Monitoramento independente para registro de impactos da UHE Belo Monte no XINGU, território e no modo de vida do povo Juruna (Yudjá) da Volta o rio que pulsa em nós Grande do Xingu

Agencia Brasilia do ISBN ISBN 978-85-8226-068-5

9 788582 260685

XINGU, o rio que pulsa em nós

Monitoramento independente para registro de impactos da UHE Belo Monte no território e no modo de vida do povo Juruna (Yudjá) da Volta Grande do Xingu

Juarez Pezzuti Cristiane Carneiro Thais Mantovanelli Biviany Rojas Garzón

1ª Edição Altamira (Pará), 2018 O Instituto Socioambiental (ISA) é uma Equipe do Programa Xingu Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), fundada em 22 de abril de Coordenador: 1994, por pessoas com formação e experiência Rodrigo Gravina Prates Junqueira marcantes na luta por direitos sociais e Coordenador adjunto / Terra do Meio - ambientais. Tem como objetivo defender bens Altamira: Marcelo Salazar e direitos coletivos e difusos, relativos ao meio Coordenador adjunto / Território Indígena ambiente, ao patrimônio cultural, aos direitos do Xingu: Paulo Junqueira humanos e dos povos. O ISA produz estudos e pesquisas, implanta projetos e programas que Terra do Meio - Altamira promovam a sustentabilidade socioambiental, Ana De Francesco, Augusto Postigo, Clara valorizando a diversidade cultural e biológica Bezerra de Menezes Baitello, Edione de Sousa do país. Goveia, Fabiola Andressa Moreira da Silva, Maria Augusta M. Rodrigues Torres (Guta), Marllisson www.socioambiental.org Eriques Araujo Borges, Roberto Rezende, Thais Mantovanelli, Victor Cabreira Lima Conselho Diretor: Jurandir M. Craveiro Jr. (presidente), Tony Território Indígena do Xingu Gross (vice-presidente), Geraldo Andrello, Adryan Nascimento, Aline Ferragutti, André Marcio Santilli, Marina Kahn e Neide Esterci Villas-Bôas, Dannyel Sá, Fábio Moreira, Fabrício Secretário executivo: Amaral Rodrigues, Ivã Bocchini, Karina Araujo, André Villas-Bôas Kátia Ono, Maria Beatriz Monteiro, Manuela Sturlini, Marcelo Martins, Renato Mendonça, Endereços do ISA Renato Nestlehner

São Paulo (sede) Adequação Socioambiental Av. Higienópolis, 901 Ângela Oster, Bruna Dayanna Ferreira, Daniela 01238-001, São Paulo (SP) Jorge de Paula, Eduardo Malta Campos Filho, Tel: (11) 3515-8900 / fax: (11) 3515-8904 Guilherme Henrique Pompiano do Carmo, [email protected] Heber Queiroz Alves, Junior Micolino da Veiga, Valter Hiron da Silva Junior Altamira Coronel José Porfírio, 3466 Proteção e Direitos Territoriais 68372-235, Altamira (PA) Biviany Rojas, Carolina Piwowarczyc Reis, Tel: (93) 3515-5749 Juan Doblas Prieto, Rafael Espíndola Andrade, [email protected] Ricardo Abad

Canarana Núcleo Administrativo, Financeiro Av. São Paulo, 202 e Logística 78640-000, Canarana (MT) Altamira: Benedito Alzeni Bento (Nim), Luiz Tel: (66) 3478-3491 Augusto Nery Pessoa, Maria Euda de Andrade e [email protected] Rita de Cássia Chagas da Silva Canarana: Cleudemir Peixoto (Cleu), Erica Brasília Ieglli, Flavia Costa da Motta Nestlehner e Sadi SCLN 210, Bloco C, Sala 112, Asa Norte Eisenbach 70862-530, Brasília (DF) São Paulo: Eric Deblire e Tathiana Lopes Tel: (61) 3035-5114 / fax: (61) 3035-5121 [email protected] Comunicação: Isabel Harari

2 SUMÁRIO

6 0 Apresentação

Modo de vida Juruna (Yudjá) e as 9 1 transformações após Belo Monte

Hidrograma de consenso ou 16 2 hidrograma de conflito?

As frutas estão caindo no seco: 26 dinâmicas da pesca e segurança 3 alimentar na Volta Grande do Xingu

44 O fim do mundo 4 que conhecemos

3 realização ©Xingu, o rio que pulsa em nós Monitoramento independente para registro de impactos da UHE Belo Monte no território e no modo de vida do povo Juruna (Yudjá) da Volta Grande do Xingu

Autores: Juarez Pezzuti, Cristiane Carneiro, Thais Mantovanelli, Biviany Rojas Garzón apoio Edição de texto: Natalia Ribas Guerrero e Isabel Harari

Pesquisadores: Jailson Jacinto Pereira Juruna, Pedro Viana, Josiel Jacinto Pereira Juruna, Gelson Paiva Feitosa, Tilim Arara, Natanael Pereira, Gilliarde Jacinto Pereira Juruna, Leiliane Jacinto Pereira Juruna, Nelsiane Jacinto Pereira Juruna, José Felix Juruna, Raimundo Pereira dos Santos Juruna, Wellington Chipaia, Agostinho Pereira da Silva Juruna, Anderson Sampaio da Silva, Nei Juruna, Michael Juruna, Marlon Chipaia Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Projeto gráfico e diagramação: (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Grande Circular www.grandecircular.com Xingu, o rio que pulsa em nós : monitoramento independente para registro de impactos da UHE Belo Monte no território Ilustrações: e no modo de vida do povo Juruna (Yudjá) da Volta Grande Adams Carvalho e Olivia Beatriz Moraes do Xingu / Juarez Pezzuti...[et al.]. -- 1. ed. -- São Paulo : Dias de Aguiar Instituto Socioambiental, 2018.

Mapas: Outros autores: Cristiane Carneiro, Thais Juan Doblas e Ricardo Abad Mantovanelli, Biviany Rojas Garzón. Vários colaboradores. ISBN 978-85-8226-068-5

1. Impacto ambiental 2. Índios Juruna - Usos e costumes 3. Pesca - Monitoramento 4. Povos indígenas - Volta Grande do Xingu (PA) - Territórios 5. Recursos naturais - Conservação - Xingu, Rio 6. Usina Hidrelética de Belo Monte 7. Vida ribeirinha - Volta Grande do Xingu (PA) I. Pezzuti, Juarez. II. C arneiro, Cristiane. III. Mantovanelli, Thais. IV. Rojas Garzón, Biviany.

18-18879 CDD-304.2098115

Índices para catálogo sistemático: 1. Pará : Volta Grande do Xingu : Hidrelétrica de Belo Monte e os Juruna : Impactos socioambientais 304.2098115

Maria Paula C. Riyuzo - Bibliotecária - CRB-8/7639 4 “Nossa intenção é que nosso monitoramento ajude-nos a mostrar quem somos e como vivemos, que mostre a situação de nossa vida e de nosso território. [...] Estamos aqui falando sobre a situação de nosso território, a situação da Volta Grande do Xingu, o berço de nosso povo. Nosso monitoramento é nossa arma para defender a vida de nosso povo e das espécies de animais e plantas da nossa região.”

Natanael Juruna, da aldeia Mïratu

5 APRESENTAÇÃO os processos de licenciamento e Os resultados aqui publicados são produ- construção de grandes usinas hi- to de cinco anos de trabalho conjunto entre drelétricas, é recorrente uma queda pesquisadores de diversas áreas de conheci- Nde braço, sempre desleal, entre os mento e as famílias Juruna (Yudjá) da aldeia argumentos que priorizam as vantagens eco- Mïratu da Terra Indígena (TI) Paquiçamba, nômicas dos megaempreendimentos e os es- com apoio do Instituto Socioambiental (ISA). forços de se evidenciarem seus impactos so- O objetivo da parceria foi construir, de forma cioambientais, normalmente referidos como independente da Norte Energia S.A., empre- um “mal necessário” ao desenvolvimento do sa concessionária da UHE Belo Monte, uma país. Assentada em uma desigualdade de po- imagem da Volta Grande do Xingu que par- der, essa forma de tratar a questão acaba por tisse da pesca, atividade que mais preocupa dar mais espaço, no debate público, a uma os Juruna (Yudjá) desde a chegada da usina, visão que tende a minimizar ou invisibilizar para descrever a região e as relações huma- danos a territórios e populações locais. nas e ecossistêmicas que ali se encontram. A construção da usina hidrelétrica (UHE) É claro para os Juruna (Yudjá) que a im- Belo Monte, no município de Altamira, no portância de se produzirem dados indepen- Pará, tem infelizmente seguido esse roteiro dentes vem da necessidade de informação de à risca. Desde seu planejamento e primeiras qualidade, obtida de forma ao mesmo tempo tentativas de implantação, ainda na década de rigorosa e transparente, para se poder avaliar 1970, até sua construção efetiva, na década de com autonomia as mudanças que o empreen- 2010, não faltaram formas de despolitizar os dimento traz para o rio, para os peixes e para efeitos negativos dos impactos a diversas po- o povo como um todo. pulações, em nome de cálculos que priorizam Dado que a pesca e a vida no Xingu são a produção energética como imprescindível constituintes da própria identidade Juruna para o fortalecimento econômico nacional. (Yudjá), o monitoramento dessa atividade Frente a essa situação, um dos povos foi apenas o eixo que articulou uma refle- indígenas impactados buscou uma estratégia xão mais profunda, sobre a magnitude das diferente na queda de braço com esse discur- mudanças promovidas pelo empreendimen- so predominante. O povo Juruna (ou Yudjá, to e a distribuição real de seus prejuízos, como também se autodenominam) da aldeia tanto para os Juruna (Yudjá) como para seus Mïratu, situada na Volta Grande do Xingu, tem vizinhos, o povo Arara da TI Arara da Volta se engajado desde 2013 na realização de um Grande do Xingu e as centenas de ribeiri- monitoramento, de caráter independente, para nhos que vivem na região. registrar os impactos socioambientais da UHE Com a publicação dos resultados des- Belo Monte a seu povo e a seu território. O en- se monitoramento, espera-se qualificar e gajamento demonstra a relação intrínseca dos ampliar os espaços de decisão sobre o futu- Juruna (Yudjá) com o rio Xingu e sua dispo- ro de tudo e todos que estão envolvidos na sição aguerrida para defendê-lo, com base em região da Volta Grande Xingu. É uma ação de dados e reflexões pertinentes sobre os atuais e resistência contra as tentativas de esvazia- futuros impactos do barramento do rio. mento simbólico do território, promovidas

7 Casa de Força da UHE Belo Monte EMPREENDIMENTOS QUE IMPACTAM A VOLTA GRANDE DO XINGU

ALTAMIRA BR 230 Área Influência Direta (AID) Belo Monte

Área Influência Direta (AID) Belo Sun

Área Influência Indireta (AII) Belo Sun

Trecho de Vazão Reduzida (aprox.)

Reservatório Planejado Belo Monte (cota 97)

Estradas Principais- BR 230

Barragem Principal Rotas de Navegação Indígena RIO XINGU Da UHE Belo Monte 9,5 km Comunidade Rural na AID Belo Monte Ilha da Fazenda Aldeia Indígena Ressaca

PROJETO BELO SUN Garimpo TI Paquiçamba do Galo TI Arara da Volta Grande km do Xingu 0 5 10 15 20

pela empresa concessionária, quando reno- que a concessionária seja obrigada a garantir a meia a Volta Grande do Xingu como “trecho passagem de uma vazão mínima de água nos de vazão reduzida”, ou simplesmente TVR da cerca de 100 km que correspondem à região UHE Belo Monte. Essa conversão é, para o da Volta Grande do Xingu. A qualificação do empreendimento, de extrema importância, debate sobre essa vazão mínima, levando-se pois se liga a uma afirmação bastante divul- em consideração extensos conhecimentos tra- gada durante o processo de licenciamento: dicionais Juruna (Yudjá) sobre o rio, é um dos nenhuma Terra Indígena seria alagada para objetivos do material aqui apresentado. construção da usina. Por fim, é importante ressaltar que a TI O problema com essa afirmação é que ela Paquiçamba e a TI Arara, bem como áreas desvia a atenção de graves processos decor- ocupadas por famílias ribeirinhas, encon- rentes do desenho do projeto. Em novembro tram-se englobadas pela Área de Afetação de 2015, o rio Xingu foi definitivamente Direta (ADA) estabelecida pelo empreendi- barrado e desviado da região da Volta Grande, mento, o que na prática significa que esses restando nela uma vazão residual de água territórios foram incorporados ao escopo controlada pela concessionária da barragem. territorial da engenharia da usina, que con- Entre as duas Terras Indígenas pela qual o siste em dois reservatórios (Xingu e inter- rio passa nesse trecho, a TI Paquiçamba e a mediário), duas barragens (Pimental e Belo TI Arara da Volta Grande, a diminuição da Monte), um canal de derivação e o trecho vazão natural chega a 80%. composto pela Volta Grande. Disso decorre a Desde 2015, portanto, a quantidade, velo- inegável responsabilidade da concessionária cidade e nível da água na região não derivam em relação a impactos significativos e irre- mais do fluxo natural do rio, mas dependem versíveis para povos indígenas e ribeirinhos da operadora da UHE Belo Monte. Nesse sen- que se negam a transformar em uma sigla tido, o licenciamento ambiental determinou burocrática seus territórios de vida.

8 MODO DE VIDA 1 JURUNA (YUDJÁ) E AS TRANSFORMAÇÕES APÓS BELO MONTE “Nós somos daqui, estamos falando da Volta Grande do Xingu. Nosso povo é da Volta Grande do Xingu. Daqui surgimos e aqui estamos. Aqui é nossa região. Nosso povo e a Volta Grande do Xingu merecemos mais respeito.”

Gilliarde Juruna, cacique da aldeia Mïratu oi por um sopro. Assim se criou a lutar para a garantia de seu território e para a Volta Grande do Xingu, as cachoeiras manutenção de seu modo de vida. O fio dessa do Jericoá e o próprio povo Juruna luta envolve desde os massacres ocorridos em F(Yudjá), fruto da ação do demiurgo Se- conflitos fundiários e pressões territoriais de nã’ã, no início dos tempos. Das pegadas dos fazendeiros até, mais recentemente, a batalha primeiros humanos, outros sopros fizeram contra os graves efeitos da usina hidrelétrica surgir mais e mais pessoas, que povoaram (UHE) Belo Monte. aquela região do Xingu. Essas narrativas míticas, que mostram a Eu mesmo nasci e me criei aqui. Meu origem do povo Juruna (Yudjá) juntamente pai, Fortunado, nasceu na Maloca, a com a origem do próprio rio, são importantes localidade onde o finado Muratu morreu. reflexões ontológicas desse povo que seguem Até hoje o corpo dele [de Muratu] está contadas pelos homens mais velhos às pesso- enterrado na ilha. as nas aldeias1. A referência mítica da existência com- Nessa época, os brancos queriam nos partilhada do povo Juruna (Yudjá) com o matar, acho que por perversidade mesmo. rio Xingu, especialmente na região da Volta Uma parte de nosso povo fugiu e depois Grande e das cachoeiras do Jericoá, é tam- alguns voltaram para buscar meu pai bém a experiência histórica desse povo com e os outros que ficaram aqui, mas não o território. Canoeiro, o povo Juruna (Yudjá) encontraram mais ninguém. Pensaram estabeleceu-se na região deslocando-se pelas que todos já tinham morrido, quando ilhas, onde fixavam suas aldeias. Com a che- na verdade os que ficaram estavam gada dos não indígenas à região de Altamira, escondidos nas ilhas. os Juruna (Yudjá) passaram por severos ata- ques visando ao deslocamento compulsório Mesmo com todos os problemas, fui criado de seu território e ensejando uma perversa com muita fartura, muito peixe com depopulação, particularmente em meados farinha e óleo de coco babaçu. Hoje, nossa dos anos 1930. fartura diminuiu. Agora, temos a nossa Parte do grupo decidiu, então, migrar. Sa- terra, mas ela está toda varada por estrada íram com suas canoas para a montante do rio e sem fiscalização. Isso me preocupa. Xingu, estabelecendo-se ao fim de uma longa jornada no Território Indígena do Xingu (TIX), Antes tínhamos na região grande fartura anteriormente conhecido como Parque Indíge- de castanha, que não existe mais porque os 1. Para mais informações na do Xingu. Outra parte, entretanto, manteve- fazendeiros acabaram com tudo. A Funai sobre narrativas míticas e -se no território, nela incluso o grupo do chefe [Fundação Nacional do Índio] ajudou a concepções ontológicas do povo Juruna (Yudjá), cf. LIMA, Muratu, importante personagem que marca a gente, mas agora parece que ela se acabou Tânia Stolze. Um peixe descendência dos Juruna (Yudjá) que permane- e que só temos a Norte Energia. Mas, olhou pra mim: o povo Yudjá ceram na região da Volta Grande do Xingu. sinceramente, essa Norte Energia não tem e a perspectiva. São Paulo: Essa parte do grupo que não subiu o rio nada a ver com nós. Editora Unesp, 2005. considera-se um povo sofrido, que precisou

11 Eu me lembro da época que Altamira só Os velhos daqui não sabiam onde era tinha o Porto Seis, uma casinha aqui e o lugar que estavam os parentes que outra acolá. De Belém para cá, tudo eram saíram daqui. Todo mundo pensava que terras dos Juruna. Altamira era aldeia era muito longe. Daí alguns velhos foram Juruna. Eu era menino grande e nessa lá no TIX [Território Indígena do Xingu, época nosso trabalho era com castanha situado mais próximo às cabeceiras do no inverno e com seringa no verão². Na rio, no estado de Mato Grosso] e viram época da demarcação [da Terra Indígena que a cultura estava viva lá. (TI) Paquiçamba], eu e Manoel fomos ameaçados, por isso concordamos com Nós contamos para os parentes o que uma demarcação pequena. aconteceu com a gente. Contamos que minha avó não podia falar na Mesmo assim, nessa época, a fartura de língua [indígena] e foi obrigada a falar peixes era enorme. Hoje em dia os peixes só português. Nossa amizade com não estão bons para gente comer, ele não os parentes de lá cresceu muito. Tem amolece, é um peixe, assim, estranho. As família lá que é do ramo do Muratu, sou frutas estão caindo no seco depois da considerado um irmão para essa família, barragem. Os peixes, como o pacu, não meu nome lá é Txanqui. conseguem mais se alimentar. Eu mesmo sempre morei aqui. Sempre Eu tenho medo dessa água do rio, medo fiquei aqui. Eu caçava e pescava com de ela estar contaminada. Eu nem sei se meu pai, nem tive essa vivência de ir estão fazendo as análises da água. Isso é para escola. Eu nunca neguei minha o impacto que teve, muito mesmo, e ainda origem. Eu sempre disse que eu era índio. hoje tem demais. Essa barragem de Belo Somos um povo canoeiro, isso é o que Monte foi briga por riba de briga. Hoje em nós somos. dia, a luta ainda é grande demais. Agora, estamos com esse Clarissa Morgenroth empreendimento na nossa casa, no nosso quintal. Agora estamos vendo o Xingu virar um rio de sangue. Aqui na Volta Grande estão os antepassados dos Juruna Yudjá, os cemitérios desses nossos antepassados. O pessoal que foi para o TIX segurou a cultura, nós seguramos nosso território tradicional.

Todd Southgate

Seu Edilson Juruna, da aldeia Furo Seco

Resistência é, portanto, o conceito mais ade- 2. Verão e inverno quado para definir o modo de permanência do correspondem na Amazônia, povo Juruna (Yudjá) na região da Volta Grande de modo geral, aos períodos do ano marcados pela do Xingu. Frente às ameaças mais diversas, para estiagem ou pelas chuvas, poder seguir em seu território tradicional, essas respectivamente. pessoas desenvolveram poderosas estratégias de sobrevivência, tanto do ponto de vista mítico Gilliarde Juruna, cacique da aldeia Mïratu quanto do ponto de vista histórico.

12 Os impactos do barramento do Xingu e da A aflição de dona Jandira é um exemplo. iminente inauguração do esquema hidroló- Certa tarde, a senhora indígena, duas de gico que determina a vazão mínima operada suas filhas e uma de suas noras descascavam pela concessionária da usina, e que foi esta- milho para assar. As crianças brincavam no belecido sem pactuação social no processo entorno da área externa da casa e, em dado de licenciamento, à revelia das evidências momento, saíram da vista das mulheres. científicas e do presente monitoramento de Ao se dar conta, dona Jandira transtornou- caráter independente, ameaçam diminuir a -se: “Cadê esses meninos? Hoje em dia não diversidade local, com o possível desapare- podemos mais deixar os meninos à vontade, cimento de animais, biomas e plantas. Essa porque temos medo de acontecer alguma coi- diversidade da Volta Grande depende da sa com eles. Ficamos vigiando para eles não sazonalidade e do sincronismo dos regimes irem mais para o rio”, lamenta. de e enchente do rio Xingu para sua sobrevivência e manutenção dos modos de O rio agora é uma ameaça, por causa vida das populações locais. dessa situação da vazão e da maré. O alerta dos Juruna (Yudjá) é de que os Imagine se as crianças estiverem nadando impactos da barragem podem comprometer quando liberarem água? Não gosto nem de a existência da Volta Grande do Xingu em pensar nisso. um sentido muito mais amplo, de modo que a UHE Belo Monte não se afiguraria apenas Por isso que agora nós não deixamos mais como tragédia ecológica ou socioambiental, os meninos irem banhar no rio. Muito triste mas efetivamente algo que reverbera em toda essa situação, porque minhas crianças a cosmologia e história dos povos Juruna todas se criaram nadando do Xingu. Agora (Yudjá), seja os que permaneceram na Volta temos que afastar as crianças da água Grande do Xingu, seja os que se deslocaram para a segurança delas. para o TIX, no Mato Grosso. Isabel Harari

O rio se torna estranho: os impactos cotidianos

As mudanças no modo de vida do povo Juruna (Yudjá) frente aos impactos da UHE Belo Monte têm sido pouco discutidas pelos órgãos licenciadores do empreendimento, ainda que sejam um importante aspecto a ser acompanhado, segundo uma série de parece- res técnicos. O monitoramento independente Dona Jandira, da aldeia Mïratu da dinâmica da pesca, apresentado mais adiante nesta publicação, quantifica alguns eixos dessas alterações. Entretanto, algumas formas de se prejudi- car o modo de vida de um povo são mais difí- ceis de se expressar em termos quantitativos. Tão importantes quanto a ameaça à sobera- nia alimentar, essas transformações mere- cem reconhecimento como parte significativa dos impactos do licenciamento e construção de Belo Monte.

13 Algumas espigas já estavam sendo colo- Há também a percepção da ineficácia que cadas nas panelas e na brasa quando os dois caracteriza essa nova vida como agenda im- meninos retornaram. Eles chegam molhados, posta pelo advento de Belo Monte. Em geral, com as mãos escondidas atrás das costas. as expectativas das pessoas ao se engajarem “Olha, mãe, o que eu pesquei pra você”, dizem em uma reunião ou produção documental os dois, ao mesmo tempo, enquanto mos- são frustradas quando suas demandas não tram dois recipientes de plástico com alguns são levadas adiante. As pessoas sentem que o peixinhos. Emocionadas, ambas tomaram tempo de suas vidas está sendo desperdiça- nas mãos o recipiente com os peixes, abraça- do, considerado como algo sem valor para a ram os filhos molhados e os incentivaram a empresa concessionária da hidrelétrica. “Essa ir brincar. Bel Juruna, filha de dona Jandira, barragem está acabando com a vida da gente”, comentou com pesar: “Como é que eu posso afirma dona Dinã Juruna. “A vida de nada nem proibir esse menino de estar banhando no de ninguém importa mais. O que vale agora rio? Estar no rio é a coisa que ele mais gosta parecem ser só os papéis dos documentos.” de fazer, assim como eu, quando era meni- na, assim como meus irmãos e irmãs, assim Minha palavra, a palavra das pessoas, não como todas essas crianças daqui”. vale mais nada. Agora, me diz: por acaso é documento que anda, fala e come? Pode Nunca pensei que estaria viva para ver um documento valer mais que uma vida?

esse rio se tornar uma ameaça na vida de Thais Mantovanelli uma criança.

Todd Southgate

Dona Dinã Juruna, da aldeia Mïratu

Bel Juruna, da aldeia Mïratu Outro importante eixo de mudança no modo de vida vincula-se à questão da navega- Além do rio passar a ser pensado como um bilidade após o barramento do rio e o trajeto perigo à vida das crianças, outro importante obrigatório pelo sistema de transposição de impacto no modo de vida do povo Juruna (Yud- embarcações, o STE, uma estrutura voltada já) da Volta Grande do Xingu, provocado por a operacionalizar a passagem pela barragem Belo Monte, é a inauguração da vida como uma de Pimental, com veículos destinados ao agenda de reuniões e documentos. A necessida- transporte de passageiros e embarcações pelo de de participação em uma série de encontros, trecho em terra. voltados à discussão e à busca de soluções para “Antes dessa barragem o rio era livre, nós os problemas atualmente enfrentados, gera o éramos livres. Nós íamos e vínhamos pelo problema da vida como uma agenda de eventos, rio”, explica dona Graça. “Agora temos que que implicam cálculos de tempo a se destinar passar por aquele monstro de concreto, todo para essas atividades, que antes não constituí- aquele cimento no meio do rio. Além disso, am parte do cotidiano das famílias. tem os funcionários de lá, que ficam fazendo

14 perguntas para a gente. Eu mesma me recuso Por fim, é importante considerar o medo a responder, porque ninguém tem nada a ver que atualmente assola a vida do povo Juruna com a minha vida.” (Yudjá) da TI Paquiçamba com relação a seu Nas travessias pelo rio, em especial quando futuro, o futuro de seus filhos, filhas, netos, se precisa ir a Altamira, outros fatores somam- netas, sobrinhos, sobrinhas, o futuro da pró- -se aos transtornos causados pelo STE. Um pria Volta Grande do Xingu. deles é a alteração da paisagem da Volta Grande do Xingu, com a morte da vegetação herbácea Em 2016, vimos com tristeza o que e arbustiva característica da beira do rio, a cha- aconteceu com as tracajás por causa mada saroba. Outra é o risco de naufrágio no da seca da Volta Grande do Xingu. Elas reservatório, mais propenso a agitações impre- ficaram magras e fracas. Elas estavam vistas do rio, os banzeiros, fazendo da navegação mortas-vivas quando as encontrávamos. uma atividade que oferece risco de morte. Podres-vivas e cheias de espuma por dentro. Uma tristeza. Eu choro todas as vezes que navego para Altamira. Nosso medo maior é a Volta Grande do Xingu virar um cemitério, e nós Juruna Choro quando vejo as sarobas, morrendo não conseguirmos mais viver aqui no de um lado da barragem, as tracajás nosso território. magras, podres-vivas. E choro quando vejo, do outro lado da barragem, aquele Bel Juruna, da aldeia Mïratu mundaréu de água cobrindo toda as ilhas, as árvores no fundo daquele banzeiro.

Aquilo me dá tanto medo, tenho medo de morrer ali naquele lago imenso, morrer como as árvores morreram. O rio agora é controlado por máquinas. Estamos agora vivendo o tempo das marés.

O Xingu está bagunçado. Os peixes estão perdidos e nós também estamos perdidos. Nossa vida bagunçou para sempre.

Clarissa Morgenroth

Dona Graça, da aldeia Mïratu

15 HIDROGRAMA 2 DE CONSENSO OU HIDROGRAMA DE CONFLITO?

16 principal medida de mitigação apresentação dos estudos de Belo Monte, a proposta pela empresa concessio- Agência Nacional de Águas (ANA) aprovou a nária da usina hidrelétrica (UHE) proposta de hidrograma da Eletronorte, por ABelo Monte para os efeitos adversos meio da Resolução n° 740/2009, sem sequer decorrentes da extrema redução de vazão da esperar a conclusão do parecer técnico do área da Volta Grande do Xingu é o chamado Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos hidrograma de consenso. Seu objetivo é repro- Recursos Naturais Renováveis (Ibama) sobre duzir artificialmente, na medida do possível, a viabilidade ambiental do empreendimento, o pulso sazonal de cheias e secas que caracte- ou mesmo as audiências públicas marcadas riza as vazões naturais do rio Xingu. Trata-se, para aquele mesmo mês. em resumo, de um esquema hidrológico que Segundo a ANA, o plano apresentado à estipula as quantidades mínimas de água que época conciliava minimamente três condições precisariam passar pela Volta Grande para de sustentabilidade ecológica e social: a garan- garantir a sustentabilidade socioambiental tia da navegabilidade do trecho, o alagamento da região. anual das áreas de pedrais e, a cada dois anos, O hidrograma atualmente vigente tem o alagamento das planícies. Assim, o hidrogra- sua origem no Estudo de Impacto Ambiental ma foi definido sobre três premissas: (EIA) do empreendimento, anunciado como solução para conciliar a geração de energia, 1. É minimamente necessária uma vazão a quantidade de água indispensável para as de 700 metros cúbicos por segundo funções ecológicas da região e a manuten- (m³/s) durante os meses de seca para ção das condições de navegabilidade do rio garantir as condições de navegabilidade Xingu. Segundo a Eletronorte, empresa que do trecho da Volta Grande; realizou os primeiros estudos para apro- veitamento hidrelétrico em Belo Monte, “o 2. É minimamente necessária uma va- hidrograma ecológico proposto, portanto, é zão de 4.000 m³/s durante a época da fruto de um compromisso, ou trade-off, entre enchente, para garantir o alagamento de dois usos conflitantes”3. pedrais pelo menos uma vez por ano; É por essa ideia de conciliação de usos que a Eletronorte justifica a designação da pro- 3. É minimamente necessária uma vazão posta como hidrograma “de consenso”, ou HC. de 8.000 m³/s durante os meses de Contudo, esse termo transmite a falsa impres- cheia, para garantir o alagamento de são de que se trata do resultado de um acordo parte das planícies pelo menos uma vez entre os atores que disputam usos excludentes a cada dois anos. dos recursos hídricos do rio Xingu, quando, 3. Brasil, Ministério do na verdade, fala-se de uma definição feita As demais vazões definidas para o hidro- Meio Ambiente, Agência entre o empreededor e o governo, em torno da grama foram estabelecidas a partir desses Nacional de Águas. Gerência de Regulação de Uso. Nota qual não houve qualquer pactuação social. valores, com volumes mensais mínimos de Técnica n° 129/2009/ Em outubro de 2009, enquanto ainda água de forma a permitir uma transição gra- GEREG/SOF-ANA. Brasília, se realizavam as audiências públicas para dual dos períodos de seca e de cheia. 2009.

17 Tabela 1: Vazões médias no trecho de vazão reduzida (TRV), em m³/s:

Hidrograma Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez A 1100 1600 2500 4000 1800 1200 1000 900 750 700 800 900

B 1100 1600 4000 8000 4000 2000 1200 900 750 700 800 900

Fonte: Brasil, Ministério do Meio Ambiente, Agência Nacional de Águas. Resolução n° 740, de 06 de outubro de 2009. Anexo III.

Com isso, a implementação da proposta e flora seriamente em risco de extinção, consiste na alternância de dois planos para a assim como ameaça a permanência de povos época de cheia, o hidrograma A, que garante indígenas e ribeirinhos na região. minimamente uma vazão média mensal de O órgão ambiental lembrou ainda que 4.000 m³/s, e o hidrograma B, que deve asse- os índices de 4.000 m³/s e 8.000 m³/s como gurar uma vazão média mensal de no míni- referências de vazão para a época da cheia mo 8.000 m³/s. O rodízio dos dois esquemas são significativamente inferiores às vazões é feito de forma anual, como indicado na históricas do rio Xingu para esse período, e tabela 1. que não há nenhuma garantia de que a fauna Esse planejamento pretende se sus- aquática e as florestas aluviais consigam tentar com base no argumento de que a resistir no curto e médio prazo ao estresse Volta Grande do Xingu e seus habitantes hídrico proposto. No documento, afirma-se poderiam passar por um ano de estresse que a cheia média anual do rio Xingu é da severo durante a época da cheia recebendo ordem de 23.000 m³/s no mês de abril, e que minimamente 4.000 m³/s, desde que no ano a menor vazão de cheia registrada na região seguinte fosse liberada uma vazão de 8.000 foi de 12.627 m³/s, ou seja, cerca de 58% maior m³/s, que se presume suficiente para recu- que os 8.000 m³/s, o melhor cenário propos- perar os danos do ano anterior e garantir a to para a mesma época . reprodução das funções ecológicas da época Adicionalmente, o parecer do Ibama da cheia. destaca evidências científicas que compro- Tal pressuposto é abertamente ques- vam que algumas espécies de fauna aquática, tionado pelo próprio Ibama, em parecer como quelônios, só conseguem se alimentar e técnico anterior à emissão da licença prévia se reproduzir com vazões mínimas de 13.000 da usina, e claramente negado pelo monito- m³/s durante os meses de cheia do rio5: ramento independente dos Juruna (Yudjá), como veremos no capítulo a seguir, com Conforme o EIA, a área do TVR [trecho de relação à magnitude dos danos ecológicos e vazão reduzida] é dita como a que sofrerá sociais derivados da redução da vazão natu- o maior impacto negativo, principalmente ral do rio, que chega a 80% da vazão históri- sobre P. unifilis [tracajá], sendo que o ca do rio Xingu. Hidrograma proposto deverá levar em Em análise técnica do Ibama sobre o conta em sua avaliação a viabilidade do 4. Brasil, Ministério do EIA4, de 2009, os analistas do órgão deixam alagamento para a entrada dos animais Meio Ambiente, Instituto registrado que os pressupostos e conclusões nos igapós, para alimentação. Atualmente Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais que levaram à definição do hidrograma “de a vazão que permite essa entrada é de, em Renováveis. Parecer técnico consenso” são insustentáveis, e ele não deve média, 13.000 m³/s, nos meses entre janeiro n° 114/2009. Brasília, 2009. ser considerado uma medida adequada de e fevereiro. mitigação, dado que coloca espécies da fauna 5. Ibidem, p. 337

18 O prognóstico de impactos detectou Dessa forma, apesar do licenciamento que o desaparecimento das principais ambiental da usina ser contraditório como áreas de alimentação é um ponto de um todo, o parecer técnico do Ibama que an- especial atenção para o monitoramento tecede a primeira licença ambiental da usina dos quelônios, pois a vazão hidrológica é claro no alerta de que a vazão estabelecida por consenso, segundo o MPEG [Museu no hidrograma de consenso para a região da Paraense Emílio Goeldi], não garante a Volta Grande não é suficiente para garantir manutenção dos principais sítios de os ciclos ecológicos e sociais da região: alimentação, que ocorrem com a vazão média de 13.000 m³/s, vazão essa que Para as vazões propostas no período de garante que os animais entrem na cheias, alternando máximas de 8.000 e floresta para se alimentar. A redução da 4.000 m³/s, verifica-se que o hidrograma vazão aumentará também a pressão por proposto não atende anualmente a caça nos “boiadouros” [poços fundos que um importante pré-requisito trazido as tracajás ocupam durante o verão], que no estudo, qual seja, a inundação de se tornarão permanentes6. pequena parte das áreas de planícies aluviais, o que só é verificado em campo Para o órgão ambiental, também é claro para a vazão de 8.000 m³/s. Esse pré- que a vazão de 700 m³/s não garante a requisito tem importante rebatimento nas navegabilidade do rio durante a estiagem. condições de manutenção da ictiofauna, Nesse caso, segundo o Ibama, a definição dos quelônios, para a navegação da atenderia exclusivamente à necessidade da época de cheia, e o acesso aos afluentes usina de garantir 300 m³/s, que é o mínimo da Volta Grande. Considerando que o para manter a oxigenação e a qualidade da regime de vazões é o fator que influencia água no canal de derivação e no reservatório diretamente a composição e a integridade intermediário da usina. biótica, alguns grupos sofrerão de forma Os analistas do Ibama consideram mais intensa o impacto da redução da insuficientes as medidas mitigadoras magnitude do pulso de vazões no TVR. sugeridas, e alertam sobre os riscos de se Não há clareza quanto à manutenção adotar o hidrograma de consenso no con- de condições mínimas de reprodução e texto social da Volta Grande do Xingu, onde alimentação da ictiofauna, quelônios e povos indígenas e ribeirinhos dependem da aves aquáticas, bem como se o sistema fauna aquática do rio para sua alimentação suportará esse nível de estresse a médio e renda. Segundo os técnicos, a questão da e longo prazos8. manutenção da biodiversidade na área in- cide também na segurança alimentar, “pois grande parte da proteína consumida nas 6. Brasil, Ministério do comunidades presentes no TVR e Terras In- Meio Ambiente, Instituto dígenas é proveniente da pesca e, em menor Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais proporção, do consumo de quelônios”7. Renováveis. Parecer técnico n° 114/2009. Brasília, 2009, p. 137, grifos nossos.

7. Ibidem, p. 336.

8. Ibidem, p. 338, grifos nossos

19 Na parte conclusiva do parecer técnico, Para o órgão indigenista, a primeira o órgão ambiental é muito claro ao afirmar condicionante indispensável para discutir a que o hidrograma apresentado pelo empre- instalação e operação da usina seria a neces- endedor está assentado em incertezas sobre a sidade de um hidrograma ecológico“suficien- manutenção das condições ecológicas e, por- te para permitir a manutenção dos recursos tanto, das condições sociais da Volta Grande naturais necessários à reprodução física e do Xingu. Afirma-se que: cultural dos povos indígenas”. Em outras pa- , prossegue o parecer, é preciso que esse o estudo sobre o hidrograma de consenso esquema hidrológico “permita a manutenção não apresenta informações que concluam da reprodução da ictiofauna do Xingu e o acerca da manutenção da biodiversidade, transporte fluvial até Altamira, em níveis e a navegabilidade e as condições de vida condições adequados, evitando mudanças es- das populações do TVR. A incerteza truturais no modo de vida dos Juruna (Yudjá) sobre o nível de estresse causado pela da TI Paquiçamba e dos Arara da TI Arara da alternância de vazões não permite Volta Grande”11. inferir a manutenção das espécies, A Funai reconhece que os principais principalmente as de importância efeitos negativos da usina encontram-se socioeconômica, a médio e longo prazos. localizados nas duas Terras Indígenas (TI) da Para a vazão de cheia de 4.000 m³/s Volta Grande do Xingu. Para ambas, a ope- a reprodução de alguns grupos é ração coloca em risco, concreto e imediato, a apresentada no estudo como inviável 9. manutenção das condições ambientais que sustentam a reprodução física e cultural dos Outro ponto questionado pelo Ibama é a povos Juruna (Yudjá) e Arara, cujos territó- efetividade da definição das vazões propostas rios originários encontram-se localizados como medida de mitigação capaz de garantir exatamente no chamado TVR desenhado direitos fundamentais da população da Volta pelo empreendedor. Portanto, a efetividade Grande do Xingu, em particular o direito ao do hidrograma para garantir a sustentabili- território e a sobrevivência física e cultural dade dos ecossistemas da Volta Grande está dos povos indígenas Juruna (Yudjá) e Arara vinculada diretamente ao direito à vida e ao – uma condição estabelecida pela Fundação território dos povos Juruna (Yudjá) e Arara. Nacional do Índio (Funai) para aprovar a via- bilidade da obra, em parecer técnico voltado a avaliar os estudos de impacto ambiental da UHE Belo Monte sobre os povos indígenas: 9. Brasil, Ministério do Meio Ambiente, Instituto Considera-se que as medidas mitigadoras Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais propostas no estudo, de reprodução/ Renováveis. Parecer técnico conservação ex situ de quelônios e n° 114/2009. Brasília, 2009, Loricariídeos, ordenamento da pesca na p. 344, grifos nossos. bacia, retificação do leito para propiciar 10. Ibidem, p. 339, grifos melhores condições de navegação, são nossos positivas, mas não há elementos que 11. Brasil, Ministério da demonstrem que seriam suficientes para Justiça. Fundação Nacional a manutenção e melhoria da qualidade de do Índio. Presidência. Parecer técnico n° 21/2009/PRES/ vida da população, nem tampouco para FUNAI. Brasília, 2009, p. 82, 10 atender a condição imposta pela Funai . grifos nossos.

20 O hidrograma e as etapas do licenciamento

Apesar da complexidade da decisão, dos Importante destacar que, na licença prévia, registros, dos alertas e ressalvas feitos pelos está explícita a possibilidade de alteração do analistas ambientais e indigenistas do Ibama hidrograma, com base em eventuais impactos e da Funai, por pesquisadores e organizações registrados no monitoramento. Isso põe em da sociedade civil, a presidência do órgão relevo o caráter de teste da proposta em ques- ambientalista emitiu, em 2010, a licença pré- tão, evidenciando, portanto, que é passível de via para a UHE Belo Monte, subordinada ao revisão e alteração. Por esse motivo, de acordo atendimento de 40 condicionantes socioam- com a própria concepção do esquema tal como bientais. A primeira dessas condicionantes aprovado pelo licenciador, o hidrograma “de convertia todas as dúvidas e ressalvas com consenso” não pode ser interpretado como o hidrograma “de consenso” em uma tácita uma cláusula pétrea, um direito adquirido autorização para colocá-lo em prática, sob pela empresa concessionária da usina para caráter de testes, de modo a monitorar as operar, eventualmente, com índices prejudi- consequências adversas de sua implemen- ciais aos habitantes e ao ecossistema. tação sobre a biodiversidade e qualidade de A licença de instalação, autorizada em vida de povos indígenas e ribeirinhos. 2011, reproduziu a condicionante da licen- A condicionante estabelecida pela pre- ça prévia, mas subordinou a alteração do sidência do Ibama referente a esse aspecto12 hidrograma à “identificação de impactos consiste basicamente de três diretrizes: não prognosticados nos Estudos de Impacto A mbiental”13. Na prática, isso significa a 1. O hidrograma de consenso deverá ser inversão absoluta do ônus da prova, atri- testado após a conclusão da instalação buindo a comprovação de novos impactos da plena capacidade de geração da casa para povos indígenas e ribeirinhos, já que de força principal, prevista para dezem- o monitoramento dos impactos previstos é bro de 2019. Os testes deverão ocorrer feito pela própria empresa concessionária, durante seis anos acompanhados de um que dificilmente teria interesse em reportar “robusto plano de monitoramento”; efeitos não previstos no EIA. Dito de outro modo, a condicionante 2. A identificação de importantes impactos reproduzida na licença de operação, obti- 12. Brasil, Ministério do na qualidade da água, ictiofauna, vegeta- da pela concessionária em 2015, limita-se Meio Ambiente, Instituto ção aluvial, quelônios, pesca, navegação a incluir que as vazões da Volta Grande do Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais e modos de vida da população da Volta Xingu devem ser sempre controladas “com o Renováveis. Licença prévia n° Grande poderá suscitar alterações nas objetivo de mitigar impactos na qualidade da 342. Brasília, 2010. Cond. 2.1. vazões estabelecidas e consequente água, ictiofauna, vegetação aluvial, quelônios, retificação da licença de operação; pesca, navegação e modos de vida da popula- 13. Brasil, Ministério do ção da Volta Grande”14. Meio Ambiente, Instituto 3. Entre o início da operação e a geração Isso significa dizer que a licença de opera- Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais com plena capacidade deverá ser manti- ção reproduz a mesma lógica dos instrumentos Renováveis. Licença de do no TVR minimamente o hidrograma B anteriores, ao aludir de forma genérica à pos- instalação n° 775/2012. proposto no Estudo de Impacto Ambien- sibilidade de efeitos adversos do hidrograma Brasília, 2012. Cond. 2.22. tal (EIA). Para o período de testes devem proposto. Não há, portanto, a previsão de me- 14. Brasil, Ministério do ser propostos programas de mitigação e canismos efetivos e de atribuição da empresa Meio Ambiente, Instituto compensação. concessionária para e sse controle, ou tampou- Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais co de fiscalização do órgão ambiental e controle Renováveis. Licença de social por parte da população da região. operação n° 1317/2015. Brasília, 2015. Cond. 2.16.

21 É urgente repensar os critérios para se definir a vazão residual que deve ser mantida na Volta Grande do Xingu. Alternativas de- vem ser estudadas a partir do conhecimento científico disponível e do conhecimento local de povos indígenas e ribeirinhos. Em artigo publicado recentemente na re- vista científicaBiological Conservation, sobre os impactos da UHE Belo Monte na biodiver- sidade endêmica da região da Volta Grande do Xingu, um grupo de nove pesquisadores brasileiros e estrangeiros propõe a revisão do hidrograma “de consenso” para evitar perdas irreversíveis na biodiversidade da região15. Duas conclusões desse estudo merecem destaque. A primeira delas, afirmada cate- goricamente, é a de que, para se garantirem condições de sustentabilidade ambiental na Volta Grande do Xingu, além do acompanha- mento da sazonalidade do rio, é preciso que o hidrograma garanta “também a variação interanual de mais de 20.000 metros cúbicos por segundo, observada nas descargas do auge dos períodos de cheia”. A segunda con- clusão é a de que hidrograma ecológico a ser 15. FITZGERALD, Daniel adotado deve ser pensado a partir de porcen- B.; PEREZ, Mark H. tagens de desvio de vazão permitidas – e não Sabaj; SOUSA, Leandro M.; GONÇALVES, Alany como volumes específicos para cada mês do P.; PY-DANIEL, Lucia ano, da forma estipulada pelo atual hidrogra- Rapp; LUJAN, Nathan ma “de consenso”. K.; ZUANON, Jansen; Evidentemente, não é simples chegar a WINEMILLER, Kirk O.; LUNDBERG, John G. uma fórmula que garanta a sustentabilidade Diversity and community socioambiental da Volta Grande do Xingu. structure of rapids-dwelling Contudo, as incertezas e os riscos envolvidos fishes of the Xingu River: na aplicação do hidrograma “de consenso” Implications for conservation amid large-scale demandam sua imediata substituição, acom- hydroelectric development. panhada pela consideração de estudos como In: Biological Conservation, os que foram conduzidos no monitoramento 222. Washington, D.C., independente dos Juruna (Yudjá), e que vere- Society for Conservation Biology, 2018, pp. 104-112. mos a seguir.

22 Síntese da interação de região da Volta Grande do Xingu é um dos lugares com maior biodiver- peixes e quelônios com sidade do mundo. Das 63 espécies Aendêmicas de peixes que são conhe- ambientes sazonalmente cidas na bacia do rio Xingu, 26 só existem nas corredeiras da Volta Grande. Isso se deve à alagados na região da particularidade geológica da região, combina- da com a dinâmica sazonal do rio e a riqueza Volta Grande do Xingu, a de ambientes que ele oferece. Tão importante quanto a diversidade de fauna e flora, são os partir de conhecimentos sofisticados processos ecológicos que regulam e garantem a manutenção da vida na região. É dos Juruna (Yudjá) da esse delicado equilíbrio que está em jogo hoje, com a usina hidrelétrica (UHE) Belo Monte. aldeia Mïratu, Terra A dinâmica sazonal do pulso de inunda- ção do rio Xingu é um dos principais fatores Indígena Paquiçamba para a regulação da época de reprodução e recrutamento de peixes e quelônios. Isso sig- nifica que as oscilações na vazão de enchente, cheia, vazante e seca geram u m sincronismo entre os processos ecológicos de plantas e animais. Por meio do monitoramento inde- pendente feito pelos Juruna (Yudjá), foram realizados importantes mapeamentos dos períodos de alagamento de ilhas e sarobais, destacando sua relação com a migração de peixes e quelônios em direção às áreas alaga- das para alimentação e reprodução.

23 ENCHENTE CHEIA VAZANTE SECA

Sarobal Beira de ilha Igapó Beira de ilha Sarobal Pedral

20000 18000 16000 14000 12000 10000 8000 6000 4000 Vazão m³/s média (1931 a 2008) 2000 0 Nov Dez Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out

A partir do nal do mês de Em janeiro, os igapós Existem evidências Existe também uma forte novembro, inicia-se a começam a alagar. Em cientí cas que relação entre a subida do nível do rio e o fevereiro, ambos os comprovam que, no O mapeamento aponta produtividade das começo do alagamento ambientes já se encontram Xingu, espécies de fauna que os animais pescarias e o pulso de dos sarobais. alagados em sua quase aquática como quelônios permanecem nesses inundação das orestas totalidade. Esse é o só conseguem se ambientes até o mês de aluviais. Os maiores período em que as tracajás alimentar e se reproduzir maio, quando então rendimentos das pescarias Sarão e os peixes começam a com vazões mínimas de voltam ao rio, à procura de ocorreram sempre no entrar na oresta alagada 13.000m/s durante os áreas mais profundas. início da enchente e da Figo para se alimentar. meses de cheia do rio. vazante do rio. Segundo os Acari-amarelinho dados do monitoramento, Espécies endêmicas da Goiaba-de-janeiro “O peixe sabe que 49% do pescado capturado Volta Grande do Xingu, quando o rio começa é representado pela pesca como o acari-zebra, vivem a encher ele irá poder de pacus nessas épocas. Golosa apenas nos pedrais. comer o sarão.” Agostinho Juruna Gameleira

A seca se compõe Muitos peixes cam Tucum Pacu Goiaba-de- junho A fruta madura cai na água e o Gordião dos mese de maior presos em poços pacu consegue se alimentar di culdade de profundos, sem Cajá Landi-roxo navegabilidade do conexão com o rio. Matrinxã rio Xingu.

Cafeirana Tracajá

Final do mês de novembro Em janeiro, são os igapós Em fevereiro, ambos os é marcado pelo início da que começam a alagar. ambientes já se cheia, quando os sarobais encontram alagados em começam a alagar sua quase totalidade. ENCHENTE CHEIA VAZANTE SECA O pacu, espécie de peixe mais Sarobal consumidaBeira de pelos ilha Juruna (Yudjá), Igapó Beira de ilha Sarobal Pedral também está ameaçado. Ele se alimenta de frutos que caem na água durante o inverno, época de cheia do rio. Com a diminuição do volume de água e a mudança na Áreas conhecidas como sarobais – dinâmica das vazantes, os frutos 20000 que cam inundadas em boa parte caem no seco, impossibilitando a 18000 do ano e abrigam vegetação que alimentação e a consequente fornece alimento para os peixes – reprodução da espécie. O 16000 sofreram redução. Os peixes exemplo do pacu ilustra um dos precisam se alimentar durante essa muitos processos ecológicos que Hidrograma A 14000 época para ter reserva energética estão em xeque e que podem 12000 para desovar. O tamanho e impactar a manutenção da Hidrograma B quantidade dos ovos estão biodiversidade aquática. Isso 10000 relacionados com o período que a ameaça a segurança alimentar de Vazão m³/s fêmea consegue se alimentar. povos indígenas e ribeirinhos. (média 2016), 8000 "o ano do fim 6000 do mundo" 4000 Vazão m³/s média (1931 a 2008) 2000 0 Nov Dez Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out

A partir do nal do mês de Em janeiro, os igapós Existem evidências Existe também uma forte novembro, inicia-se a começam a alagar. Em Em 2016, com uma cientí casvazante que relação entreAs a áreas utilizadas pela As vazões dos hidrogramas subida do nível do rio e o fevereiro, ambos os de quase 10 mil m/s,comprovam houve que, no O mapeamento aponta produtividadecurimatá das para fazer a A e B não garantem não começo do alagamento ambientes já se encontram uma grande mortandadeXingu, deespécies de fauna que os animais pescarias e opiracema pulso de não foram garantem a inundação dos dos sarobais. alagados Seem asua vazão quase média não peixes no período aquática como quelônios permanecem nesses inundação dasalagadas orestas em 2016. Nesse pedrais. As áreas de totalidade.alcançar Esse é o 15 mil m/s reprodutivo, devidosó à conseguem se ambientes até o mês de aluviais. Os maioresano, nenhuma área corredeiras restantes não período emem que fevereiro, as tracajás não interrupção do uxoalimentar e se reproduzir maio, quando então rendimentospropiciou das pescarias um ambiente serão su cientes para manter Sarão e os peixeshaverá começam água a su ciente migratório, à com vazões mínimas de voltam ao rio, à procura de ocorreram sempreadequado no para a desova a diversidade de espécies. entrar napara oresta os alagadapeixes indisponibilidade de13.000m áreas /s durante os áreas mais profundas. início da enchentedessa e espécie. da Isso foi Figo para se alimentar.desovarem e os de alimentação e desova.meses deDe cheia do rio. vazante do rio.con rmado Segundo os após a captura O acari-zebraAcari-amarelinho (Hypancistrus animais entrarem na forma análoga e a falta de dados do monitoramento,de várias espécies com zebraEspécies) uma endêmicasdas espécies da Goiaba-de-janeiro “O peixe sabe que oresta aluvial para áreas para alimentação fez 49% do pescadosuas capturado ovas secas, em julho endêmicasVolta Grande do Xingu, do Xingu, corre quando o rio começa se alimentar. com que os quelônios não é representadode pela2016. pesca Esses eventos riscocomo de extinçãoo acari-zebra, por vivem ser a encher ele irá poder de pacus nessas épocas. Golosa conseguissem desenvolver zeram com que 2016 altamenteapenas nos sensível pedrais. a comer o sarão.” seus ovos para a temporada fosse chamado pelos mudanças na temperatura Agostinho Juruna“Entre dezembro de Gameleira 2015 e janeiro de 2016, reprodutiva de 2016, e Juruna (Yudjá) de “ano do da água e na qualidade os pacus que acabaram emagrecendo m do mundo”. do ambiente. pescamos estavam e morrendo. A seca se compõe Muitos peixes cam Tucum Pacu Goiaba-de- junho A fruta madura cai na água e o magros e doentes, Gordião dos mese de maior presos em Opoços Estudo de Impacto pacu consegue se alimentar lisos por fora, ninguém di culdade de profundos,Ambiental sem alertou para a Cajá preocupação com a comeu esses peixes Nem a maior vazão no Landi-roxo navegabilidade do conexão com o rio. com medo de ficarmosMatrinxã mês de abril do rio Xingu. formação de poços de água doentes também.” hidrograma B será parada, nos setores do rio que carão mais secos, pois Agostinho Juruna su ciente para os Cafeirana Tracajá animais se sabem que isso aumentará deslocarem para as os focos de malária. Final do mês de novembro Em janeiro, são os igapós Em fevereiro, ambos os áreas de alimentação é marcado pelo início da que começam a alagar. ambientes já se na oresta aluvial. cheia, quando os sarobais encontram alagados em começam a alagar sua quase totalidade. 26 AS FRUTAS ESTÃO 3 CAINDO NO SECO: DINÂMICAS DA PESCA E SEGURANÇA ALIMENTAR NA VOLTA GRANDE DO XINGU

27 “As frutas estão caindo no seco. Isso aconteceu de um jeito muito intenso em 2016. As tracajás comem as ramas nas áreas alagadas e engordam, já o pacu é mais complicado, porque ele só engorda se comer os frutos que caem. Se os frutos caírem no seco, os pacus nunca mais vão engordar e irão morrer todos.”

Gilliarde Juruna, cacique da aldeia Mïratu

28 monitoramento dos recursos pes- possível a comparação com dados coletados queiros e da segurança alimentar antes do início de construção da hidrelétrica16. na Terra Indígena (TI) Paquiçamba O grupo de pesquisadores e pesquisado- Oé fruto de uma pesquisa colabo- ras estabeleceu dois eixos para os trabalhos: rativa, iniciada em 2013, envolvendo pes- dinâmicas da pesca e consumo alimentar quisadores da Universidade Federal do Pará das famílias locais. A pesquisa incluiu todas (UFPA), da Universidade Federal de São Car- as famílias residentes na aldeia Mïratu – no *Uma apresentação los (UFSCar) e de pesquisadores e famílias início do monitoramento, eram 12, tendo preliminar dos resultados Juruna (Yudjá) da aldeia Mïratu*. O intuito é esse número aumentado paulatinamente até do monitoramento conduzido pelos Juruna o de construir uma base de dados confiável chegar às atuais 22 famílias. (Yudjá) foi apresentada que possibilite o mapeamento das alterações Para o monitoramento da pesca, foi em FRANCESCO, Ana na vida dos Juruna (Yudjá) da Volta Grande definida a metodologia de registro de desem- de; CARNEIRO, Cristiane do Xingu após a construção da usina hidrelé- barque pesqueiro, por meio da utilização de (orgs). Atlas dos impactos da UHE Belo Monte sobre trica (UHE) Belo Monte, a partir das dinâmi- formulários chamados de agendas de pesca. a pesca. São Paulo: Instituto cas da atividade pesqueira. As agendas de pesca permitiram o registro Socioambiental, 2015. Cabe ressaltar que os textos aqui apresen- diário da atividade pesqueira, garantindo a tados, ainda que redigidos por pesquisadores coleta de informações básicas imprescindí- 16. Falamos, especificamente, não indígenas, buscam evidenciar as teorias veis para determinação do volume pescado, do estudo encomendado pela Eletrobrás para compor o e reflexões de homens e mulheres Juruna o esforço de pesca e as áreas em que a EIA do empreendimento: (Yudjá) sobre os impactos de Belo Monte e a atividade é realizada. Essas informações ISAAC, V. J. N.; GIARRIZZO, situação da Volta Grande do Xingu. são ferramentas fundamentais de acompa- T.; ZORRO, M. C.; nhamento e avaliação, além de possibilita- SARPEDONTI, V.; ESPÍRITO SANTO, R. V. ; DA SILVA, rem o estabelecimento de tendências para a B. B.; MOURÃO JR., M. M.; Metodologia atividade e o recurso pesqueiro. CARMONA, P.; ALMEIDA, Com relação ao monitoramento do con- M. Ictiofauna e pesca: O primeiro passo para a pesquisa colaborati- sumo alimentar, o protocolo foi o de que diagnóstico ambiental da AHE Belo Monte – Médio va foi a definição do grupo de pesquisadores os 12 pesquisadores e pesquisadoras Juruna e Baixo Rio Xingu. Belém: Juruna (Yudjá) que participariam do processo. (Yudjá) passariam a pesar todo o alimento UFPA, 2008. 433 p. Ao longo de oficinas preparatórias, realizadas consumido nas unidades familiares da aldeia em 2013, foi composta uma equipe de 12 pes- ao longo de um dia da semana, definido por 17. Esse protocolo é uma quisadores da aldeia Mïratu. Esses encontros seleção aleatória. Nesse dia, todo o alimento adaptação da metodologia descrita por CERDEIRA, preliminares também definiram o escopo e os consumido era categorizado e pesado com R. G. P.; RUFFINO, M. L. e procedimentos envolvidos na pesquisa. auxílio de pequenas balanças com capacidade ISAAC, V. J. Consumo de O monitoramento, realizado entre janeiro para 5 kg. As informações, coletadas a cada pescado e outros alimentos de 2014 e dezembro de 2017, optou por repli- refeição, incluem horário, número de pessoas pela população ribeirinha do lago grande de Monte car o mesmo protocolo de pesquisas utilizado e quantidade (em gramas) de cada tipo de ali- Alegre, PA. Brasil. In: Acta no âmbito do Estudo de Impacto Ambiental mento, como carne de gado, enlatado, peixe Amazonica, 27 (3), 1997, pp. (EIA) da UHE Belo Monte. Desse modo, é ou caça designados pelo nome local17. 213-228.

29 As dinâmicas da pesca Gráficos 1, 2, 3 e 4 Produção mensal do pescado desembarcado entre 2014 e 2017 pelos Juruna (Yudjá) da Nós e os peixes somos parecidos. aldeia Mïratu, TI Paquiçamba Precisamos de água para viver. Precisamos de qualidade e quantidade adequada de 2014 2014 água para sobrevivermos, assim como os 1000 30000 10 30000 peixes, assim como o pacu. 9 25000 25000 800 8 20000 7 20000 Jailson Juruna (Caboko) 600 6 15000 5 15000 4 400 10000 10000 3 Na aldeia Mïratu, praticam-se dois tipos de 5000 2 5000 pescaria: de peixe de consumo e de peixe 200 1 0 0 0 ornamental. Para os propósitos da pesquisa, Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez 0 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez o primeiro tipo foi dividido de acordo com a destinação, entre pesca para o consumo 2015 2015

familiar e para comercialização. Já os peixes 1000 30000 10 30000 ornamentais são sempre destinados à venda. 9 800 25000 25000 Entre todas as saídas registradas ao longo 8 da pesquisa, 96,5% almejavam peixes de 20000 7 20000 600 6 15000 consumo, aí incluídos os que se destinam às 5 15000 400 famílias, diretamente, e os que são comercia- 10000 4 10000 3 lizados. Por esse motivo, os dados apresenta- 200 5000 2 5000 dos a seguir se concentram nessa categoria, 1 0 0 0 excluindo-se a pesca ornamental. Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez 0 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez Ao longo do monitoramento, a proporção comercializada dos peixes de consumo foi 2016 2016 aumentando, principalmente pela inserção de 1000 30000 12 30000 famílias cuja renda mensal depende exclusiva- 25000 10 25000 mente da pesca. O pescado é vendido no vilare- 800 20000 8 20000 jo chamado Baixada, localizado na estrada que 600 dá acesso à aldeia, ou entregue a atravessadores 15000 6 15000 400 em Altamira, um percurso de quase 200 km, 10000 4 10000 considerando o trajeto de ida e volta. 200 5000 2 5000 Entre janeiro de 2014 e dezembro de 0 0 0 2017, foram desembarcados na aldeia 11.557 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez 0 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez kg de pescado. Desses, 67% eram destinados ao suprimento do consumo familiar e 33%, 2017 2017 à comercialização. 1000 30000 12 30000 Ao longo da pesquisa, identificou-se que 800 25000 10 25000 o desembarque mensal era maior no início 20000 8 20000 da enchente e no início da vazante do rio (ver 600 gráficos 1 a 4). Em 2014, foram dois grandes 15000 6 15000 400 picos, um no período de abril a julho, com 10000 4 10000 uma produção de 1.042,86 kg de pescado, e o 200 5000 2 5000 segundo nos meses de novembro e dezembro, 0 0 0 com 1.125,65 kg. Em 2015, o desembarque teve Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez 0 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez três picos, um no período de janeiro e feve- Produção total (g) Vazão (m³/s) CPUE Vazão (m³/s) reiro, com 1.252,80 kg de pescado; o segundo

30 no mês de julho, com 411,65 kg; e o terceiro Gráficos 5, 6, 7 e 8 Rendimento mensal da pesca pelos Juruna entre setembro e outubro, com uma produ- (Yudjá) da aldeia Mïratu, TI Paquiçamba, com base no índice ção de 622,70 kg. Em 2016, foram novamente de captura por unidade de esforço (CPUE), entre 2014 e 2017 dois picos, dessa vez no mês de janeiro, com 2014 uma produção de 370,90 kg de pescado, e no 2014 1000 30000 mês de maio, com 274,73 kg. Em 2017, mais 10 30000 9 25000 uma vez registraram-se dois picos, o primei- 25000 800 ro entre janeiro e fevereiro, com uma produ- 8 20000 7 20000 600 ção recordista de 1.337,46 kg de pescado, e o 6 15000 segundo no mês de maio, com 372,09 kg. 5 15000 4 400 10000 10000 Associada à enchente, tem início a produ- 3 5000 ção de frutos nas florestas aluviais ligadas aos 2 5000 200 pedrais, com vegetação herbácea e arbusti- 1 0 0 0 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez va, conhecidas localmente como sarobais. É 0 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez nesses locais, repletos de peixes em busca de 2015 alimento, que as pescarias se concentram. 2015

1000 30000 Em 2014, os meses com maior captura de 10 30000 pacu foram novembro e dezembro, com uma 9 800 25000 25000 produção total de 398,64 kg e 737,65 kg, res- 8 20000 pectivamente. Em 2015 e 2016, os meses de 7 20000 600 6 15000 janeiro e fevereiro apresentaram as maiores 5 15000 400 10000 capturas, com uma produção total de 929,8 4 10000 3 200 kg e 396,3 kg, respectivamente. 5000 2 5000 Além da produção, outro objetivo do moni- 1 0 0 0 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez toramento era aferir o rendimento das pesca- 0 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez rias. Para isso, utiliza-se a unidade de medida 2016 denominada captura por unidade de esforço 2016 1000 30000 (CPUE). Ela é calculada por meio da divisão da 12 30000 quantidade de pescado capturado (em quilos) 25000 10 25000 800 pelo esforço de pesca (dado pela quantidade de 20000 8 20000 600 dias de pesca dividido pelo número de pesca- 15000 dores), e é expressa em quilos de peixe captu- 6 15000 400 10000 rado por e por dia (kg/pescador/dia). 4 10000 200 Dessa forma, quanto maior o índice de CPUE, 5000 2 5000 maior o rendimento associado à atividade 0 0 0 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez pesqueira naquele momento. 0 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez Os dados apontam que os maiores valores 2017 de CPUE ocorreram nos meses de janeiro de 2017 1000 30000 2015 e 2016, com uma média de 9,2 kg e 11,7 12 30000 kg/pescador/dia, respectivamente, ao passo 800 25000 10 25000 que a menor média coube ao mês de março de 20000 8 20000 600 2017, com 0,78 kg por pescador e por dia (ver 15000 gráficos 5 a 8). 6 15000 400 10000 Além disso, as medições indicam um au- 4 10000 200 mento no rendimento das pescarias nos dois 5000 2 5000 primeiros meses de 2016. Isso pode estar rela- 0 0 0 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez cionado à diminuição da vazão nesse trecho da 0 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez Volta Grande do Xingu, o que teria levado os Produção total (g) Vazão (m³/s) CPUE Vazão (m³/s) cardumes a ficarem nas bocas das piracemas

31 e isolados nos poços, tornando a pesca mais Gráfico 9 Espécies de peixe capturadas entre janeiro de produtiva. O impacto de sobrepesca no chama- 2014 e dezembro de 2017 pelos Juruna (Yudjá) da aldeia do trecho de vazão reduzida (TVR) é previsto Mïratu, TI Paquiçamba no EIA e reflete sérias consequências para o estoque pesqueiro. As medições indicam uma redução no rendimento em 2017, comparado aos outros anos. Os Juruna (Yudjá) perceberam Pacu tais relações e estão propondo fechar a pesca Acari comercial em todo o chamado TVR. Comum Curimatã

Espécies capturadas Tucunaré

O monitoramento registrou uma variedade Piranha de 23 espécies entre os peixes de consumo Pescada 2014 Produção mensal do pescado desembarcado capturados (gráfico 9). Cinco delas, porém, representaram sozinhas mais de 86,1% do Ariduia total desembarcado: pacu (Myleus spp.), 49,8%; acari comum (família Loricariidae), Pocomon 1000 30000 16,9%; curimatá (Prochilodus nigricans), 11,3%; tucunaré (Cichla sp.), 10,2%; e piranha (Serra- Pirarara 25000 salmus sp.), 4,7%. 800 Fidalgo Como se pode perceber, o pacu foi, de 20000 longe, a etnoespécie mais capturada. Entre 600 Cachorra janeiro de 2014 e dezembro de 2017, foram 15000 desembarcados 4.801,95 kg desse grupo de 400 10000 peixes. Os Juruna (Yudjá) identificam 11 etnoespécies de pacu: pacu-de-seringa, pa- Matrinchã 200 5000 cu-capivara, pacu-couro-seco, pacu-branco, Surubim pacu-curupité, pacu-cadete, pacu-manteiga, 0 0 Jan Fev Mar Ar Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez pacu-preto, pacu-caranha, pacu-olhudo e Traíra pacu-rosa. O aumento na captura de pacus Barba começa no final de novembro, com o início da Produção total Vazão chata (g) (m³/s) subida do nível do Xingu, evento identificado como água nova. Analisando-se em separado as pescarias Bicuda desse grupo de peixes, devido à sua impor- 2014 Consumo de proteína animal pelos Juruna tância na rotina pesqueira e alimentar dos Curvina Juruna (Yudjá), pode-se notar que, após o barramento do rio, ocorreu um pico na Arraia 3% Criação 6% Quelônios captura do pacu nos dois primeiros meses (menor do que os picos observados nos anos Flexeira anteriores), mas depois a captura diminuiu 26% Produção Mocinha (ver gráficos 10 a 13). Isso se deu devido à má da cidade qualidade dos pacus capturados, considera- Mandi dos não adequados ao consumo, o que levou 53% Peixe à redução da captura da espécie. Em 2017, o 0 1000 2000 3000 4000 5000 6000 kg mês com maior captura do pacu foi janeiro, com uma produção de 349,2 kg.

12% Caça

32 Esse cenário identificado pelo monito- Gráficos 10, 11, 12 e 13 – Desembarque de pacus ramento constitui um sério alerta para as pescados pelos Juruna (Yudjá) da aldeia Mïratu, TI consequências da adoção do hidrograma “de Paquiçamba, entre 2014 e 2017 2014 3% Criação 6% Quelônios consenso” por parte da concessionária de Belo Monte. Como vimos, a pesquisa demons- 2014 trou como a vazão reduzida de 2016 e 2017 já 1000 30000 acarretou efeitos negativos graves, em especial 26% Produção 800 25000 para os pacus, principal grupo de peixes pes- da cidade 20000 53% Peixe cado pelos Juruna (Yudjá). No entanto, a vazão 600 desses dois anos foi ainda superior àquela 15000 400 prevista no hidrograma a ser implementado, 10000 apontando para a magnitude da ameaça de se 200 5000 12% Caça colocar esse esquema em operação. 0 0 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez 2015 2% Criação Se isso acontecer do jeito que está 4% Quelônios apresentado, os pacus, as curimatás e as 2015 tracajás vão desaparecer, vão acabar. Além 1000 30000 disso, se formos viver só o verão o ano todo 800 25000 25% Produção [época da seca], apenas os acaris vão ser 20000 da cidade pescados. Se todo mundo só pescar acari, 600 56% Peixe ele também pode ir desaparecendo. 15000 400 10000 Gelson Juruna , da aldeia Mïratu 200 5000 13% Caça 0 0 Um dos aspectos evidenciados pelo moni- Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez 1% Criação toramento é a relação entre áreas alagadas e 2016 2% Quelônios captura de etnoespécies, por meio da ali- 2016 mentação da fauna aquática, extensivamente 1000 30000 conhecida pelos Juruna (Yudjá). Eles iden- tificam 36 tipos de frutas consumidas por 800 25000 50% Produção peixes. As frutas são utilizadas como iscas, e 20000 da cidade 600 41% Peixe as pescarias ocorrem nos locais reconhecida- 15000 400 mente ocupados pelos peixes, com destaque 10000 para o pacu, durante o importante período da 200 enchente. Dessa forma, a interferência nessa 5000 dinâmica coloca diretamente em xeque a 0 0 6% Caça Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez atividade pesqueira. 2017 2017 6% Criação 1% Quelônios 1000 30000 800 25000 20000 32% Peixe 600 15000 400 10000 200 60% Produção 5000 da cidade 12% Caça 0 0 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez

Pacus (g) Vazão (m³/s)

33 Artefatos de pesca

A pesca de mão e com caniço tem tudo Em anos mais secos, segundo os dados do a ver com a enchente do rio. Quando monitoramento, cresceu o uso de tarrafa, fato o rio está seco, as pescarias são feitas associado à exposição dos pedrais onde ocorre mais de tarrafa, e agora ainda está mais a captura dos acaris e curimatás. Essa situa- complicado, porque aumentou demais o ção reforça a constatação de que a pesca com uso de malhadeira. caniço, tradicional para a captura do pacu, vem sendo substituída pela pesca com malhadeiras Gelson Juruna , da aldeia Mïratu e tarrafa. Antes do barramento, os Juruna (Yudjá) Os artefatos de pesca tradicionalmente utilizavam o caniço para capturar pacus nas usados pelos Juruna (Yudjá) da Volta Grande florestas aluviais, onde as frutas caíam, mas do Xingu são linha de mão, caniço e tarrafa. isso não ocorreu em 2016, pois a vazão de Os dois primeiros associam-se à captura de 10.000 m3/s não foi suficiente para alagar peixes frugívoros, como as espécies de pacu, e essas áreas. o terceiro à captura das espécies de acaris, feita nos pedrais, durante o verão. A malhadeira é Nosso monitoramento mostra isso, que o um artefato que apenas recentemente tem sido aumento do uso da tarrafa ocorre junto incorporado à atividade pesqueira dos Juruna com o barramento do Xingu e com o fim (Yudjá), e essa incorporação relaciona-se, por da cheia e da enchente. Essa situação da sua vez, aos impactos do barramento do Xingu. Volta Grande do Xingu é preocupante, porque, com os pedrais expostos o ano Ninguém gosta de botar malhadeira, porque inteiro, os acaris podem desaparecer, por malhadeira é uma coisa que diminui muito conta das pescarias com tarrafas. os peixes. É uma pesca mais predatória, porque tudo que é peixe fica preso na trama Gelson Juruna, da aldeia Mïratu da malhadeira e, às vezes, outros animais também, como tracajá e arraias. Depois dessa barragem é que começamos a usar malhadeira, porque não estamos vendo outra solução, precisamos do peixe para o Gráfico 14 Frequência no uso dos artefatos de pesca nosso consumo e para a venda. pelos Juruna (Yudjá) da aldeia Mïratu, TI Paquiçamba, nas pescarias monitoradas Diel Juruna, da aldeia Mïratu

O monitoramento aponta para uma mu- % Pesca com anzol Tarrafa Malhadeira dança no uso dos artefatos nos últimos anos (ver gráfico 14). O emprego de malhadeiras, 70 como dito, vem aumentando e, ao mesmo 60 tempo, houve redução considerável do uso do caniço. Uma explicação reside no fato de que a 50 pesca desse tipo está diretamente relacionada 40 com a captura do pacu durante a enchente, 30 nas áreas alagáveis, como pedrais, sarobais e igapós, utilizando-se como iscas as frutas 20 consumidas pelos peixes. Dessa forma, após o 10 fechamento do rio e redução da vazão, não foi 0 possível utilizar esse método de captura. 2014 2015 2016 2017

34 Áreas de pesca

O mapeamento dos locais de pesca utilizados como o acari-zebra, acari-picota-ouro, aca- por moradores da aldeia Mïratu mostrou ri-boi-de-bota, acari-amarelinho e acari-ze- que importantes pontos foram eliminados, bra-marrom. Os principais pontos são: Landi, com o aterramento do leito do rio no início Lote, Três Pancadas, Porto da Aldeia, Poço do da construção da UHE Belo Monte. Antes da Alcides, Ilha do Cemitério, Barra do Vento, obra, o território de pesca dos Juruna (Yudjá) Lopreu e sequeiro do Jericoá. Esses locais en- se estendia da região do Pimental à cachoeira contram-se ameaçados com a diminuição da do Jericoá. Hoje, ele se restringe à área entre vazão do rio, colocando em risco a sobrevivên- o Landi e o Jericoá, onde muitos pontos de cia dessa espécie ao longo do tempo. pesca também já estão comprometidos pela Entre a área do Landi e a região de sequei- redução de vazão, todos incluídos dentro do ro do Jericoá, existem inúmeros boiadouros, chamado TVR da usina. poços mais profundos ocupados pelas traca- Devido à perda de muitos pontos de jás durante o verão. Nesse trecho também se pesca, hoje, apenas a pesca de subsistência é encontram muitas ilhas e muitos sarobais, realizada nas proximidades da aldeia Mïra- áreas de alimentação de peixes e quelônios tu, entre a região do Caitucá até os limites nas épocas de enchente e inverno. Esses am- da aldeia Paquiçamba (ver mapa a seguir). bientes contam com abundância de frutos, Para que os peixes possam se reproduzir como golosa, figo, sarão e goiabas. Essas áreas nessa área, proibiu-se a pesca para venda. de alimentação de peixes e quelônios têm so- Após Belo Monte, os Juruna (Yudjá) da Volta frido sérias alterações desde a construção da Grande do Xingu estabeleceram que a pesca UHE Belo Monte, colocando em risco a vida de peixes de consumo para comercialização dessas espécies na Volta Grande do Xingu. só poderia ocorrer nas regiões mais distantes As ilhas da Araruna, Bela Vista, Jericoá, da aldeia Mïratu, merecendo destaque os se- Bacaba e das Onças, localizadas entre a região guintes locais: Landi, Três Pancadas, Poço do da Bela Vista e o Jericoá, são mais altas, mar- Alcides, Ilha do Cemitério, Barra do Vento, cadas pela presença de seringueiras. Os Juru- Lopreu, Bela Vista e Jericoá. na (Yudjá) relatam que os peixes e tracajás Historicamente, os Juruna (Yudjá) têm na dessa região migram no inverno para as regi- pesca de peixes ornamentais sua principal ões de Barra do Vento e Lopreu, onde as ilhas fonte de renda. Duas grandes áreas são con- são mais baixas, ressaltando a importância da sideradas por eles como importantes áreas de conectividade das espécies aquáticas, os meios distribuição de espécies de peixes desse tipo, ambientes e o fluxo de vazão do rio Xingu.

35 2 1 3 4 6 5 7

8 9 C 10 12 11 B 13

A 14 E D

16 15

17

km 0 5 10 15 20

ÁREA DE PESCA 1. Ilha do Jericoá Frutas de terra firme Terra Indígena 2. Ilha da Onça Golosa · Seringa · Tucum · Paquiçamba 3. Ilha do Bom Jardim Gameleira · Cajá 4. Ilha da Bela Vista 5. Ilha de Serra Frutas de ilha Pesca ornamental 6. Região das Três Pancadas Gordião · Goiaba-de janeiro · Gameleira Pesca comercial 7. Ilha da Bacaba 8. Região do Landi Pesca comercial proibida 9. Região do Jericoá Frutas de saroba Sarão · Figo · Cafeirana · Pesca de tracajá 10. Ilha do Bacaba 11. Ilha do Araruna Goiaba-de-junho TI Paquiçamba 12. Região do Lopreu Aldeias TI Arara da Volta Grande do Xingu 13. Região da Barra do Vento 14. Ilha da Barra do Vento A: Mïratu Aldeias 15. Ilha do Cemitério B: Paquiçamba C: Furo Seco Áreas de pesca 16. Poço do Alcides 17. Ilha do Gorgulho D-E: Terrawãngã Impactos à reprodução e alimentação da fauna aquática

A dinâmica sazonal do pulso de inundação Foram realizados importantes mapea- é um dos principais fatores para a regula- mentos dos períodos de alagamento de ilhas ção da época de reprodução e recrutamento e sarobais, destacando sua relação com a da fauna aquática na bacia Amazônica18, migração de peixes e quelônios em direção a o que inclui a Volta Grande do Xingu. Isso áreas alagadas para alimentação. Tal identifi- significa que as oscilações entre as vazões cação conduz os Juruna (Yudjá) a conclusões de cheia e seca no mesmo ano geram um importantes, que precisam ser reconhecidas sincronismo entre os processos ecológicos no mesmo patamar dos conhecimentos cientí- de plantas e animais19. Esse fenômeno rege ficos acadêmicos, da dita ciência “dos brancos”. os ciclos de vida e a alimentação dos ani- Vale a pena destacar que essas conclusões mais que garantem a segurança alimentar convergem com teorias sobre a ecologia e a das populações ribeirinhas, sobretudo os limnologia dos ecossistemas aquáticos amazô- peixes e quelônios20. nicos e sobre a climatologia do norte da Amé- rica do Sul21. O infográfico (p. 24) apresenta Muitos tucuns já morreram, além de outras uma síntese das conclusões dos pesquisadores frutas e das sarobas. Tudo isso é o que os Juruna (Yudjá) sobre esse aspecto. peixes comem, o pacu principalmente. Não Considerando o fluxo normal do rio Xingu, adianta só monitorar os peixes, nós temos o final do mês de novembro é marcado pelo que monitorar também as plantas. início da subida da água, a chegada da água nova, quando os sarobais começam a alagar. Agostinho Juruna, da aldeia Mïratu Na sequência, em janeiro, são os igapós que

18. Cf. BAYLEY, P. B., the Amazon. New York: Mekong River Commission, J., BAYLEY, P. B. e SPARKS, Aquatic environments in Columbia University 2004, pp. 285-309; R. E. The flood pulse the Amazon Basin, with an Press, 1996. CASTELLO, L., MCGRATH, concept in river-floodplain analysis of carbon sources, D. G., HESS, L. L., COE, M. systems. In: Canadian fish production, and yield. 20. Cf. ARAUJO-LIMA, C. T., LEFEBVRE, P. A., PETRY, special publication of In: Canadian Special A. R. M., GOULDING, M., P., MACEDO, M. N., RENÓ, fisheries and aquatic Publication of Fisheries FORSBERG, B., VICTORIA, V. F. e ARANTES, C. C. The sciences, 106, 1989, pp. and Aquatic Sciences, 106, R. e MARTINELLI, L. vulnerability of Amazon 110-127; GOULDING, M., 1989, pp. 399-408 e JUNK, W. The economic value of the freshwater ecosystems. In: SMITH, N.J. e MAHAR, J., BAYLEY, P. B. e SPARKS, Amazonian flooded forest Conservation Letters, 6 (4), D. J. Floods of fortune: R. E. The flood pulse concept from a fisheries perspective.In : 2013, pp. 217-229; e LIMA, ecology and economy along in river-floodplain systems. Internationale Vereinigung M. A. L., KAPLAN, D. A. e the Amazon. New York: In: Canadian special für theoretische und RODRIGUES DA COSTA Columbia University Press, publication of fisheries and angewandte Limnologie: DORIA, C. Hydrological 1996; e WINEMILLER, K. aquatic sciences, 106, 1989, Verhandlungen, 26 (5), 1998, controls of fisheries O. Floodplain river food pp. 110-127. pp. 2177-2179; WINEMILLER, production in a major webs: generalizations K. O. Floodplain river Amazonian tributary. In: and implications for food webs: generalizations Ecohydrology, 10 (8), 2017. fisheries management.In : 19. Cf. BAYLEY, P. B. The and implications for WELCOMME, R. L. e PETR, flood pulse advantage and fisheries management. In: 21. Cf. BAYLEY, P. B., T. (eds). Proceedings of the restoration of river- WELCOMME, R. L. e PETR, Aquatic environments in the second international floodplain systems.In : T. (eds). Proceedings of the Amazon Basin, with an symposium on the Regulated Rivers: Research the second international analysis of carbon sources, management of large & Management, 6 (2), 1991, symposium on the fish production, and yield. rivers for fisheries. Volume pp. 75-86 e GOULDING, management of large In: Canadian Special II. Phnom Penh: Food and M., SMITH, N. J. e MAHAR, rivers for fisheries. Volume Publication of Fisheries Agriculture Organization & D. J. Floods of fortune: II. Phnom Penh: Food and and Aquatic Sciences, 106, Mekong River Commission, ecology and economy along Agriculture Organization & 1989, pp. 399-40; JUNK, W. 2004, pp. 285-309.

37 começam a alagar. Em fevereiro, ambos os responsáveis pela produtividade aquática22. ambientes já se encontram alagados em sua A inviabilidade do hidrograma “de con- quase totalidade. Esse também é o período em senso” foi confirmada no primeiro ano após que as tracajás e os peixes começam a entrar o barramento do Xingu, entre 2015 e 2016. na floresta alagada para se alimentar. Diver- Uma importante diferença observada foi a sas espécies de peixe também entram para diminuição da produção de peixe desem- procurar os nichos adequados para desova. O barcado total na enchente de 2016 (janeiro mapeamento aponta que os animais perma- e fevereiro) em relação aos outros anos. necem nesses ambientes até o mês de maio, Dois eventos podem ter contribuído para na vazante, quando então voltam ao rio, à essa diminuição: de um lado, a efetivação do procura de áreas mais profundas. barramento do rio e o fim do fluxo natural Para compreender qual vazão é suficien- de águas pela Volta Grande do Xingu, e, de te para alagar esses ambientes e garantir a outro, uma enchente particularmente fraca migração sazonal dos animais, cruzaram-se as do rio Xingu no ciclo hidrológico de 2016. informações da movimentação sazonal com a Esse fenômeno também foi observado no rio vazão histórica do período de 1931 a 2008. Adi- Tapajós, e provavelmente está relacionado ao 22. Cf. WINEMILLER, K. cionalmente, foram também relacionados os registro de pouca chuva ao longo da drena- O. Floodplain river food dados de vazão dos hidrogramas de consenso gem dessas duas bacias, sobretudo em suas webs: generalizations and implications for A e B, bem como aqueles registrados em 2016, áreas situadas no bioma Cerrado, no Escudo fisheries management. In: primeiro ano após o barramento total do rio. Central Brasileiro. WELCOMME, R. L. e PETR, Observou-se, então, que a vazão mensal Esse fenômeno de “inverno fraco”, como T. (eds). Proceedings of em janeiro, que possibilita o início da entrada é referido localmente, é interpretado por the second international symposium on the dos animais na floresta aluvial, precisa estar grande parte dos climatologistas como uma management of large acima de 8.000 m3/s. Além disso, levando-se continuação do forte El Niño de 2015. Mesmo rivers for fisheries. Volume em consideração que esse mês marca somen- assim, esse evento, que também pode ter se II. Phnom Penh: Food and te o início do deslocamento dos animais, e amplificado na Volta Grande devido à UHE Agriculture Organization & Mekong River Commission, que seu auge ocorre efetivamente em feverei- Belo Monte, acabou fornecendo um impor- 2004, pp. 285-309; ro, a vazão média nesses dois meses necessita tante quadro sobre a variação anual do Xingu CASTELLO, L., MCGRATH, atingir a casa dos 15.000 m3/s. e sobre os níveis adequados do fluxo de água D. G., HESS, L. L., COE, M. Comparando-se essas médias mínimas necessários para a garantia da vida de plantas T., LEFEBVRE, P. A., PETRY, P., MACEDO, M. N., RENÓ, necessárias com os hidrogramas de consenso e animais. Isso porque, em 2016, a variação V. F. e ARANTES, C. C. The sobre os quais insiste a concessionária de máxima atingida foi de 10.000 m³/s, um vulnerability of Amazon Belo Monte, nota-se que nem a maior vazão valor menor do que a média de 23.000 m³/s freshwater ecosystems. In: proposta, de 8.000 m3/s, correspondente ao e, ao mesmo tempo, superior à maior vazão Conservation Letters, 6 (4), 2013, pp. 217-229; mês de abril no hidrograma B, será suficiente estipulada no hidrograma proposto pela em- CASTELLO, L., ISAAC, V. para que os animais se desloquem para as presa concessionária, de 8.000 m³/s. J. e THAPA, R. Flood pulse áreas de alimentação na floresta aluvial e ali Com esse quadro do monitoramento, effects on multispecies permaneçam por tempo suficiente para que foi possível verificar os impactos deletérios fishery yields in the Lower Amazon. In: Royal Society consigam engordar e crescer. que uma redução na vazão do Xingu pode open science, 2 (11), 2015, Importante lembrar que o processo repro- ter sobre a fauna aquática e, consequente- p. 150299; e WINEMILLER, dutivo dos peixes que se reproduzem nesse mente, a pesca, seja essa redução o resulta- K. O., MCINTYRE, P. B., período e nessas áreas depende não somen- do de um fenômeno natural ou algo causa- CASTELLO, L., FLUET- CHOUINARD, E., te de uma ampla área alagada, como de um do por Belo Monte. GIARRIZZO, T., NAM, S., período de pelo menos três meses para que os Em outras palavras, os dados de vazão BAIRD, I.G., DARWALL, W., ovos eclodam, as larvas se desenvolvam e os e de produção pesqueira para o período de LUJAN, N. K., HARRISON, I. e alevinos se formem. Mesmo que um rápido chuvas de 2015-2016, registrados no moni- STIASSNY, M. L. J. Balancing hydropower and biodiversity pulso de 8.000 m³/s permita o alagamento de toramento independente, mostram clara- in the Amazon, Congo, and uma parte dos pedrais e florestas aluviais, isso mente o que uma redução de vazão provoca Mekong. In: Science, 351 de nada adianta para garantir as interações na Volta Grande do Xingu, e demonstram (6269), 2016, pp. 128-129.

38 inequivocamente que reduções ainda mais Gráfico 15 Comparativo de índices de vazão média mensal, severas, agravadas por um efeito cumulativo, tendo como base: série histórica de 1931-2008; hidrogramas comprometerão o ciclo ecológico do rio e a de consenso A e B; e índices registrados em 2016 segurança alimentar das populações indíge- nas e ribeirinhas23. Em função dessa diferença marcante no 20000 Vazão m/s (média 1931 a 2008) pulso de inundação, e de seus efeitos nefastos 18000 sobre os ambientes inundáveis e a vida aquá- Vazão m/s (média 2016) 16000 tica, 2016 passou a ser chamado pelos Juruna Hidrograma de Consenso B (Yudjá) como o “ano do fim do mundo”. 14000 12000 Hidrograma de Consenso A O nível de subida da água de 2016, em 10000 abril, não conseguiu fazer o pacu engordar. 12.000 m³/s é o que as tracajás precisam 8000 para conseguirem entrar nos igapós 6000 para se alimentar. Com o hidrograma de 4000 consenso, serão apenas 8.000 m³/s em 2000 abril. Nem precisa dizer mais nada, não é? 0 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez Diel Juruna, da aldeia Mïratu

O gráfico 15 traz uma síntese dos dados do jás também morreram ao tentar se deslocar monitoramento acerca dos índices mensais para montante, encontrando nas suas rotas a de vazão. Em suma, a vazão média que será barragem Pimental. Ao tentarem atravessar liberada pelos hidrogramas A e B é menor por terra, prenderam-se nas grandes pedras do que a vazão média liberada em 2016, o que formam a barragem e morreram desi- “ano do fim do mundo”, em que os peixes não dratadas. Note-se que, embora isso fosse de conseguiram desovar, nem tampouco entrar, conhecimento dos vigilantes de Belo Monte, juntamente com os quelônios, na floresta nenhuma equipe foi acionada. aluvial para se alimentar. Reitera-se que tal Esses impactos ocorreram porque, como vazão de 2016, por sua vez, foi bem maior salientado anteriormente, existe um sincro- que a vazão do hidrograma B, melhor cenário nismo entre o período de frutificação das áre- proposto pelo empreendedor. as da floresta aluvial e do sarobal com o pulso O barramento total do rio Xingu ocorreu de inundação. Assim, caso ocorra a adoção 23. Em estudo desenvolvido no final de novembro de 2015, dando início dos hidrogramas A e B, como a vazão liberada no rio Madeira, ao enchimento do reservatório principal e não será suficiente para alagar essas áreas, os pesquisadores demonstraram categoricamente a relação do reservatório intermediário. A partir de peixes frugívoros serão diretamente afetados, entre pulso de inundação então, os impactos na região da Volta Grande entre eles as espécies de pacus e os quelônios e produção pesqueira. Cf. do Xingu – ou no trecho de vazão reduzida que também utilizam essas áreas. LIMA, M. A. L., KAPLAN, D. (TVR), como insiste a concessionária da usi- O próprio EIA reconhece que, quando o A. e RODRIGUES DA COSTA DORIA, C. Hydrological na – começaram a se sobrepor. Houve grande hidrograma A estiver em operação, são pre- controls of fisheries mortandade de peixes no período reproduti- vistos impactos nos hábitos alimentares dos production in a major vo, devido à interrupção do fluxo migratório, indígenas das TIs, tais como “perda de renda Amazonian tributary. In: à indisponibilidade de áreas de alimentação e fontes de proteína com comprometimento Ecohydrology, 10 (8), 2017. e desova. De forma análoga, a falta de áreas dos hábitos alimentares, principalmente das 24. ELETROBRÁS. para alimentação fez com que os quelônios TIs”24. O prognóstico global do estudo estabe- Aproveitamento não conseguissem desenvolver seus ovos lece claramente a necessidade de uma vazão Hidrelétrico (AHE) Belo Monte: Estudo de Impacto para a temporada reprodutiva de 2016, e mínima de 15.000m³/s para que os pulsos de Ambiental (EIA), v. 3 [S.l.], emagrecessem e morressem. Muitas traca- inundação possam ocorrer com um mínimo 2009. p. 292.

39 de normalidade, garantindo as interações da curimatá. Ao longo de todo o ano de 2016, fauna aquática com os ambientes inundáveis. acompanharam-se as áreas que essa espécie Mesmo prevendo esse impacto, o monito- utilizava para realizar suas piracemas, e o ramento realizado no âmbito do Plano Básico resultado foi de que nenhuma delas propi- Ambiental (PBA) indígena não acompanha ciou um ambiente adequado para a desova. essas transformações. Ressalte-se ainda Tais observações foram confirmadas após a que, no EIA, esse impacto era previsto para captura, no mês de julho, de vários exempla- uma vazão máxima de 4.000 m³/s no mês de res com suas ovas secas. Essas consequências abril, mas o monitoramento independente são também previstas no EIA, que aponta: já indicou que tal alteração ocorre mesmo com uma vazão de quase 10.000 m³/s nesse No setor da Volta Grande, dois potenciais mesmo mês. problemas relacionados com a estrutura No âmbito da pesquisa independente, das populações de peixes que são alvo identificou-se também que, logo após o das pescarias podem ser antevistos. barramento do rio, houve um aumento no Primeiramente, a redução de vazão deverá rendimento das pescarias em decorrên- alterar drasticamente a disponibilidade cia do baixo nível das águas. Levando-se de áreas de desova e crescimento para em consideração que o trecho de 100 km a ictiofauna, notadamente nas florestas do chamado TVR é uma importante área aluviais, inundadas durante os meses de de pesca para pescadores comerciais de maior vazão. Isto poderá implicar, como já Altamira e Anapu, o impacto da sobrepes- foi visto antes, na perda ou diminuição da ca nessa região após o barramento do rio é abundância de espécies que dependem bastante preocupante. Tal impacto também destes ambientes26. foi previsto no próprio EIA: Diante do exposto, ressalta-se que o A pesca de peixes de consumo e a cenário concretizado em 2016, com vazões pesca comercial de acaris poderão ser superiores às vazões estabelecidas nos mantidas na região, mesmo que com hidrogramas de consenso A e B, eviden- uma pequena alteração na composição cia as consequências negativas de um ano de espécies alvo. Contudo, o aumento com inverno muito fraco. Por esse motivo, da capturabilidade pela extensão dos é necessário repensar as vazões que serão períodos de estiagem mais acentuados liberadas para a Volta Grande do Xingu, poderá conduzir à sobrepesca. Alternâncias para que se possa manter o modo de vida de anos de maior e menor facilidade de das famílias indígenas e ribeirinhas, assim captura dos peixes poderão, a médio e como o equilíbrio ambiental. longo prazo, levar à redução de estoque Existe também uma forte relação entre pesqueiro para consumo, implicando em a produtividade das pescarias e o pulso de comprometimento dos hábitos alimentares inundação das florestas aluviais. Os maiores das comunidades ribeirinhas25. rendimentos das pescarias ocorreram sem- pre no início da enchente e da vazante do rio. A vazão em 2016 não foi suficiente para Segundo os dados do presente monitoramen- alagar os pedrais e igapós na enchente, assim, to, 48,9% do pescado capturado é representa- a pesca do acari com tarrafa aconteceu du- do pelos pacus, que se alimentam nesse tipo 25. ELETROBRÁS. rante todo o ano. Por esse motivo é impor- de ambiente. Aproveitamento tante alertar para o risco de sobrepesca desse O barramento do rio Xingu gerou e tem Hidrelétrico (AHE) Belo Monte: Estudo de Impacto grupo, uma vez que as vazões dos hidrogra- gerado sérios impactos sobre o modo de vida Ambiental (EIA), v. 2 [S.l.], mas não garantem a inundação dos pedrais. do povo Juruna (Yudjá). Inclusive, o EIA 2009. p. 173. Outra espécie que foi diretamente afetada chegou a prever, para o ano em que o hidro- no primeiro ano de barramento do rio foi a grama A estiver em operação, a ocorrência de 26. Idem.

40 impactos sobre as espécies que dependem da O monitoramento acompanhou, entre floresta aluvial: “Os peixes que dependem da janeiro de 2014 e dezembro de 2017, um floresta aluvial (67% da riqueza de espécies total de 675 refeições entre as famílias da da Volta Grande) serão impactados imedia- aldeia Mïratu. Os dados apontam que em tamente”27. Reiteramos que, no EIA, esse 2014 e 2015 o peixe constituiu a principal impacto era previsto para uma vazão máxima fonte de proteína animal consumida, mas de 4.000 m³/s no mês de abril, sendo que a esse quadro se alterou em 2016 e 2017, vazão disponibilizada em 2016 foi mais que o quando os produtos provenientes da cidade dobro e, mesmo assim, os peixes não conse- tornaram-se preponderantes na dieta das guiram se alimentar. famílias. A análise mostrou que houve, portanto, uma drástica diminuição no con- O peixe sabe que, quando o rio começa a sumo de peixes, especialmente dos tipos de encher, ele poderá comer o sarão. Entre pacu, a partir de 2016. dezembro de 2015 e janeiro de 2016, os Esse resultado está diretamente relacio- pacus que pescamos estavam magros e nado ao fechamento do rio e à redução da doentes, lisos por fora, ninguém comeu vazão no trecho da Volta Grande do Xingu. esses peixes com medo de ficarmos Como a vazão liberada não foi suficiente doentes também. para alagar as ilhas e sarobais, os peixes não se alimentaram, ficaram magros demais, Agostinho Juruna, da aldeia Mïratu impossibilitando seu consumo. Isso, por sua vez, elevou o consumo de produtos Esse “ano do fim do mundo”, o primeiro industrializados oriundos da cidade, como ano com as alterações hidrológicas desen- frango, carnes processadas, e enlatados. cadeadas pelo barramento, influenciou diretamente o modo de vida do povo Juruna Estamos sentido o impacto de Belo Monte (Yudjá) da TI Paquiçamba, e precisa ser con- com relação a nossa segurança alimentar. siderado como um exemplo sobre a necessi- dade de redefinição dos volumes adequados Vivemos o impacto, com a diminuição dos de água na vazão no Xingu e a sincronicidade peixes que mais consumimos, depois da dos regimes de cheia e seca para manutenção barragem. Esses peixes que não comemos da vida na Volta Grande do Xingu. mais estão sendo substituídos por produtos da cidade, como mortadela e frango Segurança alimentar congelado. Sabemos muito bem que esses produtos não fazem bem à nossa saúde, principalmente à saúde das crianças. Toda nossa vida foi em torno da pesca e do rio Xingu. Agora estamos tendo que nos Mas estamos ficando sem opção e, na adaptar a viver no seco, da terra. Nossas correria que virou nossa vida, com esse roças sempre foram pequenas porque a tanto de reunião, aumentamos o consumo base de nosso consumo alimentar sempre dos produtos da cidade. Isso não poderia foi o peixe e a tracajá. Fomos obrigados, estar acontecendo conosco porque é uma depois da barragem, a sair do rio e viver no grave mudança no nosso modo de vida, é seco. Isso é muito ruim. Estamos tentando mais impacto da barragem. nos adaptar, mas o que nós gostamos mesmo de fazer é pescar e nadar. Bel Juruna, da aldeia Mïratu 27. ELETROBRÁS. Aproveitamento Bel Juruna, da aldeia Mïratu Hidrelétrico (AHE) Belo Monte: Estudo de Impacto Ambiental (EIA), v. 3 [S.l.], 2009. p. 291.

41 Uma das implicações dessa mudança é Gráfico 16 Consumo de proteína animal pelos Juruna que as famílias passam a ter de arcar com (Yudjá) da aldeia Mïratu, TI Paquiçamba. gastos que não eram previstos, uma vez que, antes do barramento, sua principal fonte de 2014 3% Criação alimentação vinha do rio. Acarretam-se, dessa 6% Quelônios forma, sérias consequências para a segurança 2014 alimentar e econômica dessas famílias, pois 1000 30000 a transformação não se faz acompanhada de 26% Produção 25000 um incremento em sua renda – ao contrário, 800 da cidade 20000 o que se observa é que as pessoas estão se 53% Peixe 600 desfazendo de bens materiais para conseguir 15000 400 comprar alimentos na cidade. (gráfico 16) 10000 200 5000 Já temos notado o aumento de doenças 12% Caça 0 0 entre nós. Nosso modo de vida foi tirado Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez de nós. Estamos tentando nos adaptar, 2015 2% Criação mas não tem sido fácil. Temos aumentado 4% Quelônios 2015 muito o consumo de remédios. Eu sei disso 1000 30000 porque sou agente indígena de saúde. 800 25000 25% Produção Bel Juruna, da aldeia Mïratu 20000 da cidade 600 56% Peixe 15000 400 Outra decorrência da mudança na base 10000 alimentar das famílias é sobre a saúde de 200 5000 adultos e crianças. Bel Juruna, que trabalha 13% Caça 0 0 como agente indígena de saúde (AIS), relata Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez que tem crescido consideravelmente o consu- 1% Criação mo de medicamentos alopáticos. “Antes, nin- 2016 2016 guém tomava essa quantidade de remédios, 2% Quelônios mas também não comíamos os produtos da 1000 30000 cidade como agora”, explica. “Aumentaram 800 25000 as doenças, como furúnculos, hipertensão, 50% Produção 20000 dores no corpo e de cabeça, micoses, alergias da cidade 600 e dores de estômago.” 41% Peixe 15000 400 Os resultados da pesquisa de monitora- 10000 mento independente permitem afirmar que 200 5000 houve substantiva diminuição na qualidade de 0 0 vida das famílias da aldeia Mïratu, em de- 6% Caça Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez corrência da mudança em sua dieta, tanto do 2017 ponto de vista da segurança econômica quan- 2017 6% Criação to alimentar. Adicionalmente, o conjunto dos 1% Quelônios 1000 30000 resultados da pesquisa demonstra que a causa 800 25000 dessa mudança está ligada ao barramento do 32% Peixe 20000 rio Xingu e consequente redução da vazão, 600 15000 que impacta a principal espécie capturada 400 e consumida, o pacu. Esse impacto, por sua 10000 200 vez, pode ser estendido para todas as espécies 60% Produção 5000 aquáticas que necessitam do pulso de inunda- da cidade 12% Caça 0 0 ção da floresta aluvial para se alimentar. Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez Pacus (g) Vazão (m³/s)

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O FIM DO MUNDO 4 QUE CONHECEMOS experiência de constituir uma equi- animais aquáticos se alimentem e se repro- pe de pesquisa não só interdiscipli- duzam. A sincronia do rio com a floresta, nar, mas intercultural, para aferir que alimenta a fauna aquática e serve como Ae caracterizar as alterações na vida refúgio para sua reprodução, é extensamen- da Volta Grande do Xingu após a construção te reconhecida pela comunidade científica e da usina hidrelétrica (UHE) Belo Monte traz pelos Juruna (Yudjá). muitos ensinamentos e não se encerra no que Os dados coletados pelo monitoramento foi apresentado nas últimas páginas. independente, entre 2014 e 2017, demons- De antemão, a iniciativa é uma reação tram, portanto, que as vazões estabelecidas ao menosprezo dispensado aos conheci- de forma unilateral, apenas entre empreen- mentos de povos e comunidades tradicio- dedor e governo, o chamado hidrograma “de nais, nos marcos do planejamento de um consenso”, não são suficientes sequer para megaempreendimento que afeta direta e a inundação das áreas de planícies aluviais profundamente uma extensa e complexa mais baixas. rede de seres e ambientes. Em especial, o que se observou em 2016, O monitoramento aposta, portanto, na batizado pelos Juruna (Yudjá) como o “ano realização de diálogos mais inclusivos, que do fim do mundo” por conta das consequên- sejam motivados pela reunião dos mais cias nefastas dos baixos níveis de vazão do diferentes tipos de pessoas em torno de uma Xingu, deixou claro que a implantação de questão: a garantia da vida na Volta Grande tal esquema hidrológico tem o potencial de, do Xingu. Em especial, as considerações dos em poucos anos, tornar a Volta Grande do Juruna (Yudjá), donos do rio Xingu, precisam Xingu irreconhecível. ser levadas em conta de forma respeitosa. As concepções dos povos indígenas sobre A comunidade científica, por sua vez, está seus modos de existência e suas relações com convocada a contribuir por meio de suas me- seres não humanos e humanos não devem lhores ferramentas e junto a povos indígenas figurar apenas como escopo ilustrativo de e ribeirinhos para evitar a extinção socioam- peças técnicas, como se fossem mera parte biental dessa região. imaginativa de sua cultura, sujeita a confir- Esta publicação mostrou como os resulta- mação por meio de dados supostamente mais dos dos cinco anos de pesquisa – que envol- verdadeiros ou científicos, fornecidos por vem, como dito, centenas ou milhares de técnicos especialistas. anos de conhecimento tradicional construído Em realidade, as narrativas míticas refor- pelos Juruna (Yudjá) – são alarmantes. çam a conexão que vincula os Juruna (Yudjá) Há milênios, a fauna aquática é a base e o rio Xingu como partes inseparáveis do da alimentação ribeirinha e indígena, e há mesmo regime expressivo de existência, décadas também constitui sua principal mostrando ser possível afirmar que o desa- fonte de renda. A chave para a produtividade parecimento de um pode levar ao desapare- pesqueira do Xingu, assim como para toda cimento de outro. Tal afirmativa não deve ser a bacia amazônica, é o pulso de inundação considerada como um exagero reflexivo das e a disponibilização de áreas para que os pessoas Juruna (Yudjá) sobre seu futuro e o

45 futuro do rio Xingu. Tampouco tal expres- de ajustes e, consequentemente, diminuição são narrativa deve ser tomada como um da capacidade de geração de energia. Por isso, elemento simbólico – e, por isso, menos real a revisão dos critérios e condições de um ou menos verdadeiro – de sua assustadora hidrograma de sustentabilidade socioam- visão que envolve a região da Volta Grande biental para a Volta Grande do Xingu deve do Xingu em decorrência dos impactos da ser feita pelo poder público, com apoio da obra de Belo Monte. Como alerta o antropó- comunidade científica, nela integrando-se os logo francês Bruno Latour, “as inquietudes conhecimentos de povos indígenas e ribeiri- cosmológicas” dos povos ameríndios não são nhos que vivem na região. e nem nunca foram infundadas28. Esse imperativo é uma questão de direi- Além disso, ainda há que se considerar o tos fundamentais. A efetividade do hidro- conjunto de mudanças no modo de vida des- grama da vazão residual para a manutenção se povo, tornado emblemático na expressão socioambiental da Volta Grande do Xingu cunhada por Bel Juruna: ter de se adaptar a está assentada em direitos previstos na viver no seco. Essa mudança ontológica figu- Constituição Federal brasileira. Em outras ra um grande esforço de adaptação que não palavras, não é um poder discricionário do se tem feito sem grande pesar. Obrigar um governo a autorização de ações que colo- povo canoeiro a ter de viver no seco é uma quem em risco, concreto e objetivo, a sobre- situação de extrema mudança nas práticas vivência física e cultural de povos indígenas, cotidianas, cosmológicas, culturais e sociais. como pode acontecer com os Juruna (Yudjá) Como disse dona Jandira, “nós, Juruna, não e os Arara. Cabe também lembrar que a temos pés, temos canoa para navegar no rio, Constituição não só reconhece o direito assim nós somos”. ao território dos povos indígenas, como Tal afirmação reforça que o fluxo das também proíbe explicitamente sua remoção águas e a humanidade Juruna (Yudjá) se forçada de territórios originários. fazem conjuntamente, como resultado de um Diante desse quadro, a ausência de garan- processo de interação mútua. Essa imagem tias relacionadas à manutenção, presente e do povo como um coletivo de pessoas canoei- futura, das condições ambientais indispen- ras é constantemente acionada pelas pessoas sáveis à reprodução física e cultural de povos na aldeia Mïratu, seja em suas atividades indígenas e populações ribeirinhas torna corriqueiras de pesca e busca de tracajás, seja imperativo o cancelamento do início dos em seu modo preferencial de deslocamento testes do hidrograma “de consenso” e a para a cidade de Altamira e demais regiões redefinição de critérios para a vazão a ser ou, ainda, em suas práticas de lazer quando mantida na Volta Grande do Xingu, com saem com seus grupos familiares de parentes índices que de fato proporcionem condições para banhos em praias e captura de acaris, de continuidade da diversidade socioambien- comidos assados. tal da Volta Grande do Xingu. O rio Xingu e a Volta Grande do Xingu são condições fundamentais do modo de existên- cia do povo Juruna (Yudjá) e este monitora- mento consiste em uma arma de defesa desse povo e de seu território tradicional. É preciso também que se reconheça que há um conflito de interesses quando a 28. Esse pensamento é própria empresa concessionária da usina é apresentado e desenvolvido responsável pelo monitoramento, registro e por Latour no artigo Agency at the time of the publicação dos impactos resultantes da apli- Antropocene. In: New cação do hidrograma proposto. Impactos que, literary history, n. 45, vol 1, por sua vez, poderiam implicar a necessidade pp. 1-18, 2014.

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