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Nº 521 | Ano XVIII | 7/5/2018

1968 – um ano múltiplo Meio século de um tempo que desafiou diversas formas de poder Patrick Viveret Glaudionor Barbosa Enéas de Souza Larissa Jacheta Riberti Erick Corrêa Joana Salém Maria Paula Araújo Olgária Matos Alana Moraes de Souza Leia também ■ Róber Iturriet Ávila ■ Castor Bartolomé Ruiz ■ Bruno Lima Rocha EDITORIAL

1968 – um ano múltiplo Meio século de um tempo que desafiou diversas formas de poder

uando se fala em 1968, parece que se porque explodiram revoltas de jovens, de artis- trata de algo uno, um acontecimento tas e do operariado em vários lugares do mundo. coeso. No entanto, o mais correto seria Para a antropóloga Alana Moraes de Sou- Qaludir aos vários 1968, ocorridos em geografias za, Maio de 68 – marcante para a história das e contextos tão distintos como a França, a Tche- contestações ao capitalismo e às estruturas au- coslováquia, os Estados Unidos, o México, o toritárias – não foi superado, nem derrotado. Brasil e outros países latino-americanos. Ela diz que as lutas vão sedimentando substra- O ano de 1968 é múltiplo de sentidos, signi- tos, e toda vez que a sociedade se movimenta, de ficados e alcances. Na base da efervescência, algum modo os substratos emergem. estão as rebeliões estudantis e de trabalhadores O cientista político Glaudionor Barbosa que inflamaram ruas e desafiaram diversas for- vislumbra que é preciso consolidar uma narra- mas de poder. Chefes de Estado, ditadores, em- tiva de 1968 que aponte para um futuro melhor presários, reitores, professores e as tradicionais do que o presente. estruturas familiares, sindicais e partidárias – todos foram questionados e tensionados. A historiadora Larissa Jacheta Riberti, ao dis- cutir a realidade mexicana, projeta que a próxima Meio século depois, com a força que as efemé- eleição presidencial vai coincidir com os 50 anos do rides transferem para a memória, é importante Massacre de Tlatelolco, considerado “a expressão ampliar o entendimento que se faz de um ano tão máxima de um Estado autoritário, da prática re- mítico e incensado, a ponto de se cogitar que, para pressiva”. Ao tratar do Chile, a historiadora Joana alguns, ele não terminou – ou, pelo menos, segue Salém Vasconcelos lembra que Salvador Allen- 2 ecoando. Havia ideias revolucionárias que impac- de foi eleito em 1970 no rastro de 1968. taram os anos 1970, principalmente no campo cultural. No entanto, existem outras que mobiliza- A filósofa Olgária Matos, instigada a refletir ram fortemente na época e não surtiram os efeitos sobre Maio de 68, escreveu que uma revolução pretendidos, como o questionamento acerca das não se reconhece pela tomada do poder, mas expressões de poder, das hierarquias e das insti- por sua potência de sonho. tuições. Na França, cuja capital é associada instan- Nesta edição, há ainda entrevistas com o eco- taneamente aos acontecimentos de 1968, a pulsão nomista Róber Iturriet Avila; com o professor libertária estimulava os jovens, que estampavam de Filosofia Castor Bartolomé Ruiz; e com o seus desejos e anseios em cartazes e muros. professor de Direito Guilherme de Azevedo. Para discutir algumas perspectivas dos vários Leia também o artigo do professor Bruno Lima 1968, a revista IHU On-Line desta semana re- Rocha sobre a Guatemala, que, para os Estados úne uma série de pesquisadores e pesquisadoras. Unidos, é o “escoadouro das deportações de imi- Patrick Viveret, filósofo e escritor francês, fala grantes ilegais centro-americanos”. da ebulição dos meses, desde 1967, que antecede- A todas e a todos uma boa leitura e uma exce- ram a tomadas das ruas, universidades e fábricas lente semana! por estudantes e trabalhadores franceses. Para o economista, psicanalista e crítico de cine- ma Enéas de Souza, é indispensável recuperar o sentido dos gestos de renovação da década de 1960, pois a grande herança daqueles anos vem da ideia lacaniana de não ceder do seu desejo, e isso atravessa a subjetividade e as ações sociais. O cientista social Erick Corrêa afirma que 68 foi a maior greve geral selvagem da história da França, mas saiu vencida. A historiadora Maria Paula Araújo destaca que o legado mais evidente de 68 no Brasil foi Divulgação exposição o deslocamento da liderança estudantil para a No coração de maio de 1968 luta armada. Para ela, trata-se de um ano mítico

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Sumário

4 ■ Temas em destaque 6 ■ Agenda 8 ■ Róber Iturriet Avila: Austeridade: a máquina estatal de produzir desigualdades 13 ■ Guilherme de Azevedo: Quando a comunicação é negada, o outro é reduzido e a violência eclode 20 ■ Tema de capa | Patrick Viveret: O interminável Maio de 1968 24 ■ Tema de capa | Enéas de Souza: É indispensável recuperar o sentido dos gestos de renovação dos anos 60 30 ■ Tema de capa | Erick Corrêa: 68 foi a maior greve geral selvagem da história da França, mas saiu vencida 39 ■ Tema de capa | Maria Paula Araújo: Legado mais evidente de 68 foi o deslocamento da liderança estudantil para a luta armada no Brasil 43 ■ Tema de capa | Alana Moraes de Souza: Maio de 68 não foi superado, nem derrotado 47 ■ Tema de capa | Glaudionor Barbosa: É preciso consolidar uma narrativa de 1968 que aponte para um futuro melhor do que o presente 52 ■ Tema de capa | Larissa Jacheta Riberti: A tarefa de não esquecer os herdeiros perpetradores da repressão no México 58 ■ Tema de capa | Joana Salém: 1968 e o Chile: um olhar para além da fetichização do Maio francês 66 ■ Tema de capa | Olgária Matos: Uma revolução não se reconhece pela tomada do poder, mas por sua potência de sonho 3 68 ■ Castor Bartolomé Ruiz: A produção de violência e morte em larga escala: da biopolítica à tanatopolítica 75 ■ Publicações | Joel Decothé Junior: Deslocamentos genealógicos da economia teológica segundo Agamben 76 ■ Publicações | Viviane Zarembski Braga: O campo de concentração: um marco para a (bio) política moderna 77 ■ Crítica internacional | Bruno Lima Rocha: Guatemala: incerteza no coração maia 79 ■ Outras edições

Diretor de Redação Fachin, Cristina Guerini, Evlyn Zilch, Inácio Neutzling Anielle Silva, Victor Thiesen, William ([email protected]) Gonçalves, Stefany de Jesus Rocha, Wagner Fernandes de Azevedo e Éric Coordenador de Comunicação - IHU Machado. Ricardo Machado – MTB 15.598/RS ([email protected]) Jornalistas João Vitor Santos – MTB 13.051/RS ([email protected]) ISSN 1981-8769 (impresso) Patricia Fachin – MTB 13.062/RS ISSN 1981-8793 (on-line) ([email protected]) Vitor Necchi – MTB 7.466/RS ([email protected]) A IHU On-Line é a revista do Institu- to Humanitas Unisinos - IHU. Esta Revisão Instituto Humanitas Unisinos - IHU publicação pode ser acessada às segun- Carla Bigliardi das-feiras no sítio www.ihu.unisinos.br e Av. Unisinos, 950 | São Leopoldo / RS no endereço www.ihuonline.unisinos.br. Projeto Gráfico CEP: 93022-000 Ricardo Machado Telefone: 51 3591 1122 | Ramal 4128 e-mail: [email protected] Editoração A versão impressa circula às terças-fei- Gustavo Guedes Weber ras, a partir das 8 horas, na Unisinos. O Diretor: Inácio Neutzling conteúdo da IHU On-Line é copyleft. Atualização diária do sítio Gerente Administrativo: Jacinto Schneider Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia ([email protected])

EDIÇÃO 521 TEMAS EM DESTAQUE

Entrevistas completas em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias Confira algumas entrevistas publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU na última semana. Fim do acesso à gratuidade judiciária e a perversidade da reforma trabalhista “A gratuidade da justiça constitui elemento de cidadania, que inclusive justifica a existência da Justiça do Trabalho. Trata-se de permitir acesso à justiça a quem não tem condições financeiras para isso.”

Valdete Souto Severo, doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo - USP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.

Reforma trabalhista: Menor autonomia do trabalhador sobre o tempo social “A liberdade do contratante de demitir e recontratar imediatamente, por meio de terceirização ou do trabalho intermitente, é devastador para a classe traba- lhadora brasileira, quer seja do ponto de vista da garantia da massa salarial da renda, quer seja do ponto de vista das jornadas e condições de trabalho.” Ruy Gomes Braga Neto, especialista em Sociologia do Trabalho e professor no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP.

4 A democracia brasileira está ‘balançando’. O crime organizado é uma das principais ameaças “O caos urbano e a violência indiscriminada são incompatíveis com um regime de liberdades democráticas. O assassinato de Marielle Franco é uma trágica evidência neste sentido, suscitando a convicção de que o crime organizado faz o que quer, quando, como e onde quer.” Daniel Aarão Reis, graduado e mestre em História pela Université de Paris VII e doutor em História Social pela USP, professor da UFF.

A regulação de dados pessoais e a perda de controle sobre alguns aspectos da vida “A legislação serve para criar instrumentos para que o cidadão possa saber o que acontece com seus dados e para que ele possa negar o forneci- mento de dados quando eles forem injustificados. De uma forma geral, o regulamento faz com que o processo seja mais transparente.” Danilo Doneda, advogado, mestre e doutor em Direito Civil pela UERJ especialista em temas de proteção de dados e privacidade.

Retirada do símbolo de transgênico é afronta aos direitos constitucionais “[a retirada] facilitará alocação de recursos públicos para as lavouras transgênicas, bem como a rolagem e o perdão de dívidas do agronegócio a elas associado. Beneficiará o mercado de agrotóxicos, especialmente de herbicidas, com as implicações conhecidas.” Leonardo Melgarejo, engenheiro agrônomo e doutor em Engenharia de Produção. É vice-presi- dente regional Sul da Associação Brasileira de Agroecologia.

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Textos na íntegra em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias Confira algumas notícias públicas recentemente no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Kroton Educacional: Papa Francisco às ONU: ‘Quando governos ‘nunca experimentamos vítimas de Karadima: ‘’Eu fracassam no direito um inimigo como esse’ fui parte do problema, eu à moradia, grandes causei isso e peço perdão’’ tragédias acontecem’

A Kroton Educacional, maior “Eu fui parte do problema, A mais alta autoridade das empresa de educação do mun- eu causei isso e peço perdão” Nações Unidas para assun- do, vai se tornar ainda maior. (“Yo fui parte del problema, tos de moradia e populações Na última terça-feira (24) saiu yo causé esto y pido per- sem-teto, a advogada cana- o anúncio de que a companhia dón”). Essa frase, de signi- dense Leilane Farha diz que assumiu o controle da Somos ficado inequívoco, teria sido o incêndio que derrubou o Educação – dona do sistema repetida por Francisco aos edifício Wilton Paes de Al- de ensino Anglo e de editoras três chilenos – Andrés Mu- meida no centro de São Pau- como a Ática e Scipione, gran- rillo, James Hamilton e Juan lo no último dia 1º de maio des produtoras de material Carlos Cruz – recebidos por causa tristeza, mas não sur- didático. mais de duas horas, respec- presa. tivamente, nos dias 27, 28 A entrevista completa com Allan A entrevista completa com Leilane Kenji está disponível em http://bit. e 29 de abril, em encontros Farha está disponível em http://bit. ly/2weMuBW. muito privados, mas não se- ly/2wboBLI. cretos.

A reportagem completa está disponí- vel em http://bit.ly/2K29iXV 5

A detenção de Teresa Lucro recorde do Um novo progressismo Gimenes Guarani Mbya Itaú durante a crise é latino-americano pela Guarda Municipal de anomalia do POA e o direito à diferença capitalismo brasileiro

A indígena foi detida no Apesar da profunda crise “Independentemente de se domingo, 29-4-2018, na econômica que o Brasil atra- vão ganhar ou perder nas frente dos dois filhos, por vessa, o Itaú anunciou esta próximas eleições, já pode- estar com o macaquinho de semana um lucro líquido mos afirmar que surgiu ou- estimação da família en- de R$ 6,419 bilhões apenas tra onda progressista na re- quanto vendia artesanatos no primeiro trimestre deste gião”. A reflexão é de Alfredo no Parque Farroupilha, em ano, uma alta de 3,9% na Serrano Mancilla, econo- Porto Alegre. Uma mulher, comparação com o mesmo mista, atual diretor executi- que segurava uma coleira período de 2017. vo do Celag (Centro Estra- com seu cachorro de estima- tégico Latino-Americano de A reportagem completa está disponí- ção, a denunciou. vel em http://bit.ly/2HPQ5YI. Geopolítica). A nota completa do CIMI está disponí- O artigo completo está disponível em vel em http://bit.ly/2HOMDlb. http://bit.ly/2rgppJs.

EDIÇÃO 521 AGENDA

Programação completa em ihu.unisinos.br/eventos

Estratégias para a O combate às Roda de conversa economia brasileira desigualdades e a O Movimento e a sua trajetória necessidade de uma Feminista, hoje macroeconômica de reforma tributária 2003-2017 no Brasil

8/mai 9/mai 10/mai

Horário Horário Horário 19h30min 19h30min 17h30min Conferencista Conferencista Participação Profa. Dra. Laura Carvalho Prof. Dr. Róber Iturriet Avila Profa. Dra. Paula Sandrine – USP – UFRGS Machado – UFRGS Local Local Local Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU Companheiros – IHU Companheiros – IHU Campus Unisinos Campus Unisinos Campus Unisinos São Leopoldo São Leopoldo São Leopoldo

6 Problemas de Gênero. A biopolitização A inclusão como Feminismo e subversão das plataformas: possibilidade de da identidade capitalismo enfrentamento às Apresentação e debate de vigilância e violências da obra de Judith Butler resistências

10/mai 14/mai 17/mai

Horário Horário Horário 19h30min 19h30min 17h30min Conferencista Conferencista Conferencista Profa. Dra. Paula Sandrine MS Rafael Augusto Ferreira Prof. Dr. Guilherme de Machado – UFRGS Zanatta – Idec – SP Azevedo – Unisinos Local Local Local Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU Companheiros – IHU Companheiros – IHU Campus Unisinos Campus Unisinos Campus Unisinos São Leopoldo São Leopoldo São Leopoldo

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EDIÇÃO 521 ENTREVISTA

Austeridade: a máquina estatal de produzir desigualdades Róber Iturriet Avila analisa a maneira pela qual o Brasil intensifica as desigualdades ao aplicar uma política tributária que privilegia a taxação ao consumo e não à renda

Ricardo Machado

ompreender as múltiplas di- pontua. Nesse cenário, uma confusão mensões da desigualdade no muito comum que ocorre é comparar o Brasil requer levar em conta os Brasil e a Suíça, que possuem percen- profundosC desajustes nas cargas tribu- tuais de arrecadação semelhantes, mas tárias, isso porque a política tributária rendas per capita absolutamente distin- se caracteriza por ser intensamente tas. “Não faz sentido comparar a carga regressiva. O que isso significa? Que tributária do Brasil, que é de 32,98%, os mais pobres pagam mais impostos, com outro país que possua a mesma à medida que a taxação nos produtos carga tributária e um nível de renda per compromete mais a renda que das po- capita cinco vezes maior. O segundo pulações mais abastadas, cujo rendi- obterá uma arrecadação per capita cin- mento financeiro é, proporcionalmen- co vezes maior, o que fará com que os te, menos taxado. “O Brasil já teve uma serviços públicos sejam sensivelmente 8 tributação mais progressiva, entretan- melhores, ainda que a carga fiscal seja a to, desde os governos militares as alí- mesma. É preciso ter ciência que nosso quotas máximas de imposto de renda, país não é rico e somos muito desiguais, que já atingiram 65%, foram reduzidas não somos a Suíça, e comparar nossos até o patamar atual de 27,5%. Na Ale- serviços com os suíços é comparar coi- manha a alíquota chega a 45%, na Sué- sas incomparáveis com argumentos fa- cia 56,7%, na Turquia 35% e no México laciosos”, problematiza. 30%”, descreve Róber Iturriet Avila, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Róber Iturriet Avila é doutor em Tal perfil tributário reflete uma das Economia pela Universidade Federal razões pelas quais o Brasil ocupa uma do Rio Grande do Sul - UFRGS e pro- posição destacada em nível de desigual- fessor do Departamento de Economia e dade no contexto mundial, trazendo-o Relações Internacionais da UFRGS. Foi para as primeiras posições deste ver- professor da Universidade do Vale do gonhoso ranking. “O resultado é que o Rio dos Sinos - Unisinos, pesquisador Brasil está entre os países com maiores da Fundação de Economia e Estatísti- desigualdades do mundo, que tributa ca - FEE e diretor sindical do Sindicato proporcionalmente mais os mais po- dos Empregados em Empresas de As- bres e menos os mais ricos, encontran- sessoramento, Perícias, Informações e do poucos paralelos no mundo, como Pesquisas e de Fundações Estaduais do o caso da Arábia Saudita, país rico em Rio Grande do Sul - Semapi. petróleo e extremamente desigual”, Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a política Róber Iturriet Avila – A cobran- riqueza nas sociedades capitalistas. tributária brasileira ajuda a ex- ça de tributos é uma das maneiras Uma tributação progressiva é aque- plicar nossos níveis de concen- constituídas para reduzir a tendên- la em que os impostos sobre renda tração de renda e desigualdade? cia de concentração de renda e de e patrimônio são mais elevados, ou

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“Os mais pobres consomem uma parcela maior de sua renda, dessa maneira acabam contribuindo relativamente mais”

seja, os indivíduos mais ricos con- pessoas, dentre elas as 20,9 mil mais há vasto espaço para reduzir as de- tribuem mais para financiar os ser- ricas do Brasil (0,01%), que possuem sigualdades crônicas do país através viços públicos. Uma tributação mais patrimônio médio de R$ 40 milhões de uma reforma tributária, que sem- regressiva tem participação maior (declarados) e que pagaram de im- pre encontrou muita resistência de dos tributos sobre consumo de bens posto 1,56% de sua renda total, uma forças conservadoras, na grande im- e serviços, os quais incidem sobre vez que boa parcela de sua renda vem prensa, nas federações empresariais todos indivíduos sem distinguir seu de dividendos e é isenta de imposto. e no Congresso Nacional. poder aquisitivo. Entretanto, os Atualmente, 51,3% dos impostos mais pobres consomem uma parcela recolhidos nas três esferas de gover- maior de sua renda, dessa maneira IHU On-Line – Por que a alter- acabam contribuindo relativamente no têm origem no consumo de bens nativa de congelar gastos públi- mais. O Brasil já teve uma tributação e serviços, 25% na folha de salário, cos é um tiro no pé do ponto de mais progressiva, entretanto, desde 18,1% na renda, 3,9% na proprieda- vista das políticas públicas? de e 1,7% em demais impostos. Na os governos militares as alíquotas Róber Iturriet Avila – A Emen- 9 Dinamarca e nos Estados Unidos, máximas de imposto de renda, que da Constitucional 95 é uma profun- por exemplo, metade da arrecadação já atingiram 65%, foram reduzidas da alteração do Estado, que se dará está centrada em impostos sobre a até o patamar atual de 27,5%. Na paulatinamente nos próximos 20 renda e lucros. No Peru, Chile e Co- Alemanha a alíquota chega a 45%, anos. Como a despesa está congela- lômbia tais tributos representam, na Suécia 56,7%, na Turquia 35% e da em termos reais, à medida que respectivamente, 39,9%, 35,8% e no México 30%. o PIB aumentar, a relação despesa 33,5% da arrecadação. Em 1995, instituiu-se os “juros so- pública/PIB irá cair. Atualmente, a bre o capital próprio” (JSCP). Trata- Os impostos sobre patrimônio União arrecada 19,8% das receitas se de uma dedução que as empresas compõem 3,9% da carga tributária. tributárias em relação ao Produ- podem efetuar, contabilizando como No Reino Unido, na Colômbia e na to Interno Bruto. As despesas com “custo”, que seria a remuneração do Argentina os impostos sobre patri- INSS e com inativos da União re- capital inicial, através de juros. En- mônio representaram, respectiva- presentam 7,93% do PIB. Quando se consideram os gastos dos estados e quanto custo, portanto, é isento de mente, 12,3%, 10,6% e 9,2% da carga municípios, as despesas com inati- imposto para as empresas. A partir total. O quinto maior país do mundo vos chegam a 13,15% do PIB. de 1996, não ficariam mais sujeitos em extensão recolhe tributos sobre ao imposto de renda os lucros ou di- áreas rurais que compõem 0,04% da Nos próximos 20 anos este valor vai videndos. Antes dessa isenção, os di- arrecadação. aumentar, mesmo que haja mais de videndos eram tributados de forma A tributação sobre heranças é uma reforma da Previdência, uma vez linear e exclusiva na fonte, com uma também muito baixa em termos que estamos em um processo de enve- alíquota de 15%. internacionais. O Imposto sobre lhecimento populacional. Além disso, até 2030 estima-se que a população Averiguando-se as alíquotas máxi- Transmissão Causa Mortis e Doação brasileira será 20,8 milhões maior mas de dividendos de alguns países, representa 0,2% da arrecadação bra- do que é hoje, 10% maior, e os gastos é verificado que na Dinamarca é de sileira e a alíquota varia por estado, públicos estarão congelados e com 42%, na França de 38,5%, no Canadá mas a média é de 4%. No Reino Uni- tendência crescente nos gastos previ- de 31,7%, na Alemanha é de 26,4%, do é de 40%. Em outros países, ela é denciários. Ou seja, os demais serviços na Bélgica é de 25%, nos Estados variável: nos Estados Unidos, a mé- públicos terão que ser reduzidos em Unidos de 21,2% e na Turquia 17,5%. dia é de 29%; no Chile, 13%. termos absolutos e a despesa pública Cabe destacar que as isenções de di- Em suma, a tributação no Brasil é per capita irá se reduzir de maneira videndos beneficiaram 2,1 milhões de uma das mais injustas do mundo e acentuada, necessariamente.

EDIÇÃO 521 ENTREVISTA

As maiores despesas públicas são, empresas impacta na desigual- crescimento econômico através do nesta ordem: previdência, juros, edu- dade? Medidas como essa ilus- apoio estatal a grandes empresas cação e saúde, mas os juros não são tram despreparo estratégico e a eficácia é questionável. As de- despesas primárias, portanto, não ou, ao contrário, uma política sonerações fizeram falta no orça- fazem parte da conta. As despesas que privilegia a concentração mento e a taxa de investimento não com educação e saúde devem ser as de renda? cresceu tanto. mais afetadas. Se o Brasil crescer em Róber Iturriet Avila – Este pon- média 2,5% ao ano nos próximos 20 to é também bastante controverso. anos, as despesas da União serão de IHU On-Line – O que há de Até aqui tratamos da tributação so- 12% do PIB em 2036, ao passo que verdade e de mentira sobre o bre a pessoa física. As empresas no hoje são de 19,8%. A Emenda Consti- gasto público? Como se divide Brasil têm uma carga fiscal relati- tucional 95 é uma redução do Estado o orçamento da União e quais vamente mais elevada. Entretanto, imposta constitucionalmente. são nossos principais gargalos? o investimento delas é indispensá- Afinal gastamos muito ou - gas vel para o crescimento econômico. tamos mal nossos recursos? IHU On-Line – O que a opção Nessa medida, poderia haver uma Róber Iturriet Avila – Há mui- do Brasil, em taxar mais o con- ampliação da tributação sobre as tos mitos repetidos de modo reitera- sumo que a renda, revela em pessoas físicas e uma redução dos do e que se tornam falsas noções dis- termos de política econômica? impostos sobre as pessoas jurídicas, seminadas generalizadamente. Há Quais são os impactos disso na de forma a estimular o reinvesti- um mito de que o Brasil tem uma das economia nacional? mento dos lucros. Na mesma linha, o Brasil precisa ter grandes players maiores cargas tributárias do mun- Róber Iturriet Avila – A confi- capazes de inserir o país nas cadeias do. Não é das mais baixas, mas exis- guração dos tributos é estabelecida globais de valor; precisamos de tem países com carga fiscal muito pelas forças políticas dominantes que grandes multinacionais. maior. Há outro mito de que ela vem disputam as funções do Estado e seu crescendo de forma persistente, mas financiamento. Os diferentes estratos Historicamente, o Brasil se desen- na verdade ela está relativamente es- da sociedade estão organizados poli- volveu com o apoio do Estado, atra- tável desde 2002 e com uma ligeira 10 ticamente e possuem seus respectivos vés de políticas industriais, crédito queda desde 2005. subsidiado etc. Tais políticas estão interesses, valores, ideias, narrativas, Há um mito de que houve uma corpos teóricos e representantes. em crescente questionamento e é preciso estudar esses temas com “gastança” nos governos petistas. O Imposto de Renda de Pessoa responsabilidade. De outro lado, Quando se observam os dados, é Física representa 2,7% do produto estudos recentes de Rodrigo Orair, possível perceber que houve uma brasileiro. Nos países que integram Fernando Siqueira e Sérgio Gobet- elevação de 3 pontos percentuais do a Organização para a Cooperação e ti apontam que o multiplicador do gasto da União neste período. A des- Desenvolvimento Econômico, esse gasto público nos subsídios e nas pesa com pessoal é estável em parti- valor corresponde a 8,5%, em média. desonerações é virtualmente zero, cipação do Produto. Houve aumento Na Turquia, por exemplo, é 13,5% e seja nos momentos de recessão, seja em gastos de assistência social, polí- ticas de transferência de renda, por no México 13,6%. nos momentos de expansão econô- exemplo, de 1 ponto percentual do mica; ao contrário do que ocorre Isso quer dizer que as camadas de PIB e há uma tendência, desde 1997, com o investimento público, que renda mais elevadas, os grandes pro- de ampliação dos gastos previden- possui uma resposta muito eleva- prietários de áreas rurais, acumulado- ciários, em decorrência da Consti- da em momentos recessivos. Não é res de ativos financeiros, os grandes tuição de 1988 e do envelhecimento possível também deixar de apontar empresários e a alta burocracia obtive- populacional, independentemente que o governo de Dilma Rousseff1 ram maior sucesso em fazer valer seus dos governos de plantão. interesses, ideias, valores e narrativas. apostou muito nas desonerações e no crédito subsidiado para gerar Desde 2009, houve uma amplia- O resultado é que o Brasil está en- ção das desonerações e subsídios, tre os países com maiores desigual- 1 Dilma Rousseff (1947): economista e política bra- incluindo créditos, os quais apre- dades do mundo, que tributa pro- sileira, filiada ao Partido dos Trabalhadores – PT, eleita duas vezes presidente do Brasil. Seu primeiro mandato sentaram resultados duvidosos. Nos porcionalmente mais os mais pobres iniciou-se em 2011 e o segundo foi interrompido em 31 de agosto de 2016. Em 12 de maio de 2016, foi afasta- governos Lula, houve ampliação do e menos os mais ricos, encontrando da de seu cargo durante o processo de impeachment investimento público, que contri- poucos paralelos no mundo, como o movido contra ela. No dia 31 de agosto, o Senado Fe- deral, por 61 votos favoráveis ao impeachment contra buiu para o crescimento econômico caso da Arábia Saudita, país rico em 20, afastou Dilma definitivamente do cargo. O episódio foi amplamente debatido nas Notícias do Dia no sítio consistente daquele período. petróleo e extremamente desigual. do IHU, como, por exemplo, a Entrevista do Dia com Rudá Rici intitulada Os pacotes do Temer alimentarão Nos estados, o gasto com pessoal a esquerda brasileira e ela voltará ao poder, disponível em http://bit.ly/2bLPiHK. Durante o governo do ex-pre- ativo é também estável em participa- IHU On-Line – Como a políti- sidente Luiz Inácio Lula da Silva, assumiu a chefia do ção do PIB. Já nos municípios, houve Ministério de Minas e Energia e posteriormente da Casa ca de desonerações às grandes Civil. (Nota da IHU On-Line) uma ampliação dos gastos com pes-

7 DE MAIO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE soal, em parte porque alguns servi- IHU On-Line – Como as po- nômica estava em desaceleração em ços públicos foram municipalizados, líticas de ajuste econômico 2014. Havia uma pressão do merca- como é o caso da saúde pública. Em baseadas na chamada “auste- do financeiro e de atores políticos síntese, a despesa que tem crescido ridade” impactam os níveis de para que o governo efetuasse um sistematicamente é mesmo oriunda desigualdade? ajuste fiscal. Isso foi implementado de benefícios sociais, com destaque por Joaquim Levy em 2015, houve Róber Iturriet Avila – A aus- para a previdência. o maior corte de gastos desde que teridade fiscal é também um tema existe a Lei de Responsabilidade Entretanto, temos problemas, é controverso e os economistas são Fiscal. Seus defensores diziam que a divididos nesta questão. Entretanto, claro. A agenda de eficiência no redução do gasto melhoraria as con- muitos dos economistas que com- gasto público deve ser permanen- tas públicas, por reduzir o déficit e te. Ao contrário do que se imagina, põem o mainstream estão revendo traria crescimento econômico, pela o governo Dilma Rousseff arroxou suas posições. Uma redução do gasto melhoria das expectativas dos agen- parte do funcionalismo público, so- público tem efeitos recessivos. O Es- tes e pela redução das taxas de juros. bretudo do judiciário. Já o governo tado é o maior agente da economia. Concretamente, a austeridade fiscal Michel Temer preferiu impor um Suas despesas fazem parte do PIB, contribuiu para o PIB se contrair ajuste de longo prazo, através da uma redução do gasto impacta na 6,9% em dois anos (o que é espera- Emenda 95, e no curto prazo au- demanda, na produção, na renda, no do, os economistas sabem que corte mentou os gastos, como a reposição investimento, no nível de emprego. de gastos desacelera a economia). salarial para o judiciário (41,4%) e Alguns autores da corrente mains- ministério público (12%). Entre- tream defendem que uma contração A austeridade foi implementada tanto, ao se observar as despesas fiscal possui efeitos expansionistas em um momento que a economia com servidores, chama atenção que por melhorar as expectativas dos já estava em desaceleração, o resul- justamente estes setores possuem agentes e reduzir as taxas de juros, tado foi a explosão das taxas de de- rendimentos muito superiores à estimulando o investimento pri- semprego e a consequente redução média dos demais. Nosso judiciário vado e o crescimento econômico. expressiva do salário real. Houve au- é caríssimo, quando comparado a Entretanto, autores como Olivier mento de 11% nas taxas de extrema outros países. Os rendimentos são Blanchard, em artigo publicado pelo pobreza, retrocedendo aos índices 11 22,3 vezes superiores à renda mé- FMI, chamam atenção de que a po- de dez anos atrás. A relação Dívida/ dia do brasileiro. Ao mesmo tempo, lítica fiscal é, sim, um instrumento PIB saiu de um patamar de 56,7% do ponto de vista previdenciário, as importante de política anticíclica, do PIB para 74,5% em pouco tempo, reformas de 2003 e de 2012 corrigi- ou seja, para reverter recessões, por isso ocorreu a despeito da redução ram distorções, de modo que os no- exemplo. Já a política monetária do gasto público, já que se trata de uma relação. O PIB caiu e a rela- vos servidores públicos têm direitos (como redução de juros) tem um es- ção aumentou. As expectativas dos previdenciários semelhantes aos do paço escasso na conjuntura atual. agentes melhoraram e as taxas de setor privado. Citei autores dentre aqueles que juros caíram, mas a economia não se De todo modo, quando se efetuam defendem a austeridade. Entretanto, recuperou, não houve crescimento comparações internacionais sobre há uma longa tradição que sempre econômico, o salário caiu, a deman- os serviços públicos, geralmente defendeu que a austeridade fiscal da caiu, a dívida pública aumentou, não há ponderação acerca do nível traz efeitos importantes na atividade a desigualdade cresceu e o impacto de renda per capita no Brasil, que econômica, no nível de emprego, no social foi muito intenso. Apenas a é relativamente baixo. Assim, não valor dos salários, são os autores de inflação obteve resultado positivo. faz sentido comparar a carga tri- tradição keynesiana2 ou pós-keyne- O resultado foi desastroso. Não deu butária do Brasil, que é de 32,98%, siana. Eles não recomendam auste- certo, definitivamente. Muitos eco- com outro país que possua a mes- ridade fiscal em momentos em que a nomistas já apontavam, desde 2014, ma carga tributária e um nível de economia está desacelerando. que esse não era o caminho, dentre renda per capita cinco vezes maior. os quais me incluo. Os fatos recentes no Brasil são O segundo obterá uma arrecadação bastante didáticos. A atividade eco- per capita cinco vezes maior, o que IHU On-Line – Deseja acres- fará com que os serviços públicos 2 John Maynard Keynes (1883-1946): economista e sejam sensivelmente melhores, financista britânico. Sua Teoria geral do emprego, do centar algo? juro e do dinheiro (1936) é uma das obras mais impor- ainda que a carga fiscal seja a mes- tantes da economia. Esse livro transformou a teoria e a Róber Iturriet Avila – Quando política econômicas, e ainda hoje serve de base à polí- ma. É preciso ter ciência que nosso tica econômica da maioria dos países não-comunistas. se trata de Estado o debate públi- país não é rico e somos muito desi- Confira o Cadernos IHU Ideias n. 37, As concepções teórico-analíticas e as proposições de política econô- co é muito poluído e pouco infor- guais, não somos a Suíça, e compa- mica de Keynes, de Fernando Ferrari Filho, disponível mado. Não raro há a veiculação da em http://bit.ly/ihuid37. Leia, também, a edição 276 da rar nossos serviços com os suíços Revista IHU On-Line, de 06-10-2008, intitulada A crise dissociação entre a arrecadação dos é comparar coisas incomparáveis financeira internacional. O retorno de Keynes, dispo- governos e o retorno de bens e ser- nível para download em http://bit.ly/ihuon276. (Nota com argumentos falaciosos. da IHU On-Line) viços estatais. O intento, sistemati-

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camente alardeado, é bem-sucedido Estado na forma de subsídios que que permitem ao cidadão viver de em formar a opinião pública. Há um garantem a energia elétrica, a pro- forma civilizada e não no caos e na proposital obscurecimento e uma dução de alimentos, a erradicação da guerra, como foi marcada a história naturalização das ações estatais, os pobreza, a promoção da cidadania, o humana. quais, claramente, atendem a inte- zelo e a proteção de crianças e ado- Em síntese, não há um dia sequer resses específicos. lescentes vulneráveis, o cuidado de que o Estado não beneficie inúmeras É preciso ter em mente que a pessoas insanas, o investimento em conhecimento, a aquisição de imó- vezes a qualquer cidadão. Ele tem abrupta redução da mortalidade in- muitos problemas de eficiência, de fantil no Brasil não ocorreu por aca- veis e o avanço técnico. Há Estado desperdício, de corrupção, de dis- so. Para além das manchetes sensa- nas políticas de geração de emprego torções salariais, que precisam cons- cionalistas, o Estado está na luz dos e de desenvolvimento econômico. tantemente de correções legais e ad- postes, nas estradas, nos calçamen- Ele está também na seguridade so- tos, no transporte urbano, no trans- cial, ou seja, nas aposentadorias, nas ministrativas. Entretanto, não tenho porte aéreo, no recolhimento do lixo, pensões por morte, nos auxílios-ma- dúvidas de que sua redução, como na destinação do esgoto, na escola ternidade e nas aposentadorias por está projetado para os próximos 20 pública, no policiamento, na defesa invalidez. O Estado permite a me- anos, deixará boa parte da população territorial, na vigilância sanitária, na diação e o julgamento dos conflitos, mais pobre, enquanto que os mais ri- prevenção e na reconstrução diante a reclusão de malfeitores, a orienta- cos se beneficiarão. Este cenário é de de desastres naturais, na assistên- ção jurídica aos necessitados, além uma profunda ampliação de nossas cia aos desabrigados. Há também da própria organização das regras elevadas desigualdades sociais. ■

Leia mais 12 - Reforma tributária seria mais eficiente que a PEC 241. Entrevista especial com Róber Iturriet Avila, publicada nas Notícias do Dia de 12-10-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2rpVFKW. - Taxação sobre patrimônio e renda. Alternativas ao ajuste fiscal. Entrevista especial com Róber Iturriet Avila, publicada nas Notícias do Dia de 12-6-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2jAVrfR. - Isenções tributárias e rendimentos declarados dos excelentíssimos magistrados. Ar- tigo de Róber Iturriet Avila e João Santos Conceição, publicado nas Notícias do Dia de 27- 2-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2rpTJSX. - O mito do inchaço da máquina pública no RS. Artigo de Róber Iturriet Avila e João San- tos Conceição, publicado nas Notícias do Dia de 15-2-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2jCQIKL. - Justiça Tributária: como o Brasil recuou. Artigo de Róber Iturriet Avila e João Santos Con- ceição, publicado nas Notícias do Dia de 15-2-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2FQyvSC. - Não se administra um Estado como uma padaria. Artigo de Róber Iturriet Avila, publica- do nas Notícias do Dia de 5-9-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponí- vel em http://bit.ly/2wk8VWr. - A crise fiscal e dos serviços públicos do Rio Grande do Sul: elementos para o debate. Artigo de Róber Iturriet Avila e João Santos Conceição, publicado nas Notícias do Dia de 1-11-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2HV3z9I. - Estratificação de dados do IR revela desigualdade ainda maior no país. Artigo de Róber Iturriet Avila e João Santos Conceição, publicado nas Notícias do Dia de 26-8-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2K0m5tO. - O capital no século XXI e sua aplicabilidade à realidade brasileira. Artigo de Róber Itur- riet Avila e João Santos Conceição, publicado no Cadernos IHU Ideias número 234, dispo- nível em http://bit.ly/1OtCTUE.

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Quando a comunicação é negada, o outro é reduzido e a violência eclode Guilherme de Azevedo analisa um sistema em que a violência se perfaz a partir da redução do ser a um corpo, em que é retirada a “condição de pessoa”, tornando-o descartável

João Vitor Santos

que é a violência de nosso tem- sultado já é presumível. “Somos o país po e como compreendê-la? Para de mais de 50 mil homicídios por ano, o professor do Curso de Direito mas esses homicídios não são aleató- Oda Unisinos Guilherme de Azevedo, a rios, contingenciais ou difusos. As ví- violência pode ter origem na negação de timas são na maioria homens, jovens, um ato comunicacional. Seguindo uma pobres e negros”, aponta. lógica de Niklas Luhmann, o professor Guilherme de Azevedo é professor e compreende que, como num sistema, coordenador do curso de Direito da Uni- uma vez negada a comunicação, a con- sinos. Doutor e mestre em Direito pelo sequência será uma redução do ser. “O Programa de Pós-Graduação em Direi- conceito da violência surge como uma to da Unisinos, desenvolve pesquisa na 13 ‘não-comunicação’, como um fenômeno área da Sociologia do Direito. Entre suas de negação da comunicação, uma não publicações, destacamos De onde obser- produção de sentido, isto é, uma redução va Niklas Luhmann? Diferenciações de do outro à condição de corpo”, detalha. uma Teoria da Sociedade. In: Vicente Assim, quando se retira a “condição de de Paulo Barretto; Francisco Carlos Du- pessoa”, se tira desse ser a possibilidade arte; Germano Schwartz. (Org.). Direito comunicacional, numa sociedade que se da Sociedade Policontextural (Curitiba: baseia na própria comunicação. Este ser Appris, 2013) e Proibição, descriminali- passa a não ter reconhecimento nos sis- zação e legalização: alternativas de en- temas sociais. “Restando apenas o corpo frentamento à crise do proibicionismo como categoria sem sentido, disponível, (Revista Conhecimento Online, v. 1, p. descartável, uma forma que, ao não se 104-118, 2015). apresentar como dotada de sentido, per- mite altos níveis de exclusão”, completa. O professor participa do evento Vio- lências do mundo contemporâ- Na entrevista a seguir, concedida por neo – Interfaces, resistências e e-mail à IHU On-Line, Azevedo apro- enfrentamentos, promovido pelo xima sua perspectiva teórica às lógicas Instituto Humanitas Unisinos - IHU. do racismo. “O racismo talvez seja a violência mais representativa do con- Azevedo proferirá a conferência A in- texto brasileiro, uma dinâmica que po- clusão como possibilidade de enfren- tencialmente impacta mais de 50% da tamento às violências, no dia 17/5, às população brasileira”, aponta. Para ele, 17h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e “negar o conceito de raça, para buscar Companheiros - IHU, Campus São Le- desconstruir o racismo, será, justamen- opoldo da Unisinos. Saiba mais sobre a te, a ação (comunicação) de reforço do programação do evento em http://bit. racismo”, algo que vai invisibilizando ly/2EHI85v. esses seres. Reduzidos só a corpo, o re- Confira a entrevista.

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IHU On-Line – Qual é o con- sociedade de uma forma suficiente- Esse é um dos efeitos mais preocu- ceito de violência para o se- mente complexa, com uma adequa- pantes da violência em uma socie- nhor? E como essa violência se ção epistemológica correspondente dade funcionalmente diferenciada, materializa em nosso tempo? ao atual momento do nosso tempo, que contrasta fortemente com as um cenário de incremento da com- retóricas de inclusão plena, ao ex- Guilherme de Azevedo – Tenho plexidade que desafia abordagens por as flagrantes limitações dessas procurado pensar a violência dentro dirigistas formatadas em ontologias pretensões mais universalistas de de uma proposta de recepção crítica do social, ou em esquemas e narrati- inclusão/integração ainda presentes da teoria dos sistemas sociais de Ni- vas mais causalistas. atualmente. A retirada da condição klas Luhmann1. Nessa linha, a cons- de pessoa, isto é, da condição de en- trução de um conceito para violência dereço comunicativo, numa socieda- deve ser antecedida por uma especi- Violência de que se reproduz como comunica- ficação de como observo conceitual- Partindo da ideia de sociedade ção, significa a retirada da condição mente outras duas categorias desse como comunicação, dessa recons- elemento “reconhecível” pelos sis- quadro teórico: sociedade e pessoa. trução da teoria da sociedade, a temas sociais, restando apenas o A sociedade aqui é observada como compreensão dos termos homem, corpo como categoria sem sentido, comunicação, como algo constituído indivíduo, pessoa não é naturaliza- disponível, descartável, uma forma única e exclusivamente por comu- da, uma vez que são sempre traba- que ao não se apresentar como do- nicação. Logo, o principal estranha- lhados como distinções, como dife- tada de sentido permite altos níveis mento gerado por essa definição não renças, formas comunicacionais que de exclusão. operaram como redutores de com- está propriamente no fato de consi- Portanto, na sociedade atual, a vio- plexidades, ao facilitarem na comu- derar a comunicação um elemento lência passa a se materializar como relevante na observação da socieda- nicação a indicação de endereços co- 3 um fenômeno de integração pela de, mas, sim, em não inserir mais o municativos . Contudo, a redução de exclusão, gerado pela não comu- indivíduo como elemento constitu- complexidade aqui não é sinônimo nicação do outro, que é reduzido a tivo da sociedade. Este era o pano de simplificação, ou de coisificação, corpo. Esse me parece o gatilho te- de fundo epistemológico que, com antes o contrário, é uma redução de 14 órico mais interessante para pensar maior ou menor intensidade, domi- complexidade que permite a produ- a violência em termos mais amplos, 2 nou desde Aristóteles a compreen- ção de sentido, que permite, portan- dando conta de reconhecer as dinâ- são do social, sempre se utilizando to, o reconhecimento do outro como micas da violência em uma socieda- de referências ao indivíduo – das parte da sociedade, dada a sua cons- de policontextural, isto é, a violência suas ações, do seu comportamento, trução como comunicação. como operação de exclusão e desin- de suas interações, de sua suposta É a partir dessas duas premissas tegração no Direito, na Economia, racionalidade – como categoria ele- de corte luhmanniano, trabalhadas na Política e na Religião. mentar do social. criticamente, que eu procuro pen- Contudo, a virada que Luhmann sar a violência. Nessa forma de se IHU On-Line – Em que medi- opera na sua teoria da sociedade, ao construir os conceitos de sociedade da o pensamento da Moderni- distinguir o social no conceito de co- e pessoa, o conceito da violência sur- dade e seu conceito de proprie- municação, rompendo com qualquer ge como uma “não-comunicação”, dade privada pode contribuir nível de individualismo metodológi- como um fenômeno de negação da para a geração de violência? co, permite construir o conceito de comunicação, uma não produção de sentido, isto é, uma redução do Guilherme de Azevedo – O 1 Niklas Luhmann (1927-1998): estudou direito em Fri- papel da Modernidade na com- burgo, onde se doutorou em 1949. Em 1960, viajou aos outro à condição de corpo. Sobre Estados Unidos e estudou sociologia na Universidade corpos não se formam expectativas preensão da violência vem sen- de Harvard. Em 1964, publicou Funktionen und Folgen formaler Organisation (Duncker & Humblot, Berlim) e sociais que possam ir além da lógica do retrabalhado pela teoria social ingressou na Universidade de Münster, em Dortmund, contemporânea. A narrativa da Mo- onde doutorou-se em Sociologia Política. Em 1968, se de satisfação violenta e elementar. A estabeleceu em Bielefeld, em cuja universidade perma- violência é, nesse sentido, uma ne- dernidade como uma série histórica neceu o resto de sua carreira como catedrático. Rece- beu o prêmio Hegel em 1988. Em língua portuguesa, gação do outro como comunicação, a de emancipação, inclusão, estimu- foram publicadas obras como Legitimação pelo proce- lada por um certo “norte moral” do dimento (Brasília: Ed. Univ. de Brasília, 1980), Sociologia não formação deste como endereço do Direito (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985), A comunicativo, ou seja, como pessoa. sujeito moderno europeu iluminis- Improbabilidade da Comunicação (Lisboa: Vega, 1992). ta já passa a ser questionada para, (Nota da IHU On-Line) É justamente nestes termos que se 2 Aristóteles de Estagira (384 a.C.–322 a.C.): filósofo no lugar disso, identificarmos na nascido na Calcídica, Estagira. Suas reflexões filosóficas conecta a violência, entendida como – por um lado, originais; por outro, reformuladoras da “não-comunicação”, com o proble- Modernidade uma certa ambiva- tradição grega – acabaram por configurar um modo de lência violenta e excludente. Pre- pensar que se estenderia por séculos. Prestou significa- ma da exclusão. tivas contribuições para o pensamento humano, desta- firo pensar a Modernidade dentro cando-se nos campos da ética, política, física, metafísi- ca, lógica, psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia 3 Para uma referência direta ao tema na obra de Luhmann, de um quadro sistêmico, como um e história natural. É considerado, por muitos, o filósofo ver: LUHMANN, Niklas. Die Form “Person”. Soziologische processo de acentuação das dinâmi- que mais influenciou o pensamento ocidental. (Nota da Aufklärung. Bd. 6. Die Soziologie und der Mensch. Opla- IHU On-Line) den: Westdt., 1995. p. 142-154. (Nota do entrevistado) cas de diferenciação funcional, que

7 DE MAIO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE dissolveu lógicas violentas de estra- resultado da mediação que a socie- toriografia inglesa, que ao ser des- tificação social, mas, por outro lado, dade fez, faz, ou poderá fazer de um coberto e narrado este mesmo caso, produziu novos mecanismos de evento. A obra “Navio Negreiro” de um trauma se constituiu. Tal evento desintegração e exclusão, uma vez Turner é inspirada no relato sobre será ressignificado pela sociedade que a inclusão passa a ser mediada o navio Zong, que poderia ter sido inglesa, passando de objeto de lucro, por um controle dos sistemas fun- mais um entre os diversos barcos derivado de um contrato de seguro, cionais (Direito, Política, Religião, que realizavam o trajeto da Áfri- para um trauma gerador da semân- Economia, Ciência, Arte) que não ca para a Jamaica no século XVIII. tica abolicionista. De uma operação respondem da mesma forma à pres- Nesta viagem ocorre uma diferença, econômica alcançou o sentido de são do Estado por inclusão, enten- a descoberta de uma chaga que co- pauta das discussões sobre os direi- dido este como organização sobre- meçava a tomar os porões do navio tos humanos, provocando no siste- vivente da sociedade estratificada. e, com isso, os africanos ali escravi- ma do direito o reconhecimento da Um bom exemplo disso é relação zados teriam destino certo de apenas abolição. É isso que Turner vai co- da propriedade privada com ideia esperar a morte. Mas para o capitão municar no sistema da arte sessenta de pessoa/corpo na Modernidade, desse navio, a questão de como essas anos depois do ocorrido. A abolição ou seja, estamos falando especifica- mortes seriam comunicadas, como no direito já era fato, mas ainda as- mente da elaboração das condições elas seriam observadas, fazia a di- sim, o trauma comunicava, agora, no sistêmicas de formação da escravi- ferença da diferença que constitui a sistema da arte. inclusão ou exclusão de suas expec- dão moderna. A maior expressão da A violência da redução do outro a violência na Modernidade é a cons- tativas em um sistema social. corpo, desenvolvida na escravidão trução da dinâmica da escravidão moderna, só foi possível com o de- dentro de uma operacionalização Sentido econômico e discus- senvolvimento do direito de proprie- orquestrada sistemicamente. A co- são sobre direitos humanos dade. Tradicionalmente, o direito municação da propriedade tem uma Em outras palavras, se observa- é entendido como um conjunto de prestação importante nesse proces- do o evento a partir de um sentido normas que limita as possibilidades so. É possível explicar essa dinâmica econômico, o contrato de seguro de comportamento. Mas, em termos a partir de uma análise da história comunicava que só reconheceria as funcionais, o sistema do direito está, 15 4, de por trás do quadro Slave ship mortes que, no mar, ocorressem. William Turner5, um dos principais na verdade, muito mais próximo de Cada morte de escravizado no mar artistas do Romantismo e, para mui- exercer o papel de habilitador de representava um sentido específi- tos, precursor do Impressionismo. comportamentos, de ser a condição co no sistema econômico. Contudo, de possibilidade para certas condu- Apenas pela imagem, sem saber- para cada morte no barco, o seguro tas, muito mais do que ter a função mos o que esta conta como narrati- não deixaria mais que a indiferença de limitador destas. Basta pensar- va histórica, o sentido desse quadro e o silêncio. Não havia o sentido de mos em figuras jurídicas como a não alcança o seu desejo de comu- lucro no sistema econômico para propriedade, contratos, responsabi- nicar um evento traumático. Como escravizados mortos por doenças e, lidade da pessoa jurídica, especial- 6 afirma Jeffrey Alexander , nenhum portanto, decidir sobre como a mor- mente no campo do direito privado, evento é em si traumático. O trau- te dos escravizados seria comuni- o direito age como um viabilizador ma, como fenômeno sociológico, é cada passava a ser um problema de de expectativas7. generalização congruente de expec- 4 Slave ship [O navio escravo, em tradução livre], tativas normativas (direito). Aquele Nesse sentido, a propriedade na originalmente intitulado Slavers Throwing overboard the Dead and Dying—Typhoon coming on [escravos que observava os corpos, vivos ou Modernidade pode ser descrita jogando ao mar os mortos e morrendo - Tufão como um acoplamento estrutu- chegando, em tradução livre], é uma pintura do mortos, tendo para si a expectativa artista britânico JMW Turner, exibido pela primeira de perder o seu dinheiro, de perder ral entre o sistema do direito e o vez em 1840. Medindo 35 3/4 x 48 1/4 de polegada em óleo na tela, está agora no Museu de Belas Artes o seu lucro, já decidia em ver o corpo sistema da economia. Dentro des- de Boston. Neste exemplo clássico de uma pintura pela forma da propriedade. se processo, o sistema do direito marítima romântica, Turner retrata um navio, visível ao fundo, navegando através de um mar tumultuoso de certamente executou importante Assim, cento e trinta e dois (132) água agitada e deixando formas humanas dispersas função, por meio da construção da flutuando em seu rastro. (Nota da IHU On-Line) africanos, entre homens, mulheres 5 Joseph Mallord William Turner (1775-1851): pintor escravidão como direito de proprie- romântico londrino, considerado por alguns como um dos e crianças, foram jogados ao mar precursores do Impressionismo. (Nota da IHU On-Line) dade, o direito prestou as condições Caribenho, tendo como destino um 6 Jeffrey C. Alexander: é um dos mais importantes sistêmicas de funcionamento da sociólogos norte-americanos da atualidade, professor mar repleto de tubarões, onde mui- de sociologia da Universidade de Yale, nos EUA e escravidão, promovendo a estabili- codiretor do Centro de Sociologia Cultural deste mesmo tos destes acabaram dilacerados. zação social do maior processo de departamento de ensino e pesquisa. Para Alexander, Os que a sorte retirou dos tubarões, cultura e sociedade formam um binômio indissolúvel e exclusão do outro como pessoa da por isso criou um novo modelo de análise sociológica: a entregou ao fundo do mar. Mas o Sociologia Cultural. Na Sociologia Cultural, seu trabalho modernidade. tem sido associado ao que ele chama de o “programa proprietário dos escravos comuni- forte” em estudos da cultura, em comparação ao cou, pelo sistema do direito, a sua “programa fraco” que é como nomeia a Sociologia da 7 LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. São Paulo: Cultura. (Nota da IHU On-Line) indenização. Contudo, registra a his- Martins Fontes, 2016. p.181. (Nota do entrevistado)

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O caso brasileiro frente ao governo. Logo, a real di- Pajens da Casa Imperial: juriscon- nâmica comunicacional do negro na sultos e escravidão no século XIX12, Procurando dialogar com a histo- escravidão é praticamente ignorada ao demonstrar de forma acurada que riografia brasileira, é possível des- pelo texto constitucional, uma vez a propriedade não era facilmente tacar a formalização jurídica do pro- que, caso o texto constitucional de afastada nos movimentos de tensão cesso escravista, bem descrito por fato enfrentasse o tema da escravi- que marcaram as discussões entre os Hebe Mattos8. A lei irá substituir o dão, acabaria por ter de comunicar membros do Instituto dos Advogados costume como fonte da escravidão a a condição do negro dentro da lógica do Brasil - IAB, no que tocava ao mais partir do momento que a Constitui- de funcionamento do direito de pro- consistente encaminhamento do sen- ção de 1824 reconhece comunicações priedade, dada a função que este aco- tido jurídico da escravidão. jurídicas acerca do direito de pro- plamento estrutural entre o sistema priedade de escravos. Com o direito do direito, sistema da política e o sis- de propriedade, o direito fornece se- tema econômico, executava à época. gurança para a operação econômica Mas mais do que isso, o que também “Na sociedade da escravidão, e um empoderamento fica (não) comunicado, ou latente, político da elite brasileira, escamote- pela “não-comunicação” do negro atual, a ando a suposta contradição entre a -propriedade no texto constitucional, formação de direitos civis liberais e a é que o próprio direito de proprieda- violência validação do direito de propriedade de não dependida de uma postura de sobre o escravo, para estabilizar uma reconhecimento ativa da programa- passa a se operação econômica9. ção constitucional. O negro escravi- materializar A forma prioritária de comunica- zado, como direito de propriedade, ção do negro não ocorria como pes- forma-se sem a ação direta do Gover- 10 como um soa, mas, sim, como propriedade. A no Imperial . Diante deste quadro, propriedade era a principal forma há que perceber que a programação fenômeno de de se comunicar sistemicamente a dos sistemas político, econômico e condição de negro no império. Devi- jurídico, em desenvolvimento a esta integração 16 do ao fato de o seu tratamento como época, começam a elaborar comuni- coisa se constituir como estrutura de cações sobre o negro internamente, pela exclusão” operacionalização, isto é, de seleção dentro de um jogo entre heterorrefe- e redução da complexidade nos sis- rência e autorreferência, mas sempre temas sociais. Diante da redução à a partir de um compartilhamento es- IHU On-Line – De que forma condição de objeto, de bem sujeito trutural do reconhecimento da pro- a exclusão social se configura à propriedade de alguém, sistemica- priedade, ou seja, de uma produção como elemento propulsor da mente é compreensível o “silêncio” de sentido para o reconhecimento da violência? E como a inclusão da Constituição de 1824 quanto à escravidão. pode ser empregada como uma real condição dos escravizados. For- forma de enfrentamento da malizar a observação do negro nos Propriedade e escravidão violência? sistemas sociais no século XIX era seguem imbricadas Guilherme de Azevedo – Essa diferenciar e indicar, principalmen- Mesmo quando o exame da proprie- questão exige um maior esclareci- te, a categoria da propriedade de um dade, como programa de tomada de mento sobre como se desenvolvem corpo, o cerceamento da liberdade decisão, começa a ser levado para o dinâmicas de inclusão/exclusão de um corpo. exame das organizações, como tribu- hoje. E para isso, penso que temos Essa dinâmica, dentro do pensa- nais e corporações profissionais, a sua que trabalhar essa dinâmica reco- mento liberal em desenvolvimento, manutenção servia como eixo central nhecendo que ela ocorre orientada era escamoteada pela lógica da so- de argumentação. Como bem exami- por um processo de diferenciação berania doméstica frente ao Estado, na Eduardo Spiller Pena11, em sua tese funcional da sociedade. Reconhe- pela blindagem da relação privada cendo-se o alto índice de abstração que alcança a teoria da sociedade 10 Mesmo quando o Império passa a indicar para uma perspectiva de dissolução gradual da escravidão, esta era luhmanniana, o que muitas vezes 8 Hebe Mattos: Doutora em História pela Universidade mediada pela ponderação a partir do direito de proprie- repele a sua leitura e desenvolvi- Federal Fluminense, atualmente é livre-docente na dade. Ver: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org.). Brasil mesma universidade. Mattos é ainda coordenadora Imperial, 1871-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, mento mais aprofundados, enten- associada do Laboratório de História Oral e Imagem, da 2009. p. 62-64. (Nota do entrevistado) UFF e trabalha especialmente com escravidão, memória 11 Eduardo Spiller Pena: graduado em História pela do ser fundamental, antes de en- e abolição. (Nota da IHU On-Line) Universidade Federal do Paraná (1985), mestrado em 9 Ver: MATTOS, Hebe Maria. A escravidão moderna nos História pela Universidade Federal do Paraná (1990) e quadros do Império português: o Antigo Regime em doutorado em História pela Universidade Estadual de perspectiva atlântica. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Campinas (1998). Tem experiência na área de História, 12 PENA, Eduardo Spiller. Pajens da Casa Imperial: ju- Fernanda; GOUVÊA, Fátima Silva (Org.). O Antigo Regime com ênfase em História Social da Escravidão e História risconsultos e escravidão no Brasil do século XIX. 1998. nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI da África e da Cultura Afro-Brasileira, atuando principal- Tese (Doutorado em História) -- Instituto de Filosofia e -XVIII). Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2001. (Nota mente nos seguintes temas: escravidão, culturas, liber- Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas do entrevistado) dade, história, justiça e direito. (Nota da IHU On-Line) (Unicamp), Campinas, 1998. (Nota do entrevistado)

7 DE MAIO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE trarmos na formalização sistêmica Inclusão/exclusão Parsons18 irá produzir a partir de sua da inclusão/exclusão, conectar a leitura de T.H. Marshall19, no proble- proposta de Luhmann a um ponto A adoção de um referencial so- ma da evolução dos direitos civis. de partida clássico, um teorema já ciológico sistêmico para o estudo Com isso, a observação socioló- há muito sedimentado nas ciências da inclusão/exclusão em sistemas gica da inclusão/exclusão deve dar sociais: a ideia de que as sociedades sociais coloca o tema em uma re- conta de expressar todo processo são diferenciadas, ou seja, o fato de lação diferente com o problema de diferenciação da sociedade mo- que há uma divisão do trabalho nes- da integração social. O ponto que derna. Para isso, Luhmann vai re- sas sociedades. irá se destacar, com grande rele- vância para os estudos sobre a di- formular a definição de inclusão/ 20 Tido como um dos pilares do pró- nâmica complexa de processos de exclusão de Parsons . Para ele, a prio surgimento da Sociologia, a inclusão/exclusão, é o fato de que exclusão deve ser entendida como teoria da divisão do trabalho so- a inclusão/exclusão na sociedade é forma (distinção com dois lados) cial é tão antiga quanto as ciências uma forma que se altera profunda- cujo lado interior é indicado como sociais, surge na metade do século mente a partir do tipo de diferen- a oportunidade que as pessoas, aqui XVIII, quando se passa a conceber ciação social vigente nesta socieda- entendida como endereços comuni- as sociedades como conjuntos com- de. Não podemos perder de vista cacionais, têm para serem levadas plexos que se mantêm por interde- que o tema da integração e da ex- em consideração socialmente (pelos pendência. As “partes” da socie- clusão social sempre foi motivo de sistemas sociais, organizações, na dade seriam mantidas em coesão confusões conceituais e ceticismo interação), e o lado exterior dessa 21 por forças de dependência mútua, teórico. forma se mantém sem sinalização . isto é, uma parte precisa da outra. 16 Dentro dessa perspectiva, existe É esta a base da divisão do traba- O trabalho de David Lockood che- inclusão apenas quando, ao mes- lho social, teorema fundamental gou a defender a completa distinção mo tempo, a exclusão é possível. É da Sociologia moderna e que pode entre o conceito de integração, no a existência de pessoas, grupos, seg- ser identificado, respeitadas as es- seu sentido sistêmico, e o de inte- 17 mentos, fora de uma condição de in- pecificidades, em diversos autores gração no seu sentido social . Essa tegração, que torna possível observar da Sociologia, como Durkheim13, distinção procurava não confundir (diferenciar/indicar) a coesão social Weber14 e Simmel15. Em cada um a integração vista como a harmonia 17 e, com isso, possibilita o conhecimen- desses autores, podemos reconhe- interna dos sistemas funcionais, com to nos termos necessários para pro- cer formas de se trabalhar uma di- a integração definida como relação moção dessa coesão. Dessa definição ferenciação da sociedade. Contudo, entre sistemas psíquicos, entendidos da inclusão/exclusão como forma, é Luhmann que irá, por sua vez, ra- aqui como indivíduos, e os sistemas decorre uma importante medida de dicalizar a ideia de diferenciação, sociais. Em Luhmann, a abordagem (co)dependência, ou seja, o conheci- passando a trabalhá-la como uma é feita de outra forma. A integração mento e definição das condições de diferenciação funcional. dos sistemas é proposta como dis- tinção de formas de diferenciação inclusão geram, ao mesmo tempo, A observação de Luhmann não se dos sistemas, dotadas essas formas a denominação das formas gerado- restringe à ideia de uma divisão do da capacidade (função) de controle ras da exclusão. O que Luhmann vai trabalho social, à própria ideia de que desses sistemas parciais em relação destacar, desde o primeiro momen- a sociedade é um conjunto, um todo, ao seu ambiente. Já sobre o proble- to, é que quando os sistemas sociais em que as partes precisam umas ma da integração social, esse é res- especificam os critérios de inclusão, das outras. O sentido de função em significado como um problema de ao mesmo tempo, tornam possível o 22 Luhmann vai muito além desta ideia operação da distinção inclusão/ex- conhecimento da exclusão . de interdependência. Para entender- clusão, seguindo-se aqui, fundamen- mos melhor o papel que o conceito 18 PARSONS, Talcott. The structure of social action. New talmente, a construção que Talcott York: Free Press, 1949; PARSONS, Talcott. Sociological funcional desempenha, temos que theory and modern society. New York: Free Press, 1967. acompanhar o marco evolutivo da (Nota do entrevistado) 16 David Lockwood (1929-2014): foi um sociólogo bri- 19 MARSHALL, Thomas H. Citizenship and social class. complexidade social e, nessa evolu- tânico. Seu livro The Blackcoated Worker procura analisar Cambridge: Cambridge University Press, 1950. (Nota do as mudanças na posição de estratificação do trabalhador entrevistado) ção, localizar os processos de inclu- administrativo usando uma estrutura baseada na distin- 20 Talcott Edgar Frederick Parsons (1902-1979): foi um são/exclusão contemporâneos. ção de Max Weber entre mercado e situações de trabalho. sociólogo norte-americano. Seu trabalho teve grande in- Lockwood argumentou que a posição de classe de qual- fluência nas décadas de 1950 e 1960. A mais proeminente quer ocupação pode ser mais bem localizada distinguindo tentativa de reviver o pensamento parsoniano, sob o títu- entre as recompensas materiais obtidas do mercado e as lo de “Neofuncionalismo”, pertence ao sociólogo Jeffrey situações de trabalho, e aquelas recompensas simbólicas Alexander, da Universidade Yale. Atuou à Universidade derivadas de sua situação de status. Seu trabalho tornou- Harvard entre 1927 e 1973. Inicialmente, foi uma figura 13 DURKHEIM, Emile. Les règles de la méthode sociologique. 13 se uma contribuição muito importante para o debate da central no Departamento de Sociologia de Harvard, e pos- éd. Paris: Presses Universitaires de France, 1956; DURKHEIM, “proletarização”, que argumentava que muitos trabalha- teriormente no Departamento de Relações Sociais (criado Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Abril Cultural, dores de colarinho branco estavam começando a se iden- por Parsons para refletir sua visão de uma ciência social 1978. (Nota do entrevistado) tificar com os trabalhadores manuais, identificando sua integrada). Ele desenvolveu um sistema teorético geral 14 WEBER, Max. Conceitos básicos de sociologia. São Paulo: situação de trabalho como tendo muito em comum com o para a análise da sociedade que veio a ser chamado de Moraes, 1987; WEBER, Max. Economia e sociedade: fun- proletariado. (Nota da IHU On-Line) funcionalismo estrutural. (Nota da IHU On-Line) damentos da sociologia compreensiva. 3. ed. Brasília, DF: 17 Ver: LOCKWOOD, David. Social integration and system 21 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Ciudad de Universidade de Brasília, 1994. (Nota do entrevistado) integration. In: ZOLLSCHAN, Geroge K.; HIRSCH, Walter. México: Universidad Iberoamericana: Herder, 2007. p. 491- 15 SIMMEL, Georg. Cuestiones fundamentales de sociolo- Explorations in social change. London: Halsted Press Book, 492. (Nota do entrevistado) gía. Barcelona: Gedisa, 2002. (Nota do entrevistado) 1964. p. 244-257. (Nota do entrevistado) 22 Ibid., p. 492. (Nota do entrevistado)

EDIÇÃO 521 ENTREVISTA

Violência como negação da acessar uma formação educacional zaram de maneira completa, ou da inclusão elementar, ter benefícios sociais e mesma forma, sobre todos os luga- direitos básicos que lhe possibilitem res do mundo. Nesse sentido, passamos a co- gozo e fruição de saúde, ou mani- nhecer a violência como fenômeno festar afeto e seu credo religioso de de negação sistêmica da inclusão. forma específica e livre, pelas formas É quando indivíduos dos grupos e rituais simbólicos postos pela sua “O Direito só apresentam alto índice de exclusão cultura e tradição23. nos sistemas sociais, eles não são resolve os comunicados, ou seja, são apenas O que Luhmann bem destacou corpos. Quando ocorre ainda algu- para os estudos da inclusão/exclu- problemas que ma inclusão, no sentido de serem são é que, no século XVIII, desenvol- reconhecidos comunicacionalmente, ve-se uma funcionalidade inclusiva a ele mesmo cria” normalmente isso se dá a partir de partir do postulado dos direitos hu- simplificações, descaracterizações, manos que, procurando romper com IHU On-Line – Como a articu- mediadas pelos sistemas sociais. formas de diferenciação legadas pela lação do trinômio “proibição”, tradição, reconstrói as condições A violência contemporânea é um “descriminalização” e “legali- de inclusão dos sistemas funcionais processo sistêmico de invisibilidade zação” pode incidir sobre a vio- em favor de uma nova premissa: o comunicacional de grupos e indiví- lência? Quais as alternativas? ser humano pensado como sujeito duos, que ocorre pela dificuldade de universal24. Nesse processo, vão se Guilherme de Azevedo – Se operacionalizarmos inclusão a partir fortalecer as diferenciações semân- pensamos de forma mais restrita, de eixo organizacional central único, ticas da “igualdade” e “liberdade”, isolando no tema da violência uma como o Estado, a Igreja ou as Uni- como princípios com pretensão de das suas principais frentes, como a versidades. Em outras palavras, deve generalidade. Em termos sistêmicos, questão do tráfico de drogas, não há se ter em mente que a inclusão dos são autodescrições da sociedade que uma articulação desse trinômio. Do indivíduos nos sistemas é afetada passa a se observar a partir da comu- ponto de vista do Direito, a resposta principalmente pelos acoplamentos nicação dos direitos humanos. tem sido, majoritariamente, monis- 18 estruturais/operacionais realizados ta, isto é, a proibição. Podemos ser por esses sistemas, como a proprie- Contudo, este movimento se dá otimistas e olhar para iniciativas dade, a constituição, os contratos, dentro de uma realidade de diferen- como a do Uruguai, Portugal, ou a pensando especialmente na relação ciação funcional, posto que as res- de alguns estados estadunidenses, entre direito, política e economia. trições à liberdade e à igualdade so- especificamente na questão da ma- E com essa dinâmica funcionalista mente se dão por meio dos códigos conha, mas o fato é que o lado pes- ampliada, passa-se a ter dificuldades e programas dos sistemas sociais simista ainda é maior, a tendência de operar na sociedade sob a lógica parciais (direito, economia, políti- mundial ainda é usar o sistema do de que um determinado status so- ca, religião etc.), sem contar, nesse direito para generalizar expectati- cial, dado pelo simples nascimento sentido, com a possibilidade de atri- ou pertencimento familiar, garanta vas normativas de criminalização da buir a um sistema o papel diretivo venda e uso de certas substâncias. por si só critérios ontológicos de in- da totalidade da sociedade. Com a clusão sistêmica generalizada. formação da semântica dos direitos Já há um certo consenso científico A inclusão, no âmbito comuni- humanos na sociedade, a análise que esse movimento é um fracasso ab- cacional, portanto, na sociedade, luhmanniana auxilia na observação soluto em termos de prevenção e pres- passa a depender de oportunidades do problema que será apontado na tação de saúde e, por outro lado, um altamente especializadas, que apre- modernidade. Essa sociedade irá “sucesso” completo em fomentar a vio- sentam muitas vezes um quadro ins- constituir, através desta lógica de lência. As dinâmicas de exclusão que a tável na sua estabilidade temporal. inclusão/exclusão, a ideia de que criminalização do tráfico fomenta são Assim, a generalização de expecta- o único problema da modernidade evidentes, especialmente em contextos tivas de inclusão, pensando aqui na parece residir que esses direitos, sociais que apresentam altos níveis de pressão da experiência de demo- os direitos humanos, não se reali- desigualdade de acesso aos sistemas cracia de massas, que passam a se sociais. É senso comum identificar no 23 Neste quadro de pretensão de “cidadania plena”, ver o traficante os marcadores de uma desin- constituir, estrutura-se a pretensão debate em: SCIORTINO, Giuseppe. ‘A single societal com- de que cada sujeito de direito repre- munity with full citizenship for all’: Talcott Parsons, citi- tegração sistêmica, como baixa escola- zenship and modern society. Journal of Classical Sociology, senta, ao mesmo tempo, um sujeito [S.l.], v. 10, n. 3, p. 239-258, 2010. (Nota do entrevistado) ridade, desemprego, pobreza, racismo, 24 A função dos Direitos humanos e sua relação com a “não-consumidor”, bandido etc. Esses ativo economicamente e, também, categoria sociológica do trauma será objeto de análise e apto a expressar politicamente seus aprofundamento no último capítulo, quando o seu papel elementos todos são resultados de ex- será trabalhado como comunicação de inclusão com pre- interesses, com o exercício de re- tensões globais. Neste momento, apenas iremos indicar a clusão de sistemas sociais, permitindo presentar e ser representado. Esse sua conexão com a evolução do conceito da diferenciação que esses indivíduos sejam reduzidos à funcional e a complexidade da forma inclusão/exclusão. mesmo sujeito tem a expectativa de (Nota do entrevistado) condição de corpos.

7 DE MAIO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE

Basta observar o perfil que a cober- da raça negra como programação ralização, acaba gerando mais obstá- tura jornalística apresenta quando explícita para a desigualdade, o pre- culos para a eficiência das políticas trata das mortes na periferia. Não conceito à raça negra já funcionava, públicas de igualdade racial. cita nomes, não apresenta histórias sistemicamente, como o outro lado individualizadas, não investiga so- da forma, o lado não indicado na ob- Violências e violações nhos, desejos, ou ambições que o servação de estruturas de restrição à indivíduo vítima poderia ter, isto é, inclusão dos negros, que opera como As violências forjadas pelo racismo ocorre uma simplificação que prati- “ponto cego”, como um “unmarked no Brasil ainda não foram plena- camente retira a condição de ende- space”, da escravidão até o debate mente reconhecidas como violações. reço comunicativo, naturalizando-o das ações afirmativas. Há uma naturalização que impacta a como corpo, ou seja, não comuni- eficácia empírica (material) da fun- Dessa característica, parece se for- cando qualquer individualização. ção do Direito de, supostamente, mar o sentido do racismo brasileiro Essa prática é causa e consequência generalizar expectativas normativas no período pós-abolição, como “si- da violência. É produto e produtor, de combate ao racismo, isto é, afeta a lêncio” normativo (não comunica- é a própria violência e o seu resulta- capacidade do sistema do direito de ção), como não-tematização da desi- do. Antes de examinar alternativas, fomentar irritações nos demais sis- gualdade racial que irá se constituir o desafio é desconstruir esse mode- durante boa parte do século XX. O temas sociais (político, econômico, lo proibicionista, é reconhecer que fator sistêmico interessante desse educativo etc.), como forma de de- ele não funcionou. processo, que propomos como uma sencadear processos de coevolução leitura luhmanniana do surgimento nestes demais sistemas. IHU On-Line – Que respostas da comunicação da democracia ra- Contudo, apontando para alguma o Direito, na atualidade, é ca- cial, é que ela irá se constituir como mudança e, talvez, permitindo um paz de dar à violência social? um paradoxo: negar o conceito de certo otimismo nesse tema, é signi- raça, para buscar desconstruir o ficativo o fato de que o início do sé- Guilherme de Azevedo – É racismo, será, justamente, a ação culo XXI marca uma importante fase impossível sinalizar uma fórmula (comunicação) de reforço do racis- do desenvolvimento de políticas de geral para enfrentamento da vio- mo. E é essa paradoxalidade que irá combate ao racismo, especialmente lência pelo Direito. Contudo, em caracterizar o racismo na diferen- 19 termos mais reflexivos, acredito quando pensamos a partir da Con- ciação social brasileira, um racismo venção de Durban25, em 2001, que que um ponto deve estar presente que ocorre pela negação da ideia de sinalizou a urgência de uma pauta em qualquer pretensão mais nor- raça. Tanto, que isto é o que levará o político-jurídica em escala mundial mativista de combate à violência. movimento negro a pressionar pela para o problema do racismo e de- Esse ponto é atentarmos para o reconstrução política do conceito mais práticas discriminatórias. O Es- fato de que o Direito só resolve os de raça, como forma de reconstruir tado Brasileiro pareceu reagir a essa problemas que ele mesmo cria, ou a diferença que possibilita a obser- provocação com uma potencialização seja, temos que projetar respostas vação da desigualdade racial, uma interna das discussões sobre as rela- perguntando como os sistemas so- forma de combate ao racismo para ciais constroem os seus processos reintrodução de ideia de raça. ções raciais no país, que acabaram de inclusão/exclusão. por produzir arcabouços normativos O que se coloca, então, como um relevantes como a Lei n° 10.639/03, Racismo dos campos problemáticos para re- o Estatuto da Igualdade Racial, Lei flexão, é o jogo antagônico entre de Cotas Raciais. Entretanto, esses Para não soar tão abstrato, pode- o aumento na produção de dados dispositivos ainda estão longe de se mos abrir para um certo nacionalis- empíricos sobre a desigualdade ra- apresentarem como resposta efetiva mo metodológico, e tomar o Direito cial, sua exposição e publicização, e para o massacre que o Brasil realiza para analisar a dinâmica do racis- a manutenção de uma interpretação com a juventude negra. Somos o país mo no Brasil. O racismo talvez seja dogmática no Direito de que as difi- de mais de 50 mil homicídios por a violência mais representativa do culdades e preconceitos experimen- ano, mas esses homicídios não são contexto brasileiro, uma dinâmica tados pela população negra seriam aleatórios, contingenciais ou difusos. que potencialmente impacta mais contingenciais, acidentais, ou, de As vítimas são na maioria homens, de 50% da população brasileira. É forma mais precisa, o racismo não jovens, pobres e negros. E sobre essa partir dessa premissa que a constru- teria um papel estrutural na socieda- dinâmica da violência, pouca respos- ção de uma resposta a esta questão de brasileira. Essa recusa interpre- ta o Direito tem dado.■ deve elaborar as linhas iniciais de tativa, que nega a existência de um uma observação do fenômeno do ra- “racismo sistêmico” no Brasil, que 25 Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação cismo no Brasil. Embora a formação ignora a função que a comunicação Racial, Xenofobia e Formas Conexas de Intolerância. Dur- ban, realizada em 2001. Integra a série de eventos interna- dos processos de exclusão, dentro da raça negra desempenha na for- cionais organizados pela Unesco denominada Conferência da lógica operativa dos sistemas so- Mundial contra o Racismo (WCAR). Quatro conferências mação de hierarquias na sociedade foram realizadas: em 1978, 1983, 2001 e 2009. (Nota da ciais, escondesse o reconhecimento brasileira, e sua consequente natu- IHU On-Line)

EDIÇÃO 521 TEMA 01

TEMA DE CAPA

O interminável Maio de 1968 Patrick Viveret viveu a ebulição dos meses, desde 1967, que antecederam a tomada das ruas, universidades e fábricas por estudantes e trabalhadores franceses

Vitor Necchi | Tradução: Vanise Dresch | Edição: Ricardo Machado

onge de um certo pessimismo que impulsionam os desafios contem- diante da memória de 1968 e mais porâneos. “Em suma, estas são as três distante ainda do ufanismo ro- grandes questões sobre o futuro da mânticoL em torno do maio francês, Pa- humanidade com as quais deparamos: trick Viveret, em entrevista por e-mail à a questão ecológica relativa ao futuro IHU On-Line, analisa um dos eventos do nosso planeta; aquela da transfor- mais marcantes da segunda metade do mação do trabalho: o que vamos fazer século 20. “Maio de 1968 foi, para mim, da nossa vida?; e a mais radical, com a uma vitória inacabada, ainda sem pala- revolução biotecnológica: o que vamos vras para defini-la, sem uma verdadeira fazer com a nossa espécie?”, provoca o forma política”, pontua. “Nesse senti- entrevistado. do, as questões levantadas em 68 estão Patrick Viveret é formado em Fi- diante de nós, não foram deixadas para losofia e doutor pelo Instituto deEs- 20 trás”, complementa. tudos Políticos de Paris. Na década de Olhando para o mundo atual e para as 1960, participou da Juventude Estu- promessas da revolução 4.0, Viveret su- dantil Cristã - JEC (Jeunesse Étudian- blinha a exaustão de um projeto global te Chrétienne, no original). É autor de construído no pós-guerra, apresentado Reconsiderar a Riqueza (Brasília: Ed. por ele em três eixos: “Um crescimen- Universidade de Brasília, 2006), De la to essencialmente material, mas para convivialité. Dialogues sur la société todos (sem questionamento sobre a conviviale à venir, ouvrage collectif natureza); um modo de produção in- (Paris: Éditions La Découverte, 2011) dustrial; e o Estado-Nação”. O interes- e La Cause Humaine, du bon usage de sante, contudo, é que aquilo que pode la fin d’un monde (Paris: Èditions Les ser considerado como o fim da linha Liens qui Libèrent, 2012). é, ao mesmo tempo, as três perguntas Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor par- na Sorbonne, iniciou-se com uma ca do prédio delas, para lutar contra ticipou dos acontecimentos de questão que não era diretamente po- essa discriminação. Foi também nes- 1968 na França. O que o mobi- lítica, mas altamente societal – foi se contexto de grande ebulição que lizou naquele momento? a questão da discriminação entre o tomamos conhecimento da prisão acesso ao prédio masculino e ao pré- de um militante do Comitê Vietnã Patrick Viveret – Em 22 de mar- dio feminino. As mulheres podiam Nacional1, ocorrida durante uma ma- ço de 1968, eu era estudante em entrar no prédio dos homens, mas nifestação contra, principalmente, a Nanterre e morava na cidade uni- estes não podiam entrar no das mu- American Express. Por solidariedade, versitária. Eu tinha 20 anos. O pri- lheres. Nossas “camarades femmes” decidiu-se lançar um movimento de meiro fator, conhecido como “movi- [colegas ou camaradas mulheres], mento de 22 de março”, que depois como dizíamos na época, queriam 1 O Comitê Vietnã Nacional foi um grupo francês formado em 1966 para protestar contra a intervenção americana no desencadeou o movimento de maio que fizéssemos uma invasão pacífi- Vietnã. (Nota da tradutora)

7 DE MAIO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE

“Maio de 1968 foi, para mim, uma vitória inacabada”

ocupação do prédio administrativo citados levam a debates muito atuais, mulher muito mais velha que ele da faculdade. Participei porque es- como o desafio indicado, no plano te- quando era aluno dela, ao passo tava no segundo ano de Filosofia na órico, por Hannah Arendt2, em A con- que, na França dos anos 1970, em faculdade de Nanterre. Aliás, parti- dição humana (São Paulo: Forense semelhantes circunstâncias, outra cipei também de movimentos que já Universitária, 2016), sobre a necessi- mulher teria se suicidado. vinham de bem antes, pois todo o ano dade de passar de uma civilização do Mas a reação das forças conserva- de 1967 foi marcado por movimentos trabalho, do labor, a uma “civilização doras à emancipação das mulheres muito importantes na universidade. da obra”. Não se trata mais, hoje, de uma questão teórica, mas, sim, prá- ainda é muito forte, como vemos, Maio de 1968 foi, para mim, uma tica: a possibilidade de uma nova di- por exemplo, nos Estados Unidos, vitória inacabada, ainda sem pala- visão do trabalho entre os robôs e os com a força dos movimentos que vras para defini-la, sem uma verda- humanos, reservando para estes, por tentam impedir o aborto. Trata-se, deira forma política, embora, alguns exemplo, o que pertence à obra e ao portanto, de um combate que se anos depois, o chamado Movimento ofício. Isso também traz a questão das mantém atual. 21 Autogestionário tenha tentado lhe novas formas de relação entre obras e dar uma linguagem política. Mas, no renda, como a renda mínima. ano de 1968, isso não existia. IHU On-Line – Que questões são urgentes e fundamentais de IHU On-Line – Um dos temas se discutir no mundo atual? Em IHU On-Line – As efemérides em 1968 era a questão do pra- que se deve avançar? são momentos de celebrar da- zer, a revolução sexual, a revo- Patrick Viveret – Não devemos tas e de reinterpretá-las. Para lução dos costumes. Nesse sen- esquecer que 1968 vem num mo- além disso, a evocação de 1968 tido, o que se avançou? mento em que se anuncia, no mundo pode sugerir caminhos para se inteiro, a exaustão do grande ciclo compreender a atualidade? Patrick Viveret – Sim, avança- mos, como mostra o fato de que, social-democrata do pós-guerra, que Patrick Viveret – Os principais hoje, chefes de Estado podem se se caracteriza por três elementos: slogans de 68 são em grande parte divorciar, viver com alguém sem um crescimento essencialmente extraordinariamente antecipado- estarem casados ou, como o pre- material, mas para todos (sem ques- res. Por exemplo, “Chega de perder sidente francês atual, ter começa- tionamento sobre a natureza); um a vida para ganhá-la”. Este slogan, do um relacionamento com uma modo de produção industrial; e o escrito pela primeira vez nos muros Estado-Nação. Assim, a questão eco- da fábrica Sochaux (“Gilda, eu amo 2 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e sociólo- lógica não é pensada em relação ao ga alemã, de origem judaica. Foi influenciada por você. Chega de perder nossa vida Husserl, Heidegger e Karl Jaspers. Em consequ- modelo de crescimento; outro aspec- ência das perseguições nazistas, em 1941, partiu para ganhá-la”), vai circular e “vi- para os Estados Unidos, onde escreveu grande to que não é pensado, pode-se dizer, ralizar” (como diríamos hoje), abor- parte das suas obras. Lecionou nas principais é a questão espiritual no sentido am- universidades deste país. Sua filosofia assenta em dando o tema da transformação do uma crítica à sociedade de massas e à sua ten- plo; e, por último, a questão global, dência para atomizar os indivíduos. Preconiza um trabalho e do emprego, e está rela- regresso a uma concepção política separada da que começa a aparecer, mas que o cionado com outro grande slogan: esfera econômica, tendo como modelo de inspi- Estado-Nação não assume. ração a antiga cidade grega. A edição 438 da IHU “Cansados de tomar o metrô, traba- On-Line, A Banalidade do Mal, de 24-3-2014, dis- O grande projeto de construção lhar e dormir (“Ras-le-bol du métro, ponível em https://goo.gl/QqtQjz, abordou o tra- balho da filósofa. Sobre Arendt, confira ainda as para o futuro, a meu ver, diz respeito boulot, dodo”). edições 168 da IHU On-Line, de 12-12-2005, sob o título Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. às respostas para esses três anseios Três mulheres que marcaram o século XX, dispo- Nesse sentido, as questões levanta- nível em http://bit.ly/ihuon168, e 206, de 27-11- fundamentais, que foram instru- das em 68 estão diante de nós, não 2006, intitulada O mundo moderno é o mundo sem mentalizados de forma regressiva política. Hannah Arendt 1906-1975, disponível em foram deixadas para trás. Os slogans https://goo.gl/uNWy8u. (Nota da IHU On-Line) pela revolução neoconservadora,

EDIÇÃO 521 TEMA DE CAPA

que, por sua vez, leva a um im- Trump6, ao esgotamento desse IHU On-Line – O fundamenta- passe e a um fim de ciclo. Não é modelo. lismo, em suas diferentes ver- à toa que os dois países mais en- sões, é uma ameaça crescente? Diante dessa situação, devemos gajados nesse processo – o Reino considerar a questão global, mas ofe- Patrick Viveret – Sim. Porque é Unido com Thatcher3 e os Estados recendo-lhe como resposta a cida- uma resposta regressiva, mas pode- Unidos com Reagan4 – chegam dania planetária, no sentido do que rosa, a outra forma de fundamenta- hoje, com o Brexit5 e a eleição de Edouard Glissant chama de “mundia- lismo que é o fundamentalismo de lidade” [ou globalidade]; a mutação mercado, para empregar a expressão 3 Margaret Hilda Thatcher (1925-2013): políti- 7 ca britânica, primeira-ministra do Reino Unido de tecnológica, mas mostrando que ela de Joseph Stiglitz . Este fundamen- 1979 a 1990. Ao liderar o governo do Reino Unido, pode desembocar na lógica, por na- talismo destrói as raízes culturais, Thatcher estava determinada a reverter o que via como o declínio nacional de seu país. Suas políticas tureza, cooperativa do conhecimento sociais, nacionais das coletividades econômicas foram centradas na desregulamenta- ção do setor financeiro, na flexibilização do mer- e da informação; e uma demanda es- humanas. A tentação, então, é de cado de trabalho e na privatização das empresas piritual alternativa à regressão iden- isolamento identitário, seja este na- estatais. Sua popularidade esteve baixa em meio à recessão econômica iniciada com a Crise do petró- titária e dogmática. Em suma, estas cionalista ou religioso. Isso gera hoje, leo de 1979. No entanto, uma rápida recuperação econômica, além da vitória britânica na Guerra das são as três grandes questões sobre o como sempre gerou, impasses trági- Malvinas, fizeram ressurgir o apoio necessário para futuro da humanidade com as quais cos. É com a criação de um verdadei- sua reeleição em 1983. Devido ao fato de Thatcher ter sobrevivido a uma tentativa de assassinato em deparamos: a questão ecológica re- ro movimento inverso pela cidadania 1984, de sua dura oposição aos sindicatos e de sua forte crítica à União Soviética, foi alcunhada de lativa ao futuro do nosso planeta; planetária, que respeite as diferenças, “Dama de Ferro”. (Nota da IHU On-Line) aquela da transformação do trabalho: integrando-as ao mesmo tempo num 4 Ronald Reagan (1911-2004): ator norte-ameri- cano formado em economia e sociologia. Foi eleito o que vamos fazer da nossa vida?; e marco comum de direitos e respon- governador da Califórnia em 1966, e se reelegeu em 1970 com uma margem de um milhão de votos. a mais radical, com a revolução bio- sabilidades, principalmente no plano Conquistou a indicação à presidência pelo Partido tecnológica: o que vamos fazer com a ecológico, que conseguiremos avan- Republicano em 1980, e os eleitores, incomodados com a inflação e com os americanos mantidos há nossa espécie? çar. Como afirmamos na rede inter- um ano como reféns no Irã, o conduziram à Casa nacional Diálogos em Humanidade: Branca. Antes de ocupar a presidência, passou 28 anos atuando como ator em 55 filmes que não en- Nosso país é a Terra e nosso povo é a traram para a história, mas que lhe deram fama e popularidade. Sua carreira no cinema terminou em disponível em http://bit.ly/2gazMuF; e O Brexit e a globali- humanidade! 1964, em “The Killers”, único filme em que atuou zação, artigo de Luiz Gonzaga Belluzzo, publicado por Car- 22 como vilão. (Nota da IHU On-Line) taCapital e reproduzido nas Notícias do Dia de 12-7-2016, O ano de 1968 representou uma fra- 5 Brexit: a saída do Reino Unido da União Europeia é ape- disponível em http://bit.ly/2eY4F68. Confira mais textos em lidada de Brexit, palavra-valise originada na língua inglesa ihu.unisinos.br. (Nota da IHU On-Line) tura cultural e social mundial de leste resultante da fusão das palavras Britain (Grã-Bretanha) e 6 Donald Trump (1946): Donald John Trump é um empre- a oeste e de norte a sul. Este desafio exit (saída). A saída do Reino Unido da União Europeia tem sário, ex-apresentador de reality show e atual presidente sido um objetivo político perseguido por vários indivídu- dos Estados Unidos. Na eleição de 2016, Trump foi eleito permanece diante de nós... ■ os, grupos de interesse e partidos políticos, desde 1973, o 45º presidente norte-americano pelo Partido Republi- quando o Reino Unido ingressou na Comunidade Econô- cano, ao derrotar a candidata democrata Hillary Clinton mica Europeia, a precursora da UE. A saída da União é um no número de delegados do colégio eleitoral; no entanto, direito dos estados-membros segundo o Tratado da União perdeu no voto popular. Entre suas bandeiras estão o pro- Europeia. A saída foi aprovada por referendo realizado em tecionismo norte-americano, por onde passam questões 7 Joseph Stiglitz: ex-vice-presidente do Banco Mundial junho de 2016, no qual 52% dos votos foram a favor de econômicas e sociais, como a relação com imigrantes nos – Bird, foi chefe dos economistas no governo Clinton, Es- deixar a UE. O Instituto Humanitas Unisinos - IHU, na seção Estados Unidos. Trump é presidente do conglomerado The tados Unidos, e prêmio Nobel de Economia 2001. Ele é Notícias do Dia de seu site, vem publicando uma série de Trump Organization e fundador da Trump Entertainment autor, entre outros, dos seguintes livros, traduzidos para análises sobre o tema. Entre elas, A alma da Europa depois Resorts. Sua carreira, exposição de marcas, vida pessoal, o português: A globalização e seus malefícios (São Paulo: do Brexit, artigo de Roberto Esposito, publicado no jornal La riqueza e modo de se pronunciar contribuíram para torná Futura, 2003) e Os Exuberantes anos 90 (São Paulo: Com- Repubblica e reproduzido nas Notícias do Dia de 1-7-2016, -lo famoso. (Nota da IHU On-Line) panhia das Letras, 2003). (Nota da IHU On-Line)

Leia mais

- A desertificação humana e ecológica. Entrevista especial com Patrick Viveret publicada na revista IHU On-Line, nº 469, de 3-8-2015, disponível em http://bit.ly/2InVPwb; - “Estamos indo em direção a uma qualidade superior de humanidade”. Entrevista com Patrick Viveret publicada nas Notícias do Dia, de 07-02-2010, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, disponível em http://bit.ly/1DeLb3C.

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É indispensável recuperar o sentido dos gestos de renovação dos anos 60 Para Enéas de Souza, a grande herança daqueles anos vem da ideia lacaniana de não ceder do seu desejo, e isso atravessa a subjetividade e as ações sociais

Vitor Necchi

utopia de Maio de 68 foi uma Souza entende que “foi uma época ina- ideia de transformação social, cabada e incompleta, porque não con- econômica, política e cultural da seguiu unir a transformação econômica Asociedade contemporânea na direção e política da classe operária com uma de uma sociedade socialista e libertá- transformação cultural profunda”. ria”, entende o economista Enéas de O economista acredita que “pensar Souza. A sua hipótese é que “ela se deu a grande fecundidade daquele tempo num momento de crise de desenvolvi- histórico, os atos fundamentais da- “mento do capitalismo”. quela época, pode dar um sentido mais Para Souza, “ficou a utopia como uma empolgante ao tempo presente”. Ele energia revolucionária ampla”. Na vora- ressalva que “não se trata de copiar o gem histórica daquele tempo, sobressa- que foi feito, mas é indispensável recu- íram “os efeitos sobre a vida cotidiana, perar o sentido dos gestos de renova- 24 que se ampliou com o questionamen- ção dos anos 60. É preciso redescobrir to de todos os seus aspectos, desde o o tesouro dos atos e dos pensamen- sexo até o engajamento político”. Esse tos”. No seu entendimento, a grande universo afrontou “a sociedade antiga, herança daqueles anos “vem da ideia onde habitavam as práticas políticas lacaniana de não ceder do seu desejo”, congeladas, as atividades burocráticas e “essa herança atravessa a subjetivi- ferozes, os esquemas intelectuais con- dade e as ações sociais”. servadores e as práticas cotidianas sem Enéas de Souza é graduado em Fi- exuberâncias vitais”. losofia e em Ciências Econômicas e es- Em 1968, Souza era um jovem que es- pecialista em Didática Geral e Especial teve em Paris pouco antes da eclosão do de Filosofia pela Universidade Federal movimento. Em entrevista concedida por do Rio Grande do Sul – UFRGS, e mes- e-mail à IHU On-Line, lembra que os tre em Economia pela Universidade “jovens estavam loucos para mudarem”, Estadual de Campinas – Unicamp. É e Maio de 68 terminou quando não hou- crítico de cinema e analista membro da ve ‘liga’ entre a cultura e a política”. Associação Psicanalítica de Porto Ale- Do ímpeto libertário, “emergiu um gre – APPOA Trabalhou na Fundação processo capitalista de reafirmação da de Economia e Estatística – FEE. Autor hegemonia americana-inglesa, através de Trajetórias do Cinema Moderno e de uma ação de corte capitalista, de en- outros textos (Porto Alegre: Da Cidade) trada em campo das finanças, do dólar e co-autor de Cinema. O Divã e a Tela flexível, de destruição da força operária (Porto Alegre: Artes e ofícios, junto dos sindicatos, ou seja, com a presença com Robson de Freitas). do neoliberalismo”. Passados 50 anos, Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual foi a uto- Enéas de Souza – A utopia de e cultural da sociedade contempo- pia de Maio de 68? E quando Maio de 68 foi uma ideia de trans- rânea na direção de uma sociedade ela terminou? formação social, econômica, política socialista e libertária. A minha hipó-

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“A utopia de Maio de 68 foi uma ideia de transformação social, econômica, política e cultural da sociedade contemporânea na direção de uma sociedade socialista e libertária”

tese é que ela se deu num momento bém temos outro processo comple- sexo até o engajamento político. E de crise de desenvolvimento do ca- xo: a vasta crise no sistema soviético essas realidades se afrontaram com pitalismo. De um lado, a entrada em causada pela incapacidade do seu a sociedade antiga, onde habitavam cena – depois do desenvolvimento capitalismo de Estado, supostamen- as práticas políticas congeladas, as produtivo multinacional do pós- te socialista, e pelo excesso de “cen- atividades burocráticas ferozes, os guerra e do começo da expansão fi- tralismo democrático” no desen- esquemas intelectuais conservado- nanceira do capital – de uma crise volvimento político do movimento res e as práticas cotidianas sem exu- na base da produção industrial com do comunismo no mundo. Assim, berâncias vitais. Os jovens estavam a nova expansão do petróleo, de um emergiram nesse tempo crises de to- loucos para mudarem. E Maio de 68 caminho de integração entre ciên- das as ordens: política, burocrática, terminou quando não houve “liga” cia e indústria que vai germinar nos industrial e, sobretudo, ideológica. entre a cultura e a política. próximos 30 anos uma revolução Toda essa combustão que balança das chamadas novas tecnologias de o processo histórico aponta o seu IHU On-Line – Das ruas de 25 comunicação e informação. De ou- momento crítico para a França e se Maio de 1968, emanava o grito tro lado, o prenúncio de uma futura move numa tentativa de transforma- “é proibido proibir”. Criticava- transformação da base monetária ção global da sociedade capitalista a se o sistema, a família, a tra- da sociedade: a passagem do dólar partir da utopia de Maio. Num sen- dição, a moral, as proibições. -ouro para o dólar flexível, garan- tido, a tentativa de superar a distân- Que mundo emergiu desse ím- tido pelo Estado americano, que se cia entre a política, a economia e a peto libertário? dará em 1971. cultura; ao mesmo tempo, algo dessa Enéas de Souza – Emergiu um Acompanha, é claro, uma enorme utopia se espalhou por todo o mun- processo capitalista de reafirmação derrota geopolítica americana, oriunda do. O epicentro dessa crise é Paris, da hegemonia americana-ingle- do fracasso da guerra no Vietnã1. Na onde há uma busca de unir certa sa, através de uma ação de corte época, se pensava inclusive na queda transformação cultural com a meta- capitalista, de entrada em campo de seu poder hegemônico. Maio de 68 morfose do econômico e da política. das finanças, do dólar flexível, de foi um fenômeno resultante desse en- E a fratura da utopia se dá na insu- destruição da força operária dos voltório econômico e político dos Esta- ficiência do PCF [Partido Comunista sindicatos, ou seja, com a presen- dos Unidos no quadro da Guerra Fria2. Francês] em compreender o movi- ça do neoliberalismo. E também mento estudantil e intelectual e do certa incompetência soviética para Nesse movimento histórico, tam- movimento estudantil e intelectual enfrentar os desafios geopolíticos de pensar que o movimento cultural americanos. 1 Guerra do Vietnã: conflito armado entre 1964 e 1975 no Vietnã do Sul e nas zonas fronteiriças do Camboja e desse a partida para algo maior. do Laos, com bombardeios sobre o Vietnã do Norte. Ins- Pode-se constatar um enrijeci- creve-se no contexto da Guerra Fria, conflito entre as po- Ficou a utopia como uma energia tências capitalistas e o bloco comunista. De um lado, com- mento das análises econômicas, batiam a coalização de forças incluindo Estados Unidos, revolucionária ampla. O acento se fez políticas e culturais do movimento República do Vietnã (Vietnã do Sul), Austrália e Coreia do Sul. Do outro, estavam República Democrática do Vietnã, numa mudança estrutural da cultura socialista, e a quebra das reações Frente de Liberação Nacional (FLN) e a guerrilha comunis- desde a renovação da psicanálise, da ta sul-vietnamita. A ex-URSS e a China forneceram ajuda operárias, sobretudo nos sindica- material ao Vietnã do Norte e ao FLN, mas não tiveram explosão das artes – principalmente tos. Apesar de tudo, encontramos a participação militar ativa no conflito. A Guerra do Vietnã era uma parte do conflito regional envolvendo os países do cinema – e a profunda reformu- emergência cultural como o estru- vizinhos do Camboja e do Laos, conhecido como Segunda lação da filosofia. Nessa voragem turalismo, o movimento lacaniano, Guerra da Indochina. (Nota da IHU On-Line) 2 Guerra Fria: nome dado a um período histórico de histórica, sobressaíram também os a expansão do cinema desdramá- disputas estratégicas e conflitos entre Estados Unidos e União Soviética, que gerou um clima de tensão que en- efeitos sobre a vida cotidiana, que tico e de grande espontaneidade volveu países de todo o mundo. Estendeu-se entre o final se ampliou com o questionamento com origem da Nouvelle Vague, da Segunda Guerra Mundial (1945) e a queda da União Soviética (1991). (Nota da IHU On-Line) de todos os seus aspectos, desde o uma certa transformação do cine-

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ma americano comercial, mutações senhor viveu em Paris. Como do espetáculo crítico. E começavam artísticas importantes. foi esta experiência? Havia algo a emergir a psicanálise lacaniana8, que prenunciasse os aconteci- De qualquer forma, o que se viu foi o marxismo estruturalista com Al- a capacidade do capitalismo de re- mentos de Maio? thusser9, as mutações filosóficas de 10 11 cuperar todas as práticas antissistê- Enéas de Souza – Foi uma expe- Foucault , Deleuze , o ressurgimen- micas para o fortalecimento do sis- riência muito marcante, porque os 8 Jacques Lacan (1901-1981): psicanalista francês. Re- tema, como, por exemplo, o mundo acontecimentos foram vividos como alizou uma releitura do trabalho de Freud, mas acabou hippie. E no desenvolvimento do por eliminar vários elementos deste autor. Para Lacan, a necessidade de uma transforma- o inconsciente determina a consciência, mas ainda as- neoliberalismo houve um deslanche ção social profunda no nível de uma sim constitui apenas uma estrutura vazia e sem conte- údo. Confira a edição 267 da revista IHU On-Line, de do capitalismo financeiro e indus- totalidade dinâmica. A ebulição cul- 4-8-2008, intitulada A função do pai, hoje. Uma leitura trial para capitalizar toda a socieda- de Lacan, disponível em http://bit.ly/ihuon267. Sobre tural era perturbadoramente fan- Lacan, confira as seguintes edições da revista IHU On de, sobretudo de elementos do Es- tástica. Vínhamos de uma cultura -Line, produzidas tendo em vista o Colóquio Interna- cional A ética da psicanálise: Lacan estaria justificado tado: educação, saúde, transportes, 3 4 dominada por Heidegger , Sartre , em dizer “não cedas de teu desejo”? [ne cède pas sur energia. E ultimamente, sobretudo, 5 ton désir]?, realizado em 14 e 15 de agosto de 2009: Merleau-Ponty , Simone de Beau- edição 298, de 22-6-2009, intitulada Desejo e violência, a cultura. Com isso, o sistema ab- disponível em https://bit.ly/2HMLQAW, e edição 303, voir6, o marxismo luckasiano7, o ci- sorveu a postura crítica. de 10-8-2009, intitulada A ética da psicanálise. Lacan nema neorrealista italiano, o cinema estaria justificado em dizer “não cedas de teu desejo”?, disponível em https://bit.ly/2KApKzk. (Nota da IHU O neoliberalismo abafou até a ideia soviético, o cinema hollywoodiano On-Line) 9 (1918-1990): filósofo marxista fran- de passado cultural, de patrimônio cês nascido na Argélia. Aluno brilhante, foi aceito na cultural. Um dos exemplos é a posi- 3 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo alemão. Sua prestigiada École Normale Supérieure (ENS) em Paris, obra máxima é O ser e o tempo (1927). A problemática mas não pôde frequentar a escola, pois estava convo- ção favorável de alguns grupos à des- heideggeriana é ampliada em Que é Metafísica? (1929), cado para a Segunda Guerra Mundial. Acabou aprisio- Cartas sobre o humanismo (1947) e Introdução à meta- nado na Alemanha. Permaneceu no campo até o final truição de parcelas da cidade, uma física (1953). Sobre Heidegger, confira as edições 185, da guerra, ao contrário dos demais soldados, que fu- luta contra a memória da civilização. de 19-6-2006, intitulada O século de Heidegger, dis- giram para lutar – motivo pelo qual Althusser se puniu ponível em http://bit.ly/ihuon185, e 187, de 3-7-2006, mais tarde. Após a guerra, Althusser pôde frequentar Hoje, existem até arquitetos que pro- intitulada Ser e tempo. A desconstrução da metafísica, a ENS. Entretanto, sua saúde mental e psicológica es- disponível em http://bit.ly/ihuon187. Confira, ainda, tava severamente abalada, tendo, inclusive, recebido pugnam a construção de um edifício Cadernos IHU em formação nº 12, Martin Heidegger. terapia de eletrochoques em 1947. A partir de então, que, depois de usado, seja posto abai- A desconstrução da metafísica, que pode ser acessado Althusser sofreu de enfermidades periódicas duran- em http://bit.ly/ihuem12, e a entrevista concedida por te o resto de sua vida. A ENS foi compreensiva à sua xo para que aquele espaço seja ocu- Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU On-Line, de condição, permitindo que ele residisse em seu próprio 26 10-5-2010, disponível em https://goo.gl/dn3AX1, inti- quarto na enfermaria, onde viveu por décadas, a não pado por outra obra. Ou seja, nada tulada O biologismo radical de Nietzsche não pode ser ser em períodos de internação hospitalar. Marxista, de memória de civilização. O mun- minimizado, na qual discute ideias de sua conferência filiou-se ao Partido Comunista Francês em 1948. No A crítica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche e mesmo ano, tornou-se professor da ENS. Em 1946, Al- do se usa, não se questiona, não se a questão da biopolítica, parte integrante do ciclo de thusser conheceu Hélène Rytmann, uma revolucionária estudos Filosofias da diferença, pré-evento do XI Sim- de origem judaico-lituana oito anos mais velha. Ela foi aprimora, joga-se no lixo como uma pósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da sua companheira até 16 de novembro de 1980, quan- civilização do descarte, do efêmero, vida humana. (Nota da IHU On-Line) do morreu estrangulada pelo próprio Althusser, num 4 Jean-Paul Sartre (1905-1980): filósofo existencia- surto psicótico. As exatas circunstâncias do ocorrido a civilização e a selvageria do digital. lista francês. Escreveu obras teóricas, romances, peças não são conhecidas – uns afirmam ter se tratado de teatrais e contos. Seu primeiro romance foi A náusea um acidente; outros dizem que foi um ato deliberado. Registra-se e apaga-se. E se vai em (1938), e seu principal trabalho filosófico é O ser e o Althusser afirmou não se lembrar claramente do fato, frente. Do mundo libertário surgiu o nada (1943). Sartre define o existencialismo em seu en- alegando que, enquanto massageava o pescoço da saio O existencialismo é um humanismo como a dou- mulher, descobriu que a tinha matado. A justiça con- mundo do apagamento. trina na qual, para o homem, “a existência precede a siderou-o inimputável no momento dos acontecimen- essência”. Na Crítica da razão dialética (1964), Sartre tos e, em conformidade com a legislação francesa, foi apresenta suas teorias políticas e sociológicas. Aplicou declarado incapaz e inocentado em 1981. Cinco anos suas teorias psicanalíticas nas biografias Baudelaire mais tarde, em seu livro L’avenir dure longtemps [O fu- (1947) e Saint Genet (1953). As palavras (1963) é a pri- turo dura muito tempo], Althusser refletiu sobre o fato, meira parte de sua autobiografia. Em 1964, foi esco- pretendendo reivindicar uma espécie de responsabili- “Os jovens lhido para o prêmio Nobel de literatura, que recusou. dade por seus atos quando do assassinato, o que ge- (Nota da IHU On-Line). rou uma polêmica entre seus correligionários e detra- 5 Maurice Merleau-Ponty (1908-1961): escritor e filó- tores, sobre tal responsabilidade ser filosófica ou real. estavam loucos sofo líder do pensamento fenomenológico na França. Althusser não foi preso, mas foi internado no Hospital Professor da Universidade de Lyon e na Sorbone, em Psiquiátrico Sainte-Anne, onde permaneceu até 1983. Paris. De 1945 a 1952 foi coeditor (com Jean-Paul Sar- Após esta data, ele se mudou para o norte de Paris, tre) do jornal Les Temps Modernes. Voltando sua aten- onde viveu de forma reclusa, vendo poucas pessoas e para mudarem. ção para as questões sociais, publicou um conjunto não mais trabalhando, a não ser em sua autobiografia. de ensaios marxistas, em 1947, Humanisme et terreur Louis Althusser morreu de ataque cardíaco em 22 de (Humanismo e Terror), a mais elaborada do comunis- outubro de 1990, aos 72 anos. (Nota da IHU On-Line) E Maio de mo soviético no final dos anos 1940. Confira a edição 10 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas 378 da revista IHU On-Line, de 31-10-2011, intitulada obras, desde a História da Loucura até a História da sexu- Merleau-Ponty. Um pensamento emaranhado no corpo, alidade (a qual não pôde completar devido a sua morte), 68 terminou disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/edi- situam-se dentro de uma filosofia do conhecimento. Fou- cao/378. (Nota da IHU On-Line) cault trata principalmente do tema do poder, rompendo 6 Simone de Beauvoir (1908-1986): escritora, filósofa com as concepções clássicas do termo. Em várias edições, quando não existencialista e feminista francesa. Ligou-se pessoal e a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição intelectualmente ao filósofo francês Jean-Paul Sartre. 119, de 18-10-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon119; Entre seus ensaios críticos, destaca-se O segundo sexo edição 203, de 6-11-2006, disponível em https://goo.gl/ houve “liga” (1949), uma profunda análise sobre o papel das mu- C2rx2k; edição 364, de 6-6-2011, intitulada ‘História da lheres na sociedade; A velhice (1970), sobre o processo loucura’ e o discurso racional em debate, disponível em de envelhecimento, no qual teceu críticas apaixonadas https://goo.gl/wjqFL3; edição 343, O (des)governo biopolí- entre a cultura sobre a atitude da sociedade para com os anciãos; e tico da vida humana, de 13-9-2010, disponível em https:// A cerimônia do adeus (1981), uma evocação da figura goo.gl/M95yPv, e edição 344, Biopolítica, estado de exce- de seu companheiro de tantos anos, Sartre. (Nota da ção e vida nua. Um debate, disponível em https://goo.gl/ e a política.” IHU On-Line) RX62qN. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU 7 Georg Lukács (György Lukács, 1885-1971): filósofo em formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, Michel húngaro, de grande importância no cenário intelectual Foucault – Sua Contribuição para a Educação, a Política e a do século 20. Em sua trajetória procurou refazer o per- Ética. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line – Entre o final curso da filosofia clássica alemã, inicialmente como crí- 11 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo francês. Assim tico influenciado por Kant, depois Hegel e, finalmente, como Foucault, foi um dos estudiosos de Kant, mas tem de 1967 e fevereiro de 1968, o aderindo ao marxismo. (Nota da IHU On-Line) em Bergson, Nietzsche e Espinosa, poderosas interseções.

7 DE MAIO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE to nietzschiano12, a passagem das La Chinoise, saído em fevereiro, tinha um jornal chamado Versus, artes plásticas da Europa para os Es- previa a irrupção de algo revolucio- publicou uma crônica de Sartre so- tados Unidos, o teatro de Beckett13, o nário. Mas o clima parisiense era de bre a ocupação, quando a mínima cinema novo, a bossa nova. E assim que Godard estava louco. Sim, o am- resistência de uma palavra criativa o novo mundo eram as aulas mag- biente estava quieto e parecia um cli- nos cafés de Paris era um ato polí- níficas de Lacan, a força sombria de ma de marasmo. Nada parecia que o tico. A resistência à ditadura era Althusser e o término emocionante mundo ia vir abaixo. E vimos, então: muito forte, inclusive por ocasião do de Sartre. E que profundas modifi- Godard estava certo. Por um instan- chamado “Milagre econômico”, que cações nas relações homem-mulher, te, o raio da tempestade da renova- começou em 68-69. A resistência de- que cheques da visão eurocêntrica ção se fez presente. Uma imagem sembocou no campo político do coti- até as novas perspectivas chinesas. para nunca se esquecer. diano, inclusive eleitoral, e no espa- Isto tudo estava no dia a dia, tumul- ço da guerrilha. Um pouco daquela tuando os pensamentos, as ideias, os energia que existia no mundo a favor corpos, as relações. Surgiram novas IHU On-Line – No final dos da liberdade e contra o mundo capi- dimensões no cinema, na filosofia, anos 1960, vigia a ditadura mi- talista desarvorado pousou no Brasil na psicanálise, no teatro. Mas, ape- litar no Brasil. Como se cons- e culminou no movimento das Dire- sar dessa ebulição vasta e enorme, o tituía a vida em um país sem tas Já. O retorno da democracia foi mundo político parecia estagnado e democracia, enquanto o mun- renovador, mas deu origem, no mé- nada prenunciava o surgimento de do estava em ebulição, em um dio prazo, a outros graves problemas Maio. Apenas o filme de 14Godard, tempo de questionamento e que estamos vivendo hoje. ruptura? Professor da Universidade de Paris VIII, Vincennes, Deleu- Enéas de Souza – Aqui no Brasil, ze atualizou ideias como as de devir, acontecimentos e IHU On-Line – Para a geração singularidades. (Nota da IHU On-Line) havia uma resistência progressiva, 12 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo alemão, que viveu o Maio de 68, pas- conhecido por seus conceitos além-do-homem, transva- popular e intelectual, contra o movi- sados 50 anos, qual o entendi- loração dos valores, niilismo, vontade de poder e eterno mento de 64. Esse nunca triunfou ide- retorno. Entre suas obras, figuram como as mais impor- mento sobre aquele tempo? tantes Assim falou Zaratustra (Rio de Janeiro: Civilização ologicamente. Culturalmente era um Brasileira, 1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) e A genealogia da moral (São Paulo: Centauro, 2004). Escreveu movimento reacionário, conservador Enéas de Souza – Foi uma épo- até 1888, quando foi acometido por um colapso nervoso 27 que nunca o abandonou até o dia de sua morte. A Nietzs- politicamente. E contra os avanços so- ca inacabada e incompleta, porque che, foi dedicado o tema de capa da edição número 127 ciais. E contra a civilização. Começava não conseguiu unir a transformação da IHU On-Line, de 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filó- sofo do martelo e do crepúsculo, disponível para download também uma revolução sexual inten- econômica e política da classe operá- em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição 15 dos Cadernos IHU em formação é intitulada O pensamento de Friedrich Nietzs- sa, um movimento cultural e artístico ria com uma transformação cultural che, e pode ser acessada em http://bit.ly/HdcqOB. Confira, de grande modernização. E mesmo profunda, sobretudo na tentativa de também, a entrevista concedida por Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-5-2010, disponível em depois, de forte repressão, o movi- desvincular a transformação socia- http://bit.ly/162F4rH, intitulada O biologismo radical de mento libertador continuou resistindo lista geralmente pensada de modo Nietzsche não pode ser minimizado, na qual discute ideias de sua conferência A crítica de Heidegger ao biologismo de nas “catacumbas”. Havia mesmo uma economicista, para uma transfor- Nietzsche e a questão da biopolítica, parte integrante do Ciclo de Estudos Filosofias da diferença – Pré-evento do XI ideia de que o país estava militarmen- mação de uma sociedade econômi- Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da te ocupado, e a semelhança da França ca, política e cultural marcada pela vida humana. Na edição 330 da revista IHU On-Line, de 24-5-2010, leia a entrevista Nietzsche, o pensamento trá- ocupada na Segunda Guerra Mundial ideia de liberdade e não submetida gico e a afirmação da totalidade da existência, concedida pelo professor Oswaldo Giacoia e disponível em https:// era muito falada. goo.gl/zuXC4n. Na edição 388, de 9-4-2012, leia a entre- portante referência na história da imprensa brasileira por vista O amor fati como resposta à tirania do sentido, com O jornalista Marcos Faerman15, que conta de seu trabalho como criador e editor de publica- Danilo Bilate, disponível em http://bit.ly/HzaJpJ. (Nota da ções alternativas que resistiram à ditadura militar e de suas IHU On-Line) reportagens, situadas na fronteira entre a literatura e o 13 Samuel Beckett (1906-1989): escritor e dramaturgo jornalismo. Escreveu mais de 800 reportagens para o Jor- irlandês. Autor de uma obra bilíngue (francês e inglês), seguintes confirmaram Godard como um dos mais inven- nal da Tarde, durante 24 anos. Tornou-se conhecido pela por vezes designada como “literatura da angústia”. Con- tivos diretores da Nouvelle Vague: Vivre sa vie (1962; Viver prática do jornalismo literário. Começou a carreira aos 17 siderado um dos escritores mais influentes do século 20. a vida), O Desprezo (1963), Bande à part (1964), Alphaville anos, quando foi contratado para trabalhar como jorna- Fortemente influenciado por James Joyce, é considerado (1965), Pierrot le fou (1965; O demônio das 11 horas), Deux lista profissional na Última Hora, de Porto Alegre, após um dos últimos modernistas. Como inspiração para mui- ou trois choses que je sais d’elle (1966; Duas ou três coisas levar para o jornal um manifesto estudantil. Integrou-se tos escritores posteriores, também é considerado um dos que eu sei dela), La Chinoise (1967; A chinesa) e Week-end ao Partido Comunista Brasileiro em 1964 e, em 1967, fez primeiros pós-modernistas. Ele é um dos escritores fun- (1968; Week-end à francesa). O cinema de Godard nes- parte da direção da Dissidência Leninista do Partido Co- damentais no que Martin Esslin chamou de Teatro do ab- sa fase caracteriza-se pela mobilidade da câmera, pelos munista Brasileiro no Rio Grande do Sul. Em 1968, parti- surdo. Recebeu o Nobel de Literatura de 1969. Utiliza nas demorados planos-sequências, pela montagem descontí- cipou da fundação do Partido Operário Comunista (POC) suas obras, traduzidas em mais de 30 línguas, uma riqueza nua, pela improvisação e pela tentativa de carregar cada e, eleito para a sua direção nacional, foi destacado para metafórica imensa, privilegiando uma visão pessimista imagem com valores e informações contraditórios. Após militar em São Paulo. No mesmo ano, ingressou no Jornal acerca do fenômeno humano. Sua obra mais famosa é a o movimento de Maio de 1968, Godard criou o grupo de da Tarde, em São Paulo, como redator de internacional. peça Esperando Godot. (Nota da IHU On-Line) cinema Dziga Vertov – assim chamado em homenagem Permaneceu no veículo ao longo de 24 anos, trabalhando 14 Jean-Luc Godard (1930): cineasta franco-suíço, nasci- a um cineasta russo de vanguarda – e voltou-se para o como redator, editor de Esportes, subeditor de Internacio- do em Paris. Reconhecido por um cinema vanguardista e cinema político. Pravda (1969) trata da invasão soviética nal, coeditor do Caderno de Sábado e repórter especial. polêmico, que tomou como temas e assumiu como forma, da Tchecoslováquia; Le vent d’Est (1969; Vento do Oriente), Durante o governo Médici (1969-1974), foi detido várias de maneira ágil, original e quase sempre provocadora, os com roteiro do líder estudantil Daniel Cohn-Bendit, des- vezes para prestar depoimentos no Departamento de dilemas e perplexidades do século 20. Um dos principais mistifica o western, e Jusqu’à la victoire (1970; Até a vitó- Ordem Política e Social (Dops). Acabou se afastando do nomes da Nouvelle Vague, assim como Truffaut. A partir ria) enfatiza a guerrilha palestina. Mais uma vez, Godard POC. A partir de 1970, atuou na imprensa alternativa, que de 1952, colaborou na revista Cahiers du Cinéma e, de- procurou inovar a estética cinematográfica com Passion fez oposição ao regime militar e discutiu temas ignorados pois de vários curta-metragens, fez em 1959 seu primeiro (1982), reflexão sobre a pintura. Os filmes seguintes, como pela grande imprensa ou proibidos pela censura, como a filme longo, À bout de souffle (Acossado), em que ado- Prénom: Carmen (1983) e Je vous salue Marie (1984), pro- tortura praticada contra os presos políticos, os sucessivos tou inovações narrativas e filmou com a câmera na mão, vocaram polêmica e o último deles, irreverente em relação cortes às liberdades individuais e os debates das correntes rompendo uma regra até então inviolável. Esse filme foi aos valores cristãos, esteve proibido no Brasil e em outros de esquerda. Foi, nesse ano, correspondente em São Paulo um dos primeiros da Nouvelle Vague, movimento que se países. (Nota da IHU On-Line) do semanário alternativo carioca O Pasquim. Lecionou na propunha renovar a cinematografia francesa e revaloriza- 15 Marcos Faerman (1943-1999): jornalista, administra- Faculdade de Jornalismo Cásper Líbero, em São Paulo, de va a direção, reabilitando o filme dito de autor. Os filmes dor cultural e professor nascido em Rio Pardo (RS), im- 1996 até 1999. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 521 TEMA DE CAPA

ao centralismo democrático de um mostra que a Arte é antecipadora da partido único. sociedade. La Chinoise, que saiu em “Foi uma época fevereiro de 68 na França, marcava A doença do burocratismo da po- com precisão todo um processo que lítica continuou em vários parti- inacabada e se encaminharia para algo revolucio- dos de esquerda. Pensar a grande nário. E os outros dois filmes porque fecundidade daquele tempo his- incompleta, marcam eventuais erros estratégicos tórico, os atos fundamentais da- da esquerda, como em Os sonhado- quela época, pode dar um sentido porque não res, enquanto que o filme de Phili- mais empolgante ao tempo pre- ppe Garrel ressalta a presença de um sente. Ouvir o passado, ouvir os conseguiu personagem que ficou marcado por gestos decisivos, criativos, inven- unir a Maio, sem renovar a sua vida e sem tivos, engenhosos daquela época sair para outros acontecimentos. pode ressoar nas necessidades do transformação presente histórico. Não se trata de copiar o que foi feito, mas é indis- econômica IHU On-Line – Deseja acres- pensável recuperar o sentido dos centar algo? gestos de renovação dos anos 60. e política da É preciso redescobrir o tesouro Enéas de Souza – O importante dos atos e dos pensamentos. classe operária foram os atos fundadores de Maio: o ensaio de renovação de uma so- com uma ciedade marcada pelo imobilismo IHU On-Line – A revolução se- político, econômico, e que não es- xual e a ideia de desinterdição transformação cutava a volúpia de uma ambição dos corpos e do prazer inflavam de renovação cultural de algumas as mentes da juventude ao final cultural frações do social. Havia a ideia dos anos 1960. Hoje, quando profunda” generosa de que essas transforma- 28 aqueles jovens são os velhos do ções seriam para toda a sociedade. presente, que balanço pode ser E, por outro lado, há que ter uma feito desse tema? IHU On-Line – Quais filmes atitude crítica para não exaltar a inspirados pelo Maio de 68 são revolta fácil. Há que perceber que Enéas de Souza – A grande he- importantes e por quê? a sociedade é sempre combate. rança daqueles anos, a meu ver, vem Para mim, há sempre uma tensão da ideia lacaniana de não ceder do Enéas de Souza – Três filmes me entre a civilização e selvageria. seu desejo. Essa herança atravessa a parecem importantes sobre Maio. Benjamim18 falava de que há bar- subjetividade e as ações sociais. Um que o antecipou fortemente: o fil- bárie em toda civilização e civili- me de Godard, La Chinoise. E os ou- zação em toda barbárie. Há que tros dois Os sonhadores, de Bernardo criar os instantes e o caminho de IHU On-Line – Maio de 68 foi Bertolucci16, e Amores Constantes, de superestimado? 17 Philippe Garrel . O primeiro porque em 1964. Em 1982, recebeu o Prix Jean Vigo pelo filme L’enfant secret. Em 1994, ganhou o Perspectives du Cinéma Enéas de Souza – Ele só é supe- Award no Festival de Cannes pelo seu film Liberté, la nuit 16 Bernardo Bertolucci (1941): cineasta e roteirista ita- (1983). Durante 10 anos, obteve grande reconhecimento restimado quando se pensa como liano. Em 1961, trabalhou como assistente de direção no no Festival de Veneza. Em 1991, recebeu o Leão de Prata saudade. E saudade que se ambi- filme Accattone, de Pier Paolo Pasolini. Em 1962, dirigiu por J’entends Plus la Guitare, que havia sido indicado para La commare secca. Obteve reconhecimento com seu se- o Leão de Ouro. La Vent de la Nuit foi indicado para o Leão cionaria fazer igual, e dessa vez, gundo filme, Antes da revolução, em que já demonstrava de Ouro em 1999. Dois anos mais tarde, Sauvage Innocen- seu estilo político e comprometido com seu tempo. Em ce foi indicado para o Leão de Ouro e ganhou o prêmio FI- certo. A história é sempre nova, é 1967, escreveu o roteiro de Era uma vez no oeste, um dos PRESCI. Seu filme de 2005, Amantes Constantes, recebeu o sempre outra, embora mantenha melhores filmes de Sérgio Leone. Nos Estados Unidos, di- Leão de Prata para Melhor Diretor. (Nota da IHU On-Line) rigiu O conformista (1970). Em 1972, lançou O último tan- 18 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo alemão. Foi sempre a ideia de que ela é um go em Paris, considerado sua primeira obra-prima. Depois refugiado judeu e, diante da perspectiva de ser captura- de fazer 1900, um filme monumental e muito ambicioso, do pelos nazistas, preferiu o suicídio. Associado à Escola confronto eternamente vivo. Tal- Bertolucci partiu para o drama intimista em La Luna. Em de Frankfurt e à Teoria Crítica, foi fortemente inspirado vez, se pensando bem, o ensino 1987, consagrou-se com O Último Imperador, que recebeu tanto por autores marxistas, como Bertolt Brecht, como nove Oscars, incluindo os de melhor filme e melhor dire- pelo místico judaico Gershom Scholem. Conhecedor de Maio de 68 foi que a política, a tor. Em O céu que nos protege (1990), rodado no deserto profundo da língua e cultura francesas, traduziu para o do Sahara, Bertolucci extraiu interpretações fantásticas de alemão importantes obras como Quadros parisienses, de sociedade é sempre um conflito de Debra Winger e John Malkovich. Seguiram-se O Pequeno Charles Baudelaire, e Em busca do tempo perdido, de Mar- forças, em que essas estão sempre Buda e Beleza Roubada. Seus últimos filmes falam de rela- cel Proust. O seu trabalho, combinando ideias aparente- cionamentos e sentimentos, são profundamente intimistas mente antagônicas do idealismo alemão, do materialismo dinamicamente se transforman- como Beleza roubada e Assédio. (Nota da IHU On-Line) dialético e do misticismo judaico, constitui um contributo 17 Philippe Garrel (1948): cineasta, fotógrafo, roteirista, original para a teoria estética. Entre as suas obras mais do e continuamente em oposição. editor e produtor francês. Seus filmes já ganharam prê- conhecidas, estão A obra de arte na era da sua reprodu- Maio é uma lição que se deve pro- mios em eventos prestigiados como o Festival de Cinema tibilidade técnica (1936), Teses sobre o conceito de história de Cannes e o Festival de Veneza. Teve um relacionamento (1940) e a monumental e inacabada Paris, capital do século curar nem superestimar, nem su- de 10 anos com a cantora e atriz alemã Nico entre 1969 e XIX, enquanto A tarefa do tradutor constitui referência in- 1979, com a atriz participando em sete de seus filmes en- contornável dos estudos literários. Sobre Benjamin, con- bestimar. A lição está na criação, tre 1972 e 1979. Pai do ator e diretor Louis Garrel e da atriz fira a entrevista Walter Benjamin e o império do instante, não ceder quanto à ousadia da in- Esther Garrel, fruto de seu relacionamento com Brigitte concedida pelo filósofo espanhol José Antonio Zamora Sy. Inciou sua carreira cinematográfica cedo, escrevendo à IHU On-Line nº 313, disponível em http://bit.ly/zamo- venção. e dirigindo o seu primeiro filme, Lés enfants désaccordés, ra313. (Nota da IHU On-Line)

7 DE MAIO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE uma civilização que se jogam pe- cidadãos, inclusive se apropriando Deus é dinheiro. Prefiro dizer, no las coisas importantes da vida: a dos seus dados, dos seus textos, entanto, que Deus é capital e que cultura material e espiritual, sem das suas imagens. É a era do olho suas outras duas figuras são o di- pensar que a selvageria seja ex- absoluto. Tudo vê e, se quisermos, nheiro e a mercadoria. É a divina purgada do mundo dos homens. A de tudo se apropria. trindade dessa sociedade de mate- rialismo vulgar. Ou seja, Maio de selvageria é estrutural. E na esfera cultural, o que temos 68 agora, para ser um novo maio – é uma desvinculação do cidadão Há, contudo, algo a acrescentar: e exitoso – terá que ser outro, um hoje, as bases de qualquer movi- da cultura com a consequente de- cadência da filosofia, das ciências maio do século 21, num longo en- mento de ambição, de transforma- frentamento com a tal divina trin- ção global, devem levar em consi- humanas, da assunção de uma re- ligiosidade frágil, de uma medica- dade, sem perder a democracia e a deração que, primeiro, o combate liberdade. ■ político é entre os Estados Unidos lização das questões psicanalíticas, e a Rússia e a China, com trans- de um campo artístico em retração, formações geopolíticas novas, por com o Estado cedendo sua política cultural para uma política autolau- bit.ly/jasson040907. A edição 236 da IHU On-Line, de 17- exemplo, como a subordinação datória do capital privado. E com 9-2007, publicou a entrevista Agamben e Heidegger: o completa do Brasil, do governo Te- âmbito originário de uma nova experiência, ética, política o triunfo das finanças, temos uma e direito, com o filósofo Fabrício Carlos Zanin, disponível mer e da época da Lava Jato, ao go- em https://goo.gl/zZRChp. A edição 81 da publicação, de nova religião, como diz Agamben19: 27-10-2003, teve como tema de capa O Estado de exce- verno americano. ção e a vida nua: a lei política moderna, disponível para acesso em http://bit.ly/ihuon81. Em 30-6-16, o professor Além disso, temos, em segun- 19 Giorgio Agamben (1942): filósofo italiano. É professor Castor Bartolomé Ruiz proferiu a conferência Foucault e da Facolta di Design e arti della IUAV (Veneza), onde ensi- Agamben. Implicações Ético Políticas do Cristianismo, que do lugar, uma época totalmente na Estética, e do College International de Philosophie de pode ser assistida em http://bit.ly/29j12pl. De 16-3-2016 a Paris. Formado em Direito, foi professor da Universitá di 22-6-2016, Ruiz ministrou a disciplina de Pós-Graduação diferente no campo tecnológico, Macerata, Universitá di Verona e da New York University, em Filosofia e também validada como curso de exten- cargo ao qual renunciou em protesto à política do gover- são através do IHU intitulada Implicações ético-políticas com o mundo digital se infiltran- no estadunidense. Sua produção centra-se nas relações do cristianismo na filosofia de M. Foucault e G. Agamben. do em todas as dimensões da vida entre filosofia, literatura, poesia e, fundamentalmente, Governamentalidade, economia política, messianismo política. Entre suas principais obras estão Homo Sacer: o e democracia de massas, que resultou na publicação da humana, seja eliminando a base poder soberano e a vida nua (Belo Horizonte: Ed. UFMG, edição 241ª dos Cadernos IHU Ideias, intitulado O poder 2002), A linguagem e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, pastoral, as artes de governo e o estado moderno, que pode operária e jogando os oprimi- 2005), Infância e história: destruição da experiência e ori- ser acessada em http://bit.ly/1Yy07S7. Em 23 e 24-5-2017, dos no campo dos serviços, seja gem da história (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006); Estado o IHU realizou o VI Colóquio Internacional IHU – Políti- de exceção (São Paulo: Boitempo Editorial, 2007), Estân- ca, Economia, Teologia. Contribuições da obra de Giorgio 29 construindo uma sociedade do cias – A palavra e o fantasma na cultura ocidental (Belo Agamben, com base sobretudo na obra O reino e a glória. Horizonte: Ed. UFMG, 2007) e Profanações (São Paulo: Boi- Uma genealogia teológica da economia e do governo (São controle, através das câmeras de tempo Editorial, 2007). Em 4-9-2007, o sítio do Instituto Paulo: Boitempo, 2011. Tradução de: Il regno e la gloria. vigilância, através dos aplicativos Humanitas Unisinos – IHU publicou a entrevista Estado Per una genealogia teológica dell’ecconomia e del governo. de exceção e biopolítica segundo Giorgio Agamben, com Publicado originalmente por Neri Pozza, 2007). Saiba mais que dominam a vida cotidiana dos o filósofo Jasson da Silva Martins, disponível em http:// em http://bit.ly/2hCAore (Nota da IHU On-Line)

Leia mais

- A eficiência do Estado não começa com o corte, mas com a estratégia. Entrevista espe- cial com Enéas de Souza, publicada nas Notícias do Dia de 5-12-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2Io1F0z. - A insustentável leveza do capital financeiro. Entrevista especial com Enéas de Souza, publicada nas Notícias do Dia de 10-4-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2KJC1BJ.

EDIÇÃO 521 TEMA 03

TEMA DE CAPA

68 foi a maior greve geral selvagem da história da França, mas saiu vencida Para Erick Corrêa, o significado mais profundo da crise que explodiu há 50 anos reside no rechaço ao capitalismo e às principais formas partidárias e sindicais

Vitor Necchi

evocação dos 50 anos do movi- plode em Maio-Junho de 68: um du- mento que inflamou a França plo rechaço, simultaneamente dirigido permite que se estabeleça uma ao sistema capitalista e às principais Arelação com a atualidade brasileira, formas partidárias e sindicais (social- “após cinco anos de uma singular con- democrata ou bolchevique) de organi- trarrevolução sem revolução, em res- zação e representação política e econô- posta às jornadas de junho de 2013”. mica das classes trabalhadoras”. Para Erick Corrêa, “assim como na O que ocorreu naquele ano transfor- França em 68, o trabalho de desqualifi- mou a realidade: “A crise redefiniu a cação e de deslegitimação das posições dinâmica da modernização capitalista da esquerda revolucionária durante e o panorama social e político francês e depois da crise, realizado tanto por das décadas seguintes”. Para Corrêa, gaullistas como por comunistas-stali- “68 foi a maior greve geral selvagem 30 nistas, não se distancia muito do traba- da história da França, mas saiu ven- lho realizado no Brasil, sobretudo entre cida”, e essa derrota “abre o caminho 2013 e as jornadas anticopa de 2014, para as reestruturações produtivas feito por petistas e antipetistas, contra posteriores”. os movimentos sociais de base autô- noma, como o Movimento Passe Livre No Brasil, a resistência à ditadura ins- ou as federações anarquistas e demais taurada em 1964 impactou o teor e o frentes populares independentes de rumo da efervescência de 1968. O regi- partidos e sindicatos”. me de exceção colocava os contestado- res “diante de um horizonte de expecta- Nas duas situações, “tais posições tivas historicamente mais rebaixado do de certa maneira prepararam o terre- que aquele aspirado pelos contestado- no para uma contraofensiva da direita res de um país como a França, que go- que, em simbiose com os aparatos es- zava de liberdades democráticas míni- tatais de controle e repressão, depois mas (todavia ausentes no Brasil), além atingiria frontalmente todo o campo da de um vigoroso Estado de Bem-Estar esquerda”, avalia Corrêa, que identifi- Social, após cerca de 20 anos de glórias ca um risco: “No plano histórico, qua- econômicas e expansão capitalista na se sempre que as posições da direita e da esquerda reformista se uniram no Europa ocidental”. ataque às correntes minoritárias e re- Erick Corrêa é graduado, mes- volucionárias do movimento operário, tre e doutorando em Ciências Sociais o fascismo avançou e o autoritarismo pela Universidade Estadual Paulista estatal instaurou-se”. - Unesp. Sua dissertação é intitulada Ao refletir sobre os episódios trans- : crítica e crise da socieda- corridos há meio século, Corrêa, em de do espetáculo. Organizou, com Ma- entrevista concedida por e-mail à IHU ria Teresa Mhereb, o livro 68 – como On-Line, avalia que “na radicalização incendiar um país (São Paulo: Ed. de setores minoritários do meio estu- Veneta, 2018). Atualmente desenvolve dantil, principalmente em Strasbourg, sua tese sobre a revolução portuguesa Nantes e Nanterre, que reside o signi- de 1974-75. ficado mais profundo da crise que ex- Confira a entrevista.

7 DE MAIO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE

“A crise redefiniu a dinâmica da modernização capitalista e o panorama social e político francês das décadas seguintes”

IHU On-Line – Que forças e co, o PCF havia apoiado a repressão estudantes e trabalhadores). pensamentos políticos compu- dos stalinistas na revolução húngara As organizações mais originais des- nham o cenário que antecedeu de 1956 e se recusado a aprofundar te campo à esquerda do PCF eram o Maio de 68 na França? a desestalinização da organização, minúsculas, como Informação Cor- mesmo após a morte de Stalin5 e do Erick Corrêa – No campo in- respondência Operária (ICO, 1958- Relatório Khrushchov6 sobre os cri- telectual de esquerda, o marxismo 73) e a Internacional Situacionista mes do stalinismo, além de pros- francês da época era marcado por (IS, 1957-72), organização que rea- seguir com o expurgo de suas cor- uma vitalidade conferida pelo ques- lizou com êxito um esforço de con- rentes radicais, o que explica em tionamento, portado por correntes ciliação entre a crítica da cultura e a parte a sensibilidade anticomunista heterodoxas, ao conformismo e à crítica da economia política. Havia de grande parte dos protagonistas de ortodoxia teórica patrocinada pelo também diversos grupos da extrema 68, sobretudo dos mais jovens (entre Partido Comunista Francês - PCF, -esquerda, de orientação pró-chine- bem como por uma redescoberta sa (maoísta) ou trotskista. principal trabalho filosófico é O ser e o nada (1943). Sartre 1 31 criativa dos textos de Marx que su- define o existencialismo em seu ensaio O existencialismo é Algumas revistas, como Argu- blinham a alienação e a subjetivida- um humanismo como a doutrina na qual, para o homem, “a existência precede a essência”. Na Crítica da razão ments e , de revolucionária, como era o caso dialética (1964), Sartre apresenta suas teorias políticas e sociológicas. Aplicou suas teorias psicanalíticas nas bio- 2 3 conduziam um trabalho de “revisão” de Henri Lefebvre , André Gorz e grafias Baudelaire (1947) e Saint Genet (1953). As palavras do marxismo. As teses conselhistas Jean-Paul Sartre4. No plano políti- (1963) é a primeira parte de sua autobiografia. Em 1964, foi escolhido para o prêmio Nobel de literatura, que recu- de Rosa Luxemburgo7 e de Anton sou. (Nota da IHU On-Line). 5 Josef Stalin (1878-1953): ditador soviético, líder máximo Pannekoek8 reencontravam um solo 1 (1818-1883): filósofo, cientista social, eco- da URSS de 1924 a 1953 e responsável pela condução de nomista, historiador e revolucionário alemão, um dos uma política nomeada como stalinismo. Chegou a estudar fértil para uma retomada dos prin- pensadores que exerceram maior influência sobre o em um colégio religioso de Tbilisi, capital georgiana, para cípios de autonomia decisória e de pensamento social e sobre os destinos da humanidade satisfazer os anseios de sua mãe, que queria vê-lo semi- no século 20. A edição 41 dos Cadernos IHU ideias, de narista. Mas logo acabou enveredando pelas atividades controle da produção pelos próprios autoria de Leda Maria Paulani, tem como título A (anti)fi- revolucionárias contra o regime czarista. Passou anos na losofia de Karl Marx, disponível em http://bit.ly/173lFhO. prisão e, quando libertado, aliou-se a e ou- trabalhadores. Nas antípodas do Também sobre o autor, a edição número 278 da revista tros camaradas, que planejavam a Revolução Russa. Stalin pensamento heterodoxo, Louis Al- IHU On-Line, de 20-10-2008, é intitulada A financeiriza- ocupou o posto de secretário-geral do Partido Comunista 9 ção do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx, da União Soviética entre 1922 e 1953 e, por conseguinte, thusser conduzia uma equipe de jo- disponível em https://goo.gl/7aYkWZ. A entrevista Marx: o de chefe de Estado da URSS durante cerca de um quarto os homens não são o que pensam e desejam, mas o que de século. Sobre Stalin, confira a entrevista concedida pelo fazem, concedida por Pedro de Alcântara Figueira, foi historiador brasileiro Ângelo Segrillo à edição 265 da IHU 7 Rosa Luxemburgo (1870-1919): filósofa marxista e re- publicada na edição 327 da IHU On-Line, de 3-5-2010, On-Line, Nazismo: a legitimação da irracionalidade e da volucionária polonesa. Participou na fundação do grupo disponível em http://bit.ly/2p4vpGS. A IHU On-Line pre- barbárie, analisando a obra Prezado Sr. Stalin (Rio de Ja- de tendência marxista que viria a tornar-se, mais tarde, o parou uma edição especial sobre desigualdade inspira- neiro: Zahar, 2008), de autoria de Susan Butler, disponível Partido Comunista Alemão. (Nota da IHU On-Line) da no livro de Thomas Piketty O Capital no Século XXI, em http://bit.ly/1j3t54H. (Nota da IHU On-Line) 8 Antonie Pannekoek (1873-1960): astrônomo e teórico que retoma o argumento central de O Capital, obra de 6 Nikita Khrushchov (1894-1971): secretário-geral do marxista holandês. (Nota da IHU On-Line) Marx, disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/ Partido Comunista da União Soviética entre 1953 e 1964 9 Louis Althusser (1918-1990): filósofo marxista francês edicao/449. (Nota da IHU On-Line) e líder político do mundo comunista até ser afastado do nascido na Argélia. Aluno brilhante, foi aceito na presti- 2 Henri Lefebvre (1901-1991): filósofo marxista e soció- poder por sua perspectiva reformista e substituído na co- giada École Normale Supérieure (ENS) em Paris, mas não logo francês. Estudou filosofia na Universidade de Paris, nudação da URSS pelo político conservador Leonid Bre- pôde frequentar a escola, pois estava convocado para a onde se graduou em 1920. (Nota da IHU On-Line) jnev. O chamado Discurso Secreto ou Relatório Khrushchov, Segunda Guerra Mundial. Acabou aprisionado na Ale- 3 André Gorz (1923-2007): filósofo austríaco. Escreveu vá- cujo nome oficial é Sobre o culto à personalidade e suas manha. Permaneceu no campo até o final da guerra, ao rios livros, entre eles Adeus ao proletariado (Rio de Janeiro: consequências, é uma famosa intervenção de Khrushchov contrário dos demais soldados, que fugiram para lutar Forense Universitária, 1982), Metamorfoses do trabalho. durante o 20° Congresso do Partido Comunista da União – motivo pelo qual Althusser se puniu mais tarde. Após Crítica da razão econômica (São Paulo: Annablume, 2003) Soviética, em 25 de fevereiro de 1956. No discurso, reafir- a guerra, Althusser pôde frequentar a ENS. Entretanto, e Misérias do Presente, Riqueza do Possível (São Paulo: ma sua crença nos ideais comunistas, invocando as ideias sua saúde mental e psicológica estava severamente Annablume, 2004). Realizamos uma entrevista com André de Lenin, ao mesmo tempo que critica o regime de Stalin, abalada, tendo, inclusive, recebido terapia de eletro- Gorz, publicada parcialmente na 129ª edição da revista particularmente pelos brutais expurgos de militares de choques em 1947. A partir de então, Althusser sofreu IHU On-Line, de 2-1-2005, e na íntegra no número 31 dos alto escalão e de quadros superiores do partido e pelo cul- de enfermidades periódicas durante o resto de sua vida. Cadernos IHU Ideias, com o título A crise e o êxodo da so- to à personalidade de Stalin. O discurso foi um marco na A ENS foi compreensiva à sua condição, permitindo que ciedade salarial, disponível em https://bit.ly/2joRAT7. So- Era Khrushchov e um sinal da intensa disputa pela lideran- ele residisse em seu próprio quarto na enfermaria, onde bre André Gorz também pode ser lido o texto Pelo êxodo ça soviética, na qual Khrushchov procurava desacreditar viveu por décadas, a não ser em períodos de interna- da sociedade salarial. A evolução do conceito de trabalho os stalinistas. Significou, também, uma mudança da linha ção hospitalar. Marxista, filiou-se ao Partido Comunista em André Gorz, de autoria de André Langer, pesquisador oficial do Partido Comunista da União Soviética e dos seus Francês em 1948. No mesmo ano, tornou-se professor do Cepat, publicado nos Cadernos IHU nº 5, de 2004, dis- postulados baseados no chamado stalinismo. O texto ori- da ENS. Em 1946, Althusser conheceu Hélène Rytmann, ponível em https://bit.ly/2I54YJR. (Nota da IHU On-Line) ginal só foi publicado em sua totalidade no dia 3 de março uma revolucionária de origem judaico-lituana oito anos 4 Jean-Paul Sartre (1905-1980): filósofo existencialista de 1989, pela gazeta oficial do Comitê Central do Partido, mais velha. Ela foi sua companheira até 16 de novem- francês. Escreveu obras teóricas, romances, peças teatrais já no período da glasnost – abertura do regime promovida bro de 1980, quando morreu estrangulada pelo próprio e contos. Seu primeiro romance foi A náusea (1938), e seu por Mikhail Gorbatchov. (Nota da IHU On-Line) Althusser, num surto psicótico. As exatas circunstâncias

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vens pesquisadores encarregados de Archives européennes de sociolo- À direita e à extrema-direita do es- esterilizar o marxismo de qualquer gie, dirigida por Raymond Aron16 pectro sociopolítico, entre gaullistas traço de “ideologia”. e de cujo comitê de redação se des- moderados e monarquistas radicais, tacariam Croizier (França), Ralf havia organizações, como o grupo No campo da sociologia, especifi- Dahrendorf17 (Alemanha) e Thomas Occident, além de revistas como Ri- camente nos anos que antecedem Bottomore18 (Grã-Bretanha); além varol ou Restauration Nacionale. a explosão revolucionária de 1968, da Communications, na qual parti- Paris contava com pelo menos qua- cipariam nomes como Roland Bar- tro importantes revistas científicas: 19 a Sociologie du travail, animada thes e Morin. por Georges Friedmann10 e de cujo No decurso de 1968, G. Friedmann, “Os slogans comitê de redação participariam, Morin e Touraine se destacariam nas entre outros, os sociólogos Michel páginas do Le monde como os prin- e palavras Crozier11, Jean-Daniel Reynaud12, cipais articulistas franceses da cri- Alain Touraine13 e Jean-René se sociopolítica deflagrada naquele de ordem Tréanton14; a Revue française de ano. Dentre as editoras que acolhe- sociologie, cuja chefia de redação ram em seus catálogos e coleções pichados era assinada por Edgar Morin15; a as principais obras do pensamento sociológico francês daquele período, pelos muros do ocorrido não são conhecidas – uns afirmam ter se tratado de um acidente; outros dizem que foi um ato destacam-se a Plon, a Éditions du deliberado. Althusser afirmou não se lembrar clara- Seuil e a Minuit. Elas publicariam e paredes de mente do fato, alegando que, enquanto massageava o pescoço da mulher, descobriu que a tinha matado. O Fenômeno burocrático (1963), de A justiça considerou-o inimputável no momento dos Paris exprimiam acontecimentos e, em conformidade com a legilação Croizier, e Os herdeiros, os estudan- francesa, foi declarado incapaz e inocentado em 1981. tes e a cultura (1964), de Bourdieu e Cinco anos mais tarde, em seu livro L’avenir dure long- uma variedade temps [O futuro dura muito tempo], Althusser refletiu Passeron. sobre o fato, pretendendo reivindicar uma espécie de responsabilidade por seus atos quando do assassinato, incrível de o que gerou uma polêmica entre seus correligionários br/edicao/402. (Nota da IHU On-Line) e detratores, sobre tal responsabilidade ser filosófica ou 16 Raymond Aron (1905-1983): sociólogo, filósofo e jor- 32 real. Althusser não foi preso, mas foi internado no Hos- nalista francês. Doutor em Filosofia da História. Como pro- orientações pital Psiquiátrico Sainte-Anne, onde permaneceu até fessor na Universidade de Colônia, na Alemanha, assistiu 1983. Após esta data, ele se mudou para o norte de Pa- à ascensão do nazismo. Quando a Segunda Guerra Mun- ris, onde viveu de forma reclusa, vendo poucas pessoas dial começou, em 1939, era professor de filosofia social ideológicas, e não mais trabalhando, a não ser em sua autobiografia. na Universidade de Toulouse e alistou-se na Força Aérea Louis Althusser morreu de ataque cardíaco em 22 de Francesa. Quando a França foi ocupada, Aron foi para Lon- outubro de 1990, aos 72 anos. (Nota do IHU On-Line) dres, na Inglaterra, onde se juntou às forças do General de 10 Georg Friedmann (1912-2008): historiador cultural Gaulle e editou, de 1940 a 1944, o jornal do movimento de em sua maioria alemão e um grande representante do diálogo entre ju- resistência, “France Libre”. No fim da guerra, em 1945, ele deus e cristãos na Alemanha. (Nota da IHU On-Line) voltou para Paris, trabalhando como professor de socio- 11 Michel Crozier (1922-2013): sociólogo francês. For- logia. Lecionava essa disciplina na Universidade Sorbon- de inspiração mulou as bases da análise estratégica em sociologia das ne quando aconteceram os protestos dos estudantes de organizações. Era membro da Academia de Ciências Mo- Maio de 1968. O humanismo e liberalismo de Aron faziam rais e Políticas da França e Diretor de Pesquisa emérito do contraponto ao existencialismo marxista de outro intelec- socialista e CNRS. Estudou o fenômeno burocrático nas organizações tual francês de sua época, Jean-Paul Sartre. Em O ópio dos a partir do exemplo francês. Sua análise pôs a descober- intelectuais, de 1955, criticou o conformismo de esquerda to as forças que bloqueiam a adaptação das estruturas e as tendências totalitárias dos regimes marxistas. A partir libertária” econômicas, políticas e sociais capazes de promoveram a da observação da realidade de sua época, o filósofo ten- modernização das organizações. (Nota da IHU On-Line) tou explicar a atração exercida pelo marxismo sobre mui- 12 Jean-Daniel Reynaud (1926): professor de sociologia tos intelectuais europeus, com quem entrou em conflito. francês, nascido em Lausanne. Diretor da Revista Francesa Para Aron, a doutrina de Marx para a sociedade, a econo- de Sociologia (1985-1993) e cofundador da revista Socio- mia e a política parecia divorciada da evolução econômica logia do Trabalho. (Nota da IHU On-Line) e social do mundo ocidental. Foi um colunista influente do IHU On-Line – Antes de o mo- 13 Alain Touraine (1925): sociólogo francês conhecido jornal Le Figaro e do semanário L’Express, onde escreveu por sua obra dedicada à sociologia do trabalho e dos até sua morte. (Nota da IHU On-Line) vimento eclodir, havia prenún- movimentos sociais. Tornou-se conhecido por ter sido 17 Ralf Dahrendorf (1929-2009): sociólogo, filósofo e o pai da expressão “sociedade pós-industrial”. Seu tra- político alemão radicado no Reino Unido. Estudou filoso- cios dele? balho é baseado na “sociologia de ação”, e seu principal fia, filologia clássica e sociologia em Hamburgo e Londres ponto de interesse tem sido o estudo dos movimentos entre 1947 e 1952. Doutorou-se em Filosofia. Também fez Erick Corrêa – Sim, certamente sociais. Touraine acredita que a sociedade molda o seu um doutorado na London School of Economics. (Nota da futuro através de mecanismos estruturais e das suas IHU On-Line) a agitação no meio estudantil fran- próprias lutas sociais. (Nota da IHU On-Line) 18 Thomas Bottomore (1920-1992): importante profes- cês já apresentava sinais de radi- 14 Jean-René Tréanton (1925-2015): sociólogo francês, sor e sociólogo marxista inglês, membro do British Labour teórico da sociologia do trabalho. Lecionou na Université Party (Partido Trabalhista Inglês). Ficou conhecido interna- calização pelo menos desde 1966. de Lillee na École des Hautes Études Commerciales. (Nota cionalmente pela sua visão aberta, humana e antidogmá- da IHU On-Line) tica do marxismo, que o levou a ser admirado pelo mun- Naquele ano, um grupo de estu- 15 Edgar Morin (1921): sociólogo francês, autor da cé- do acadêmico não marxista. Foi professor de sociologia dantes da Universidade de Estras- lebre obra O Método. Os seis livros da série foram tema da London School of Economics (1952-64), professor e do Ciclo de Estudos sobre “O Método”, promovido pelo diretor do departamento de Sociologia na Simon Fraser burgo, por exemplo, associou-se à IHU em parceria com a Livraria Cultura de Porto Ale- University, Vancouver (1965-67) e professor da Sussex Uni- gre em 2004. Embora seja estudioso da complexidade versity até sua aposentadoria (1968-1985). Sua principal Internacional Situacionista para crescente do conhecimento científico e suas interações publicação em português é o Dicionário do Pensamento denunciar uma crise geral do meio com as questões humanas, sociais e políticas, se recusa Marxista (Rio de Janeiro, Zahar, 1988). Foi secretário da a ser enquadrado na sociologia e prefere abarcar um Associação Internacional de Sociologia (International So- estudantil francês, em todos os campo de conhecimentos mais vasto: filosofia, econo- ciological Association) de 1953 a 1959. Ele foi um editor mia, política, ecologia e até biologia, pois, para ele, não prolífico e tradutor dos escritos de Karl Marx. Bottomore seus aspectos (econômico, políti- há pensamento que corresponda à nova era planetária. editou e contribuiu com várias revistas de sociologia e ci- co, psicológico, sexual e intelectu- Além de O Método, é autor de, entre outros, A religação ências políticas. (Nota da IHU On-Line) dos saberes. O desafio do século XXI (Bertrand do Brasil, 19 Roland Barthes (1915-1980): crítico literário, sociólogo al), propondo, por sua vez, alguns 2001). Confira a edição especial sobre esse pensador, e filósofo francês. Entre suas obras se destacam Elementos meios revolucionários de resolvê intitulada Edgar Morin e o pensamento complexo, de 10- de semiologia (1965), Sistema da moda (1967), O Império 9-2012, disponível em http://www.ihuonline.unisinos. dos signos (1970). (Nota da IHU On-Line) -la. Voltada contra o reformismo

7 DE MAIO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE da principal entidade representan- Posição contra os tecnocratas, um te do sindicalismo estudantil fran- livro de crítica sociológica ao campo cês, a Unef (União Nacional dos tecnocrático, mas no qual, a certa al- “A agitação no Estudantes da França, equivalente tura, o então professor de sociologia meio estudantil à UNE brasileira), tal crítica se fa- de Nanterre debocha dos situacio- zia desde uma perspectiva revolu- nistas justamente por acreditarem e francês já cionária, de inspiração conselhista difundirem a ideia de que uma con- e situacionista. A Associação de juntura insurrecional como aquela apresentava Estrasburgo chegou a apresentar ocorrida em Paris, em 1871, estava uma moção de dissolução da Unef, prestes a retornar à França... sinais de aprovada pela Associação de Nan- tes, na assembleia geral da entida- Entre os “teóricos críticos” (ou radicalização de, em janeiro de 1967. “marxistas ocidentais”), os filó- sofos alemães Herbert Marcuse20 pelo menos Em março daquele ano, estudantes e Theodor Adorno21 também não do sexo masculino, da faculdade de apostavam, em suas principais desde 1966” Nanterre, ocuparam os prédios de obras do período imediatamente moradia destinados exclusivamente anterior a 1968 (respectivamen- às estudantes (homens eram até en- te, O Homem Unidimensional e IHU On-Line – E os partidos e tão proibidos de visitar os pavilhões Dialética Negativa, ambos publi- políticos, como reagiram? femininos, sendo permitido apenas cados em 1966), em nenhuma for- Erick Corrêa – Em favor da res- o contrário). O diretor da faculda- ma de irrupção revolucionária das tauração do Estado, do início ao fim de convocou rapidamente as forças contradições sociopolíticas engen- da crise. Desde o período da Re- policiais para realizarem a desocu- dradas pelo capitalismo do segun- sistência ao regime de colaboração pação dos pavilhões femininos. A do pós-guerra, dado que as classes de Vichy (1940-44), o PCF detinha polícia estava proibida de intervir no que encarnavam a sua negação ha- uma influência muito grande sobre perímetro universitário desde a Ida- viam sido, de acordo com eles, to- a vida cultural e política da Fran- de Média. A partir de 1968, essa prá- talmente integradas ao sistema. 33 tica passa a acontecer normalmente ça, que até a fundação do Partido na França. Já o situacionista Guy Debord22, em Socialista - PS, em 1971, contava seu livro A sociedade do espetáculo, com uma esquerda não comunista Houve ainda uma série de greves publicado em novembro de 1967, via pequena e dividida. Grosso modo, parciais de trabalhadores ao longo na “recusa da antiga política especia- as posições do PCF se resumiram, dos anos 1960, de diferentes seto- lizada, da arte e da vida cotidiana”, no início da crise, a apoiar vaga- res da economia, como a greve de presente em movimentos de contes- mente a solidariedade entre pro- fevereiro e março de 1966, na fá- tação radicais espalhados pelo mun- fessores, estudantes e operários, brica da Rhodiacéta, em Besançon. do àquela altura, “o prenúncio do mas condenando sempre a ação Mas é na radicalização de setores segundo assalto proletário contra a dos grupos esquerdistas, como o minoritários do meio estudantil, sociedade de classes” (§ 115). 22 de Março, a IS, dentre outros principalmente em Strasbourg, grupos de orientação anarquista ou Nantes e Nanterre, que reside o conselhista, além daqueles comitês significado mais profundo da cri- de trabalhadores formados espon- se que explode em maio-junho de 20 (1898-1979): sociólogo alemão na- taneamente, em bases autônomas a 68: um duplo rechaço, simultane- turalizado estadunidense, membro da Escola de Frankfurt. Estudou Filosofia em Berlim e Freiburg, onde conheceu os partidos e sindicatos que, segundo amente dirigido ao sistema capita- filósofos e professores Husserl e Heidegger e se doutorou com a tese Romance de artista. Algumas de suas obras: os comunistas, estavam jogando o lista e às principais formas partidá- Razão e Revolução, Eros e Civilização, O Homem Unidi- jogo do governo, tomando-as como rias e sindicais (social-democrata mensional. (Nota da IHU On-Line) 21 Theodor Adorno (1903-1969): sociólogo, filósofo, elementos provocadores a serviço ou bolchevique) de organização e musicólogo e compositor, definiu o perfil do pensamento alemão das últimas décadas. Adorno ficou conhecido no da burguesia. representação política e econômica mundo intelectual, em todos os países, em especial pelo seu clássico Dialética do Iluminismo, escrito junto com das classes trabalhadoras. Max Horkheimer, primeiro diretor do Instituto de Pesquisa Ao final da crise, em junho, os co- Social, que deu origem ao movimento de ideias em filo- munistas do PCF pactuariam os sofia e sociologia conhecido como Escola de Frankfurt. Sobre Adorno, confira a entrevista concedida pelo filósofo chamados Acordos de Grenelle que, IHU On-Line – A intelectuali- Bruno Pucci à edição 386 da Revista IHU On-Line, intitu- lada Ser autônomo não é apenas saber dominar bem as costurados pelo primeiro-ministro dade francesa foi pega de sur- tecnologias, disponível em https://bit.ly/2I5xMSv. A con- Georges Pompidou23, a burguesia, o versa foi motivada pela palestra Theodor Adorno e a frieza presa pela explosão das ruas? burguesa em tempos de tecnologias digitais, proferida por Ministério do Trabalho e a Confede- Pucci dentro da programação do Ciclo Filosofias da Inter- Erick Corrêa – Sim, com exce- subjetividade. (Nota da IHU On-Line) 22 Guy Debord (1931-1994): filósofo e sociólogo francês, 23 Georges Pompidou (1911-1974): político francês. ção dos situacionistas. Um episódio autor de A sociedade do espetáculo – Comentários sobre a Ocupou o cargo de primeiro-ministro da França de 14 de é exemplar nesse sentido. Em 1967, sociedade do espetáculo (Rio de Janeiro: Contraponto) e abril de 1962 a 10 de julho de 1968 e de presidente da fundador da Internacional Situacionista (IS). (Nota da IHU República a partir de 20 de julho de 1969 até à sua morte, Henri Lefebvre publicou na França On-Line) em 2 de abril de 1974. (Nota da IHU On-Line)

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ração Geral do Trabalho - CGT sob conflitos sociais (1991), como tam- de repressão política. A repercussão seu controle, impôs ao movimento bém pelos franceses Luc Boltanski25 de sua morte rapidamente se espalha grevista um duro golpe em suas as- e Ève Chiapello26 em O novo espírito por todo o país. Em março, ocorrem pirações iniciais, canalizando seu do capitalismo (1999). as primeiras greves operárias desde potencial revolucionário para vias 1964, em Contagem (MG) e Osasco reformistas. Essa situação vai favo- (SP); em junho, no Rio de Janeiro, recer um novo equilíbrio de forças IHU On-Line – No Brasil, em ocorrem os episódios da “Sexta-feira na esquerda francesa, que a partir que as pautas da mobilização Sangrenta” e a subsequente “Passea- de 1970 passa progressivamente a se se aproximavam e se afastavam ta dos Cem Mil”. deslocar em favor dos socialistas. do movimento francês? No segundo semestre, os mili- Erick Corrêa – A resistência à tares iniciam uma contraofensiva ditadura civil-militar instaurada em IHU On-Line – Jovens e ope- inicialmente dirigida a operários, 1964 colocava a geração de contesta- rários franceses tentavam com- professores, estudantes, parlamen- dores brasileiros de 68 diante de um bater o autoritarismo do Esta- tares, jornalistas e artistas que se horizonte de expectativas historica- do, dos partidos políticos e dos opunham ao regime. Em julho, sob mente mais rebaixado do que aquele sindicatos. Houve transforma- a capa paramilitar do Comando de aspirado pelos contestadores de um ção nessas três formas de po- Caça aos Comunistas - CCC, inva- país como a França, que gozava de der e de representação? dem e espancam atores da peça tea- liberdades democráticas mínimas tral Roda viva, de Chico Buarque28 Erick Corrêa – Sem dúvida, a (todavia ausentes no Brasil), além (montada por Zé Celso Martinez crise redefiniu a dinâmica da mo- de um vigoroso Estado de Bem-Es- Corrêa29), e destroem a ocupação dernização capitalista e o panorama tar Social, após cerca de 20 anos de estudantil do prédio da Filosofia da social e político francês das décadas glórias econômicas e expansão capi- Universidade de São Paulo - USP, seguintes. O sucessor imediato de talista na Europa ocidental. na Rua Maria Antônia (com sal- De Gaulle, Georges Pompidou, pro- Aqui, 68 tem início em fevereiro, do de mais uma vítima fatal). Em curou atenuar o dirigismo do gene- com a agitação dos secundaristas ca- agosto, invadem o campus da Uni- ral e moderar o estatismo vigente riocas da Frente Unida dos Estudan- versidade de Brasília - UnB para 34 na chamada modernização gaullista tes do Calabouço - Fuec. A luta con- aterrorizar professores e estudan- (1945-68), dando ao empresariado tra o aumento do preço da refeição tes, numa operação conjunta das mais liberdade de manobra nos mer- culminaria na morte do estudante forças de repressão (Polícia Militar, cados domésticos e externos. Edson Luís27, após uma ação policial Dops, Polícia Federal, SNI e Polícia As demandas gestadas na dinâmica do Exército). Em outubro, invadem o 30° Congresso da União Nacional do processo revolucionário, como das como capitalismo de estado. Uma de suas teses é a teoria mulheres e dos novos setores do tra- da classe dos gestores, que seria, no campo da teoria so- dos Estudantes - UNE e prendem cial marxista, uma outra classe social além da burguesia e todos os seus dirigentes, em Ibiúna, balho qualificado por maior autono- do proletariado. (Nota da IHU On-Line) 25 Luc Boltanski (1940): sociólogo francês, professor na interior de São Paulo. Em dezem- mia e liberdade, ignoradas pelas rígi- École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) de das instituições partidárias e sindicais Paris, onde foi um dos fundadores do Groupe de sociolo- gie politique et morale. Conhecido como a figura principal da esquerda comunista e socialista, da escola “pragmática” da sociologia francesa, corrente por invadir o restaurante. O comandante da tropa da PM, que iniciou com Laurent Thévenot e que também é cha- aspirante Aloísio Raposo, atirou e matou o secundarista acabaram sendo incorporadas e neu- mada de teoria das “economias da grandeza” ou “sociolo- Edson Luís com um tiro a queima roupa no peito. Outro tralizadas pelo próprio capitalismo gia dos regimes de ação”. O trabalho de Boltanski influen- estudante, Benedito Frazão Dutra, chegou a ser levado ao ciou significativamente a sociologia, a economia política hospital, mas também morreu. Temendo que a PM sumis- vitorioso, na forma de uma inserção e a história social e econômica. (Nota da IHU On-Line) se com o corpo, os estudantes não permitiram que ele subordinada da mulher no mercado 26 Ève Chiapello (1965): socióloga francesa. Leciona na fosse levado para o Instituto Médico Legal (IML), mas o École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS. carregaram em passeata diretamente para a Assembleia de trabalho e de uma desregulamen- Autora de Novo espírito do capitalismo (Martins Fontes), Legislativa do Rio de Janeiro, onde foi velado. A necropsia escrito com Luc Boltanski. (Nota da IHU On-Line) foi feita no próprio local. (Nota da IHU On-Line) tação predatória das legislações tra- 27 Edson Luís de Lima Souto (1950-1968): estudan- 28 Chico Buarque [Francisco Buarque de Hollanda] balhistas. Uma tese desenvolvida de te secundarista nascido em Belém (PA), assassinado por (1944): músico, compositor, teatrólogo e escritor carioca. policiais militares durante um confronto no restaurante Um dos mais famosos nomes da música popular brasileira certa maneira tanto pelo português Calabouço, centro do Rio de Janeiro, no dia 28 de março (MPB), cuja discografia tem aproximadamente 80 títulos. 24 de 1968. Seu assassinato marcou o início de um ano tur- Ganhou fama por sua música, que comenta o estado so- João Bernardo em Economia dos bulento de intensas mobilizações contra o regime militar, cial, econômico e cultural do Brasil. Começa a ter desta- que endureceu até a decretação do AI-5. Nascido em uma que a partir de 1966, quando lançou seu primeiro álbum, família pobre, iniciou os estudos na Escola Estadual Au- Chico Buarque de Hollanda, e venceu o Festival de Música 24 João Bernardo Maia Viegas Soares (1946): militante gusto Meira, em Belém. Mudou-se para o Rio de Janeiro Popular Brasileira com a música A banda. Autoexilou-se político português, escritor e ensaísta autodidata. Tem se para fazer o Segundo Grau no Instituto Cooperativo de na Itália em 1969, devido ao aumento da repressão da di- dedicado à pesquisa em torno da crítica ao capitalismo, Ensino, que funcionava no restaurante Calabouço. Em 28 tadura instalada em 1964. Venceu três Prêmios Jabuti de tais como o fascismo e seus desenvolvimentos contem- de março de 1968, os estudantes do Rio de Janeiro esta- literatura: o de melhor romance em 1992, com Estorvo, e o porâneos; da formação do capitalismo a partir do desen- vam organizando uma passeata-relâmpago para protestar de Livro do Ano com Budapeste, lançado em 2004, e Leite volvimento do regime senhorial da Idade Média; do sindi- contra a alta do preço da comida no restaurante Calabou- Derramado, em 2010. (Nota da IHU On-Line) calismo; da teoria e da prática da administração; da teoria ço, que deveria acontecer no final da tarde do mesmo dia. 29 José Celso Martinez Corrêa (1937): conhecido como do Estado; da exploração do trabalho e dos métodos de Por volta das 18h, a Polícia Militar chegou ao local e dis- Zé Celso, é um dos nomes mais importantes do teatro organização do trabalho; e da história do movimento persou os estudantes, que se abrigaram dentro do restau- brasileiro. Destacou-se como um dos principais diretores, operário. Ele se filia, desde que se afastou do estalinis- rante e responderam à violência policial utilizando paus atores, dramaturgos e encenadores do Brasil. Seu traba- mo maoísta, por volta de 1973, a uma tradição do pen- e pedras. Isso fez com que os policiais recuassem e a rua lho, encarado às vezes como orgiástico e antropofágico, samento marxista que tem suas origens no comunismo ficasse deserta. Quando os policiais voltaram, tiros come- iniciou-se no fim da década de 1950, e se definiu na dé- de conselhos representado por , Anton Pan- çaram a ser disparados do edifício da Legião Brasileira de cada de 1960, quando Zé Celso liderou a importante Tea- nekoek, , entre outros, no início do século Assistência, o que provocou pânico entre os estudantes, tro Oficina − grupo amador formado quando integrava a 20. Apresenta uma visão crítica do capitalismo em várias que fugiram. Os policiais acreditavam que os estudantes Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. (Nota obras, bem como do sistema soviético, qualificado por ele iriam atacar a Embaixada dos Estados Unidos e acabaram da IHU On-Line)

7 DE MAIO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE bro, desferem o golpe final, com a zida em gráficas ocupadas por traba- da faculdade de Nanterre, eleito pela decretação do Ato Institucional N° lhadores em greve, que desviavam o mídia europeia como a principal li- 5 - AI-530, que daria início aos cha- uso de seu maquinário para fins re- derança do movimento, reconhece a mados “anos de chumbo”. volucionários. Os situacionistas ino- influência dos textos situacionistas varam neste aspecto da propaganda na formação do movimento 22 de Há, portanto, uma dinâmica de política, ao desviarem os textos dos Março que, surgido em Nanterre, aproximação e afastamento entre as balões de histórias em quadrinhos seria um dos principais pivôs da cri- demandas brasileiras e francesas de de super-heróis, dando a elas uma se que em Maio de 1968 incendiaria 68. As formas de governo mais ou a Sorbonne e, na sequência, o país menos democráticas, mais ou me- nova significação (revolucionária). inteiro. nos autoritárias, vigentes na França Os slogans e palavras de ordem pi- e no Brasil em 1968, representavam, chados pelos muros e paredes de Grosso modo, a crítica dos situa- grosso modo, forças complementa- Paris exprimiam uma variedade in- cionistas levou a contestação social res de um mesmo sistema complexo, crível de orientações ideológicas, em e política moderna a terrenos até o capitalismo (ou espetáculo, nos sua maioria de inspiração socialista então protegidos da luta de classes termos situacionistas). Tal dinâmica e libertária: anarquistas, maoístas, histórica, como a educação, a lite- resultava, portanto, das contradi- guevaristas, situacionistas e até sur- ratura e a arte moderna, a arquite- ções sociais, políticas e econômicas realistas. tura, o urbanismo, a publicidade e a estruturais do sistema, globalmente comunicação. Na concepção original agudizadas em 68. Nessa perspecti- de Debord, o espetáculo representa IHU On-Line – Que crítica o va sistêmica, as revoluções de 1968 o estágio mais avançado já atingi- movimento fazia à sociedade portavam um mesmo sentido antis- do pelo sistema capitalista, no qual do espetáculo? sistêmico, o que fazia delas partes ocorre uma colonização total da vida constituintes de um mesmo “acon- Erick Corrêa – A crítica da so- cotidiana. A tomada de consciência tecimento histórico-mundial” (Cf. ciedade do espetáculo foi particu- teórica dessa crise da vida cotidiana, Immanuel Wallerstein. Os limites larmente desenvolvida pelos situ- na forma de uma crítica situacionis- dos paradigmas do século XIX), acionistas e difundidas na Europa ta do espetáculo, era um dos princí- como 1848. ocidental, mas também no leste pios de base da IS. Seu programa ob- 35 europeu, no norte africano, no Ja- jetivava a uma descolonização total pão e nos Estados Unidos, desde o da vida cotidiana. IHU On-Line – Os estudantes final da década de 1950. Tal crítica Em termos materialistas, Debord franceses criaram slogans mar- se encontra sintetizada em dois li- cantes e tingiam muros com e os situacionistas sabiam que o vros de teoria, publicados na França desenvolvimento das forças produ- suas frases de efeito. A disputa poucos meses antes do incêndio de narrativa e as estratégias dis- tivas de então possibilitava a reali- Maio-Junho de 68: A sociedade do zação de novas formas de vida que, cursivas adotadas tiveram que espetáculo, do francês Guy Debord, importância para a expansão contudo, permaneciam impedidas e A arte de viver para as novas ge- pelas relações de produção capita- do movimento e para a memó- rações, do belga Raoul Vaneigem31. ria que se fez dele? listas. A IS defendia também uma Esses livros exerceram influência concepção de proletariado mais Erick Corrêa – A produção de decisiva na radicalização do meio ampliada, pluriclassista, do que grafites, cartazes e panfletos, de in- estudantil francês no período que aquela, em vigor no século 19, que o formação ou propaganda política, antecede a explosão de Maio, como circunscrevia aos trabalhadores das floresce especialmente em momen- vimos. O próprio Daniel Cohn-Ben- fábricas, aos operários. Na perspec- 32 tos de levantes revolucionários. Em dit , então estudante de sociologia tiva bastante heterodoxa dos situa- 68, mais especificamente no 68 fran- cionistas e de Debord em particular, 31 (1934): escritor e filósofo belga, um cês, tal produção gráfica tornou-se dos principais articuladores do movimento político e artís- a classe proletária constitui, na so- mesmo indissociável do imaginário tico conhecido com Internacional Situacionista, durante a década de 1960. Autor do livro A Arte de Viver Para as No- ciedade espetacular-mercantil, “a sobre aquelas lutas. Grande parte vas Gerações (1967), que trata de forma voraz a existência imensa maioria de trabalhadores dessa intensa literatura/iconografia no capitalismo moderno, abordando a função dos papéis relacionados às profissões e da inversão dos valores, fa- que perderam todo poder sobre o revolucionária foi, inclusive, produ- zendo um apanhado geral sobre os males e as representa- uso de sua própria vida” (A socieda- ções a que as pessoas são expostas diariamente. Ele e Guy Debord foram cabeças do movimento situacionista. (Nota de do espetáculo, § 114). 30 AI-5 (Ato Institucional Número Cinco): decretado pelo da IHU On-Line) general Arthur da Costa e Silva, que ocupava a cadeira de 32 Daniel Cohn-Bendit (1945): político franco-alemão. presidente, em 13 de dezembro de 1968, foi um instru- Nasceu na França, filho de judeus alemães refugiados no mento de poder que deu ao regime militar poderes po- país em 1933, fugidos do Nazismo. Foi líder estudantil no líticos absolutos. A primeira consequência do AI-5 foi o movimento ocorrido em Maio de 1968, na França. Aos 14 fechamento por quase um ano do Congresso Nacional. anos, optou pela nacionalidade alemã porque não queria entre os estudantes que ocuparam a Sorbonne em 3 de O ato representou o ápice da radicalização do regime se sujeitar ao serviço militar francês. Membro da Federa- maio. Foi, junto com Alan Geismar e Jacques Sauvageot, de exceção e inaugurou o período em que as liberda- ção Anarquista e depois do movimento Negro e Verme- uma das principais figuras de Maio de 68. Em 21 de maio, des individuais foram mais restringidas e desrespeitadas, lho, se definiu mais tarde como liberal-libertário. Em 1967, enquanto estava em Berlim, foi proibido de retornar à constituindo-se em movimento final de “legalização” da enquanto era estudante de Sociologia da Universidade de França. Em 28 de maio, com o cabelo tingido e óculos es- arbitrariedade que pavimentou uma escalada de torturas Nanterre, começa o movimento de contestação que levou curos, voltou para Sorbonne, sendo aclamado. Em maio de e assassinatos contra opositores reais e imaginários ao re- ao Movimento de 22 de Março em 1968. Na sequência 2015, Cohn-Bendit obteve a nacionalidade francesa. (Nota gime. (Nota da IHU On-Line) da evacuação das salas pela polícia em 2 de maio, esteve da IHU On-Line)

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IHU On-Line – Caracterizaste dois polos sucessivos, o arqueológi- da cultura e dos costumes, ocasiona- a crise revolucionária de 1968, co e o genealógico. Trata-se de uma da pelo levante de maio-junho de 68. na França, como renovação das conhecida divisão metodológica (ou É o caso do Movimento de Liberta- tentativas derrotadas de re- “ruptura epistemológica”, nos ter- ção das Mulheres - MLM, formali- volução proletária de 1917-21, mos foucaultianos), a qual corres- zado em 1970, como da Frente Ho- ocorridas em diversos países ponde uma transição temática, das mossexual de Ação Revolucionária europeus. Comente esta afir- reflexões sobre o saber para aque- - FHAR, fundada em 1971. mação, por favor. las sobre o poder. O que procurei demonstrar neste artigo é precisa- IHU On-Line – É correto Erick Corrêa – Sim, como tam- mente como esse ponto de inflexão afirmar que Maio de 68 bém a revolução portuguesa de na produção intelectual de Foucault também abriu caminho para 1974-75 e a italiana de 1968-78. Em tem origem no processo de “politiza- ideias neoliberais, ao se todas essas situações, as correntes ção” deflagrado pela explosão de 68. pensar na liberdade não como minoritárias e revolucionárias do Argumento, porém, que para além construção humanista? Como proletariado saíram da crise derro- do fato de ter exercido uma influên- isso ocorreu? tadas por suas próprias represen- cia decisiva sobre o pensamento de Erick Corrêa – Essa leitura faz tações sindicais e partidárias. Isso Foucault, o movimento revolucioná- parte de uma espécie de contrar- ocorre pela primeira vez na vitória rio refutou o método arqueológico revolução cultural preventiva que, do partido social-democrata alemão empregado em seu livro de 1966, As ao falsificar a memória histórica contra o poder dos conselhos (raete) palavras e as coisas. Afinal, como de 68 (ocultando seus aspectos de trabalhadores em 1918-20, num um acontecimento histórico ligado à processo concomitante à centraliza- mais selvagens e destacando suas luta de classes e à práxis revolucioná- ção do poder operada pelo partido supostas características liberal- ria podia ser acolhido teoricamente bolchevique russo, durante o proces- modernizantes), pretende afas- pelo mesmo autor que, antes de 68, e so revolucionário de 1917-21, contra tá-la do presente e confiná-la ao de acordo com as suas exposições te- o poder autônomo dos soviets. seu acabamento conclusivo no óricas da década de 1960, teria con- passado, apenas como objeto de A polêmica original entre social- siderado uma irrupção de natureza interesse de alguns especialistas, 36 democratas, bolcheviques e esquer- histórica e social como aquela um fe- entre historiadores, jornalistas e distas (concentrada em torno de nômeno exterior e independente do cientistas sociais. questões de princípio e táticas, como campo científico, assim como, igual- entre massas ou chefes, conselhos ou mente, teria considerado uma teoria 68 foi a maior greve geral selva- partidos, revolução ou reforma, em que o acolhesse como “doxológica” – gem da história da França, mas suma, entre os paradigmas confli- isto é, “não científica” –, situando-a saiu vencida. É a derrota da revo- tantes da autonomia proletária e da no campo da ideologia? lução de 68 que abre o caminho representação proletária), transcor- para as reestruturações produtivas rida no primeiro quarto do século 20, posteriores. A crítica radicalmente será reposta em jogo e atualizada sob IHU On-Line – Os movimentos centrada na questão do Estado par- as novas condições do capitalismo do sociais foram influenciados pela tia antes de um ponto de vista pro- segundo pós-guerra, pelas tendên- efervescência de Maio de 68? letário (e de inspiração anarquista, cias conselhistas que retornam com Erick Corrêa – Certamente. conselhista ou situacionista), mas muita força a partir da crise do mo- Ocorre que tais tendências, como jamais de um ponto de vista liberal vimento comunista internacional (de o movimento feminista, LGBT ou ou neoliberal. Essa elaboração en- 1956-57), tanto em países do leste eu- ecologista, apesar de já atuarem na viesada parece ter sido introduzida ropeu como Hungria, Polônia, China França de modo embrionário no pe- na França nos anos 1980, por inte- ou Alemanha oriental, como também ríodo pré-68, só passam a formalizar lectuais conservadores como Luc 34 35 nos países ocidentais, como França, suas organizações no pós-68, depois Ferry e Alain Renaut , responsá- Itália, Espanha e Portugal. que ocorre uma abertura, nos planos veis pela popularização da engano- sa expressão pensamento 68 que, alidade (a qual não pôde completar devido a sua morte), segundo eles, estaria presente nas IHU On-Line – Em um arti- situam-se dentro de uma filosofia do conhecimento. Fou- cault trata principalmente do tema do poder, rompendo go, trataste da repercussão de com as concepções clássicas do termo. Em várias edições, 34 Luc Ferry (1951): filósofo francês, foi ministro da Edu- a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição cação na França, autor de O que é uma vida bem-sucedida Maio de 68 no pensamento de 119, de 18-10-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon119; (São Paulo: Difel, 2004). Com Marcel Gauchet escreveu Le Michel Foucault. Que impacto edição 203, de 6-11-2006, disponível em https://goo.gl/ religieux après la religion (O religioso após a religião. Paris: C2rx2k; edição 364, de 6-6-2011, intitulada ‘História da Grasset. 2004). Com André Comte-Sponville, escreveu A foi esse? loucura’ e o discurso racional em debate, disponível em sabedoria dos modernos (São Paulo: Martins Fontes, 1999). https://goo.gl/wjqFL3; edição 343, O (des)governo biopolí- (Nota da IHU On-Line) Erick Corrêa – A produção teóri- tico da vida humana, de 13-9-2010, disponível em https:// 35 Alain Renaut (1948): professor emérito de Filoso- goo.gl/M95yPv, e edição 344, Biopolítica, estado de exce- fia Política na Universidade de Paris IV – Sorbonne. Au- ca de Michel Foucault33 se divide em ção e vida nua. Um debate, disponível em https://goo.gl/ tor de vários ensaios que renovaram a compreensão da RX62qN. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU modernidade, entre eles A Era do Indivíduo; Alter ego: os em formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, Michel Paradoxos da Identidade; A Libertação das Crianças e os 33 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas Foucault – Sua Contribuição para a Educação, a Política e a cinco volumes da História da Filosofia Política. (Nota da obras, desde a História da Loucura até a História da sexu- Ética. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

7 DE MAIO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE teorias de autores historicamen- IHU On-Line – E a direita, se al conjectura do Brasil e do te ignorados pelos contestatários apropriou das perspectivas de mundo? de 68, como Foucault e Bourdieu. Maio de 68? Erick Corrêa – Sem dúvida. Sabe-se, entretanto, que a ação Erick Corrêa – Historicamente, Mais do que cíclica, a história é in- dos contestatários de 68 era mui- a direita se apropria das novas for- finita, o que quer dizer que ela não to inspirada pela literatura de es- mas e métodos de luta e organização se repete, simplesmente, mas conti- querda, dos clássicos, como Marx e construídos pela esquerda, mais do nua. O que nos liga ao 68 francês é Engels36, Lenin37, Rosa, Trotsky38, que de suas perspectivas, aspirações precisamente o fato de que, a partir Pannekoek, Korsch39, aos contem- e expectativas. Foi assim que o fas- daquelas jornadas, isto é, na reação porâneos, como Sartre, Mao40, cismo italiano se apropriou da forma a elas, a distinção clássica entre Es- Marcuse, Lefebvre, Debord, Rei- de organização do partido bolchevi- tado de Direito e Estado de Exceção ch41, Vaneigem, Débray42, Negri43. que russo, que a extrema-direita es- como antíteses inconciliáveis passa tadunidense se inspirou nas formas a perder seu sentido histórico. As de luta do seu principal oponente, o soluções encontradas pela Quinta 36 (1820-1895): filósofo alemão que, junto com Karl Marx, fundou o chamado socialismo cientí- Black Lives Matter, nas manifesta- República francesa para um desfe- fico ou comunismo. Ele foi co-autor de diversas obras com ções racistas de Charlottesville, em cho que lhe fosse favorável no com- Marx, entre elas Manifesto Comunista. Grande companhei- ro intelectual de Karl Marx, escreveu livros de profunda 2017, e que o Movimento Brasil Livre bate à radicalização proletária que análise social. (Nota da IHU On-Line) 37 Lenin [Vladimir Ilyich Ulyanov] (1870-1924): revolu- - MBL incorporou, a partir de 2016, se anuncia na crise de maio-junho cionário russo, responsável em grande parte pela execu- não somente parte da nomenclatura de 68 combinou elementos coerciti- ção da Revolução Russa de 1917, líder do Partido Comu- nista e primeiro presidente do Conselho dos Comissários da sua organização, como também vos e coesitivos que dariam origem do Povo da União Soviética. Influenciou teoricamente os alguns métodos de luta usados pelo a um novo ciclo histórico, marcado partidos comunistas de todo o mundo. Suas contribuições resultaram na criação de uma corrente teórica denomina- Movimento Passe Livre - MPL du- pela fusão entre as máfias, os Esta- da leninismo. (Nota da IHU On-Line) 38 Leon Davidovich Trotsky (1870-1940): revolucionário rante as jornadas de junho de 2013. dos e mercados, pela mentira como bolchevista e intelectual marxista, político influente na técnica de governo normal das de- União Soviética. Com Joseph Stalin, na União Soviética dos Na França pós-68, será apenas anos 1920, foi expulso do Partido Comunista e deporta- mocracias contemporâneas, pela nas eleições de 1986 que a direita do da União Soviética. Foi assassinado no México por um imposição de um estado de violên- agente soviético a mando de Stalin. Frida Kahlo e Diego conquista uma maioria parlamen- Rivera hospedaram Trotsky em sua estadia no México. As cia permanente, além do crescente ideias de Trotsky constituem a base da teoria comunista tar, liderada pela Frente Nacional 37 do trotskysmo. (Nota da IHU On-Line) poder de influência do segredo e de Jean-Marie Le Pen44, após duas 39 Karl Korsch (1886-1961): filósofo alemão, professor dos serviços secretos nos arranjos universitário, representante do chamado “marxismo oci- décadas de contrarrevolução, num dental” e do “comunismo de conselhos”. (Nota da IHU estatais (esse é o diagnóstico feito On-Line) contexto, portanto, de baixíssima pelo situacionista Guy Debord em 40 Mao Tsé-Tung: (1893-1976): ditador, político, teórico, sindicalização, de desarticulação e líder comunista e revolucionário chinês. Liderou a Revo- 1988, em seus importantes, porém lução Chinesa e foi o arquiteto e fundador da República desmobilização das classes traba- Popular da China, governando o país desde a sua criação pouco lidos Comentários sobre a em 1949 até sua morte em 1976. Sua contribuição teórica lhadoras (com o refluxo dos movi- para o marxismo-leninismo, suas estratégias militares e sociedade do espetáculo). políticas comunistas são conhecidas coletivamente como mentos grevistas e a desativação da maoísmo. Chegou ao poder comandando a Longa Mar- luta de classes revolucionária), como Eis o fio que nos conduz da Fran- cha, formando uma frente unida com Kuomintang (KMT) durante a Guerra Sino-Japonesa para repelir uma invasão também de um eclipse intelectual da ça de 1968 ao Brasil de 2018, após japonesa e, posteriormente, conduzindo o Partido Comu- nista Chinês até a vitória contra o generalíssimo Chiang esquerda, marcado pelo abandono cinco anos de uma singular con- Kai-shek do KMT na Guerra Civil Chinesa. (Nota da IHU do marxismo e pela vigência de um trarrevolução sem revolução, de- On-Line) 41 (1897-1957): psiquiatra e psicanalista vácuo ideológico em que predomina- sencadeada em resposta às jorna- austríaco, discípulo de Freud. (Nota da IHU On-Line) vam as vozes conservadoras do neo- das de junho de 2013. Assim como 42 Régis Debray (1940): filósofo, jornalista, escritor e pro- fessor francês. Doutorou-se na Escola Normal Superior liberalismo ortodoxo, do racismo, do na França em 68, o trabalho de de Paris. Foi seguidor do marxista Louis Althusser. Amigo de Fidel Castro e de Ernesto , nos anos 1960 nacionalismo e do paternalismo. desqualificação e de deslegitimação acompanhou Che na guerrilha, especialmente na Bolívia, das posições da esquerda revolu- onde foi preso em 1967 junto com Irineu Guimarães. Nes- se mesmo ano, escreveu sua primeira obra, A revolução cionária durante e depois da crise, na revolução. Em 1968, a repercussão desse livro na ju- IHU On-Line – As efemérides ventude brasileira acabou resultando no engajamento na realizado tanto por gaullistas como luta armada contra a ditadura militar por parte de muitos são momentos de celebrar da- por comunistas-stalinistas, não se jovens. Pertenceu ao Partido Socialista Francês, do qual se distanciou por diferenças ideológicas com o ex-presi- tas e de reinterpretá-las. Para distancia muito do trabalho realiza- dente François Mitterrand. Debray é criador da midiologia além disso, a evocação de 1968 – estudo crítico dos signos e de sua difusão na sociedade. do no Brasil, sobretudo entre 2013 e Leciona no departamento de Filosofia da Universidade de pode sugerir algumas chaves as jornadas anticopa de 2014, feito Lyon. Foi o primeiro presidente do Instituto Europeu de Ci- ências das Religiões e membro da Comissão Stasi, que deu para compreensão da atu- por petistas e antipetistas, contra os origem às leis francesas sobre secularização e ostentação de símbolos religiosos nas escolas em 2003. (Nota da IHU movimentos sociais de base autôno- On-Line) ma, como o Movimento Passe Livre 43 (1933): filósofo político e moral italiano. 44 Jean-Marie Le Pen (1928): é um político francês. Pre- Durante a adolescência, foi militante da Juventude Italiana sidiu, até janeiro de 2011, a Frente Nacional, partido na- ou as federações anarquistas e de- de Ação Católica, como Umberto Eco e outros intelectu- cionalista francês mais à direita no espectro político do mais frentes populares independen- ais italianos. Em 2000, publicou o livro-manifesto Império país. Foi substituído na liderança do partido por sua filha, (Rio de Janeiro: Record), com Michael Hardt. Em seguida, Marine Le Pen. É conhecido por defender políticas radicais tes de partidos e sindicatos. publicou Multidão. Guerra e democracia na era do império visando a diminuir a violência e o desemprego na Fran- (Rio de Janeiro/São Paulo: Record), também com Michael ça, entre elas a volta da pena de morte, maior restrição Hardt – sobre esta obra, a edição 125 da IHU On-Line, de à entrada de imigrantes na França e uma maior autono- Aqui como lá, tais posições de certa 29-11-2004, publicou um artigo de Marco Bascetta, dis- mia política e legislativa da França em relação às decisões maneira prepararam o terreno para ponível em https://goo.gl/9rjlQw. (Nota da IHU On-Line) emanadas da União Europeia. (Nota da IHU On-Line)

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uma contraofensiva da direita que, movimento estudantil na faculdade de Nanterre e fundado no dia 22 de em simbiose com os aparatos esta- de Nanterre foi um dos elementos março de 1968: “Nesta quinta-feira tais de controle e repressão, depois detonadores da crise revolucionária ocorrerá a comemoração do Maio de atingiria frontalmente todo o cam- de maio-junho de 1968 na França. 68, uma ocasião para a universidade po da esquerda, até mesmo as suas Desde 1978, a cada decênio, repõe- de Nanterre se reapropriar da me- variantes mais reformistas e conci- se uma situação de disputa pela me- mória de um movimento cujos prin- liadoras (como o Partido Comunista mória daquele episódio. Contudo, cípios, no entanto, ela rejeita pela lá e o Partido dos Trabalhadores cá). entre as dezenas de interpretações aplicação de uma política neoliberal. Uma contraofensiva que prefigura acadêmicas, jornalísticas, político Essa comemoração é uma afronta, uma situação de desconstrução da -partidárias, produzidas há 50 anos não somente à memória das lutas que seguridade social e de retração das sobre aquele evento extraordinário, se comemoram, como se elas per- liberdades democráticas básicas. No não há nenhuma mais apta a reco- tencessem apenas ao passado, mas plano histórico, quase sempre que nhecer a natureza histórica real da igualmente porque se trata de uma as posições da direita e da esquer- revolução de 68 do que aquela que recuperação hipócrita quando nosso da reformista se uniram no ataque se coloca desde o ponto de vista dos direito aos estudos não para de recu- às correntes minoritárias e revolu- protagonistas da luta que se desen- ar. Enquanto participam ativamente cionárias do movimento operário, o rola sob os nossos olhos em 2018. da privatização da universidade pela fascismo avançou e o autoritarismo Eis um trecho que selecionei de um Lei Vidal, eles comemoram um mo- estatal instaurou-se. panfleto produzido por estudantes vimento que aspirava a uma universi- de Nanterre contrários à realização dade popular, crítica, aberta a todas e

de um evento ocorrido na faculdade todos. Na verdade, não é Maio de 68 IHU On-Line – Deseja acres- local, no dia 22 de março de 2018, que eles comemoram, mas a sua vi- centar algo? em “comemoração” ao primeiro cin- tória sobre Maio de 68” (Estudantes Erick Corrêa – Comentei, no iní- quentenário de 68 e, especialmente, reunidos em comitê de mobilização cio da entrevista, o fato de que a agi- ao movimento construído por jovens na Universidade Paris-Nanterre em tação das alas mais radicalizadas do marxistas e libertários no campus 20 de março de 2018). ■ 38

7 DE MAIO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE

Legado mais evidente de 68 foi o deslocamento da liderança estudantil para a luta armada no Brasil Para Maria Paula Araújo, trata-se de um ano mítico porque explodiram revoltas de jovens, de artistas e do operariado em vários lugares do mundo

Vitor Necchi

lém da evidência decorrente se associou às lutas dos negros por di- da efeméride, os 50 anos dos reitos civis”, como os Panteras Negras e acontecimentos relativos a 1968 a juventude universitária se recusando Aganham mais relevância por conta do a ir para a Guerra do Vietnã. atual momento “tão ruim de avanço No Brasil, por conta da ditadura mili- das forças conservadoras”, com a extre- tar, novas pautas demoraram a chegar. ma-direita ganhando espaço, observa a O AI-5, em 1968, proibiu manifestações historiadora Maria Paula Nascimento e tolheu a ação política. “O que fazer Araújo. “O mundo passa por uma expe- com aquela energia toda?”, questiona, riência tão conservadora que me parece 39 em referência aos estudantes que to- muito natural que 68 galvanize, mais maram as ruas. “Essa energia gigantes- do que nunca, essa metáfora da revolu- ca foi sufocada. Não é à toa que a mi- ção, da utopia.” litância de luta armada se formou com Araújo, em entrevista concedida por jovens universitários e secundaristas.” telefone à IHU On-Line, afirma que Araújo destaca que “o legado mais evi- 1968 é um ano mítico e simbólico por- dente na época, no final de 68 e início que explodiram revoltas de jovens, de de 69, foi o deslocamento da liderança artistas e do operariado em vários luga- estudantil das ruas para a luta armada”. res do mundo e porque se tornou uma referência para muita gente que teve a Maria Paula Nascimento Araújo juventude marcada por esse movimen- é doutora em Ciência Política pelo Ins- to. No entanto, a professora entende tituto Universitário de Pesquisas do Rio que não houve um 1968, mas vários, de Janeiro - IUPERJ, mestra em His- com conteúdos diferentes. tória pela Universidade Federal Flumi- nense - UFF e graduada em História Na França, havia abundância e se de- pela Pontifícia Universidade Católica mandava “o impossível, a imaginação no poder”. Nos Estados Unidos, “ape- do Rio de Janeiro - PUC-Rio. É profes- sar de ser um país de abundância, o sora da Universidade Federal do Rio de movimento de 68 tem uma radicalida- Janeiro - UFRJ. de muito grande porque uma parte dele Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que 1968 é Maria Paula Nascimento de, com muita força do movimen- um ano mítico e simbólico? Por Araújo – Porque foi um ano em to estudantil, de jovens artistas e que se tornou sinônimo de ju- que, em vários lugares do mundo, também do operariado. 1968 não ventude e rebeldia? explodiram revoltas de juventu- foi apenas um movimento de estu-

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dantes, mas teve muita força dos mento teve outra conotação. Não diferente. Num certo sentido, Oc- jovens, então acabou ficando míti- era uma ditadura, mas o país vivia tavio Paz coloca esses movimentos co. Também porque é uma referên- um regime mais autoritário, então que surgiram no mundo socialista cia para muita gente que teve a sua reivindicavam as liberdades que, ao também como de rebelião em con- juventude marcada por esse mo- longo dos anos, o México tinha es- juntura de escassez. Eram países vimento. Foi um mito construído vaziado. Lá 68 ficou muito marcado dominados pelo stalinismo que porque permitia essa articulação por um episódio de muita violência, não primavam por liberdades de- no mundo. conhecido por Massacre de Tlatelol- mocráticas. A Primavera de Praga co2. O exército e atiradores estavam teve uma simbologia enorme. As IHU On-Line – Fala-se em em locais estratégicos e acabaram pessoas acharam na época que de 1968 como se fosse apenas um, com uma manifestação estudantil dentro do mundo socialista surgi- no entanto, não seria mais cor- com muita violência. ria uma nova revolução demandan- reto pensar na ocorrência de do liberdade, valorização dos seres vários 1968? 68 tem grandes símbolos. Maio, humanos e suas subjetividades. A na França, é um deles, mas a Prima- Maria Paula Nascimento Primavera de Praga foi um símbolo vera de Praga3 é outro, totalmente Araújo – Este é um ponto que eu muito grande, mas reprimido pelos defendo, sem dúvida. Até porque tanques soviéticos. os movimentos que aconteceram 2 Massacre de Tlatelolco: ocorrido durante a tarde e a noite de 2 de outubro de 1968 na Plaza de las Tres Cultu- Diferentemente da França – onde, foram diferentes. Há inclusive al- ras, no bairro Tlatelolco, Cidade do México, dez dias antes do início dos Jogos Olímpicos disputados na cidade. Até no quadro da abundância, deman- guns autores que ressaltam essa hoje, o verdadeiro número de mortos permanece incerto: davam o impossível, a imaginação diferença, assim como outros res- algumas fontes apontam para mais de mil, mas a maioria oscila entre 200 e 300, enquanto fontes governamentais no poder –, nos Estados Unidos, saltam as semelhanças. Podemos se referem a 40 mortos e 20 feridos. Ocorreram milhares de detenções. O massacre foi precedido por vários meses apesar de ser um país de abundân- analisar tanto pelas diferenças de instabilidade política na capital, eco das manifestações cia, o movimento de 68 tem uma quanto pelas semelhanças, e ambas e revoltas estudantis ocorridas em outros países. Os estu- dantes mexicanos pretendiam explorar a atenção do mun- radicalidade muito grande porque as situações são interessantes para do, focada na Cidade do México por ocasião dos Jogos Olímpicos de 1968. No entanto, o presidente Gustavo Díaz uma parte dele se associou às lutas um historiador. Octavio Paz1 faz Ordaz Bolaños estava determinado a pôr fim aos protestos dos negros por direitos civis, como uma distinção dos movimentos de estudantis, e em setembro ordenou ao exército que ocu- passe o campus da Universidade Nacional Autónoma do os Panteras Negras4, que têm uma 40 68 que apareceram em países mais México - Unam. Os estudantes foram espancados e deti- dos de forma indiscriminada. Em forma de protesto contra força grande nisso. E tinha um mo- desenvolvidos, como na Europa, esta situação, o reitor da Unam, Javier Barros Sierra, demi- vimento radical da juventude uni- que ele chama de movimentos da tiu-se em 23 de setembro. Os protestos estudantis não es- moreceram. As manifestações aumentaram de proporção versitária se recusando a ir para a abundância, e outros, como no Mé- até que, no dia 2 de outubro, e após greves estudantis que 5 se prolongaram por nove semanas, 15 mil estudantes de Guerra do Vietnã , rasgando as car- xico e no Brasil, que são movimen- várias universidades ocuparam as ruas da Cidade do Mé- tos surgidos em países ditatoriais, xico, ostentando cravos vermelhos como sinal de protesto contra a ocupação militar da Unam. Quando anoiteceu, normalização. Os líderes seguintes tentaram restaurar os marcados pela escassez de liber- cerca de 5 mil estudantes e trabalhadores, muitos deles valores políticos e econômicos que prevaleciam antes de acompanhados das mulheres e filhos, haviam-se congre- Dubček ganhar poder no Partido Comunista da Tchecos- dades. Há tipologias, como essa, e gado no exterior de um bloco de apartamentos situado lováquia. Gustáv Husák, que substituiu Dubček e também há outras coisas que podemos ob- na Plaza de las Tres Culturas, em Tlatelolco, para o que se tornou presidente, retirou quase todas as reformas. A deveria ser uma manifestação pacífica. O massacre teve Primavera de Praga imortalizou-se na música e na litera- servar a partir dos próprios movi- início ao pôr-do-sol, quando forças do exército e da polí- tura pelas obras de Karel Kryl e de Milan Kundera, como cia, equipadas com carros blindados e tanques, cercaram o romance A insustentável leveza do ser. (Nota da IHU mentos. Por exemplo: 68 em Paris a praça e começaram a abrir fogo contra a multidão. Em On-Line) foi um movimento muito forte de pouco tempo, os corpos amontoavam-se na praça. A ma- 4 Panteras Negras (em inglês, Black Panther Party ou tança continuou pela noite adentro, quando os militares BPP): originalmente denominado Partido Pantera Negra estudantes que se aproximaram de efetuaram operações de busca nos apartamentos junto à para Autodefesa (em inglês, Black Panther Party for Sel- operários de algumas fábricas, mas praça. Em outubro de 1997, o Congresso mexicano criou f-Defense), foi uma organização política extraparlamentar uma comissão para investigar o massacre. O ex-presidente socialista revolucionária norte-americana ligada ao nacio- eles reivindicavam coisas como a da república Luis Echeverría Álvarez, ministro do interior nalismo negro. Fundada em 1966, na cidade de Oakland, em 1968, admitiu que os estudantes estavam desarmados Califórnia, por Huey Newton e Bobby Seale, a organização imaginação no poder, diziam “você e sugeriu que a ação militar fora planejada com o obje- permaneceu ativa até 1982. A finalidade original da orga- pode desejar o impossível” – e por tivo de destruir o movimento estudantil. (Nota da IHU nização era patrulhar guetos negros para proteger os resi- On-Line) dentes dos atos de brutalidade da polícia. Posteriormente, isso Octavio Paz falava em movi- 3 Primavera de Praga: movimento ocorrido na Tchecos- os Panteras Negras tornaram-se um grupo revolucionário lováquia, durante a época de sua dominação pela União marxista que defendia o armamento de todos os negros, a mentos da abundância. Podiam Soviética após a Segunda Guerra Mundial, que buscou isenção dos negros de pagamento de impostos e de todas reivindicar isso porque já tinham implantar reformas liberalizantes, em contrariedade ao as sanções da chamada “América Branca”, a libertação de socialismo centralizador e conservador soviético. Come- todos os negros da cadeia e o pagamento de indeniza- coisas básicas, como uma demo- çou em 5 de janeiro de 1968, quando o reformista eslo- ções aos negros por “séculos de exploração branca”. A ala vaco Alexander Dubček chegou ao poder, e durou até 21 mais radical do movimento defendia a luta armada. Em cracia mais consolidada. Por ter de agosto, quando a União Soviética e os membros do seu pico, nos anos de 1960, o número de membros dos abundância, podiam reivindicar o Pacto de Varsóvia (bloco militar dos países socialistas do Panteras Negras excedeu 2 mil, e a organização coorde- leste europeu) invadiram o país para interromper as refor- nou sedes nas principais cidades. (Nota da IHU On-Line) impossível. mas. O movimento foi uma tentativa de Dubček, aliado a 5 Guerra do Vietnã: conflito armado entre 1964 e 1975 intelectuais tchecoslovacos, de conceder direitos adicio- no Vietnã do Sul e nas zonas fronteiriças do Camboja e No México, por exemplo, o movi- nais aos cidadãos num ato de descentralização parcial da do Laos, com bombardeios sobre o Vietnã do Norte. Ins- economia e de democratização. As reformas concediam creve-se no contexto da Guerra Fria, conflito entre as po- também um relaxamento das restrições às liberdades de tências capitalistas e o bloco comunista. De um lado, com- imprensa, de expressão e de movimento. Dubček dividiu batiam a coalização de forças incluindo Estados Unidos, 1 Octavio Paz (1914-1998): poeta, ensaísta, tradutor e di- o país em duas repúblicas separadas – essa foi a única República do Vietnã (Vietnã do Sul), Austrália e Coreia do plomata mexicano, notabilizado, principalmente, por seu reforma que sobreviveu ao fim da Primavera de Praga. As Sul. Do outro, estavam República Democrática do Vietnã, trabalho prático e teórico no campo da poesia moderna reformas não foram bem recebidas pelos soviéticos, que Frente de Liberação Nacional (FLN) e a guerrilha comunis- ou de vanguarda. Recebeu o Nobel de Literatura de 1990. enviaram tropas e tanques do Pacto de Varsóvia para ocu- ta sul-vietnamita. A ex-URSS e a China forneceram ajuda Escritor prolífico cuja obra abarcou vários gêneros, é con- par o país. Aconteceram inúmeros protestos pacíficos no material ao Vietnã do Norte e ao FLN, mas não tiveram siderado um dos maiores escritores do século 20 e um país, inclusive o suicídio de um estudante, mas não houve participação militar ativa no conflito. A Guerra do Vietnã dos grandes poetas hispânicos de todos os tempos. (Nota resistência militar. A Tchecoslováquia continuou ocupada era uma parte do conflito regional envolvendo os países da IHU On-Line) até 1990. Após a invasão, o país entrou em um período de vizinhos do Camboja e do Laos, conhecido como Segunda

7 DE MAIO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE tas de convocação. Era uma radi- Vamos ao Brasil, com 68 marcada- as manifestações têm um tom mais calidade grande, mas diferente da mente estudantil, mas não apenas. anárquico, libertário. Os militantes que houve no México e no Brasil. Houve as greves operárias de Osas- do Partido Comunista Francês criti- Uma radicalidade, eu diria, dentro co, São Paulo, e de Contagem, em caram muito 68, viam como se fosse da conjuntura de um país abun- Minas Gerais. Temos que lembrar uma revolta juvenil, inconsequente, dante, mas que quer consolidar sua que no Brasil, em 68, havia uma face não comunista. dimensão imperialista – foi exata- estudantil e outra operária. Os agen- São vários tipos de movimento, mente isso que caracterizou o mo- tes políticos se contrapunham à dita- com conteúdos diferentes. Por isso vimento de 68 nos Estados Unidos. dura militar. concordo com você: o mais correto Não foi em todo o país, concen- Esses exemplos demonstram a é chamar de as manifestações de trou-se principalmente em Nova diversidade de 68. E tem outra 68. Depende muito da abordagem York, Columbus, São Francisco e questão: não aconteceu tudo em que o pesquisador, o historiador, o Washington. 68. As coisas foram acontecendo jornalista queira dar. Se for discutir A ebulição que houve nesse pe- em 66, 67, 68 e 69. Na Argenti- os conteúdos políticos, é obrigató- ríodo foi muito grande, por parte na, o 68 aconteceu em 69, que foi rio destacar as diferenças. Em certo dos movimentos de contestação à o levante estudantil e operário – sentido, essas diferenças talvez se- Guerra do Vietnã, dos movimen- assim como na França – na cida- jam o mais interessante, pois mos- tos que incitavam a desobediên- de de Córdoba, e ficou conhecido tram a pluralidade. cia civil para não ir à guerra, dos como El Cordobazo8. Houve ocu- movimentos negros nas universi- pações de fábricas e de universi- dades. Só que em 68, nos Estados dades, greves estudantis. IHU On-Line – Nos Estados Unidos, ainda tem outra vertente 1968 é um ano chave, mítico e metá- Unidos, em 1968 se observou a que é o movimento hippie. O jor- fora. E é um ano síntese, porque nem mobilização de negros, mulhe- 6 nalista Paul Berman , no livro A tudo aconteceu em 68. Começou um res e gays. Não é curioso que na tale of two utopias [Encontro de pouco antes e depois segue para a França mulheres e negros ti- duas utopias], diz que nos Estados frente. Um historiador da Unicamp, veram papel secundário, como Unidos, na década de 60 – que cul- o Marcelo Ridenti9, comenta que o bem mostra João Moreira Sal- 41 mina, mas não se restringe a 68 –, mais correto, historiograficamente, les em seu documentário No in- esse movimento teve, de um lado, seria falarmos na época de 68. tenso agora? a radicalidade da contestação da Maria Paula Nascimento Guerra do Vietnã e do movimento Todos esses exemplos – México, Araújo – Sim. Na França, inclusi- negro, e do outro, o movimento hi- Brasil, Praga, Paris, algumas cida- ve, as mulheres falam muito nisso, ppie, paz e amor, espiritualidade, des dos Estados Unidos – mostram que o movimento feminista, como a vida em comunidade, os festivais uma diversidade muito grande. Em tal, irrompe depois de 68, inclu- de rock. Praga, tem uma contestação ao regi- me soviético. Na França, em Paris, sive com essa constatação: onde Algumas vezes, nos próprios festi- estavam as mulheres, por que não vais de rock, havia pontes entre es- 8 El Cordobazo: insurreição popular ocorrida na cidade de estavam na linha de frente? Por Córdoba, capital da província argentina de mesmo nome, ses dois movimentos, quando, por em 29 e 30 de maio de 1969. Foi liderada por Elpidio Tor- que, apesar de toda a radicalidade 7 fez o solo de res e Atilio López, secretários-gerais, respectivamente, dos exemplo, Jimi Hendrix sindicatos SMATA (mecânicos) e Unión Tranviarios Auto- cultural e ideológica proposta, era guitarra tocando o Hino dos Estados motor, e Agustín Tosco, do sindicato Luz e Força. Os tra- proposta por rapazes bem vestidos, balhadores foram reprimidos pelas forças policiais, e um Unidos e termina imitando o som de manifestante morreu, fato que acabou mobilizando toda de terno? Depois disso, começa a bombardeios. Ele conjugava tudo: a cidade em busca de justiça, incluindo estudantes univer- sitários e secundaristas. A polícia não conseguiu conter o surgir na França um movimento de um festival de rock, as pessoas esta- movimento, então o Exército entrou em ação, provocando mulheres. dezenas de mortes. Parte da população, que ainda guar- vam acampadas, dormindo juntas, dava armas usadas para derrubar Juan Domingo Perón em era uma manifestação de amor livre. 1955, atirou contra os militares. A greve nacional iniciada em Córdoba espalhou-se pelo país, surgindo outros mo- Essa música é um ato político. Um vimentos como o Rosariazo e o Tucumanazo – todas ma- IHU On-Line – A efervescên- nifestações eram identificadas com palavras terminadas jovem músico do rock, negro, que com o sufixo “azo” e combatiam o governo ditatorial de cia e a intensidade dos aconteci- faz uma teatralização da contestação Juan Carlos Onganía, que realizou uma política de conge- mentos de 1968 tiveram que efei- lamentos salariais, proibiu greves e perseguiu dirigentes à Guerra do Vietnã. sindicais. As manifestações de 1969 e começo de 1970 to no Brasil? A ditadura tolheu o atingiram o governo militar e foram um dos fatores que levaram à deposição de Onganía em junho de 1970, abrin- alcance das pautas, já que havia Guerra da Indochina. (Nota da IHU On-Line) do espaço para uma saída eleitoral, concretizada com o necessidade de combatê-la? 6 Paul Berman (1949): jornalista e escritor norte-america- pleito de 1973. (Nota da IHU On-Line) no especializado em política e literatura. Autor, entre ou- 9 Marcelo Siqueira Ridenti: professor de Sociologia tros, de Terror and Liberalism, The Flight of the Intellectuals, desde 2005 na Universidade Estadual de Campinas - Uni- Maria Paula Nascimento A Tale of Two Utopias e Power and the Idealists. (Nota da camp, onde defendeu tese de livre-docência. Graduado Araújo – As novas pautas demora- IHU On-Line) em Ciências Sociais e em Direito e doutor em Sociologia 7 Jimi Hendrix (1942-1970): guitarrista, cantor e compo- pela Universidade de São Paulo - USP. Realizou estágio ram a chegar ao Brasil. Em 66, 67 e sitor norte-americano. Frequentemente é citado por críti- pós-doutoral na EHESS, Paris. Autor de Brasilidade revolu- cos e outros músicos como o maior guitarrista da história cionária – um século de cultura e política (Ed. Unesp, 2010), 68, houve um movimento fortíssimo do rock e um dos mais importantes e influentes músicos Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC de estudantes nas ruas. Esses anos de sua era, em diferentes gêneros musicais. (Nota da IHU à era da tv (Ed. UNESP, 2014) e O fantasma da revolução On-Line) brasileira (Ed. UNESP, 2010). (Nota da IHU On-Line) despertaram uma grande energia

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nas pessoas, grande vontade de par- e publicações relativos aos 40 de avanço das forças conservadoras ticipar, de lutar, de enfrentar a dita- anos de Maio de 68? de direita. Não é apenas no Brasil, é dura, reivindicar liberdade, mas tudo também na América Latina e na Eu- Maria Paula Nascimento Araú- foi absolutamente ligado às questões ropa, com a extrema-direita ganhan- jo – Em 2008, os principais livros es- das liberdades democráticas. As novas do espaço. Há uma violência enorme critos por militantes ou jornalistas que pautas só vão surgir depois. O ano de contra os refugiados, e a Europa não viveram o 68 tiveram um cunho muito 68 termina com o AI-510, que proíbe está conseguindo responder. O mun- mistificador, laudatório. Este foi o tom do passa por uma experiência tão manifestações, liberdade de expres- que prevaleceu. Os atores e as experi- conservadora que me parece muito são, proíbe tudo. Tolhe a ação política. ências foram vistos de maneira muito natural que 68 galvanize, mais do romantizada, fazendo um amálgama O que fazer com aquela energia que nunca, essa metáfora da revolu- de coisas que eram diferentes. Mas toda? Lideranças, jovens, estudantes ção, da utopia. universitários e secundaristas foram entendo isso. Para a geração que viveu para as ruas reivindicar liberdade. 68, no mundo todo, aqueles aconteci- Essa energia gigantesca foi sufocada. mentos são centrais em sua vida. En- IHU On-Line – O que a senho- Não é à toa que a militância de luta tendo que as pessoas romantizem. ra propunha ao afirmar que, armada se formou com jovens uni- Nos seminários e nas publicações em vez de celebrar ou come- versitários e secundaristas. A lideran- universitárias de pesquisa, feitas por morar, talvez fosse importante ça estudantil universitária – e não a historiadores e cientistas sociais, o desconstruir 68? massa, o Daniel Aarão Reis11 insiste tom foi diferente. Eles têm uma pos- Maria Paula Nascimento muito, a massa simplesmente viveu o tura crítica em relação à memória, à Araújo – Ao desconstruir, podemos recuo – foi constituir a luta armada. glorificação e à romantização. dar destaque às diferenças, para en- No Brasil, um dos legados de 68 foi Quem trabalha com a história do tender e pensar em um 68 global, da a radicalização por meio da luta ar- transformação total da utopia. Em mada. O outro legado, que apareceu tempo presente sabe que ela lida o tempo todo com a memória que ro- cada país foi de um jeito, porque com mais força, foram as novas pau- outras pessoas pensaram diferente tas. Movimentos de mulheres, negro mantiza, ou vitimiza, ou glorifica, mas muitas vezes parte de uma lembran- de Paris. É importante desconstruir 42 – embora tenha demorado mais –, para entender as duas utopias que comportamental. Mas o legado mais ça que, para o bem ou para o mal, é afetiva. Nos seminários e publicações o Berman fala. Quando se insiste evidente na época, no final de 68 e muito nessa ideia global, que é cele- início de 69, foi o deslocamento da que fazemos sobre história do tempo presente, sempre tem um pouco des- brada, perdemos justamente as dife- liderança estudantil das ruas para a se choque, desse confronto. Há quem renças. E são sempre as diferenças luta armada. diga “vocês não estiveram lá, não po- e especificidades que nos permitem IHU On-Line – Que perspec- dem saber o que é”, então responde- entender mais a história. tiva preponderou nos eventos mos “estamos analisando do ponto de vista do historiador”. É comum um IHU On-Line – As revoltas es- 10 AI-5 (Ato Institucional Número Cinco): decretado pelo confronto em relação às formas de ver. general Arthur da Costa e Silva, que ocupava a cadeira de tudantis foram uma das marcas presidente, em 13 de dezembro de 1968, foi um instru- mento de poder que deu ao regime militar poderes po- de 1968. A recente ocupação de líticos absolutos. A primeira consequência do AI-5 foi o escolas no Brasil pelos próprios fechamento por quase um ano do Congresso Nacional. IHU On-Line – E agora, nos 50 O ato representou o ápice da radicalização do regime estudantes animou pessoas de de exceção e inaugurou o período em que as liberda- anos, o que se percebe? des individuais foram mais restringidas e desrespeitadas, idade mais avançada. Foi uma constituindo-se em movimento final de “legalização” da Maria Paula Nascimento Araú- espécie de nostalgia de 68? arbitrariedade que pavimentou uma escalada de torturas e assassinatos contra opositores reais e imaginários ao re- jo – Ainda não sei. Ainda não está de- gime. (Nota da IHU On-Line) Maria Paula Nascimento finido. Vamos fazer um seminário na 11 Daniel Aarão Reis Filho (1946): historiador brasileiro e Araújo – As experiências das ocu- professor de História Contemporânea na Universidade Fe- UFRJ [Universidade Federal do Rio de deral Fluminense - UFF. Publicou diversos livros e artigos pações foram maravilhosas. Anima- sobre a história da esquerda no Brasil e sobre a história da Janeiro]. Acho inevitável haver as duas ram as pessoas talvez por nostalgia, experiência socialista no século 20. No final da década de vertentes, tanto a pessoal, da glorifica- 1960, participou da luta armada contra a ditadura militar, mas principalmente por reconhecer tendo integrado a direção do grupo que decidiu o seques- ção, quanto a mais crítica e questiona- tro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles a novidade que isso significou para Burke Elbrick, em troca da libertação de 15 presos políticos. dora. Queremos dar uma ótica a partir o Brasil. No Rio de Janeiro, não tí- Alguns de seus livros: A revolução faltou ao encontro – Os do mundo, tanto que estará vindo gente comunistas no Brasil (CNPq/Editora Brasiliense, 1990), De nhamos isso. Não foi tão marcado Volta À Estação Finlândia – crônica de uma viagem ao socia- de países que usualmente não vêm, por lismo perdido (Relume-Dumará, 1993), Aventura Socialista como na França, mas é diferente. no Século XX (Editora Atual, 1999), História do século XX (Ci- exemplo, o 68 na China, no Japão, na As ocupações no Brasil tinham a vilização Brasileira, 2000), Ditadura Militar, Esquerdas e So- África. Até para discutir se foi mesmo ciedade (Jorge Zahar Editor, 2000), As revoluções russas e o ver com o fato de o aluno ser pobre, socialismo soviético (Edunesp, 2003), Imagens da Revolução: um movimento internacional, quais as documentos políticos das organizações clandestinas de es- carente, sem condições de estudos. querda dos anos 1961 a 1971 (com Jair Ferreira de Sá, Marco diferenças e semelhanças. Zero, 1985), Uma revolução perdida: a história do socialismo Foi uma novidade espetacular, fan- soviético (Fundação Perseu Abramo, 2007), Modernidades De qualquer forma, estamos viven- tástica, e as pessoas puderam fazer Alternativas (com Denis Rolland, FGV, 2008) e Ditadura e democracia no Brasil (Zahar, 2014). (Nota da IHU On-Line) do no mundo um momento tão ruim a comparação. ■

7 DE MAIO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE

Maio de 68 não foi superado, nem derrotado Para Alana Moraes de Souza, as lutas vão sedimentando substratos, e toda vez que a sociedade se movimenta, de algum modo os substratos emergem

Vitor Necchi

antropóloga Alana Moraes de negros, terroristas, militantes, indíge- Souza considera que 1968 foi nas etc.” E a esquerda progressista, de marcante para a história das outro lado, “parece não ter entendido Acontestações ao capitalismo. “De ma- bem que o neoliberalismo formata todo neira bem simplificada, naquele mo- o aparato institucional do que costumá- mento houve uma rebelião global con- vamos chamar de estado de direito e in- tra o modo de vida capitalista e suas siste nas mesmas estratégias de disputa estruturas autoritárias”, avalia, em de poder”. entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Souza considera arriscado aproximar Eram tempos da Guerra Fria, e ha- o 1968 francês e o junho de 2013 bra- via uma divisão segundo a qual “a li- sileiro, mas acredita que existam ele- berdade estava do lado do capitalismo mentos de contato. “Tanto Maio como enquanto a ausência dela entrava na Junho expressaram uma insatisfação 43 conta das experiências comunistas”. No latente que existia na sociedade, uma entendimento de Souza, 1968 “rompeu insatisfação que, de algum modo, esta- com a ficção dessa divisão e apontou a va contida. [...] Outro ponto de contato estrutura autoritária e violenta que sus- importante é a expressão de um cansa- tentava o capitalismo”. Por outro lado, ço generalizado com os instrumentos “também revelou as estruturas auto- tradicionais de representação”. Além ritárias que sustentavam os partidos disso, reconhece uma aproximação trá- comunistas, a herança do stalinismo, gica, que é “onda conservadora que se a burocratização e a formação de elites alimentou dessa energia”. dirigentes na própria esquerda”. Alana Moraes de Souza é graduada Ao pensar sobre a atualidade em re- em Antropologia, mestra em Sociologia trospecto a 1968, Souza identifica uma e Antropologia pela Universidade Fe- conjuntura parecida: “De um lado, o deral do Rio de Janeiro - UFRJ. Atual- triunfo absoluto do neoliberalismo, mente cursa doutorado em Antropolo- em parte, sustentado pela promessa gia Social no Museu Nacional da UFRJ. de mais liberdade, flexibilidade, des- É coorganizadora dos livros Junho: po- regulação. Mas sabemos hoje, mais do tência das ruas e das redes (Fundação que nunca, que o neoliberalismo é fei- Friedrich Ebert, 2014) e Cartografias to de um grande aparato repressivo de da emergência: novas lutas no Brasil pacificação das revoltas, de ocupações (Fundação Friedrich Ebert, 2015). militares, de um racismo institucional que elege os corpos matáveis: jovens Confira a entrevista.

IHU On-Line – Se, confor- política é interpelada por um Alana Moraes de Souza – 68 me escreveste1, “cada geração conjunto de urgências, de pro- foi um momento muito importan- blemas incontornáveis”, quais te na história das contestações ao 1 Em artigo publicado no Cadernos IHU Ideias número foram as urgências de 1968 e capitalismo. De maneira bem sim- 268, disponível em http://bit.ly/2K0QN66. (Nota da IHU On-Line) quais as atuais? plificada, naquele momento houve

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uma rebelião global contra o modo De outro lado, a esquerda progres- ca daquele período da história? de vida capitalista e suas estruturas sista parece não ter entendido bem Alana Moraes de Souza – O autoritárias. Era ainda um período que o neoliberalismo formata todo o filme de João Moreira Salles4 é pri- dividido pela oposição ocidental da aparato institucional do que costu- moroso. Um trabalho minucioso de Guerra Fria2 na qual a liberdade es- mávamos chamar de estado de direi- arquivo. Eu gosto de como ele re- tava do lado do capitalismo enquan- to e insiste nas mesmas estratégias constrói os eventos de 68 a partir da to a ausência dela entrava na conta de disputa de poder. As urgências memória pessoal, da relação com a das experiências comunistas. 68, de dos nossos tempos têm a ver com a sua mãe, uma história incorporada. algum modo, rompeu com a ficção reelaboração de um novo campo de Esse é um bom projeto para todos dessa divisão e apontou a estrutura radicalidade que, por um lado, fuja nós: como contar a história de gran- autoritária e violenta que sustentava do vanguardismo e da incapacidade des eventos a partir das nossas his- o capitalismo: a guerra no Vietnã3, de conexão com os problemas reais tórias pessoais, a partir dos afetos o racismo, a exploração nas fábri- das pessoas e, por outro, assuma a íntimos. Como a história atravessa cas, o patriarcado. Mas 68 também tarefa de reconstruir um processo de nosso cotidiano e nossas relações, revelou as estruturas autoritárias lutas que desemboque em novos ar- experiências? É um modo possível que sustentavam os partidos comu- ranjos da vida coletiva, novas formas de fugir da história com “h” maiús- nistas, a herança do stalinismo, a de vida, possibilidades concretas de culo e masculino: contá-la a partir burocratização e a formação de eli- cooperação e de decisão das pessoas sobre seus cotidianos. É também ar- tes dirigentes na própria esquerda. 4 João Moreira Salles (1962): documentarista, roteirista e 1968 ousou abrir uma fenda nessa riscar novas institucionalidades que produtor do cinema brasileiro. João nasceu numa família tradicional – seu pai, Walther Moreira Salles, foi ministro oposição e produziu um campo mais possam ser experimentadas para de Estado, embaixador e, como banqueiro, foi o maior além do Estado neoliberal e seus en- acionista da União de Bancos Brasileiros (Unibanco), hoje radical de contestação, afirmando a incorporado ao Banco Itaú. A exemplo do irmão Walter possibilidade de um projeto de igual- quadramentos. Salles e incentivado por este, dedicou-se ao cinema. Seu primeiro trabalho, em 1985, foi o roteiro para a série Ja- dade com diferença e liberdade. Foi pão, uma Viagem no Tempo, exibida na extinta TV Man- chete. Em 1987, os dois irmãos fundaram a produtora uma geração dissidente que não teve Videofilmes, com o propósito inicial de realizar documen- medo de romper com as ortodoxias. tários para a televisão, mas que acabou sendo a produtora de importantes filmes da chamada retomada do cinema brasileiro. Ainda em 1987, João dirigiu China, o Império 44 Hoje temos uma conjuntura pare- “68 operou do Centro, e fez o roteiro do documentário Krajcberg, o cida em diversos aspectos. De um Poeta dos Vestígios, pelo qual recebeu prêmios na Itália, em Cuba e no Brasil. Também recebeu um prêmio em lado, o triunfo absoluto do neolibe- mudanças Paris por um especial coproduzido e veiculado pela rede Manchete, Blues (1990). Entre 1991 e 1996, trabalhou em ralismo, em parte, sustentado pela publicidade. Em 1998, lançou a série de programas Fute- promessa de mais liberdade, flexi- profundas e bol, codirigida por Arthur Fontes. No ano seguinte, com Kátia Lund, dirigiu Notícias de uma Guerra Particular, um bilidade, desregulação. Mas sabe- documentário sobre a população, a polícia e o tráfico de subjetivas, drogas no Rio de Janeiro. Entre maio de 1999 e maio de mos hoje, mais do que nunca, que o 2000, João coordenou um grupo formado pelos jornalistas neoliberalismo é feito de um grande Dorrit Harazim, Flávio Pinheiro, Marcos Sá Corrêa e Zuenir Ventura e os documentaristas Arthur Fontes e Izabel Ja- aparato repressivo de pacificação modos guaribe e trabalharam numa série de documentários mes- clando a experimentação artística do cinema ao trabalho das revoltas, de ocupações milita- jornalístico de investigação. Com o propósito de exibir um res, de um racismo institucional possíveis de ponto de vista que aparece pouco sobre o país, estreou em agosto de 2000, no canal de TV por assinatura GNT, que elege os corpos matáveis: jo- da rede Globosat, a série de documentários intitulada 6 se viver, uma Histórias Brasileiras. Dois episódios da série foram dirigi- vens negros, terroristas, militantes, dos por João. Na Videofilmes produziu Lavoura Arcaica, de indígenas etc. Explode o encarcera- Luiz Fernando Carvalho, Madame Satã, de Karim Ainouz, rebelião contra Babilônia e Edifício Máster, de Eduardo Coutinho, entre mento, o feminicídio como prática outros filmes. Em 2002, João lançou o documentário Nel- son Freire, sobre a carreira do pianista brasileiro. Durante cotidiana de regulação dos corpos o estado a campanha presidencial, em 2002, filmou os bastidores femininos, ou seja, é uma política da campanha política do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, criando o documentário Entreatos, lançado em de morte. natural das 2004. Em 2007 lançou Santiago, documentário sobre um antigo mordomo de sua própria família, mas que vai além disso ao tratar de temas como memória e a própria natu- 2 Guerra Fria: nome dado a um período histórico de coisas e suas reza do cinema documental. Produzido por João, Eduardo disputas estratégicas e conflitos entre Estados Unidos e Coutinho rodou no final de 2013 um novo documentário, União Soviética, que gerou um clima de tensão que en- Palavra, sobre adolescentes de escolas públicas cariocas. volveu países de todo o mundo. Estendeu-se entre o final Com a morte de Coutinho, João assumiu os trabalhos de da Segunda Guerra Mundial (1945) e a queda da União hierarquias” pós-produção do filme. Além de cineasta, João Moreira Soviética (1991). (Nota da IHU On-Line) Salles também atua no jornalismo. Em 2006 criou a re- 3 Guerra do Vietnã: conflito armado entre 1964 e 1975 vista Piauí, segundo ele, “para contar boas histórias com no Vietnã do Sul e nas zonas fronteiriças do Camboja e IHU On-Line – O documen- humor”. Em 2017, lançou No Intenso Agora, que surge do Laos, com bombardeios sobre o Vietnã do Norte. Ins- tário No intenso agora (2017), quando o diretor descobriu filmes que sua mãe fez de creve-se no contexto da Guerra Fria, conflito entre as po- uma viagem de turismo à China, em 1966. A obra tem um tências capitalistas e o bloco comunista. De um lado, com- de João Moreira Salles, evoca elaborado trabalho de edição a partir de trechos de do- batiam a coalização de forças incluindo Estados Unidos, cumentários e arquivos sobre fatos ocorridos em 1968 na República do Vietnã (Vietnã do Sul), Austrália e Coreia do a mãe do diretor e uma viagem França, na Tchecoslováquia e no Brasil. O IHU, na seção Sul. Do outro, estavam República Democrática do Vietnã, que ela fez à China, mas tam- Notícias do Dia, em seu sítio, publicou uma série de textos Frente de Liberação Nacional (FLN) e a guerrilha comunis- sobre o filme. Entre eles Melancolia e furor em João Mo- ta sul-vietnamita. A ex-URSS e a China forneceram ajuda bém tratou sobre o que persiste reira Salles, disponível em http://bit.ly/2ImUq9g; Olhando material ao Vietnã do Norte e ao FLN, mas não tiveram para trás, documentário joga luz sobre desilusão pós-junho participação militar ativa no conflito. A Guerra do Vietnã de Maio de 68. Que análise fa- de 2013, disponível em http://bit.ly/2rr323Z; e Como viver era uma parte do conflito regional envolvendo os países zes do filme e sobre sua capaci- depois da intensidade, disponível em http://bit.ly/2FSFGcL. vizinhos do Camboja e do Laos, conhecido como Segunda Saiba mais em ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias. (Nota Guerra da Indochina. (Nota da IHU On-Line) dade de suscitar reflexões acer- da IHU On-Line)

7 DE MAIO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE do relato, da vida, dos eventos co- estética: a forma é tudo, é o que nos vejo a história das lutas como a res- tidianos que não podem parar de permite produzir uma existência in- surgência, um resultado de vetores acontecer. suportável para o poder. mais quentes dos acontecimentos que se mesclam a experiências pas- sadas e seus aprendizados. IHU On-Line – João Moreira IHU On-Line – Para o docu- Salles, por meio de uma acu- mentarista, o apego a Maio de rada seleção e edição de ima- 1968 é desmesurado e conser- gens, reconstitui algumas das vador. Concordas com ele? Por principais movimentações de quê? “Nós 1968, como a francesa, desde Alana Moraes de Souza – Eu os primórdios do movimento discordo. Não precisamos olhar para precisamos até o esvaziamento das ruas. o passado com lentes melancólicas O diretor sugere que Maio de que nos fazem lamentar algo per- levar mais a 68 trata-se de um sopro de re- dido. O passado está sendo conti- beldia fugaz derrotado por De sério a ideia nuamente traduzido, acionado de Gaulle. No seu entendimento, diversas formas, incorporado. Maio foi apenas isso? de que o de 68 pode ter sido muita coisa, mas Alana Moraes de Souza – Essa não havia nenhum desejo de con- capitalismo é é uma leitura bem comum do Maio servar, ao contrário. Óbvio que toda de 68. Mas se fosse apenas um sopro movimentação radical gera também uma máquina de rebeldia fugaz não estaríamos fa- uma reação conservadora, mas são lando desse acontecimento com tanta as lutas geracionais de cada tempo de produzir paixão até hoje. Há algo em 68 que histórico que nos oferecem pistas ainda nos perturba. O acontecimento sobre as transformações. E entendo infelicidade” de 68 nos conduz a um outro tipo de geração como um sentido de perten- imaginação revolucionária que não cimento coletivo a uma urgência, um tem a ver com a tomada do poder ne- gesto, um desconforto insuportável, 45 IHU On-Line – Havia latente cessariamente, com um programa de não tem a ver só com uma identida- nos ideais de 1968 uma pre- governo, com um partido revolucio- de etária. tensão de mudar o mundo, de nário assaltando a institucionalida- A nostalgia pode ser uma forma transformar o futuro. Esses de. 68 operou mudanças profundas e de recusar os abismos do presente, desejos perderam fôlego? Por subjetivas, modos possíveis de se vi- e o filme aponta para isso. Mas, ao ver, uma rebelião contra o estado na- que, na atualidade, prevalece mesmo tempo, trabalha com uma tural das coisas e suas hierarquias. Se um desânimo? concepção de história muito line- pensamos no feminismo, por exem- ar, como se a história fosse feita de Alana Moraes de Souza – Nós plo, que não nasceu em 68, mas que, superações. Eu penso, ao contrário, precisamos levar mais a sério a ideia sem dúvida, teve um papel importan- que Maio de 68 não foi superado, de que o capitalismo é uma máqui- te nos acontecimentos ou no movi- não foi derrotado. As questões que na de produzir infelicidade. A in- mento negro que, especialmente nos ele levanta ainda nos atravessam: felicidade não é apenas um estado Estados Unidos, produziu um discur- organização, partido, liberdade, di- subjetivo, mas ela produz também so e uma postura muito radicalizada ferença, uma vida possível para além um corpo, uma certa disposição cor- contra o racismo normalizado... são 5 do trabalho e da condição de explo- pórea. Para Deleuze , a tristeza está movimentos que nunca cessaram de ração. As lutas vão sedimentando sempre ligada ao poder: o poder age produzir transformações no cotidia- substratos, e toda vez que a socieda- impedindo que realizemos, ele obs- no e fizeram isso sem precisar tomar de se movimenta, de algum modo os trui potências. Toda tristeza é decor- o poder institucional. substratos emergem, se misturan- rente dessa sensação de não conse- A defesa das liberdades em 68 esta- do com os elementos da superfície. guir, de estar bloqueado. Isso nos va conectada com uma radicalidade É como o fenômeno oceanográfico empurra para uma constatação difí- sistêmica, era preciso afirmar uma chamado de ressurgência. Esse fenô- cil para os marxistas mais ortodoxos: vida, uma explosão de felicidade, de meno acontece quando as águas pro- o neoliberalismo não atua apenas prazer, que fosse capaz de existir em fundas emergem à superfície levan- sobre as vidas, orientando políticas oposição à vida burguesa ou à obedi- do muitos nutrientes para as regiões e macroeconomia. Ele atua também ência que exigia o partido comunis- menos profundas. O resultado é um ta. Havia uma preocupação estética ambiente extremamente nutritivo. 5 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo francês. Assim como Foucault, foi um dos estudiosos de Kant, mas tem também. A afirmação do movimen- Isso só acontece porque as águas da em Bergson, Nietzsche e Espinosa, poderosas interseções. to black power, depois dos panteras superfície são mais quentes, mas as Professor da Universidade de Paris VIII, Vincennes, Deleu- ze atualizou ideias como as de devir, acontecimentos e negras, era uma afirmação também mais profundas, mais nutritivas. Eu singularidades. (Nota da IHU On-Line)

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na vida, no corpo. Não há nada mais IHU On-Line – Faz sentido desconsiderando a outra classe que materialista do que pensar o corpo, aproximar o 1968 francês e o também luta para conservar sua não? Como podemos falar sobre brasileiro do junho de 2013 posição. Por isso acho arriscadas “resistência” ou nos perguntar por brasileiro? e tristes essas análises que lamen- que as pessoas não resistem, se não Alana Moraes de Souza – É tam a existência de Junho como se entendemos que resistir é produzir sempre arriscado fazer essas compa- a mobilização gerada naquele mo- uma vida corpórea capaz de deslo- rações, mas acredito que existam ele- mento só servisse à direita. Esse é camentos, de movimento, de inten- mentos de contato. Tanto Maio como um jeito de olhar a história. Outro ções? O mercado financeiro usa a Junho expressaram uma insatisfação é pensar na própria incapacidade cocaína, por exemplo, para produzir latente que existia na sociedade, uma da esquerda de se conectar com a essa potência do corpo, mas seu efei- insatisfação que, de algum modo, es- indignação – se não é isso que de- to é uma intensificação do indivíduo, tava contida. Maio e Junho destrava- fine a esquerda, não sei mais o que do sujeito atomizado, autorreferen- ram essas contenções. Outro ponto de é. Precisamos resolver se queremos ciado, masculino. Por outro lado, contato importante é a expressão de salvar o capitalismo e seu sistema existe uma explosão no uso de an- um cansaço generalizado com os ins- político ou se queremos construir tidepressivos entre os mais pobres, trumentos tradicionais de represen- uma administração permanente da outras possibilidades. Em Junho, tação: novas formas de luta sindicais paralisia, um corpo anestesiado. Um grande parte da esquerda decidiu emergiam pela base, questionamento modo de lutar contra isso é buscar que precisava defender o sistema, das estruturas partidárias, uma explo- por uma corporeidade multitudiná- mas logo depois o sistema engoliu são de criatividade que se expressava ria, cooperada. É o que acontece nas a esquerda. Como sempre faz, ali- em muros, cartazes, proposições. cozinhas coletivas de ocupações, por ás. Mas tanto Junho como Maio exemplo. Cozinhar juntos, nos cui- O ponto de contato trágico está ainda estão em movimento nos dar. Investigar substâncias que nos na onda conservadora que se ali- trazendo mensagens, indicando ajudem nesses deslocamentos, na mentou dessa energia, mas não dá caminhos, oferecendo matéria com produção de alegrias. para acreditar em luta de classes nutrientes. ■ 46

Leia mais

- Contato e improvisação: o que pode querer dizer autonomia? Artigo de Alana Moraes de Souza, publicado no Cadernos IHU Ideias número 268, disponível em http://bit.ly/2K0QN66.

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É preciso consolidar uma narrativa de 1968 que aponte para um futuro melhor do que o presente Para Glaudionor Barbosa, as maiores mudanças decorrentes do movimento ficaram restritas às mentalidades, e, no seu entendimento, isso não é pouco

Vitor Necchi

os momentos de ascensão de ao conseguir o controle político, a vitó- uma utopia, acredita-se, sem- ria nas eleições que convocou e o apoio pre, em um novo tempo”, afir- dos trabalhadores. “As centrais sindi- maN o professor Glaudionor Barbosa. cais cederam. Sem direção revolucio- E qual o problema, no que se refere a nária, elas sempre cedem aos apelos 1968? “Uma aliança estudantil-operá- patrióticos ou vantagens pecuniárias.” ria não resolve o problema. O capita- Conforme Barbosa, “parte da esquer- lismo mudou a pele incorporando um da defende a herança de 1968 como um discurso de aceitação de mudanças “ divisor de águas”, mas o professor acre- pontuais, mas, na essência, terminadas dita que “as maiores mudanças ficaram as jornadas do ‘ano que nunca termina- restritas às mentalidades, e não é pou- rá’, inicia-se a preparação estratégica co”. No seu entendimento, é fundamen- 47 para o neoliberalismo.” tal a disputa das narrativas: “É preciso Barbosa, em entrevista concedida por que os setores progressistas continuem e-mail à IHU On-Line, afirma que falando e expressando seus pontos de “1968 criou formas de guerrilhas urba- vista. É preciso consolidar uma narra- nas e rurais, reais e simbólicas, produziu tiva de 1968 que aponte para um futuro mudanças violentas no comportamento melhor do que o presente”. geral”. Também “trouxe à tona as con- traculturas e as contra-contraculturas” e Glaudionor Barbosa é doutor em “mostrou a força contínua e viva com a Ciência Política pela Universidade Fe- explosão dos movimentos sociais: estu- deral de Pernambuco - UFPE, mestre dantis, feministas, ambientais”. em Economia pela Universidade Fe- deral da Paraíba - UFPB, graduado em Entre os movimentos de 1968, o mais Economia pela UFPE e em Engenharia emblemático ocorreu na França, onde “combinou-se repressão seletiva com Agronômica pela Universidade Federal a liderança do velho dirigente burguês Rural de Pernambuco - UFRPE. Charles de Gaulle, que levou a melhor”, Confira a entrevista.

IHU On-Line – No evento Cin- Glaudionor Barbosa – 1968 foi precisas, de melhor pontaria. Como quenta Anos de 1968: a Era de “o ano que nunca terminará”, pois eu dizia, ao se olhar para aquele ano, Todas as Viradas, promovido foi universal e disruptivo. Quando se tem a certeza de que as tarefas pela Universidade de São Paulo observamos 68, cada vez isso é dife- históricas dos oprimidos continuam - USP, sua fala está prevista no rente, pois tudo continua mudando na ordem do dia, e aquele ensaio foi tópico intitulado Crises econô- em relação ao referencial. O olhar é primoroso. micas: 1968 e 2018. Do que se diferente pois mudamos e não con- trata? Do ponto de vista econô- seguimos mudar muito. Nós somos 1968 não foi francês, foi mundial. mico, que aproximações podem diferentes, mas somos iguais. Con- Tivemos choques com a polícia que ser feitas entre esses dois mo- tudo, é inegável que o tempo forne- continua matando e prendendo tra- mentos no Brasil e no mundo? ce ao historiador ferramentas mais balhadores, jovens, mulheres e ne-

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gros. No fundo é a mesma polícia nômico que deixaria sequelas perma- de 1968? Uma aliança estudantil que matou Marielle1 e Anderson2. nentes, na forma de uma distribuição -operária não resolve o problema. de renda monstruosamente concen- O capitalismo mudou a pele incor- 1968 criou formas de guerrilhas trada, que não se desconcentra com porando um discurso de aceitação urbanas e rurais, reais e simbólicas, políticas públicas, apesar de 3Lula de mudanças pontuais, mas, na es- produziu mudanças violentas no estar numa solitária de Sérgio Moro4. sência, terminadas as jornadas do comportamento geral. 1968 trouxe A riqueza concentrou-se de forma oli- “ano que nunca terminará”, inicia- à tona as contraculturas e as con- gárquica e só será distribuída através se a preparação estratégica para o tra-contraculturas. 1968 mostrou a de uma revolução. Outro legado do neoliberalismo. força contínua e viva com a explosão Milagre foi a dívida externa. dos movimentos sociais: estudantis, As dificuldades da União Soviéti- feministas, ambientais. Liberou o ca, reforçadas pela ação de fora para corpo e a consciência, principalmen- IHU On-Line – Acreditava-se dentro, levou ao fracasso da experi- te das mulheres com a psicanálise, que teria início um novo tem- ência antissistêmica. É a derrota da os anticoncepcionais e a demolidora po, com novas perspectivas em URSS o maior dano que a humani- revolução sexual. relação às mazelas do capitalis- dade poderia sofrer. A unipolaridade mo e do socialismo soviético. na geopolítica mundial sustentou to- Do ponto de vista econômico, o das as experiências contra os fracos. que sustentava as elaborações Só agora, com a influência do binô- “Nos momentos do movimento? Que pensamen- mio Rússia-China, ocorre um come- tos e autores eram evocados? ço de reequilíbrio. de ascensão Glaudionor Barbosa – Nos Bem, havia muitas vozes, algumas momentos de ascensão de uma dissonantes. A voz principal era do de uma utopia, 5 utopia, acredita-se, sempre, em anarquista Daniel Cohn-Bendit . um novo tempo. Qual o problema No caso da França, o mais emble- acredita-se, mático, combinou-se repressão seletiva com a liderança do velho sempre, em um 3 Luiz Inácio Lula da Silva (1945): Trigésimo quinto presi- 48 dente do Brasil, cargo que exerceu de 2003 a 1º de janeiro dirigente burguês Charles de Gaul- de 2011. É cofundador e presidente de honra do Partido 6 dos Trabalhadores - PT. Em 1990, foi um dos fundadores e le , que levou a melhor. De Gaulle novo tempo” organizadores do Foro de São Paulo, que congrega parte conseguiu o controle político. Usou dos movimentos políticos de esquerda da América Latina e do Caribe. Foi candidato a presidente cinco vezes: em a imprensa, principalmente a fala- 1989 (perdeu para Fernando Collor de Mello), em 1994 (perdeu para Fernando Henrique Cardoso) e em 1998 da, para jogar água na fervura. Mo- IHU On-Line – Que temas eco- (novamente perdeu para Fernando Henrique Cardoso) e bilizou forças diversas em seu fa- nômicos ficam mais evidentes ganhou as eleições de 2002 (derrotando José Serra) e de 2006 (derrotando Geraldo Alckmin). Lula bateu um recor- vor. Saiu-se vitorioso nas eleições acerca das pautas de Maio de de histórico de popularidade durante seu mandato, con- forme medido pelo Datafolha. Programas sociais como o que havia convocado. Conseguiu o 68? Bolsa Família e Fome Zero são marcas de seu governo, apoio dos trabalhadores com pro- programa este que teve seu reconhecimento por parte Glaudionor Barbosa – Não da Organização das Nações Unidas como um país que messas de aumentos salariais e saiu do mapa da fome. Lula teve um papel de destaque acredito que ocorra uma coincidên- na evolução recente das relações internacionais, incluin- melhorias nas condições gerais. As cia conjuntural 1968-2018. Os 50 do o programa nuclear do Irã e do aquecimento global. centrais sindicais cederam. Sem di- É investigado na operação Lava-Jato e foi denunciado em anos é que devem servir de mote. setembro de 2016 pelo Ministério Público Federal (MPF), reção revolucionária, elas sempre apontado como recebedor de vantagens pagas pela em- cedem aos apelos patrióticos ou 1968 prenuncia a grande crise de preiteira OAS em um triplex do Guarujá. No dia 12 de julho 1973-1975, que enterra os 30 anos de 2017, Lula foi condenado pelo juiz federal Sérgio Moro, vantagens pecuniárias. em primeira instância, a nove anos e seis meses de prisão dourados do “capitalismo sem cri- em regime fechado por crimes de corrupção passiva e la- vagem de dinheiro. No dia 24 de janeiro de 2018, por una- se”, com uma crise estupenda, mos- midade, os três desembargadores da 8ª Turma do Tribunal trando que capitalismo e crise são a Regional Federal da 4ª Região confirmaram a condenação de Lula, elevando a pena para 12 anos e um mês de prisão. mesma coisa. No dia 7 de abril de 2018 Lula, após mandado de prisão 5 Daniel Cohn-Bendit (1945): político franco-alemão. expedido pelo judiciário, entregou-se à Polícia Federal Nasceu na França, filho de judeus alemães refugiados no No Brasil, inicia-se o Milagre Eco- onde se mantém sob custódia na Superintendência do país em 1933, fugidos do Nazismo. Foi líder estudantil no órgão em Curitiba. (Nota da IHU On-Line) movimento ocorrido em maio de 1968, na França. Aos 14 4 Sérgio Fernando Moro [Sérgio Moro] (1972): juiz fe- anos, optou pela nacionalidade alemã porque não queria deral brasileiro que ganhou notoriedade por comandar se sujeitar ao serviço militar francês. Membro da Federa- 1 Marielle Francisco da Silva ou Marielle Franco (1979- o julgamento dos crimes identificados na Operação Lava ção Anarquista e depois do movimento Negro e Verme- 2018): socióloga, feminista, militante dos direitos huma- Jato. Formou-se em direito pela Universidade Estadual de lho, se definiu mais tarde como liberal-libertário. Em 1967, nos e política nascida no Rio de Janeiro. Filiada ao Partido Maringá em 1995, tornando-se juiz federal em 1996. Tam- enquanto era estudante de Sociologia da Universidade de Socialismo e Liberdade (PSOL), elegeu-se vereadora do bém cursou o programa para instrução de advogados da Nanterre, começa o movimento de contestação que levou Rio de Janeiro na eleição municipal de 2016, com a quinta Harvard Law School em 1998 e participou de programas ao Movimento de 22 de Março em 1968. Na sequência maior votação. Crítica da intervenção federal no Rio de de estudos sobre lavagem de dinheiro promovidos pelo da evacuação das salas pela polícia em 2 de maio, esteve Janeiro e da Polícia Militar, denunciava constantemente Departamento de Estado dos Estados Unidos. É mestre e entre os estudantes que ocuparam a Sorbonne em 3 de abusos de autoridade por parte de policiais contra mora- doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná. maio. Foi, junto com Alan Geismar e Jacques Sauvageot, dores de comunidades carentes. Em 14 de março de 2018, Além da Operação Lava Jato, também conduziu o caso uma das principais figuras de Maio de 68. Em 21 de maio, foi assassinada a tiros. (Nota da IHU On-Line) Banestado. No caso do Escândalo do Mensalão, a ministra enquanto estava em Berlim, foi proibido de retornar à 2 Anderson Pedro Gomes: motorista que conduzia o do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber convocou o juiz França. Em 28 de maio, com o cabelo tingido e óculos es- carro da vereadora Marielle Franco, do Rio de Janeiro, Sergio Moro para auxiliá-la. Em 2014, Moro foi indicado curos, voltou para Sorbonne, sendo aclamado. Em maio de quando o veículo foi alvejado por vários disparos em 14 pela Associação dos Juízes Federais do Brasil para concor- 2015, Cohn-Bendit obteve a nacionalidade francesa. (Nota de março de 2018. Ambos morreram em decorrência do rer a vaga deixada por Joaquim Barbosa no STF, porém, da IHU On-Line) atentado. Ele tinha 39 anos, era casado e deixou um filho em 2015, a vaga foi preenchida por Luiz Fachin. (Nota da 6 Charles de Gaulle (1890-1970): general e presidente da pequeno. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) França de 1958 a 1969. (Nota da IHU On-Line)

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tentou destalinizar seu país, tentou burguesia. Uma ação concertada um sistema de freios mais democrá- a nível mundial poderia ter tido “Qual o tico, ampliou as liberdades indivi- resultados mais favoráveis. Vale duais. O Ocidente começou a falar e lembrar a situação da periferia do problema fala até hoje do “socialismo de rosto sistema, quase toda submetida a de 1968? humano”. Dubček era um pragmá- regimes de exceção. tico, apenas. A questão é que para Uma aliança jovens e pessoas de meia idade que não viveram no capitalismo, “O So- IHU On-Line – Que mundo estudantil- cialismo Real” sempre aparentava surgiu em consequência de ser opressivo. Era, porém parecia Maio de 68? operária não ser mais. Por sua vez, a resposta da Glaudionor Barbosa – Existem 8 URSS e do Pacto de Varsóvia foi ul- personalidades que gostariam de ver resolve o trapragmática, exagerada, brutal e 1968 riscado no mapa da História. ineficiente. Houve violência contra A maioria dos personagens de di- problema.” a população desarmada e a implan- reita pensa assim. Jair Bolsonaro9, tação de um regime de desesperança Malafaia10 e outros pensam assim. entre socialistas do mundo todo. O político francês de direita, apa- IHU On-Line – Embora o ide- rentemente reformado, Nicolas Paul ário de esquerda pautasse as Em resumo, pode-se dizer que o Stéphane Sarkozy11 afirmou que era manifestações de Maio de 68, ideário de 1968 era mais libertário pode-se afirmar que o movi- do que socialista-revolucionário, enquanto opção de poder contra a 9 Jair Bolsonaro (1955): militar da reserva e deputado mento abriu caminho para federal nascido em Campinas (SP). De orientação política ideias neoliberais? Por quê? de extrema direita, conservadora e nacionalista, cumpre do voltou a Praga, foi vítima de ostracismo, considerado sua sétima legislatura na Câmara Federal. Em janeiro de como um cadáver político. Até 1969, presidiu a Assem- 2018, anunciou sua filiação ao Partido Social Liberal (PSL), Glaudionor Barbosa – As duas bléia Federal checoslovaca. Nesse mesmo ano, foi expulso o nono partido político de sua carreira. Foi o deputado perguntas não levam a respostas do Partido. Nomeado embaixador na Turquia, não tardou mais votado do estado do Rio de Janeiro nas eleições ge- em ser destituído: de novo em Praga, trabalhou como bu- rais de 2014. Ficou conhecido pela luta contra os direitos simples. O que é um ideário de es- rocrata de uma exploração forestal. Não houve notícias LGBT, pela defesa da ditadura e da tortura. Seus embates suas até 1974, quando saiu uma carta aberta, assinada por contra os direitos humanos são constantes. Suas declara- 49 querda? Desenvolvimentismo e dis- ele e dirigida à Assembléia Federal, na qual ratificava os ções controversas já lhe renderam cerca de 30 pedidos de tribuição de renda são ideias de es- postulados democráticos de 1968, criticava as posições cassação e três condenações judiciais, desde que foi eleito do Partido e denunciava os abusos de poder do primeiro deputado em 1989. Documentos produzidos pelo Exército querda que a direita aceita, quando secretário Husak. Era considado um “tchecoslovaquista”, Brasileiro na década de 1980 mostram que os superiores contrário à divisão da Tchecoslováquia em República Tche- de Bolsonaro o avaliaram como dono de uma “excessiva necessário. Havia muitas ideias de ca e Eslováquia, e defensor da opção federativa. Em 26 ambição em realizar-se financeira e economicamente”. Se- esquerda e pouca unidade, e é por de novembro de 1989, Dubček foi aclamado na Praça de gundo o superior de Bolsonaro na época, o coronel Carlos Letna de Praga por milhares de compatriotas. Inspirador Alfredo Pellegrino, “[Bolsonaro] tinha permanentemente esse motivo que se fala em “tomar os das mudanças democráticas, foi feito presidente do Par- a intenção de liderar os oficiais subalternos, no que foi lamento checo. Faleceu em consequência dos ferimentos sempre repelido, tanto em razão do tratamento agressivo céus de assalto”. sofridos em acidente de automóvel ocorrido no dia 1º de dispensado a seus camaradas, como pela falta de lógica, setembro de 1992, perto de Humpolec. Foi sepultado em racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argu- Algumas mudanças, principal- Bratislava, na Eslováquia. (Nota da IHU On-Line) mentos”. É notório o seu machismo, como evidenciam as 8 Pacto de Varsóvia: aliança militar formada em 14 de agressões e ofensas direcionadas a suas colegas parla- mente no campo do comportamen- maio de 1955 pelos países socialistas do Leste Europeu e mentares. Seu desrespeito à condição feminina não pou- to e das mentalidades, ficaram. pela União Soviética, países estes que também ficaram co- pou nem a filha. Em abril de 2017, em um discurso no Clu- nhecidos como bloco do leste. O tratado correspondente be Hebraica, no Rio de Janeiro, Bolsonaro fez uma menção Quando as mulheres dizem hoje foi firmado na capital da Polônia, Varsóvia, e estabeleceu à caçula, então com seis 6 anos: “Eu tenho cinco filhos. o alinhamento dos países membros com Moscou, esta- Foram quatro homens, aí no quinto eu dei uma fraqueja- “meu corpo, minhas regras”, temos belecendo um compromisso de ajuda mútua em caso de da e veio uma mulher”. Em uma entrevista para a revista um legado de 1968. agressões militares e legalizando na prática a presença de Playboy, em junho de 2011, sua agressividade dirigiu-se milhões de militares soviéticos nos países do leste euro- aos gays: “Seria incapaz de amar um filho homossexual”. peu desde 1945. O organismo militar foi alegadamente Ainda disse preferir que um filho “morra num acidente Não vamos esquecer que 1968 instituído em contraponto à OTAN (Organização do Tra- do que apareça com um bigodudo por aí”. Em abril de atingiu o elo mais fraco do mundo tado do Atlântico Norte), organização internacional que 2017, durante um discurso no Clube Hebraica, no Rio de uniu as democracias da Europa Ocidental e os Estados Janeiro, afirmou que acabará com todas as terras indíge- soviético. Desse modo, na Tchecos- Unidos para a prevenção e defesa dos países membros nas e comunidades quilombolas do Brasil caso seja eleito contra eventuais ataques vindos do Leste Europeu. Os presidente em 2018. Também disse que terminará com o lováquia inicia-se um processo re- países que fizeram parte do Pacto de Varsóvia eram al- financiamento público para ONGs: “Pode ter certeza que formista liberado por um comunista guns nos quais foram instituídos governos socialistas pela se eu chegar lá não vai ter dinheiro pra ONG. Se depender 7 União Soviética, após a Segunda Guerra Mundial: Polónia, de mim, todo cidadão vai ter uma arma de fogo dentro de chamado Alexander Dubček . Ele República Democrática Alemã, Checoslováquia, Hungria, casa. Não vai ter um centímetro demarcado para reserva Romênia, Bulgária, Albânia (esta última retirou-se em indígena ou pra quilombola”. (Nota da IHU On-Line) 1968), sendo que a estrutura militar seguia as diretrizes 10 Silas Malafaia (1958): pastor pentecostal líder do mi- 7 Alexander Dubček (1921-1992): nascido na Checoslo- soviéticas. A Iugoslávia, por oposição do Marechal Tito, se nistério Vitória em Cristo, ligado à Assembleia de Deus. váquia, atualmente Eslováquia. Foi chefe de estado da an- recusou a ingressar no bloco. Porém, as principais ações Televangelista, graduado em psicologia, presidente da tiga Tchecoslováquia, país onde se tornou-se líder do Par- do Pacto foram dentro dos países-membros para a re- editora Central Gospel, vice-presidente do Conselho In- tido Comunista em 1968 e iniciou as reformas da chamada pressão de revoltas internas. Em 1956, tropas reprimiram terdenominacional de Ministros Evangélicos do Brasil Primavera de Praga. Durante a Segunda Guerra Mundial, manifestações populares na Hungria e Polônia, e em 1968, (CIMEB), entidade que agrega cerca de 8 mil pastores tomou parte na resistência contra a ocupação nazista, na Tchecoslováquia, na chamada Primavera de Praga que de quase todas as denominações evangélicas brasileiras. demonstrando sua capacidade de organização ao prota- pediam a descentralização parcial da economia e a demo- Malafaia se tornou muito conhecido por sua crítica a te- gonizar o levantamento nacionalista eslovaco contra as cratização. As mudanças no cenário geopolítico da Europa mas como direitos dos homossexuais e ao aborto, bem tropas alemãs no inverno de 1944 a 1945. Ficou ferido em Oriental no final da década de 1980, com a queda dos como por defender a chamada teologia da prosperidade. repetidas ocasiões. Dirigiu a tentativa de democratização governos socialistas, o fim do Muro de Berlim, o fim da Em janeiro de 2013, uma reportagem da revista Forbes, socialista em seu país. Seu propósito, destinado a demo- Guerra Fria e a crise na União Soviética, levaram à extinção dos Estados Unidos, o classificou como o terceiro pastor cratizar o Estado e as estruturas internas do Partido, e abrir do Pacto em 31 de março de 1991. O fim do Pacto de mais rico do Brasil, com um patrimônio estimado em 150 a nação às potencias ocidentais, foi referendado por gran- Varsóvia representou, também, o fim da Guerra Fria. Seis milhões de dólares. Malafaia negou a informação no pro- de parte da população checoslovaca. A tentativa foi abor- anos depois, a OTAN convida República Tcheca, Hungria grama De Frente com Gabi, quando afirmou que seu pa- tada sangrentamente pelas tropas soviéticas do Pacto de e Polônia a ingressarem na organização, demonstrando trimônio girava em torno de R$ 6 milhões. (Nota da IHU Varsóvia em agosto de 1968. Dubček foi sequestrado pela uma nova configuração das forças militares na Europa On-Line) policía soviética de ocupação e levado a Moscou. Quan- pós-Guerra Fria. (Nota da IHU On-Line) 11 Nicolas Sarkozy (1955): advogado e político francês,

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necessário “liquidar” a herança do lando e expressando seus pontos de continuadores, e mesmo os governos Maio de 68. vista. É preciso consolidar uma narra- do PT não foram exemplares neste tiva de 1968 que aponte para um futu- quesito. A questão que se coloca é Muita gente enaltece 1968 por ter ro melhor do que o presente. qual a qualidade do crescimento e aberto uma brecha que ajudou na quais os meios? queda do muro de Berlim12, eufe- mismo para o fim da União Sovi- Os argumentos mais esgrimados ética. Na verdade, o fim da URSS são do crescimento ou do Milagre tem raízes mais profundas. Aliás, Econômico. Assim, alega-se que se o clima de 1968 fosse inebriante “1968 criou de 1968 a 1973 o Brasil entrou em a este ponto, as ditaduras latino-a- uma espiral de crescimento na mé- mericanas teriam caído. Claro que o formas de dia de 10% ao ano, e chegou ao pico sentido libertário influenciou todos em 1973, a um crescimento de 14% os espaços. guerrilhas do Produto Interno Bruto - PIB. O aumento do produto, logo, da ren- Parte da esquerda defende a he- urbanas e da e do emprego, foi acompanha- rança de 1968 como um divisor de do pela queda da inflação. A taxa águas. Reafirmo que as maiores rurais, reais e (IGP) caiu de 25,5% para 15,6% no mudanças ficaram restritas às men- período. O que não fica evidente, talidades, e não é pouco. A ideia da simbólicas, apenas com os números, é que o “imaginação no poder” pode pare- crescimento teve duas fontes prin- cer coisa de alienado, contudo, não produziu cipais: endividamento externo e é, pois antes da chegada objetiva ao arrocho salarial. poder, é preciso que a imaginação mudanças chegue. Talvez se a juventude come- violentas no Para manter a economia cres- çasse a se despir no meio das aulas, cendo, os salários eram reajusta- parte do ranço fascista, presente no comporta- dos, na média, abaixo da inflação. Brasil de hoje, se esfumaçasse ou se Os trabalhadores perdiam renda 50 materializasse logo. mento geral” e ficavam calados? Ficavam, pois a primeira coisa que os militares Uma parte importante dos estu- fizeram, depois de destruir fisi- dantes estava convencida do seu pa- camente as oposições, foi intervir pel social quando gritava pelas ruas nos sindicatos e colocar pelegos na e universidades de Paris, não apenas IHU On-Line – No campo polí- direções. Ou seja, o crescimento só na capital francesa: todo poder aos tico brasileiro, a partir de 1968 foi possível com o aniquilamento operários! Não seremos capatazes houve um aprofundamento da da resistência dos trabalhadores. das fábricas dos burgueses. ditadura. E na economia, que análise se pode fazer de ques- Esclarecendo: se Y = αw + βl, sen- Uma questão fundamental é a dispu- tões como política salarial e do Y = Renda Nacional; w = salá- ta das narrativas, a saber, é preciso que distribuição de renda, entre rios; l = lucros; α é o coeficiente de os setores progressistas continuem fa- outras? absorção dos salários e β é o coe- ficiente de aborção dos lucros, im- foi o 23º presidente da França entre 2007 e 2012. Foi tam- Glaudionor Barbosa – Em bém, juntamente com o bispo de Urgel, o co-príncipe de plica que com os sindicatos amor- Andorra. Antes de se tornar presidente, lideorou a União tempos sombrios, como agora, es- daçados α tende para zero. por um Movimento Popular (UMP). Durante a presidência de Jacques Chirac, foi ministro do Interior nos primeiros cuta-se muitos afirmarem que na dois governos de Jean-Pierre Raffarin (de maio de 2002 época dos militares era muito me- a março de 2004), e depois foi nomeado ministro das Fi- nanças no último governo de Raffarin (março de 2004 a lhor. Melhor para quem, cara-páli- IHU On-Line – Que papel maio de 2005), e novamente ministro do Interior no go- verno de Dominique de Villepin (2005-2007). Sarkozy foi da? A resposta é dupla: havia mais Maio de 68 teve para o pensa- também presidente do Conselho Geral do departamento segurança e a economia ia muito mento da esquerda? francês de Hauts-de-Seine de 2004 a 2007 e prefeito de Neuilly-sur-Seine, uma das comunas mais ricas da França, bem! Será? Não é díficil para um Es- Glaudionor Barbosa – 1968 di- de 1983 a 2002. Foi ministro do Orçamento no governo de tado policial prover segurança. Até Édouard Balladur durante o último mandato de François versifica a pauta da esquerda. Como Mitterrand. Sarkozy é conhecido por querer revitalizar a as rodas de amigos eram vigiadas, economia francesa. Prometeu reavivar a ética trabalhis- já visto acima, as mudanças princi- ta, promover novas iniciativas e combater a intolerância. quando não proibidas. (Nota da IHU On-Line) pais são de mentalidades, de cultu- 12 Muro de Berlim: começou a ser derrubado em 9 de Quanto à economia? Os militares ra, de comportamento. As questões novembro de 1989, num ato inicial de reunificação entre as duas Alemanhas. Além disso, a queda do muro significa, mostraram que uma economia ca- específicas passaram a ter um lugar para muitos historiadores, o fim da Guerra Fria. A constru- ção do Muro aconteceu em 1961, dividindo a Alemanha pitalista pode crescer, fizeram me- entre República Federal Alemã (coordenada pelos países lhor do que os neoliberais, Fernan- tista político, professor universitário e político brasileiro. democráticos, liderados pelos EUA) e República Demo- Foi o 34º Presidente do Brasil, por dois mandatos conse- crática Alemã (sob jurisdição dos países comunistas, lide- do Henrique Cardoso13 e seus atuais cutivos, entre 1995 e 2003. Conhecido como FHC, ganhou rados pela URSS). Centenas de pessoas foram mortas ou notoriedade como ministo da Fazenda (1993-1994) com a feridas tentando fugir do lado oriental para o ocidental da instauração do Plano Real para combate à inflação. (Nota construção. (Nota da IHU On-Line) 13 Fernando Henrique Cardoso (1931): Sociólogo, cien- da IHU On-Line)

7 DE MAIO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE importante. as estantes/as estátuas/as vidraças, cal e o maior homem do século 20 louças, livros, sim...”. É preciso sair (Sartre17), virou fetiche e é vendido Por outro lado, a influência prin- de dentro do Facebook, pois é den- nas lojas e ruas do mundo todo, in- cipal é da Escola de Frankfurt14. tro dele que eles querem confinar a clusive na Argentina. Parte importante da juventude juventude. estudantil começa a perceber que O avanço tecnológico, se trouxe o debate é inadiável. A vida “nor- muitas vantagens, como fornecer mal” do capitalismo sem crise co- essa entrevista por e-mail ou equi- meça a se mostrar sem motivação. pamentos médicos sofisticados que A primeira questão colocada era “O ideário de detectam doenças que antes só se- de sentido, a segunda era da per- riam descobertas quando não havia sistência de exploração e opres- 1968 era mais mais opção de cura, isolou e alienou são nas periferias do capitalismo as pessoas. Para que ir ao cinema se “normal”. A juventude começou a libertário do temos o Netflix? entender que poderia ter um papel transformador. que socialista- IHU On-Line – Deseja acres- Alguns pensadores como Herbert revolucionário, centar algo? Marcuse15 começam a assumir um triplo papel de intelectual, professor enquanto Glaudionor Barbosa – Desejo e militante. Essa questão foi essen- agradecer a oportunidade que me cial e continua sendo. Um professor opção de foi dada e dizer que as primaveras não tem o direito de se acovardar e sempre voltam. Vamos invadir nova- desligar sua função de mestre com a poder contra mente a USP [Universidade de São de intelectual e militante. Paulo] e o faremos sempre que ne- a burguesia” cessário e oportuno. Pacificamente, O mal-estar da civilização bur- como agora, ou com vontade revolu- guesa era resultante da opressão cionária, como em 1968. ■ ideológica e da exploração econô- 51 mica, porém era, tambem, aliena- IHU On-Line – Os sentidos ção de si mesmo, trabalho repeti- de Maio de 1968 foram esva- maneira clandestina e sumária pelo exército boliviano, tivo e ausência de prazer. Tanatos ziados? em colaboração com a CIA, em 9 de outubro de 1967. Foi considerado pela revista norte-americana Time uma vencia Eros. das cem personalidades mais importantes do século 20. Glaudionor Barbosa – Não Para muitos dos seus partidários, representa a rebeldia, O conceito mais forte de 1968 é sei se houve esvaziamento de fato, a luta contra a injustiça social e o espírito incorruptível. Em contrapartida, muitos dos seus opositores o consi- de que “o poder está nas ruas”, e é acontece que o metabolismo do ca- deram um criminoso, responsável por assassinatos em preciso resgatar esta ideia. É preciso massa, e acusam-no de má gestão como ministro da pital é violento, tudo que cai no seu Indústria. Sua fotografia feita por Alberto Korda é uma novamente “derrubar as prateleiras/ estômago é triturado. Ernesto Che das imagens mais reproduzidas do mundo e um dos ícones do movimento contracultural. Tanto a fotogra- 16 Guevara , o militante mais radi- fia original como suas variantes, algumas apenas com o contorno do seu rosto, têm sido intensamente repro- 14 Escola de Frankfurt: escola de pensamento for- duzidas, para uso simbólico, artístico ou publicitário. mada por professores, em grande parte sociólogos 16 Che Guevara (Ernesto Guevara de la Serna, 1928-1967): Che Guevara foi tema da edição 239 da IHU On-Line, marxistas alemães. Abordou criticamente aspectos um dos mais famosos revolucionários comunistas da his- de 8-10-2007, disponível em http://migre.me/2pebG. contemporâneos das formas de comunicação e cultura tória. Nasceu em Rosário, na Argentina, e morreu em La (Nota da IHU On-Line) humanas. Deve-se à Escola de Frankfurt a criação de Higuera, Bolívia. Foi guerrilheiro, político, jornalista, escri- 17 Jean-Paul Sartre (1905-1980): filósofo existencia- conceitos como indústria cultural e cultura de massa. tor e médico. Guevara foi um dos ideólogos e comandan- lista francês. Escreveu obras teóricas, romances, peças Entre os principais professores e acadêmicos da Escola tes da Revolução Cubana (1953-1959). Ele participou des- teatrais e contos. Seu primeiro romance foi A náusea podemos destacar: Theodor Adorno (1903-1969), Max de então, até 1965, da reorganização do Estado cubano, (1938), e seu principal trabalho filosófico é O ser e o Horkmeimer (1885-1973), Walter Benjamin, Herbert desempenhando vários altos cargos da sua administração nada (1943). Sartre define o existencialismo em seu en- Marcuse (1917-1979), Franz Neumann, entre outros. e de seu governo, principalmente na área econômica, saio O existencialismo é um humanismo como a dou- (Nota da IHU On-Line) como presidente do Banco Nacional e como ministro trina na qual, para o homem, “a existência precede a 15 Herbert Marcuse (1898-1979): sociólogo alemão da Indústria, e também na área diplomática, encarre- essência”. Na Crítica da razão dialética (1964), Sartre naturalizado estadunidense, membro da Escola de gado de várias missões internacionais.onvencido da apresenta suas teorias políticas e sociológicas. Aplicou Frankfurt. Estudou Filosofia em Berlim e Freiburg, onde necessidade de estender a luta armada revolucionária suas teorias psicanalíticas nas biografias Baudelaire conheceu os filósofos e professores Husserl e Heideg- a todo o Terceiro Mundo, Che Guevara impulsionou (1947) e Saint Genet (1953). As palavras (1963) é a pri- ger e se doutorou com a tese Romance de artista. Algu- a instalação de grupos guerrilheiros em vários países meira parte de sua autobiografia. Em 1964, foi esco- mas de suas obras: Razão e Revolução, Eros e Civiliza- da América Latina. Entre 1965 e 1967, lutou no Con- lhido para o prêmio Nobel de literatura, que recusou. ção, O Homem Unidimensional. (Nota da IHU On-Line) go e na Bolívia, onde foi capturado e assassinado de (Nota da IHU On-Line).

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A tarefa de não esquecer os herdeiros perpetradores da repressão no México Para Larissa Jacheta Riberti, evocar os 50 anos do Massacre de Tlatelolco é importante para debater um modelo político e partidário esgotado

Wagner Fernandes de Azevedo | Edição: Patricia Fachin

próxima eleição presidencial blica e apoiam candidatos que possam mexicana, marcada para 3 de representar seus interesses”. junho deste ano, coincide com Larissa Riberti também relembra as Aos 50 anos do Massacre de Tlatelolco, manifestações sociais de Maio de 68, que que ocorreu em 2 de outubro de 1968, uniram estudantes secundaristas e uni- considerado “a expressão máxima de versitários, classe trabalhadora, políticos um Estado autoritário, da prática re- e intelectuais, e adverte: “Nesse contexto pressiva em nome da hegemonia priis- de 50 anos de 1968, uma das tarefas é ta” e “um dos episódios mais tristes da a de não se esquecer de quem foram os história mexicana”, diz a historiadora perpetradores da repressão, quem são os Larissa Jacheta Riberti em entrevista herdeiros dessa classe política hegemô- concedida por e-mail à IHU On-Line. nica e como eles ainda atuam dentro do Para Riberti, no atual contexto elei- ordenamento institucional”. toral, em que o Partido Revolucionário Larissa Jacheta Riberti é graduada 52 Institucional – PRI, do atual presiden- em História pela Universidade Estadual te, Enrique Peña Nieto, voltou ao poder de Campinas - Unicamp, mestra e dou- em 2012, depois de ter governado o tora em História Social pela Universi- país entre 1929 e os anos 2000, “ativar a memória sobre o Movimento Estu- dade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, dantil de 1968 é uma ação importante e pós-doutoranda em História na Uni- para que possamos promover debates versidade Federal de Santa Catarina - sobre o que representou a mobilização UFSC. Sua dissertação trata da história daquele momento e suas críticas a um e da memória do movimento estudantil modelo político e partidário que, já na- de 1968 no México e sua tese analisa o quela época, encontrava-se esgotado”. processo de transição à democracia e a implantação de mecanismos de justiça A historiadora frisa que “há uma transicional no país. Atualmente, de- oposição social muito grande ao velho senvolve pesquisa sobre os movimentos partido, mas até hoje não se conseguiu armados rurais e urbanos atuantes no aprovar nas urnas um projeto de Es- México entre as décadas de 1960 e 1980. tado mais progressista ou à esquerda. Dentre as causas estão as fraudes elei- A entrevista foi originalmente publi- torais, o grande número de abstenções cada nas Notícias do Dia de 2-5-2018, (reflexo também da descrença do mexi- no sítio do Instituto Humanitas Unisi- cano em relação ao sistema político) e nos – IHU, disponível em http://bit. a atuação de classes empresariais hege- ly/2rpuxf3. mônicas que manipulam a opinião pú- Confira a entrevista.

IHU On-line — De que forma Larissa Jacheta Riberti — Exis- sobre aquele momento. Isso não sig- as versões da História, a histo- te uma necessidade de deslocar o nifica ignorar ou desqualificar a pro- riografia, sobre o Massacre de eixo de entendimento sobre o ano dução Europeia, sobretudo francesa, Tlatelolco são relevantes para a de 1968 da Europa para o resto do do ano de 1968 e das manifestações compreensão das mobilizações mundo. Ou seja, uma necessidade que ocorreram naquela época, e sim mundiais em 1968? de “deseuropeizar” a compreensão atentar para a produção bibliográfica

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“Existe uma necessidade de deslocar o eixo de entendimento sobre o ano de 1968 da Europa para o resto do mundo”

em geral. Em outras palavras, consi- um modelo de governo, de um projeto gestão econômica e social colocados derar textos acadêmicos, a expressão de Estado, levado a cabo pelo Partido em prática pelos presidentes do PRI das memórias, a produção cultural Revolucionário Institucional - PRI. que priorizaram uma política econô- sobre o ano de 1968 em outras par- mica voltada para a ampliação das in- O movimento estudantil de 1968, en- dústrias e o desenvolvimento urbano, tes do mundo, como América Latina, quanto momento histórico e objeto da leste europeu, China e África. própria análise histórica, era o reflexo sobretudo a partir da década de 1940. Com relação à historiografia sobre de uma América que dialogava com Nas zonas rurais, por outro lado, as o 68 mexicano, é preciso conside- o mundo, mas que ao mesmo tempo populações camponesas e indígenas rar que ela é integrada por distintos tinha demandas sociais internas que sofriam constantemente com a mar- gêneros. Ou seja, é uma bibliografia precisavam ser atendidas de maneira ginalização e a exclusão de suas de- composta de estudos acadêmicos urgente. Por isso, de maneira geral, mandas das decisões políticas. Esses (teses, dissertações, monografias), há um esforço muito grande dos pes- grupos careciam de políticas públicas, relatos pessoais, escritos biográficos quisadores para incluir o tema do 68 de uma reforma agrária plena que e obras que mesclam trajetórias de mexicano nos debates mais tradicio- lhes conferisse não apenas o direito a 53 ex-líderes do movimento estudan- nais sobre o momento. Nesse sentido, ocupar produtivamente as terras, mas til com a reconstrução histórica dos a experiência mexicana é muito im- que garantisse sua participação no acontecimentos daquele momento. portante para ampliarmos nossa com- mercado e que impedisse o controle Nesse sentido, a produção histo- preensão sobre o ano de 1968 e sobre da produção agrícola e da distribuição riográfica sobre o 68 mexicano está as características desse momento his- de recursos naturais e econômicos por muito imersa na subjetividade das tórico, deslocando nosso olhar para parte dos latifundiários. Essas eram, experiências vivenciadas pelos pró- produções advindas de espaços não portanto, populações excluídas e que prios estudantes daquele momento. hegemônicos e que também foram viviam à margem daquele desenvol- Experiências essas que têm ligação considerados “periféricos”. vimento econômico e social verifica- com o contexto internacional daque- do nos grandes centros urbanos. Tal le momento, mas que nos falam mui- IHU On-line — Como se carac- realidade causaria uma migração em to sobre as condições políticas, eco- terizava a sociedade mexicana massa de camponeses e indígenas nômicas e socioculturais do México da década de 1960? para algumas capitais, sobretudo para de então. Ao mesmo tempo, o gran- a Cidade do México. Além do desem- de número de trabalhos acadêmicos Larissa Jacheta Riberti — O prego, tais populações foram acometi- sobre o tema nos dá um panorama México do ano de 1968 era uma so- das pela pobreza, pela falta de estrutu- mais amplo de objetos como as ide- ciedade que apresentava muitas ra em termos de moradia, saneamento ologias, as estratégias e os objetivos desigualdades. Ao passo que os es- básico, acesso à saúde e à educação, e da mobilização estudantil mexicana. tudantes de universidades como a ficaram ainda suscetíveis ao precon- Universidade Nacional Autônoma do ceito e ao racismo. Considerando tudo isso, na minha México - Unam advinham de uma opinião, a grande contribuição des- classe média cuja ascensão social ha- A década de 1960 também foi um sa historiografia, que é muito diversa via sido possibilitada por mudanças momento de grande mobilização das em suas características, é apresentar econômicas suscitadas no período do classes trabalhadoras. Desde o fim e discutir uma mobilização estudantil chamado “milagre econômico” – que do movimento ferroviário, uma das que, apesar de inserida num contex- abriu a economia mexicana para os maiores mobilizações de trabalhado- to muito amplo de movimentos de investimentos e a entrada de capital res já registradas no país e que aca- contestações numa escala mundial, estrangeiro –, o país convivia com um bou sendo duramente reprimida em possuía especificidades importantes intenso êxodo rural e aumento da de- 1958, sindicatos, grêmios e associa- e que refletiam a própria construção sigualdade social. Essa realidade ha- ções de categorias profissionais mo- política mexicana e o esgotamento de via sido consequência dos modelos de bilizaram-se para reivindicar maior

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participação política, melhorias nas mente, em seus ambientes urbanos e Executivo, por exemplo, que permi- condições de trabalho e fim da re- inseridos na lógica do “milagre econô- tiram aos presidentes mexicanos do pressão aos seus movimentos. Den- mico” – não estiveram isentos dessas século XX controlarem boa parte do tre eles se destacam, por exemplo, o influências. Além das notícias sobre Legislativo e do Judiciário nacional. movimento médico e o movimento as mobilizações em todo o mundo, a Além disso, o próprio Código Penal de professores, este que, no início eclosão das rebeldias, os sonhos e uto- deu o alvará jurídico e legal para a de 1960 já discutia questões como pias compartilhados pela juventude, prática de medidas repressivas contra a falta de autonomia universitária e os estudantes mexicanos dividiam as grupos e movimentos enquadrados no problemas na legislação trabalhista. referências teóricas e históricas que chamado “delito de disolución nacio- circulavam nos ambientes acadêmicos nal”. O fim desse mecanismo de atu- No campo, as mobilizações também de outros lugares, como Paris, Estados ação repressiva da polícia e do corpo se faziam presentes, como o caso da Unidos, América Latina. de “granaderos” (a polícia antimotins Asociación Cívica Guerrerense, uma que atuou contra vários movimentos organização sindical criada em 1959 Entre os estudantes mexicanos, é sociais) foram, vale destacar, duas das que reuniu líderes e trabalhadores in- necessário destacar que não eram um principais demandas do movimento dígenas camponeses para reivindicar grupo hegemônico, circulavam ideias estudantil de 1968. as questões de terra e autonomia pro- e referenciais que diziam respeito à dutiva, além de denunciar e combater Revolução Bolchevique, à Revolução O PRI também conseguiu cooptar as repressões e crimes cometidos pe- Cubana, à Revolução Cultural chinesa, boa parte das lideranças sindicais na los latifundiários do estado de Guer- sobre as críticas à Guerra do Vietnã, o época de Lázaro Cárdenas e com a rero e as arbitrariedades do então go- apoio aos processos de descolonização. criação da Central de Trabalhadores vernador Raúl Arturo Caballero. Esses estudantes liam Lenin, Marx, Mexicanos - CTM, que congregou as Rosa Luxemburgo, Trotsky, Mao Tsé- antigas estruturas de mobilização O México da década de 1960 con- Tung, Fidel Castro, Che Guevara. Por profissional e as manteve sob avi- vivia, portanto, com essas desigual- causa dessas referências, o movimento gilância do Estado. Somam-se a isso dades extremas. Ao mesmo tempo, estudantil de 1968 no México conta- mecanismos de fraudes eleitorais, faziam-se presentes inúmeros movi- va com grupos maoístas, trotskistas, ameaças a candidatos de oposição e mentos e organizações de contestação marxistas ortodoxos, guevaristas, dis- uma constante perseguição ao PCM, 54 e resistência. A explosão demográfica sidentes e ainda partidários do Partido principal opositor do PRI. das cidades naquele momento era a Comunista Mexicano - PCM e de suas consequência imediata de um “mila- Todas essas estratégias foram colo- diretrizes político-programáticas, além gre econômico” relativo e excludente cadas em prática a partir de mano- de setores, podemos dizer, mais conci- que, por outro lado, tinha impactos bras para ocultar o caráter repressivo liadores e centristas. nada favoráveis às populações cam- e controlador da política priista. Por ponesas e indígenas. Obviamente, os Vale destacar que o movimento es- outro lado, nos discursos de seus centros de educação superior não se tudantil mexicano também disputava presidentes se reivindicava o nacio- isentariam de discutir tais problemas símbolos nacionais como a figura dos nalismo, as heranças da Revolução e as questões sociais mais urgentes. líderes camponeses Emiliano Zapata, Mexicana e se exaltavam símbolos Pancho Villa e do antigo presidente nacionais e populares. indígena Benito Juárez, apropriados Por isso, o que se atesta é que, para IHU On-line — Quais influên- pelo discurso supostamente naciona- além do movimento estudantil de cias externas incidiram no mo- lista e revolucionário do PRI. 1968, as mobilizações sociais, de vimento estudantil mexicano caráter pacífico ou não, foram du- em 1968? ramente afetadas por essa estrutura IHU On-line — Que relação o Larissa Jacheta Riberti — É priista que controlou o poder por PRI exerceu no México no sé- inegável que a mobilização estudantil quase todo século XX. Os já citados culo XX e com os movimentos de 1968 no México é também parte movimentos ferroviário, de profes- sociais? Quais foram as conse- de um grande mosaico de manifes- sores e médico também sofreram quências de 70 anos de priismo tações que aconteceram no mundo com as estratégias repressivas. Os para esses movimentos? todo. O maio parisiense, a primavera movimentos estudantis de 1968 e de Praga, as lutas guerrilheiras por Larissa Jacheta Riberti — O 1971 também não ficaram isentos toda América Latina, as mobilizações impacto do PRI nos movimentos so- da maneira violenta e violadora que nos Estados Unidos, a contracultura ciais ainda pode ser sentido. Desde o Estado historicamente havia lida- e as manifestações por liberdade de sua criação, em 1929, o partido criou do com a oposição. Posteriormente, expressão e liberdade sexual foram mecanismos para o controle e a coop- essas práticas foram sistematizadas fatores que impactaram a vida dos es- tação da dissidência, buscando, assim, e aperfeiçoadas para a perseguição e tudantes mexicanos daquele momen- garantir a sua permanência no poder. combate às guerrilhas rurais e urba- to. Nem eles, nem a própria sociedade Dentre essas estratégias estavam di- nas que surgiram no país principal- mexicana, que – como dito anterior- reitos “extraconstitucionais” ao Poder mente na década de 1970.

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IHU On-line — Como se desen- do país naquela época. O movimento no final dos anos 1990, os primeiros cadeou o Massacre de Tlatelolco? também contou com o decisivo apoio estudos acadêmicos sobre a Opera- da classe intelectual, do professorado, ção Galeana – como foi chamado o Larissa Jacheta Riberti — O dentre eles o próprio reitor da Unam, operativo de 2 de outubro de 1968 Massacre de Tlatelolco de 2 de outu- Javier Barros Sierra, e de outras cate- –, e com base nesses arquivos, foram bro de 1968 foi justamente a expressão gorias profissionais como a operária publicados. Ainda hoje, há controvér- máxima de um Estado autoritário, da e a camponesa. Assim, tanto o caráter sias sobre o episódio, o que dificulta a prática repressiva em nome da hege- criminoso e violador do massacre de atribuição de responsabilidades. monia priista. É considerado um dos Tlatelolco, quanto a legitimidade da episódios mais tristes da história me- Para além do próprio movimento atuação dos estudantes entre a opi- xicana. E isso se dá, na minha opinião, estudantil, que não conseguiu se re- nião pública, foram fundamentais por dois fatores principais. Um deles articular após o massacre de Tlate- para que o episódio fosse considera- foi a maneira como se orquestrou a lolco, podemos dizer que houve uma do um dos mais trágicos da história estratégia repressiva: um plano de cisão entre as lideranças estudantis mexicana, bem como um momento ataque ao movimento estudantil para naquele momento. Em cidades como de ruptura, divisor de águas, na polí- ser executado exatamente dez dias an- Guadalajara, Cidade do México e tica e na sociedade mexicana. tes do início das Olimpíadas, o grande Nuevo León, começaram a surgir nos evento internacional e através do qual anos 70 grupos radicais conformados o PRI defendia o caráter democrático IHU On-line — Quais impactos por estudantes e que reivindicavam do seu governo e do Estado mexica- o Massacre de Tlatelolco gerou a luta armada e a clandestinidade, no. O acordo foi feito entre o Estado no movimento estudantil mexi- numa declarada oposição às estraté- Maior da Presidência com a partici- cano? gias pacíficas da “geração” de 1968. pação de generais do exército e do O desenvolvimento desses grupos Batalhão Olímpia, esquadrão especial Larissa Jacheta Riberti — O conformaria guerrilhas urbanas que que, naquela época, deveria garantir a massacre foi um duro golpe contra o foram duramente perseguidas e re- segurança durante os jogos. O plano movimento. Como já dito, todos os lí- primidas pelos governos priistas até contou com a anuência do Estado, en- deres do Conselho Nacional de Greve o final da década de 1980. foram presos na operação de 2 de ou- tão presidido por Gustavo Díaz Ordaz 55 e com a participação do Secretário de tubro. Estiveram na prisão de Lecum- Governo, Luis Echeverría. A estratégia berri e no Campo Militar n. 1 até 1971, IHU On-line — Como se traba- era acabar com o movimento, prender quando foram anistiados por Eche- lha a memória do Massacre de as lideranças, liquidar qualquer tenta- verría, sucessor de Díaz Ordaz, numa Tlatelolco na política mexica- tiva de reorganização. estratégia política de “abertura de- na? Que sujeitos a sustentam? mocrática”. Outros estudantes foram Larissa Jacheta Riberti — A A ação foi iniciada quando luzes exilados e, assim, impossibilitados memória do movimento estudantil verdes sinalizadoras provenientes de continuar atuando. Alguns setores e do massacre de Tlatelolco tem sido de helicópteros deram a autorização ainda tentaram alguma mobilização, sustentada sobretudo pelos ex-líderes para que os franco-atiradores posi- mas o movimento ficou enfraqueci- do Conselho Nacional de Greve e par- cionados nos edifícios que rodeavam do. Isso se deu também porque no dia ticipantes das mobilizações. São eles a praça iniciassem os disparos. Logo seguinte ao massacre, os veículos de as vozes mais privilegiadas no espaço após, vieram as balas das armas dos comunicação de grande circulação no público. Eles detêm de uma legitimi- efetivos do exército que bloqueavam México deram início a uma campanha dade na opinião pública que é possí- as avenidas de saída do local. Ao de difamação dos estudantes. Divul- vel identificar até os dias atuais. Um mesmo tempo, membros do Bata- garam amplamente a “versão oficial” deles, Raúl Álvarez Garín, faleceu re- lhão Olímpia executaram a prisão de dos acontecimentos, destacando que centemente e encampou uma série de todos os líderes do Conselho Nacio- os estudantes haviam sido responsá- iniciativas para se rememorar aquele nal de Greve – órgão central do mo- veis pelo tiroteio ocorrido na Praça momento. Esteve à frente do Comitê vimento – que discursavam no ter- das Três Culturas, já que os primeiros 68, órgão que, até hoje, lidera as mar- ceiro andar do Edifício Chihuahua. tiros teriam, segundo essa versão, sido chas de 2 de outubro e é um dos prin- disparados por “franco-atiradores” li- O segundo fator é o fato de que o cipais organismos civis em nome da gados ao movimento e que se encon- movimento estudantil de 1968 con- memória e da justiça. Para além des- travam nos telhados dos edifícios que tava com ampla aceitação social. O se caso em específico, temos também rodeavam a praça. caráter pacífico de sua luta – apesar a produção de uma série de obras de das barricadas, incêndios de ônibus e A falsa versão só seria de fato dis- antigos membros do movimento que estratégias combativas de luta – era putada e contestada após a saída dos fazem parte da historiografia sobre bem-vindo entre a sociedade, sobre- ex-membros do movimento estudan- o tema e que falam sobre a memória tudo entre as classes médias que, til da prisão e o retorno dos exilados. construída por esses agentes sobre como já destacado, haviam ascen- Os arquivos sobre esse tema só se- suas próprias experiências. No âmbito dido socialmente nas áreas urbanas riam abertos décadas mais tarde e, só civil e público, não foram poucas as

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manifestações, debates e iniciativas processo. No entanto, é preciso tam- var outras reformas empreendidas por para se rememorar o ano de 1968. bém considerar que as guerrilhas rurais seu governo. O novo presidente optou Existe um monumento na Praça das e urbanas que começaram a aparecer por criar a Fiscalía Especial para Mo- Três Culturas, inaugurado em 1993, na sociedade mexicana desde meados vimientos Sociales y Políticos del Pa- que homenageia algumas das pessoas da década de 1960 também exerceram sado - Femospp. Foi uma espécie de que morreram durante o massacre. um papel fundamental de opositores corregedoria, sob responsabilidade da ao governo. Ao contrário da luta estu- Procuradoria Geral da República, na Em 2008, a Unam inaugurou o dantil de 1968, que pregava reformas época chefiada pelo militar Rafael Ma- Memorial de 1968, uma exposição no sistema político, participação efeti- cedo de la Concha. O modelo de Fis- permanente no Centro Cultural Uni- va e fortalecimento da democracia, as calía Especial é conhecido no México versitário Tlatelolco, num espaço guerrilhas propunham a derrubada do e pouco acreditado pela população, já junto ao prédio do Ministério das sistema e sua substituição por um novo que experiências anteriores com esse Relações Exteriores, na Praça das modelo. Eram um perigo ao establish- tipo de órgão investigativo não tive- Três Culturas. A exposição exibe car- ment mexicano, aos grupos empresa- ram resultados satisfatórios. tazes, livros, imagens, documentos e riais, e à elite política priista. Na minha disponibiliza uma série de entrevis- A Femospp foi, então, o instrumen- percepção, portanto, é preciso inserir tas com ex-membros do movimento to de justiça de transição do Estado também os movimentos guerrilheiros estudantil e intelectuais mexicanos mexicano que pretendeu investigar os – em geral bastante obscurecidos pelo que buscam promover a memória crimes contra os movimentos de 1968 protagonismo exercido pelo movimen- sobre esse passado. e 1971, bem como contra as guerrilhas to estudantil de 1968 – nesse debate que atuaram entre as décadas de 1960 Oficialmente, o 2 de outubro é con- sobre a transição mexicana e reconhe- e 1980. Teve um caráter sobretudo ju- siderado luto nacional desde 2008. cer seu protagonismo nesse processo. rídico, mas esbarrou em muitos obstá- Existe também uma classe política, De fato, a transição só alcançaria culos como a falta de vontade política sobretudo de partidos mais de esquer- seu “ápice” com a eleição de Vicente em levar adiante as investigações, um da e de centro, que se considera “her- Fox, do Partido da Ação Nacional - ordenamento jurídico ainda muito deira” das reivindicações dos estu- PAN, em 2000. Ela foi o resultado conservador quanto à agenda de pro- dantes de 1968, da democratização do de uma forte aliança entre setores de teção e promoção dos direitos huma- 56 Estado. Por isso, não é raro ouvir em centro-direita e da esquerda mexica- nos, a falta de confiança de setores da discursos e em sessões do Congresso na. O voto útil, foi assim a estratégia sociedade civil, como as organizações Nacional referências a esses estudan- que reuniu as lideranças políticas em de familiares de vítimas e as contra- tes e sua luta. No entanto, é verdade nome da transição. A transição à de- dições da gestão foxista em nome da também que oficialmente, com exce- mocracia no México foi um processo governabilidade. O organismo iniciou ção da Fiscalía Especial, criada por votado, endógeno, mas que não re- processos investigativos, mas não re- Vicente Fox em 2001, e dos trabalhos presentou a substituição de boa par- sultou na condenação dos perpetrado- realizados pela Comissão Nacional de te da classe política nacional que, em res de violações aos direitos humanos. Direitos Humanos, muito pouco foi espaços como Câmaras Municipais No entanto, o grupo de investigação feito em nome da responsabilização e Congresso Nacional, ainda estava histórica da Femospp conseguiu pro- pela matança de 2 de outubro. No ge- fortemente atrelada ao PRI. duzir um informe bastante importe, ral, portanto, a promoção da memória cuja narrativa dá conta de explicitar os e a luta pela justiça tem ficado a cargo Em suas campanhas, Vicente Fox mecanismos repressivos e agentes re- de organismos civis de direitos hu- prometeu criar uma comissão da pressores do Estado que atuaram nes- manos, de familiares de vítimas e de verdade para atender aos anseios de ses diferentes episódios. Para alguns, ex-líderes e membros do movimento organismos civis de direitos huma- o Informe carece de validade. Desde a estudantil de 68. nos e familiares de vítimas que de- mandavam a investigação dos casos minha perspectiva, porém, que analisei de assassinato, perseguição, tortura seu conteúdo pensando-o enquanto IHU On-line — Como acon- e desaparecimento de guerrilheiros objeto da história, ele é um importan- teceu a justiça de transição no nas décadas passadas. Era urgente, te instrumento para se verificar como México? portanto, iniciar processos de investi- o Estado mexicano construiu sua pró- pria história, marcada por violências, gação desses casos e atribuir respon- Larissa Jacheta Riberti — O de- massacres e violações aos direitos hu- sabilidades aos perpetradores, muitos bate sobre o processo de transição me- manos. É inegável que há um reconhe- deles vinculados ao Estado, ao exérci- xicana é extenso e não há um consenso cimento muito claro dessas práticas to e às corporações policiais. sobre quando ele foi iniciado e se ele re- repressivas, de sua sistematização e do almente terminou. Eu acredito que as Já no poder Vicente Fox não criou impacto social das mesmas. Essa é uma lutas sociais da década de 1960, e nesse uma comissão da verdade, pois tal das contribuições mais importantes do contexto inserida a dos estudantes em proposta desagradou à grande maio- Informe produzido pela Fiscalía. Esse 68, foram um conjunto de aconteci- ria do corpo legislativo ligado ao PRI e é um dos motivos, por exemplo, de tal mentos que determinou o início desse cujo apoio Fox necessitava para apro- Informe ter sido ocultado pelo próprio

7 DE MAIO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE governo do PAN, que não promoveu professor normalista que se tornaria o xo também da descrença do mexica- sua difusão de maneira ampla. Hoje, líder guerrilheiro do Partido de los Po- no em relação ao sistema político) e a não é possível encontrar uma cópia ofi- bres, cujos membros atuaram clandes- atuação de classes empresariais hege- cial do Informe, não existe um site que tinamente na região da Serra de Atoyac mônicas que manipulam a opinião pú- reúna os documentos produzidos pela na década de 1970. blica e apoiam candidatos que possam Femospp e esse fundo documental está representar seus interesses. O que eu quero dizer é que esses es- “perdido”. O debate sobre o assunto é tudantes de Ayotzinapa cumpriam um Nesse sentido, ativar a memória so- muito mais amplo e existem muitos de- papel político e reivindicavam suas an- bre o Movimento Estudantil de 1968 talhes e discussões sobre a atuação da tigas lideranças. Eram herdeiros de Ca- é uma ação importante para que pos- Fiscalía e o papel do Informe Histórico. bañas e Zapata na luta pela terra e inco- samos promover debates sobre o que Ele ainda carece de atenção por parte modavam as estruturas hegemônicas representou a mobilização daquele da academia e da sociedade. de poder. Foram reprimidos quando se momento e suas críticas a um modelo dirigiam justamente à marcha de 2 de político e partidário que, já naquela IHU On-line — A história me- outubro que aconteceria na Cidade do época, encontrava-se esgotado. É im- xicana é marcada por assassi- México. Seu desaparecimento deriva portante para que sejam retomadas natos e golpes políticos. Porém, do fato de que esses estudantes passa- as discussões sobre as utopias, os so- a violência contra o movimento ram pela cidade de Iguala e pretendiam nhos e as estratégias de luta daqueles estudantil, como a repressão fazer uma intervenção à cerimônia de estudantes. Esse é um exercício im- na Plaza de Tlatelolco, El Hal- apresentação do Informe de Governo portante de conhecer o passado para conazo, em 1971, e o desapare- do então prefeito da cidade, ocasião mudar o presente. cimento dos 43 estudantes de que também serviria para lançar a can- Nesse sentido, devemos entender Ayotzinapa, em 2014, pode ser didatura de sua esposa à prefeitura. que o movimento de 68 não se resu- considerada característica da Ambos eram acusados de ligação com me a tragédia do Massacre de Tla- política mexicana? o narcotráfico. telolco. Ele foi amplo e representou Larissa Jacheta Riberti — Exis- O desaparecimento dos 43 estudan- uma mobilização que se fazia presente te uma continuidade muito clara das tes foi fruto de uma manobra estatal desde julho de 1968. Uniu estudantes práticas repressivas no México, o que e dentre os responsáveis figuram não secundaristas e universitários, classe 57 não significa que o México seja uma apenas o prefeito da cidade de Iguala e trabalhadora, política e intelectuais. O movimento continha uma série de sociedade cuja característica principal sua esposa, mas também o secretário demandas, seus membros atuavam é “uma cultura da violência” partilhada local de segurança, policiais e narco- politicamente e disputavam os espa- por todos. O que se verifica no país é traficantes. O caso revela a triste con- ços públicos. Ou seja, entender o 68 uma estrutura política baseada na ma- tinuidade das práticas repressivas por mexicano não se resume a debater a nutenção do poder a qualquer custo. parte do Estado, que resultam em per- violência do massacre de Tlatelolco. A hegemonia priista foi mantida com seguições, assassinatos, desapareci- base em uma série de mecanismos, le- mentos, ou seja, violações permitidas Não podemos cair no erro de sa- gais e ilegais, que facilitaram sua per- por uma impunidade que se perpetua. cralizar a luta ou vitimizar os prota- manência no poder por décadas. gonistas daquela época de maneira a marginalizar o caráter político de suas O caso do desaparecimento dos es- IHU On-line — As eleições reivindicações, ainda que seja preciso tudantes de Ayotzinapa é uma prova deste ano coincidem com os 50 denunciar a violência e as violações da continuidade dessas práticas. Vale anos do Massacre de Tlatelolco. cometidas naquele momento. Nesse lembrar que esses estudantes perten- Em que medida o evento é rele- contexto de 50 anos de 1968, então, ciam à Escola Normal Rural Raúl Isi- vante para a oposição ao PRI? uma das tarefas é a de não se esquecer dro Burgos, situada numa região de de quem foram os perpetradores da antigos conflitos rurais entre latifun- Larissa Jacheta Riberti — O repressão, quem são os herdeiros des- diários e poder local contra populações PRI voltou ao poder em 2012, com a sa classe política hegemônica e como indígenas camponesas. Atualmente, a eleição de Enrique Peña Nieto numa eles ainda atuam dentro do ordena- região de Ayotzinapa, assim como todo disputa contra Andrés Manuel López mento institucional. o estado de Guerrero, ainda sofre com Obrador. Na época, houve uma série a expansão dos cartéis narcotraficantes de denúncias de compra de votos que Fazer um debate sobre o 68 mexi- e suas relações com o poder institucio- havia sido executada dias antes das cano é imprescindível para que, 50 nal. Esta Escola Normal, assim como eleições pelo PRI. Há uma oposição anos depois, possamos conhecer de várias outras com esse mesmo caráter, social muito grande ao velho partido, fato quem são os representantes po- tem como projeto educacional a luta mas até hoje não se conseguiu aprovar líticos interessados em atender as pela terra e pela autonomia produtiva, nas urnas um projeto de Estado mais demandas pendentes sobre aquele a promoção das tradições indígenas e progressista ou à esquerda. Dentre as momento, como a justiça, a promo- camponesas. Pela escola de Ayotzinapa causas estão as fraudes eleitorais, o ção da memória e da verdade e a não passaram nomes como Lucio Cabañas, grande número de abstenções (refle- repetição das violações. ■

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1968 e o Chile: um olhar para além da fetichização do Maio francês Joana Salém analisa as nuances latino-americanas do ano que sacudiu a segunda metade do século XX

Wagner Fernandes de Azevedo | Edição: João Vitor Santos

América Latina, com todas suas vernos chamados ‘bolivarianos’ ou ‘pro- particularidades, também viveu gressistas’ recentes. Ao mesmo tempo foi sua primavera revolucionária du- um dos políticos mais sistematicamente Arante e após os movimentos revolucioná- financiados pela CIA”, descreve Salém. rios ocorridos no ano de 1968. A questão, “O reformismo de Frei, financiado pelos no entanto, é que não é possível estabele- Estados Unidos, se mostrou uma fór- cer uma relação direta de causa e conse- mula radical e arriscada demais, acabou quência entre as manifestações francesas gerando o efeito oposto do desejado. (...) e as ocorridas no Sul de nosso continen- O governo democrata cristão pretendia te, especialmente no Chile. ““Claro que criar instrumentos tutelares e canalizar as mobilizações de 1968 insuflaram as as energias de revolta popular para confi- esquerdas no Chile. Mas quais camadas gurações aceitáveis ao capitalismo chile- e quais classes sociais das esquerdas? O no. Mas a DC perdeu o controle”, analisa. projeto socialista era internacional, a mili- tância marxista formava uma grande rede Joana Salém Vasconcelos é gra- 58 de rivalidades intelectuais e alianças po- duada em História pela Universidade líticas pelo mundo”, aponta Joana Salém de São Paulo - USP, mestra em Desen- em entrevista por e-mail à IHU On-Line. volvimento Econômico pela Universida- de Estadual de Campinas - Unicamp e “No Chile talvez um dos componentes paradoxais dessa influência tenha sido a doutoranda em História Econômica na intensificação do entusiasmo urbano e in- USP. Atualmente, é pesquisadora visi- telectual consigo mesmo. (...) O que não tante na University of California - UCI, podemos perder de vista é que o impacto Irvine. Especialista em América Latina, de 1968 para os estudantes da Universi- investiga a história das reformas agrá- dade do Chile é completamente diferente rias, das esquerdas e das revoluções so- do impacto dos mesmos acontecimentos cialistas latino-americanas, articuladas para os camponeses de Ñuble, para os à história do pensamento marxista, da mapuches da Araucania ou para minei- teoria da dependência e da teoria do de- ros de Antofagasta”, complementa. senvolvimento. Entre suas publicações, destacamos História agrária da revolu- Dentre os personagens importantes no ção cubana: dilemas do socialismo na contexto chileno, Eduardo Frei Montal- periferia (São Paulo: Alameda, 2016) e va ocupa um espaço paradoxal dentro Cuba no século XXI: dilemas da revolu- dos movimentos de esquerda. “Eduardo Frei Montalva foi certamente muito mais ção (São Paulo: Elefante, 2017). transformador do que a maioria dos go- Confira a entrevista.

IHU On-line — Como a Unidad dor Allende2 em 1970? Joana Salém — Uma primeira Popular1 construiu sua base de lembrança sobre as eleições chile-

apoio para a eleição de Salva- 2 (1908-1973): médico e político mar- nas de 1970 é que Salvador Allen- xista chileno. Em 1970, foi eleito presidente do Chile pela de ganhou com apenas 36,6% do Unidade Popular, um agrupamento político formado por socialistas, comunistas e por setores católicos e liberais do eleitorado e menos de 40 mil votos 1 Unidad Popular: também conhecida pela sigla UP, foi Partido Radical e do Partido Social Democrata que contava uma coalizão eleitoral de partidos políticos de esquerda no com grande apoio dos trabalhadores urbanos e campone- Chile que levou Salvador Allende à Presidência da Repúbli- ses. Governou o país até 11 de setembro de 1973, quando fe das Forças Armadas, Augusto Pinochet. (Nota da IHU ca. (Nota da IHU On-Line) foi deposto por um golpe de estado liderado pelo che- On-Line)

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“No Chile talvez um dos componentes paradoxais dessa influência tenha sido a intensificação do entusiasmo urbano e intelectual consigo mesmo”

de distância do segundo colocado, de 1974, ambos líderes do consti- absorção técnico-institucional das o conservador Jorge Alessandri3. tucionalismo dentro das Forças Ar- demandas “debaixo” pelo governo. Ou seja, essa “base de apoio” do madas. Allende afinal tomou posse Essa tensão talvez seja um dos pro- Allende não era maioria absoluta. devido a um acordo com o terceiro cessos históricos mais estudados da Não havia 2º turno e o Congresso candidato, Radomiro Tomic7, que América Latina, porque o drama da precisava confirmar o candidato representava a ala esquerda da De- “via chilena ao socialismo” conden- vitorioso. Joan Garcés4, assessor mocracia Cristã - DC. Essa aliança sa problemas até hoje vividos pelas de Allende na época, narra que en- com a DC tornou-se uma espécie de esquerdas. tre outubro e novembro de 1970 fantasma da Unidade Popular, ob- Por último, naquela conjuntura, algumas articulações foram feitas jeto das maiores polêmicas da “via a base de apoio de Allende cresceu para impedir que o socialista se chilena ao socialismo”. expressivamente devido à decep- tornasse presidente, entre a direi- Um segundo ponto é que a base ção com o governo de Eduardo Frei ta chilena, setores militares, a em- eleitoral de Allende era muito diver- Montalva8. A DC havia prometido presa estadunidense International sa e com trajetórias heterogêneas de uma “revolução em liberdade”, mas Telephone and Telegraph e a CIA. luta popular: trabalhadores indus- não foi capaz de executá-la na velo- Mas, naquele momento, o bloco 59 triais, estudantes, mineiros, intelec- cidade e sentido que seus apoiado- da direita ainda estava muito frag- tuais, pobladores e camponeses de res exigiam. Então uma parte des- mentado: alguns defendiam um diferentes partes do país. Cada um sa insatisfação com o reformismo golpe militar, outros uma obstru- desses setores carregava consigo de Frei se deslocou e se identificou ção pelo Congresso, e enfim o plano memórias coletivas e experiências com a retórica revolucionária da fracassou. próprias, crenças e aspirações espe- Unidade Popular. Joan Garcés também lembra que cíficas, correspondentes a um acú- o governo da Unidade Popular - UP mulo histórico de lutas, resistências foi “emoldurado” por dois assas- e conquistas. Isso é importante para IHU On-line — Como a es- sinatos emblemáticos: do general entender que uma multiplicidade querda chilena estava organi- Schneider5, em outubro de 1970, de expectativas sociais foi deposi- zada em relação aos movimen- e do general Pratts6, em setembro tada no governo da Unidade Popu- tos sociais latino-americanos? lar, gerando uma tensão crescente Houve aproximação ou distan- 3 Jorge Alessandri Rodríguez (1896-1986): engenheiro, entre a criação do poder popular, a ciamento com a Organização político e empresário chileno, filho de Arturo Alessandri ação direta das bases de apoio e a Latino-americana de Solidarie- Palma. Foi ministro da fazenda entre 1947 e 1950 e presi- 9 dente da república entre 1958 e 1964. Disputou a eleição dade - OLAS ? presidencial de 1970, mas perdeu para Salvador Allende, que se tornou o primeiro chefe de estado marxista de- Joana Salém — “A esquerda” é mocraticamente eleito do mundo. (Nota da IHU On-Line) to Pinochet nesse cargo. Foi nomeado Comandante em 4 Joan Garcés, Allende e as armas da política. São Paulo: Chefe das Forças Armadas pelo Presidente Eduardo Frei uma ficção. Existem muitas esquer- Scritta, 1993. (Nota da entrevistada) Montalva, logo após o assassinato de seu antecessor e 5 General René Schneider Chereau (1913-1970): foi o Co- amigo General René Schneider, tendo sido ratificado no mandante-em Chefe das Forças Armadas chilenas no perí- cargo por Salvador Allende, de quem foi também Minis- odo da eleição de Salvador Allende à presidência do Chile, tro do Interior, Ministro da Defesa e Vice-presidente da 8 Eduardo Nicanor Frei Montalva (1911-1982): filho de durante o qual foi assassinado numa tentativa desastrada República. Constitucionalista e legalista, recusou-se a par- um imigrante suíço de classe média, foi político do parti- de sequestro, atribuída ao Projeto Fubelt. O escândalo e a ticipar de qualquer golpe de estado, razão pela qual se do centrista chileno democrata cristão e foi presidente do revolta provocada por seu assassinato ajudaram Salvador viu obrigado a renunciar, abrindo assim o caminho para o Chile de 1964 até 1970, sendo o primeiro democrata cris- Allende a ser confirmado pelo Congresso Nacional dois sangrento golpe militar de Augusto Pinochet. Morreu no tão chefe de Estado das Américas. (Nota da IHU On-Line) dias depois. Scheinder criou a doutrina de mútua exclusão exílio em Buenos Aires. Foi uma das vítimas do regime di- 9 Organização Latino-Americana de Solidariedade - político-militar, que se tornou conhecida como a “Doutri- tatorial de Pinochet sendo alvo de um atentado a bomba OLAS: foi uma organização criada em agosto de 1967 em na Schneider”. Considerado um militar constitucionalista, cometido em 1974 pela Dirección de Inteligencia Nacional Cuba, composta por diversos movimentos revolucionários seu assassinato gerou um repúdio generalizado na nação DINA, a polícia secreta pinochetista, em Buenos Aires, no e anti-imperialistas da América Latina que, em maior ou chilena. Antes do golpe em 1973, o General Pinochet faria qual morreu, juntamente com a esposa, Sofía Cuthbert. menor medida, compartilhavam as propostas estratégicas um tributo ao General Schneider que havia sido morto, (Nota da IHU On-Line) da Revolução Cubana. A proposta de criação da OLAS se disse: “[morreu] porque defendeu nossas instituições de- 7 Radomiro Tomic Romero (1914-1992): foi um político realizou depois do sucesso da Primera Conferencia Tricon- mocráticas... e os princípios constitucionais e legais que chileno, candidato à presidência da República na eleição tinental de Solidaridad Revolucionaria, na qual se reuni- todo militar jura respeitar e obedecer”. Durante os anos de 1970. Advogado da Pontifícia Universidade Católica ram mais de quinhentos delegados de organizações revo- iniciais de sua ditadura, Pinochet perdoou os assassinos do Chile. Ele começou sua atividade política nos círculos lucionárias da Ásia, África e América Latina. A conferência de Schneider. (Nota da IHU On-Line) sociais cristãos da UC. Foi um dos cofundadores da Na- ocorria em meio à crise dos mísseis cubana, e o objetivo 6 General Carlos Prats González (1915-1974:) foi Co- tional Falange (futura Democracia Cristã). (Nota da IHU era ampliar a luta contra o imperialismo norte-americano mandante-chefe do Exército chileno, antecedendo Augus- On-Line) e expandir a revolução. (Nota da IHU On-Line)

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das, com prioridades, programas, meu bom amigo Salvador Allende, uruguaios, argentinos, paraguaios, teorias, métodos e práticas diferen- de Fidel, que por meios diferentes bolivianos etc. tes. A cultura política das esquerdas tenta atingir os mesmos objeti- Uma segunda forma de solida- latino-americanas é extremamente vos”12. O partido mais guevarista riedade aconteceu depois do golpe complexa e diversificada. Por isso, as da revolução chilena, o MIR, era de 1973, quando parte da esquerda esquerdas chilenas se relacionavam uma pedra no sapato dos comu- chilena articulou as redes interna- com os movimentos sociais latino-a- nistas. A relação entre comunistas cionais contra a tortura, contra as mericanos e com a OLAS de manei- chilenos e o miristas chegou a ul- ditaduras, contra a violação dos di- ras variadas. trapassar a mera rivalidade para reitos humanos. E outra parte, ainda tornar-se confronto direto. O território político propulsor da esperançosa na revolução, optou por OLAS e da OSPAAAL era Havana. Nesse sentido, a solidariedade um ativismo de “ofensiva”, enviando Em 1967, quando surgiram, Cuba internacional era ambivalente. militantes para atuarem diretamen- iniciou o movimento de “ofensiva Por exemplo, os miristas envia- te em guerrilhas na Nicarágua, no revolucionária”, um dos mais ra- vam seus quadros para treinamen- Peru, na Argentina e outras partes dicalizados esforços coletivos de to guerrilheiro em Cuba e quando do continente. construção do socialismo até então voltavam não havia no Chile cená- – ou do que se imaginava que deve- rio social compatível com a guerri- ria ser o socialismo. A relação das lha. Os comunistas adotavam uma esquerdas chilenas com a revolu- retórica entusiasta da revolução ção cubana era bastante complexa. cubana, mas sem nunca compac- “A cultura Por um lado, a revolução cubana tuar com sua tática e insistindo na política das era a grande fonte de inspiração necessidade vital da aliança com a para todas as esquerdas do con- pequena burguesia. Todos queriam esquerdas tinente, um exemplo que exercia propagar a revolução na América atração implacável sobre o ima- Latina, mas cada um da sua manei- latino- ginário popular. Por outro lado, a ra, então as expressões da solida- mesma revolução cubana desar- riedade eram marcadas pela pre- americanas é 60 mava a tese do “feudalismo” e da sença dessas divisões. necessidade da “etapa burguesa”, extremamente adotada pela oficialidade dos Par- Solidariedades de esquerdas tidos Comunistas. O debate da via complexa e chilena entrava nessa frequência: Por último, diria que as esquerdas era possível construir o socialismo chilenas demonstraram sua solida- diversificada” com recursos institucionais capita- riedade internacional de duas for- listas? Era desejável? mas, igualmente importantes. Pri- meiro, no período dos governos da IHU On-line — Qual a impor- Distinções entre Chile e DC e da UP (1964-1973), o Chile tor- tância do Movimiento de los Cuba nou-se um território de acolhimen- Pobladores13 na história do so- to de exilados, um verdadeiro “re- cialismo chileno? Como o mo- 10 O historiador Peter Winn conta ceptor de perseguidos” no contexto vimento se construiu? que durante o bombardeio ao Palá- da Guerra Fria. Quando Allende foi cio de La Moneda em 11 de setem- eleito, o Brasil e o Paraguai já esta- Joana Salém — Sobre os movi- bro, Allende carregava a arma que vam em ditadura militar e a Argenti- mentos de pobladores, recomendo tinha ganhado de presente de Fidel na vivia uma sucessão de golpes. Não a leitura do novo livro da histo- Castro11, na qual estaria inscrito: “A por acaso, entre os perseguidos pelas riadora brasileira Marcia Cury14. ditaduras estavam quadros de alto A autora dedicou um capítulo à história dos pobladores e sua re- 10 Peter Winn: é professor de história na Tufts University, escalão, parte da intelligentsia das especializado em América Latina. Lecionou na Universida- esquerdas de vários países. Santia- lação com os partidos da esquerda de de Princeton durante a década de 1970, onde lecionou Sonia Sotomayor, membro da Suprema Corte dos Estados go do Chile tornou-se um dos prin- chilena. A tese de Cury é que as Unidos, em quatro turmas e onde foi seu orientador de experiências da luta por moradia tese. Veja Antonia Felix, Sonia Sotomayor. O verdadeiro so- cipais destinos de exilados políticos nho americano (Berkeley Books, Nova York 2010) em 1944. do Cone Sul, uma verdadeira capital nas periferias de Santiago, inten- (Nota da IHU On-Line) 11 Fidel Alejandro Castro Ruz (1926-2016): foi um po- das esquerdas sul-americanas. Nes- sificadas desde a década de 1950 lítico e revolucionário cubano que governou a República e culminando em 1970, criaram de Cuba como primeiro-ministro de 1959 a 1976 e de- se sentido, a experiência de poder pois como presidente de 1976 a 2008. Politicamente, era da Unidade Popular foi absoluta- nacionalista e marxista-leninista. Ele também serviu como primeiro-secretário do Partido Comunista de Cuba de mente transnacional, contando com 13 Movimento dos colonos, em tradução livre. É um mo- 1961 até 2011. Sob sua administração, Cuba tornou-se um vimento de agricultores que se articula no Chile. (Nota da Estado socialista autoritário unipartidário, a indústria e os a participação direta de brasileiros, IHU On-Line) negócios foram nacionalizados, e reformas socialistas fo- 14 Ver Marcia Cury, O protagonismo popular: experiências ram implementadas em toda a sociedade. Castro morreu de classe e movimentos sociais na construção do socialis- em Havana na noite de 25 de novembro de 2016, aos 90 12 Peter Winn, A revolução chilena. São Paulo: Ed. Unesp, mo chileno (1964-1973). Campinas: Editoria da Unicamp, anos. (Nota da IHU On-Line) 2010. (Nota da entrevistada) 2017. (Nota da entrevistada)

7 DE MAIO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE laços práticos de solidariedade dos Estados Unidos para América popular entre os “subalternos” Latina, propondo uma agenda de que foram pouco a pouco trans- “A relação das reformas estruturais de tipo Cepali- formando a visão dos partidos de no, através da plataforma da Alian- esquerda sobre a luta de classes. esquerdas ça para o Progresso. O objetivo era Cury mostra que, tradicionalmen- chilenas com evitar a revolução. Mas o reformis- te, comunistas e socialistas adota- mo de Frei, financiado pelos Estados vam um esquema político mais rí- a revolução Unidos, se mostrou uma fórmula gido, atribuindo à classe operária radical e arriscada demais, acabou o papel de “sujeito revolucionário” cubana era gerando o efeito oposto do desejado. por definição e secundarizando as A sociedade chilena possuía uma lutas sociais que ocorressem fora bastante classe trabalhadora cada vez mais da esfera produtiva, nos bairros. organizada. O próprio governo Frei Porém, a crescente auto-orga- complexa” foi um forte propulsor da organi- nização dos sem-casa e a ampla zação popular, por exemplo, com a adesão às tomas por moradia nas IHU On-line — Qual a impor- lei de sindicalização camponesa de periferias da capital acabaram por tância do Massacre de Puerto abril de 1967, que enfim permitiu deslocar a atenção dos partidos da Mont para a história chilena? que os trabalhadores rurais se as- Unidade Popular para esse lugar Joana Salém — O massacre de sociassem legalmente. O governo “secundário”. Assim, os partidos Puerto Montt foi uma repressão democrata cristão pretendia criar de esquerda se incorporam, parti- realizada pelo governo Eduardo instrumentos tutelares e canalizar cipam e aprendem com a luta dos Frei Montalva contra pobladores as energias de revolta popular para pobladores – cada um com seu em 1969. Embora não fosse um configurações aceitáveis ao capita- repertório e programa. Segundo ato de repressão isolado, gerou lismo chileno. Mas a DC perdeu o a historiadora, as bases sociais grande impacto porque 10 pessoas controle. A sociedade atravessava “transformaram” os partidos, da foram mortas, incluindo um bebê. um processo de empoderamento mesma maneira que os partidos popular e auto-organização sem Esse massacre foi um dos símbo- 61 influenciaram o processo de po- los de desgaste sofrido pela retó- precedentes e os mecanismos de litização popular, ou seja, existiu rica da “revolução em liberdade” tutela não resistiram. Assim, o go- um aprendizado mútuo, cheio de proposta pela Democracia Cristã, verno reformista tutelador vestiu conflitos e contradições. A princi- que ia encontrando limites cada sua armadura de governo repres- pal marca desse aprendizado era vez mais evidentes. O reformismo sor, para tentar recuperar o contro- a possibilidade de uma luta social de Eduardo Frei Montalva, aliás, é le. O ônus dessa repressão, como que inaugurava em si mesma um um outro tema interessante para comentei, foi pago nas eleições novo modo de vida e uma nova re- reflexão sobre os limites do refor- seguintes, quando o projeto mais lação entre território, sociabilidade mismo na América Latina contem- radical da UP se sintonizou com os e poder popular. porânea. anseios populares. Acho que com esse estudo Márcia Eduardo Frei Montalva foi certa- 15 Cury sugere um debate fundamen- mente muito mais transformador IHU On-line — Qual foi a im- tal para as esquerdas contemporâne- do que a maioria dos governos cha- portância da Reforma Agrária as, sobre a importância do cotidiano mados “bolivarianos” ou “progres- na disputa política chilena? e dos espaços de reprodução da vida sistas” recentes. Ao mesmo tempo para a razão de ser da esquerda; sobre foi um dos políticos mais sistema- Joana Salém — Esse é o tema da a militância comunitária, o aprendi- ticamente financiados pela CIA até minha tese de doutorado que estou zado dos partidos com a luta popular aquele período, como está registrado desenvolvendo na USP. A reforma auto-organizada e os vínculos de soli- nos documentos desclassificados da agrária teve uma importância trans- dariedade tecidos dessa troca. própria agência. Naquele contexto, cendental para a história chilena Kennedy16 tinha alterado a política nesse período. Até 1958, os campo- neses eram reféns de um sistema

16 John Kennedy [John Fitzgerald Kennedy ] (1917-1963): eleitoral que favorecia o cohecho: os foi um político estadunidense que serviu como 35° presi- patrões e seus partidos imprimiam 15 Márcia Carolina de Oliveira Cury: historiadora, Dou- dente dos Estados Unidos (1961–1963) e é considerado tora em Ciência Política (2013) pela Universidade Estadual uma das grandes personalidades do século XX. Ele era as cédulas de votação e assim po- de Campinas, com graduação (2004) e mestrado (2007) conhecido como John F. Kennedy ou Jack Kennedy por em História pela Universidade Estadual Paulista - Fran- seus amigos e popularmente como JFK. Eleito em 1960, diam controlar os votos e arrebanhar ca. Foi membro do corpo de editores da Revista História Kennedy tornou-se o segundo mais jovem presidente do seus inquilinos e empregados. Desde Social. Atua na área de História, com ênfase em História seu país, depois de Theodore Roosevelt. Ele foi presidente da América, nos seguintes temas: história social, história de 1961 até o seu assassinato em 1963. Durante o seu política, movimentos sociais, classe trabalhadora, partidos governo houve a Invasão da Baía dos Porcos, a Crise dos políticos, pensamento político, Chile. Dedica-se também mísseis de Cuba, a construção do Muro de Berlim, o início sinado em 22 de novembro de 1963 em Dallas, Texas. O à área de Metodologia de Pesquisa, Iniciação científica, da Corrida espacial, a consolidação do Movimento dos ex-fuzileiro naval Lee Harvey Oswald foi preso e acusado Historiografia e História Contemporânea. (Nota da IHU Direitos Civis nos Estados Unidos e os primeiros eventos do assassinato, mas foi morto dois dias depois, por Jack On-Line) da Guerra do Vietnã. O presidente Kennedy morreu assas- Ruby e por isso não foi julgado. (Nota da IHU On-Line)

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1958, a cédula passou a ser impressa mostravam as tabelas de conver- transição socialista. Estou investi- pelo Estado e os partidos Conserva- são de hectares físicos em HRB e gando a participação de Paulo Frei- dor e Liberal perderam o controle do muitos camponeses se recusavam re19 na coordenação dos programas voto camponês. Por isso, em 1964, a a aceitar, era uma linguagem técni- de alfabetização do governo Frei, as Democracia Cristã foi eleita expres- ca alienígena, que nada tinha a ver aplicações do seu método no campo, sivamente pelo voto camponês, com com o universo cultural deles. as divergências com os métodos de a promessa da reforma agrária. Só assistência técnica e extensão rural O governo Allende, quando elei- que a promessa da reforma agrária e, em suma, como as contradições to, não mexeu na lei, mas foi apli- da DC tinha dois destinatários: os políticas e sociais da “via chilena ao cá-la até suas últimas consequên- Estados Unidos e os camponeses. cias, inclusive expropriando sem socialismo” se expressaram em ter- Como conciliar essas expectativas? direito à reserva patronal às pro- mos de batalhas pedagógicas e epis- Impossível. Os diferentes modelos priedades “mal exploradas”. Outro temológicas no campo. de reforma agrária produzidos na problema é que a lei não dizia com América Latina nesse período foram exatidão o que era uma proprieda- se mostrando cada vez mais opostos de “mal explorada” e esse conceito e inconciliáveis. dependia de técnicos do Estado lo- “Santiago do Com a lei de reforma agrária de cais, que eram filiados a partidos 1967, o governo Frei tentou agra- políticos. Mais um flanco de con- Chile tornou- dar a todos, gerando uma amplitu- flitos sem fim. No fim das contas, de legal enorme para a aplicação de a DC expropriou 3,5 milhões de se um dos uma reforma agrária bastante pro- hectares em cinco anos e a UP ex- funda. Um dos autores da lei, Jac- propriou 5,3 milhões em três anos. principais ques Chonchol17, rompeu com a DC Somadas, 43% das terras agrícolas em 1969 e fundou o Movimiento de chilenas foram expropriadas em destinos Acción Popular Unitário - Mapu, um processo revolucionário pa- de exilados que integrou a UP com alto poder cífico e sem paralelo na história 62 de direção. Depois, Chonchol foi mundial. políticos do Ministro da Agricultura de Salva- Como novidade, a UP introduziu dor Allende e passou a ser o execu- dois decretos: um que criava uma Cone Sul, uma tor, num governo socialista, da lei nova forma de propriedade (os que havia ajudado a formular du- Centros de Reforma Agrária) para verdadeira rante sua atuação em um governo substituir os assentamentos. E ou- 18 capitalista . tro que criava os Conselhos Cam- capital das poneses, para integrar territorial- A reforma agrária de Edu- mente diferentes organizações de esquerdas sul- ardo Frei trabalhadores rurais e representá americanas” O principal motor da lei de refor- -las perante o governo. Os dilemas ma agrária de Eduardo Frei era a da “via chilena ao socialismo” se expropriação de todas as proprie- expressaram de maneira aguda no IHU On-line — As mobiliza- dades maiores que 80 hectares de campo: a pequena burguesia agrá- ções sociais de 1968 ao redor riego básico - HRB, uma unidade ria era uma aliada ou uma inimiga? do mundo influenciaram posi- que media fertilidade da terra e não As tomas ilegais de terras, orga- tivamente ou negativamente a correspondia à superfície física. Co- nizadas pelos camponeses com a ascensão do governo Allende? meça aí a confusão, porque quem esquerda revolucionária, eram Como? conseguia convencer os campone- construtivas ou destrutivas para a estratégia socialista? ses que uma propriedade com 300 Joana Salém — No fim dos anos hectares físicos não era expropriá- 1980, o historiador Gabriel Salazar20 Foco de estudos vel pela lei, porque tinha 70 HRB? Centenas de tomas ocorreram 19 Paulo Freire (1921-1997): educador brasileiro. Como Minha pesquisa de doutorado tem diretor do Serviço de Extensão Cultural da Universidade nessas circunstâncias. Os técnicos de Recife, obteve sucesso em programas de alfabetiza- como foco os programas educacio- ção, depois adotados pelo governo federal (1963). Esteve nais de capacitação técnica, forma- exilado entre 1964 e 1971 e fundou o Instituto de Ação 17 Jacques Chonchol Chait: agrônomo e político chile- Cultural em Genebra, Suíça. Foi também professor da Uni- no que desempenhou um papel importante na reforma ção política e alfabetização campo- camp (1979) e secretário de Educação da prefeitura de São agrária realizada sob o governo de Eduardo Frei Montalva Paulo (1989-1993). É autor de A Pedagogia do Oprimido, e que mais tarde se tornou ministro da Agricultura de Sal- nesa no contexto da reforma agrária entre outras obras. A edição 223 da revista IHU On-Li- vador Allende. (Nota da IHU On-Line) e as decisões sobre as formas de pro- ne, de 11-6-2007, teve como título Paulo Freire: pedagogo 18 Em 2011, fiz uma entrevista com Jacques Chonchol da esperança e está disponível em http://bit.ly/ihuon223. sobre a revolução agrária cubana, que foi publicada com priedade individuais ou coletivas. (Nota da IHU On-Line) título “Jacques Chonchol em Cuba: reforma agrária e revo- Quero associar a história econômica 20 Gabriel Salazar Vergara (1936): historiador chileno. lução em 1961”. Ver Revista Mouro nº 7, São Paulo, 2012. Ele é conhecido no Chile por seu estudo da história so- Disponível em: http://bit.ly/2jsb09L. (Nota da entrevistada) à história cultural no contexto da cial e interpretações de movimentos sociais, particular-

7 DE MAIO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE escreveu um trabalho chamado De tual consigo mesmo. A ampliação bairros pobres, em sindicatos e fá- la generación chilena de ’68: om- de uma “autoimagem pesada” das bricas para recolher supostas ar- nipotencia, anomia, movimento vanguardas, a expansão de um sen- mas armazenadas pela população social?. Nesse artigo, ele queria des- timento paradoxal de responsabi- em 1973. Era a aplicação da Lei de vendar qual seria o papel da geração lidade, que misturava no mesmo Controle de Armas, aprovada pelo de 1968 no processo de democrati- projeto uma solidariedade pro- próprio governo Allende, depois da zação que se abria nos anos 1990, a funda com os destinos do “povo” e incorporação de militares no gabi- partir de uma análise das memórias uma espécie de “narcisismo gera- nete, em outubro de 1972. A verda- e da autopercepção daquela geração cional”. Seria um tema interessan- de é que nem o MIR nem os setores sobre si mesma. Salazar estava parti- te de pesquisa investigar como as radicais do Partido Socialista, que cipando de um debate entre seus pa- vanguardas partidárias tratavam defendiam resistência armada, es- res, já que ele mesmo é praticamente os acontecimentos de 1968 nas tavam preparados. da mesma geração e se propôs a cri- suas liturgias e formações para as Existiam alguns armamentos es- ticar alguns colegas e defender aber- “bases”. Não saberia responder. O condidos de agrupamentos peque- tamente uma posição política radical que não podemos perder de vista é nos, mas eram basicamente para sobre os rumos do país. que o impacto de 1968 para os es- autodefesa local, uso pessoal, nada Nesse texto, o historiador critica o tudantes da Universidade do Chile compatível com a artilharia pesada que ele chamou de uma “pesada au- é completamente diferente do im- de um exército. Por um lado, a ideia toimagem” da geração de 1968, isto pacto dos mesmos acontecimentos de uma “etapa armada” era retórica é, uma espécie de enamoramento para os camponeses de Ñuble, para e pouco efetiva. Ou seja, se os se- narcísico que explicaria a intensida- os mapuches da Araucania ou para tores revolucionários tinham razão de do “voluntarismo histórico” com em termos discursivos, porque foi que a juventude de esquerda se lan- impossível conciliar a transição çou a uma tarefa autoatribuída: ser “O governo socialista com a institucionalidade vanguarda revolucionária e “lutar burguesa, eles não desenvolveram até as últimas consequências”. Sala- reformista a capacidade político-técnica de zar enfatizou que a ideia da “infalibi- fazer valer suas próprias proposi- 63 lidade dos líderes”, o sentimento de tutelador vestiu ções. O que restava era a confiança onipotência e a sobrevalorização das sua armadura na indisciplina dos soldados, que próprias capacidades foram compo- poderiam criar um motim contra a nentes tóxicos dessa cultura política de governo ordem golpista. geracional. Sua crítica ao vanguar- Mas no fim, o respeito às hie- dismo em termos políticos tinha a repressor, para rarquias militares, que era um mesma embocadura da sua crítica argumento de Salvador Allende às metanarrativas estruturalistas tentar recuperar em defesa da capacidade institu- em termos historiográficos. Ele pro- cional do Estado de contornar a pôs a recuperação do que chama de o controle” crise dentro da Constituição, ser- “historicidade popular”, pois “a van- mineiros de Antofagasta. viu exatamente para consolidar o guarda marcava ritmos que, por sua golpe. Os soldados indisciplinados velocidade, só podiam ser seguidos foram rapidamente executados, cegamente pelas bases, submetendo IHU On-line — Como estavam não houve resistência armada sig- o povo a solavancos” (p. 100). organizados esses movimentos nificativa da população. Salazar, Claro que as mobilizações de 1968 sociais no golpe militar de 1973? dentro de sua posição crítica ao insuflaram as esquerdas no Chile. Como se deu a resistência? vanguardismo, escreve que o gol- Mas quais camadas e quais clas- pe gerou um “caos disciplinar” nas Joana Salém — No famoso filme ses sociais das esquerdas? O pro- esquerdas, pois as bases dos parti- de Patrício Guzmán21, A Batalha do jeto socialista era internacional, a dos esperavam receber ordens que Chile: a luta de um povo sem ar- militância marxista formava uma chegaram defasadas e uma cultura mas, são mostradas algumas cenas grande rede de rivalidades intelec- partidária legalista colapsou dian- de militares entrando em casas de tuais e alianças políticas pelo mun- te da ausência da lei. Os movimen- do. Mas pensando no argumento tos populares, na sua dimensão de disputa aberta e sindical, foram do Salazar, no Chile talvez um dos 21 Patricio Guzmán Lozanes (1941): diretor de cinema chileno, especializado em documentários. Dirigiu o filme solapados, mas na sua dimensão componentes paradoxais dessa in- Salvador Allende, sobre o ex-presidente chileno Salvador fluência tenha sido a intensificação Allende, e Nostalgia da Luz, uma de suas obras mais pre- de resistência silenciosa, cotidia- miadas, em que mostra o deserto do Atacama como o na e constante, estiveram ativos do entusiasmo urbano e intelec- centro de dois tipos de pesquisa bem distintos: por um lado, é a sede de importantes estudos astronômicos, e por ao longo de toda a ditadura. outro é local em que parentes de desaparecidos políticos mente os recentes protestos estudantis de 2006 e 2011- do regime militar do Chile realizam buscas por restos mor- 12. (Nota da IHU On-Line) tais de seus familiares. (Nota da IHU On-Line)

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IHU On-line — Como compre- gras favorecem a criação de dois blo- vada e os setores empresariais e ender a alternância de poder cos moderados, que têm tonalidades públicos de ensino têm fronteiras nas últimas quatro eleições en- de esquerda ou direita, mas efetiva- pouco definidas. Recentemente tre Michelle Bachelet22 e Sebas- mente não pretendem mudar muito chamou a atenção a notícia sobre a tian Piñera23 na presidência do as regras do jogo que os estabiliza no gratuidade das universidades pú- Chile? poder. blicas, aprovada nos últimos dias do governo Bachelet. Mas pouco Durante o primeiro governo de se falou que essa gratuidade não Bachelet, a Concertación alcançou a “A reforma maioria necessária para mudar algu- é universal e está condicionada ao mas regras da Constituição e optou crescimento do Produto Interno agrária por não fazê-lo. Enfim, são as duas Bruto - PIB, além de não romper faces do mesmo sistema. Embora com a lógica do Estado subsidiá- teve uma tenham diferenças, nenhum deles rio. Claro que pode ser considera- se propõe a alterar a Constituição do um “avanço” no direito de estu- importância de 1980 de maneira profunda, como dar dos mais pobres, mas dentro indica o aparente abandono da ini- da mesma ordem constitucional transcendental ciativa de reforma constitucional do da ditadura e com limites eviden- governo Bachelet em 2016-2017. tes. para a história O problema educacional chileno é tão importante no conjunto de dis- chilena” IHU On-line — É reconheci- putas sociais que os estudantes da da a força do movimento es- geração de 2011 têm sido protago- tudantil chileno, a ponto de Joana Salém — A alternância nistas da ruptura das novas esquer- inspirar os movimentos de entre Bachelet e Piñera pode ser das com a Concertación, através des- entendida a partir do sistema que ocupação de escolas e univer- sa ferramenta heterogênea chamada os chilenos chamam de duopólio, sidades no Brasil. Apesar des- Frente Ampla, que conquistou 20 resultado da Constituição de 1980 se contexto, você afirma que a 64 deputados nas últimas eleições. As e das regras eleitorais criadas pelo democracia chilena vive sob tensões de classe dentro da nova es- próprio regime Pinochet24. Essas re- o espectro de Pinochet. Como querda continuam e é preciso refletir essas contradições se forma- sobre elas. 22 Michelle Bachelet [Verónica Michelle Bachelet Jeria] ram? Qual a possibilidade de (1951): médica e política chilena. É a atual presidente da República do Chile, eleita em 2006. Desde 2008, é também síntese desse conflito? Como romper com a ordem pi- presidente da União de Nações Sul-Americanas. Membro nochetista? Com quais estratégias do Partido Socialista do Chile, ela ocupou o lugar de mi- Joana Salém — As contradi- nistra da Saúde no governo de Ricardo Lagos, entre 2000 e movimentos? Alguns setores da e 2002, e mais tarde, o de ministra da Defesa, sendo a ções na educação chilena são fru- primeira mulher a exercer este cargo na América Latina. Frente Ampla consideram proble- to de uma política educacional (Nota da IHU On-Line) mático que a articulação de um dis- 23 Miguel Juan Sebastián Piñera Echenique (1949): é de Pinochet, aperfeiçoada pelos um economista, empresário e político chileno. Foi mem- curso estudantil mais elitista ganhe bro do partido de centro-direita Renovación Nacional pelo governos democráticos, em que o qual foi eleito presidente do Chile. Assumiu o cargo em 11 projeção sobre as lutas dos sem-te- de março de 2010, sucedendo Michelle Bachelet, ao qual Estado é subsidiário, a responsa- abandonou em 11 de março de 2014. É novamente o atual bilidade de educar é constitucio- to, dos mapuches, dos trabalhado- presidente do Chile, desde 11 de março de 2018. (Nota res e camponeses. O debate sobre da IHU On-Line) nalmente entregue à iniciativa pri- 24 Augusto Pinochet (1915-2006): general do exército as tensões das classes sociais den- chileno, governante do Chile após chegar ao poder em 11 de setembro de 1973, pelo Decreto Lei Nº 806 editado de seu país, cargo que foi criado exclusivamente para ele, tro das esquerdas não pode ser ig- pela junta militar (Conselho do Chile), que foi estabelecida por ter sido um ex-governante. Governou o Chile entre norado e tem desdobramentos po- para governar o Chile após a deposição e suicídio de Sal- 1973 e 1990, depois de liderar a junta militar que derrubou vador Allende, e posteriormente tornado senador vitalício o governo de Salvador Allende. (Nota da IHU On-Line) líticos decisivos. ■

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Uma revolução não se reconhece pela tomada do poder, mas por sua potência de sonho

onvidada a discutir os 50 anos de Maio de 68, a pro- fessora Olgária Matos desenvolveu três pontos para abordar o tema. Para ela, o movimento se conden- souC na palavra de ordem “é proibido proibir”. No início, era uma crítica às regras e convenções rígidas, como a separa- ção entre rapazes e moças nas residências estudantis. Logo “tomou a conotação de luta antiautoritária”. No entendi- mento da professora, “a palavra de ordem pôde se univer- salizar porque, em 1968, havia muitas ditaduras”. Por fim, ela afirma que “Maio de 68 foi uma esplendorosa liberação da palavra poética e criadora”, mostrando que “uma revo- lução não se reconhece pela tomada do poder, mas por sua potência de sonho”. Olgária Matos é livre-docente e doutora e graduada em Filosofia pela Universidade de São Paulo - USP e mestre em Filosofia pela Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne). Re- 66 alizou estágio pós-doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França. É professora aposentada do Departamento de Filosofia da USP. Autora do livro Paris, 1968: As barricadas do desejo (São Paulo: Editora Brasi- liense, 1981). Confira o texto.

1.Comemorar uma data não significa apenas rememorar um acontecimento, mas fazê-lo re- nascer em cada aniversário. O maio francês se condensou na palavra de ordem “é proibido proi- bir”, palavra de ordem de crítica ao mundo de regras e convenções rígidas que, no início do movimento, se referia à separação entre rapazes e moças nas residências estudantis, e foi então uma maneira de conquistar o “direito de visita”! Em seguida, tomou a conotação de luta an- tiautoritária, exprimindo o desejo de pensar por si mesmo, à distância dos conformismos dos partidos organizados e sua lógica de tomada do poder. “É proibido proibir” se coloca libertário e emancipatório com respeito a tudo que cerceia o pensamento autônomo, o livre-pensar. Diz respeito à liberação da palavra, ao “franco dizer” que conquistou as paredes da cidade, com suas inscrições eróticas e inteligentes em seus détournements. A máxima evangélica do “amai-vos uns aos outros” passou a ser “amai-vos uns sobre os outros”, ou então “não tome o poder, tome a palavra”. Assim, não se tratou de ocupar os lugares de poder instituídos, como a Assembleia Nacional, mas de ocupar o teatro do Odéon: “Quando a Assembleia Nacional se torna um teatro burguês, todos os teatros burgueses tornam-se Assembleias Nacionais”, ou “As Mil e uma Noites estão nas ruas da cidade”. Ou “libertar os livros das bibliotecas”, e ainda “não mude de emprego, mude o emprego de sua vida”. 2. A palavra de ordem pôde se universalizar porque, em 1968, havia muitas ditaduras, como as da América Latina e da Europa, como na Grécia, em Portugal e na Espanha, e também as dos pa- íses do Leste europeu, sob o domínio da ditadura da então URSS. Ano por excelência antiautori- tário, universalizou a crítica aos valores impostos do consumo, da técnica, dos lazeres alienados,

7 DE MAIO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE da indústria cultural, da civilização do automóvel, da vida burocratizada e administrada. Essa palavra de ordem mantém-se viva em todos aqueles que têm desejo de liberdade, de autarquia e de autodeterminação de pensamentos e investigação estética, moral, política e existencial. Mas dificilmente se poderia dizer que ela se encontra de alguma forma na “liberação da palavra” tal como se reconhece nas mídias sociais, pois se trata agora de uma espécie de “tirania da visibili- dade” em que tudo deve ser falado, mostrado, exibido, como o desaparecimento do pudor e da timidez. Além disso, o Eros político das palavras de ordem e dos comportamentos expressava uma phylia social, o dar as mãos, o correr juntos, a troca de olhares, uma felicidade coletiva de indivíduos reunidos com valores e desejos comuns compartilhados como princípio de vida e de prazer, que encontravam novas razões para estar juntos. Contra as mídias, o maio francês inscreveu nos muros da cidade “desintoxicai-vos: não liguem mais a televisão”, “não leiam mais os jornais” etc. As redes sociais, ao contrário, propiciam uma “comunicação” instantânea que estreita o espaço e o tempo, com uma comunicação a distância, mas incapaz de criar laços da confiança, da amizade, da lealdade. Nelas não há diálogo e comunicação, mas, na maioria das ve- zes, fortalecimento de preconceitos e tomada de partido, tudo contra o que o maio lutou, contra os dogmatismos e contra o empobrecimento da linguagem e do mundo. 3. Maio de 68 foi uma esplendorosa liberação da palavra poética e criadora, o momento la boetiano da política francesa, em que não se tratava de tomar o poder, pois as lutas pela vitória histórica apenas repetem o passado e permanecem no plano do vencedor e do vencido. Mostrou que uma revolução não se reconhece pela tomada do poder, mas por sua potência de sonho. Invertendo a proposição dos surrealistas, dos quais de alguma forma foram herdeiros, não se tratava de colocar a poesia a serviço da revolução, mas a revolução a serviço da poesia. Em 68, a poesia foi irmã do sonho. No cotidiano, se reuniram poesia e revolução nas ruas da cidade, em seus cartazes, palavras de ordem e no mês em que 10 milhões de operários estavam em greve com a palavra de ordem “não mude de emprego, mude o emprego de sua vida”. ■

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EDIÇÃO 521 ENTREVISTA

A produção de violência e morte em larga escala: da biopolítica à tanatopolítica Castor Bartolomé Ruiz analisa o fenômeno da construção social do medo e da violência como formas de governo da vida

Ricardo Machado

impressão de que a violência é mente nos bombardeiam para justificar inerente à condição humana é determinadas políticas de ajustes fiscais comum, apesar de rasa, para ou de recortes de direitos fundamen- Adescrever barbáries de toda a sorte. tais”, destaca. “Uma sociedade assus- Contudo, para além dos tensionamen- tada sempre é partidária do uso de um tos que essa noção exige, o professor poder forte, inclusive autoritário. Veja- e pesquisador Castor Bartolomé Ruiz mos como isso se comprova no caso da traça uma distinção importante entre grande aprovação popular da interven- a violência e a agressividade, atribuin- ção militar no Rio de Janeiro, sem con- do a esta última sua permeabilidade tar os constantes cantos de sereia para a intrínseca aos humanos. “No caso do volta dos militares ao governo a fim de ser humano, existe o instinto da agres- resolver tanta violência, corrupção, des- sividade, assim como outros instintos 68 mandos, como se eles não fossem parte biológicos, porém o ser humano é o desse mesmo processo”, analisa. único ser vivo que não está determina- Castor Bartolomé Ruiz é professor do a agir pela mera pulsão biológica do nos cursos de graduação e pós-gradua- instinto”, pondera Castor, em entrevis- ta por e-mail à IHU On-Line. “O que ção em Filosofia da Unisinos. É gradu- define a violência é a decisão tomada ado em Filosofia pela Universidade de pelo sujeito de direcionar a agressivi- Comillas, na Espanha, mestre em His- dade num sentido específico, negar ou tória pela Universidade Federal do Rio violentar o Outro. A violência, diferente Grande do Sul - UFRGS e doutor em da agressividade, está vinculada a dois Filosofia pela Universidade de Deusto, aspectos: a capacidade de decidir o sen- Espanha. É pós-doutor pelo Conselho tido da ação e a negação ou violação do Superior de Investigações Científicas. Outro ser humano”, complementa. Escreveu inúmeras obras, das quais des- tacamos: La mímesis humana. La con- Fora a banalização da violência, que dición paradójica de la acción imitativa reconhece o fenômeno inclusive quando (Frankkfurt: OmniScriptum Manage- os objetos da agressividade são objetos ment, 2016); Os paradoxos do imaginá- e não pessoa, há todo um aparato eco- rio (São Leopoldo: Unisinos, 2003); Os nômico, financeiro e político da violên- labirintos do poder. O poder (do) sim- cia, que passa a ser percebida como algo bólico e os modos de subjetivação (Por- possível de rendimentos e lucros. “Toda to Alegre: Escritos, 2004); e As encruzi- violência gera medo. Uma sociedade lhadas do humanismo. A subjetividade amedrontada é mais dócil às políticas de exceção; a docilidade política do medo e alteridade ante os dilemas do poder ocorre em todos os sentidos, pensemos ético (Petrópolis: Vozes, 2006). nos medos econômicos que constante- Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que ordem Castor Bartolomé Ruiz – A vio- As faces e formas da violência mul- é o fenômeno humano da vio- lência é um fenômeno humano de tiplicam-se ao longo dos tempos e lência? múltiplas faces e também polimorfo. também se diversificam em cada so-

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“No caso do ser humano, existe o instinto da agressividade, porém o ser humano é o único ser vivo que não está determinado a agir pela mera pulsão biológica do instinto”

ciedade. É muito difícil delimitar a A minha posição é diferente. Inicial- Por exemplo, alguém pode sentir violência a uma definição ou modelo mente proponho fazer uma distin- raiva por um motivo justo, essa raiva preestabelecido, que nos permitiria ção conceitual, que considero muito desencadeia nele uma agressividade estudá-la qual fosse uma espécie de importante, entre agressividade e impulsiva – esta é natural –, porém fenomenologia naturalista. violência. A agressividade, sim, é um o que ele vai fazer com essa raiva, de instinto natural inerente a todas as que modo ele vai dirigir a raiva, qual A violência, assim como a bonda- espécies vivas e que contém funções o sentido da ação que ele vai execu- de, pertence aos arcanos da alma importantes, inclusive, para a sobre- tar com a raiva, é um momento pos- humana. Digo isso não como uma vivência dos indivíduos e da espécie. terior ao instinto. Então, ele tem a afirmação retórica, mas como tese possibilidade de executar uma ação filosófica. Um dos primeiros debates Mas qual seria, então, a diferença diferenciada a partir dos instintos a serem feitos sobre a violência diz entre agressividade e violência? A próprios de nossa espécie. respeito a sua pretensa naturalida- agressividade é dirigida pelos ins- de. Eu diria que faz parte do senso tintos genéticos da espécie. Por isso, No contexto desta perspectiva fi- 69 comum afirmar que a violência é as agressividades naturais são pro- losófica, temos que denominar de algo natural, intrínseco ao ser huma- gramadas dentro de cada espécie e, violência a decisão, mais ou menos no. Se isso não bastasse, há também por isso mesmo, são até previsíveis. deliberada, de negar o Outro através diversos estudiosos, de matriz natu- A agressividade é um instinto com- de um ato violento, que não é mais ralista, que corroboram esta pers- portamental bem delimitado dentro mera agressividade animal. O que pectiva afirmando que a violência é de cada espécie animal. Um animal define a violência é a decisão tomada um fenômeno natural porque todos é agressivo em função daqueles ins- pelo sujeito de direcionar a agressi- os animais são violentos e ainda tintos que seu código genético tem vidade num sentido específico, negar mostram que a violência é um recur- programados e não é agressivo em ou violentar o Outro. A violência, di- so essencial para a sobrevivência de outras formas. No caso do ser hu- ferente da agressividade, está vincu- todos os seres vivos. As visões natu- mano, existe o instinto da agressi- la a dois aspectos: a capacidade de ralistas identificam a violência em vidade, assim como outros instintos decidir o sentido da ação e a negação todas as formas de vida, especial- biológicos, porém o ser humano é o ou violação do Outro ser humano. mente nos animais superiores. único ser vivo que não está determi- nado a agir pela mera pulsão bio- A partir desta compreensão, enten- A consequência moral e até política lógica do instinto. No ser humano deremos que a violência é um fenôme- que se extrai da naturalização da vio- ocorre algo singular, há uma certa no estritamente humano, pois só o ser lência é que o ser humano está inevi- separação entre a pulsão do instinto humano tem o poder de direcionar sua tavelmente acorrentado, qual mito de e o comportamento. A ação huma- ação em um ou em outro sentido. Os Sísifo, à violência. O único que ele po- na é o resultado da capacidade de animais são agressivos por natureza, o 1 deria fazer é estabelecer paliativos ou dobra do sujeito sobre seu próprio ser humano é violento por opção . inibidores culturais desse, assim cha- instinto a fim de poder definir qual IHU On-Line – É possível, en- mado, instinto natural. A cultura, nesta é o sentido que ele quer dar a esse tão, pensar de forma diferente visão, seria uma espécie de luta per- instinto. Ou seja, o instinto, neste a violência? manente, e infrutuosa, por estabelecer caso o da agressividade, passa no limites legais ou culturais aos instintos ser humano pela sua capacidade Castor Bartolomé Ruiz – Se naturais da violência. Inclusive, politi- hermenêutica do sentido. Por isso, compreendermos que a violência camente apela-se, recorrentemente, ao o ser humano é o único ser vivo que 1 Para quem estiver interessado em aprofundar este poder forte dos novos Leviatãs como pode direcionar seus instintos, no tema, remetemos a um artigo de nossa autoria, publicado único meio de colocar freio a este ins- caso a agressividade, para vários na Revista Kriterion: “A potência da ação: uma crítica ao naturalismo da violência”. http://bit.ly/2jEGqJL. (Nota do tinto natural que tanto nos apavora. sentidos diferentes. entrevistado)

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é um fenômeno stricto sensu hu- Uma outra conclusão, acho que se- A gestão biopolítica da violência mano, há que pensar algumas das cundária, desta visão hermenêutica normaliza a violência, socialmente, consequências desta visão. Uma pri- da violência é que só poderíamos a partir das estatísticas. O parado- meira matização importante é que chamar de violência stricto sensu xo desta gestão é que passam a ser a responsabilidade do sujeito pelo a negação ou violação de um outro considerados normais, para uma ato violento é proporcional a sua ca- ser humano. Quando se destroem determinada sociedade, os padrões pacidade de decisão em relação aos coisas, por exemplo, estaríamos em de violência que se repetem numa impulsos naturais ou até as influên- uma outra qualificação da agressivi- sequência média ou longa de tem- cias sociais. Este é um princípio que dade, mas não estritamente na vio- po. No caso do Brasil, por exemplo, o direito já aceitou há muito tempo, lência, se quisermos preservar esta temos uma sequência, na última dé- mas que socialmente deve ser cons- denominação como ato singular de cada, de mais de 50 mil assassina- tantemente ressignificado. violentar o outro. Caso contrário, tos. Nesta lógica, enquanto o Brasil podemos cair numa espécie de bana- se mantiver nessa margem, pode-se Uma outra consequência, que eu lização conceitual do que entende- considerar que a violência social está considero muito importante, é que mos por violência. no padrão de normalidade. Vejamos ao compreender que a violência que estes números são até superio- não é um fenômeno meramente res às mortes das últimas guerras, natural, mas um sentido (cultural) IHU On-Line – Qual a relação como a de Síria, Iraque, Kuwait, e dado para os instintos agressivos, que existe entre biopolítica e similares às estatísticas das mortes o ser humano consegue romper violência? do Vietnã. as correntes inexoráveis que nos Castor Bartolomé Ruiz – A condenavam a ser violentos. A vio- O trágico desta racionalidade bio- biopolítica pode ser compreendida lência passa a ser um fenômeno política da violência é que os ges- como o conjunto de estratégias, po- correlativo às formas culturais que tores políticos se propõem que não líticas, para governar a conduta dos incentivam ou não determinados aumente a taxa normal da violência. outros, que em filosofia denomina- atos como naturais ou normais. É considerada uma boa gestão con- mos com o neologismo de governa- Nesta perspectiva, a responsabi- seguir manter a violência dentro dos mentalização. As estratégias biopolí- 70 lidade principal, ainda que não padrões normais e considera-se um ticas, quase sempre, estão pautadas lucro de resultados se conseguir se única, da violência é dos sujeitos e pelo sentido da utilidade, eficiência das culturas. Nesta visão, a violên- diminuir minimamente as estatísti- ou produtividade. A biopolítica re- cas violentas. cia tem um importante influxo dos duz a política à gestão da vida huma- instintos biológicos, mas estes não na. O sentido etimológico do termo Ainda existe um outro viés na ges- se impõem aos sujeitos de forma biopolítica, política da vida, se tra- tão biopolítica da violência, que diz absoluta, sendo os valores cultu- duz numa política sobre a vida. Esta respeito aos possíveis lucros políti- rais e a responsabilidade subjetiva mudança proposicional contém uma cos da violência. Toda violência gera os principais fatores que delimitam inversão estratégica com um sentido medo. Uma sociedade amedrontada as facetas da violência. paradoxal, pois nas estratégias bio- é mais dócil às políticas de exceção; a docilidade política do medo ocorre Olhando nesta perspectiva, po- políticas governa-se, geralmente, a em todos os sentidos, pensemos nos deremos desmanchar alguns mitos vida humana desde a perspectiva da medos econômicos que constante- como aquele que diz que a pobre- utilidade. Por isso a vida que é útil mente nos bombardeiam para justi- za gera violência. Se olharmos o será governada para que produza ficar determinadas políticas de ajus- exemplo da Índia encontraremos mais, enquanto as vidas considera- tes fiscais ou de recortes de direitos altíssimos índices de pobreza e de- das não produtivas, inúteis, serão condenadas ao abandono. fundamentais. Ainda, uma socieda- sigualdade, inclusive superiores aos de assustada sempre é partidária do do Brasil, porém os indicadores de Na perspectiva biopolítica coloca- uso de um poder forte, inclusive au- violência são muito inferiores. Por se a questão de como governar a vio- toritário. Vejamos como isso se com- que ocorre isso? Talvez tenhamos lência como fenômeno social. A go- prova no caso da grande aprovação que olhar para o marco cultural dos vernamentalização biopolítica reduz popular da intervenção militar no valores vividos na cotidianidade os fenômenos, neste caso a violência, Rio de Janeiro, sem contar os cons- hindu – como todos sabem na Ín- a estatística. A partir das estatísticas tantes cantos de sereia para a volta dia predomina uma cultura budista, se estabelecem, por exemplo, linhas dos militares ao governo a fim de que é extremamente pacifista. Isso e curvas dos fenômenos, sendo pos- resolver tanta violência, corrupção, não quer dizer que ali não tenha sível concluir com padrões denomi- desmandos, como se eles não fossem violência, inclusive terríveis surtos nados de normalidade. No caso da parte desse mesmo processo. de violência religiosa entre hinduís- violência, o objetivo das estratégias tas e muçulmanos. Mas, no contex- biopolíticas é gerenciar o fenômeno to geral, há muito menos violência, dentro dos padrões de normalidade IHU On-Line – O que significa por exemplo, que no Brasil. de cada país. a ideia de “tanatopolítica”? O

7 DE MAIO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE que isso quer dizer? “ordem mundial”. Nessa nova geo- um vazio e ausência de direito da estratégia da preservação da ordem vida que propiciou que a maioria das Castor Bartolomé Ruiz – Por mundial – que sempre representa o prisões sejam uma nova espécie de definição, tanatopolítica significa benefício de alguns em detrimento campos nos quais a linha entre a vida “política da morte”. À diferença da de muitos – a morte de milhares de e a morte é, a cada dia, mais tênue e biopolítica, a tanatopolítica gerencia pessoas, até inocentes, é classificada depende do arbítrio de uma vontade de forma instrumental (e útil) a mor- como efeito colateral inevitável. Os soberana que governa lá dentro. te de pessoas e até grupos sociais milhares de mortes são programa- considerados indesejáveis ou preju- dos como efeitos colaterais de uma diciais para uma sociedade ou grupo estratégia de governo mundial em IHU On-Line – Como as no- social. A tanatopolítica mostrou sua que a segurança, a prosperidade e o ções de violência e de alterida- face mais perversa nos regimes tota- progresso dos países ocidentais exi- de estão intrinsecamente coim- litários como o nazismo, o fascismo ge o preço, necessário, da morte de plicadas? ou stalinismo, assim como em regi- outros considerados descartáveis ou Castor Bartolomé Ruiz – Se mes ditatoriais e autoritários como perigosos. Nesta nova racionalidade, entendermos por alteridade o reco- as ditaduras militares da América a guerra opera como uma tecnologia nhecimento do Outro como um ser Latina. Nestes regimes, a tanatopo- de segurança da ordem social mun- humano cuja dignidade apresenta- lítica era uma política de Estado cujo dial. O inimigo já não é um outro se a mim como rosto de sua condição objetivo era eliminar fisicamente os Estado, mas alguém interno à ordem humana, a alteridade é o anverso da opositores, pelos meios mais cruéis social mundial. e diversos. violência. A violência, como comen- Esta guerra contemporânea é uma tei no início, é a negação ou violação Porém, e infelizmente, a tanatopo- versão da tanatopolítica em que a do outro. A alteridade é o correlato lítica não se restringe a este tipo de vida de uns, descartáveis ou peri- que desmascara toda violência. A regimes, pois a política de definir a gosos, é sacrificada para que outros violência é concomitante à destrui- morte de alguns, considerados pe- vivam em segurança. Mutatis mu- ção do outro. Por isso, a gravidade rigosos ou ameaçadores, para que a tandis, a condição da violência no de uma violência é sempre propor- vida de outros tenha tranquilidade Brasil passa, em muitos casos, por cional ao mal causado ao Outro. e seja bem-sucedida faz parte, por situações semelhantes. Na medida 71 exemplo, da nova política interna- em que a maioria dos mais de 50 mil A violência produz uma destruição cional, e de muitas políticas de segu- assassinatos ocorridos no Brasil são da dignidade do outro, transforman- rança pública. de jovens, negros, da periferia, essas do-o numa vítima. A violência des- mortes são percebidas como uma figura o rosto do outro, na medida Chamo atenção para o fato de que espécie de malthussianismo natural em que, ao violentá-lo, o reduz a um na nova política internacional, a da população perigosa. Ou seja, não objeto. Toda violência opera sobre o despeito de vivermos em constantes poderemos dizer que as dezenas de Outro como se fosse uma coisa ob- conflitos bélicos, não houve uma de- milhares de assassinatos no Brasil jetivada. claração formal de guerra de um país sejam estrategicamente produzidos contra outro. Por exemplo, a guerra É importante sublinhar que os pro- por uma política de Estado, mas sim contra a Líbia – regime de Gaddafi2 cessos de objetivação do outro são que podemos perceber que uma boa –, a invasão do Afeganistão pelos Es- inerentes a toda forma de violência. parte deles são simplesmente con- tados Unidos, a invasão do Kuwait e Até os vitimários mais violentos sen- sentidos por uma política de ausên- tem compaixão e até carinho quando do Iraque por uma coalizão de países cia de proteção da vida. Desde esta ocidentais, e agora a guerra na Síria, se confrontam com pessoas, rostos, racionalidade, a violência no Brasil que eles amam. Mas quando con- nenhuma dessas guerras teve uma opera como uma tanatopolítica de declaração formal de guerra entre frontados com suas vítimas, estas milhares de vidas descartáveis, invi- perdem, para eles, as feições huma- Estados. Isso porque as novas guer- sibilizadas e perigosas. ras obedecem a um outro padrão nas de um rosto e se tornam meros do uso internacional da violência. A lógica tanatopolítica, no Brasil, objetos. Toda violência necessita Estas guerras não são mais encara- não termina no ato da morte, ela reduzir o Outro a uma forma de ob- das como guerras entre Estados que se prolonga, inclusive, nos siste- jetivação. Normalmente, para obje- acabam com um tratado e um armis- mas prisionais. Enquanto os crimes tivar o Outro, se utilizam os clichês tício, mas o uso da violência bélica de colarinho branco têm suas vidas de identidades socialmente despre- é concebido como um instrumento asseguradas e protegidas em celas zadas ou odiadas. Assim o Outro é de governamentalização necessá- e com regimes especiais, a chama- reduzido a identidades fixas como de rio para manutenção da chamada da “massa de população carcerária” um negro, um marginal, um judeu, (que supera os 700 mil presos) está um palestino, um estrangeiro, um

2 Muammar Abu Minyar al-Gaddafi: (no aportuguesa- abandonada à condição da morte. favelado, um terrorista, um muçul- mento, Kadafi) foi um militar, político, ideólogo e ditador mano, um policial... Enfim, cada for- líbio, sendo o de fato chefe de estado do seu país entre Estas vidas vivem num estado de 1969 e 2011. (Nota da IHU On-Line) exceção permanente, provocado por ma de violência produz seus clichês

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identitários para reduzir o outro a Castor Bartolomé Ruiz – Re- a todos os que entram em contato uma categoria objetivada através da meto estas minhas considerações com ela. O efeito mimético torna os qual o vitimário possa violentá-lo anteriores sobre a alteridade, en- vitimários insensíveis e faz da vio- sem o menor remorso. Inclusive, tre outros, aos estudos do filósofo lência um ato de normalidade. Mas dependendo do tipo de violência e Emmanuel Levinas3. Contudo, para a mimese também contamina o res- identidade, o vitimário pensará que uma reflexão tão complexa como a to das pessoas e grupos sociais que ao violentar o outro está cometendo da violência, não poderíamos ficar entram em contato com ela, de tal uma espécie de favor para seu grupo circunscritos a um só pensador. O modo que um ato violento induz a social ou até para a humanidade. pensamento de Levinas é extrema- produzir mais violência. Neste pon- mente fecundo para compreender- to encontramos inclusive paradoxos Um dos muitos exemplos desta re- mos que se o anverso da violência muito terríveis como o de vitimários flexão o encontramos no modo como é a destruição do outro, é essencial que na sua infância foram vítimas eram treinados, na Escola das Amé- que mostremos as consequências da de uma violência constante, cres- ricas - USA, os policiais brasileiros violência na condição sofrida das ví- ceram numa cultura da violência e, e latino-americanos nas técnicas de timas para que, desta forma, a vio- quando adultos, assumiram o com- tortura como forma de interrogató- lência seja exposta e desmascarada. portamento violento como um traço rio contra os subversivos. Se pensar- Mostrar o rosto do outro violentado comum de sua personalidade social. mos que muitos dos que depois se é condição sine qua non para que tornaram conhecidos torturadores Quando os efeitos miméticos da consigamos ter uma percepção crí- em muitos países de nossa América violência não são neutralizados de tica da violência. Caso contrário, os Latina, eram pessoas relativamente alguma forma, há uma tendência a processos normalizadores da violên- comuns, era necessário que para se que esta se naturalize socialmente cia, impulsionados pelas dinâmicas tornarem alunos e mestres exímios chegando a construir o que denomi- biopolíticas, tendem a naturalizar a da tortura passassem pela primeira namos de uma cultura da violência. violência como uma espécie de fenô- e principal prova, que era aprender Lembremos que a cultura guerreira meno social natural com o qual tere- a ver no outro simplesmente um ini- foi amplamente cantada em prosa e mos que nos acostumar a conviver. migo, um objeto. Muitos não conse- verso em todas as grandes epopeias dos primeiros escritos da humani- 72 guiam e tinham que renunciar. Quando se mostram de forma ex- plícita as consequências da violência dade. De igual modo, encontramos A violência opera duplamente na à condição das vítimas, a violência se resquícios importantes de uma cul- negação da alteridade. Ao violentar torna intolerável. O rosto desfigura- tura da violência em nossa história a vítima provoca nela uma destrui- do Brasil, que iniciou com genocídio, do das vítimas opera como uma es- ção de sua própria condição huma- continuou com séculos de escravi- pécie de antídoto crítico para que a na, proporcional à violência sofrida. dão e as próprias elites republicanas violência não se naturalize e nossas Mas, do outro lado, a violência é nunca cessaram de apelar para o uso consciências não sejam alienadas possível porque ela provoca um apa- indiscriminado da violência política pelos dispositivos de normalização. gamento paulatino da sensibilidade como algo normal. Senão aí estão humana do vitimário ou violador. os episódios de Canudos4, Contesta- Na medida em que se cometem atos IHU On-Line – De que ordem 4 Guerra de Canudos ou Campanha de Canudos: con- violentos, estes vão apagando no vi- são os desafios de neutralizar- fronto entre o Exército Brasileiro e os integrantes de um timário sua capacidade de perceber movimento popular de fundo sócio-religioso liderado mos a violência, sobretudo a por Antônio Conselheiro, que durou de 1896 a 1897, a dor do outro, com isso a violência violência do Estado como ges- na então comunidade de Canudos, no interior do es- tado da Bahia, no nordeste do Brasil. A região, histo- torna-se um ato normalizado que tor da vida em sociedade? ricamente caracterizada por latifúndios improdutivos, pode chegar a ser realizado sem a secas cíclicas e desemprego crônico, passava por uma Castor Bartolomé Ruiz – A vio- grave crise econômica e social. Milhares de sertanejos mínima reação ante o sofrimento e ex-escravos partiram para Canudos, cidadela liderada lência contém um efeito mimético pelo peregrino Antônio Conselheiro, unidos na crença do outro. Neste ponto, a violência numa salvação milagrosa que pouparia os humildes ha- conseguiu um de seus priores resul- que não se dilui quando se termina bitantes do sertão dos flagelos do clima e da exclusão o ato violento. A violência produz econômica e social. Os grandes fazendeiros da região, tados, apagar no vitimário a capaci- unindo-se à Igreja, iniciaram um forte grupo de pressão um efeito mimético que contamina junto à República recém-instaurada, pedindo que fos- dade de reconhecimento do Outro sem tomadas providências contra Antônio Conselheiro como um ser humano. Quando uma e seus seguidores. Criaram-se rumores de que Canu- 3 Emmanuel Levinas (1906-1995): filósofo e comenta- dos se armava para atacar cidades vizinhas e partir em pessoa ou até um grupo social inteiro dor talmúdico lituano, de ascendência judaica e natu- direção à capital para depor o governo republicano e ralizado francês. Foi aluno de Husserl e conheceu Hei- reinstalar a Monarquia. Apesar de não haver nenhuma chega a esta situação, estão abertas degger, cuja obra Ser e tempo o influenciou muito. “A prova para estes rumores, o Exército foi mandado para as portas para a barbárie ilimitada. ética precede a ontologia” é uma frase que caracteriza Canudos. Três expedições militares contra Canudos saí- seu pensamento. Escreveu, entre outros, Totalidade e ram derrotadas, o que apavorou a opinião pública, que Infinito (Lisboa: Edições 70, 2000). Sobre o filósofo, acabou exigindo a destruição do arraial, dando legitimi- confira a entrevista com Rafael Haddock-Lobo, publi- dade ao massacre de até 20 mil sertanejos. Além disso, cada em 30-8-2007 no sítio do Instituto Humanitas estima-se que cinco mil militares tenham morrido. A IHU On-Line – Como o concei- Unisinos - IHU, intitulada Lévinas: justiça à sua filoso- guerra terminou com a destruição total de Canudos, a fia e a relação com Heidegger, Husserl e Derrida, dispo- degola de muitos prisioneiros de guerra, e o incêndio to de filosofia da alteridade, de nível em http://bit.ly/1bZ77kk, e a edição número 277 de todas as casas do arraial. Antônio Vicente Mendes Levinas, opõe-se ao conceito de da IHU On-Line, de 14-10-2008, intitulada Lévinas e Maciel, apelidado de “Antônio Conselheiro”, foi conside- a majestade do Outro, disponível em http://bit.ly/1gs- rado o líder do movimento. Ele chegou a Canudos em violência? nUOI. (Nota da IHU On-Line) 1893, tornando-se líder do arraial e atraindo milhares

7 DE MAIO | 2018 REVISTA IHU ON-LINE do5, Cabanagem6 etc., como indício Sempre resta a questão, o que um sentimento de vingança que só deste traço de cultura violenta. Que podemos fazer? As soluções para retroalimenta a roda da violência. no Brasil se cometam 50 mil assas- problemas complexos hão de ser, Nas antípodas deste modo de ba- sinatos por ano como algo normal, necessariamente, complexas, caso nalização da violência, encontra-se não é um acaso de nosso momento contrário cairemos na demagogia. o testemunho das vítimas, que deve histórico, mas consequência de uma Desde a minha humilde e peque- ser acolhido como anverso crítico da cultura que cultuou a violência como na contribuição, entendo que um violência. traço social destacável7. primeiro elemento essencial é des- Conexo com o testemunho das ví- mascarar o pretenso naturalismo da timas, entendo que as políticas de de pessoas. (Nota da IHU On-Line) violência. Se a violência não é algo 5 Guerra do Contestado: conflito armado entre a po- memória são uma metodologia efi- pulação cabocla e os representantes do poder estadu- natural, mas um fenômeno social e al e federal brasileiro travado entre outubro de 1912 caz para que a realidade da violên- historicamente construído, há pos- a agosto de 1916, numa região rica em erva-mate e cia não seja simplesmente esque- madeira disputada pelos estados brasileiros do Paraná sibilidade e esperança de iniciarmos e de Santa Catarina. Originada nos problemas sociais, cida. A memória das vítimas opera decorrentes principalmente da falta de regularização da um processo de neutralização da posse de terras e da insatisfação da população hipos- como uma eficaz ferramenta polí- cultura da violência imperante para suficiente, numa região em que a presença do poder tica para que a consciência crítica público era pífia, o embate foi agravado ainda pelo uma cultura de paz. fanatismo religioso, expresso pelo messianismo e pela se instale socialmente. Os vitimá- crença, por parte dos caboclos revoltados, de que se tratava de uma guerra santa. A região fronteiriça entre Um segundo movimento que en- rios e violadores sempre procuram os estados do Paraná e Santa Catarina recebeu o nome de Contestado devido ao fato de que os agricultores tendo ser importante diz respeito à ocultar e negar a violência. Toda contestaram a doação que o governo brasileiro fez aos necessidade de dar vez e voz às di- negação da violência propicia uma madeireiros e à Southern Brazil Lumber & Colonization Company. Como foi uma região de muitos conflitos, fi- ferentes vítimas da violência a fim reduplicação do seu efeito miméti- cou conhecida como Contestado, por ser uma região de disputas de limites entre os dois estados brasileiros. de que possam expor à crítica social co, condenando as pessoas e socie- (Nota da IHU On-Line) as nefastas consequências da violên- dades a repetirem como tragédia 6 Cabanada ou Guerra dos Cabanos: movimento de origem restauradora, tinha como objetivo a volta de cia. Não se trata de espetacularizar as violências ocultadas. De modo Dom Pedro I ao trono do Brasil. O movimento caba- nagem teve atividade em Pernambuco, Alagoas e Pará, a violência, algo que a banaliza e in- diferente, a memória das vítimas com características distintas (nacionalistas, antiescrava- duz à mera vingança, como ocorre traz à luz a violência sofrida e com gistas), e feneceu com a morte do Imperador em Portu- gal, em 1834. (Nota da IHU On-Line) com muitos programas de TV que ela a urgência de pensar políticas 7 Sobre a questão da mimeses humana, remeteria para quem estiver interessado em aprofundar, à obra da mi- fazem da violência um espetáculo de reparação, assim como políticas 73 nha autoria: La mímesis humana.” La condición paradó- de massas. A banalização midiáti- de neutralização da repetição da jica de la acción imitativa” (Frankkfurt: OmniScriptum Management, 2016). (Nota do entrevistado) ca da violência apela, geralmente, a violência. ■

Leia mais - A condição paradoxal do perdão e da misericórdia. Desdobramentos éticos e implicações políticas. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado no Cadernos Teologia Pública número 115, disponível em http://bit.ly/2K2F1rB. - O poder pastoral, as artes de governo e o estado moderno. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado no Cadernos IHU Ideias número 241, disponível em http://bit.ly/2HY5Uwp. - A filosofia como forma de vida V - O Officium: o dever que separa a vida de sua forma. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 471, de 31-8-2015, disponível em http://bit.ly/2rkYbT1; - A filosofia como forma de vida (IV). A regra da vida (regula vitae), fuga e resistência ao controle social. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 468, de 29-6-2015, disponível em http://bit.ly/1Has1XK; - A filosofia como forma de vida (III). Do cuidado de si ao deciframento de si. Artigo de Cas- tor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 467, de 15-6-2015, disponível em http://bit.ly/1GK0EcZ; - A Filosofia como forma de vida (II). Michel Foucault, o cuidado de si e o governo de si (enkrateia). Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 471, de 1-6-2015, disponível em http://bit.ly/1IJRiym; - A Filosofia como forma de vida (I). Pierre Hadot, a filosofia antiga e os exercícios (askesis) do espírito. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 471, de 23-3-2015, disponível em http://bit.ly/1GbmYWA;

EDIÇÃO 521 ENTREVISTA

- A verdade, o poder e os modelos de subjetivação em Foucault. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz publicado nas Notícias do Dia, de 25-9-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos, dis- ponível em http://bit.ly/GB38Nt; - Giorgio Agamben, genealogia teológica da economia e do governo. Artigo de Castor Bar- tolomé Ruiz na Revista IHU On-Line edição 413, de 1-4-2013, disponível em http://bit.ly/1aobf9t; - O trabalho e a biopolítica na perspectiva de Hannah Arendt. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 393, de 21-5-2012, disponível em http://bit.ly/ KOOxuX; - O advento do social: leituras biopolíticas em Hannah Arendt. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 392, de 14-5-2012, disponível em http://bit.ly/ J88crF; - A economia e suas técnicas de governo biopolítico. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publi- cado na Revista IHU On-Line, edição 390, de 30-4-2012, disponível em http://bit.ly/L2PyO1; - Objetivação e governo da vida humana. Rupturas arqueo-genealógicas e filosofia crítica. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 389, de 23-4-2012, disponível em http://bit.ly/JpA8G3; - A bios humana: paradoxos éticos e políticos da biopolítica. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 388, de 9-4-2012, disponível em http://bit. ly/Hsl5Yx; - Genealogia da biopolítica. Legitimações naturalistas e filosofia crítica. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 386, de 19-3-2012, disponível em http://bit.ly/GHWSMF; - A vítima da violência: testemunha do incomunicável, critério ético de justiça. Artigo de 74 Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 380, de 14-11-2011, dispo- nível em http://bit.ly/vQLFZE; - A testemunha, o resto humano na dissolução pós-metafísica do sujeito. Artigo de Cas- tor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 376, de 17-10-2011, disponível em http://migre.me/66N5R; - A testemunha, um acontecimento. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 375, de 3-10-2011, disponível em http://bit.ly/q84Ecj; - A exceção jurídica e a vida humana. Cruzamentos e rupturas entre C. Schmitt e W. Benjamin. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 374, de 26-9-2011, disponível em http://bit.ly/pDpE2N; - O estado de exceção como paradigma de governo. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 373, de 12-9-2011, disponível em http:// bit.ly/nsUUpX; - O campo como paradigma biopolítico moderno. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 372, de 5-9-2011, disponível em http://bit.ly/ nPTZz3; - Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz, publicado na Revista IHU On-Line, edição 371, de 29-8-2011, disponível em http://bit.ly/naBMm8.

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Deslocamentos genealógicos da economia teológica segundo Agamben

edição de número 130 dos Cadernos Teologia Pública traz o artigo de Joel Francisco Decothé Junior, intitulado Deslocamentos genea- lógicos da economia teológica segundo Agamben. No texto, o autor apresentaA uma espécie de exegese nas reflexões de Giorgio Agamben acerca de seus fundamentos e deslocamentos genealógicos da economia teológica no Ocidente. “Neste sentido, buscamos examinar as bases daquilo que seja considerado como o modelo da economia teológica em termos de paradigma governamental da noção de secularidade”, destaca Joel Francisco. E acres- centa: “em seguida, fazemos uma leitura sobre o sentido político desta genealogia teológica, traçando um exame de alguns elementos que a compõem. Por fim, empreendemos a abordagem da noção de economia teológica em seu entre- laçamento com a operatividade da máquina de governo e providência na gestão da vida e das 75 coisas em sua função econômica”. Joel Francisco Decothé Junior é doutorando em Filosofia no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos. Possui graduação em Te- ologia pela Faculdade EST, graduação em Filo- sofia pela Unisinos e mestrado em Filosofia pela mesma instituição. A versão completa do texto em PDF está dispo- nível em http://bit.ly/2rjlQlU Esta e outras edições dos Cadernos Teologia Pú- blica também podem ser obtidas diretamente no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no campus São Leopoldo da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço humanitas@unisinos. br. Informações pelo telefone (51) 3590-8213.

EDIÇÃO 521 PUBLICAÇÕES

O campo de concentração: um marco para a (bio) política moderna

iviane Zarembski Braga é a autora do artigo O campo de concentra- ção: um marco para a (bio) política moderna, publicado no Cader- nos IHU Ideias número 270. No texto, analisa elementos da filosofia Vde Giorgio Agamben. “Em especial, aqueles relacionados aos Lager nazistas, compreendidos por ele como a culminância dos dispositivos biopolíticos de governo, já que o autor considera o regime nazista como o primeiro regime eminentemente biopolítico”, destaca Viviane. Ela também se propõe a “com- preender como se fez possível a criação do campo de concentração no regime nazista, bem como os mecanismos que permitiram a sua manutenção, se faz necessário compreender alguns pressu- postos históricos para a realização dos 76 mesmos”. Para isso, “percorre a análise arqueológica realizada por Agamben”. Viviane Zarembski Braga é doutoran- da em Filosofia pela Unisinos. Possui graduação e mestrado em Filosofia, pela mesma instituição. Atuou como pro- fessora de Filosofia na rede pública de ensino do Rio Grande do Sul, na cidade de Novo Hamburgo, durante os anos de 2011 a 2016. Esta e outras edições dos Cadernos IHU Ideias também podem ser obtidas diretamente no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no campus São Leopol- do da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço humanitas@ unisinos.br. Informações pelo telefone (51) 3590-8213.

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Guatemala: incerteza no coração maia

Bruno Lima Rocha

s Estados Unidos fazem da Guatemala o escoadou- ro das deportações de imigrantes ilegais centro-a- mericanos. Uma parcela importante destes depor- Otados permanece no país e fica à mercê das redes mafiosas. O governo guatemalteco “aceita” esta humilhação também por necessitar das remessas de dinheiro provenientes da imigração recente. Bruno Lima Rocha realiza estágio pós-doutoral em economia, é doutor em ciência política e professor de rela- ções internacionais e jornalismo na Unisinos. Eis o artigo.

77 A Guatemala, o maior país do istmo da América Central, tem população de mais de 17 milhões de habitantes e é considerada a centralidade do “mundo maia”. No texto que segue observamos, de forma sintética, como a herança dos povos originários – atualmente organizados como tais no país – implica uma esperança na forma de vida coletiva, distinta dos espaços geográficos onde as máfias, pandillas“ ”, “maras” e cartéis operam. O antigo Reino da Guatemala, equivocadamente visto apenas como república bananeira, foi palco do ignóbil golpe e intervenção da externa de junho de 1954, contra o governo reformista do general Jacobo Árbenz. Nesta ocasião, o então recém-formado médico argentino (especializado em hanseníase), Ernesto Guevara de la Serna, servia ao governo Árbenz e veio a se radicalizar no exílio mexicano. O golpe, financiado pela United Fruit Co. (empresa estadunidense maior proprietária e arrendatária de terra no país), foi seguido de governos autocráticos até culmi- nar no início da insurgência, em 1960. À época, os insurgentes eram do Exército Guerrilheiro dos Pobres (EGP), Forças Armadas Rebeldes (FAR), Organização Revolucionária do Povo em Armas (ORPA) e do Partido Guatemalteco do Trabalho. As quatro forças seguiram lutando em separado até a unificação, em 1982, criando a Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG). Após mais de 35 anos de um conflito ininterrupto, pleno de violação aos direitos hu- manos e interferência dos EUA, a pacificação do país se deu após o impasse militar. Pouco se avançou institucionalmente depois desse momento. Vale observar uma diferença fundamental entre os períodos de “pós-conflito” da Nicarágua e El Salvador, se comparado com a Guatemala: nos dois primeiros países, a estrutura político-militar que liderou a guerra civil venceu no primeiro caso e empatou no segundo. Ambas as estruturas se tornaram partidos políticos e, mantendo-se razoavelmente coesas, tanto a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN, sob a liderança bastante criticável de Daniel Ortega e sua esposa Rosario Murillo) como a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) venceram na urna da democracia indireta e, em 2018, são o partido de governo, ocupando o Poder Executivo. Já a URNG não consta como partido eleitoral registrado como vigente no Tribunal Supremo Eleitoral de Guatemala. Acompanhando as crises no sistema político do país, com sucessivos escândalos e modelos de enriquecimento ilícito através da política profissional, a URNG se tor- na um movimento de unidade da esquerda guatemalteca, com um programa mais radicalizado,

EDIÇÃO 521 CRÍTICA INTERNACIONAL

“Quatorze por cento do PIB da Guatemala provém de recursos enviados por emigrantes vivendo nos Estados Unidos”

mas sem o peso político dos partidos semelhantes no istmo. As bandeiras dos povos originários e suas reivindicações mais fundamentais seriam as úni- cas vitórias concretas advindas do processo de paz e da situação chamada de “pós-conflito”. Os acordos de paz, assinados definitivamente em dezembro de 1996, reconheceram 23 idiomas nacionais no país, onde o castelhano realmente opera como língua franca, mas tem nos demais o reconhecimento oficial. No sistema educacional público do país, dividido entre os vinte e dois departamentos, há ensino bilíngue regionalizado com os vinte e um idiomas de origem maia – Quiché’, Queqchí, Kaqchikel, Mam, Poqomchi, Tzutujil, Achí, Q’anjob’al, Ixil, Acateco, Jakalte- co, Chuj, Pocomam, Chortí, Aguateco, Sacapulteco, Sipacapense, Uspanteco, Tectiteco, Mopan, Itzá; além das línguas garífona (do Atlântico caribenho) e xinka (nahuas centroamericanos, não maias). Em tese, o idioma maia ou originário é ensinado nas escolas públicas conforme a densi- dade populacional de cada origem. Um importante acordo de pós-conflito e aparentemente cumprido pelo Estado é uma pensão e garantia tanto de assentamento rural como de financiamento para a produção agrícola e áreas correlatas. São vários os projetos de turismo rural em regiões de serra, onde o conflito interno, 78 as colunas guerrilheiras e as operações do Estado se desenvolveram de maneira terrível. Pas- sados mais de 22 anos, os efeitos são impressionantes. Lugares, hoje turísticos, como a cidade de Chichicastenango (no departamento de El Quiché, a apenas 140 quilômetros da capital) e os municípios ao redor do Lago Atitlán (no departamento de Sololá) eram zonas tanto da resistên- cia indígena e camponesa, como dos esquadrões da morte, especialmente através dos Comandos Kaibiles, as forças especiais da guerra interna financiada pelos Estados Unidos. É curioso observar estas variáveis, entre a presença de organização política e de políticas cul- turais baseadas na luta indígena e camponesa e a melhoria nas condições concretas de vida, (incluindo algum controle coletivo da terra). É como um padrão, tal como em Chiapas, no Méxi- co. Quanto maior a organização social dos povos originários, menor a pobreza absoluta e a inci- dência do crime, na forma contemporânea de “pandillas y maras”. É justamente nos territórios onde houve maior concentração de crimes de guerra e resposta na autodefesa popular, onde se vive melhor e com mais altivez. As Comissões de Conciliação e Paz, além dos subsídios e orga- nização social cooperativa fazem a diferença. Para garantir a incidência, o Conselho de Anciãos (indígena) e as organizações sociais vinculadas à Teologia da Libertação atuam. Infelizmente, o mesmo não ocorre em todo o país, menos ainda na capital, Ciudad de Guatema- la. A principal base aérea do país opera como uma zona de “despejo de indesejáveis” deportados dos EUA, sendo esta política decorrente desde o governo Obama. Uma parcela da população deportada termina sobrevivendo na região metropolitana, tornando o fenômeno da favelização e os vínculos com as máfias uma constante. Além do crime em rede e um sistema prisional in- controlado, o país está fragilizado pela presença de Estados Unidos, Israel e Taiwan; coalhado de corrupção governamental e empresas “religiosas” neopentecostais, a Guatemala não indígena vive um presente duvidoso e futuro incerto. ■

Expediente Coordenador do curso de Relações Internacionais da Unisinos: Prof. Ms. Álvaro Augusto Stumpf Paes Leme Editor: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha

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Maio de 1968: 40 anos depois

Edição 250 – Ano VIII – 10-3-2008 1968 é um marco no século XX. Quarenta anos depois, a IHU On-Line bus- ca discutir o seu impacto. Entre os entrevistados da edição estão o filósofo e professor da Universidade de Brasília (UnB) Miroslav Milovic, o sociólogo argentino Ernesto Laclau, o psicanalista e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Benilton Bezerra Jr. e o sociólogo francês Marcel Gauchet, entre outros.

Giorgio Agamben e a impossibilidade de salvação da modernidade e da política moderna 79

Edição 505 – Ano XVII – 22-5-2017 A imagem que ilustra a capa dessa IHU On-Line, a pintura de Charles Le Brum chamada A apoteose de Luís XIV (1677), sintetiza uma ideia central na obra de Giorgio Agamben: a modernidade nunca foi secular, mas profana. A paradoxal imagem que enaltece a força do Estado expresso na figura messiânica do rei mostra também o lado obscuro do poder, que pela força cria suas zonas de exclusão e exceção. Diante da falência da promessa moderna de avanço civilizatório, o filósofo assenta seu pensamento, que inspira o VI Colóquio Internacional IHU.

Cuidado de si e biopolítica

Edição 472 – Ano XV – 14-9-2015 Pensar os processos biopolíticos a partir de um paradigma contemporâ- neo exige abordar a realidade em nível molecular. Quando os biopoderes operam de forma fragmentária, particularizada, o cuidado de si, com to- dos seus discursos, práticas e procedimentos tecnocráticos, torna-se um tipo de governo descentralizado da vida humana, permeando todos os âm- bitos de nossa experiência em sociedade. Esta revista IHU On-Line aborda o tema central do XVII Simpósio Internacional IHU.

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