente se levar em conta também os estudos sobre cotidianidade, desenvolvidos, por exemplo, por Lefebvre e Heller, para a qual “a vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade. Nela colocam-se ‘em funcionamento’ todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, idéias, ideologias” (1996:17). Investigando-se as ações cotidianas, pode-se compreender o processo de formação das representações sociais, as quais se manifestam, consciente ou inconscientemente, em palavras e condutas mais ou menos institucionalizadas, produzindo ações individuais e coletivas pelas quais, num movimento dialético, também são afetadas. A respeito das representações sociais, vale ressaltar também que, por perpassarem o conjunto de grupos sociais em diferentes posições na sociedade, elas contêm elementos tanto de dominação, quanto de resistência, tanto de conflitos, quanto de conformismo, os quais expressam as relações de poder que permeiam todo o tecido social (Minayo, 1994). Outro referencial importante consiste na Análise de Discurso, com destaque para autores como Eni Puccinelli Orlandi, Milton José Pinto e Norman Fairclough. Segundo sua abordagem, a construção simbólica deve ser pensada numa perspectiva dialética, tratando os discursos não só como práticas sociais determinadas pelo contexto sócio-cultural e histórico, mas também como partes constitutivas desse contexto. Caracterizando o discurso como uma das instâncias materiais da relação entre a linguagem, o pensamento e a realidade, Orlandi enfatiza que ele deve ser pensado “(...) em seu duplo aspecto: o histórico e o lingüístico, enquanto indissociáveis no processo de produção do sujeito do discurso e dos sentidos que (o) significam. O que me permite dizer que o sujeito é um lugar de significação historicamente constituído” (1996:36). Nota-se que tal idéia remete à noção de habitus, sobre a qual discorreu Bourdieu. Também é relevante o reconhecimento do processo de ressignificação, como demonstrou Orlandi: “todo enunciado é passível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro” (1996:22). Esse processo parece semelhante ao descrito por Foucault, quando definiu os discursos como “(...) elementos ou blocos táticos no campo das correlações de força; podem existir discursos diferentes e mesmo contraditórios dentro de uma mesma estratégia; podem, ao contrário, circular sem mudar de forma entre estratégias opostas” (1999:97). Tal aspecto denota, ainda, o caráter heterogêneo dos discursos, para o qual atentou Milton José Pinto: “(...) todo texto é híbrido ou heterogêneo quanto à sua enunciação, no sentido de que ele é sempre um tecido de ‘vozes’ ou citações, cuja autoria fica marcada ou não, vindas de outros textos preexistentes, contemporâneos ou do passado” (1999:32). A análise da recepção da novela “O Clone” tomou como conceito básico o de capital cultural, elaborado por Pierre Bourdieu na forma como ele aparece constituído pelo sistema de ensino superior. Segundo o autor “a estrutura da distribuição das classes ou frações de classe segundo a parcela reservada aos consumos culturais corresponde, com desnível mínimo(...), à estrutura de distribuição segundo a hierarquia do capital econômico e do poder” (1992:297). A seleção das duas receptoras obedeceu ao critério de diferença de formação universitária, estando uma delas cursando a Universidade enquanto a outra, que não é estudante, encontra-se ocupada em atividades ligadas à rotina doméstica. A partir destas definições, apresentamos a primeira hipótese da pesquisa – a de que a diferença de capital cultural obtido no ambiente universitário, mais do que as diferenças de poder de consumo, definem diretamente tipos determinados de interpretação das cenas. Para entender a forma como a novela constrói a relação de comunicação com estas duas receptoras, adotamos os estudos pós-estruturalistas das crenças e hábitos de interação social elaborados por Roberto Da Matta que apontam, na sociedade brasileira, para uma dicotomia entre duas entidades sociais: o indivíduo e a pessoa. A dicotomia entre indivíduo e pessoa é característica do personalismo brasileiro como ele é definido pela sociologia tradicional e cristalizada na obra de Roberto Da Matta (1983). O autor aponta para um paradoxo entre lógicas de percepção do mundo e das relações sociais do período colonial estabelecidas entre mestres e escravos, que sobrevive na dicotomia entre classe média e classe subalterna. Em sua obra, Carnavais, Malandros e Heróis”, as noções de indivíduo e pessoa são apresentadas a partir das seguintes características:

Indivíduo Pessoa

Livre, tem direito a um espaço próprio Somente pode ser concebida em uma relação necessária com a totalidade

Igual a todos os outros Complemento dos outros

Tem possibilidade de fazer escolhas que são Não tem escolha percebidas como seus direitos fundamentais

Tem emoções particulares

A consciência é individual A consciência é social (ou seja prevalece a totalidade)

A amizade tem um papel fundamental nas A amizade é residual e juridicamente relações definida

O romance e a novela, obras de autor, são as A mitologia, as formulações formas de expressão essenciais paradigmáticas do mundo são as formas de expressão fundamentais

Estabelece as regras da sociedade onde vive Recebe as regras

Não há mediação entre ele e o todo A segmentação é a regra

A pesquisa base deste texto buscou verificar a segunda hipótese, ou seja, a de que na estrutura da trama das novelas as relações de conflito social são construídas a partir da dicotomia entre indivíduo e pessoa e que este seja o eixo de sentidos utilizado como padrão de interpretação das cenas pelas duas telespectadoras, de forma que aquela que não estuda constrói sua relação de comunicação e entendimento das cenas predominantemente a partir do eixo valorativo da “pessoa”, enquanto aquela que estuda o faz prioritariamente com base no eixo valorativo do “indivíduo”.

Análise da mensagem

A novela “O Clone”, escrita por , em exibição desde outubro de 2001 pela rede Globo de televisão no horário das 21 horas, foi a mensagem sobre a qual se centrou esta investigação. Esta novela foi escolhida tendo em vista o alto índice de audiência – 42 pontos em outubro- considerado bastante alto para a média dos períodos de início de exibição. O sucesso da novela se deve ao fato dela apresentar criatividade no que se refere à criação de imagens, enriquecidas por efeitos especiais e tingidas pelas cores quentes e vibrantes das paisagens do Marrocos. Outros atrativos foram os temas polêmicos da atualidade, como o contato entre a cultura ocidental e a cultura islâmica e as experiências científicas envolvendo a clonagem humana, que são apresentados pela autora como sendo as inovações do “pano de fundo” de uma estória contada à moda tradicional, no estilo de Janete Clair. Os universos islâmico e ocidental são apresentados como a divisão social principal da novela, que trabalha com os conflitos de relações sociais e interpessoais baseados em costumes diferentes. Cada um destes universos é composto por algumas famílias principais que, pouco a pouco, criam laços que se entrecruzam sobre os limites que separam as duas culturas. Conforme descrição encontrada no site da novela (wwwglobo.com.br), o universo cultural ocidental brasileiro é marcado por personagens de características mais individualistas, como as de empreendedorismo (Leônidas Ferraz – ), solidão (Lucas – Murilo Benício, que, ao incorporar a personalidade do irmão que morreu, torna-se um homem de negócios infeliz, mas competente), vaidade, cultura, comportamento anti-ético (Albieri – ), vaidade, egocentrismo, impaciência, apego aos bens materiais (Maysa – Daniela Escobar), independência (Mel – Débora Falabella). Neste universo também podemos encontrar algumas personagens portadoras de características da “pessoa”, de Roberto da Matta, que dão um equilíbrio ao ambiente, sem o qual ele se tornaria incoerente no sentido do reflexo mínimo do real que o mundo da novela deve conter. Assim, Dalva ( Neuza Borges) aparece como uma mãe dos patrõezinhos, dedicada, afetuosa e alegre; Yvete (Vera Fisher), como uma mulher bonita, alegre, espontânea, vulgar, mas solidária; e Edna (Nívea Maria) apresentando o lado mau da “pessoa”: indefesa e submissa. No universo oriental muçulmano, predominam personagens com características da “pessoa”, uma consequência da própria submissão do código de ordem social que os rege, a religião. Jade (), apesar de ser filha de muçulmanos, foi criada no Brasil, onde desenvolveu o romantismo, a astúcia e a esperteza, vive o conflito das duas culturas da qual faz parte. Ali (Stênio Garcia) é exuberante, genioso, sensível e um observador perspicaz da alma humana. Kadija (), filha de Jade e Said, é meiga e deseja ser uma boa esposa muçulmana. Said ( ) é apaixonado, genioso e vingativo. Zoraide (Jandira Martini) é afetuosa, amiga, maternal e temerosa do dia do juízo final. Mohammed (Antônio Calloni), Latiffa (Letícia Sabatella) e os filhos formam a típica família muçulmana, em que todos estão em harmonia com as leis do Al Corão e felizes, ao mesmo tempo. Estabeleceram com sucesso o ambiente muçulmano no Brasil mas não se misturam com os brasileiros, sendo este o preço da paz. Abdul e Nazira (Eliane Giardinni) são figuras à parte, o primeiro corporificando a leitura mais tradicional do livro sagrado, impondo proibições ultrapassadas aos mais jovens, e a segunda, apresentando características de personalidade individualistas como vaidade, espontaneidade excessiva para uma mulher muçulmana, desejo sexual, de conquista e de submissão do homem, é também manipuladora e dissimulada. A própria caracterização do ambiente permite afirmar que, sob a aparência da dicotomia entre os dois mundos, está a dicotomia entre indivíduo e pessoa característica das representações sociais brasileiras. Outros indícios vêm se somar aos da estruturação dos ambientes sócio-familiares, como os da construção e evolução das relações interpessoais , mais precisamente no âmbito da ação da personagem e suas conseqüências, ou seja, no nível da lição final que é inerente ao próprio funcionamento do mito. Assim, por exemplo, com relação à idéia de “maternidade”: 1. a novela a apresenta de forma negativa quando ligada à personagem individualista ( Maysa). 2. a novela a apresenta de forma positiva quando ligada à personagem que procura equilíbrio entre individualismo e personalismo (Jade). 3. a novela a apresenta de forma positiva ligada à personagem que melhor se enquadra no modelo “pessoa”, enquadrando-se, também de forma ideal, no modelo da mulher muçulmana. ( Latiffa)

Com relação à idéia de “relação com o homem”: 1. a novela a apresenta de forma negativa quando ligada à personagem que busca equilíbrio entre individualismo e personalismo ( Jade). 2. a novela a apresenta de forma negativa quando ligada à personagem individualista ( Maysa) 3. a novela a apresenta de forma positiva quando ligada à personagem “pessoa”. (Latiffa)

Com relação à idéia de “profissão”: 1. a novela a apresenta como um ideal inatingível para a personagem que viverá no Marrocos (Jade). 2. a novela não apresenta nenhum valor profissional ligado à personagem individualista, na medida em que ela é movida por um ideal de consumo de alto nível e de status que compensaria sua infelicidade, mas que não estão dados no trabalho, mas na posição social da família do marido (Maysa). 3. a novela a apresenta como uma opção impensável para a “mulher personalista” ( Latiffa).

Na seqüência de cenas principal que estudamos, Jade aparece aconselhando a filha a estudar, ter uma profissão, demonstrando que projeta para a filha o ideal inatingível de realização profissional. Na cena seguinte, Maysa aconselha a filha a apurar seus dotes femininos e a se preocupar menos com a profissão e os estudos. A postura das filhas está em função oposta ao desejo das duas mães: Mel discorda de Maysa e Kadija discorda de Jade. Jade e Maysa são as personagens femininas principais da trama. A novela, portanto, opõe a heroína (Jade) à representante do “mau” individualismo e não à representante do modelo de mulher personalista. Duas individualistas brigam por afirmar suas posturas. A personalista parece estar acima deste conflito. Latiffa vive em harmonia com os filhos. É amada por eles. Os problemas que surgem não afetam o equilíbrio familiar básico. Mel parece ser uma moça infeliz. Ela é o ser individualista em construção. Esta construção aponta para todas as dificuldades da transformação de uma menina em mulher na classe alta, tendo que atender aos mais diversos apelos para se tornar independente como mulher, como profissional e como filha. Em contraposição, Kadija parece ser uma menina muito feliz, bem adaptada ao seu meio. Ela é o modelo da mulher “personalista” em formação. Não enfrenta conflitos com os adultos, está em conformidade com a religião em termos de atitudes e de ideais. Neste aspecto, a novela parece deixar claro que, para a mulher, tornar-se indivíduo é muito mais difícil e sofrido do que tornar-se uma mulher adaptada ao modelo personalista. A pequena pessoa não sofre e não sofrerá. A pequena individualista passa por turbilhões emocionais sucessivos e sabe-se que o pior destino está reservado para ela: o envolvimento com as drogas. Por todas estas razões, a novela parece indicar que o caminho mais seguro é a opção pela socialização mais fácil, ou seja, pela via da obediência ao social através dos adultos e pela conformação ao papel feminino tradicional cujas características estão bem explicitadas no modelo de Da Matta. Vejamos a seguir como as telespectadoras reagiram a estas cenas.

Recepção das cenas

As cenas editadas foram submetidas à avaliação de duas jovens, Katharina, 21 anos e Luana, 20 anos. O critério para a escolha destas receptoras se deu em função da intenção de realizar um estudo comparativo do processo de construção de significados. Atendendo a esse critério, tem-se a seguinte caracterização: Katharina pertence a uma família cuja faixa de renda varia de 20 a 25 salários mínimos, ao passo que a família de Luana dispõe de uma renda de aproximadamente 5 salários mínimos. No que se refere à escolaridade, Katharina é aluna do curso de Arquitetura da Universidade Federal de Pernambuco, para o qual prestou apenas um vestibular, resultado provavelmente devido a uma vida escolar estável, caracterizada por um ensino privado e de qualidade. Luana, por sua vez, apresenta uma trajetória escolar instável, tendo enfrentado dificuldades de aprendizado em instituições particulares e públicas de ensino, fato que lhe impediu o acesso à Universidade em sua única tentativa até o momento no qual esta pesquisa foi realizada. Apesar de utilizarem os mesmos meios de informação – jornais, revistas, televisão e Internet -, Katharina acessa, com mais freqüência que Luana, a mídia impressa, sendo um de seus hábitos a leitura de livros, o que não ocorre em se tratando da outra entrevistada. Mais um diferencial entre ambas consiste em seus grupos de referência. Enquanto os pais de Katharina concluíram cursos universitários, os de Luana apresentam formação escolar de nível médio incompleto. Além disso, a primeira receptora freqüenta círculos de amizade cuja maioria dos membros integram a mesma camada social e cursam ensino superior. No caso de Luana, os círculos de amigos pertencem a diferentes estratos sociais, com predominância dos de baixa renda, bem como não costumam apresentar alta escolaridade. Esses diferentes perfis ocasionam construções simbólicas diversas, conforme poderá ser observado ao longo da análise das entrevistas concedidas. Ao discorrerem sobre os elementos que mais despertaram sua atenção com relação à seqüência de cenas editada, sobressaíram aos olhos das entrevistadas as diferenças entre os dois ambientes familiares enfocados. Entretanto, a forma segundo a qual ambas estruturaram suas idéias para demonstrar tal percepção apresentou-se distinta, assim como o foco comparativo por elas apontado. No que se refere ao aspecto formal de sua elaboração discursiva, Katharina sublinhou de imediato a oposição indentificada, ao passo que Luana, para captá-la necessitou primeiramente resumir os diálogos das cenas, passando a impressão de que sua reflexão fora realizada sob a condição do estímulo da entrevistadora. A disparidade encontrada entre ambas pode ser explicada com base no capital cultural de cada uma delas. Como apontado em seus perfis, as receptoras apresentam distinção quanto às trajetórias escolares e grupos de referência, mediações fundamentais para o processo de construção de sentidos. Aliás, a força de tais mediações sobre a estrutura organizacional de suas falas revela-se ao longo das entrevistas concedidas, refletindo-se na coerência e articulação discursiva no caso de Katharina, o que não predominou em se tratando de Luana. Com relação ao foco comparativo segundo o qual as receptoras diferenciaram os ambientes familiares da trama, Katharina privilegiou a oposição de valores com ênfase na importância conferida aos estudos. Neste aspecto a receptora identificou-se com o campo valorativo representado pela personagem Jade, tendo ressaltado constantemente a relevância do estudo e de uma formação educacional sólida para conquistar não somente uma profissão desejável e ascensão social, mas sobretudo a independência financeira e o crescimento intelectual. Estes dois últimos elementos, em sua opinião, constituem um instrumento essencial para a igualdade de direitos entre gêneros e seres humanos em geral. Nesse contexto, observa-se na receptora uma adesão a características atribuídas por Da Matta à categoria “indivíduo”, por ele desenvolvida. Esta adesão pode ser relacionada às matrizes discursivas a partir das quais, nesse momento, a receptora ressignificou as mensagens transmitidas nas cenas apresentadas. Sobre tais matrizes, vale ressaltar a combinação das instâncias socializadoras representadas por escolas de boa qualidade e pela mídia, com destaque para a impressa e eletrônica, por meio de Internet e TV por assinatura. Analisando, por sua vez, o depoimento de Luana, verifica-se que sua diferenciação acerca dos ambientes familiares se pautou, diversamente do ocorrido com Katharina, no item da importância remetida à aparência e bens materiais. Essa questão foi abordada repetidas vezes pela entrevistada, a qual repudia a valorização desses elementos conforme se nota por meio de observações explícitas, bem como pela sua identificação com os campos valorativos das personagens de Jade e Mel. Para expressar o mencionado repúdio a receptora enfatiza constantemente a relevância de ser “simples”, adjetivo por ela usado no sentido de desapego aos bens materiais e despreocupação com a estética. Este adjetivo é por ela associado à dedicação aos estudos, cuja conciliação com preocupações estéticas lhe parece impossível, como se pode ilustrar por meio de sua seguinte observação: “(...) em primeiro lugar a pessoa tem que cuidar dos estudos, da profissão e a partir daí a pessoa vai ter muito tempo para cuidar da beleza”. Este comentário pode denotar uma apropriação do provérbio popular segundo o qual “beleza não põe mesa”, condizente com uma postura de conformação face a uma posição desprivilegiada com relação ao mercado de consumo. Vale ressaltar ser a conformação uma característica componente da noção damattiana de “pessoa”. Outra inferência possível de um elemento de tal noção na fala de Luana consiste na sua concordância quanto à sujeição a regras, revelada na aceitação de cobranças por parte dos pais no que concerne aos estudos dos filhos. Assim, a receptora mostrou-se favorável à atitude da personagem Jade de estimular a filha a estudar. Entretanto, diferentemente do objetivo almejado por tal personagem e valorizado no depoimento de Katharina, ou seja, a dimensão formadora, libertadora e equalizante do estudo, Luana enfatizou o dever dos filhos de “passar de ano”, de modo a compensar o ônus financeiro acarretado pelo ensino. Este fato provavelmente se relaciona à sua instável situação econômica, disto resultando a predominância de uma visão instrumental da educação em sua produção discursiva. Esta visão, denunciada como hegemônica na política educacional brasileira por vários estudos na área das ciências humanas, vem sendo amplamente divulgada pela mídia, colaborando para a sua cristalização no senso comum. Com base na noção damattiana de “indivíduo”, pode-se encontrar no mencionado comentário características próprias a essa categoria explicativa, na medida em que a receptora destaca no ser humano o direito a um espaço próprio, cuja conquista lhe parece depender de esforço particular. Outro aspecto a diferenciar o teor dos depoimentos das duas receptoras consiste na maior vulnerabilidade de Luana à estrutura folhetinesca da novela, atentando fortemente para o apelo emocional da trama e para as relações amorosas entre os personagens principais. Essa postura foi evidenciada quando a entrevistada foi incentivada a opinar sobre a personagem Jade. Ao invés de comentar suas características, tão bem definidas na estrutura narrativa da novela, Luana focalizou sua história de amor com Lucas, como se a personagem somente pudesse ser concebida no interior dessa relação. Constata-se, então, uma consonância com uma das características da categoria “pessoa”, conforme a qual o ser humano é percebido como complemento dos outros. No único momento em que a receptora atribui a Jade uma qualidade, a de corajosa, a base para tal comentário consiste no enfrentamento das posições contrárias a seu relacionamento com Lucas. Esse olhar direcionado ao aspecto romântico da trama também se denuncia em seus comentários acerca das características da personagem Maysa. Embora tenha lhe remetido adjetivos negativos, insinuou uma possibilidade de complacência com relação aos mesmos, sob a condição de seus sentimentos por Lucas serem sinceros. Mais um exemplo de seu envolvimento com a estrutura folhetinesca reside na sua menção a uma cena – nem sequer integrante da seqüência mostrada -, na qual, em suas palavras, Lucas teria afirmado: “(...) ninguém pode com o destino”. Nota-se, então, a apropriação de um discurso comum à narrativa dos folhetins, bem como aos setores da sociedade brasileira menos favorecidos economicamente, dos quais se originam grande parte dos círculos de amizade da receptora. Percebe-se, então, mais uma vez a influência dessa mediação socializadora em sua elaboração discursiva. A respeito da citação em questão pode-se relacioná-la, ainda, ao fato de a receptora ter tido uma trajetória escolar instável, conforme mencionado. Tais circunstâncias provavelmente contribuíram para a importância conferida pela entrevistada ao “destino” na orientação comportamental, perspectiva que implica uma redução da capacidade de ação humana. Ao revelar uma identificação com tal perspectiva, a receptora nos lembra de mais uma das características que configuram a noção “pessoa”: a relevância emprestada à mitologia e às formulações paradigmáticas do mundo como formas de expressão fundamentais. Nesse sentido, outro exemplo pode ser encontrado no recurso à expressão “sorte”, numa tentativa de explicar a diferença de características valorativas entre as personagens Maysa e sua filha, Mel. Assim, enfatizando componentes que fogem ao controle do ator social, Luana perde de vista a tensão, presente no relacionamento entre as personagens, claramente mostrada numa das cenas da seqüência editada para os fins desta pesquisa O comportamento de Mel deixa, portanto, de ser percebido como resultante de sua luta por seus direitos e pela construção de uma identidade própria, atitude intrínseca à noção damattiana de “indivíduo”. Outro ponto desapercebido pela receptora, também evidenciado na mencionada seqüência, consiste na influência do ambiente familiar como um todo, no qual também são incentivados os projetos de Mel. Tal fato vincula-se à tendência da entrevistada a enfocar características de personalidade tidas como inatas na busca de compreensão das causas das ações das personagens. Eis exemplos da referida tendência em suas respostas: “isso vem do jeito dela”, “(...) pode ser do caráter dela, dela ser daquele tipo de pessoa”. Nos poucos momentos nos quais a receptora se refere a possíveis influências de contextos sócio-culturais sobre as ações das personagens, ela o faz de forma desarticulada, demonstrando insegurança, como se pode constatar no seguinte exemplo: “cada uma tem seu jeito, né? Mas também é a criação, é o lugar que elas vivem, né?”. Essa forma de estruturar as idéias pode ser atribuída às mencionadas dificuldades da receptora em sua vida escolar, o que demonstra mais uma vez a importância dessa mediação para a produção de sentidos. Inversamente, no caso de Katharina, a mediação da instituição escolar, como já explanado, é fundamental para possibilitar-lhe uma elaboração discursiva mais articulada e objetiva. A objetividade é mais um aspecto a diferenciar o conjunto de depoimentos das receptoras. Nota-se, na fala de Luana, um forte tom de subjetividade, o que nos leva a atribuir-lhe sua mencionada recepção de caráter predominantemente emocional diante da estrutura narrativa da novela, que opera numa dimensão mais analógica que cognitiva. Essa condição explica seu freqüente recurso a episódios de sua experiência de vida como parâmetro de avaliação do comportamento dos personagens. Por sua vez, Katharina revela, a partir de sua objetividade, uma tendência maior a uma posição de distanciamento e, consequentemente, de adoção de uma postura mais crítica frente ao núcleo da estrutura folhetinesca da novela. Apesar de também buscar em seu cotidiano alguns exemplos para fundamentar suas opiniões, essa receptora, na maior parte das vezes, toma por base, a realidade social mais ampla, transcendendo o âmbito mais local e imediato tanto de sua história particular quanto da trama da novela. Esse procedimento contribui para sua percepção da totalidade das situações vivenciadas pelos personagens, vinculando constantemente seus atos a suas motivações psicológicas e relacionando-os a um contexto sócio-cultural e econômico. É ilustrativo que, mesmo discordando das atitudes da personagem Maysa, que, em suas palavras, “denigre a imagem feminina”, a entrevistada é capaz de compreendê-la. Em se tratando de seu enfoque na importância da dimensão sócio-cultural, vale destacar a priorização por ela atribuída às influências da mesma. Um exemplo disso encontra-se em sua observação sobre a forma como a personagem Jade educa a filha, Kadija: “ela está tentando passar conceitos bons pra filha, mas que vão de encontro com a cultura local, que é muito mais forte”. Nesse ponto, encontra-se em sua fala uma característica pertencente à noção “pessoa” segundo a qual o ser humano somente pode ser concebido em uma relação necessária com a totalidade. Interessante assinalar que outros aspectos bastante sublinhados por tal receptora, de forma direta e indireta, sejam a relevância da liberdade de escolha, igualdade de direitos, conquista de um espaço próprio e construção de uma identidade, características típicas da categoria “indivíduo”. Eis exemplos disso retirados de seu depoimento: “(...) ela [Maysa] está educando [a filha] de forma errada, porque está querendo que a menina seja igual a ela. Ela não respeita o espaço da menina (...)”. Nota-se, então, que Katharina condena cobranças até mesmo na relação pais e filhos, na qual sua admissão é bem marcada no discurso de Luana. A coexistência desses aspectos díspares no depoimento de Katharina revela a complexidade e heterogeneidade do ser social, que escapa a uma classificação rígida com base no padrão de divisão entre indivíduo e pessoa, desenvolvido por Da Matta. Um ponto semelhante nos depoimentos das receptoras reside na associação por ambas realizada entre a figura da “pessoa” e o espaço físico da “casa”, revelando uma apropriação de um discurso corrente na sociedade brasileira, o qual foi sintetizado na sociologia damattiana. Para ilustrar, pode-se citar passagens de suas falas, quando estimuladas a imaginar o comportamento social feminino numa sociedade na qual todas as mulheres fossem educadas da forma como a personagem Maysa se porta em relação à sua filha. Nas palavras de Katharina: “haveria uma regressão no tempo. Iríamos voltar a mulheres que não saíam de casa (...), dependentes de seus maridos”. Luana, por sua vez, declarou: “você vai casar, vai ter que depender do marido (...), não pode sair com dinheiro seu”. Mais um aspecto a aproximar as entrevistadas consiste na afirmação da capacidade do gênero feminino de agregar papéis, revelado quando discorreram a respeito da discussão entre os personagens Abdul e Ali sobre se a mulher deveria se dedicar à profissão ou ao lar. Eis seus comentários: “(...) dá pra conciliar (...), uma coisa não exclui a outra” (Katharina); “(...) dá pra conciliar (...), tem que ter um equilíbrio” (Luana). Nota-se que nestes momentos ambas inclusive utilizaram o mesmo termo: “conciliar”. Pode-se inferir, não só com base nesses trechos de suas falas, mas no conjunto das mesmas, uma crença comum às receptoras quanto ao ideal de comportamento social da mulher: a articulação harmônica de suas modalidades de ação referentes às noções de “pessoa” e “indivíduo”. Nota-se, então, apesar de suas diferenças apontadas, o motivo das entrevistadas identificarem-se com mais vigor ao campo valorativo da mesma personagem, Jade, que representa uma conciliação positiva das categorias referidas. Essa semelhança encontrada pode refletir a apropriação de um discurso hegemônico na sociedade brasileira (bastante difundido por instituições socializadoras como a escola e a mídia), cuja razão de existir vincula-se à percepção dos obstáculos ao progresso da nação brasileira como decorrentes de relações personalistas predominantes, tal como retratado na obra de Da Matta.

Considerações finais

A partir das análises realizadas, pode-se concluir pela confirmação das hipóteses formuladas. No que se refere à primeira – a de que a diferença de capital cultural obtido no ambiente universitário, mais do que as diferenças de poder de consumo, definem diretamente tipos determinados de interpretação das cenas -, observou-se que a distinção quanto às trajetórias escolares e grupos de referência das receptoras aparece como determinante do conjunto de idéias e representações sociais construídas frente às cenas da novela. O diferente nível sócio-econômico das telespectadoras, detectado por meio do número de salários mínimos, foi sem dúvida um dos principais elementos explicativos face à distinção de interpretações, já que os recursos financeiros de Luana não lhe favorecem, diversamente do caso de Katharina, o acesso ao ensino universitário de boa qualidade. Além disso, a posição desprivilegiada de Luana com relação ao mercado de consumo de bens culturais, em comparação com a de Katharina, a predispõe a uma desvantagem no que concerne à aquisição de um referencial de representações mais rico e diversificado. Dessa forma, o nível sócio-econômico mostrou-se relevante para a percepção das possíveis causas da distinção de formas de recepção encontradas, na medida em que exerceu influências no processo de construção do capital cultural de cada uma das entrevistadas. O capital cultural, portanto, foi percebido como o referencial mais importante para as elaborações discursivas frente às cenas da novela em si. Consequentemente, a diversidade de interpretações esteve ligada indiretamente ao nível sócio-econômico, mas diretamente ao capital cultural, mediação que serviu como base para a recepção de mensagens a partir do eixo de sentidos indivíduo/pessoa. Assim, confirmou-se também a segunda hipótese, conforme a qual na estrutura da trama das novelas as relações de conflito social são construídas com base na dicotomia entre indivíduo e pessoa e que este é o eixo de sentidos utilizado como padrão de interpretação das cenas pelas duas telespectadoras, de forma que aquela que não estuda constrói sua relação de comunicação e entendimento das cenas predominantemente a partir do eixo valorativo da “pessoa”, enquanto aquela que estuda o faz prioritariamente com base no eixo valorativo do “indivíduo”. Apesar de se reconhecer toda a heterogeneidade e complexidade das elaborações discursivas das receptoras, não é possível ignorar a presença marcante de elementos que caracterizam as tendências mencionadas. Em se tratando das conclusões relativas à estrutura da trama das novelas, percebe-se que aquilo que é divulgado como inovação no conteúdo no caso de “O Clone”, ou seja, a apresentação da cultura mulçumana, vem se encaixar perfeitamente na já tradicional forma de construção das relações interpessoais e sociais das personagens pautada na dualidade indivíduo/pessoa. A novidade termina sendo absorvida pela estrutura e tornando-se funcional no sentido da reprodução do mito do personalismo. Dessa forma, revelou-se bastante rica a utilização de um referencial teórico- metodológico interdisciplinar, cujos diversificados elementos contribuem para uma compreensão mais adequada à complexidade dos processos comunicativos, percebidos em seu caráter dialético mais amplo, ou seja, como dimensões de produção e negociação de sentidos.

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