As Reconstruções Modernas De Um Mito
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YUKIONNA: AS RECONSTRUÇÕES MODERNAS DE UM MITO Clície Santos de Araujo Maria Luísa Vanik Pinto Andrei dos Santos Cunha RESUMO Neste trabalho, pretendemos fazer uma análise comparativa entre o conto de fadas japonês Yukionna (“A Mulher das Neves”) na versão de Lafcadio Hearn e suas adaptações modernas para o cinema em Kwaidan: as quatro faces do medo (1964), de Masaki Kobayashi, e em Sonhos (1990), de Akira Kurosawa. Com isso, esperamos visualizar as nuances interpretativas que os diretores têm do conto clássico e de que maneira tais visões são representadas nos filmes. Como referencial teórico central, utilizaremos os instrumentos de análise propostos na obra de João Batista de Brito (2006). Inicialmente, podemos concluir que o filme de 1964 possui mais semelhanças com o conto de Hearn, enquanto o filme de 1990 mostra uma interpretação mais livre. PALAVRAS-CHAVE: LITERATURA COMPARADA, CINEMA, LITERATURA JAPONESA. ABSTRACT In this work, we intend to make a comparative analysis between the Japanese fairytale Yukionna (“The Woman of the Snow”), by Lafcadio Hearn and two modern film adaptations, Masaki Kobayashi’s Kaidan (1964), and Akira Kurosawa’s Dreams (1990). With that, we would like to investigate how each director envisions the classical tale, and how these interpretations are portrayed on their movies. As theoretical reference we used the instruments of analysis proposed by João Batista de Brito (2006). As a preliminary observation, we can conclude that the 1964 movie has more similarities with Hearn’s tale, while the 1990 movie shows a somewhat more free interpretation of the story. KEYWORDS: COMPARATIVE LITERATURE, CINEMA, JAPANESE LITERATURE. 1 Introdução O conto de fadas é uma das mais representativas (e básicas) formas de contato de um indivíduo com o imaginário de seu povo – ou de outros povos. Não sem razão, histórias folclóricas marcam a memória de inúmeras crianças e adultos ao redor do mundo, recebendo adaptações adequadas a interesses, faixas etárias e interpretações diversas. *Graduanda do bacharelado em Letras – tradução japonês-português pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – [email protected] *Graduanda do bacharelado em Letras – tradução japonês-português pela Universidade Federal do Rio Grande do sul – [email protected] Para este trabalho, selecionamos o conto popular japonês Yukionna, tirado do livro Kwaidan: stories and studies of strange things, de Lafcadio Hearn, publicado em 1904. De caráter oral, a história possui variações regionais por todo o Japão. A personagem que dá título ao conto, um ser sobrenatural da neve, permanece fortemente arraigada ao imaginário japonês, sendo encontrada em representações que vão desde as eras mais antigas (sob a forma de pinturas clássicas) às mais modernas (como personagem de animações e até de jogos como Pokémon). As adaptações cinematográficas escolhidas para a tarefa de analisar a história e a personagem foram Kwaidan: as quatro faces do medo (1964), de Masaki Kobayashi e Sonhos (1990), de Akira Kurosawa. Ambos os filmes são divididos em segmentos independentes; do filme de Kobayashi foi utilizado o segmento “Yukionna”, e do filme de Kurosawa utilizamos o segmento “Blizzard”. O objetivo deste trabalho é visualizar as nuances interpretativas que os dois diretores japoneses têm dos elementos do conto clássico e analisar de que maneira tais visões são representadas em seus respectivos filmes. 2 Sobre o autor Lafcadio Hearn Lafcadio Hearn nasceu em 1850 na ilha grega de Lefkas, filho de Charles Hearn, um cirurgião anglo-irlandês, do exército inglês, e de Rosa Cassimati, grega. Depois do divórcio dos pais aos seis anos, foi criado por uma tia-avó em Dublin, Irlanda, onde ele se sentia constantemente deslocado, especialmente pelas implicações de suas origens multiculturais. Aos 19 anos, mudou-se para os Estados Unidos, onde então começou a trabalhar como jornalista, ganhando notoriedade por suas habilidades de observação e registro. Finalmente, em 1890, chegou ao Japão, e com indicações do professor Basil Hall Chamberlain, da Universidade de Tóquio, acabou indo para a cidade de Matsue para atuar como professor de inglês em uma escola de ensino intermediário. Hearn chegou ao país em um período bastante propício da história japonesa: em 1868 se iniciara a dita era Meiji, na qual o Japão abrira seus portos após cerca de dois séculos no isolamento quase completo do restante do mundo e de um regime feudal de governo. A nação estava se modernizando, entrando em contato com tecnologias, conhecimentos e estéticas ocidentais, de modo que a presença estrangeira em terras nipônicas era grande. No entanto, diferente de muitos dos seus convivas britânicos, Hearn entrou no país sem a visão de que pertencia a uma cultura avançada. Pelo contrário, ele tomou pela cultura tradicional, que muitos japoneses estavam abandonando em detrimento dos costumes ocidentais, grande interesse, analisando de maneira positiva – e muitas vezes idealizando – tudo o que havia de mais particular do povo japonês. Ainda em Matsue, casou-se com Setsu Koizumi, a filha de um samurai local, com quem teve quatro filhos. Em 1891, mudou-se para Kumamoto e passou a lecionar em um colégio de ensino médio por três anos, completando seu livro Glimpses of Unfamiliar Japan (1894). Em 1896, enquanto vivia em Kobe trabalhando como jornalista, recebeu a cidadania japonesa e adotou o nome pelo qual seria reconhecido posteriormente pelos japoneses: Yakumo Koizumi. Nesse mesmo ano, mudou-se para Tóquio e começou a lecionar sobre literatura inglesa na Universidade Imperial de Tóquio, onde conquistou o respeito de muitos alunos. Em 1903 saiu da Universidade Imperial de Tóquio e começou a lecionar na Universidade de Waseda. Morreu em setembro de 1904 aos 54 anos, vítima de um enfarte. Durante sua vida no Japão, escreveu vários artigos sobre a cultura e o cotidiano no país, além dos relatos de histórias populares e de poesia. Além dos já citados, entre seus principais trabalhos estão Kokoro: hints and echoes of Japanese inner life (1896), In Ghostly Japan (1899), e Japan: An Attempt at Interpretation (1904, em publicação póstuma). 3 Yukionna: a mulher das neves O conto conforme registrado por Hearn narra a história de dois lenhadores, Mosaku, já idoso, e Minokichi, um rapaz de 18 anos. Em uma noite, depois de passarem o dia na montanha cortando lenha, os dois se deparam com uma nevasca ao voltarem pra casa. Ao chegarem ao rio que normalmente atravessavam de barco para voltar ao vilarejo, eles percebem que perderam o último barco para o outro lado e são obrigados a pernoitar na cabana vazia do barqueiro. Durante a noite, Minokichi desperta sentindo muito frio e enxerga dentro do abrigo a Yukionna1, uma mulher muito pálida e bela, de cabelos negros e quimono branco, que, debruçada sobre o velho Mosaku, o congela com seu sopro. Ao perceber que estava sendo observada, ela se volta a Minokichi, mas decide poupá-lo devido a sua juventude e beleza. Contudo, ela estabelece a condição de que ele nunca revele aquele episódio a ninguém, sob pena de morte. Um ano depois, Minokichi encontra uma moça órfã, muito bela e gentil, chamada Yuki (ou O-Yuki, conforme Hearn). Os dois logo se apaixonam e decidem se casar. A beleza de Yuki é tanta que mesmo anos depois, já com 10 filhos, ela permanece com a mesma aparência e vitalidade de quando jovem. Uma noite, Minokichi, ao comentar sobre a beleza da mulher, acaba por relatar o episódio da cabana, dizendo ser aquela a única vez em que ele vira uma beleza tão grande quanto a dela, embora os olhos da mulher das neves o aterrorizassem. Yuki então revela ser a Yukionna e declara que, como ele traiu sua promessa, deveria matá-lo. Decide, no entanto, poupar mais uma vez sua vida por causa dos filhos. Mas jura, antes de desaparecer na neve, que se algum dia eles tivessem reclamações sobre ele, ela saberia e voltaria para matá-lo. Na introdução do livro Kwaidan: stories and studies of strange things, Lafcadio Hearn explica que essa história lhe foi relatada por um agricultor da antiga província de Musashi (região que hoje abrange Tóquio, Saitama e Kanagawa) como uma lenda de seu vilarejo natal. É importante observar que mais importante do que a história em si – que tem uma estrutura muito semelhante a inúmeros outros contos de fada japoneses – é a personagem da Yukionna. A personagem é considerada um yôkai, um ser sobrenatural, fantástico, ligado à natureza - neste caso, à neve -, e os relatos da aparição, como é comum à oralidade, variam de região a região. Mais antigo do que o registro de Hearn, há, por exemplo, o de Sôgi Shokoku Monogatari, de 1690, em que o autor relata ter visto a Yukionna. Não há, entretanto, uma estrutura narrativa que se desenvolva ao redor da personagem como no conto de Hearn. Com relação à estruturação e à temática, o psicanalista junguiano japonês Hayao Kawai, em sua análise de contos de fadas locais, aponta para um padrão nas histórias japonesas em que há um casamento entre um homem humano e uma mulher não humana: 1 A palavra yuki (雪) significa “neve” em japonês; onna (女) significa “mulher”. (...) homem e mulher se casam sob a condição de a mulher “esconder a sua verdadeira natureza”. Depois de um tempo (embora alguns tenham filhos), eles se divorciam porque a identidade da mulher é revelada. (KAWAI, 2007, p. 146) Kawai ainda compara esse tipo de união com as que ocorrem nos contos ocidentais, observando a diferença de foco: nos contos ocidentais, o casamento entre um ser humano e outro não humano se dá como uma maneira de recuperar a forma original humana (normalmente transformada após uma maldição), ou após essa recuperação; o casamento é o acontecimento final do conto; há uma separação clara entre o bem e o mal, e de alguma forma o bem triunfa. Já nos contos japoneses, a forma original da mulher não é humana; o casamento ocorre quando uma condição é estabelecida para que a mulher não mostre a sua “verdadeira natureza”; a frágil condição é quebrada (ou pelo homem, ou pela mulher); e ocorre o divórcio e o retorno da mulher à sua verdadeira natureza.