O operariado e o anarquismo em Amanhã, de Abel Botelho

António Martins Gomes CHC – FCSH [email protected]

Resumo

O romance Amanhã (1902), de Abel Botelho, tem como tema principal a intensificação da luta do operariado lisboeta, em finais do século XIX, e a sua ação decorre ao longo de sete meses, mais precisamente entre Novembro de1894 e Junho de 1895, o momento das celebrações religiosas levadas a efeito em Lisboa durante o sétimo centenário de Santo António. Amanhã é o romance de uma luta sindicalista e uma obra pioneira na focagem das míseras condições sociais do proletariado, no sentido em que Abel Botelho aborda a questão social no início da difusão da doutrina anarquista no operariado lisboeta, cujos princípios veiculam a dissolução do Estado e o combate a todas as formas de autoridade. Enriquecido pela vasta enumeração de acontecimentos históricos, este romance possui um grande e diversificado valor documental: a implantação do anarquismo no seio do operariado; o crescente recurso às greves; a visita de delegados da Associação Internacional dos Trabalhadores; o desfile de trabalhadores no 1º de Maio de 1895, ao longo dos Restauradores e da Avenida; a procissão comemorativa do centenário de Santo António, ocorrida precisamente a 29 de Junho; ou a preparação de um atentado bombista.

O operariado e o anarquismo por António Martins Gomes 41 Palavras-chave

Abel Botelho, Amanhã, Operariado Lisboeta, Luta Sindical

Abstract

The novel Tomorrow (1902), written by Abel Botelho, has the intensification of the struggle of the working class in the late nineteenth century as its main theme, and the action takes place over seven months, more precisely from November 1894 to June 1895, a period of religious celebrations carried out in this city during the seventh centenary of Saint Anthony. Tomorrow is a novel about a collectivist fight and it is original in focusing the wretched social conditions of the proletariat, in the sense that Abel Botelho comes up with the social issue in a time when the anarchist doctrine begins to spread around the Portuguese laborers, whose principles convey the dissolution of the State and the fight against all forms of authority. Enriched by a wide listing of historical events, this narrative has a great and diversified importance: the deployment of anarchism within the working class; the increasing recourse to strikes, the visit of delegates from the International Workers’ Association, the parade of workers on the first of May 1895, along Restauradores Square and Avenue, the commemorating procession of Saint Anthony’s centenary, that occurred in 29 June precisely, or the preparation of a bomb attack.

Keywords

Abel Botelho, Tomorrow (Amanhã), Portuguese workers, syndicalism

“Acreditar que a felicidade se resolve por este processo tão simples: a anarchia, isto é – supressão de leis e de organização, ficando só de pé a vontade de cada um, não é resolver o problema social: parece-me que ao contrario é complical-o. [...] Porque o anarchismo pode mudar as coisas, mas não pode raspar a lepra da alma humana.” (Raul Brandão, 1895)

Abel Botelho nasce em Tabuaço (1854) e morre em Buenos Aires (1917), onde se encontrava como diplomata da República Portuguesa. A sua obra essencial é publicada entre 1891 e 1910, sendo de destacar os cinco volumes da “Patologia Social”: O Barão de Lavos (1891), O Livro de Alda (1898), Amanhã (1901), Fatal Dilema (1907) e Próspero Fortuna (1910), romance de tese republicana.

Filiado na escola naturalista, Abel Botelho nunca foi muito apreciado ou reconhecido no meio literário, uma vez que a sua escrita entra em

42 Revista UBILETRAS n4 conflito com os valores estéticos da burguesia oitocentista, ao expor despudoradamente aspectos repulsivos da sociedade portuguesa, como a decadência e a depravação da aristocracia, o arrivismo político, a pederastia, a prostituição ou a pobreza asquerosa do operariado, temas até aí abafados pela hipocrisia social e pouco explorados pela geração positivista de 70; esta ousadia terá certamente contribuído para que, por relutância ou mero preconceito académico, historiadores e críticos literários tenham, em geral, ignorado os romances de Abel Botelho ou optado mesmo por uma crítica menos positiva.

Publicado no início do século XX, o romance Amanhã aborda algumas questões intensamente debatidas na capital portuguesa em finais do século XIX, como a social, a política e a religiosa. Ao reflectir o antagonismo de classes num momento de ascensão do catolicismo e de difusão do anarquismo pelos trabalhadores, esta obra é pioneira na exposição literária das míseras condições sociais do proletariado. Com efeito, o seu conteúdo envolve a intensificação da luta do operariado lisboeta e decorre ao longo dos sete meses de celebrações religiosas que assinalaram o sétimo centenário do nascimento de Santo António: Novembro de 1894 a Junho de 1895.

Na década de 90, aumenta a contestação aos efeitos negativos do Ultimato inglês, sendo a sublevação militar de 31 de Janeiro de 1891, no Porto, a tarefa mais radical executada pela “geração activa” do PRP. Em Amanhã, a ficção romanesca converge com os principais eventos históricos ocorridos neste período de profunda depressão económica, documentando a implantação do anarquismo no seio do operariado, o crescente recurso à greve, a visita de delegados da Internacional, o desfile de trabalhadores no 1º de Maio de 1895 entre os Restauradores e o Largo do Rato, a procissão do Centenário Antoniano, ocorrida a 29 de Junho desse ano, ou ainda a preparação de um atentado bombista.

O anarquismo, cuja etimologia provém da raiz grega an (sem) e arkhê (governo), é uma corrente de pensamento socialista que veicula a dissolução do Estado, o combate à autoridade civil e religiosa, e a construção de uma sociedade sem leis. As suas diversas vertentes – seja libertarismo, socialismo libertário ou anarco-sindicalismo – têm ainda em comum a luta pela abolição das desigualdades sociais e pela transformação da economia privada numa nova ordem em que os meios de produção serão controlados pelo operariado.

Ao longo da História, socialistas libertários como Godwin, Proudhon, Bakounine e Kropotkine, aludem ao poder do Estado como o principal motivo de perpetuação da desigualdade social. Em Qu’est-ce que la proprieté? (1840), Proudhon utiliza pela primeira vez a palavra “anarquia” para denominar um modelo de sociedade mutualista, sem a tutela estatal.

O operariado e o anarquismo por António Martins Gomes 43 É precisamente por via da obra de Proudhon, autor referenciado em Amanhã, que são divulgadas as primeiras ideias anarquistas em , visando criar melhores condições humanas para os trabalhadores através da união em cooperativas e federações; um dos órgãos promotores do associativismo é O Eco dos Operários, fundado em 1850.

Um ano após a criação da Associação Internacional dos Trabalhadores, o Catecismo Revolucionário de Mikhail Bakounine salienta que a força laboral é a forma mais eficaz de evolução civilizacional e de libertação do homem:

“O trabalho é a base fundamental da dignidade e do direito humano. Pois é unicamente pelo trabalho livre e inteligente que o homem, tornando-se por sua vez criador e conquistador sobre o mundo exterior e sobre a sua própria bestialidade, humanidade e direito, cria o mundo civilizado.” (1865)

Em 1871, o ano da Comuna de Paris e das Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, Antero de Quental expõe as ideias essenciais da Internacional num texto decisivo para a consolidação do socialismo em Portugal, enfatizando igualmente o trabalho e a luta de classes:

“Há, efectivamente, um grande combate travado; há dois exércitos e duas bandeiras inimigas: dum lado o Trabalho, do outro o Capital: dum lado aqueles que, trabalhando, produzem; do outro lado, aqueles que, sem esforço, e só porque monopolizaram os instrumentos do trabalho, terras, fábricas, dinheiro, vivem da pesada contribuição que impõem a quem, para produzir e viver, precisa daqueles instrumentos, daquele capital” (Quental, 1980: 9).

Um outro autor referido nesta obra é José Fontana, considerado o primeiro doutrinador do movimento operário em Portugal. Imbuído do espírito da Internacional e inspirado em Bakounine, forma as bases da resistência operária, convoca greves e organiza as primeiras manifestações do 1º de Maio. Em 1872, promove a criação da Associação Fraternidade Operária. Mateus, o operário protagonista de Amanhã, tem o seu retrato na parede do seu quarto, ao lado do de Kropotkine, e chega a tecer algumas considerações elogiosas a propósito da missão evangelizadora deste grande ideólogo:

“Pois José Fontana […] viu o espectáculo doloroso da miserável inércia do nosso povo e tremeu de indignação, consumiu-se de piedade. Quase simultaneamente, o estrondear do canhão nas ruas de Paris, os paroxismos iconoclastas da Internacional, anunciavam ao proletariado de todo o mundo que havia soado a hora de ele impor a sua vontade, de fazer ouvir dominadoramente a sua voz. E então José Fontana foi o arrojado clarim da Ideia nova em Portugal. Veio soletrar- nos o novo Verbo” (Botelho 1982, 456).

44 Revista UBILETRAS n4 Em 1886, a visita de Elisée Reclus vem estimular a fundação de algumas associações anarquistas, a publicação do primeiro jornal, A Revolução Social, e a edição de obras como A Anarquia na Evolução Socialista, de Kropotkine. No final do século XIX, o pensamento libertário é já difundido por várias publicações periódicas: A Revolta (1892), A Propaganda (1894), O Agitador, Grito de Revolta e O Lutador (1895).

Ao longo dos vinte e três capítulos de Amanhã, o narrador referencia um vasto número de autores, dado que muitas das suas obras teóricas foram sendo acumuladas, ao longo dos anos, na “rica biblioteca profissional” de Mateus, um autodidacta amante de livros e ávido de conhecimentos desta doutrina política, social e económica:

“[...] em suma, um curso perfeito de iniciação, o foral completo da doutrina comunista-anarquista, trazida desde a origem na sua evolução vertiginosa – estremecido tesouro que o Mateus, durante anos, sistematicamente amontoara, com uma paciência, uma isenção e uma porfia inarráveis, tirando muitas vezes ao vestuário e ao sustento para poder acrescentá-lo” (Botelho 1982, 194).

É, na verdade, enorme o elenco de livros e autores subversivos que moldam o pensamento do protagonista: O Capital, de Karl Marx; A Sociedade Futura, de Jean Grave; Páginas Rubras, de Sévérine; Os Bastidores do Anarquismo, de Flor O’Squarr; Filosofia da Anarquia e Da Comuna à Anarquia, de Carlo Malato; A Moral Anarquista e Um Sonho de Ansiedade, de Kropotkine; A Rússia Subterrânea, de Kravtchinski (publicado em 1882, sob o pseudónimo de Stepniak); O Socialismo Integral, de Benoit Malon (1891); a Psicologia do Anarquista Socialista, de Augustin Hamon (1893); O Anarquismo, de António de Serpa Pimentel (1894); ou, entre outros, A Conquista do Pão, de Paul Reclus. Publicado em 1895, este livro é da autoria de Kropotkine.

Como refere Abel Botelho na Dedicatória, em Amanhã, “bacilam e fermentam os mais tragicamente desoladores aspectos da Miséria”; assim, o enredo desta narrativa decorre numa Lisboa pobre, envolvendo essencialmente a zona oriental junto ao Tejo: o estreito vale de Chelas, o Poço do Bispo e o Cabo Ruivo; a fábrica de cartuchame e o apeadeiro de Braço de Prata, onde, vindos no expresso de Madrid, são recebidos os delegados da AIT; a Rua de Marvila, com os seus raros candeeiros de petróleo; ou a Vila Dias e a “ilha” do Grilo, espaços onde os operários da fábrica têxtil de Almargem residem.

É ainda descrita, com toda a minudência naturalista, a cidade no seu quotidiano finissecular, tendo como pano de fundo os bairros populares de , Alcântara, Mouraria, , Xabregas e Marvila: o lausperene comprado em Santa Justa; o santeiro da Rua Augusta e a mulher que vende tintura no ; Santa Apolónia e o Terreiro do Paço, por onde

O operariado e o anarquismo por António Martins Gomes 45 passam os carros da Lusitana; a Escola Politécnica, onde Mateus se tinha matriculado; as igrejas de S. Vicente de Fora e de S. Domingos, onde as famílias iam à missa; a Feira da Ladra; e os centros de propaganda anárquica, como o Largo da Páscoa, o Pátio do Fiúza (Alcântara), as ruas do Bem-Formoso e do Arsenal, e a Junqueira, em frente à Cordoaria.

Ao nível do associativismo, um pilar fundamental na união dos povos e do proletariado, a obra menciona diversas Organizações, tais como a já referida Associação Internacional dos Trabalhadores, a Liga das Artes Gráficas, a Associação Fraternal dos Fabricantes de Tecidos e Artes Correlativas, ou a Voz do Operário, editora de um periódico muito enaltecido pelo narrador: “A benemérita Voz do Operário, sempre firme e inalterável na prossecução do seu programa – a união pela vida – chamava com insistência às armas os correligionários pela voz tão autorizada como difusa do seu jornal;” (Botelho 1982, 251).

Ao descrever as reuniões clandestinas de propaganda anarquista, o autor procura transmitir essa mesma ligação extremosa entre a classe trabalhadora, cujos membros e ramos profissionais se misturavam ordeiramente:

“Viam-se ali, numa cordial promiscuidade indistintamente baralhados, os mais prestigiosos chefes socialistas, e representantes das classes dos torneiros, serralheiros, fundidores, tipógrafos, litógrafos, canteiros, jardineiros, tanoeiros, mecânicos em madeira, calceteiros, marceneiros, sapateiros, tecelões, condutores de carroças, cocheiros, cigarreiros, manipuladores de farinha, refinadores de açúcar, corticeiros, oleiros, carpinteiros de carros, pintores, carregadores, fabricantes de carruagens, latoeiros, varinos e outros mais. Eram todos os baixos misteres e profissões. Toda a miuçalha, toda a escória” (Botelho 1982, 351-352).

O romance Amanhã é protagonizado por Mateus, um contramestre de uma tecelagem em Lisboa que irá convocar greves, preparar manifestações, organizar reuniões com dirigentes estrangeiros, e planear uma revolução para destruir o regime, a ser iniciada durante o préstito das Celebrações Antonianas. Solidamente consolidado na mais genuína ideologia libertária, todo o discurso deste líder operário é proferido contra a entidade estatal:

“[...] o Estado é uma pura excrescência que vive à custa de todos nós. Dispensa- se... Ele nada nos faz, nada nos traz de bom...

[...]

- É uma organização artificial, violenta, contrária às leis naturais... a qual não aproveita senão a um limitadíssimo número de indivíduos, com prejuízo de todos os outros... que não tem outro fim senão explorar o mísero trabalhador!” (Botelho 1982, 46).

46 Revista UBILETRAS n4 Dois delegados da Internacional deslocam-se a Portugal para doutrinar os operários em reuniões clandestinas, durante as quais os incentivam à união em associações de classe para ganharem força as suas reivindicações. O pensamento de um destes dirigentes confirma a mesma ideia de Mateus quando associa a decadência social ao regime monárquico e, sobretudo, à estrutura estatal:

“O Estado, nascido da divisão da sociedade em castas, atingiu o seu período áureo, quando? Com a centralização monárquica absoluta. Depois, pela adopção do sistema representativo e a consequente democratização social, começou do Estado, como instituição, a inevitável decadência” (Botelho 1982, 322-323).

Para além do Estado, os anarquistas opõem-se ainda ao patriotismo e à religião, dois instrumentos usados pelo poder para tiranizar os povos ao longo dos séculos. Mateus, o líder revolucionário cujo nome coincide ironicamente com o do primeiro evangelista do Novo Testamento, dirige- se aos seus colegas num discurso panfletário, onde culpa a religião pelo atraso do país e considera o sentimento patriótico um egoísmo burguês:

“O patriotismo é uma das muitas e habilidosas formas de opressão que, para impunemente nos esmagarem, têm inventado os ricos e poderosos. Durante séculos, vocês sabem, o seu meio de dominação foi outro: foi a religião. Quanto tempo as classes privilegiadas não exploraram e cavalgaram a seu bel-prazer o povo, ameaçando-o, fanatizado e embrutecido, com o temor dum Deus de açougue, vingativo, cruel... com os tétricos horrores das penas do inferno! E depois, quando essa formidável criação de hipocrisia e de embuste caiu, quando o espectro religioso se esvaiu na sombra e o poder de Roma se afundou no ridículo, substituíram-no então pela ideia de pátria” (Botelho 1982, 57-58).

Ao longo do século XIX, desde o liberalismo romântico da monarquia constitucional ao positivismo realista da Regeneração fontista, a hegemonia da Igreja Católica vai perdendo a sua influência tentacular. Contudo, a partir de 1895, o ano do Congresso Católico Internacional e das celebrações de Santo António, a fé católica ganha novo alento. O romance retrata precisamente a questão religiosa no seu auge, uma vez que a procissão antoniana, entre o Terreiro do Paço e a Avenida, seria o ponto de partida para uma revolução desencadeada pelos operários.

Após as medidas legislativas sobre a saúde pública e a construção de cemitérios, que vêm dessacralizar a morte e retirar ao seu cerimonial o rentável monopólio da Igreja Católica, a sociedade adquire um espírito mais laico. A narrativa dá-nos uma perspectiva do cemitério do Alto de São João, um “jardim de pedra” inaugurado em 1835 na zona oriental para sepultar sobretudo a população mais pobre: “[...] o encastelamento sepulcral do Alto de S. João, todo riscado a arestas de mármore e agulhas de cipreste” (Botelho 1982, 108).

O operariado e o anarquismo por António Martins Gomes 47 As alusões do Padre Sebastião aos funerais realizados pela classe operária também confirmam, por sua vez, a crescente laicização da morte: “Eles não querem saber de nós para nada, eles não concorrem à igreja, não conservam as mulheres, não legitimam os filhos… nem sequer os mortos respeitam, porque os levam civilmente ao cemitério!” (Botelho 1982, 93).

Esta “cidade dos mortos” serve para Abel Botelho denunciar não só a desgraça extrema ou o forte anticlericalismo da classe operária, mas também para registar alguns casos trágicos de violência doméstica, a incidir usualmente sobre os mais desprotegidos em termos sociais – mulheres e crianças:

“No Domingo Gordo, duas vezes fez o passeio lúgubre da “ilha” do Grilo ao Alto de S. João, a singela carreta negra da Voz do Operário. Para levar, primeiro, a Chica, da qual era voz corrente entre o povo que as brutalidades do pai tinham abreviado a existência; e depois, vitimada pela discrasia galopante do desgosto, a héctica e inconsolável Ana, com a filha mais nova, mortinha de inanição” (Botelho 1982, 408-409).

Segundo Bakunine, o regime anárquico só é possível através do recurso a uma revolução violenta, a partir da qual desaparecerão todas as instituições para dar lugar a uma nova sociedade. Seguindo esta linha de raciocínio, alguns estrategas libertários passam à acção directa. O terrorismo individual, nascido com o firme propósito de desencadear uma revolução para destruir o aparelho estatal, ocorre em países como França, Alemanha, Itália, Espanha, Rússia e Portugal, sendo praticados diversos actos e atentados violentos entre os anos 70 do século XIX e a primeira década do século XX.

Para provocar a mudança desejável em Portugal, os adeptos mais radicais rejeitam a via eleitoral ou a mediação político-partidária, e optam por recorrer à sabotagem ou por dedicar-se inclusive ao fabrico de bombas artesanais, que cederão mais tarde à Carbonária e ao PRP, no apoio à luta pela implantação da República: em 1892, uma bomba explode no Consulado de Espanha e há um atentado na casa do Conde de Folgosa; em 1895, ocorre outro atentado durante as Comemorações Antonianas, evento narrado no romance de Abel Botelho.

A propósito deste episódio violento, um excerto do romance poderá ajudar a entender o motivo pelo qual o bombismo nunca chegou a ser uma actividade benquista dos revolucionários portugueses, mais favorecidos de “brandos costumes” – durante uma sessão de demonstração de fabrico de engenhos explosivos, os operários sentem-se pouco confortáveis ao tomarem consciência dos efeitos devastadores da dinamite, que havia sido inventada por Alfred Nobel em 1868:

48 Revista UBILETRAS n4 “A sessão havia tomado assim uma feição carniceira e odienta que repugnava a uma parte da assembleia. Cheirava-lhe a sangueira e a carne derretida... já não estavam bem ali! Ante os seus alarmados corações, ante as suas sensitivas almas, formadas na severidade e na obediência, o grosso e imperioso belga revestia o aspecto dum carrasco, o italiano era positivamente um demónio” (Botelho 1982, 335-336)

Para resolver este inconveniente, os operários optam por utilizar uma composição mais fraca, substituindo a dinamite por picrato de chumbo, e Mateus acaba por delinear o plano da revolução, distribuindo os revoltosos por cinco áreas nucleares:

“Ele tinha com efeito concebido, de colaboração com o Azinhal, um vasto e hábil plano estratégico. – O assalto, é claro, seria dado alta noite, e tinha de ser simultâneo, cingindo e afogando no mesmo decisivo instante, dentro da sua gargalheira implacável, a desprevenida inacção de toda a cidade. Caminharia o ataque, ao mesmo tempo, por cinco zonas ou sectores. O primeiro, mais oriental, ao longo do rio, teria por guarnição o formigueiro enorme de operários que labutavam entre Braço de Prata e o Beato, e a sua missão consistiria em apoderarem-se de todos os estabelecimentos oficiais que por ali marginam o Tejo, o quartel de artilharia, o Arsenal, a Alfândega, o Terreiro do Paço. O segundo sector teria a sua concentração em Chelas, para marchar daí, pelo Alto de S. João, a tomar o Castelo de S. Jorge. O terceiro sector, reunindo os revoltosos do para o sul, por Sete Castelos, até ao Alto do Pina, entraria simultaneamente pelas portas do Poço dos Mouros e da Penha, ocupando esta altura, o Monte, a Graça e toda a linha de contrafortes que limitam por este lado a cidade. Uma quarta zona conglobaria, junto ao Arco do Cego, toda a população fabril do Campo Grande, para marchar sobre Vale do Pereiro e a Baixa. Finalmente, a quinta zona, abrangendo , Terras do Seabra e Fonte Santa, estava a cargo dos revoltosos de Alcântara, e incumbia-lhes, entre outras coisas, arrasar o Colégio de Campolide e opor uma barreira aos socorros que tentassem vir de Belém e da ” (Botelho 1982, 477-478).

Pela enumeração exaustiva de eventos ocorridos em Lisboa em meados da década de 90, Amanhã possui indubitavelmente um imenso e diversificado valor documental: a progressiva implantação do movimento anarquista no seio da classe operária, através da publicação de periódicos ou da organização em rede de movimentos associativos e centros de propaganda; a presença de dois delegados da Internacional; o elevado número de greves associadas à indústria têxtil (cf. Fonseca 1976: 150-157); a realização do Congresso Católico Internacional, em Maio de 1895; o cortejo religioso do centenário de Santo António, a 29 de Junho, em cujo percurso são lançados panfletos subversivos a criticar o regime (cf. Valente 1976: 48); e a preparação de um atentado bombista, que levará Hintze Ribeiro a promulgar a “lei celerada” de 13 de Fevereiro de 1896.

O operariado e o anarquismo por António Martins Gomes 49 Neste romance, destaque-se ainda o capítulo XIX, cujas páginas descrevem minuciosamente a grandiosa manifestação de trabalhadores no 1º de Maio de 1895, começando na Praça dos Restauradores, seguindo ao longo da Avenida e da Rua Barata Salgueiro, e terminando no Largo do Rato. Algumas palavras de ordem proclamadas nesta altura são expostas no desfile de carros alegóricos de cada profissão:

“Na frente do carro, entre cestos vindimos, pás e encinhos, lia-se em grandes letras de fogo: QUEREMOS 8 HORAS DE TRABALHO; e na cauda: A JOSÉ FONTANA, O POVO, FARTO DE SOFRER. Aos lados baloiçavam- se escudetes com os dísticos: PROLETÁRIOS DE TODO O MUNDO, UNAMO-NOS! e BREVE CHEGA A NOSSA HORA! […] – Mas eram por igual interessantes todos os carros que na estatuída ordem iam seguindo, às dezenas, infindavelmente, desde as carretas dos pedreiros, dos serralheiros, dos curtidores e dos tipógrafos, até à fábrica em miniatura dos saboneteiros, o tonel monstro dos tanoeiros e o chalet dos ceramistas, até à grande máquina Singer com a legenda: MATA SEM RUÍDO, levada num grupo de costureiras” (Botelho 1982: 466).

Numa representação nua e crua, Abel Botelho aborda em Amanhã um dos momentos de maior conflito entre o operariado e o patronato em Portugal, e faz deste romance um retrato fidedigno da sórdida condição social dessas “vítimas da fome”, que, à semelhança do restante movimento internacional e tendo como lema a unidade do Trabalho contra o Capital, lutam pela sua emancipação, sem perder a esperança em conquistar melhores condições no dia de amanhã, uma palavra iniciada com a primeira letra do alfabeto e curiosamente contida no conhecido símbolo anarquista:

“[...] haviam de partir agora, formidavelmente aprestados para a luta, os míseros e mesquinhos servos de ontem, transformados nos homens imperantes de amanhã!” (Botelho 1982: 500).

Para complicar este antagonismo político-social entre classes, germina uma relação amorosa entre Mateus e Adriana, filha do dono da fábrica onde trabalha como contramestre. No fim do enredo, Adriana vai a casa de Mateus para tentar dissuadi-lo dos seus propósitos; contudo, o protagonista, dividido entre o amor e os ideais utópicos, não encontra outra alternativa senão cometer ‑ aparentemente ‑ o suicídio, fazendo rebentar a bomba preparada para o cortejo religioso.

É, na verdade, um final pouco edificante para um herói revolucionário que desejava destruir todos os alicerces sociais, mas sem nunca apresentar uma solução viável. Por sua vez, Mateus era filho de um grande proprietário duriense, arruinado após a abolição dos morgadios e as confiscações miguelistas; a sua revolta não deriva, portanto, de razões altruístas, sendo

50 Revista UBILETRAS n4 apenas por motivos pessoais que vai ganhando um desprezo por toda a espécie de autoridade.

Neste sentido, e ao contrário de Próspero Fortuna, onde é feita a apologia do regime republicano, Amanhã não se apresenta como um romance de tese libertária: Abel Botelho foi sempre um patriota, uma peculiaridade desenquadrada da índole anarquista ou internacionalista, motivo que nos faz regressar à nossa epígrafe inicial, extraída de um artigo escrito em 1895 por Raul Brandão, onde este autor reflecte sobre a ineficácia desta ideologia: “Porque o anarchismo pode mudar as coisas, mas não pode raspar a lepra da alma humana.”

Bibliografia

AAVV (1975). Pequena antologia do anarquismo. Stirner, Bakounine, Kropotkine. Lisboa: Iniciativas Editoriais.

Botelho, Abel (1982). Amanhã. Porto: Lello & Irmão – Editores.

Brandão, Raul (1895). “O anarchismo (conclusão)”, Revista d’Hoje. 2, 7 de Janeiro. 78-82.

Fonseca, Carlos da (1976). História do Movimento Operário e das Ideias Socialistas em Portugal - IV. Mem Martins: Publicações Europa-América. 150-157.

Lorenzo, Anselmo (1984). “A fundação da Internacional em Portugal”, in João Medina, As Conferências do Casino e o Socialismo em Portugal. Lisboa: Publicações Dom Quixote. 179-189.

Moisés, Massaud (1961). A “Patologia social” de Abel Botelho. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.

Neto, Vítor (2000). “Abel Botelho – Quadros de Patologia Social”. Revista de História das Ideias, 21 – História e Literatura. 261-306.

Quental, Antero de (1980). O que é a Internacional. Lisboa: Ulmeiro.

Sá, Victor de (1978). Formação do movimento operário português. Coimbra: Centelha.

Saraiva, António José (1995). “Como e por quem foi fundada a Internacional em Lisboa”, in A Tertúlia Ocidental – estudos sobre Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queiroz e outros. 2ª ed.. Lisboa: Gradiva. 51-60.

O operariado e o anarquismo por António Martins Gomes 51 Valente, Vasco Pulido (1976). O Poder e o Povo: A Revolução de 1910. Lisboa: Publicações Dom Quixote.

Ventura, António (2000). Anarquistas, republicanos e socialistas em Portugal – as convergências possíveis (1892-1910). Lisboa: Edições Cosmos.

Anexos

Figura 1 Figura 2 Abel Botelho Retrato do Escritor Abel Botelho, 1889. por Antonio Ramalho.

Figura 3 “Amanhã” Lello Editores

52 Revista UBILETRAS n4