Ciência & Saúde Coletiva ISSN: 1413-8123 [email protected] Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva Brasil

Garcia Bastos, Cláudia Regina; Caetano, Rosângela As percepções dos farmacêuticos sobre seu trabalho nas farmácias comunitárias em uma região do estado do Rio de Janeiro Ciência & Saúde Coletiva, vol. 15, núm. 3, noviembre, 2010, pp. 3541-3550 Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva Rio de Janeiro, Brasil

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Como citar este artigo Número completo Sistema de Informação Científica Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto TEMAS LIVRES FREE THEMES 3541 Profissão farmacêutica, Prática Este trabalho teve por objetivo compreen-

Resumo der as percepções de farmacêuticos de farmácias sobre comunitárias do estado do Rio de Janeiro suas práticas profissionais e como estas poderiam estar relacionadas com a implantação da Atenção quali- Farmacêutica. Foi desenvolvido um estudo tativo, com a realização de entrevistas semiestru- de turadas, posteriormente submetidas à análise A conteúdo baseada na análise temática das falas. população de estudo foi composta por quinze far- macêuticos responsáveis técnicos de farmácias co- munitárias do estado, com distribuição equânime segundo a seguinte tipologia: farmácias de rede es- tadual, de rede local e farmácias consideradas fa- miliares, sem filiais. A categorização do discurso dos farmacêuticos mostrou, pelo menos, três con- vergências: as contínuas dificuldades da popula- ção quanto ao uso de medicamentos, certo deslo- camento da prática, no sentido de (re)valorizar o paciente, e um conhecimento bastante superficial do conceito de Atenção Farmacêutica. Faz-se ne- cessário ampliar as reflexões sobre esse tema, de modo a identificar elementos que possam vir a ga- rantir que a práxis farmacêutica se insira com complementaridade nos serviços de saúde. Palavras-chave profissional, Atenção Farmacêutica, Farmácia co- munitária Pharmaceutical Profes- profession,

pharmacies from Rio de Janeiro about

The aim of this study was to understand 1 Abstract the pharmacist’s perceptionsthe pharmacist’s that work at com- munitarian their professional practices and how this vision their professional practices and how this of can be related to the practice implementation Pharmaceutical Attention. A qualitative research was developed with the execution of semi-struc- sub- tured interviews; subsequently discourse was mitted to content analysis, through the thematic analysis. This research have been made with 15 pharmaceuticals of Rio de Janeiro state pharma- cies with proportional distribution correspond- ing to the following typology: state pharmacy net- without branch- work; local network; and familiar, es. The speech classification which was made here has shown at least three convergences: the contin- ue difficulties of the population about the use of medicines, certain migration of the pharmaceuti- cal practice, in the meaning of (re)valuing the patient and the superficial knowledge about the Attention Pharmaceutical conception. It is neces- sary to intensify a reflection on this issue to lead us to identify elements that can guarantee that this pharmaceutical practice can be implemented as a complementary health service. words Key sion practice, Attention Pharmaceutical, Commu- nity pharmacy As percepções dos farmacêuticos As percepções nas farmácias comunitárias sobre seu trabalho estado do Rio de Janeiro em uma região do about their job perceptions The pharmacist’s de Janeiro pharmacies of the state of Rio at communitarian 2 Instituto de Medicina Conselho Regional de 1 Farmácia do Estado do Rio de Janeiro. Rua Afonso Pena 115, Tijuca. 20270- 971 Rio de Janeiro RJ. [email protected] 2 Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Cláudia Regina Garcia Bastos Rosângela Caetano 3542

Introdução dos medicamentos. Em decorrência desse foco, sua prática mostra-se pouco efetiva sobre a mor- Bastos CRG, Caetano R A farmácia tem fundamental importância como bimortalidade relacionada a medicamentos3, o porta de acesso da população em relação ao con- que tem levado ao surgimento de algumas novas sumo de medicamentos e devia ser entendida propostas de prática profissional na profissão como um posto avançado de atenção primária farmacêutica. Dentre esses novos caminhos, há a de saúde. Segundo dados do Ministério da Fa- Atenção Farmacêutica, que se apresenta como zenda1, as farmácias e drogarias seriam respon- uma alternativa – implementada ou em imple- sáveis por 76% do fornecimento direto de medi- mentação em diversos países4 – que visa redire- camentos à população. cionar o objetivo do trabalho do farmacêutico Farmácias comunitárias referem-se aos esta- para o indivíduo que necessita e usa os medica- belecimentos do comércio varejista privado ten- mentos, no sentido de melhorar a qualidade do do o farmacêutico como responsável técnico, aten- processo de utilização de medicamentos pela dendo às exigências da Lei no 5.991/73 do Minis- população. Na Atenção Farmacêutica, a perspec- tério da Saúde2. É necessário destacar que, neste tiva profissional do farmacêutico seria a de assu- trabalho, o termo farmácia comunitária exclui mir a responsabilidade de identificar e resolver as farmácias de manipulação e as farmácias pú- as necessidades do paciente em relação aos me- blicas, referindo-se tão somente às farmácias di- dicamentos, e responder por esse compromis- tas comerciais e drogarias. Nestas, o atendimen- so5. Conforme alerta Cipolle6, essa reorientação to ao paciente acontece no nível de atenção pri- da atenção profissional parte do conceito de que mária à saúde, com a responsabilidade técnica, não são os fármacos que têm doses, mas são as legal e privativa de farmacêutico. pessoas que recebem as doses, e que essas doses Sendo assim, a farmácia comunitária ocupa de medicamentos (e esses medicamentos) devem um importante espaço no cenário da saúde públi- ser adequadas às suas necessidades individuais. ca brasileira, como local de dispensação de medi- Acompanhando os avanços na discussão da camentos e de contínua promoção do consumo de promoção do uso racional de medicamentos, foi medicamentos para a população. Nelas, o usuário elaborada no país, em 2002, uma proposta de busca, através do consumo de produtos, prescri- Consenso Nacional de Atenção Farmacêutica7, tos ou não, o restabelecimento da sua saúde. que define essa Atenção como parte integrante Entretanto, ainda que o medicamento seja de da Assistência Farmacêutica, na perspectiva da fundamental importância para o paciente, tor- integralidade das ações de saúde. A concepção nando-se um componente estratégico na tera- subjacente seria de que a Atenção Farmacêutica pêutica e na manutenção de melhores condições se referiria às ações de cuidado do farmacêutico de vida do indivíduo, é fundamental que não nos com o indivíduo no sentido de promover o uso esqueçamos da necessidade de fornecer à socie- racional dos medicamentos e a melhoria da qua- dade informações seguras que minimizem o ris- lidade de vida. Já a Assistência Farmacêutica se- co à saúde, que pode ser causado se o medica- ria um conjunto mais amplo de atividades rela- mento não for utilizado de modo adequado, efe- cionadas com o medicamento, envolvendo o far- tivo e seguro. E a farmácia comunitária, pelo es- macêutico e outros profissionais de saúde, desti- paço que ocupa no processo de aquisição e dis- nadas a apoiar as ações de saúde relacionadas pensação desses produtos, pode ser um lócus com o medicamento, definidas pela Política Na- importante para a realização de práticas que fo- cional de Medicamentos8. mentem seu uso mais seguro e racional. A pre- Esse modelo de atenção também indica o ca- sença e a ação do farmacêutico nesses estabeleci- minho que o farmacêutico deve trilhar no sentido mentos se fundamentam no fato de que o uso de recuperar o compromisso na prevenção de racional do medicamento requer a aplicação de doenças, promoção e recuperação da saúde, de um conhecimento técnico-científico aprofunda- forma integrada à equipe de saúde. Esse novo do sobre as suas características intrínsecas, pelas modo de exercer a prática profissional muda o reações e interações adversas que podem desen- objeto central da atuação do profissional - cadear, e sobre as doenças para as quais são úteis. cêutico, que deixa de ser o medicamento, em si Os modelos tradicionais de prática farma- mesmo, voltando a ser o usuário e a comunidade cêutica têm sua preocupação principal voltada como um todo. para os cuidados com o medicamento. Nesse sen- A despeito desses movimentos, observa-se na tido, o foco de trabalho do farmacêutico se dire- literatura uma escassez de trabalhos referentes à ciona para planejamento, síntese, produção, abas- percepção do farmacêutico quanto a sua prática tecimento, distribuição e controle de qualidade profissional, seja em farmácias públicas9, seja em 3543 Ciência & Saúde Coletiva, 15(Supl. 3):3541-3550, 2010

farmácias comunitárias privadas. Estefan10 já res- tos e seus desdobramentos, com ênfase na ques- saltava a necessidade urgente de se compreender tão do medicamento genérico e nas dificuldades e assimilar a essência da identidade da profissão da população no uso de medicamentos. farmacêutica, bem como do contexto em que ela Na seleção dos informantes para as entrevis- se insere, como mecanismo que propicie conhe- tas, houve a preocupação e o cuidado em evitar a cer a realidade e planejar o futuro da profissão. possibilidade de introdução de vieses decorren- Desse modo, compreender as percepções que tes do fato de a pesquisadora que conduziu as esses profissionais têm de sua práxis e dos pro- entrevistas ser farmacêutica fiscal do Conselho cessos de trabalho presentes nas farmácias co- Regional de Farmácia do Estado do Rio de Janei- munitárias pode ajudar a identificar o modus ope- ro (CRF-RJ). Logo, as entrevistas foram realiza- randi dessa prática e onde há estrangulamento das apenas em farmácias de áreas cuja fiscaliza- de interesses que desfocam o objetivo das far- ção não fosse ou já tivesse sido de sua responsa- mácias como estabelecimentos produtores de bilidade. Buscou-se com isso que a adesão ao saúde para estabelecimentos estritamente comer- estudo e as respostas tivessem motivação espon- ciais. Essa identificação, portanto, pode ser de tânea dos farmacêuticos e não decorressem da auxílio na elaboração de caminhos e estratégias identificação do pesquisador com a figura de um que avancem na efetiva implementação da Aten- agente que estaria ali para fiscalizar seus atos. ção Farmacêutica e de outras práticas assistenci- Os farmacêuticos responsáveis técnicos sele- ais em nosso meio, melhorando a segurança, a cionados trabalhavam em estabelecimentos dos eficácia e o uso racional dos medicamentos. municípios de São Gonçalo, Tanguá, Rio Bonito Este artigo é um recorte da dissertação de e Itaboraí. São Gonçalo está inserido na chama- mestrado de uma das autoras11 e teve como ob- da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e é o jetivo identificar a concepção que os farmacêuti- segundo município em densidade demográfica cos responsáveis técnicos, atuantes em farmáci- do estado do Rio, tendo passado por um pro- as comunitárias do estado do Rio de Janeiro, têm cesso de desindustrialização nas últimas décadas. sobre a sua prática profissional e como essa vi- Os demais municípios fazem parte do eixo do são pode estar relacionada à/e facilitar a imple- Leste Fluminense, com economia predominan- mentação de práticas focadas no paciente, tais temente rural e estão, em média, cinquenta qui- como a Atenção Farmacêutica. lômetros distantes da capital. O trabalho de campo se desenvolveu em 2006, ao longo de um mês, iniciando-se pelas farmá- Metodologia cias da periferia do município de São Gonçalo. Todos foram individualmente esclarecidos sobre Trata-se de um estudo qualitativo, de estratégia os objetivos da pesquisa e se posicionaram sobre metodológica descritiva e analítica. Foram reali- sua participação através de um termo de con- zadas entrevistas semiestruturadas com farma- sentimento livre e esclarecido, obedecendo às nor- cêuticos responsáveis técnicos de farmácias do mas estabelecidas pela Comissão Nacional de estado do Rio de Janeiro que atuavam em três Ética em Pesquisa (Conep)12. tipos de farmácias comunitárias, de modo a con- Na etapa de coleta de dados, a definição de templar farmácias de rede estadual, farmácias de fechamento amostral aconteceu à medida que, rede local e farmácias familiares. na avaliação da pesquisadora, as informações O critério de seleção dos entrevistados foi o fornecidas pelos novos participantes da pesqui- de escolha dos farmacêuticos responsáveis técni- sa pouco acrescentavam ao material já obtido, cos entre os que trabalhassem em um desses três não mais contribuindo de modo significativo tipos de farmácias comunitárias por no mínimo para o desenvolvimento da reflexão teórica das vinte horas semanais. percepções sobre as práticas profissionais reali- A abordagem utilizada nas entrevistas fez com zadas no universo estudado na pesquisa, como que os entrevistados rememorassem suas traje- ressaltado por Fontanella et al.13. tórias profissionais desde o primeiro emprego A análise dos dados privilegiou a compreen- como farmacêutico, bem como descrevessem suas são e a interpretação das percepções a partir dos atividades em um dia típico na farmácia comu- discursos dos entrevistados. O exame do mate- nitária e enumerassem aquelas atividades consi- rial obtido nas entrevistas seguiu a análise de con- deradas como mais importantes e/ou mais difí- teúdo proposta por Bardin14, segundo a qual os ceis de serem realizadas. Foram ainda explora- dados das entrevistas foram codificados segun- das suas vivências no balcão da farmácia, as des- do as seguintes categorias analíticas: (1) prática crições das tarefas de dispensação de medicamen- profissional; (2) dificuldades da população no 3544

uso de medicamentos; (3) satisfação dos farma- podia lhes conferir um grau de experiência pro- cêuticos na farmácia; e (4) significados atribuí- fissional acumulada que facilitasse suas ativida- Bastos CRG, Caetano R dos ao termo Atenção Farmacêutica. Além dis- des cotidianas, observou-se que 80% dos entre- so, procedeu-se ao desenho de um breve perfil vistados trabalharam em outros locais, como dos entrevistados, buscando poder contextuali- farmacêuticos, antes de estarem no exercício da zar e explorar eventuais percepções e sentidos que responsabilidade técnica atual. Do total de entre- pudessem estar relacionados ao local de atuação vistados, a maioria relatou não trabalhar, no profissional, tempo de formado e de atuação na momento da entrevista, em outro local, sendo profissão e em farmácias comunitárias, tempo uma constante a observação de dedicação exclu- de exercício naquele estabelecimento em questão siva no grupo de farmacêuticos proprietários, e habilitações adicionais. independentemente da tipologia de farmácias. A identificação das concepções buscou com- preender o significado desse trabalho para os A prática profissional profissionais e o modo como ele era efetivamen- nas farmácias comunitárias te executado no dia a dia. Entendemos que a for- ma como se organiza o trabalho cotidiano guar- Naves et al.15 assinalam que, no Brasil, há uma da, em última instância, uma profunda relação série de peculiaridades em relação ao comércio va- com as concepções acerca da prática, conduzin- rejista de medicamentos. Uma delas refere-se ao do ao modelo concretamente operado de prática fato de a maior parte deste segmento ser compos- profissional farmacêutica vigente. ta de proprietários leigos, não havendo mecanis- mos para impedir a abertura de novas farmácias por eles. Nesse contexto, basta que a farmácia aten- Resultados e discussão da às exigências sanitárias locais e federais, quanto à estrutura física e aos requisitos legais, e que con- Perfil dos entrevistados trate um farmacêutico responsável técnico, para poder abrir e funcionar. Os demais funcionários Foram realizadas 15 entrevistas, com distri- desses estabelecimentos têm, via de regra, baixa buição equânime do número de entrevistados escolaridade16, não havendo, na maioria dos ca- pelos três tipos de estabelecimentos examinados: sos, exigências de qualificação prévia para fazer farmácias familiares, farmácias de redes locais e parte do quadro de funcionários de uma farmá- de redes estaduais. cia. Como decorrência, não é incomum que pro- Sete dos entrevistados eram homens. Nas far- fissionais leigos sem qualquer formação ou quali- mácias familiares, todos os entrevistados eram do ficação específica na área da saúde estejam, nesses sexo masculino, situação inversa da observada estabelecimentos, em contato direto com o públi- naquelas de rede local. Apesar de a idade variar co e com o processo de atendimento de suas ne- entre 22 e 76 anos, e o tempo de formado variar cessidades, em termos de aquisição e orientação entre 2 e 56 anos, a maioria era jovem e tinha pou- no consumo e uso dos medicamentos. co tempo de formado. Em decorrência, a experiên- Tivemos o momento de pegarem o segurança e cia profissional da maioria deles era bem recente, colocarem no balcão, sem noção de nada, para aten- com três anos ou menos de atuação como farma- der os clientes. Não é fácil. Por enquanto, acontece cêuticos. Todos os entrevistados atuavam profissi- uma coisa peculiar: o nosso gerente é o gerente dos onalmente como farmacêuticos desde a saída da laticínios... O chefe dos laticínios é o chefe da dro- faculdade, não se observando qualquer padrão garia. Ele não entende nada da drogaria, tanto que específico segundo o tipo de estabelecimento. ele nem vem aqui (farmacêutico de farmácia de O grau de qualificação encontrado em todas rede estadual). as tipologias de estabelecimento estudadas indi- Outro elemento destacado pelos entrevista- cou a presença do empenho pessoal e intelectual dos dizia respeito ao contexto de incremento de dos farmacêuticos em obter conhecimentos téc- vendas pela indústria farmacêutica, que chega a nicos que proporcionassem condições de esta- atingir os medicamentos genéricos, expressando rem inseridos com diferencial no mercado de tra- também uma mudança nas estratégias de com- balho. Contudo, o maior percentual de farma- petição do segmento industrial a partir do final cêuticos com habilitações (principalmente em dos anos 90, quando é regulamentada a Lei dos bioquímica), especializações e pós-graduação Genéricos17. As empresas produtoras – não ape- estava presente nos segmentos de farmácias de nas de similares, mas também de medicamentos rede local e estadual, talvez como uma exigência genéricos e de referência – concorrem entre si, de mercado. Sobre suas atividades pregressas, que fornecendo bônus, comissões e outras vantagens 3545 Ciência & Saúde Coletiva, 15(Supl. 3):3541-3550, 2010

comerciais sobre venda de determinados medi- que é mais barato. Geralmente, o cliente leva o camentos, e fazendo da propaganda, nos meios mais barato. Eles entregam o medicamento. Na de comunicação, um instrumento de sedução ao maioria das vezes, eu faço serviço burocrático, lan- uso de medicamentos por conta própria. çando nota fiscal. É raro eu participar da dispen- Todas as indústrias, atualmente, dão comissão sação. Só quando é controlado mesmo. Antigamen- para as farmácias, mas depende muito do labora- te, era a subgerente que lançava as notas fiscais da tório. Genérico e “éticos” estão dando comissão loja; depois que ela saiu, eu fiquei lançando. Se eu também. Dependendo do produto, chega até a 40%, não tiro dúvidas, o balconista tira. No início, quan- 45% e, também, dependendo da quantidade. Mes- do eu via erros (dos balconistas), eu falava muito, mo assim, quando você compra, eles dão no máxi- depois eu fui parando. Eu estou em farmácia só há mo 35%, mas se for comprar para três ou quatro dois anos, já os balconistas tem mais tempo (far- lojas, tipo essas redes que existem, o desconto é macêutico de farmácia de rede local). maior. [Laboratório de] referência dá bonifica- Eu assumi a farmácia. Deixei de ser farmacêu- ção. Antes do genérico, não dava, mas hoje dá (far- tica e me tornei administradora (farmacêutica de macêutico de farmácia familiar). farmácia de rede local). Arguídos sobre as atividades que considera- Zubioli19 já apresentava o panorama de am- vam mais importantes no seu dia a dia nas far- biguidade e conflito com que o farmacêutico viria mácias, as opiniões dos farmacêuticos muitas a conviver na farmácia comunitária, devido ao vezes migraram para o trabalho de cuidado ao aspecto comercial nesse ambiente, e o contrapon- paciente, sendo demonstrada sua preocupação to das atividades realizadas pelo farmacêutico em quanto ao uso adequado de medicamentos, às prol da saúde dos consumidores. Esse panorama interações medicamentosas potenciais e à difi- complexo fica também bastante evidente quando culdade de entendimento do que estava prescrito os farmacêuticos entrevistados elencam o con- no receituário por parte do usuário. Além disso, junto amplo de atividades executadas como parte sobre a prática profissional dos entrevistados nas de seu exercício profissional nas farmácias comu- três tipologias analisadas, observou-se uma prio- nitárias: dispensação de medicamentos aos usuá- ridade de ações no sentido do controle efetivo rios; intercambialidade de medicamentos previs- dos medicamentos vendidos com retenção de ta pela legislação, confirmação junto ao prescri- receita, conforme a Portaria no 344/98 SVS/MS18. tor de dúvidas no receituário; uso de bibliografia A cultura do controle de medicamentos especí- farmacêutica para consulta; controle da validade ficos, como é o caso dos entorpecentes e psicotró- do estoque de medicamentos; controle de esto- picos, ainda marca a práxis desses farmacêuticos. que dos medicamentos constantes na Portaria no Isso contribui para a existência de tensões no am- 344/98 SVS/MS; manutenção da documentação biente de trabalho nas farmácias comunitárias, do estabelecimento devidamente organizada bem principalmente no que se refere a práticas relacio- como dos padrões de higiene, de acordo com as nadas com a Atenção Farmacêutica. Como exem- normas sanitárias; treinamento de funcionários; plo, relata-se desde a pouca autonomia para atua- e gerenciamento da farmácia. A despeito desse rem no cuidado direto ao paciente, como a impo- espectro amplo de atribuições e atividades, o diá- sição de muitas farmácias para que o farmacêutico logo estabelecido com os profissionais indicou, se desloque para atividades administrativas, como em recorrentes falas, seu interesse e a preocupa- o lançamento de notas fiscais de todos os medica- ção com a fragilidade dos pacientes no seu conta- mentos comercializados e a atividade de gerência. to com o medicamento. Também de forma unís- Ficou patente também, em alguns discursos, a re- sona, ecoou nos discursos dos farmacêuticos a sistência dos balconistas a acatarem orientações demonstração de solidariedade para com eles, ain- dos farmacêuticos, ficando claras as limitações exis- da que esta nem sempre se expresse em uma ati- tentes para o melhor desempenho profissional, em tude concreta no cotidiano do trabalho. especial no que se refere às atividades de dispensa- Foram citadas, também, as dificuldades com a ção e orientação aos pacientes. Essas atividades, legibilidade das prescrições, oriundas em particu- muitas vezes, são realizadas por profissionais de lar da letra do profissional médico, como um fator venda, com formação inadequada a essas ações e, limitante para a efetiva e segura dispensação de em alguns casos, com motivações para ganhos medicamentos; e a legislação que, segundo os far- adicionais vinculados às estratégias de competição macêuticos, se modifica rápida e constantemente. das firmas produtoras dos medicamentos. Entender as normas sobre a dispensação de medi- A dispensação de medicamentos é com os bal- camentos controlados também foi mencionado conistas, os [medicamentos] controlados, sou eu. É como um fator de dificuldade, percebido princi- assim: chega a receita, tem o genérico e o similar palmente no início da carreira farmacêutica. 3546

Quando perguntados sobre que atividade de chás e emplastos; a terapia natural, pelo con- consideravam como sendo de mais fácil execu- sumo de plantas e fitoterápicos, sem prescrição Bastos CRG, Caetano R ção no dia a dia profissional, grande parcela dos médica; e a terapia religiosa, como as rezas e ben- farmacêuticos – das três tipologias de farmácia – zeduras, fruto da compreensão de que o processo apontou o lançamento de medicamentos con- de cura envolve, além do corpo, o espírito21. trolados no livro de registro aberto especifica- Para a maioria dos informantes, as dificulda- mente para esse fim. Na verdade, esse monitora- des da população quanto ao uso dos medicamen- mento se resume, via de regra, em uma operação tos podem ser sumarizadas em um tripé: a ilegi- aritmética básica de controle de estoque de me- bilidade da letra do prescritor, a não compreen- dicamentos, em que são indicadas a entrada e a são sobre o uso dos medicamentos por parte dos saída dos medicamentos em um livro específico, consumidores e o custo dos medicamentos. através dos seus respectivos documentos (nota Este último elemento é de grande relevância fiscal de compra do medicamento e registro da para o consumidor no momento da compra do receita, conforme preconiza a legislação). Embo- medicamento. Segundo Luiza e Bermudez22, a ra não encerre em si grandes dificuldades, essa questão do poder de compra do usuário é um atividade consome significativo tempo de execu- dos fatores decisivos para o acesso aos medica- ção, cuja ordem de grandeza é diretamente pro- mentos, devendo existir a compatibilidade entre porcional ao volume de vendas desse tipo de o preço do medicamento e a capacidade aquisiti- medicamentos pelo estabelecimento, e é objeto va dos usuários para que se realize esse acesso. de fiscalização rigorosa e sistemática pelos diver- No decorrer das entrevistas, vários farmacêu- sos órgãos responsáveis, tais como a Vigilância ticos relataram que o cliente quer entender/co- Sanitária Municipal, o Conselho Regional de Far- nhecer, no corpo da receita, qual produto é o “mais mácia e a Delegacia de Crimes contra a Saúde importante” para sua recuperação, para poder Pública. Esse atendimento às exigências legais eleger a compra deste, desprezando a aquisição contribui para/e termina por afastar o profissio- dos demais medicamentos prescritos, em face da nal do atendimento e cuidado direto aos usuári- falta de condições econômicas para comprá-los. os, dificultando as ações mais voltadas para a Eles questionam muito a medicação prescrita. Atenção Farmacêutica. Muitos deles cortam pela metade a receita, inclusi- ve perguntam: “Qual que é para dor? Me vê o da Dificuldades da população dor. Esse médico está achando o quê? Que eu sou no uso dos medicamentos milionário?” (farmacêutico de farmácia de rede estadual). O paciente deve ser visto não apenas como um corpo, com seu funcionamento biológico, Satisfação dos farmacêuticos mediado por uma gama de processos físicos e com o trabalho na farmácia químicos, mas também como a amálgama de processos sociais, políticos e culturais historica- No tocante à satisfação dos farmacêuticos no mente construídos que incidem sobre ele ao lon- ambiente da farmácia, foram feitos quatro blo- go de sua vida20. O conjunto de costumes, valo- cos de perguntas: sobre a satisfação intrínseca ao res, crenças, saberes e experiências que ele possui trabalho, em relação às condições de trabalho, à sobre o medicamento e o resultado que dele se sua organização e sobre os vínculos sociais do quer obter é somado às incertezas e aos medos trabalho. vivenciados por cada indivíduo, na busca do res- Os farmacêuticos deram depoimentos con- tabelecimento do seu equilíbrio orgânico. Vê-se, traditórios quanto à satisfação de estar traba- então, que as formas de pensar e agir ante o uso lhando na farmácia comunitária. Uma gama de de medicamentos se constroi individualmente, pressões é sentida pelos farmacêuticos; entre as sendo seu uso modulado, também, pela forte mais citadas, estão a questão da desvalorização mídia da indústria farmacêutica e pela facilidade salarial; o não reconhecimento pela equipe, e pela com que, de modo geral, se podem adquirir população em geral, do papel do farmacêutico; a quaisquer tipo de medicamentos nas farmácias sensação de abandono pelos órgãos profissio- comunitárias. Esse somatório tende a organizar nais, sindicatos e governo; a impossibilidade de o comportamento que a maioria das pessoas tem continuar os estudos, que lhe garantiria maior ante o uso de medicamentos, levando-se em con- qualidade do trabalho realizado; o número in- ta ainda que a população tem ao seu dispor, além suficiente de funcionários na farmácia; e o con- dos medicamentos como fonte de terapia médica flito entre as autoridades administrativa e pro- científica, a terapia popular, pelo uso recorrente fissional. 3547 Ciência & Saúde Coletiva, 15(Supl. 3):3541-3550, 2010

Em oposição a esse contexto, foram também nha sala com o armário de controlados, não posso fornecidos depoimentos em que aparecem, de trazer para cá. As redes, a meu ver, teriam que forma significativa, a percepção de vitória, de investir mais no farmacêutico, nas suas condições conquista, de sensação de dever cumprido, espe- de trabalho. Tinha que ter um sistema de compu- lhadas principalmente pelos farmacêuticos mais tador para agilizar a confecção do balanço trimes- experientes de rede estadual e farmacêuticos de tral. Ia ser rapidinho, ao invés de ficar escrevendo farmácias familiares, de modo geral. (farmacêutico de farmácia de rede estadual). Destaca-se que a autonomia para a constru- Quanto à organização do trabalho, percebe- ção do seu dia a dia é percebida, com mais fre- mos que, na maioria dos casos, os farmacêuti- quência, nesses dois últimos grupos de farmacêu- cos concordavam com o modo como a farmácia ticos citados. Em contrapartida, os mais jovens e se organizava estruturalmente. Muitos se senti- com menor bagagem profissional trazem uma am identificados com a existência de regras, con- carga de sofrimento com o desenrolar de seu coti- dutas e procedimentos internos, creditando a diano, com sentimentos de desvalorização e de- esses elementos uma certa segurança no traba- sesperança ante as expectativas profissionais. lho ali desenvolvido, apesar de muitas das vezes Éboli23lembra que, para que a satisfação pro- não concordarem com as regras ora impostas. fissional seja completa, ela deve ser dialética; nes- Quando indagados sobre a relação com os se sentido, ressalta a importância da satisfação outros profissionais, surge como pano de fundo do farmacêutico no seu trabalho diário como a disputa pelo espaço de poder e autonomia den- fundamental para o bom desenvolvimento téc- tro da farmácia. Viu-se que os gerentes, e mesmo nico e profissional. alguns balconistas, se opõem às orientações e de- Vale pontuar que os depoimentos indicaram terminações dadas pelos entrevistados. Suas falas o inconformismo ante a ausência de espaços mí- mostram angústia e inconformidade com a estru- nimos para o desenvolvimento das suas ativida- tura hierárquica sentida dentro desses estabeleci- des e quanto à organização do estabelecimento mentos, que muitas vezes não considera os cam- direcionado unicamente para o foco comercial e pos de atuação e os conhecimentos específicos de administrativo e não técnico e de cuidado. Como cada um dos grupos profissionais envolvidos no exemplo, houve relatos de ausência até de mobili- processo de atendimento e cuidado ao usuário. ário – cadeira e mesa – que permitisse ao farma- Os farmacêuticos das redes, em particular, cêutico poder se sentar no decorrer do seu expe- apontaram o estabelecimento das relações so- diente, inclusive no momento de escriturar as re- ciais no interior das farmácias como uma das ceitas de medicamentos ditos controlados. Mui- maiores dificuldades na sua atuação. Essas rela- tos reclamaram de não possuírem um microcom- ções sociais assumem diversas interfaces, entre putador, de modo a operacionalizarem os lança- quais foram destacadas: o trabalho de conven- mentos dos dados dos medicamentos controla- cer a equipe de balconistas e gerentes a colaborar, dos, pelo menos na elaboração dos balanços tri- de modo a haver uma prática mais ética e menos mestrais e anuais exigidos pela Portaria no 344/98, comercial na farmácia; a resistência de alguns além de consultaram material específico que aju- balconistas no sentido de implementar procedi- dasse a dirimir dúvidas próprias e dos pacientes. mentos orientados pelo farmacêutico; o fato de As condições de trabalho são citadas como parti- os clientes das farmácias confundirem sistemati- cularmente insatisfatórias, não apenas dificultan- camente o farmacêutico com o balconista; e o do ações mais orientadas para a Atenção Farma- próprio exercício de estar em contato com o pú- cêutica, mas, sobretudo, permitindo ver que esta blico, no esclarecimento de dúvidas, visto a falta ainda está longe de ser considerada como uma ou precariedade de treinamento específico nas atividade importante ou prioritária pelos donos faculdades de farmácia, bem como a ausência, dos estabelecimentos comerciais. em boa parte dos estabelecimentos, de condições Eu acho que tinha que ter um espaço para o de infraestrutura mínimas para que tal se realize farmacêutico, para poder estar chamando e aten- com a privacidade, o sigilo e a ética necessários. dendo o paciente. Mas um espaço mesmo, que nin- Já o desapontamento com a profissão foi guém pudesse te interromper e o paciente pudesse constatado predominantemente no grupo de far- contar realmente o que está se passando. Porque, macêuticos mais jovens, independentemente da num cantinho do balcão que a gente possa usar tipologia de farmácias em que trabalham, pois para falar com o cliente, às vezes ele se sente enver- eles se viam inseridos em atividades que conside- gonhado de contar, às vezes é um homem querendo ram marginais à sua profissão no seu cotidiano, falar de um problema de disfunção erétil ou algu- tais como o trabalho administrativo e a gerência ma coisa parecida. Mesmo aqui dentro... É a mi- das farmácias, em que não são considerados 3548

importantes os seus conhecimentos cognitivos medicamento possa realmente fazer efeito. Porque, referentes ao medicamento. Em contrapartida, à às vezes, o paciente não sabe ler, e o médico nem Bastos CRG, Caetano R medida que o farmacêutico tinha experiência com sabe que ele é analfabeto. Então, chega no balcão a atenção ao paciente e atuava orientando-o so- da farmácia e a gente vê que o paciente é humilde bre os cuidados com o uso dos medicamentos, e até pergunta de uma forma ou de outra. A gente era percebido um sentimento de satisfação com desenha, faz o desenho de como ele tem que tomar, a profissão, ainda que os locais de trabalho fos- explica os efeitos. Isso sim, para mim, traduz Aten- sem considerados inadequados. ção Farmacêutica (farmacêutico de farmácia de rede estadual). Significado atribuído ao termo O trabalho de campo permitiu verificar ain- Atenção Farmacêutica da que já são realizadas, pelos farmacêuticos, várias atividades com pontos de convergência O objetivo em arguir sobre esse ponto deri- com a prática da Atenção Farmacêutica, tais vava do interesse em saber em que proporções como a orientação farmacêutica e um esboço da havia domínio sobre esse tema e como essa apre- dispensação. Elas, entretanto, ainda parecem ser ensão de conceitos poderia se refletir na constru- secundárias, executadas muito mais por dispo- ção, na prática diária dos profissionais, de um nibilidade e interesse intrínsecos de alguns pro- trabalho com foco no paciente. fissionais do que resultando de um processo in- Via de regra, os entrevistados demonstraram teriorizado e ampliado de compreensão e valori- ter pouca compreensão do significado do termo zação por parte da categoria profissional como Atenção Farmacêutica, retratando seu pouco con- um todo, de seus órgãos formadores e fiscaliza- tato com essa terminologia. A expressão Atenção dores e dos estabelecimentos comerciais. Farmacêutica foi confundida com a Assistência Farmacêutica, ou era interpretada como mera atenção, na acepção de ser agradável e dar ouvi- Considerações finais dos ao que o paciente fala e não ao propósito de fornecer informações que minimizem o risco de Captar as percepções e os relatos dos farmacêu- problemas relacionados com os medicamentos. ticos sobre a dinâmica da sua prática profissio- Atenção Farmacêutica é o farmacêutico estar nal mostrou-se um caminho adequado para iden- na drogaria dando atenção ao cliente (farmacêu- tificar alguns dos fatores que podem estar impe- tico de farmácia de rede local). dindo o exercício pleno do farmacêutico como Entretanto, mesmo sem domínio sobre o ter- legítimo profissional de saúde nas farmácias co- mo, mesmo sem estabelecer com precisão as rela- munitárias. ções das atividades de Atenção com o trabalho clí- Uma possível limitação do estudo pode ser nico, observou-se que certa transição já se proces- em razão do perfil da região alvo da pesquisa. sa na prática profissional relatada pelos entrevis- Contudo, os achados se alinham com a realida- tados, na medida em que se referem ao paciente de observada pela pesquisadora no cotidiano das como eixo principal do seu trabalho, quando de- fiscalizações nas farmácias comunitárias do es- fendem um envolvimento mais específico do pro- tado do Rio de Janeiro, indicando que as diversi- fissional com a farmacoterapia e quando recla- dades entre as regiões desse estado, no que tange mam e reiteram a importância da existência de aos aspectos abordados, podem ser pequenas. condições concretas para a realização de atividades Neste trabalho, a partir das falas sobre as tra- técnicas nas farmácias deslocadas para o benefício jetórias profissionais e os processos de trabalho dos pacientes no uso de seus medicamentos. dos farmacêuticos atuantes em três tipos de far- Para mim, Atenção Farmacêutica é como eu mácias comunitárias – familiares, de rede local e ajo. É transformar todo o aprendizado que eu tive de rede estadual –, foi possível identificar pontos na faculdade em relação à farmacologia em algo considerados críticos no seu cotidiano, bem como que possa favorecer a população em geral, que pos- a presença de elementos relacionados com o estí- sa transformá-la com o meu conhecimento, que mulo ou, contrariamente, à obstaculização dos possa trazer conhecimento para as pessoas. É agir processos relacionados à implantação de práticas em prol da qualidade de vida das pessoas (farma- de Atenção Farmacêutica nas farmácias e drogari- cêutico de farmácia de rede estadual). as. Nota-se, ainda, que o itinerário trilhado na Significa estar interagindo com o paciente, prática profissional fica a cargo de cada um, soli- ouvindo, entendendo o que ele quer dizer. E eu, da tariamente, sendo o esforço para prover mudan- forma mais didática, vou orientá-lo para que ele ças no presente paradigma da prática farmacêuti- possa realmente aderir ao tratamento e, assim, o ca e os méritos desse empenho considerados iso- 3549 Ciência & Saúde Coletiva, 15(Supl. 3):3541-3550, 2010

lados, com os caminhos para se chegar ao objeti- seus limites e das dificuldades que são enfrenta- vo desejado se mostrando sinuosos e acidentados. das no exercício da sua prática é um dos impera- Os encontros com os entrevistados e a opor- tivos desse momento de revitalização da profis- tunidade de fazê-los refletir ao responder sobre são farmacêutica. questões vivenciadas da prática profissional in- Schostack24 ressalta que o ato profissional dicou, muitas vezes, situações de desânimo pre- farmacêutico está fundamentado em três princí- sentes nos grupos de farmacêuticos jovens e de pios: o conhecimento efetivo do medicamento, o rede local e estadual, que se sentem inibidos pro- relacionamento com o usuário de medicamento fissionalmente pela pressão exercida pela orga- e com o prescritor do medicamento. O que seria nização das farmácias comunitárias, quanto à esperado da prática farmacêutica ou atenção à realização de ações de orientação e apoio quanto saúde nas farmácias seria a integração dessas três ao uso de medicamentos à população. Muitos matrizes proporcionando novas possibilidades desses farmacêuticos, aos poucos, tendem a as- para a profissão, resultando em ações que ga- sumir as posições desejadas pelos seus emprega- rantissem que o uso do medicamento viesse a dores de somente se ater ao controle e dispensa- ocorrer com eficácia e segurança, visando atingir ção de medicamentos da Portaria no 344/98 SVS/ resultados terapêuticos definidos na saúde e na MS, reduzindo o espectro das atividades com qualidade de vida do paciente, atendendo assim foco no paciente e seu processo de cuidado. a proposta inicial de Atenção Farmacêutica de Já alguns dos farmacêuticos mais experientes Hepler e Strand25. transmitem uma mensagem e uma visão mais As questões apontadas neste artigo suscitam otimistas, de que a superação do modelo da atu- a recondução do debate acerca dos elementos ne- al prática profissional nas farmácias comunitá- cessários para o melhor desempenho da prática rias é possível e se realiza na medida em que a farmacêutica nas farmácias comunitárias, direci- população os procura e os reconhece como os onada a maximizar a contribuição de sua atua- profissionais do medicamento. Nesses encon- ção profissional para as necessidades relaciona- tros, independentemente da tipologia da farmá- das ao uso de medicamentos pela sociedade. Nes- cia, eles disseram se sentir realizados profissio- sa perspectiva, é preciso salientar que a mudança nalmente, quando podiam oferecer aos seus pa- do paradigma ainda é um projeto, um percurso. cientes um cuidado que se expressava em uma É uma trajetória a ser buscada. Podemos sugerir efetiva contribuição para a compreensão de seu um caminho: onde o interesse maior para esse adoecimento, do processo de cuidado e da me- projeto profissional esteja voltado para o seu tra- lhor forma de utilização dos medicamentos. jeto, isto é, para o processo de implementação Quando a prática farmacêutica estava asso- dessa prática. ciada com o estabelecimento de vínculos, forne- cimento de orientações sobre o uso de medica- mentos e atitudes de corresponsabilidades no cuidado com o paciente, uma carga maior de sa- tisfação era sentida pelos profissionais na reali- zação de suas atividades nas farmácias. Temos então a implantação de práticas foca- das no paciente, tais como a Atenção Farmacêu- tica como um dínamo para a mudança do pa- drão de atitudes e comportamentos encontra- dos no cotidiano dos farmacêuticos. Apesar de não serem conhecedores do conceito teórico da Atenção Farmacêutica, eles expressam conhecer o valor dessa prática e a concepção de que é ne- cessário haver uma atitude pró-ativa, compro- misso com o paciente e uma mudança de com- Colaboradores portamento, itens embutidos no conceito brasi- leiro de Atenção Farmacêutica. CRG Bastos trabalhou na organização e execu- A Atenção Farmacêutica não é uma realidade ção da pesquisa e na concepção teórica, elabora- nas farmácias comunitárias estudadas, e existe ção e redação do texto; R Caetano participou um caminho se percorrer até que possa ser. Ter o como orientadora durante todas as etapas da farmacêutico presente nas farmácias, com certe- elaboração do artigo, colaborando na análise za, é uma grande conquista, mas ter a clareza dos crítica do texto, redação e revisão final. 3550

Agradecimentos Administração em Saúde a Oficina de Artigos Científicos, desejando que essa iniciativa se torne Bastos CRG, Caetano R Ao Instituto de Medicina Social da Universidade uma constante na instituição. Em especial, aos do Estado do Rio de Janeiro pela iniciativa em professores Kenneth Rochel de Camargo Jr., Ro- oferecer aos alunos dos cursos de mestrado e seni Pinheiro e Ruben Araujo de Mattos, pelas doutorado do Departamento de Planejamento e discussões e contribuições ao longo do processo de elaboração do artigo.

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