Fernando Pessoa Nos Estados Unidos: Redesenhando Fronteiras
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Fernando Pessoa nos Estados Unidos: redesenhando fronteiras Antonio Ladeira* Palavras-chave Fernando Pessoa, Literatura Portuguesa, recepção, influência, Literatura Americana, Literatura Luso-Americana. Resumo De forma necessariamente subjectiva, apresento alguns aspectos da história da recepção de Fernando Pessoa nos Estados Unidos. Embora enfatize o mundo académico, incluo possíveis casos de respostas a Pessoa na ficção e na poesia. Começo por abordar as dificuldades inerentes à ideia de traçar fronteiras nacionais no que toca à recepção de um autor. Proponho que a história da recepção pessoana nos EUA apresenta três fases: o primeiro momento, de 1955 a 1982; o segundo momento, de 1982 a 2012; e o terceiro momento, de 2012 até o presente. Incluo uma discussão sobre os limites e a porosidade de fronteiras entre a obra que um autor lega à posteridade e o uso que editores, críticos e leitores fazem do poder que têm de moldar (ou “construir”) essa mesma obra. Termino com um epílogo sobre a literatura luso- americana. Keywords Fernando Pessoa, Portuguese Literature, reception, influence, American Literature, Luso- American Literature. Abstract In a necessarily subjective way, I present some aspects of the History of the reception of Fernando Pessoa in the United States. Although I emphasize the academic world, I include possible cases of responses to Pessoa in poetry and fiction. I begin by addressing the difficulties inherent to the idea of drawing national borders when it comes to the reception of an author. I propose that the History of Pessoan reception in the US be presented in three phases: the first phase, from 1955 to 1982; the second phase, from 1982 to 2012; and the third phase, from 2012 until the present. I include a discussion on the limits and the porosity of borders between the work which the author leaves for posterity and the uses that publishers/editors, critics and readers make of their power to shape (or “build”) that same work. I conclude with an epilogue on Luso-American Literature. * Texas Tech University, Department of Classical and Modern Languages and Literatures. Ladeira Pessoa nos Estados Unidos Mas o que acontece [...] Se o autor, por exemplo, se multiplica nos seus editores e cada editor constrói o seu autor? (PIZARRO, 2008: 30) A imagem de um autor deve sempre muito – mais do que geralmente se supõe – àqueles que, de uma forma ou de outra, se dedicaram ao estudo e disseminação da sua obra. A imagem que hoje temos de Kafka não é, pois, independente das circunstâncias que rodearam a publicação e recepção póstumas da sua obra; o mesmo se pode dizer de Cervantes e algo semelhante, parece-me, se poderá dizer de Borges. Quanto a Fernando Pessoa – devido à sua obra permanentemente in progress – é ainda mais difícil determinar aquilo que na imagem do autor (na própria obra, afinal) se deve ao próprio autor e aquilo que é atribuível àqueles que – com maior ou menor diligência – dedicaram os seus esforços a traduzir, promover ou assinar textos críticos sobre o escritor em questão. É difícil determinar também o que é atribuível aos editores que, de acordo com critérios necessariamente discutíveis, produziram edições (críticas ou não) a partir de textos problemáticos porque incompletos, possuidores de várias variantes, nos quais o autor não logrou (ou não ‘desejou’ lograr) escrever o ‘ponto final’ que dá, convencionalmente, qualquer texto por terminado. Traçar um esboço da presença de Fernando Pessoa nos Estados Unidos – o projecto que aqui me proponho – é uma tarefa delicada e árdua por duas razões. A primeira razão: porque a obra (dentro e fora da famosa arca) prossegue em processo, porventura interminável, de efeverscência e mutação não tendo ainda atingido a definição e estabilidade que provavelmente nunca atingirá. A segunda: por causa da artificialidade da linha política/geográfica que me propus desenhar num trabalho deste tipo. Por outras palavras: no que diz respeito à presença de Pessoa, é difícil dizer onde terminam e acabam, exactamente, os Estados Unidos. É que falar da presença do poeta de Mensagem neste país exige que se lancem constantemente olhares que vão muito além das fronteiras dos EUA. Que obras incluir e que obras excluir? Incluir as publicadas nos EUA e excluir as editadas fora das suas fronteiras? E que dizer dos livros que aqui se publicaram – sobre Pessoa – e que contaram com a colaboração de autores de outras nacionalidades? Ou o que dizer das obras publicadas noutros países que contaram com a colaboração de autores americanos ou aqui residentes? Há, além disso, o caso de obras publicadas noutros países, de autores estrangeiros, e que são abundantemente consumidas nos EUA, tanto pelo público universitário como pelo público em geral. Não constituirão, ou deveriam constituir, ‘recepção norte-americana’, essas obras? Voltando à questão inicial, a residência habitual de um pessoano não impede que o impacto do seu trabalho se faça sentir noutros lugares. Actualmente, aliás, a Pessoa Plural: 16 (O./Fall 2019) 242 Ladeira Pessoa nos Estados Unidos própria noção de residência física perde o significado que em tempos teve se pensarmos que, devido à internet, há quem resida num local publicando em muitos outros o seu trabalho. Para não falar da tendência actual de académicos (na área das línguas e literaturas, mas não só) e escritores: a de cada vez mais distribuirem o seu tempo por vários lugares do mundo, podendo assim dizer-se que residem em mais do que um país. Por essa razão, adopto neste trabalho um conceito de recepção relativamente flexível. Estou ciente do risco que há em identificar e procurar intepretar alguns dos acontecimentos mais importantes da recepção pessoana nos EUA num artigo de extensão limitada. Por essa razão, aceito que outra pessoa verá a presença de Pessoa forçosamente de outra maneira, que incluirá ou excluirá outros autores e obras. Neste trabalho preferi não colocar tradutores, divulgadores e académicos em categorias separadas. Decidi considerar estas categorias em conjunto, uma vez que muitos dos pessoanos americanos – ou cujo trabalho teve impacto neste país – souberam distinguir-se em várias destas áreas. Embora não seja o principal objectivo deste projecto, ao longo do mesmo também me referirei a alguns autores criativos (poetas e ficcionistas) nos quais se podem detectar influências de Fernando Pessoa, ou cujo trabalho ou imagem entra em diálogo com o escritor português. Uma vez mais, é importante deixar claro que as (minhas) escolhas (subjectivas) não pretendem ser absolutas nem os elencos (de autores, obras, eventos) exaustivos. Proponho dividir esta narrativa sobre uma possível história da presença pessoana nos EUA em três momentos: O primeiro momento irá desde 1955 até 1982. Nesta primeira fase, por sua vez, destacaria três acontecimentos. O primeiro é a publicação do primeiro texto crítico sobre Fernando Pessoa que – segundo George Monteiro – terá saído em 1955 e foi assinado pelo americano Edouard Roditi: “‘The Several names of Fernando Pessoa,’ a succint five-page article that appeared in Poetry magazine in October, is the first piece of criticism on Pessoa published in the United States” (MONTEIRO, 1998: 29). O segundo acontecimento é o primeiro colóquio internacional sobre Fernando Pessoa, organizado em 1977 pelo mesmo George Monteiro, e que decorreu na Brown University, nos EUA. O terceiro é a publicação das actas relativas a este colóquio, em 1982, edição também organizada pelo referido Monteiro, com o título The Man Who Never Was. O segundo momento, se se quiser, decorre desde 1982 até 2012. Nele, começo por destacar o segundo colóquio internacional sobre Pessoa, que tem lugar em 1983 na Universidade de Nashville (referido pela própria organização como o “segundo simpósio internacional” sobre o poeta). Seguidamente, sublinho o abundante trabalho de edição e tradução para o inglês levado a cabo por várias pessoas, entre as quais distingo o americano Richard Zenith, há muito radicado em Portugal; bem como o trabalho de análise e divulgação de Harold Bloom. Sem esquecer a constante e atenta produção de George Monteiro. Pessoa Plural: 16 (O./Fall 2019) 243 Ladeira Pessoa nos Estados Unidos O terceiro momento corresponde a um período que começa com a publicação da revista na qual se insere este artigo, Pessoa Plural, no ano 2012, até o presente. É um momento marcado também pela entrega do arquivo Jennings à Brown University, em 2015. E é, sobretudo (no que terá revolucionado a recepção de Fernando Pessoa no mundo inteiro) um período que muito deve ao trabalho do investigador Jerónimo Pizarro. Trabalho que tem sido, a todos os títulos, ciclópico e tentacular, e tem contemplado (e, de certo, modo, ‘moldado’, como sugere a epígrafe do meu artigo) a produção académica/tradução/divulgação/leitura de um autor que assim se vai transformando, evoluindo, crescendo. Nos dois primeiros momentos, eu diria que se aborda a obra pessoana sob o prisma da identidade. No primeiro, a obra é, sobretudo, pensada a partir da grande novidade (quase revolução) que foi a flutuante identidade pessoana em contraste com a noção – bem arraigada na época – de um sujeito poético e civil sólido, definido, estabelecido. (Tão definido e fechado como seriam as fronteiras nacionais numa época pré-globalização e anterior à democratização das viagens internacionais.) Pessoa é aquele que se apaga (ou que quase se apaga) perante uma obra que é tanto mais veemente quanto maior a timidez do autor, quanto maior a sua discrição ou inanidade biográfica, implicando esta afirmação que possuir simultaneamente biografia e obra constitui uma incompatibilidade. É uma ideia de identidade que pode ser resumida em duas frases: aquela que produziu Octavio Paz (Pessoa, “O desconhecido de si mesmo”), e a frase de Jorge de Sena (Pessoa, “O homem que nunca foi”), justamente adotada por George Monteiro para título da conferência pioneira a que me referi. O segundo momento pertence à exploração da heteronímia (ou heteronimismo) num sentido mais técnico e aprofundado.