O Operariado E O Anarquismo Em Amanhã, De Abel Botelho
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O operariado e o anarquismo em Amanhã, de Abel Botelho António Martins Gomes CHC – FCSH [email protected] Resumo O romance Amanhã (1902), de Abel Botelho, tem como tema principal a intensificação da luta do operariado lisboeta, em finais do século XIX, e a sua ação decorre ao longo de sete meses, mais precisamente entre Novembro de1894 e Junho de 1895, o momento das celebrações religiosas levadas a efeito em Lisboa durante o sétimo centenário de Santo António. Amanhã é o romance de uma luta sindicalista e uma obra pioneira na focagem das míseras condições sociais do proletariado, no sentido em que Abel Botelho aborda a questão social no início da difusão da doutrina anarquista no operariado lisboeta, cujos princípios veiculam a dissolução do Estado e o combate a todas as formas de autoridade. Enriquecido pela vasta enumeração de acontecimentos históricos, este romance possui um grande e diversificado valor documental: a implantação do anarquismo no seio do operariado; o crescente recurso às greves; a visita de delegados da Associação Internacional dos Trabalhadores; o desfile de trabalhadores no 1º de Maio de 1895, ao longo dos Restauradores e da Avenida; a procissão comemorativa do centenário de Santo António, ocorrida precisamente a 29 de Junho; ou a preparação de um atentado bombista. O operariado e o anarquismo por António Martins Gomes 41 Palavras-chave Abel Botelho, Amanhã, Operariado Lisboeta, Luta Sindical Abstract The novel Tomorrow (1902), written by Abel Botelho, has the intensification of the struggle of the working class in the late nineteenth century Lisbon as its main theme, and the action takes place over seven months, more precisely from November 1894 to June 1895, a period of religious celebrations carried out in this city during the seventh centenary of Saint Anthony. Tomorrow is a novel about a collectivist fight and it is original in focusing the wretched social conditions of the proletariat, in the sense that Abel Botelho comes up with the social issue in a time when the anarchist doctrine begins to spread around the Portuguese laborers, whose principles convey the dissolution of the State and the fight against all forms of authority. Enriched by a wide listing of historical events, this narrative has a great and diversified importance: the deployment of anarchism within the working class; the increasing recourse to strikes, the visit of delegates from the International Workers’ Association, the parade of workers on the first of May 1895, along Restauradores Square and Avenue, the commemorating procession of Saint Anthony’s centenary, that occurred in 29 June precisely, or the preparation of a bomb attack. Keywords Abel Botelho, Tomorrow (Amanhã), Portuguese workers, syndicalism “Acreditar que a felicidade se resolve por este processo tão simples: a anarchia, isto é – supressão de leis e de organização, ficando só de pé a vontade de cada um, não é resolver o problema social: parece-me que ao contrario é complical-o. [...] Porque o anarchismo pode mudar as coisas, mas não pode raspar a lepra da alma humana.” (Raul Brandão, 1895) Abel Botelho nasce em Tabuaço (1854) e morre em Buenos Aires (1917), onde se encontrava como diplomata da República Portuguesa. A sua obra essencial é publicada entre 1891 e 1910, sendo de destacar os cinco volumes da “Patologia Social”: O Barão de Lavos (1891), O Livro de Alda (1898), Amanhã (1901), Fatal Dilema (1907) e Próspero Fortuna (1910), romance de tese republicana. Filiado na escola naturalista, Abel Botelho nunca foi muito apreciado ou reconhecido no meio literário, uma vez que a sua escrita entra em 42 Revista UBILETRAS n4 conflito com os valores estéticos da burguesia oitocentista, ao expor despudoradamente aspectos repulsivos da sociedade portuguesa, como a decadência e a depravação da aristocracia, o arrivismo político, a pederastia, a prostituição ou a pobreza asquerosa do operariado, temas até aí abafados pela hipocrisia social e pouco explorados pela geração positivista de 70; esta ousadia terá certamente contribuído para que, por relutância ou mero preconceito académico, historiadores e críticos literários tenham, em geral, ignorado os romances de Abel Botelho ou optado mesmo por uma crítica menos positiva. Publicado no início do século XX, o romance Amanhã aborda algumas questões intensamente debatidas na capital portuguesa em finais do século XIX, como a social, a política e a religiosa. Ao reflectir o antagonismo de classes num momento de ascensão do catolicismo e de difusão do anarquismo pelos trabalhadores, esta obra é pioneira na exposição literária das míseras condições sociais do proletariado. Com efeito, o seu conteúdo envolve a intensificação da luta do operariado lisboeta e decorre ao longo dos sete meses de celebrações religiosas que assinalaram o sétimo centenário do nascimento de Santo António: Novembro de 1894 a Junho de 1895. Na década de 90, aumenta a contestação aos efeitos negativos do Ultimato inglês, sendo a sublevação militar de 31 de Janeiro de 1891, no Porto, a tarefa mais radical executada pela “geração activa” do PRP. Em Amanhã, a ficção romanesca converge com os principais eventos históricos ocorridos neste período de profunda depressão económica, documentando a implantação do anarquismo no seio do operariado, o crescente recurso à greve, a visita de delegados da Internacional, o desfile de trabalhadores no 1º de Maio de 1895 entre os Restauradores e o Largo do Rato, a procissão do Centenário Antoniano, ocorrida a 29 de Junho desse ano, ou ainda a preparação de um atentado bombista. O anarquismo, cuja etimologia provém da raiz grega an (sem) e arkhê (governo), é uma corrente de pensamento socialista que veicula a dissolução do Estado, o combate à autoridade civil e religiosa, e a construção de uma sociedade sem leis. As suas diversas vertentes – seja libertarismo, socialismo libertário ou anarco-sindicalismo – têm ainda em comum a luta pela abolição das desigualdades sociais e pela transformação da economia privada numa nova ordem em que os meios de produção serão controlados pelo operariado. Ao longo da História, socialistas libertários como Godwin, Proudhon, Bakounine e Kropotkine, aludem ao poder do Estado como o principal motivo de perpetuação da desigualdade social. Em Qu’est-ce que la proprieté? (1840), Proudhon utiliza pela primeira vez a palavra “anarquia” para denominar um modelo de sociedade mutualista, sem a tutela estatal. O operariado e o anarquismo por António Martins Gomes 43 É precisamente por via da obra de Proudhon, autor referenciado em Amanhã, que são divulgadas as primeiras ideias anarquistas em Portugal, visando criar melhores condições humanas para os trabalhadores através da união em cooperativas e federações; um dos órgãos promotores do associativismo é O Eco dos Operários, fundado em 1850. Um ano após a criação da Associação Internacional dos Trabalhadores, o Catecismo Revolucionário de Mikhail Bakounine salienta que a força laboral é a forma mais eficaz de evolução civilizacional e de libertação do homem: “O trabalho é a base fundamental da dignidade e do direito humano. Pois é unicamente pelo trabalho livre e inteligente que o homem, tornando-se por sua vez criador e conquistador sobre o mundo exterior e sobre a sua própria bestialidade, humanidade e direito, cria o mundo civilizado.” (1865) Em 1871, o ano da Comuna de Paris e das Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, Antero de Quental expõe as ideias essenciais da Internacional num texto decisivo para a consolidação do socialismo em Portugal, enfatizando igualmente o trabalho e a luta de classes: “Há, efectivamente, um grande combate travado; há dois exércitos e duas bandeiras inimigas: dum lado o Trabalho, do outro o Capital: dum lado aqueles que, trabalhando, produzem; do outro lado, aqueles que, sem esforço, e só porque monopolizaram os instrumentos do trabalho, terras, fábricas, dinheiro, vivem da pesada contribuição que impõem a quem, para produzir e viver, precisa daqueles instrumentos, daquele capital” (Quental, 1980: 9). Um outro autor referido nesta obra é José Fontana, considerado o primeiro doutrinador do movimento operário em Portugal. Imbuído do espírito da Internacional e inspirado em Bakounine, forma as bases da resistência operária, convoca greves e organiza as primeiras manifestações do 1º de Maio. Em 1872, promove a criação da Associação Fraternidade Operária. Mateus, o operário protagonista de Amanhã, tem o seu retrato na parede do seu quarto, ao lado do de Kropotkine, e chega a tecer algumas considerações elogiosas a propósito da missão evangelizadora deste grande ideólogo: “Pois José Fontana […] viu o espectáculo doloroso da miserável inércia do nosso povo e tremeu de indignação, consumiu-se de piedade. Quase simultaneamente, o estrondear do canhão nas ruas de Paris, os paroxismos iconoclastas da Internacional, anunciavam ao proletariado de todo o mundo que havia soado a hora de ele impor a sua vontade, de fazer ouvir dominadoramente a sua voz. E então José Fontana foi o arrojado clarim da Ideia nova em Portugal. Veio soletrar- nos o novo Verbo” (Botelho 1982, 456). 44 Revista UBILETRAS n4 Em 1886, a visita de Elisée Reclus vem estimular a fundação de algumas associações anarquistas, a publicação do primeiro jornal, A Revolução Social, e a edição de obras como A Anarquia na Evolução Socialista, de Kropotkine. No final do século XIX, o pensamento libertário é já difundido por várias publicações periódicas: A Revolta (1892), A Propaganda (1894), O Agitador, Grito de Revolta e O Lutador (1895). Ao longo dos vinte e três capítulos de Amanhã, o narrador referencia um vasto número de autores, dado que muitas das suas obras teóricas foram sendo acumuladas, ao longo dos anos, na “rica biblioteca profissional” de Mateus, um autodidacta amante de livros e ávido de conhecimentos desta doutrina política, social e económica: “[...] em suma, um curso perfeito de iniciação, o foral completo da doutrina comunista-anarquista, trazida desde a origem na sua evolução vertiginosa – estremecido tesouro que o Mateus, durante anos, sistematicamente amontoara, com uma paciência, uma isenção e uma porfia inarráveis, tirando muitas vezes ao vestuário e ao sustento para poder acrescentá-lo” (Botelho 1982, 194).