THAÍS DANIELA SANT’ANA E PEREIRA

ENTRE O PORÃO E O SÓTÃO:

espaços de formação em The Wives of Bath, de Susan Swan

ASSIS

2013  

THAÍS DANIELA SANT’ANA E PEREIRA

ENTRE O PORÃO E O SÓTÃO:

espaços de formação em The Wives of Bath, de Susan Swan

Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestre em Letras, na Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social.

Orientadora: Profa. Dra. Cleide Antonia Rapucci

ASSIS

2013 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca Ourinhos – UNESP

Sant’Ana e Pereira, Thaís Daniela , 1972– S232e Entre o porão e sótão: espaços de formação em The wives of Bath, de Susan Swan / Thaís Daniela Sant’Ana e Pereira. – Assis, 2013. 121 f. - fots.

Orientadora: Cleide Antonia Rapucci

Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2013.

1. Literatura contemporânea – Canadá. 2. Ficção canadense –Crítica e interpretação. 3. Identidade de gênero na literatura. 4. Susan Swan (1945–). I. Título. II. Universidade Estadual Paulista. III. Faculdade de Ciências e Letras.

CDD 813.082  

Dedico esta dissertação a Theodora e Baslute, pois, parafraseando Susan Swan:

One way or another, they inspired me to be… Thaís.  

AGRADECIMENTOS

A Deus, pela vida.

À Professora Doutora Cleide Antonia Rapucci, pela confiança em meu trabalho e posterior orientação e amizade.

Aos meus pais Theodora e Baslute pelo caminho de formação em que me conduziram.

Em especial a Baslute, que me apresentou muito cedo as Maravilhas do Mundo Antigo e me fez pensar se os Deuses Eram Astronautas.

Às minhas “mulheres-filhas” Thaís Maria e Victória, por toda a compreensão, cumplicidade com este projeto e por terem estado aqui.

Ao Fernando, fiel escudeiro, pelo companheirismo.

À Professora Doutora Ana Maria Domingues e à Professora Doutora Sandra

Aparecida Ferreira, membros da Banca de Qualificação deste trabalho, pelo incentivo e pelas críticas e sugestões à dissertação.

À Professora Doutora Jeane Mari Sant’ Ana Spera, minha tia, pelo incentivo ao retorno aos caminhos acadêmicos, mesmo que tardiamente.

E a todas as grandes mulheres que fizeram parte de minha construção, Márcias, Ledas,

Rejanes, Ivones, Marlis, Marizas, Kátias, Lucianas, Tânias, e Mazés... “Sisterhood is blooming; springtime will never be the same.”  

Levante-te, filha! Sem mais demora, partamos ao Campo das Letras; é nessa terra

rica e fértil que será fundada a Cidade das Damas, lá onde se encontram tantos frutos

e doces rios, lá onde a terra abunda em tantas coisas boas.

(Christine de Pizan, A cidade das damas, 1405)  

SANT’ ANA e PEREIRA, T. D. ENTRE O PORÃO E O SÓTÃO: espaços de formação em The Wives of Bath, de Susan Swan. 2013. 121 f. Dissertação (Mestrado em Letras). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2013.

RESUMO

Baseada em recentes teorias sobre o Romance de Formação de autoria feminina – Female Bildungsroman, esta dissertação objetiva estabelecer a relação entre espaço e o romance de formação na obra The Wives of Bath, publicado em 1993, pela autora Canadense Susan Swan. O romance, que revela seu aspecto intertextual em seu próprio título, pretende elucidar como o espaço - um internato para meninas nos arredores de – simbolicamente representado pelo sótão e pelo porão, é essencial para a construção do processo de formação feminino, através da subversão do gênero literário tradicional Bildungsroman. No primeiro capítulo, a vida e a obra de Susan Swan é estudada, assim como o romance em pauta e sua recepção crítica. No segundo capítulo, são apresentadas as teorias sobre espaço de Gaston Bachelard e de Michel Foucault, além de considerações sobre o romance de formação de autoria feminina. O terceiro capítulo é dedicado à análise, de acordo com as teorias previamente colocadas, e destaca-se, aqui, a relação entre o espaço da escola e o processo de formação de Mary Beatrice Bradford, a protagonista. Por último, mas não menos importante, esse estudo mostra o poder da literatura como forma de evidenciar a quebra do emudecimento das mulheres na formação de suas identidades femininas.

Palvras-chave: Literatura Canadense Contemporânea; Susan Swan; The Wives of Bath; Romance de Formação de Autoria Feminina.  

SANT’ ANA e PEREIRA, T. D. BETWEEN BASEMENT AND ATTIC: formation spaces in Susan Swan’s The Wives of Bath. 2013. 121 p. Dissertation (Master in Literature). - Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2013.

ABSTRACT

This dissertation is grounded on recent theories about Female Bildungsroman or novels of education in a feminist perspective. It aims at establishing the relationship between space and the novel of education in the novel The Wives of Bath, published in 1993 by the Canadian author Susan Swan. The novel, revealing its intertextual aspect by its title, focuses on shedding a light on how the space – a girls’ boarding school on the outskirts of Toronto – symbolically represented by the attic and the basement is essential to build a female formation process subverting the traditional genre itself. In the first chapter, life and work of Susan Swan are studied, as well as the novel and its critical reception. In the second chapter, the theories concerning spaces by Gaston Bachelard and Michel Foucault and also the theories on the female Bildungsromane are covered. The third chapter is focused on the analysis according to the relation observed between the spaces and the formative process of Mary Beatrice Bradford – the protagonist. At last but not least, the intention of this dissertation is to spread the power of literature as a way of evidencing the muting breaking of women in the formation of their feminine identities.

Key-words: Contemporary Canadian Literature; Susan Swan; The Wives of Bath; Female Bildugsroman.  

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...... 10

CAPÍTULO 1: A escrita de Susan Swan...... 15 1.1 Susan Swan, vida e obra...... 16 1.2. Susan Swan e o romance The Wives of Bath ...... 22 1.3. The Wives of Bath, o romance...... 27 1.3.1. A recepção da obra...... 30 1.3.2. The Wives of Bath & The Wife of Bath’s Tale: um diálogo no tempo e no 32 espaço...... 1.4. A obra, um resumo expandido...... 38

The Wives of Bath, um espaço no romance de formação de CAPÍTULO 2: 45 autoria feminina...... 2.1. O espaço, um elemento fundamental no processo de formação...... 46 2.1.1. O espaço para Bachelard e Foucault...... 49 2.2. The Wives of Bath, uma possibilidade de Bildungsroman?...... 52 2.3. O romance de formação de autoria feminina...... 57

CAPÍTULO 3: De Mary Beatrice a Mouse, uma (trans)formação em processo...... 64 3.1. O espaço (trans)formador em The Wives of Bath...... 66 3.1.1. O espaço e as personagens: um entre-lugar para entre-mulheres...... 70 3.2. Entre o porão e o sótão: territórios do pertencer...... 76 3.2.1. O quarto...... 77 3.2.2. A escada...... 80 3.2.3. A enfermaria...... 81 3.2.4. O porão...... 83 3.2.4.1 Os túneis de aquecimento...... 85 3.3. Sótão e porão: entornos...... 86 3.3.1. A escola...... 86 3.3.2. A ravina...... 90 3.3.3. O cemitério...... 92 3.3.4. O tribunal...... 94

CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 97

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...... 101

ANEXOS...... 108

Anexo A...... 109 Anexo B...... 114 Anexo C...... 118 Anexo D...... 120  

INTRODUÇÃO  

De acordo com Linda Hutcheon (1988), a subjetividade é entendida como o produto feminino das leituras. Tal produção de sentidos levou-me, como leitora de romances de

Língua Inglesa, à Literatura Canadense Contemporânea, especificamente a Susan Swan e suas obras, por ser uma escritora de confirmado engajamento com as questões de gênero e da mulher na pós-modernidade.

Vale ressaltar ainda, como um aspecto introdutório, que o meu interesse pelo trabalho da romancista Susan Swan e sua obra teve início com o encontro, e posterior estudo, do conto

The Man Doll e seu viés androgênico. Após essa significativa relação, cujo fruto foi a publicação de um capítulo de livro contendo um extrato do conto, autorizado pela autora, senti-me motivada a escolher um dos romances de Swan como objeto de estudo.

A escolha recaiu em The Wives of Bath (1993), devido a seus personagens instigantes e, principalmente, por promover uma possibilidade de leitura na esteira do romance de formação de autoria feminina, um dos gêneros de minha preferência. Além disso, a obra é pouco explorada academicamente, o que propicia a abertura de um leque de estudos ainda não marcados por análises e subjetividades prévias.

O romance The Wives of Bath1 aborda em sua trama narrativa a questão da construção da identidade da personagem Mary Beatrice Bradford. Esta dissertação pretende, pois, verificar a possibilidade de transgressão do gênero literário Bildungsroman (romance de formação) tradicional, por um romance de formação de autoria feminina, assumindo como pressuposto para tal análise a ideia de que o Bildungsroman feminino adapta ou reescreve topos geralmente masculinos, mas do ponto de vista marginalizado da escrita da mulher.

Com base nos estudos de Maas (2000) e Pinto (1990), fizemos uma leitura da forma subversiva com que a autora tece o processo de formação – ou de aprendizagem – da personagem Mary Beatrice Bradford, ou Mouse, ou ainda Mouse Bradford. Verificamos,

 1 Publicado inicialmente em 1993. Para este trabalho usamos a edição de 1998.   ainda, as estratégias de apropriação do gênero literário em uma perspectiva transgressora sugerida por Swan em todos os seus escritos.

Nessas considerações, ganha destaque o exame da função que a relação com o espaço exerce em tal processo de formação. Buscamos, nas autoras supracitadas, o embasamento teórico para uma possibilidade de efetivação e revisão de tal gênero, sob o ponto de vista denunciativo de uma sociedade canadense patriarcal, a partir da própria experiência da personagem.

Sobre a autora e a obra em pauta, publicada em 1993, é consenso que Susan Swan congrega suas observações objetivas e subjetivas sobre a condição da mulher. Assim, ambientado em um internato chamado Bath Ladies College, nas redondezas de Toronto, na década de 60, a adolescente Mouse Bradford relata o período em que experienciou a incerteza e o conflito identitário de viver em uma época, nas palavras da adolescente, em que ser um homem seria muito mais divertido.

Mouse carrega a incerteza de saber o que seria identidade e procura identificar-se nas relações espaciais. O parágrafo a seguir destaca a ligação da identidade com sua questão espacial:

Pelo menos essas pessoas da cidade de aparência triste sabem que pertencem a algum lugar. Eles tem uma identidade. Embora eu tenha que admitir que eu não entenda o que seja identidade. Por um lado, é o que faz você diferente do resto do mundo (que é o que Alice faz pra mim).2 (p.128)

A heroína pós-moderna de Susan Swan é retratada de tal forma que é perceptível a existência de traços semânticos no texto que remetem a uma alteração da percepção convencional de aspectos do mundo. Nesse sentido, destaca-se o estabelecimento das relações

 2 “At least these sad-looking city people knew they belonged somewhere. They had and identity. Although I have to admit, I don’t really understand what an identity is. For one thing, it’s what makes you different from the rest of the world (which is what Alice does for me).” As traduções utilizadas neste trabalho foram feitas pela autora da pesquisa.    afetivas e suas significações alternativas, que permitem constatar a relação entre formação e espaço em circunstâncias e lugares imaginários ou reais.

Com o objetivo de depreender a construção dos sentidos, a partir da ressignificação do espaço cotidiano, espaço esse marcado ideologicamente pelos semas do patriarcalismo e do inconformismo, o romance encaminha-se na contramão dessa via redutora e instaura o embate desestabilizador das convenções, exemplificado na própria casa de Mary Beatrice. De fato, o elemento desestabilizador aí observado está expresso por meio do domínio exercido pela madrasta, Sal, sobre seu pai Morley. Para bem conduzir esse embate, o romance subverte o espaço do colégio interno para meninas – inicialmente com objetivos de dominação masculina

– para a formação de fidalgas cristãs3, tornando tal espaço a antítese desse propósito: um local em que mulheres questionam suas posturas, suas condições e suas aparências. 

No primeiro capítulo desta dissertação, intitulado “A escrita de Susan Swan”, uma trajetória biográfica de Susan Swan foi abordada, bem como a fortuna crítica de suas obras e seu engajamento com o projeto feminista. Essa preocupação deve-se ao fato de a autora, apesar de muito prestigiada, é ainda pouco estudada no Brasil. Ainda nesse capítulo, para tratar da Literatura Canadense Contemporânea e do engajamento na crítica feminista, as proposições de Linda Hutcheon e Susana Funck foram discutidas.

No segundo capítulo, “The Wives of Bath e o romance de formação de autoria feminina”, discutiremos o embasamento teórico a respeito do tema. O gênero Bildungsroman ou romance de formação é abordado desde seu surgimento, como tradicional, até a sua revisão pela narrativa de autoria feminina em suas funções e elementos constituintes. Nesse ponto, destaca-se o espaço e sua atuação preponderante na análise do processo de formação da personagem Mouse Bradford. Para a discussão teórica do Bildungsroman tradicional e do

 3 “Built in 1890 as a residence by Sir Jonathon Gilbert Bath and shortly thereafter converted to Bath Ladies College for the instruction of Christian gentlewomen.” (SWAN, 1998, p.14).  

Romance de Formação de autoria feminina, foram utilizados os estudos de Mikhail Bakhtin,

Wilma Patricia Marzari Dinardo Maas e Cristina Ferreira Pinto.

No terceiro capítulo, “De Mary Beatrice Bradford a Mouse Bradford, uma escolha em processo”, foi feito o estudo do espaço como elemento constituinte no processo de formação. A análise da personagem de Swan e a relação com os espaços do internato, para seu processo de formação, têm por base os conceitos de Gaston Bachelard. Ainda neste terceiro capítulo, aspectos intertextuais e simbólicos são abordados, em razão da relevância que adquirem na análise da obra em sua totalidade.

Esta dissertação objetiva, enfim, destacar a forma como o espaço agirá sobre a personagem em seu processo de formação. Entendemos esse processo como estratégia intencional desenvolvida pela autora para, por meio do repertório criativo e literário adotado, promover, além da intertextualidade, uma leitura do inconformismo, da insatisfação, da ruptura deflagrada pela sociedade na qual a protagonista está inserida.

  

CAPÍTULO 1

A ESCRITA DE SUSAN SWAN   

1.1. Susan Swan, vida e obra

A criação literária não se realiza num universo adâmico, sob o signo de uma espontaneidade e de um primitivismo absolutos, em que apenas figurariam como factores necessários um instrumento linguístico e um desígnio expressivo. A criação literária perfaz-se no seio de uma tradição técnico-literária e histórico-cultural, cujos valores e cujas forças o escritor não pode desconhecer, quer para os aceitar e revitalizar, quer para os negar, os contestar, os alterar mais ou menos substancialmente. Vitor Manuel de Aguiar e Silva

Em 1967, Susan Swan está prestes a escrever seu primeiro romance, fruto de seu projeto de conclusão do Mestrado em Língua Inglesa, mas seu pai falece. Tal circunstância a leva a abandonar a ideia de tornar-se escritora e optar por uma carreira que lhe rendesse melhores condições de vida. Inicia, então, sua carreira jornalística, apenas com a graduação em Escrita Criativa pela Universidade McGill. Mesmo atuando como jornalista, a escritora

Swan tem sua primeira obra de ficção publicada em 1975, The Waterbed Syndrome, evidenciando, assim, seu atributo de romancista, anteriormente negado pelas circunstâncias da vida.

Nascida em Midland, Ontário, em 1945, Swan foi aluna de um internato em Toronto, de 1959 a 1963, fato que mais tarde a inspiraria a produzir o romance The Wives of Bath. Nos anos 80, Swan retorna à vida acadêmica, depois de publicar inúmeros romances, poemas e artigos não ficcionais aclamados pela crítica internacional, e começa a atuar como professora de Escrita Criativa na Universidade de York até 2007, quando se aposenta para se dedicar exclusivamente à sua ficção. Susan consegue alçar altos voos e alcança a Presidência da

União dos Escritores do Canadá em 2006, posto que ocupa até 2008.

Nesse particular, vale lembrar que Hutcheon (1991) aponta a dupla colonização do

Canadá como resultante de indivíduos duplamente marcados, como uma característica da    literatura pós-moderna canadense. Susan, realmente, irá confrontar-se com tais marcas e dar voz às minorias de sua terra ao retratar, em suas obras, por exemplo, uma mulher gigante que nunca havia sido nomeada na história de seu país4.

Dessa forma, comprova-se que a então escritora Swan faz eco a uma voz contemporânea tradutora de um sujeito portador de uma voz minoritária: mulheres duplamente colonizadas e descontentes com as imposições patriarcais.

Para contextualizar seu engajamento com a crítica feminista, de acordo com Xavier

(1999, p. 20), é preciso enxergar que foi necessário “interferir no estabelecido, questionando hierarquias, valores, enfim, o tão propalado cânone” e promover, em consequência, a flexibilização deste cânone. Swan intervém conscientemente na história literária e infere, em uma série de observações, os valores de um determinado tempo histórico canadense, deslegitimizando o papel subserviente atribuído ao colonizado. (FUNCK, 1997, p.126)

Rita Therezinha Schimdt, em seu artigo “Literatura e Feminismo”: propostas teóricas e reflexões críticas, pode ser citada para reiterar as ideias de Swan sobre o cânone, sua conceituação e, decorrente disso, das formas de extrapolação do mesmo.

[...] não se constitui, todavia, através de um processo espontâneo e gratuito, mas é resultado de valorações dentro de um contexto em que muitos fatores entram em jogo, como, por exemplo, gênero literário prestigiado e estilo predominante numa época, mas cuja base reside no discurso crítico proveniente de uma comunidade interpretativa homogênea e abalizada, ou seja, os críticos, o que significa dizer que a constituição de um cânone é, em larga medida, uma decorrência do poder do discurso crítico e das instituições que o abrigam. (SCHMIDT, 1999, p.38).

Nessa instância de criação, Swan publicou vários artigos e romances, dentre as quais destacamos: A housewife with mean memories (1970), Sluts (1987), Why Feminism is the F-

 4 De acordo com Funck (1997, p.126), a gigante Anna Swan, ancestral de Susan Swan é narrada por ela em sua obra The Biggest Modern Woman of the World (1983) para transgredir o espaço físico da domesticidade patriarcal e parodia, em uma carnavalização grotesca, as contradições entre corpos e identidades de gênero.    word (1994), Re-inventing Men (1994), Feminist Humor – the new Black satire (1996), For

Sappho’s Women (1997), Casanova the feminist (1998) e tantos outros que remetem à não alimentação da tradição crítica androcêntrica.

A romancista, jornalista e professora Susan Swan teve sua prática literária declaradamente engajada na crítica feminista, consagrada a partir de sua obra Unfit for

Paradise, uma coletânea de contos publicada em 1982.

Em 1983, Susan publica seu primeiro romance, The Biggest Modern Woman of World, obra destacada na carreira da autora. Conforme informado pelo website do Festival de

Literatura de Berlim de 2012:

Seu primeiro romance The Biggest Modern Woman of the World, agora um clássico canadense, é sobre uma mulher nada comum. Ele retrata a história de vida da gigante Anna Swan (1846-1888), que é colocada em exibição em Nova York como a “maior mulher no mundo” e se torna internacionalmente famosa. Mas quando ela mais tarde quer levar uma vida “normal” no Meio- Oeste, ela percebe que não está satisfeita com as convenções de seu tempo. Swan descreve a mulher gigante como uma figura mítica, muito mais que literalmente “grande demais” para a limitação do papel de mulher em um mundo dominado pelos homens.5

Em 1989, publica The Last of the Golden Girl, um romance em que três adolescentes canadenses descobrem o sexo em 1959 e continuam a se comportar como adolescentes descontroladas em seus impulsos sexuais até o final dos anos 60; em 1992, publica Mothers

Talk Back, uma coletânea de 15 entrevistas com mulheres canadenses, mães brancas e negras, pobres, lésbicas e, até mesmo, um homem que diz ter assumido o papel de mãe. Essas pessoas compartilham suas frustrações e dificuldades sobre o processo de maternagem, o que, de

 5 Her first novel 'The Biggest Modern Woman of the World', now a classic in Canada, is indeed about an unusual woman. It tells the life story of the giant Anna Swan (1846–1888), who is put on exhibition in New York as the “largest woman in the world” and becomes internationally famous. But when she later wants to lead a “normal” life in the Midwest, she realizes that she is not satisfied with the conventions of the time. Swan describes the giant woman as a mythical figure, who is more than just literally “too big” for the confines of a woman’s role in a male-dominated world.     acordo com o blog da autora, “celebra o heroísmo calado das mães.” Em 1993, The Wives of

Bath – obra analisada nesta dissertação; em 1999, a coletânea de contos Stupid Boys Are

Good to Relax With – obra em que a autora retoma a personagem Mouse do romance anteriormente citado e aqui estudado.

Em 2000, a autora é convidada para ser a roteirista do filme Lost and Delirius, uma adaptação fílmica de The Wives of Bath, lançado em 32 países e distribuído no Brasil com o título de Assunto de Meninas6. Em 2012, The Wives of Bath é lançado no formato de livro eletrônico e, ainda no mesmo ano, seu mais recente romance, The Western Light, é lançado como uma história anterior a de The Wives of Bath. The Western Light compartilha a mesma protagonista, a heroína Mouse Bradford, apontada por Susan Swan, em 2012, como sua autorrepresentação.

Em 2004, Swan publica o romance What Casanova Told Me, obra que ilustra a influência do passado no presente através de lições de viagem de uma dupla que sai de

Veneza e vai a Istambul.

No Brasil, a despeito dos poucos trabalhos sobre a autora, destacam-se estudos feitos por Susana Bornéo Funck, primeiramente com a tradução de The Man Doll, em 1998, texto incorporado à obra Ficções do Canadá Contemporâneo – Contos Escolhidos, e o capítulo

Apropriações do grotesco e do picaresco em Susan Swan e Aritha Van Kerk, no livro

Recortes Transculturais, de 1997. Nesse estudo, Funck analisa a obra The Biggest Modern

Woman in the World. Há, ainda, os estudos e publicações de André Pereira Feitosa, destacando-se sua tese de doutorado intitulada Mulheres-monstro e espetáculos circenses: o grotesco nas narrativas de Angela Carter, Lya Luft e Susan Swan e os estudos da pesquisadora desta dissertação sobre o conto The Man Doll, publicado em Stupid Boys Are

Good to Relax With. Esse estudo gerou o capítulo 7 do trabalho: Uma tentativa androgênica



Ficha técnica e comentário sobre a diferença entre livro e filme em anexos.   em “The Man Doll”, de Susan Swan, publicado no livro Mundos Gendrados

Alternativamente, pela Edufal – Editora da Universidade Federal do Alagoas, em 2011. Nessa publicação, como parte de nossa análise, foi publicada, com a licença da autora Susan Swan, um excerto original do conto.

Atualmente, a autora é considerada uma grande mentora da Literatura Canadense, atuando como colunista do jornal canadense The Globe and Mail e da revista Chatelaine.

Swan tem sido citada e publicada mundialmente. Importante ressaltar que pudemos estabelecer uma relação virtual com Susan Swan e enviando textos e emails.

De acordo com Funck (apud PEREIRA, 2011, p.135), Susan Swan pertence a uma geração de escritores cuja ficção experimental e inovadora provou ser vital para o projeto de re/des/construção da prática narrativa. Em suas palavras: “o romance de Susan é instrumental no projeto contemporâneo de questionar a natureza da representação através do desafio, através da paródia, dos dogmas do realismo”.7 (FUNCK, 1994, p.16).

De fato, Susan Swan se enquadra no que Kamuf (apud HUTCHEON, 1991, p.35) aponta em A Poética do Pós-Modernismo: “as mulheres ajudaram a desenvolver a valorização das margens e do excêntrico como uma saída com relação à problemática de poder dos centros e às oposições entre masculino e feminino.”

Funck (1997; p.116) ainda levanta a afirmação de que “não é de surpreender, portanto, que, na literatura canadense contemporânea, a questão da subjetividade nacional se encontre intimamente ligada ao projeto feminista”. Dessa forma, entendemos tratar-se de um sujeito emergente do feminismo que, de acordo com Hutcheon (1991), tem seu enfoque nas representações culturais e apresenta paralelos com as preocupações da literatura pós-colonial.

Tal luta anticolonialista nos fornece dados para o entendimento de uma dupla colonização canadense – o sistema patriarcal de exploração de mulheres pertencente ao sistema colonial e

 7 “Susan’s novel is instrumental in the contemporary project of interrogating the nature of representation by challenging, through parody, the tenents of realism”. (FUNCK, 1994, p.16).   também, no caso específico do país, ao sistema indígena canadense8 – que promove o engajamento da autora na perspectiva feminista, lançando mão de uma literatura como medida de autoafirmação do país e da materialidade do discurso enquanto repositório de valores.

Nas palavras de Hutcheon, na obra The Canadian Postmodern (apud FUNCK, 1997, p.116), “as mulheres escritoras em geral, como as romancistas canadenses, sentem a necessidade de retornar ao passado, conhecer seus mitos históricos para poderem contestá- los”. De fato, Swan revisita, especificamente em The Wives of Bath, o internato onde declara ter estudado, imprimindo, assim, matizes autobiográficos a sua obra.

Swan congrega em suas obras suas observações objetivas, subjetivas, enfim, seus sistemas de ideias que constituem uma rede de intenções sobre um topos sempre revisitado – a condição da mulher -, argumentando sobre questões engajadas, tais como aspectos da sexualidade, identidade sexual e representação da mulher. Fato esse que, para Elódia Xavier,

(1999), é denotativo da subjetividade feminina e sua escritura, como se pode constatar em:

O feminismo instaurou um modo particular de ver o mundo, que revela o princípio arbitrário, não natural da realidade; masculino e feminino, em sua historicidade dinâmica, passam a ser identidades sociais, configuradas ao longo de processos de significação. (XAVIER,1999)

De acordo com Pinto (1990, p.19), citando Gilbert e Gubar, “a mulher escritora, em geral, sempre enfocou em sua obra experiências eminentemente femininas e a partir de uma perspectiva feminina.” Em tal esteira, podemos notar a preocupação de Swan em refletir sobre a condição da mulher, sobre como situar sua presença como sujeito, sobre uma identidade feminina e sua integração social, que foca o distanciamento do modelo masculino, principalmente, quanto ao desfecho das narrativas tradicionais nos romances de formação.

 8 De acordo com o site do Governo do Canadá, acredita-se que os aborígines tenham chegado da Ásia há 30 000 anos por uma faixa de terra entre a Sibéria e o Alasca, permanecendo alguns no Canadá e outros continuando sua marcha em direção ao Sul do continente. Com a chegada dos exploradores europeus, o Canadá que era povoado por tribos aborígenes nômades passou a ser loteado em reservas e desta forma inicia-se o processo de colonização.  

Esse fato reitera o engajamento da autora no projeto feminista e na intencionalidade de inserir suas obras em uma perspectiva subversiva contemporânea dos gêneros canônicos.

1.2. Susan Swan e o romance The Wives of Bath

Susan Swan registra no cânone da Literatura Canadense a experiência de uma adolescente e seu crescimento identitário na obra The Wives of Bath, um romance para fora do universo falocêntrico, subvertendo, desta forma, a estrutura canônica tradicional e masculinizada de literatura de formação.

Essa obra representa a experiência, sensibilizando-a sem propor hipóteses totalizadoras, mas, de acordo com os conceitos de Hutcheon (1991, p.19) sobre a pós- modernidade, se enquadra na proposição de constituir a contradição aos padrões. Tais transgressões às normas são traços caracterizadores do pós-modernismo, e cujo período de surgimento coincide com a própria história no romance de Swan, visto que a autora contesta também em sua obra “as noções ingênuas de representação”.

De acordo com o artigo We So Seldom Look on Love, de Laurei Muchnick (1994, p.4), publicado na revista Belles Lettres: A review of Books by Women, o romance descreve um contexto da protagonista Mouse da seguinte forma:

As professoras são lésbicas, o jardineiro é um anão, uma das colegas de quarto, Paulie, veste-se como menino e convence a todos de que é seu próprio irmão. Em vestimentas masculinas, Paulie namora sua colega de quarto, Tory, e Mouse nunca tem certeza se Tory sabe que seu namorado e sua colega de quarto são a mesma pessoa. Mas Paulie não está interessada em ser lésbica; ela quer mesmo ser um menino, e Mouse segue-a em seu culto à masculinidade, que reverencia King Kong como o apogeu da humanidade. Como muitas garotas de sua idade, Mouse tem medo de seu próprio corpo, e seu horror é impulsionado pelo fato de que ela não tem sorte. Ela também não quer ser um menino tanto quanto quer evitar se tornar  

uma mulher, e ela segue Paulie, sobretudo em um recém-descoberto deleite em quebrar as regras da escola.9

Ao discorrer sobre questões que abordam o tema da identidade sexual e da representação da mulher, o autor destaca, nessa argumentação, uma possibilidade transgressora do romance de formação, ou Bildungsroman.

Nesse sentido, e de acordo com Funck (1994), Susan é possuidora de um engajamento consciente em seu contexto histórico e social: objetiva desestabilizar e subverter modelos de crença aceitos, por meio da reconceituação da narração de possíveis subjetividades.10 Assim, propomos discutir a tessitura do romance de formação suscitada pela personagem Mary

Beatrice Bradford. Nessa discussão, esperamos apontar uma flagrante inversão de papéis de gênero e uma desestabilização dos padrões sócio-históricos, marcadamente patriarcais, por meio da subjetividade promovida pela autora. Tal procedimento pode ser verificado na construção da personagem que vem sendo dominada por uma imperativa existência masculina, além de ser portadora de expressão singular, uma garota de 13 anos que questiona sua construção identitária.

Nesse particular, em seu website11, Susan Swan comenta sua obra e seu diferente estilo de representação, afirmando que o romance, de humor negro, envolve um assassinato em um internato dos anos 60. Devido ao fato de as personagens Mouse e Paulie, colegas de

 9“ The teachers are lesbians, the janitor is a dwarf, and one of her roommates, Paulie, dresses up like a boy and convinces everyone that she is bet own brother. In masculine garb, Paulie dates her roommate, Tory, and Mouse is never really sure whether Tory knows that her boyfriend and her roommate are the same person. But Paulie is not interested in being a lesbian; she really wants to be a boy, and Mouse falls in with her cult of masculinity, which worships King Kong as the apex of manhood. Like many girls her age, Mouse is afraid of her own body, and her horror is fueled by the fact that she really is misshapen. She does not want to be a boy as much as she want to avoid becoming a woman, and she follows Paulie mostly out of a newfound zest for breaking school rules.” 10“ aims at destabilizing and subverting accepted patterns of belief by reconceptualizing and narrating possible subjectivities.” 11 Susan Swan Online. Disponível em: http://www.susanswanonline.com/index1.html. Acesso em 23 de junho de 2010.   quarto, não quererem crescer como mulheres, Paulie força Mouse a uma série de testes para provar sua masculinidade, o que acaba indo longe demais.12

A obra, de fato, subverte o conceito do Bildungsroman tradicional, razão pela qual

Susan sugere que situações circunstanciadas podem também definir e apontar vidas para novas direções. O romance é marcado por uma postura corrosiva e irônica na representação dos desvios à norma efetuados por uma sociedade estruturada em bases patriarcais, mas sob uma camada tênue de civilidade. A obra empreende, ainda, a análise do comportamento de

Mouse – Mary Beatrice Bradford – por meio de uma abordagem psicológica e social, própria da narração de costumes contemporâneos.

Na trama narrativa homodiegética, temos a sugestão da instauração da criatura dupla, dual, e o processo de desencadeamento da personagem, na permanência hesitante dessas personificações.

Nessa produção de Susan Swan, observamos sua máxima eficiência de expressão da dimensão feminista da obra, sobretudo devido ao fato de o título da mesma ser a forma pluralizada do conto de Chaucer, The Wife of Bath Tale, do livro The Canterbury Tales.

Importa observar que esse conto é evidenciado como um dos primeiros contos a se configurar como feminista, devido ao fato de a personagem do título A Mulher de Bath ser a única representante feminina na caravana de homens; além disso, dá projeção ao caráter subversivo assumido pela protagonista/narradora.

Ora, conforme afirmações de Brait (1996), o título funciona como signo de uma proposição, como um emblema que será reiterado e ampliado na narrativa. De fato, o romance em análise deflagra a pretensão de romper com a unicidade do ser, propondo a alternância e, ao mesmo tempo, a coexistência da dualidade feminino/masculino por um período de tempo em um determinado espaço. No entanto, o nome da personagem Mary Beatrice Bradford –    “A darkly humorous story involving a murder in a girls’ boarding school in the 1960’s. Neither Mouse Bradford nor Paulie Sykes wants to grow up into a woman. Paulie forces Mouse through a series of tests to prove her manliness, which eventually go too far.”   

Mouse – assume uma função identitária, no qual podemos depreender alguns significados: mouse, em português, é rato, cujo conceito se funde no texto, por meio da figura simbólica do rato. Para Chevalier e Gheerbrant (1994, p.770), é considerado animal “esfomeado, prolífico e noturno, caracterizador da subversividade no sentido de corroer a ordem e estabelecer o caos e o terror”. É justamente esta a nossa hipótese interpretativa de significar na obra a negação da ordem do feminino, o que, para Oliveira (1992), seria “o avesso ou a imitação do masculino”.

Essa seria uma leitura legitimada pela obra e pelo projeto de escritura feminista da autora, pois evoca inúmeras vozes pós-modernas que, de acordo com Hutcheon (1991), não são inteiramente localizáveis no universo textual. Mas o que essa suposição também faz, de forma literal, é começar a “teorizar” sobre o instigante rótulo de heroína problemática que pode ser aplicado à personagem. 

A adolescente de Swan deseja remodelar uma realidade ruim por uma realidade outra que seja boa e, nesse quadro, se configura em um processo de dúvida sobre sua própria identidade, podendo até ser considerada uma utopista que “não aceita o mundo que encontra, não se satisfaz com as possibilidades atualmente existentes: sonha, antecipa, projeta, experimenta.” ( SZACHI,1972, p.12), ou até mesmo uma anti-utopista que almeja o caos, ou uma existência distópica.

Condizente com os conceitos de gênero formulados por Oliveira (1992), a personagem parece ser constituída pela dualidade masculino/feminino, no início de seu processo de formação, pela ilusão da delicadeza e fragilidade feminina, pela sensibilidade e intuição e, durante o processo, pela ambição masculina de poder e de dominação, em um movimento revelador da precariedade humana. A única configuração que possibilitaria uma reconciliação entre este duplo ser, entre feminizar e masculinizar, é o fato insólito da negação do espaço público feminino para o espaço privado masculino, ou seja, Mary Beatrice Bradford – a menina – continuaria em seus aposentos no sótão e Mouse – ou seu duplo em travestimento    masculino, o menino Nick, seu alter-ego, – continuaria perambulando pelas sombras do porão, espaços esses que se configurarão como seus espaços de formação.

Nick, o Grego, reveste-se dos atributos caracterizadores do universo masculino, através do vestuário usado nos ambientes sombrios da escola e em suas saídas noturnas pelo caminho da ravina na companhia da figura de seu mentor, Lewis. Em vários excertos da obra,

é possível confirmar tal consideração: “Eu era um menino. Minhas roupas diziam isso.”

(SWAN, 1993, p.121)13, ou em:

Roupas de mulheres, como dizia Lewis, eram como não usar nada, mas roupas de homens eram encomendadas, sob-medida, e faziam você se sentir fortalecido. E ele estava certo. Apenas colocar um terno e uma gravata muda você. Você se sente no controle e em paz com o mundo. E os sapatos de homem ajudam também. Eles são mais pesados, daí você se sente sólido – enraizado no chão. (SWAN, 1999, p.120)14

Mediada pelas articulações do acontecer, a personagem, em busca de sua totalidade, cindida e desassossegada por sua dualidade, envolvida em alguns acontecimentos nada casuais e da ordem do medo, começa a questionar sua alternância hesitante de identidade. E o centro disso se dá na afirmação da personagem: “Tenho 16 anos agora, quase uma adulta, embora ser uma garota seja a coisa mais difícil na terra verde de Deus, não é de todo ruim uma vez que você pegue o jeito.”15 . A personagem começa a ser consumida pela sua própria dúvida identitária, e o processo de formação se dá à medida que a unificação de ambos os espaços, porão e sótão, acontece com a morte do jardineiro do colégio. Essa morte é uma consequência do ato de sua mentora Pauline, o que promove em Mary Beatrice o desejo de

 13 “I was a boy. My clothes said so.” (p. 121) 14 “Girl’s clothes, Lewis said, were like wearing nothing, but men’s clothes were tailored and made you feel propped up. And he was right. Just putting on a suit and tie changes you. You fell in control and at ease with the world. And men’s shoes help, too. They’re heavier, so you feel solid – rooted to the ground.” p.121 15 “I’m sixteen now and mostly grown –up and although being a girl is the most difficult thing on God’s Green earth, it’s not half-bad once you get the hang of it.” p. 236.    assumir sua identidade como mulher no espaço público, visto que, anteriormente, o espaço de negação de sua identidade era apenas o privado porão.

1.3. The Wives of Bath, o romance

O processo segundo o qual foi concebida a forma interna do romance é a peregrinação do indivíduo problemático rumo a si mesmo, o caminho desde o opaco cativeiro na realidade simplesmente existente, em si heterogênea e vazia de sentido para o indivíduo, rumo ao claro autoconhecimento.

Georg Lukács

Lukács (2009, p.55) define o romance como “a epopeia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade.”

Em relação à sua constituição, o autor afirma que:

A composição do romance é uma fusão paradoxal de componentes heterogêneos e descontínuos numa organicidade constantemente revogada. As relações que mantêm a coesão dos componentes abstratos são, em pureza abstrata, formais: eis por que o princípio unificador tem de ser a ética da subjetividade criadora que se torna nítida no conteúdo.” (LUKACS, 2009, p. 85)

Tal ética da subjetividade criadora tem norteado, a nosso ver, a construção da trama narrativa em Swan, pois, em sua trama narrativa – que abarca a forma teatral, um núcleo epistolar e a forma dramática – a autora constrói uma transformação do código, ou do romance, historicamente masculino, plasmando elementos heterogêneos de ambos os gêneros.

The Wives of Bath inicia com uma epígrafe, extraída do prólogo do The Wife of Bath

Tale, de Geoffrey Chaucer, que insere instantaneamente a obra em um contexto pelo menos transgressor ou, de acordo com a obra apresentada por Vizioli (1991, p.xvi), na qual se insere,    em um exemplum profano: “Diga-me também, para que finalidade foram os órgãos reprodutores feitos e projetados por tão generoso criador?”16

Após a epígrafe, o volume é dividido em três fragmentos, o Fragmento Um, que compreende os capítulos 1 a 35; o Fragmento Dois, os capítulos 35 a 41, e o Fragmento Três, os capítulos 42 a 52. A narradora e personagem principal, Mouse, inicia a obra com a proposição de alternância identitária traduzida pelas variações de seu nome e das quatro formas como aparece na obra. Meu nome é Mouse – Mouse Bradford. Mary Beatrice

Bradford, se eu quiser ser prolixa sobre isso. (SWAN, 1998, p.5).17 A garota, agora com dezesseis anos, relata seu trajeto, sua via-crucis pelo processo de formação que se instaura, ao ser sutilmente forçada pela madrasta a entrar aos 14 anos para o quadro de meninas de Bath

Ladies College – um colégio interno nos arredores de Toronto – e ter como colegas de quarto a jovem Pauline Sykes e seu duplo, o jardineiro Lewis, além de Victoria Quinn, a namorada de Lewis.

Mouse carrega consigo as marcas de um pai vivo e ausente; e de uma mãe morta, porém presente em suas rememorações e em sua corcunda, que tem o mesmo nome de sua mãe, Alice. Além disso, funciona como seu superego, em uma espécie de diálogo consigo mesma. A diferenciação se apresenta apenas pelo fato de que mães não contam piadas indecentes: “Até então eu tenho que permanecer aqui em Point Edward com meu tio e minha companheira Alice, que é como uma mãe para mim. Exceto pelo fato de que nenhuma mãe que eu conheço conta piadas indecentes. (SWAN, 1993, p.8)18. Alice pode ser entendida como um desdobramento de sua entidade mental, um interlocutor virtual ou imaginário.

Para tanto, a protagonista considera sua marca não como uma alteração em seu corpo, mas como um ser que lhe faz companhia e que, por muitas vezes, reaviva a sua ideia inicial

 16 “Tell me also, to what conclusion were the generative organs made, And fashioned by so generous a maker?” 17 “My name is Mouse – Mouse Bradford. Mary Beatrice Bradford, if I want to be long-winded about it.” 18“ Until then I have to stay here in Point Edward with my uncle and companion Alice, who is like a mother to me. Except no mother I know tells off-colour jokes.”    sobre as dificuldades em ser mulher, o que se pode verificar nos diálogos estabelecidos com esse propósito.

- Alice, você sabe que eu nunca quis me tornar uma mulher. - Eu sei, mas você também não quis ser um homem. - Bem, não exatamente. Eu queria tudo o que um homem tem, exceto seu pênis.19 (SWAN, 1993, p.47)

E também, na seguinte passagem, afirma que a madrasta Sal, em seus preceitos e provérbios cheios de senso comum, não ocupa o lugar da mãe Alice:

- Isso me lembra algo. Por que as garotas contam piadas sobre as partes íntimas dos garotos - Isso não ajuda muito. Sabendo que eu não tenho uma mãe de verdade. Você sabe que eu não posso contar com Sal. (SWAN, 1993, p.47)20

A interação com suas colegas de quarto é então estabelecida e Mouse passa a conhecer quem verdadeiramente é Pauline, a sua tentativa de ser outra pessoa e as razões para isso.

Mouse constata que Pauline ama Victoria, e esse amor só poderia ser aceito pela família da garota se Pauline fosse um rapaz. Esse fato desencadeia os atos desesperados de Pauline: traveste-se em um baile na presença de todos os pais da escola, mas não tem êxito na tentativa de anunciar o namoro com Victoria; após brigar com o zelador (anão) da escola, no espaço do porão, e empurrá-lo pelos canos aquecidos, Pauline corta o pênis do anão já ferido, para posterior implantação em si mesma com uma espécie de cola. Depois disso, começa a gritar que “agora” era um menino. Interessante observar que Mouse, filha de um médico, carregava consigo a maleta de instrumentação cirúrgica de seu pai e um manual de anatomia. São, portanto, encontrados em posse de Pauline um bisturi e uma página do livro de anatomia que trata do órgão sexual masculino e da forma como os procedimentos de extração deveriam ser executados.  19 “- Alice, you know I never wanted to become a woman. - I know, but you didn´t want to become a man, either. - Well, not exactly. I wanted everything a man has except his penis.” 20 “- That reminds me. Why don’t girls tell jokes about boys’ private parts? - That´s not very helpful. Seeing how I don´t have a real mother. You know I can’t count on Sal.”  

O final do romance é relatado, pela protagonista, como lembranças recentes de uma ocorrência. Pauline é condenada e julgada insana, mas sem um acordo dos psiquiatras sobre o que seria tal doença. E Mouse afirma que Pauline não fez aquilo por ter inveja dos homens, mas por não respeitar as mulheres.

1.3.1. A recepção da obra

O romance, publicado em 1993, obteve, ainda no mesmo ano, várias críticas positivas.

Em “Publishers Weekly”, de 19 de Julho de 1993, o romance é visto como um descritor de um ano crucial na vida de duas garotas canadenses ao iniciarem a jornada tempestuosa em direção à vida adulta. Aponta ainda que a autora descreve a desorientação das jovens e sensíveis mulheres lutando para entender seus papéis sexuais em um ambiente hostil.

Ainda no mesmo ano, Julie Wheelright, em sua resenha publicada na página 40 do

“New Statement &Society”, em 15 de Outubro de 1993, afirma que o romance, em decorrência de seu clímax dramático, evidencia uma conclusão inevitável para as frustrações de Pauline, sobretudo após a exclusão do “privilégio” masculino, e a deixa com as observações espirituosas de Mouse, resultando em uma trama que propicia uma reflexão sobre os dilemas de ser mulher.

O apontamento reincidente sobre a obra é sempre o mesmo. Afirma-se o conteúdo corrosivo da temática feminista e a forma como é tratada, além do talento narrativo da autora na construção das personagens e na multiplicidade de discursos que as compõem: registro linguístico de adolescentes, cartas, linguagem forense, jargão médico e os repertórios musical e literário da época, em um hibridismo de gênero.  

No artigo “Really much nicer than men”, publicado no The Times, em 29 de

Novembro de 1993, Christina Koning descreve The Wives of Bath como pertencente a “um mundo em que os homens tornaram-se, se não totalmente prescindíveis, então certamente periféricos à ação”, e afirma ainda que o romance permitiu à autora “fazer observações cáusticas sobre a diferença de gênero”.

Com o lançamento recente do livro The Western Light que, segundo a autora, antecede

The Wives of Bath, o website do Festival de Literatura de Berlim de 2012, apresenta a seguinte menção à obra, quando anuncia o recém-publicado romance:

Seu último trabalho foi fortemente influenciado pelos anos que passou em um internato para meninas, onde cresceu experienciando a tensão entre os conservadores anos 50 e os movimentos de protesto da década subsequente. (…) De forma provocativa e divertida, ela primeiramente explora a questão dos papéis de gênero. Criando “personagens femininas fortes com poderes míticos”, que “mostram novas formas de ser mulher” é como ela mesma descreve sua inquietação literária. 21

Podemos depreender também que a inquietação pulsante em todas as obras da autora, ou as tensões propostas por ela, em especial no romance em análise, expressa a conexão indissolúvel entre um espaço revestido de sentido e o processo de formação que descortinarão um movimento único no transcorrer dos dias em Bath College: a superação de Mouse

Bradford através da escrita.

 21 “Her later work was strongly influenced by the years she spent at a girl’s boarding school, where she grew up experiencing the tension between the conservative 50s and the protest movements of the ensuing decade. … In an entertaining and provocative way, she primarily explores the question of gender roles. Creating “strong female characters with mythical power,” who “show new ways to be a woman” is how she herself describes her literary concerns.”  

1.3.2. The Wives of Bath & The Wife of Bath’s Tale: um diálogo no tempo e no espaço

Um discurso não vem ao mundo numa inocente solitude, mas constrói-se através de um já-dito em relação ao qual toma posição.

Dominique Maingueneau

Para a filósofa húngara Julia Kristeva (1974, p.64), a linguagem poética surgiu através de diálogos entre textos, como um “mosaico de citações” evocadoras de outras escritas.

Apoiada nos pressupostos de Mikhail Bakhtin, e ao resgatar o conceito bakhtiniano de dialogismo, Kristeva elaborou uma estrutura literária não mais estática, mas relacional. A teórica, que integra as linhas de pensamento estruturalista e pós-estruturalista, conceitua a intertextualidade como uma operação de assimilação de outros textos situados na história e na sociedade, transformando-os através de um texto centralizador do sentido.

De acordo com Koch & Travaglia (1989), “todas as questões ligadas à intertextualidade influenciam tanto o processo de produção como o de compreensão de textos” (p. 91) e constituem um dos fatores mais relevantes na construção da coerência textual.

Essas vozes entreouvidas no texto são reveladas de diversas formas, segundo os autores citados, seja por meio do desenvolvimento de um mesmo tema – pensemos em “Bola de Sebo”, de Maupassant, um exemplo de mulher, que estando em caravana de homens e mulheres reprodutores da visão patriarcal, consegue subverter uma realidade ruim por uma outra boa por meio de suas atitudes – seja pela citação explícita da fonte. No primeiro caso, temos a intertextualidade de conteúdo; no segundo, a intertextualidade explícita. A intertextualidade implícita diz respeito ao reconhecimento, no texto, de frases, expressões, clichês que o leitor recupera na memória no intento de ajudar a construir o sentido do texto.

Neste particular, o leitor é também considerado um coautor, desde que tenha o conhecimento de mundo necessário para relacionar o elemento intertextual com o texto que lê.  

São igualmente construtores do sentido do texto o que Koch e Traváglia (2000) denominam de intertextualidade das semelhanças e intertextualidade das diferenças. Na intertextualidade das semelhanças, o texto absorve os elementos de outro texto para confirmá- lo, resultando, assim, em um texto que segue a mesma direção argumentativa do texto fonte. É o caso das paráfrases, muito comuns nos textos que usam frases ou fragmentos de pessoas que se destacam em suas áreas. Trata-se, neste caso específico, do chamado “argumento de autoridade”. Perelman (2002) refere-se a ele como uma forma de “argumento de prestígio”, na seguinte passagem de sua obra: “o argumento de prestígio mais nitidamente caracterizado é o argumento de autoridade, o qual utiliza atos ou juízos de uma pessoa ou de um grupo de pessoas como meio de prova a favor de uma tese.” (p.348)

A intertextualidade das diferenças, ao contrário, busca evocar outros textos para ridicularizá-los ou contestá-los, e a orientação argumentativa é, obviamente, contrária. Resulta quase sempre nos textos parodísticos e, como figura de linguagem, na ironia.

Expostas rapidamente algumas características mais importantes da intertextualidade, cabe-nos verificar em que medida a abordagem desse instrumento de construção de sentido se justifica na análise de The Wives of Bath.

Em primeiro lugar, o romance The Wives of Bath apresenta inúmeros intertextos nas vozes de algumas escritoras – Jane Austen, Virginia Woolf, Charlote Bronté 22– entre outros.

Já no capítulo três, Virginia Woolf é mencionada para ilustrar os momentos em que a protagonista estava depressiva; lembrar a morte de Woolf era lembrar que alguém pudesse estar ainda mais depressiva que ela mesma:

Eu sempre pensava em Virginia quando eu estava mal, porque ela estava tão depressiva a ponto de se afogar em um riacho com os bolsos cheios de pedras. Em minha opinião, isso sempre ajuda a lembrar que há alguém ainda mais triste que você. (p.11)23  22 As autoras citadas aparecem nominalmente no texto da obra em análise. 23 “I often thought of Virginia when I felt low, because she was so depressed she drowned herself in a stream with her pockets full of Stones. In my opinion, it always helps you to remember there is somebody sadder than you.”(p.11)  

A obra Jane Eyre de Charlote Bronte, é mencionada também no capítulo três, quando

Mouse se aproxima pela primeira vez do internato, e seu pai comenta com a madrasta sobre a construção. Para tentar minimizar o fato amedrontador da escola para garotas ter grades nas janelas, Mouse relembra que a escola Lowwod, que ficava em um pântano, poderia tê-la impressionado mais, pois fora descrita por Bronte como um local onde muitas garotas morriam de febre tifóide:

Há grades nas janelas, Morley disse. Eu me senti convencida. A escola não me impressionou. Não era decrépita o suficiente. E não ficava em um pântano fedorento como Lowwod, a escola em Jane Eyre onde as garotas caíam mortas como moscas com a febre tifóide. (p.15)24

Já no título, um dos elementos funcionais da obra, por ser orientador da leitura, The

Wives of Bath incita a curiosidade dos leitores por introduzir a dimensão feminista em que a obra se insere. De fato, The Wives of Bath recobre o universo feminino e pressupõe a discussão de elementos pertencentes a um espaço desvalorizado do cânone culturalmente aceito (se considerarmos os espaços definidos socialmente para homens/mulheres). Porém, para o leitor mais afeito à literatura inglesa, o título estabelece, de imediato e em primeiro lugar, um movimento dialógico com a obra de Geoffrey Chaucer, The Canterbury Tales, escrito entre 1386 e 1400, especificamente com um dos vinte e quatro contos da obra, o décimo terceiro, intitulado The Wife of Bath’s Tale.

Temos, portanto, a) uma intertextualidade de conteúdo, visto serem as duas obras pertencentes ao mesmo gênero literário, narrativas; no caso de Chaucer, um poema narrativo; b) uma intertextualidade explícita em razão das obras citadas de Austen, Woolf e Brontë, que são tipificadas por leituras de jovens em formação; c) uma intertextualidade das semelhanças, já que o título da obra remete a uma outra obra, cuja orientação argumentativa é semelhante,  24 “There are bars on the windows here, Morley said. I felt smug. The school didn’t impress me. It wasn’t decript enough. And it didn’t sit in a nasty-smelling marsh like Lowwod, the school in Jane Eyre where girls dropped dead like flies of typhoid fever.”(p.15)    apesar da distância temporal entre as duas obras. Em ambas, a questão do gênero é discutida pelas narradoras personagens. Em Chaucer, a personagem Alisoun busca romper a barreira entre os gêneros, superando a hierarquização. Em Swan, a personagem Mouse também tenta, ainda, no século XX, superar essa mesma hierarquia. Interessante ressaltar que o nome da

Mulher de Bath, apresenta-se em diversas variantes, em diferentes traduções da obra, tais como: Alisoun, Alison ou Alice – sendo o último dado também à corcunda de Mouse; esse fato não nos parece mera coincidência. Devido à função que exerce na narrativa, a corcunda de Mouse é carregada de significados, a mesma pode ser entendida como a voz das mulheres universais ou, especificamente, a da Comadre de Bath e de sua própria mãe.

Ainda na instância da intertextualidade das semelhanças, podemos considerar as autoras explicitamente citadas como um exemplo de argumento de autoridade ou, como se expressa Perelman, um exemplo de argumento de prestígio. De fato, Austen, Brontë e Woolf são autoras de prestígio e emprestam suas vozes para justificar o empenho da personagem em transformar-se em um ser verdadeiramente completo.

Cabem agora algumas considerações a respeito dos contos de Chaucer. Vizioli (1991, p.xv) assinala, na apresentação e tradução da obra, que “cada história de Os Contos da

Cantuária ilustra um gênero literário diferente (em geral adequado ao narrador), e focaliza com certa minúcia uma ciência e atividade humana”, ampliando, assim, a visão cultural da

época (século XIV). O autor registra ainda que: “Os contos de Chaucer oferecem-nos, portanto, um precioso referencial para a avaliação de nosso progresso e para a compreensão de nossa sociedade. Mesmo porque a época retratada pode ser medieval, mas a humanidade é a de sempre”. (VIZIOLI, 1991, p.xvii). Nesse sentido, o diálogo entre os dois textos é perfeitamente possível.

É preciso destacar ainda que O Conto da Mulher de Bath apresenta uma narradora representativa e eleita como uma das “maiores figuras femininas de toda a literatura universal,    que, mesmo sem contestar abertamente os conceitos morais predominantes, demonstra, com abundância de argumentos, que os prazeres do sexo não devem ser prerrogativa exclusiva dos homens.” (VIZIOLI, 1991, p. xix). Também nesse particular é impossível deixar de constatar a aproximação entre as personagens de ambas as obras.

Retomamos o título da obra pluralizado The Wives of Bath, de Swan e o singularizado

The Wife of Bath’s Tale, agora para novas considerações. Essa diferença não pode ser gratuita.

O plural de Swan remete a uma classe generalizada, não apenas a Mouse, Pauline, Tory e

Miss Vaughan, todas figuras que, assim com a Mulher de Bath, sobrevivem aos modelos misóginos . É nesse pormenor que a obra se insere na narrativa de autoria feminina, visto que procura argumentar a favor da inserção da mulher no mundo “dos homens”: Alisoun, em sua caravana masculina; e Mouse, nos espaços escuros dos trabalhadores da escola e no bar frequentado por estudantes da escola masculina. O singular Wife of Bath referencia uma personagem que, embora não represente propriamente uma classe, expressa o desejo de também pertencer ao mundo prazeroso e dominante dos homens. As seguintes passagens de ambas as obras nos fornecem informações a respeito disso: “- Você não vê isso, Alice? Se as pessoas pudessem se conciliar com isso de forma que essa protuberância não se desenvolvesse, não precisaríamos de dois sexos. Isso nos pouparia de muitos problemas.”

(SWAN, 1993, p. 94)25. E Alisoun pondera no prólogo do conto:

Ainda que neste mundo não existissem os ensinamentos da autoridade, a mim bastaria a experiência para falar dos males do matrimônio: e isso, cavalheiros, porque desde os meus doze anos de idade (louvado seja Deus, que tem a vida eterna, por ter-me permitido casar-me tantas vezes) tive já cinco maridos à porta da igreja, _ e todos homens de bem, à sua maneira. (CHAUCER, 1988, p. 137)

  - Don’t you see, Alice? If somebody could only arrange it so that lump didn’t develop, we wouldn’t need two sexes. It would save us all so much trouble. (SWAN, 1993, p. 94)    

Outro ponto de contato entre as duas obras diz respeito à questão do espaço. Embora em Chaucer a questão do espaço não se estabeleça como um elemento construtivo da tessitura textual, não se pode desconsiderar a trajetória significativa de uma caravana de homens para a visita ao túmulo de Santo Tomás Beckett. É exatamente o que acontece com a trajetória de

Mary Beatrice: de sua casa a Bath Ladies College, onde encontra sua identidade. Alisoun é de

Bath e Mouse vai a Bath. E Bath, para Mouse, pode ser considerado um feudo, substantivo que remete ao mundo de Alisoun:

Sim, eu sei como Jack deve ver a mim e a cada uma das meninas e mulheres na minha escola porque todas nós somos Mulheres de Bath – das professoras que nos aterrorizavam com suas sinetas e punições, as internas superalimentadas, as garotas esnobes não internas, a Paulie e eu que tentávamos praticar nosso próprio conjunto de regras. Mas não importa a dificuldade que qualquer uma de nós enfrentou, nós ainda pareceremos estúpidas aos olhos de alguém como Jack porque Bath Ladies College era apenas um feudo no reino dos homens.26 (SWAN, 1993, p.217, grifos nossos).

Enquanto Alisoun, a protagonista de Chaucer, elabora estratégias para solucionar seus problemas de solidão em um contexto histórico patriarcal, Mouse elabora, de forma idealizada, estratégias para não sucumbir ao mundo das mulheres. Interessante ressaltar que ambas apresentam uma marca física permanente: Alisoun, uma surdez leve, e Mouse, uma corcunda, sinais estes que apontariam para o fato de serem transformadas pela mesma magia da velha senhora do conto de Chaucer e terem seus desejos alcançados.

Nas personagens, pode-se constatar a arbitrariedade da representação masculina da mulher e a idealização de uma outra realidade, por meio da fantasia. Em ambos os casos, portanto, a idealização de serem outra solucionaria a questão do poder masculino: Alisoun, tentando dominar o corpo masculino com seus dotes sexuais, e Mouse, tentando dominar seu   >Yes, I knew how Jack must see me and every other girl and woman at my school because, we were all Wives of Bath – from the teachers who terrorized us with their bells and gatings to the overfed boarders and snobby day girls, to Paulie and me who tried to play by our own set of rules. But no matter how hard any of us struggled, we still looked dumb in the eyes of somebody like Jack because Bath Ladies College was only a fiefdom in the kingdom of men.”    corpo feminino ao transformá-lo em um corpo masculino através não de um projeto deliberado, mas de uma imposição de Pauline por meio de um ritual iniciático.

1.4. A obra, um resumo expandido

Sem mencionar quem ela é, a narradora Mouse Bradford se apresenta e menciona ter se envolvido com um ato de autoafirmação no mínimo estranho cometido por Paulie. Mouse comenta sobre seu pai desafetuoso, Morley, e sua madrasta crítica e alcóolatra, Sal. Ela também conta ao leitor sobre sua corcunda no ombro esquerdo, como resultado de um surto de poliomielite na infância, que se desenvolveu em uma cifose, ou curvatura da coluna vertebral. “ Eu não nasci com uma grave curvatura espinal, ou cifose, como os médicos como

Morley chamam. A pólio fez com que meus músculos das costas se atrofiassem e minha espinha entortasse para a esquerda,...”27 (p.06). Mouse nominou sua corcunda de Alice, em homenagem à mãe também chamada Alice, por ocasião de sua morte, e diz que essa saliência

é como uma amiga. Durante todo o romance, os diálogos, ou as piadas com Alice, fornecem um certo tom irônico, um alívio cômico aos esclarecimentos sobre eventos negativos da história de Mouse.

Ainda no segundo capítulo, Mouse interrompe a narrativa em curso e ensaia uma digressão para recuperar detalhes sobre o julgamento no qual Paulie figura como ré. Com a retomada intermitente dessas digressões durante o romance, o leitor é levado a pensar que

Paulie cometeu algum tipo de assassinato.

Mouse reconta a forma como foi mandada ao internato nos arredores de Toronto –

Bath Ladies College – e justifica a ação de seu pai afirmando que ele tinha “um complexo de  27 “I wasn’t born with Gross spinal curvature, or kyphosis, as doctors like Morley call it. Polio caused the muscles in my back to atrophy and made my spine torque to the left,….”    inferioridade infeliz sobre educar fêmeas28”, e porque a diretora, Vera Vaughan, era uma prima distante.

Mouse tem consciência de sua timidez e de sua imperfeição física, e é aturdida pela estranha atmosfera da escola antiquada desde a primeira vez que adentra esse espaço. A primeira pessoa com quem se relaciona é o amigável zelador, Sergeant (que é um anão), e depois o irmão de Paulie, Lewis, a quem ela mais tarde surpreende se barbeando no banheiro próximo ao seu novo dormitório. Mouse conhece Victoria Quinn, ou Tory, e Pauline Sykes naquela noite, e fica imediatamente entusiasmada com a amistosa Tory. Após um tempo de convivência, Tory conta a Mouse que o irmão de Paulie, Lewis, é seu namorado, e que estão apaixonados. Mouse consegue se estabelecer rapidamente na escola, mas não confortavelmente, e acaba por captar o léxico e a simpatia em relação à equipe escolar e às alunas.

Mouse possui uma intensa fixação por John F. Kennedy, o presidente americano, e isto é evidente nas longas cartas familiares que ela envia a ele regularmente. A garota estabelece paralelos entre o pai e o presidente durante a obra e idealiza a paternidade de

Kennedy expressa pela mídia.

Para tristeza de Mouse e Pauline, Tory quebra a perna no campo de hockey por acidente e é mandada para casa para descansar pelo resto do período de inverno. Cansada do comportamento inconstante de Paulie, a Senhorita Vaughan determina que Paulie se livre de suas frustrações caminhando pela escola todas as noites depois da aula, e ordena a Mouse que a acompanhe. As duas estabelecem um tipo de ligação afetiva e Paulie revela a Mouse que não tem um irmão chamado Lewis; na verdade é ela, disfarçada de garoto, e que ela engana a todos, até mesmo Tory. Paulie leva Mouse ao tabernáculo que construiu em homenagem ao filme King Kong, de 1933, e impõe a Mouse uma série de testes bizarros para provar que ela,

 28 “an unfortunate inferiority complex about bringing up females”   também, pode “ser” um garoto. Os testes incluem: comer cinco tigelas de pudim de tapioca sem vomitar, deixar um palito de fósforo queimar até a sua pele sem chorar, e conseguir urinar enquanto estivesse em pé.

Depois que Mouse completa os testes preliminares, Paulie embarca em três grandes provas: domínio sobre outros homens, domínio sobre mulheres e domínio sobre sua própria natureza; na primeira, Mouse cria seu alter-ego masculino, “Nick o Grego”, e se veste de garoto pela primeira vez. Mouse e Paulie brigam com garotos da escola próxima, o King’s

College, sendo um deles o irmão mais velho de Tory, Ricky. Na segunda prova, Paulie desafia Mouse a seduzir uma garota obesa da escola de freiras, o que ela faz, embora termine de forma cômica: a garota em questão, Josie, parecia saber que Mouse/Nick era uma garota, e se derrama em lágrimas quando Mouse hesita em acariciá-la. Na terceira prova, Paulie desafia

Mouse a matar um pombo.

A relutância de Mouse em fazer tais provas demonstra que seu desejo de ser homem não está fundamentado em uma vontade genuína de se tornar um, nem mesmo em uma atração por garotas. Mais propriamente, Mouse deseja a liberdade de que os homens de seu tempo desfrutam, o que ela acredita que nunca será capaz de vivenciar como mulher.

Na ausência de Tory, a aluna favorita dos professores, Ismay Thom, se muda para o dormitório de Mouse e Paulie. Sua presença intrometida provoca Paulie, mas Mouse anima-se com a personalidade excêntrica, mas amável, de Ismay.

Paulie induz Mouse a assaltar os aposentos privados da senhora Peddie, onde elas encontram por acaso correspondências desta com a senhorita Vaughan, escritas anos atrás. As cartas detalham um incidente em que a senhorita Vaughan fora agredida por um policial, que a tinha visto beijando a senhora Peddie, um ato preconceituoso que fora disfarçado de atendimento a um caso de estupro. Paulie as rouba e as esconde na gaveta da cômoda de

Mouse. Quando Mouse verifica de manhã, elas tinham desaparecido. A declaração de amor é   exposta e com ela também o rompimento do segredo das duas, “Tenha certeza de que estou fazendo o melhor para me fortalecer para que eu possa te sentir em meus braços novamente e beijar toda a sua boca.”29(p.105)

Na ausência de Tory, o comportamento de Mouse piora, e ela é impedida de participar do Almoço dos Visitantes em King’s College. Mas acaba sendo levada até lá por seu Tio

Winnie (o irmão de sua mãe) e sua esposa. No colégio, ela vê Tory com Lewis no pátio externo. Lewis é perseguido na escola, depois de ser visto vandalizando uma estátua. Em meio ao tumulto, é dada a notícia de que o Presidente Kennedy fora assassinado.

Mouse é assolada pela notícia da morte do Presidente, mas é animada pelas cartas de

Jack O’Malley, um aluno de King’s College que ela conhecera no almoço. O comportamento de Paulie se torna sinistro; ela instrui Mouse a bater nela com um bastão velho, e quando

Mouse hesita, Paulie é que bate nela com o bastão, forte o suficiente para fazê-la sangrar.

Mouse admite que continuou a proceder com os testes de Paulie porque a personalidade perversa de Paulie absolvia a ela, Mouse, de todas as coisas em sua vida que ela não poderia mudar (por exemplo, não ser merecedora do amor de Morley, não ter amigos) e fazê-la ainda mais inocente.

Depois da apresentação de Natal, Mouse é chamada para se dirigir ao escritório da senhorita Vaughan, onde é informada que Morley, seu pai, morreu de um ataque cardíaco repentino.

Mouse retorna a sua casa em Madoc’s Landing para enterrar seu pai. Embora ela afigure-se fria e distante diante da realidade da morte do pai, ela parece desolada ao leitor.

Sua madrasta, Sal, que é frequentemente ouvida como a voz da consciência de Mouse, é revelada como uma alcoólatra. A Senhorita Vaughan vai até o funeral, levando Paulie, que

 29 “(...) Rest assured, I am doing my best to make myself strong so I can hold you in my arms again and kiss the corners of your dear mouth.”   conta a Mouse que Ricky está tentando impedir Tory de ver Lewis. Senhorita Vaughan pede a

Mouse que mantenha em segredo o que descobriu nas cartas entre ela e a Senhora Peddie.

Mouse decide não mais se vestir de garoto e medita sobre a falta de afeto do seu pai para com ela, concluindo que ele amava demais o seu trabalho. Mouse volta a Bath College com lembranças dele, uma delas era o livro de anatomia (ele era um cirurgião) e sua velha maleta de médico.

Na volta à escola, Mouse descobre que Paulie fora retirada de seu dormitório e substituída por Asa Abrams, e que Tory retornara. Para sua surpresa, ela recebe a singela simpatia de seus colegas, assim como de seus professores, e é particularmente tocada pelo presente de Tory, um livro do Novo Testamento. Paulie fora forçada a tomar o velho cubículo de Asa. Seu exílio a faz notavelmente mais amável com Mouse. Paulie revela que ela

(enquanto Lewis) entrou em uma briga com Rick e o feriu com uma faca, e que Tory estava chateada com ela por isso. Ismay conta a Mouse que Paulie tem esculpido figuras sinistras na armação de sua cama e roubado suas partituras musicais, o que Paulie, sorrindo, nega.

Lewis leva Mouse até King’s College na noite do baile de Natal, para buscar Jack

O’Malley. Os dois conversam embaraçadamente enquanto Lewis dirige até a casa de Cannon

Quinn para buscar Tory. Mouse vê Rick e Lewis discutindo e brigando na porta da casa dos

Quinn; Lewis retorna ao furgão visivelmente aborrecido e sem Tory. Uma vez sozinho, Lewis revela a Mouse que Rick o desafiara a provar que ele era um garoto e mostrasse a ele seu pênis, e começa a chorar.

Mouse finalmente deixa Paulie e junta-se a Jack. Eles se envolvem nas festividades, bebendo gim e “namorando na maior parte do tempo em pé30”. Aproximando o final da noite,

Mouse escapa e procura por Paulie. Finalmente a encontra no lavabo da torre, com o cabelo tosado e com o rosto cortado e sangrando. Paulie bravamente afasta Mouse quando ela tenta

 30 “fooling around for the longest time standing up”.   reconfortá-la, e diz que não desistirá de Tory. Elas são distraídas por Sergeant que, fantasiado de Senhorita Higgs, a primeira diretora da escola, percorre a escola com uma antiquada bicicleta Vitoriana. As garotas tentam segui-lo, mas Mouse perde Paulie na escuridão. Ela procura por Paulie em seu quarto e descobre as partituras musicais de Ismay, juntamente com páginas rasgadas do Gray’s Anatomy, de Morley. As páginas descrevem o pênis e estão anotadas por Paulie. Cansada e embriagada pelo álcool que Jack deu para ela, Mouse vai para cama.

Mouse acorda cedo de manhã e, preocupada com a ausência prolongada de Paulie, vai procurar por ela nas tubulações do subsolo da escola. Ela encontra Paulie aflita, dizendo que

Sergeant tinha caído entre os canos de aquecimento e havia se machucado. Ela leva Mouse até o corpo inclinado, então pede que Mouse traga o jardineiro tcheco, Willy. Sergeant está inconsciente e seriamente queimado pela queda nas tubulações escaldantes. Quando Mouse retorna com o jardineiro, encontra Sergeant morto, e Paulie desaparecida. Lembrando o que havia encontrado na noite anterior, Mouse, horrorizada, suspeita o que Paulie havia feito.

Erguendo a saia da fantasia, Mouse vê que Sergeant tinha sido castrado.

Mouse relembra detalhes do julgamento de Paulie e informa ao leitor o que aconteceu posteriormente. Depois de remover o pênis com um dos bisturis de Morley, Paulie o havia colado nela com cola de pneu e se apresentado a Ricky Quinn em seu diferente traje. Ela foi presa logo depois e considerada mentalmente instável, razão pela qual não leva a responsabilização total de suas ações. Esquivando-se da prisão, Paulie é mandada a uma instituição para reabilitação mental. Tory foi mandada para outra escola (embora a corte ouvira que ela continuava a ver Paulie enquanto estava em custódia) e Mouse foi mandada para casa em Madoc’s Landing, onde ficaria até que a agitação sobre o envolvimento dela no crime de Paulie tivesse acabado. Ela relembra um sonho que teve com Sergeant, depois de seu   funeral: ele diz que está feliz por saber que não fora seu amigo Lewis o responsável por sua morte, mas sim Pauline.

Agora, com dezesseis anos, Mouse olha para trás, em seu tempo no Bath’s College, e agradece as garotas e mulheres de lá que a inspiraram a ser ela mesma, e assina como M.B.

  

CAPÍTULO 2

THE WIVES OF BATH, UM ESPAÇO NO ROMANCE DE

FORMAÇÃO DE AUTORIA FEMININA   

2.1. O espaço, um elemento fundamental no processo de formação

De acordo com Nancy Chodorow (1978), a formação identitária da mulher, baseada no gênero como classe marginalizada, exerce uma grande influência nas narrativas de autoria feminina.

Na cultura patriarcal, que não permite muitos espaços para mulheres e que aprecia mais o silenciamento das mesmas, The Wives of Bath, permanecendo na marginalidade, repensa e critica os pressupostos do gênero Bildungsroman. O romance oferece uma experiência de descontinuidade e emudecimento dos ideais de vida da protagonista Mouse

Bradford, para determinar quais caminhos poderiam levá-la a alcançar a realização e afirmação do EU. Mouse Bradford conseguirá construir sua feminilidade mesmo em um espaço bruto através da escrita de sua história. Por meio da leitura de Showalter (1991), é possível perceber o aludido emudecimento como um discurso de duas vozes, usado como estratégia de sobrevivência para extrapolar os limites canônicos e sociais impostos, mas não aceitos:

A ficção das mulheres pode ser lida com um discurso de duas vozes, contendo uma estória “dominante” e uma “emudecida”, o que Gilber e Gubar chamam um “palimpsesto”. Eu o descrevi em todos os lugares como um problema de objeto/campo em que nós devemos manter dois textos oscilando simultaneamente em uma perspectiva... (SHOWALTER, 1991, p.204).

A sustentação de tal estudo se dá na tentativa de incluir The Wives of Bath na esteira da transgressão do conceito tradicional de Bildungsroman, pois de acordo com os pressupostos de Cristina Ferreira Pinto (1990),

a literatura feminina apresenta uma duplicidade, aproximando-se do discurso estabelecido, do conceito ‘masculino’ tradicional de literatura, e ao mesmo tempo introduzindo novos elementos que escapam a esse conceito tradicional, assim subvertendo-o.(p.22)   

Pode-se dizer que tal prática apresentaria uma revisão de gêneros masculinos e da própria história, mas escritos de um ponto de vista da margem, da minoria.

O espaço, no entanto, aproveita-se das características do Bildungsroman, pois, segundo Bakhtin (2011, p.245), no capítulo dedicado ao estudo do romance de formação, o espaço é integralizado ao mundo temporal:

Por isso tudo é intensivo no mundo de Goethe: nele não há lugares mortos, imóveis, paralisados, não existe fundo imutável, não existe decoração nem ambiente que não participe da ação e da formação (nos acontecimentos). Por outro lado, em todos os momentos essenciais esse tempo está localizado em um espaço concreto, marcado nele; no mundo de Goethe não há acontecimentos, enredos, motivos temporais que sejam indiferentes a um determinado lugar no espaço da realização, que possam realizar-se em toda a parte e em lugar algum...

É exatamente o que ocorre em The Wives of Bath, onde os espaços simbolicamente exercem o papel do contexto sugerido pelas epígrafes deste capítulo. É possível que o romance de Swan permita uma leitura confirmadora dos aspectos pulsantes na personagem exilada da família, deslocada pela própria sexualidade, que migra por diferentes espaços, como medida de construir sua própria identidade por meio da configuração de uma dupla personificação episódica para Mary Beatrice Bradford, em decorrência do espaço ocupado e das relações com ele estabelecidas. Como bem disse Bakhtin (2011):

É verdade que o romance incorpora ainda elementos utópicos e simbólicos, entretanto a natureza e as funções destes se tornaram inteiramente diversas. Todo o caráter das imagens do romance é determinado pela nova relação que tais elementos estabeleceram com a nova integridade do mundo. ( p.249)

Os elementos do espaço, no caso, sótão e porão, serão, portanto, espaços formadores e integralizadores da personagem Mouse Bradford, pois ainda de acordo com Bakhtin, (2011),

“o ambiente se tornou parte insubstituível do mundo geográfica e historicamente definido, desse mesmo mundo plenamente real e essencialmente visível da história humana...”(p.254).   

Outros elementos espaciais igualmente importantes são traduzidos por: quarto, canto, gaveta, escada, barranco (ravina), entre outros, que, além de funcionarem como elementos construtores da narrativa, exercem ainda função simbólica também significativa para a leitura dos eventos narrados. O simbologismo dos espaços será objeto das reflexões expostas no próximo capítulo.

Em The Wives of Bath, a personagem Mouse Bradford tem a oportunidade de extrapolar os limites da casa, mesmo que de forma contrariada em um primeiro momento.

Assim, a escola representará uma possibilidade de protesto, uma extensão do espaço doméstico, portanto, um espaço não interrompido, ou truncado, pelos padrões sociais de feminilidade existentes em sua família. Esse processo de ressignificação do espaço ocorre de fato, embora a escola possua modelos de espaço que cumprirão a proposta do Bildungsroman, expressos em uma contextualização binária: o sótão, como espaço público, e o porão, como espaço privado. Nesse espaço público (sótão), Mouse viverá seu mundo externo, e apenas no espaço privado (porão), sua problemática interna encontrará espaço e possibilidade de pulsar.

Tal dicotomia é conectada por uma escada que separa os dois espaços e que traz emoldurado um quadro com os seguintes dizeres: “Os Dez Mandamentos da Amizade”. Tais ordenanças evocariam a tentativa de manter a ordem e os bons costumes esperados de pessoas educadas e em especial de moçoilas casadoiras, pelo menos em seus corredores. Destaca-se nesse contexto que os únicos mandamentos a que Mary Beatrice se atém ao subir as escadas rumo a seu novo aposento são o de número cinco: “Seja cordial – fale e aja como se tudo o que fizer for um prazer genuíno.” (p.25), e o de número seis: “Seja genuinamente interessado nas pessoas – você pode gostar de todos se tentar.”(p.25)31. A longa subida inicial para o reconhecimento da alta e estranha torre em que habitará durante o dia, “indo mais alto e mais

 31 “The Ten Commandments of Friendship”. (“Be cordial – speak and act as if everything you do is a genuine pleasure.”) (“Be genuinely interested n people – you can like everybody if you try.”) (p.25)    alto até a estranha torre” (p.26)32, impulsionará a protagonista ao processo de descida às profundezas de seu porão psíquico.

Sobre o aspecto espacial e a relação interna e externa, manifesta-se Pinto (1990) da seguinte forma:

Segundo as expectativas que a sociedade tinha em relação à mulher, portanto, seu “aprendizado” se daria dentro de um espaço bem delimitado. O “mundo exterior”, responsável pela formação do herói do Bildungsroman, seria, no caso da protagonista feminina, os limites do lar e da família, não havendo margem para o seu crescimento interior.” (p.13)

Com base nos argumentos dessa autora (1990, p. 13), Mouse terá, no espaço da instituição educacional, uma possibilidade de vivenciar seu mundo interior, um mundo maior do que o ambiente restrito e gerenciado pela madrasta Sal, negligenciado pelo pai Morley, em função de suas responsabilidades com o trabalho, e idealizado pela mãe, segundo o posicionamento de sua corcunda, denominada Alice.

2.1.1. O espaço para Bachelard e Foucault

No porão, mesmo para um ser mais corajoso que o homem evocado por Jung, a ‘racionalização’ é menos rápida e menos clara; não é nunca definitiva. No sótão, a experiência pode sempre apagar os medos da noite. No porão há escuridão dia e noite. Mesmo com uma vela na mão, o homem vê as sombras dançarem na muralha negra do porão.

Gaston Bachelard

Foucault, em seu ensaio “Of Other Spaces”, de 1967, publicado apenas em 1984, descreve o trabalho A Poética do Espaço, de Gaston Bachelard, como monumental e menciona que os fenomenologistas nos ensinaram que o espaço em que vivemos não é vazio e homogêneo, é um espaço imbuído de quantidades e é também fantasmático:  32 “going higher and higher into the strange tower.”(p.26)  

O espaço de nossa primeira percepção, o espaço de nossos sonhos, e de nossas paixões sustentam com eles qualidades que parecem intrínsecas: há um espaço de luz, etéreo, transparente, ou outro espaço, escuro, rude, sobrecarregado; um espaço de cima, de cúpula, ou um espaço contrário, de abaixo da lama; ou ainda, um espaço que pode ser fluido como água com gás, ou um espaço fixo, congelado, como pedra ou cristal.33 (FOUCAULT, 1967)

Tais oposições representam a tônica dessa dissertação: espaços públicos/ externos e privados/ internos, altos e baixos, sótão e porão. Oposições que, segundo Foucault, são organizadores invioláveis que nossas instituições e práticas ainda não ousaram quebrar.

Foucault aponta também que o século XIX encontrou, no segundo princípio da

Termodinâmica34, na “Entropia”, seus recursos para sugerir que nossa época talvez seja a

época do espaço, a época da justaposição, do perto e do longe, do disperso, da simultaneidade, de espaços contrários, dos espaços de colocação. Trata-se de oposições que podem ser vistas, ainda de acordo com Foucault, por exemplos entre espaço público e privado, familiar e social, cultural e útil e de lazer e de trabalho. Também acrescenta que, a começar por Galileu, no século XVII, a extensão foi substituída pela localização. E ainda comenta: “Em qualquer caso eu acredito que a ansiedade de nossa era tem a ver fundamentalmente com espaço, sem dúvida muito mais do que com o tempo.”35 (FOUCAULT, 1967)

Bachelard (s/d, p. 18) reflete sobre a imagem da casa como uma topografia de nosso ser íntimo e faz alusão a uma comparação realizada por Jung para interpretar a alma humana:

 33 “We do not live in a homogenous space and empty space, but on the contrary in a space thoroughly fantasmatic as well. The space of our primary perception, the space of our dreams and that of our passions hold within themselves qualities that seem intrinsic: there is a light, ethereal, transparent space, or again a dark, rough, encumbered space; a space from above, of summits, or on the contrary a space from below of mud; or again a space that can be flowing like sparkling water, or space that is fixed, congealed, like stone or crystal. 34 “Entropia” é o Segundo Princípio da Termodinâmica. Tal termo tem sido emprestado conceitualmente a outras áreas de conhecimento, tais como a literatura, devido ao seu caráter desordenador. A entropia trouxe questões de probabilismo e incerteza às ciências, uma desordenação, uma indeterminação, a desordem. 35 In any case I believe that the anxiety of our era has to do fundamentally with space, no doubt a great deal more than with time.”  

Temos que descobrir uma construção e explicá-la: seu andar superior foi construído no século XIX, o térreo data do século XVI e o exame mais minucioso da construção mostra que ela foi feita sobre uma torre do século II. No porão, descobriram fundações romanas e, debaixo do porão, acha-se uma caverna em cujo solo se descobrem ferramentas de sílex, na camada superior, e restos da fauna glaciária nas camadas mais profundas. Tal seria mais ou menos a estrutura de nossa alma. (JUNG, apud BACHELARD, s/d, p.18)

Dessa manifestação, deriva a certeza de que há um sentido dos espaços físicos para instrumentalizar uma análise da alma humana. Bachelard (s/d, p.19) ainda comenta que nossa alma seria uma morada, e que quando nos lembramos de nossas casas, de nossos aposentos, aprendemos a morar em nós mesmos.

Mouse habita dois espaços, habita o visível e o invisível, lugares de intimidade desprotegida e de exposição protegida, mantendo, em sua sensibilidade, os limites de seu abrigo. Bachelard (s/d, p.24), empreendendo uma topoanálise – uma “análise psicológica sistemática dos lugares físicos de nossa vida íntima”, – sugere perguntas que se farão sustentadoras dos pressupostos deste estudo, ou seja, perguntas sobre o sótão/torre e o porão/subsolo como espaços simbólicos de formação da personagem Mouse.

Para Bachelard, “no sótão, vê-se, com prazer, a forte ossatura dos vigamentos.

Participa-se da sólida geometria do carpinteiro”. Mas o porão “[...] é em primeiro lugar o ser obscuro da casa, o ser que participa das potências subterrâneas.” E aponta ainda a diferenciação na forma de conviver com os sentimentos nesses dois espaços:

No sótão, camundongos e ratos podem fazer seu alvoroço. Quando o dono da casa chegar, eles voltarão ao silêncio de seu buraco. No porão seres mais lentos se agitam, menos apressados, mais misteriosos. No sótão, os medos se “racionalizam” facilmente. (BACHELARD, s/d, p. 31, grifos nossos)

Nesse contexto, podemos citar aqui algumas perguntas sugeridas por Bachelard que se enquadram perfeitamente na análise de The Wives of Bath: “O aposento era grande? O sótão   era cheio de coisas? O canto era quente? De onde vinha a luz? Como, também nesses espaços, o ser sentia o silêncio? (BACHELARD, s/d, p. 25)

Espaços de intimidade, conforme Bachelard, caracterizam atrações, chamam ações e imaginações. Dessa forma, poderemos, neste texto, visitar a lembrança dos espaços de formação da protagonista Mary Beatrice Bradford e, enquanto leitores, sermos absorvidos por tais rememorações e entender como o processo de formação está intimamente ligado à dimensão espacial na obra. Conceito que será reiterado no decorrer do trabalho.

2.2. The Wives of Bath, uma possibilidade de Bildungsroman?

[Tal forma de romance] poderá ser chamada de Bildungsroman, sobretudo devido a seu conteúdo, porque ela representa a formação do protagonista em seu início e trajetória em direção a um grau determinado de perfectibilidade; em segundo lugar, também porque ela promove a formação do leitor através dessa representação, de uma maneira mais ampla do que qualquer outro tipo de romance.

Karl Morgenstern

Para Maas (2000, p.50), a manifestação estética do Bildungsroman e seu momento histórico específico são como reflexos imediatos do ideário de formação dos autores e de suas aspirações para a própria época. Contradiz, portanto, a ideia de Buckley, apontada por Pinto

(1990), de que o romance de formação de Língua Inglesa apresentaria “sempre” um protagonista masculino e que a obra retrataria seu processo de aprendizagem da masculinidade.

Susan Swan possibilita em sua obra The Wives of Bath uma leitura transgressora do gênero romance de formação, ou Bildungsroman, por meio da apresentação do processo de formação da jovem Mary Beatrice Bradford, e sua busca de integração pessoal e social, que se apresenta incompatível com o romance de formação tradicional. A personagem Mouse, por   exemplo, tenta fugir dos padrões sociais de feminilidade, devido à experiência36 da protagonista como mulher. A obra aponta elementos que tangenciam tal fuga, tais como: a alienação voluntária ou imposta, a transgressão almejada, a questão do gênero e a alternância de papeis que se registram até o desfecho do romance, com a expressão da presença de Mouse situada como mulher. Tal evidência corrobora ainda os pressupostos de Pinto (1990, p.27), quando a autora afirma que “a narrativa feminina, numa prática subversiva, apresenta uma revisão de gêneros masculinos e uma revisão da história, escrevendo-a de um ponto de vista marginal”, destacando-se assim a cumplicidade de Susan Swan com a ideologia dos gêneros e sua escrita no space-off37 apontado por Laurentis (1994, p.237).

Descrito por Bakthin, em A Estética da Criação Verbal (2001), como um “romance incomparavelmente mais raro”, visto ser produto da imagem da formação do homem, o romance de formação, ou Bildungsroman, como modalidade de gênero narrativo, teve sua cronologia iniciada na Antiguidade. Ainda de acordo com Bakthin, as seguintes obras foram protótipos do gênero: Ciropédia, de Xenofonte (Antiguidade), Parzival, de Wolfram von

Eschenbach (Idade Média), Gargântua e Pantagruel, de Rabelais, Simplicissimus, de

Grimmelshausen (Renascimento), Telêmaco, de Fénelon (Neoclassicismo), Emílio, de

Rousseau, Agathon, de Wieland, Wilhelm Meister, de Goethe38 – essa última considerada obra paradigmática do romance de formação do homem e também considerado por Lukács (2009, p. 58), como uma prosa totalitária do ciclo romanesco. São também citadas David

Copperfield, de Dickens, O pastor da fome, de Raabe, Infância, Adolescência e Juventude, de  36 A definição de experiência que adotamos foi elaborada por Teresa de Laurentis, no artigo A Tecnologia do Gênero, como o processo pelo qual a subjetividade é construída para todos os seres sociais. ...complexo de efeitos, hábitos, disposições, associações e percepções significantes que resultam da interação semiótica do eu com o mundo exterior (nas palavras de C.S.Pierce). In: BUARQUE DE HOLLANDA, Heloisa. (org) Tendências e Impasses: o feminismo como critica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. 37 Space-off, termo empregado por Teresa de Laurentis, para descrever espaços nas margens dos discursos hegemônicos, espaços sociais entalhados nos interstícios e nas fendas e brechas dos aparelhos de poder- conhecimento. In: BUARQUE DE HOLLANDA, Heloisa. (org) “Tendências e Impasses: o feminismo como critica da cultura.” Rio de Janeiro: Rocco, 1994. 38 Interessante ponderar que de acordo com MAAS (2000,p.38), no romance da trilogia de Goethe, o conceito do termo Bildung transita, portanto, desde um sentido pedagógico-iluminista,..., até o sentido de formação universal. Tal conceito de formação universal fora definido por Wilhelm von Humboldt em 1792.  

Tolstoi, A montanha mágica, de Thomas Mann, entre outros. O autor salienta ainda que, se for considerada apenas a presença do processo de formação do protagonista, algumas obras como Tom Jones, o enjeitado, de Fielding e A feira das Vaidades, de Thackeray, poderiam também ser incluídas no gênero.

O termo Bildungsroman foi cunhado pelo filólogo clássico alemão Karl Morgenstern em 1810, por meio da justaposição de duas palavras do alemão – Bildung = (formação) e

Roman – (romance). Morgenstern foi representante de uma classe de intelectuais alemães pós-iluministas que, durante a passagem do século XVIII ao século XIX, contribuiu para a constituição de um determinado sistema de pensamento em que a formação intelectual e moral do filho de família burguesa deveria passar a ser tematizada e problematizada. A criação do termo Bildungsroman emerge, portanto, como um fato histórico associado a esse movimento burguês, em que a preocupação com a acumulação de riquezas passa a coexistir com um desejo de superação dos limites do conhecimento possível da classe média dominante. (MAAS, 2000, p.43).

Tal termo, de acordo com Maas (2000, p.42), [...] teria sido empregado pela primeira vez por ocasião de uma conferência pública proferida por Karl Morgensten aos 12 e aos 24 de dezembro de 1810, em Dorpat, no salão nobre da Universidade Imperial, [...]. Nos moldes dos ideais iluministas, o termo de caráter pedagógico criado por Morgenstern foi concebido como um veículo de formação do caráter, contribuidor da elevação da moral. Com essa concepção, firmou-se como um dos elementos constitutivos do paradigma literário que, em 1870, teve a inclusão efetiva nos discursos acadêmicos sobre literatura, pelas mãos de Wilhelm Dilthey.

Wilma Maas (2000, p. 62) aponta em sua obra que, em 1989, Jurgen Jacobs, caracterizou o Bildunsgroman como gênero nos seguintes termos:

• O protagonista deve ter uma consciência mais ou menos explícita de que ele próprio percorre não uma sequência mais ou menos  

aleatória de aventuras, mas sim um processo de autodescobrimento e de orientação do mundo; • A imagem que o protagonista tem do objetivo de sua trajetória de vida é, em regra, determinada por enganos e avaliações equivocadas, devendo ser corrigidas apenas no transcorrer de seu desenvolvimento; • Além disso, o protagonista tem como experiências típicas a separação em relação à casa paterna, a atuação de mentores e de instituições educacionais, o encontro com a esfera da arte, experiências intelectuais e eróticas [sic], experiência em um campo profissional e eventualmente também contato com a vida pública, política.

Muitos desses traços são encontrados na protagonista Mouse, podendo ser citados como fundamentais na configuração e valorização da obra: a) o processo de autodescobrimento vivenciado; b) os objetivos de vida distorcidos após a entrada na escola; c) a separação da casa paterna (e posterior morte de seu pai); d) a mentora coercitiva e falocêntrica Pauline; e) suas primeiras experiências eróticas; e f) os espaços da instituição educacional e a relação que os mesmos estabelecem com o processo de formação e legitimização de Mary Beatrice Bradford. Esse último item constitui o cerne de nossa pesquisa.

De acordo com Wilma P. M. Dinardo Maas, o Bildungsroman pode ser definido como uma conexão espaço-temporal atuante na formação do homem.

[...] a denominação Bildungsroman é mais que uma classificação puramente ordenatória; ela deriva do conjunto de práticas específicas no tempo e no espaço, reflete um desejo de amplitude intelectual comum a uma geração cujo projeto de aquisição de conhecimento e autoconhecimento impõe-se como subjetividade, como desejo pessoal. (MAAS, 2000, p.43)

Tal gênero narrativo é caracterizado não pela estruturação do romance, mas pelos temas, pelos elementos inseridos na obra e pela sua função pedagógica diante dos acontecimentos do período de desenvolvimento ou de formação do homem para a coletividade. Com essa caracterização, o Bildungsroman elege a representação do mundo e   da vida como experiência, ou seja, como escola pela qual todo e qualquer indivíduo deve passar.

De fato, conforme Lukács (2009), “Wilhelm Meister assume seu tema de reconciliação do indivíduo problemático, guiado pelo ideal vivenciado, com a realidade concreta.”(p.138) Reconciliação essa buscada, ainda segundo o autor, em “penosas lutas e descaminhos”.(p.138)

O romance de formação, ou, como por vezes denominado, de educação, tem, portanto, como elemento axial, o processo de formação do ser humano. Para isso, desloca-o de seu espaço, tempo, posição social e objetivos, por meio da interiorização do tempo em seu processo de reconstrução durante toda a narrativa. E a busca da significação de identidade, ou de imagem, percorre trajetórias reveladoras de tal processo. Pode ainda ser entendido como originário do resultado de uma engrenagem social e auto-reflexiva desenvolvida para ter seus ideais disseminados na ficção realista que começaria a se firmar como gênero. Maas afirma ainda que a existência do romance de formação enquanto gênero só pode ser entendida uma vez que se admita uma contínua alteração de seus pressupostos, de modo a expressarem sempre valores recorrentes em seu tempo e espaço.

Bakthin (2001, p. 215) destaca cinco formas de romance de formação, dependendo do grau de assimilação da realidade do tempo histórico. São eles: o romance de tempo idílico, mostrando como a idade interferiria nas concepções de mundo do homem; o romance clássico, que iria do idealismo da fase juvenil à maturidade sóbria; o romance biográfico e autobiográfico, o que entende a formação como uma resultante das mudanças das próprias condições e acontecimentos da vida; o romance didático-pedagógico, enfatizando a educação como processo pedagógico; e o romance de formação propriamente dito, visto como o mais importante pelo autor, devido ao fato de a formação do homem estar atrelada à sua própria formação histórica, em seu caráter cronotópico, diferenciando-se dos demais pela mobilidade   do mundo e pelo reflexo disso na essência humana. Ou seja, trata-se de considerar o homem se formando à medida dos reflexos, em si mesmo, das alterações históricas formativas do mundo. Além disso, é preciso considerar a transitoriedade entre esses dois mundos/épocas como o marcador da mudança identitária na sua existência histórica.

Assim sendo, as consequências de eventos do mundo externo unificarão a narrativa das reações e atitudes do herói frente a esse quadro, ou seja, o mundo ecoará em seu desenvolvimento interior.

2.3. O romance de formação de autoria feminina

Women will starve in silence until new stories are created which confer on them the power of naming themselves.

Sandra Gilbert and Susan Gubar

Subversivo até mesmo em sua criação, pois fora “gestado em um momento em que a literatura em língua alemã passa a reclamar e a exercer autonomia em relação aos modelos franceses e da Antiguidade clássica [...] ” (MAAS, 2000, p.83), a história do Bildungsroman insere-se na literatura primeiramente obtendo uma recepção harmônica. Extrapola, no entanto, o cânone e possibilita leituras capazes de deslocar a formação do homem do ideário e dos preceitos veiculados anteriormente para outras leituras que apresentem heróis problemáticos engendrados nessa mesma tradição literária. Ressaltamos ainda que “o Bildungsroman teria sido então compreendido como uma categoria genérica capaz de abranger grande parte da produção romanesca do século XIX, impondo-se a ela como modelo interpretativo.” (MAAS,

2000, p.205). Foi até mesmo apontado na época como uma ficção crítica, que se destacava como transgressora devido ao dinamismo do gênero no século XX.

A revisitação de obras da historiografia literária encontra solo fecundo nas obras de

Susan Swan. Essa revisitação permite ver que houve uma reavaliação do gênero e uma   legitimação da sua continuidade “para além do cânone” (nas palavras de Elódia Xavier ) ou dos seus limites, como uma projeção histórica e literária engajada na crítica feminista.

Adrianne Rich, em 1979, aponta a revisão da história cultural – e do cânone literário – como um ato de sobrevivência para as escritoras e propõe um movimento revisionista com o intuito de revelar “como temos sido conduzidas a nos imaginarmos, como nossa linguagem tem nos aprisionado e libertado, e como o simples ato de nomear tem sido até agora uma prerrogativa masculina”.39

Caracterizada pela escolha entre uma vida independente ou uma vida em conformidade do destino, entre a autodefinição ou o autodesenvolvimento, a problemática do

Bildungsroman de autoria feminina, conforme afirma Pinto (1990), reside na ausência de protagonistas femininas na tradição do romance de formação, levando-se em conta a abordagem feminista.

Na Literatura Brasileira, são apontadas pela autora as obras Amanhecer (1938), de

Lucia Miguel Pereira, e As Três Marias (1939), de Raquel de Queiroz, como primeiros exemplos de Bildungsroman femininos.

Ainda de acordo com Pinto, a aprendizagem suscitada pelos romances descritos como de aprendizagem feminina se instaura na “formação/preparação” da personagem para o casamento, para a formação do “anjo do lar”, e não para o crescimento interior da própria personagem, denotando, assim, uma inadequação da mulher para o desempenho de tal papel dentro dos romances.

Para a protagonista de The Wives of Bath, a cultura masculinista imposta pela família seria negada, visto que, para Mouse Bradford, mulheres não eram para ser respeitadas: “[...] garotas, meu gênero menos preferido.”40 (SWAN, 1998, p. 14). Em outra passagem, a

 39 “how we have been led to imagine ourselves, how our language has trapped as well as liberated us, how the very act of naming has been until now a male prerrogative.” RICH, Adrienne. When We Dead Awaken: Writing as Re-Vison. In: On Lies, Secrets, and Silence: Selected Prose, 1966-1978. New York: Norton, 1979, p.35. 40“ ...girls, my least favorite gender”   personagem narradora afirma: “eu queria poder dizer que era neutra sobre elas, como Morley.

Eu queria ser tão racional quanto possível. Mas até onde eu sei, garotas eram apenas falsos meninos[...]”41 (SWAN, 1998, p.14).

Algumas características definidoras do gênero, apontadas por Pinto (1990), tais como a infância da personagem, a limitação do meio de origem, o conflito de gerações, o mundo exterior, a alienação, a busca de uma vocação e de uma vida independente parecem não encontrar respaldo no Bildungsroman tradicional, conservador e patriarcal, que apregoa a dependência ao masculino como forma conformista de realização pessoal, ou seja, a mulher não era detentora da escolha de seu próprio destino.

Mouse Bradford não direciona sua vida para uma “formação harmônica”; e tampouco tenta conciliar os talentos e as habilidades idealizados para ela por sua madrasta: “Sal disse que nós nascemos mártires. Talvez fossemos mártires ainda dentro do útero.”42 (SWAN,

1998, p.12), nem pelos ideais apregoados pela instituição educacional Bath College: “Nossas filhas devem ser úteis e decorativas, como o trevo que adoça o cheiro dos prados.”43 (SWAN,

1998, p.14).

A adolescente fixa suas memórias por meio da escrita como forma de situar-se como mulher no final do seu processo de formação. Pinto (1990, p.60) embasa tal afirmação quando cita que a escritura seria um modo de lembrar e reviver o passado como uma tentativa de compreendê-lo, e menciona ainda que se a personagem não realizar seu intento, tal admoestação ficaria para seu leitor.

Sobre a ausência de protagonistas femininas dentro da tradição do gênero, Pinto ainda aponta que outras questões de caráter cultural, histórico e socioliterário foram levantadas por inúmeras críticas feministas:

  “I wish I could say I felt neutral about them, like Morley. I wanted to be as reasonable as possible. But girls were only mock boys as far as I was concerned.” 42 “Sal said we were born martyrs. Maybe we were even martyrs in the womb “.” 43“Our daughters shall be useful and ornamental, like the clover that smells sweet in the meadow.”  

A primeira a colocar a questão foi provavelmente Ellen Morgan, em um estudo de 1972 sobre o romance (anglo-americano) “neo-feminista”. “The Bildungsroman is a male affair”, afirma Morgan categoricamente (p.184), lembrando que, embora tivesse havido sempre “romances de aprendizagem” feminina, essa aprendizagem se restringia à preparação da personagem para o casamento e a maternidade. Seu desenvolvimento era retratado em termos de crescimento físico, da infância e adolescência até o momento em que estivesse “madura” para casar e ter filhos (Morgan, p.184). Antes do aparecimento do romance “neo-feminista”, segundo Morgan, os poucos exemplos de “Bildungsroman” femininos que focalizavam o desenvolvimento pessoal – ou seja, psicológico, emocional e intelectual – da protagonista terminavam constantemente em fracasso [...] (1990, p. 12).

A autora ainda afirma que os novos trabalhos surgidos nos anos 80 procurariam estabelecer um cânone do Bildungsroman feminino. Para tanto, proporiam uma redefinição do gênero, destacando os ensaios de Annis Pratt (1981) e Labovitz (1983). Salientamos que, nesse cânone, a maioria quase absoluta de romances teriam sido escritos por mulheres, apesar de Madame Bovary (1956) de Gustave Flaubert, Effi Briest (1896) de Theodor Fontane ou

Tess of the D’Urbervilles (1891) de Thomas Hardy, terem sido apontados como

Bildungsroman femininos escritos por homens.

Esses estudos informam que poucas obras com protagonistas femininas se iniciam na infância ou na adolescência. Segundo o ensaio introdutório a The Voyage In (apud PINTO, op.cit.), as editoras do volume registram que o desenvolvimento, ou a formação da protagonista, frequentemente teria início na vida adulta e, desta forma, o termo mais adequado para esse gênero não seria Bildungsroman, mas sim “novels of female development”44, pois, como sugere Pinto (1990, p. 15), “incluiria o processo de crescimento físico e interior da protagonista a partir da infância como seu crescimento interior já na idade adulta.”

Pinto menciona ainda que:

Dois dos modelos narrativos registrados por Pratt referem-se especificamente ao desenvolvimento emocional, psicológico e intelectual da  44 Tradução minha: Romances de desenvolvimento feminino.  

personagem feminina: o “romance de desenvolvimento”, ou Bildungsroman propriamente dito, e o “romance de renascimento e transformação” (“rebirth and transformation”). (PINTO, 1990, p.15)

Respaldada em Pratt, a autora classifica o Bildungsroman como um retrato do período de formação e integração do indivíduo na sociedade, com início na infância ou adolescência.

Afirma, ainda, que a personagem do “romance de renascimento e transformação”, diferentemente do Bildungsroman, seria a expressão, na idade adulta, de um período de busca de autorrealização. Nesse modelo, há a possibilidade da existência de uma protagonista vitoriosa em seus anseios, e a obra pode ter final positivo. No entanto, no Bildungsroman, devido à ambição de integração social e à busca por emancipação, reivindicações femininas, seu final não seria vitorioso, visto que tradicionalmente a mulher tinha dificuldades de realizar-se pessoalmente e integrar-se em sociedade.

Interessante considerar que tais finais, como o caso de The Wives of Bath, sugerem o contexto social da autora e sua forma de aceitar as normas sociais de comportamento, como representação de protesto e contestação do lugar e da autoridade da posição masculina dominante.

Derivando dessa análise, podemos considerar ainda que a escrita criativa de Swan possa ser um catalisador para sua autodescoberta. Nessa condição, The Wives of Bath poderia também ser considerado um exemplo de Künstlerroman, ou seja, como o romance do artista.

Em 2012, a autora Susan Swan declara que o romance em questão teria sido baseado em suas experiências de vida, fato esse que reiteraria uma possibilidade de Kunstlerroman exercido pela autora e por sua protagonista Mouse que também narra sua história.

De acordo com Campello (2003, p.27), o Künstlerroman, como “romance do/a artista, retrata a formação de uma personagem que desempenha atividades artísticas”, citando a escrita como uma dessas atividades. Diferencia-o ainda do Bildungsroman, pois “a   personagem-artista expressa, no universo da arte, o encontro e/ou o choque entre a atemporalidade da arte e a historicidade da experiência mundana.”

Por essa derivação de gênero, podemos considerar que Mouse Bradford, ao narrar o romance, não só experiencia seu processo de formação como também reflete sobre ele. E vai além no papel de escritora de suas memórias, estabelecendo uma correspondência por cartas com um pai “postiço”, John Fitzgerald Kennedy, o então presidente dos Estados Unidos da

América, morto em 22 de novembro de 1963, ainda durante a estada da protagonista na escola. Mouse escreve para organizar os fatos de sua vida e procurar se autodescobrir. Em alguns trechos a relação estabelecida por ela com o presidente evidencia o papel dado a ele como sublimação e idealização de um pai que, ao contrário do seu pai real, fosse presente e respondesse não apenas às suas cartas, mas aos seus anseios e questionamentos identitários em forma de ordenação de seu caos: “meu herói favorito de todos os tempos, John F.

Kennedy” (p. 16) ou “ Mas o mundo não é mais um lugar seguro sem você.”(p.155)45

Campello considera como romances precursores do Künstlerroman as seguintes obras:

The Excursion (1777) de Frances Moore Brooke, Julia (1790) de Helen Maria Willians – obras que antecedem o Wilhelm Meister de Goethe, fato que sublinha o privilégio do cânone masculinista – Corinne (1807) de Madame de Stael, Consuelo (1842) de Georg Sand.

Ellen Cronan Rose (1992), no capítulo intitulado Ringing the Changes on Change in

Women’s Fiction, mostra que o künstlerroman de autoria feminina é um produto polarizado:

“que tradicionalmente estabelece uma oposição binária entre domesticidade/sexualidade e autonomia criativa, como em Rumo ao Farol de Virginia Woolf [...]” (p. 742).46

 45 “my all time favourite hero, John F. Kennedy.” (p.16) . “But the world doesn’t feel safe anymore without you.”(p.155) 46 “Female künstlerroman traditionally set up a binary opposition between domesticity/sexuality and creative autonomy, as in Virginia Woolf’s To The Lighthouse…”  

Campello ainda menciona uma dificuldade em enquadrar perfeitamente qualquer obra de autoria feminina dentro do gênero Künstlerroman devido ao fato de o mesmo apresentar parâmetros marcadamente androcêntricos.

Vale ressaltar, no entanto, a discussão que tal caracterização tem provocado.

Considerar o romance apenas na esteira de tal gênero poderia refletir um discurso preconceituoso que desvaloriza o fazer artístico do autor, visto, por essa perspectiva, como um mero exercício de construção da resolução de problemas subjetivos e da expressão do ego através de uma catarse literária. Parece-nos, por isso, um conceito redutor, razão pela qual ainda preferimos considerar The Wives of Bath um romance de formação, em que a protagonista ouve de sua colega de quarto que, mesmo com a dor de estar fora de casa, em um passe de mágica, um dia acordaria uma garota mais velha: “Agora, não se importe se você sentir saudades de casa. Isso passa. E então um dia – bingo! Você acorda e, do nada, você é uma moça.” (p.29)47

 47 “Now, don’t mind if you’re homesick for a bit. It passes. And then one day – bingo! You wake up and, just like that, you’re an old girl.”(p.29)  

CAPÍTULO 3

DE MARY BEATRICE A MOUSE: UMA (TRANS)FORMAÇÃO EM PROCESSO  

A partir dos conceitos das categorias formadoras do Bildungsroman expostas nos capítulos anteriores, procuraremos abordar com mais profundidade as relações estabelecidas entre os vários elementos do romance na instância relativa ao espaço, sem prejuízo para a abordagem de outros fatores igualmente importantes para a produção de sentido do texto. Por essa razão, focalizaremos também nesta análise as relações intertextuais ou, como já denominamos neste trabalho, o diálogo que The Wives of Bath mantém com outras obras literárias.

Ao focalizarmos o espaço e o intertexto da obra, nossa atenção foi despertada pela carga simbólica que alguns dos elementos possuíam e pela importância desses símbolos para a construção do tecido narrativo. Veremos, pois, também a camada simbólica do romance em seus elementos concretamente expressos no texto.

Entendemos que tanto o nível do espaço quanto o do intertexto e do simbólico estão entrelaçados e interdependentes para a produção do sentido. No entanto, para uma exposição mais clara e objetiva, é metodologicamente aconselhável dividir os níveis em itens, nos quais um ou outro elemento será o predominante.

Assim, começaremos por abordar o espaço, para depois relacioná-lo com os significados simbólicos, visto que há muito em comum entre esses dois itens. Finalmente, recuperaremos alguns comentários sobre as relações intertextuais presentes no romance, com destaque para a função que esta relação exerce na construção do sentido.  

3.1. O espaço (trans) formador em The Wives of Bath

O romance é a forma da aventura do valor próprio da identidade; seu conteúdo é a história da alma que sai a campo para conhecer a si mesma, que busca aventuras para por elas ser provada e, pondo-se à prova, encontrar a sua própria essência.

Georg Lukács

O romance em análise, intitulado The Wives of Bath, deflagra a pretensão de romper com a normatização binária, propondo a alternância e, ao mesmo tempo, a descontinuidade da personagem Mouse, que vive em Bath`s Ladies College, uma escola para meninas, caracterizada pela presença de espaços que apontam para a obscuridade, centros de solidão, divagações, sonhos e devaneios. Os devaneios de Mouse, ou seus tendrillings, são apontados pela madrasta como forma de sair pela tangente: “Geralmente não falo muito, mas quando falo, Sal alega que eu saio pela tangente, como um tomateiro que dá muitas gavinhas48.”(p.08)49

Os devaneios, de acordo com Bachelard, em sua obra A Poética do Devaneio (2009, p.

11), se diferencia do sonho pelo fato de a possível intervenção da consciência neles ser um sinal decisivo, o que, no caso de Mouse, são suas gavinhas que a fixam em sua realidade, diferentemente do acontece em seus sonhos. Mouse, em um de seus devaneios, ou tendrillings, escreve ao então Presidente Americano John F. kennedy sobre sua dissociação, sua total despersonalização em relação ao espaço:

Veja você, há dias em que eu nem tenho certeza de quem eu sou, Sr. Presidente. Sinto como se minha cabeça e meu corpo de Mouse  48 Tendril – a leaf, stipule, or stem modified into a slender spirally coiling sensitive organ serving to attach a climbing plant to its support. (Merriam Webster Collegiate Dictionary)  “ Usually I don’t talk too much, but when I do, Sal claims I go off on tangents, like a tomato plant that grows too many tendrils.”  

pudessem pertencer a alguém. Você entende o que eu quero dizer? Talvez por eu conseguir sentir demais os sentimentos dos outros, eu não consiga expressar meus sentimentos separados dos deles. Eu fico flutuando dentro de uma grande pilha de pedras antigas e um monte de meninas estão flutuando aqui comigo.50 (p.74)

A sugestão do deslocamento da personagem se dá em decorrência de um processo em que o espaço reforça e efetiva o comportamento por meio da repetição estilizada de atos corporais, gestos e movimentos particulares, em que o efeito de gênero se estabelece, de acordo com o seu trânsito pelos diferentes lugares do internato. A instauração da personagem em formação se fará sustentar na presença da representação do masculino no porão, e do feminino, em seu quarto que fica no sótão – considerado o melhor quarto da escola –, e na permanência hesitante dessas personificações em um contexto escolar da década de 60.

Condizente com os conceitos de exílio formulados por Said (2003), a personagem

Mary/Mouse sente-se exilada daquilo que legitima o seu modo de viver e começa a compor sua identidade através do espaço sustentador do gênero masculino, tais como as tubulações de

água quente do subsolo da escola, do pequeno tabernáculo dedicado a King Kong – o direcionador das atitudes do rito iniciático da masculinidade, além do espaço do bar frequentado pelos garotos da escola vizinha.

Bonnici (2007, p.225) propõe uma análise dos textos a partir do questionamento e do rompimento com estruturas hegemônicas tradicionais da sexualidade e reitera Foucault (1977) nas afirmativas de que gênero e sexualidade seriam discursos culturais e não artefatos naturais. A jovem de Swan, que deseja remodelar uma realidade ruim – vivida no quarto como uma mulher – tornando-a uma outra realidade, que seja boa, segundo seus padrões,   “You see, there are days when I’m not sure who I am, Mr. President. I feel like my Mouse head and body could belong to anybody. Do you know what I mean? Maybe it’s because I feel other people’s feelings so much, I can’t tell my emotions from theirs. I’m just floating around inside a great big pile of old stones, and a whole lot of girls are floating around in here with me.”    encontra, nesse quadro de alternância identitária, uma possibilidade de existência, mesmo que no local das coisas ocultas e privadas. Conforme Arendt, citada por Bhabha (2007, p.31), nessa remodelagem, a personagem poderá revelar “como o oculto pode ser rico e múltiplo em situações de intimidade.”

Mediada pelas articulações do acontecer, a personagem, em busca de sua totalidade, – ora Mary Beatrice ora Nick – encontra-se portadora de uma identidade hesitante, o que, por esse motivo, culminará na aceitação de um processo doloroso de formação, visto que a simplificação disso seria a existência de um mundo com apenas um gênero, “Oh, Alice, por que precisamos de sexos diferentes? Todos nós começamos como garotas no útero. [...] Isso nos pouparia de tantos problemas.”51 (p.94).

De fato, de acordo com Yep (2003), estar marginalizado se refere “a uma cassação cultural em que a identidade social de um grupo ou sua condição não é valorizada ou é vista como sem valor.” As mulheres presentes em Bath Ladies College devem ser contidas e marginalizadas, e a própria estrutura do espaço aponta para a necessidade de conter a pulsação das mulheres. A narradora enfatiza esse propósito em frases como: “Eu percebi listras pretas finas de metal amarradas nas janelas da escola. Grades – a escola tinha grades. (p.14) 52 , ou em: “longe das grades de metal que impediam você de enfiar a cabeça para fora.” (p.38)53. O encarceramento é exposto também no trecho em que Mouse conta em uma de suas cartas ao

Presidente Americano que o local seria uma prisão para mulheres disfarçado de internato:

“Estou trancafiada em uma prisão para mulheres disfarçada de internato Canadense.” (p.48)54

 51 “Oh, Alice, why do we need separate sexes anyway? We all start off as girls in the womb.”… “It would save us all so much trouble.”

52 “I noticed skinny black stripes of metal strung across the school Windows. Bars-the school had bars.”(p.14) 53 “...away from the metal bars that kept you from sticking your head outside.”(p.38) 54 I’m locked away in a prision for women disguised as a Canadian boarding school.”(p.48)  

Interessante também observar como o espaço da escola age sobre a diretora do internato Miss Vera Vaughan, ou a Virgem. Mouse compara Miss Vaughan a Alice de Bath:

“Eu achava que ela parecia com a forma em que a Mulher de Bath de Chaucer pode ter parecido se ela tivesse pisado no século XX.”55 (p.22), e Sal, madrasta de Mouse, questiona, no discurso da narradora, se ela, a Mulher de Bath, não seria uma criatura meio a meio: “Era ela uma das criaturas que Sal chamava de meio-a-meio?”56(p.22). A narradora afirma que sabia haver mulheres “meio-a-meio”, amplas em si mesmas, uma raça especial de mulheres que viviam fora das regras dos homens.

Ainda sobre o papel da diretora Miss Vaughan no espaço da escola, é válido lembrar as ponderações de Maas (2000, p.146), ao tratar do papel do educador dentro do

Bildungsroman. Afirma a autora que “o educador não deve deixar o jovem entregue a seus equívocos, esperando que a vocação natural vença por si mesma”. Nesse caso, quem permeará o processo de formação de Mouse não será uma figura convencional do modelo pedagógico, uma mulher moldada para exercer papéis estereotipadamente femininos, tais como o matrimônio e a maternidade. Quem foi instituciolmente credenciado para tal papel foi uma figura distante desse estereótipo, pois Miss Vaughan esconde um segredo: teve problemas com a polícia canadense por conta de seu romance secreto com a professora de Inglês da escola, e Bath Ladies College passou a ser, para as duas, o local adequado para vivenciarem sua relação.

Ainda no espaço da escola, a instauração da personagem Mouse/Nick como uma personagem em alienação constante surge da própria orfandade experienciada por ela – a mãe morta, o pai ausente e a madrastra dominadora - motivo esse da vinda da garota ao internato.

Ou surge, ainda, o anseio de criação de um mundo governado por ela mesma. Em tal mundo,

Mouse é levada a buscar um papel historicamente masculinizado, vivendo no subespaço rude  55 “I thought she looked the way Chaucer’s Wife of Bath might have looked if she had stepped into the twentieth century.”(p.22) 56 “Was she one of those creatures Sal calls a half-and-half?” (p.22)   e grotesco do internato. Mas, ao contrário da colega de quarto Pauline, não deseja ser um homem fisicamente. Isso é visível nos segmentos a seguir: “— Eu quero tudo o que um homem tem exceto seu pênis.”(p.47), ou no segmento em que a enfermeira da escola questiona se ela já havia menstruado e Mouse argumenta que, devido aos seus problemas de saúde, ela talvez não menstruaria: “Eu gosto de ser sub-desenvolvida. Vocês podem crescer e se tornarem mulheres. Eu não.”(p.46)

De fato, Mouse se mantém ligada à realidade espacial para significar a desejada apropriação dos elementos masculinos do patriarcado, tal como a ambição pelo poder, o que, de acordo com Louro (2004), caracteriza a marca distintiva de um sujeito datado, histórico e situado, ou seja, em uma temporalidade social. Mouse acaba por refletir uma imagem incomum, já que a masculinidade almejada vai aos poucos ultrapassando os limites da racionalidade, e o custo de tais ações será pago em outro espaço, na casa dos tios.

3.1.1. O espaço e as personagens: um entre-lugar para entre-mulheres

A fim de abordar o efeito da relação entre espaço e as personagens na produção de significados do texto, partiremos do macro espaço e analisaremos primeiramente a escola.

Local projetado como um castelo normando por um arquiteto inglês e destinado ao entretenimento da Rainha Victória, Bath Castle foi adquirido por um conselho de curadores anglicanos que desejavam implantar um internato para garotas nos arredores de Toronto. Seu nome fora mantido em razão de o local ser já conhecido e a placa ostentava Bath Ladies

College em cores nobres, púrpura e dourado.  

O castelo de janelas com grades, de assoalho de tacos em formato de espinha de peixe, em que se podiam ver luzes e sombras, dependendo de onde se pisava, e de paredes recobertas por placas ou quadros contendo mensagens exortativas, recomendatórias e inscrições religiosas, abrigaria em seu espaço todo o perfil lapidante a que se destinava: formar mulheres condizentes com a placa deixada pela diretora anterior da escola:

Minhas queridas garotas,

O trabalho que o nosso criador atribui a vocês na terra deve ser realizado com o melhor das suas habilidades até o grande dia quando os símbolos materiais forem substituídos pela realidade da vida eterna.

Sua sempre,

Violla Higgs

(1874-1957)

As placas com inscrições religiosas traziam sempre frases militares, disciplinantes, tais como: “porta-estandarte” e “escolhido ser um soldado” (p.27)57. Tal fato entristecia a narradora sem que ela mesmo soubesse por quê. As paredes se configuravam como murais de recados, como uma cartilha patriarcal a ser estudada e seguida pelas mulheres de Bath. Mary

Beatrice Bradford é enviada ao espaço da escola contrariada. E nem mesmo o pai, Morley, obteve sucesso em evitar a ida de Mary, ao exclamar para a esposa Sal, avistando a escola:

“Você está me entendendo, Sal? Há grades nas janelas aqui.” (p.15) 58. E a madrasta Sal, ao mencionar a escola pela primeira vez, é questionada pelo esposo se em um lugar como aquele as garotas tratariam Mouse pior ainda, devido ao seu problema físico, e a resposta da mulher acrescenta ainda alguns significados ao espaço da escola: “Não seja bobo,” Sal disse. “Elas gostam de desajeitados naquele tipo de lugar.”(p.17)59 Esse seria o lugar em que Mouse

 57 “standard bearers” and “chosen to be a soldier, “(p. 26) 58 “Do you see what I mean, Sal? There are bars on the windows here,” Morley said.” (p.15) 59 “Don’t be silly,” Sal said. “They like misfits at those sorts of places.” (p.17)   passaria por seu processo de formação, um lugar de desajeitadas, desajustadas, ou ainda, um entre-lugar para entre-mulheres.

Embasados nos pressupostos de Rapucci (2011, p.193), consideramos que Mouse, por não ter a mãe ao seu lado para percorrer o trajeto rumo ao tornar-se mulher, ao contrário, convivendo no espaço da madrasta alcoólatra, repudia e não reproduz o ideário feminino, o ideal da conciliação entre talentos e habilidades dispersos, na direção de uma formação harmônica pelo cultivo de suas tendências individuais. No dizer da autora:

O aprendizado dos comportamentos apropriados aos papéis de gênero se dá por meio da imitação, treinamento explícito, advertências, enfim, processos de aprendizagem cognitivos. Dessa forma, os papéis familiares das mulheres estariam mais claros para as crianças de ambos os gêneros desde o inicio. Uma garota pode, então, desenvolver uma identificação pessoal com a mãe, aprendendo o que é “ser mulher” no contexto dessa identificação.

Se para Bachelard (s/d; p.30) “A casa e um corpo de imagens [...] dão ao homem razões ou ilusões de instabilidade.”, Mouse fora motivada à vida masculina pela tentativa de superar uma trajetória de vida ocupada pelo abandono presencial do pai e pela obrigatoriedade de construir seu mundo apenas em torno das necessidades de sobrevivência em sua casa na companhia de sua madrasta. Mouse encontra, nos espaços de Bath Ladies College, o exílio perfeito para sua determinação identitária em processo. No entanto, segundo Said (2003), o mundo contingente e secular do exilado será sempre provisório. Com o peso dessas características (obrigatoriedade e transitoriedade), a socialização promovida pelo quarto, antes alegremente apreciada por Mouse, passa a não mais agradar. Mouse opta por tentar assumir, em outro espaço - o espaço público noturno e oculto -, suas vestes masculinas para aniquilar o   sentimento de ira e não pertencimento ao gênero feminino: “garotas, meu gênero menos favorito.” (p.14)60, diz a personagem em determinado momento.

O aposento de Mary Beatrice era o último quarto do corredor, um quarto alto e estreito e considerado o melhor da escola; curiosamente, o quarto em que a primeira diretora da escola habitara e em que também havia se enforcado no lustre. Portanto, um espaço significativamente marcado que, na opinião da narradora, não era o melhor quarto da escola a não ser pela vista que podia ser observada entre as grades das duas estreitas janelas.

Era despretensiosamente mobiliado com três camas entre três cômodas e três espelhos, que exibiam placas com os nomes das garotas. Tantas eram as ordenanças trazidas pelo espaço que os espelhos exibiam placas com os nomes das internas, fato esse que demonstra a impossibilidade da mudança, a obrigatoriedade do ser e do pertencer àquele espaço naquelas dadas condições: “Cartões brancos alinhados eram colados dentro do espelho em cada cômoda. Em um eu li o nome de Victoria Quinn, e no outro, Pauline Sykes.”(p.28)61

Interessante notar que o espelho, democraticamente concebido para refletir quem quer que se coloque em sua frente, adquire, nesse espaço, um traço limitante, como se só pudesse identificar a personagem a quem pertencia. Assim, em vez de ampliação espacial, uma das suas funções, o espelho promoveria a redução do espaço e do ser que nele procura identificar- se. E uma frase é expressa por uma professora, que habita um dos quartos da torre, a fim de monitorar as meninas, para enfatizar tal despersonalização: “Não deve haver marcas pessoais nos espelhos de vocês,’ Miss Phillips disse. ‘Há um quadro de avisos em cima da cama de vocês com este propósito.62”(p.36)

 60 “...girls, my least favorite gender.” (p.14) 61 “Lined white cards were stuck inside the mirror on each dresser. On one I read the name Victoria Quinn, and on the other, Pauline Sykes.”(p.28) 62 “There are to be no personal effects on your mirrors,’ Miss Phillips said. ‘There’s a bulletin board over your bed for that purpose.”(p.36)  

Mouse, ao enfatizar os defeitos e as dificuldades de ser mulher no espaço público, designa mais uma vez a figura masculina como modelo de perfeição8Fato que a faz divagar, camuflando uma realidade, e imaginar em seus devaneios que, se o pai soubesse daquilo não a deixaria a filha nem por um segundo em um quarto na torre da escola, no final de uma escada muito alta e que após o toque de recolher obrigava-a até mesmo a expelir urina de cócoras em uma garrafa.

É no quarto que Mary Beatrice primeiramente usa o nome Mouse. Consideramos que isso mostra simbolicamente o seu anseio em percorrer todos os espaços da escola de maneira sorrateira e misteriosa, tal como um rato. Para Linda Hutcheon, (1999, p.195) “Talvez as mulheres tenham ficado mais conscientes da atribuição de nomes em relação à referência porque têm sido tradicionalmente designadas por sobrenomes paternos e conjugais.” Dessa forma, talvez Mouse veja nesse nome a possibilidade de transitar sem ser vista e, portanto, livremente, do quarto da torre ao porão e do feminino ao masculino.

Contudo, apesar do novo nome, Mouse começa a percorrer uma via de desassossego e incerteza em busca da simbiose entre sua dupla vida – ora garota, ora garoto – mas com

ênfase nos comportamentos e ações historicamente masculinizadas, identificados pelo território ocupado pela personagem.

A temática de transformação do ser do porão e das prerrogativas masculinas realiza-se no momento em que a personagem começa a ocupar os espaços das tubulações de água quente, o porão, o quartinho dedicado à adoração de king Kong e o bar de Madoc Landing, pequeno vilarejo onde se situa a escola. Para Mouse, só é possível sentir o poder através de formas tradicionais que agem negativamente sobre os outros, e assim, para assumir a masculinidade em um espaço público, a narradora permite que sua colega de quarto crie um alter-ego para ela, o grego Nick.  

A reivindicação por um espaço já-dado em suas concepções patriarcais é apregoada por frases como: “Eu era um menino. Minhas roupas diziam isso.” 63(p.121), “Os homens têm muita sorte: eles têm que ser homens pelo próprio fato do nascimento.”64 (p.178). A instabilidade instaurada nesse movimento oscilante da transformação vem acompanhada de um sentimento de não-pertencimento completo a nenhum espaço, especificamente, o que se traduz na personagem pelo sentimento de estar fora da norma, ou à margem da sociedade.

De fato, de acordo com Yep (2003), cuja citação retomamos, estar marginalizado refere-se “a uma cassação cultural em que a identidade social de um grupo ou sua condição não é valorizada ou é vista como sem valor.” Para Mary Beatrice, seria muito mais fácil ter nascido homem. A partir de então, os traços e espaços que a constituiriam, visíveis na tessitura do texto, assumem sua função maior no todo orgânico do texto, estabelecendo uma relação territorial com o elemento essencial de sua vivência – seu corpo como exílio. Passa, então, a se valer disso para fundamentar sua própria identidade.

A apresentação performativa de normas de gênero e sexualidade subverte o gênero imposto pelo espaço feminino do quarto na torre em que a personagem vive, posto que o desejo latente de Mouse se mantém pela incorporação do homem e pela negação da mulher.

Esse movimento em direção ao masculino se concretiza em uma personagem idealizada, o próprio presidente americano, conhecidamente abarrotado de conflitos: “Eu queria algo mais imponente que um pênis. Eu queria o que meu herói, Presidente Kennedy, tinha: coragem, estilo individual, uma vida de ação e um intelecto. Isto era pedir demais para um Rato? ”65

(p.116)

 63 “I was a boy. My clothes said so.” (p.121) 64 “Men had all the luck: they got to be men by an accident of birth.” (p.178) 65 “I wanted something more grand than a penis. I wanted what my hero, President kennedy, had: courage, individual style, a life of action, and an intellect. Was I asking too much for a Mouse?” (p.116)  

E se o existir para ela mesma resulta em seu próprio isolamento existencial, pensamos poder reiterar Said (2003) e sua afirmação de que o exílio seria a vida vivida em uma existência de marginal e definitivamente sem um pênis.

Tal isolamento será afirmado pelo processo de descer as escadas e chegar até o porão.

Nesse contexto podemos conceber a escada como um caminho, um longo caminho, “uma velha escadaria cujo corrimão parecia girar em direção ao céu em círculos infindáveis [...]”

66(p.25); uma travessia do alto para o baixo em que é desenrolado um processo de desnudamento da imagem feminina e do travestimento da imagem masculina durante o ato de descer rumo ao porão. Ao descer, Mouse se encena afrontando os murais de recados, disfarçados por quadros, nas paredes da escadaria da escola, por vezes chamada de

“calabouço”67.

3.2. Entre o porão e o sótão: territórios do pertencer

Bachelard, em sua obra A Poética do Espaço, afirma que Jung se serviu da imagem dupla do porão e do sótão para analisar os medos que moram na casa. (BACHELARD, s/d, p.31). Afirmou também que espaços de abrigos e aposentos e o sentido da valorização dos mesmos devem ser analisados por serem espaços de bem-estar, caracterizados por exercerem uma atração. Constata ainda (s/d, p.22) que a casa seria como nosso canto no mundo, nosso primeiro universo, um verdadeiro cosmos em toda a acepção do termo.

Ferreira (2008), em seu artigo “Espaços Expectantes”, mostra que desse tempo de aderência das personagens aos seus recintos resultam disso arranjos de modos espaciais que são decisivos para a interpretação de personagens estilizadas nos romances. Considerando a  66 “...an old staircase whose railings seemed to spin skyward in endless circles...” (p.25) 67 “ dungeon”   importância dessa vivência, analisaremos não apenas a concepção arquitetônica, mas a ressonância entre os espaços e o processo de formação resultante da portabilidade da personagem Mary Beatrice Bradford em cenários que remetem a instâncias de contenção e extinção de suas vontades por uma pretextada escolha espacial da autora a fim de desmascarar a ideologia do silenciamento das mulheres.

3.2.1. O quarto

O quarto na torre, já bastante referenciado neste trabalho, quer por sua condição de espaço polarizado em relação ao sótão, quer por constituir uma moldura para a contenção do feminino, apresenta ainda em seu conteúdo alguns elementos importantes para caracterizar esse espaço. Dentro dele, destacamos o espelho, já referido, e a cômoda.

Esse móvel é visto por Bachelard, como elemento orgânico da vida psicológica das personagens. De acordo com o autor, “O armário e suas prateleiras, a escrivaninha e suas gavetas, o cofre e seu fundo falso são verdadeiros órgãos da vida psicológica secreta. Sem esses ‘objetos’ e alguns outros igualmente valorizados, nossa vida íntima não teria modelo de intimidade. São objetos mistos, objetos-sujeitos. Têm, como nós, para nós, por nós, uma intimidade.” (p.70)

No quarto do colégio, uma das três cômodas iguais, assim como os espelhos e as camas, será a de Mouse. Diferencia-se do espelho porque, na cômoda, o que significa não é o que reflete ou limita, mas sim o que esconde. É no interior dela que a subjetividade de Mouse se encontra. Assim, como diz Bachelard:

O espaço interior do armário é um espaço de intimidade, um espaço que não se abre à toa. [...] No armário, só um pobre de espírito poderia colocar uma coisa qualquer. Colocar uma coisa qualquer de qualquer maneira, em  

qualquer móvel, marca uma fraqueza notável da função de habitar. No armário vive um centro de ordem que protege toda a casa contra uma desordem sem limite. Reina aí a ordem ou, antes, a ordem aí é um reino. (p.70)

A primeira menção ao quarto aparece na cena em que Mary Beatrice é levada pelo anão aos seus aposentos, local que guarda algumas especificidades em relação aos outros aposentos da escola. Nele, alguém (uma mulher) havia se enforcado, ou seja, uma mulher havia ali reduzido a zero a sua identidade:

O anão abriu a última porta e me puxou pela manga para um quarto alto e estreito. ‘ Não é que você tem toda a sorte!’ ele disse, e riu. ‘Você está no quarto da diretora Inglesa – o melhor quarto da casa.’ Ele abaixou a voz e apontou para o teto, onde vi um globo empoeirado preso a um gancho de metal. ‘Foi com isso que ela se enforcou’. 68(p.27)

A descrição do quarto, por Mary Beatrice, é feita da seguinte forma:

Ansiosamente, eu olhei ao redor. Imaginei se ele estava tirando sarro de mim. Poderia ser o melhor quarto da escola, mas eu não vi muito para ficar contente, exceto pela vista. A janela em direção a oeste dava para um estacionamento e uma garagem para dois carros (onde o anão me contou que ele e o outro zelador, um tcheco chamado Willy, tinham um pequeno quartinho). Do outro lado ficava a massa escura e arborizada da ravina, que rastejava até o morro como uma erupção em direção aos jardins bem cuidados da escola. A janela em direção ao sul abrangia um grande pátio de pedras cercado por árvores finas e engraçadas cujo nome descobri mais tarde que era olmos de Camperdown. À sudoeste eu podia ver as torres cinzas da cidade, que se assentavam como a Terra de Oz em uma faixa de água de rio alegre e azul.”69(p.28)

 68 “The dwarf pushed open the last door and tugged me by the sleeve into a high, narrow room. ‘Haven’t you got all the luck!’ he said, and giggled. ‘You’re in the bedroom of the English headmistress – the best room in the house.’ He lowered his voice and pointed at the ceiling, where I saw a dusty globe fastened by a metal hook. ‘That’s what she hanged herself on.”(p.27) 69 “Anxiously, I looked around. I wondered if he was teasing me. It might be the best room in the school, but I didn’t see much to be glad about except the view. The east window looked down on a parking lot and a two-car garage (where the dwarf told me he and the other janitor, a Czech named Willy, had a tiny room.) Beyond lay the dark, leafy mass of the ravine, which crawled up the hill like a rash toward the manicured grounds of the school. The south window overlooked a very grand stone patio surrounded by the funny spindly trees whose name I found out later was camperdown elms. Off to the southwest I could see the silver towers of the city, which sat like the Land of Oz on a merry blue stripe of lake water.”(p.28)  

Interessante observar que Mouse, em nenhum momento, impressiona-se com o fato narrado pelo anão sobre o enforcamento. Ao contrário, a personagem continua falando de seu quarto e o descreve com detalhes:

Era mobiliado de forma simples: três camas continentais uniformemente espaçadas entre três cômodas. Cartões brancos alinhados eram presos no espelho de cada cômoda. Em um eu li o nome Victoria Quinn, e no outro, Pauline Sykes. Um quadro de avisos pairava sobre cada cama. Um pôster velho e granulado do filme King Kong estava fixado na primeira placa. A segunda exibia uma foto do cantor de calypso Harry Belafonte próximo a um pergaminho amarelado manuscrito em relevo, que se podia ler: ‘A mulher é descendente da costela de Adão para ser igual a ele, próxima de seu braço para ser protegida e próxima ao seu coração para ser amada.’ Eu achei que o pôster pertencesse a Victoria Quinn. Em sua cômoda uma fotografia emoldurada de um rapaz loiro bem penteado. A foto estava assinada, ‘Como sempre, Rick.’ Próximo a isso eu vi uma escova cheia de cabelos, um estojo de maquiagem bojudo, um pote de barro transbordando de flores alpinas, e um maço de Cameos. Eu sorri. Eu tinha algo em comum com uma colega de quarto.70 (p.28)

Ao ser avisada de que, após o desligar das luzes, até mesmo as necessidades naturais – nature calls - deveriam ser feitas no quarto, Mouse é ensinada pelas colegas a fazer xixi em uma garrafa, o que resulta em um espaço molhado e mal cheiroso. Sua colega Tory afirma então: “Você vai se acostumar a esse lugar,’ ela disse, e abriu as duas janelas estreitas. Elas balançavam ao ar livre em suas dobradiças, longe das barras de metal que impediam você de colocar a cabeça para fora.”(p.38)71

Em outra passagem, a torre da escola é apontada por Mouse como portadora de um silêncio típico de cavernas, fato que a fazia se sentir desconfortável e triste. Portanto, apesar

 70 “It was plainly furnished: three continental beds evenly spaced between three dressers. Lined white cards were stuck inside the mirror on each dresser. On one I read the name Victoria Quinn, and on the other, Pauline Sykes. A bulletin board hung over each bed. A grainy old poster for the movie King Kong was pinned to the first board. The second displayed a picture of the Calypso singer Harry Belafonte next to a scroll in embossed yellow script, which read: ‘Woman is descended from Adam’s side to be his equal, near his arm to be protected and close to his heart to be loved.’ I guessed the poster belonged to Victoria Quinn. On her dresser sat a framed photograph of a blond boy in a brush cut. The photo was signed, ‘As always, Rick.’ Next to it I saw a matted hairbrush, a bulging makeup case, a crockery pot spilling over with alpine flowers, and a package of Cameos. I smiled. I had something in common with one roommate.”(p.28) 71 “You’ll get used to this place,’ she said, and opened the two narrow windows. They swung outwards on hinges, away from the metal bars that kept you from sticking your head outside.” (p.38)   de Bachelard considerar o sótão um espaço positivamente marcado, o quarto na torre, que aqui consideramos similar ao sótão, identifica-se com a caverna e seus silêncios.

3.2.2. A escada

Já no espaço da escola, destacamos a escada e sua função organizadora dos outros espaços. Pela escada, a personagem toma consciência de sua condição de exilada, pelas mensagens postadas em seu trajeto. Pela escada, Mary caminha para Mouse, em sua sofrida descida para o sótão, e Mouse caminha para Mary, em sua busca do feminino. A fusão dos dois estados configura-se na alternância dos movimentos de subir e descer.

Para Chevalier (1994, p.382),

A escadaria é o símbolo da progressão para o saber, da ascensão para o conhecimento e a transfiguração. Quando ela se eleva em direção ao céu, trata-se do conhecimento do mundo aparente ou divino; quando penetra no subsolo, trata-se do saber oculto e das profundezas do inconsciente.

A ascensão para a transfiguração e para o autoconhecimento ocorre com Mouse, não só no movimento ascendente, mas na soma deste ir e vir, que reúne a aquisição do conhecimento do subir ao sótão/torre com o movimento de descer ao subsolo/porão, em busca da sua própria consciência, que podemos considerar um saber da instância do oculto.

A escada, ou lances de escada, levam algo ou alguém de um nível a outro, de um andar a outro; essa mobilidade é caracterizadora desses espaços. Os cinco andares da escola eram alcançados por escadas, e as paredes dessas escadas eram todas usadas como espaços disciplinadores devido às suas placas, quadros e avisos.  

Então viramos em um canto, e à nossa frente, subindo por nossas cabeças, andar por andar, havia uma escada velha cujo corrimão parecia girar em direção ao céu em círculos infinitos que terminavam em uma imensa claraboia arredondada. Era como olhar para cima em um rabisco do olho de um gigante. Eu temi a subida por conta de minhas pernas finas, mas fomos devagar, o anão soprando e cambaleando com o peso de meu baú velho. Ele se chocava ruidosamente em cada passo, eu comecei a ter pena dele.72 (p.26)

Ainda sobre a escada, diz Bachelard (s/d, p.35):

Por essa escada em caracol, o sonhador sai das profundezas da terra e entra nas aventuras do alto. [...] A escada que vai até o porão, descemo-la sempre. É a sua descida que fixamos em nossas lembranças, é a descida que caracteriza o seu onirismo. A escada que sobe ao quarto, nós a subimos ou a descemos. É uma via mais banal. É familiar.” (p.35)

Chevalier (1994, p.573) afirma ainda que a escada espiralóide, no caso a de Bath

College, foca-se no desenvolvimento axial, implicando a correspondência entre dois pontos, que podem ser a consciência ou seu próprio eu.

3.2.3. A enfermaria

O espaço terapêutico e seus operadores terapêuticos sempre foram espaços e personagens complexos. Descendo um pouco as escadas, estava a enfermaria da escola. Com o propósito de realizar avaliações médicas periódicas, nesta escola havia duas enfermeiras que tinham a função de inquirir sobre os períodos menstruais das internas e dizer em alto e em

 72 “Then we turned a corner, and before us, rising up over our heads, floor upon floor, was na old staircase whose railings seemed to spin skyward in endless circles that finished finally in a round skylight. It was like looking up into a scrawly drawing of a giant eye. I dreaded the climb on my thin legs, but we went up slowly, the dwarf puffing and staggering under the weight of my old steamer trunk. It bumped loudly over each step, and I began to feel sorry for him.”(p.26)   bom som os resultados obtidos dos pesos e medidas. E, o mais importante para o relatório das enfermeiras: se alguma interna ainda não havia menstruado.

O espaço da enfermaria faz com que Mouse enfrente seu problema físico e emocional:

“ Morley até queria me levar a um especialista mais cedo ou mais tarde. Morley queria fazer muita outras coisas.” 73(p.6), mas nunca fez nada de concreto para tentar resolver seus problemas de saúde. O reflexo da ineficácia de seu pai médico em sanar a própria filha em seu trauma espinal e o descaso com que lidava com sua filha, fica ainda mais evidente na sua visita à enfermaria. Ela lembra então que, muitas vezes, o distanciamento do pai era justificado pela madrasta por meio do ditado popular: “filhos de sapateiro não tem sapatos.”

Na enfermaria, Mouse é afligida pelo medo de ter de tirar sua blusa, pois todas estavam nuas, exceto as mais gordinhas que esperavam até o último instante para isso. Mouse tem um motivo para estar aflita: sua corcunda será exposta ao mundo, assim como o descaso com que foi tratada por seu pai médico também será exposto. “Logo será minha vez. Eu não queria tirar minha blusa e deixar todas olharem para Alice – ou para meu novo corretor de postura.” 74(p.44)

Ao ser indagada se já havia menstruado, Mouse responde que não e é abruptamente questionada sobre sua idade. Mouse tem treze anos e, por estar dois anos adiantada em seus estudos, convive com meninas de quinze ou dezesseis anos, todas já menstruando. Após ter que mencionar a razão de seu peito deformado por conta da cifose, razão pela qual talvez jamais menstruará, Mouse é levada pelas enfermeiras que, mesmo questionando as razões do problema, resolvem cuidar da menina: oferecem-lhe um abraço, um copo de leite quente e uma delas ajuda a vesti-la. Para Mouse, não menstruar significa não ter que ser mulher. Tal concepção é percebida quando a protagonista, em uma de suas muitas divagações, pensa ao  73 “Morley meant to take me to a specialist sooner or later. Morley meant to do a lot of things.” 74 “Soon it would be my turn. I didn’t want to take off my tunic and let everyone stare at Alice – or at my new posture corrector.”   ser levada a outra sala pelas enfermeiras: “Eu gosto de ser subdesenvolvida. Vocês podem crescer e se tornar mulheres. Eu não.”75 (p.46)

A invenção dessa nova autonomia do espaço hospitalar não foi uma descoberta súbita, mas uma política de controle estabelecida devido à fragilização do indivíduo através de seu corpo. Foucault aponta que o espaço hospitalar foi colocado lentamente em funcionamento nos colégios e internatos. (FOUCAULT, 1977, p.132)

Trata-se, portanto, de mais um espaço cuja vivência constitui mais um elemento para a formação da personagem Mouse.

3.2.4. O porão

O sonhador de porões sabe que as paredes do porão são paredes enterradas, paredes com um lado só, que tem toda a terra do outro lado. E por isso o drama aumenta, e o medo se exagera. Gaston Bachelard

Configurado como a subestrutura ou fundação de um edifício, o porão simbolicamente representa a última posição, o lugar mais baixo. Nesse sentido, afirma Bachelard (s/d, p.32):

O porão é pois a loucura enterrada, dramas murados. As narrações dos porões criminais deixam na memória marcas indeléveis, marcas a que não gostamos de nos referir; [...] Que poder para uma simples casa ser construída sobre um emaranhado de subterrâneos!

De fato, na sala da caldeira, no subsolo, havia o altar de King Kong. Mouse percebe que Paulie idealiza o macaco, o que simbolicamente, de acordo com Chevalier (1994, p. 573), além de seu dom de imitação, apresenta também um aspecto em sua natureza: o da

 75 “I like being under-developed. You can grow up and become women. Not me.”   consciência dissipada e das atividades inconscientes. King Kong representa para Pauline a idealização de seu superego, o que pode ser percebido nas linhas que seguem:

Oh, Kong era terrível de se olhar se estivesse bravo, e adorável como um ursinho de pelúcia quando estava fazendo as coisas de que gostava, tais como segurar Fay Wray em seus dedos e gentilmente despi-la. Eu podia ver por que Paulie gostava dele. Eu tambem gostava.76(p.89)

Ao lado do ambivalente King Kong, a narradora também se refere a uma salinha onde o gorila ficava. Trata-se de um cubículo, cuja porta drapeada era feita de sobras das cortinas listradas verde-oliva do escritório da diretora, chamada pelas alunas de “a Virgem”. Tal epíteto ganha ainda mais significação nesse contexto de exacerbação do erótico no gênero masculino. Ainda no que se refere à relação entre Virgem e King Kong, destaca-se a presença de um altar, onde se realiza uma espécie de ritual:

Atrás desta sala improvisada havia uma porta drapeada com as mesmas cortinas listradas verde-oliva que ficavam penduradas no escritório da Virgem. Paulie foi até a cortina e levantou-a, e dentro eu vi um pequeno quarto, com as paredes de madeira, como um estábulo. O tinido da queima do carvão enfraqueceu conforme entramos, e eu ainda estava segurando a vela. Estávamos em pé em uma velha calha de carvão. No meio da calha, havia um banquinho de piano com um cacho de bananas em cima. Ao meu lado, Paulie acendeu um incenso, então dobrou o joelho e fez o sinal da cruz, fazendo uma genuflexão tão habilmente quanto os Anglicanos que víamos na catedral de St. Paul. Então ela me fez segurar a vela perto da parede, e eu vi uma criatura com olhos de macaco raivoso. Seus braços peludos seguravam raios, como se ele estivesse pronto para arremessá-los em nossos corações. (…) Eu estava olhando para um pôster do filme King Kong – um pôster velho da década de trinta. 77( p.88)

 76“ Oh, Kong was terrible to look at if he was mad, and lovable as a Teddy bear when he was doing things he liked, such as holding Fay Wray in his fist and gently peeling off her clothes. I could see why Paulie liked him. I was fond of him too.” 77“ Behind this makeshift sitting room stood a door draped with the same striped olive-green curtains the Virgin hung in her Office. Paulie went right over the curtain and lifted it, and inside I saw another tiny room, with wooden sides like a horse’s stall. The clink of the coal feed grew fainter as we stepped inside, me still holding the candle. We were standing in an old coal chute. In the middle of the chute was a piano stool with a stack of bananas sitting on top of it. Beside me, Paulie lit an incense stick, then dipped her knee and crossed herself, genuflecting as expertly as the High Anglicans we saw at St. Paul’s. Then she made me hold the candle close to the wall, and I saw a creature with mad, ranging monkey eyes. His hairy arms held lightning bolts, as if he were about to hurl them into our hearts. (…) I was looking at a movie poster of King Kong – an old one, from the thirties.”  

Como um golpe narrativo, a autora informa, só então, que se trata não de um King

Kong empalhado (ou real, o que seria uma fantasia), ou um boneco de pelúcia, mas o “pôster do filme King Kong” que, curiosamente, também existe no quarto da torre. A representação do masculino fica evidente na figura do gorila, que é usado por Lewis como fonte das imposições de atitudes masculinas que as meninas precisam assumir. Assim, Lewis acaba sendo uma forma de ‘médium’, pela qual os ensinamentos eram transmitidos. Essa situação configura-se, sem dúvida, como importante elemento para a formação de Mouse.

3.2.4.1. Túneis de aquecimento

Localizados no porão, os túneis de aquecimento também constituem espaço significativo para a personagem, principalmente por ser neste local que o assassinato do jardineiro da escola, Sergeant, acontece. Mas é também neste espaço dos túneis de aquecimento do porão que a personagem Pauline tem o seu altar a King Kong.

O senhor Jonathon, o construtor do local destinado a receber a realeza inglesa e que vem sendo usado como internato opta pela modernização do aquecimento do castelo e instala em seu porão, túneis de aquecimento.

Ele tinha instalado lareiras a gás porque considerava a queima de madeira muito suja. E ele colocou um forno de carvão fora do castelo pela mesma razão e construiu um túnel de aquecimento no subsolo para conectá-lo até a casa. Ele instalou até um sistema de aspiração central, que dependia de uma máquina de sucção de água no porão.78(p.72)

 78 “He’d installed gas-fed fireplaces because he considered wood-burning fires too dirty. And he put the cola furnace outside the castle for the same reason and built an underground heating tunnel to connect it to the house. He’d even installed a central vacuuming system, which depended on a water-suction machine in the basement.”  

Interessante ponderar que no subsolo, ou porão, Bachelard afirma que enterra-se a loucura, e a sujeira é posta no escondido, assim como os fornos de carvão que são fora do castelos e tem ligação subterrânea com o mesmo, o subterrâneo será, para Mouse e Lewis, o local escondido em que suas loucuras serão liberadas e onde o desfecho trágico acontecerá, a morte horrenda do anão nas tubulações de água quente e a posterior extirpação de seu pênis pela jovem Pauline, travestida de Lewis.

3.3. Sótão e porão: entornos

“As lembranças são imóveis e tanto mais sólidas quanto mais bem espacializadas” afirma Bachelard, em sua obra A poética do espaço (s/d, p.25).

Em The Wives of Bath, os espaços exteriores também compõem o cenário do processo de formação de Mouse. Neste item, abordaremos a significação da escola, da ravina, do tribunal e do cemitério.

3.3.1. A escola

A escola, por ser um espaço destinado à instrução, nem sempre é concebido arquitetonicamente para tal finalidade. Segundo Foucault (1977, p. 156), as instituições disciplinares são produtoras de uma maquinaria de controle que funciona como um microscópio do comportamento. Tais projetos intentam realizar transformações nos indivíduos e modelá-los, como diz Foucault, em corpos frágeis.

As disciplinas, organizando as celas, os lugares e as fileiras criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais, hierárquicos. São  

espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos. São espaços mistos: reais pois que regem a disposição dos edifícios, de salas, de moveis, mas ideais, pois projetam-se sobre essa organização caracterizações, estimativas, hierarquias. (FOUCAULT, 1977, p.135)

Tais espaços complexos e mistos (reais e ideais), segundo a citação anterior, são de fato organizados para operar transformações, para modelar, treinar, tornar corpos hábeis.

(op.cit, p.125).

Em Bath College, após um período no internato, Mouse se manifesta a respeito da escola, dando suas impressões sobre ela. Ou, como Foucault nomeia, sobre o próprio

“aparelho de vigiar”:

No fundo do meu coração, eu sabia que Bath Ladies College não era uma escola mas uma máquina do tempo que prendia você para sempre. O mundo fora da escola continuava mudando, mas dentro do internato nada nunca se alterava. Por essa razão, as matronas e professoras olhavam para mim da mesma forma que olhavam nos anuários da escola de vinte anos atrás. Eis por que garotas como eu não tinham a mínima possibilidade de ir para casa sem danos. Eu tinha certeza que o velho Senhor Jonathon nunca pretendeu que as coisas acabassem assim – por exemplo, seu doce lar ser usado como uma prisão para seiscentas garotas.79(p.71)

No capítulo dois, quando Mouse está presente para assistir o julgamento de Pauline, a escola de arenitos cinzentos é questionada pelo juiz; ele solicita informações sobre seus objetivos, e pergunta, irônico, se ela seria um espaço de treinamento para médicos ou psicopatas.

 79 “In my heart of hearts, I knew Bath Ladies College wasn’t a school but a time machine that trapped you for good. The outside world kept changing, but inside the boarding school nothing ever altered. That’s why matrons and teachers looked the same as they did in the yearbooks twenty years before. And why girls like me didn’t have a hope in Hades of going home in one piece. I was sure old Sir Jonathon never intended things to turn out like this – i.e., for his nice home to be used as a prison for six hundred girls.”  

No capítulo três, Mouse está indo para a escola com seu pai e a madrasta; nesse caminho o pai avista a escola e diz baixinho a sua esposa: “Meu Deus! Parece uma prisão,”80(p.13). Após essa terrível constatação, “Morley parou em frente ao edifício com torres que tínhamos visto da estrada, Sal e eu olhamos para a torre da frente, que apontava para o céu como um dedo desaprovador.”81 (p.13)

Cabe aqui ressaltar a capacidade comunicativa do edifício-espaço escolar, cuja torre, metaforicamente, aponta para o céu “como um dedo desaprovador”, dando indícios da avaliação negativa que a narradora faz desse tipo de estabelecimento.

As barras de metal das janelas eram uma amostra assustadora de que Mouse ficaria trancada, a contragosto, com pessoas que ela nem mesmo respeitava – meninas: “Eu não queria estar trancada com pessoas que não respeito – por exemplo, garotas, meu gênero menos preferido.”82(p.14)

A ida para Bath College fora apontada pela madrasta como uma solução para os problemas que Mouse já enfrentava na escola devido à sua corcunda. Mouse se sentia pertencente ao mundo dos Quasímodos e culpava Victor Hugo por isso. Ainda por causa da corcunda, Mouse não criava vínculos sociais.

Eles veem um monstro quando olham pra mim, então se comportam de forma que prefiro não comentar. Quando eu tinha doze anos eles jogaram laranjas podres em mim quando estava saindo da escola e indo para casa. E foi dessa vez que Sal mencionou pela primeira vez Bath Ladies College. ...‘As garotas não vão tratá-la pior lá?’ Morley perguntou. ... ‘Não seja bobo’, Sal disse. ‘Elas gostam de aberrações nesses tipos de lugar.’... E Morley, o bobo, respondeu: ‘Bem, Sal, você é uma mulher. Eu acho que você sabe mais sobre isso.83 (p.17)

 80 “My God! It looks like a prison,” 81 Morley pulled up in front of the turreted building that we had seen from the road, and Sal and I stared at the front tower, which poked skyward like a disapproving finger.  I didn’t want to be locked up with people I didn’t respect – i.e., girls, my least favorite gender. 83 “They see a monster when they look at me, and then they behave in ways I’d still rather not talk about. When I was twelve they threw me rotten oranges at me on my way home from school. That was when Sal first mentioned Bath Ladies College.”  

Com seus comentários, Sal, a madrasta, reafirma constantemente a baixa autoestima de Mouse e também a falha do pai na criação da filha.

No interior do edifício escolar, as paredes propunham estabelecer os procedimentos disciplinares impostos através da sinalização, pinturas e placas de advertência que permeavam o ambiente total da escola. Os corredores constatavam a doutrina por ela adotada, tal como a inscrição em pedra abaixo do retrato da Diretora Inglesa.

Minhas queridas garotas,

O trabalho que nosso criador atribuiu para vocês na terra deve ser feito com as melhores de suas habilidades até o grande dia em que os símbolos materiais forem substituídos pela realidade da vida eterna.

Fraternalmente

Viola Higgs (1874- 1957)84(p.26)

Em algumas portas da escola, havia placas com frases militares e inscrições religiosas

Anglicanas de hinos entoados na igreja de Madoc´s Landing, como, por exemplo, “escolhi ser um soldado”85(p.27). Para Foucault (1977, p.145), “Os procedimentos disciplinares revelam um tempo linear cujos momentos se integram uns aos outros, e que se orienta para um ponto terminal e estável. Em suma, um tempo evolutivo.” Tal minúcia dos regulamentos empregados e o olhar esmiuçante de Mouse funcionam como agentes espaciais nesse tempo evolutivo do processo de formação, ou do bildung de Mary Beatrice.

A escola era também rodeada por uma alta cerca de arame. Ora, a cerca, para

Foucault, é exigida para especificar um local heterogêneo a todos os outros e fechado em si mesmo. (FOUCAULT, 1977, p. 130). Embora heterogêneo, esse fechamento em si mesmo constitui o ambiente ideal para a restrição da formação de Mouse.

 84 “My dear girls, The work our maker has assigned for you on earth must be carried out to the best of our abilities until that great day when material symbols are replaced by the reality of life everlasting. Yours in faith, Viola Higgs (1874 – 1957)” 85 “chosen to be a soldier.”  

A fim de destacar a anormalidade da escola e de seus alunos, as casas da redondeza são apontadas por Mouse como espaços de normalidade: “[...] as pequenas casas de estuque onde pessoas normais moravam.”86(p.121)

3.3.2. A ravina

A ravina, por ser um fenômeno prejudicial da natureza, pois insere a destruição de terras cultiváveis, assume no texto o espaço geográfico da instalação da escola sobre um espaço de erosão, formado pela ação da água que, simbolicamente, também tentará formar suas internas. “Morley acelerou em uma pequena subida, e de repente nós estávamos em uma longa e sinuosa ravina.”87(p. 12) Ser construído sobre uma erosão significa que o edifício pode não ser sólido e, por essa razão, constituir um espaço negativo.

A ravina, descrita por Mouse, é sempre um local a ser observado, pois, de todas as janelas dos quartos, das salas de aulas, a ravina pode ser vista. Quando da observação de seu quarto, a ravina é escura e é neste espaço que Mary Beatrice iniciará a caminhada encomendada pela diretora da escola. Mary Beatrice caminhará com Pauline e, consequentemente, iniciará também sua caminhada por um processo iniciático, ou um rito de masculinidade, ordenado por sua colega de quarto. A missão de M ouse nessa caminhada é ajudar Pauline/Lewis a “espantar suas frustrações”, como se vê na seguinte passagem:

A Virgem deu uma bronca em Paulie e lhe deu uma estranha ordem: Paulie tinha que caminhar para espantar suas frustrações com a escola todas as

 86“ the small stucco houses where normal people lived.” 87 “Morley accelerated over a small rise, and suddenly we were in a long, winding ravine.”  

tardes depois de estudar. E eu tinha de ir com ela. A Virgem disse que o exercício ajudaria minhas pernas a ficarem mais fortes. 88(p.83)

Na ravina, Mouse sentava próxima à cerca e pensava que aquele seria o lugar que

Virginia Woolf teria escolhido também para sentar. Também é na ravina que Paulie se declara

Lewis; nesse mesmo espaço, Mouse e Lewis enfrentam os meninos da escola para garotos, a

King’s College. Finalmente, é ainda nesse mesmo local que acontece o ápice de seu ritual iniciático: o episódio da dor e das lágrimas, narrado depois no tribunal:

Sr. Jocelyn: ‘Sob as instruções de Pauline Sykes, eu realizei uma série de testes. Eles incluíam açoitar a acusada e deixar Pauline Sykes me açoitar; caminhar ao longo das muralhas da torre da escola de olhos vendados _’ Meritíssimo: Estas jovens efetivamente se açoitavam? Sr. Jocelyn: Sim, Meritíssimo. Elas também atormentavam animais juntas.89 (p.230)

Vale ressaltar que, no processo de formação de Mouse, as lágrimas escritas, de acordo com Bachelard (s/d), seriam piores do que lágrimas choradas, fato que aponta para a resolução de seus questionamentos identitários. Em consonância com o que afirma o autor citado, a narradora, escrevendo para conhecer-se e organizar-se, compreende que, no momento do açoitamento, Pauline não gritava com Mouse, gritava com ela mesma, já que os fantasmas de Pauline estavam saindo pela ravina. Mouse, ao contrário, é levada por esse ato a uma conscientização da realidade: “Mas a coisa mais estranha aconteceu: quanto mais ela me batia, mais malvada ela se tornava, mais inocente eu era – de tudo. De parecer desajeitada, de não ganhar o amor de Morley, de falta de amigos.90(p.164)

 88 “The Virgin gave an orderly Mark to Paulie and then issued a strange order: Paulie was to walk off her frustrations with the school every evening after study. And I was to go with her. The Virgin said the exercise would help my legs get stronger.”

“ Mr. Jocelyn: ‘On the instructions of Pauline Sykes, I performed a series of tests. These included whipping the accused and letting Pauline Sykes whip me; walking along the ramparts of the school tower blindfolded _” “His lordship: ‘These young girls actually whipped each other?” “Mr. Jocelyn: Yes, my Lord. They also tormented animals together.”  90 “But the oddest thing had happened: the more she hit me, the more wicked she became, and the more innocent I was - of everything. Of looking ungainly, of not winning Morley’s love, of my lack of friends.”  

Em suma, a ravina, com suas sádicas ocorrências, constitui também um espaço de formação bastante significativo para Mouse.

3.3.3. O cemitério

A morte começa a rondar Mouse quando a mesma é forçada por sua tutora/mentora

Pauline a matar um pombo em um dos testes de masculinidade:

Como Paulie diz, mulheres são boas apenas para ter bebês, e homens são responsáveis pela morte, o que é um trabalho muito, muito duro. Se você quiser ser tão bom quanto um homem, você tem que aprender a administrar a morte, também. (p.135)91

Mas a morte e o espaço de sepultamento envolvem a protagonista e são determinantes para mostrar à garota que nem os homens são capazes de administrar a morte. O seu próprio pai Morley, por exemplo, que era médico e que deveria administrar sua própria morte, é incapaz de fazê-lo; nem mesmo o Presidente Americano foi capaz de ser protegido de tal fatalidade. Porém, Mouse, para provar sua masculinidade a Lewis, precisará administrar a morte, e tal fato começa a ser ponderado pela garota:

Nesse momento, estou em um alpendre com um pombo. E devo matá-lo para provar que sou um homem. Bem, não um homem – você é um homem. Para provar que sou viril. Eu não quero fazer isso, e ainda assim eu sei que tenho que fazer. Paulie diz que homens tem que fazer coisas para provar que são homens.92( p.135)

Com a morte do pai, Mouse é levada a conhecer o espaço do cemitério que não é cemitério comum, é um cemitério em dias de inverno, com temperaturas abaixo de zero e com   >As Paulie says, women are good only for having babies, and men are in charge of death, which is a very, very tough job. If you want to be as good as a man, you have to learn to administer death, too.” 

92 “Right now, I`m in a shed with a pigeon. I`m supposed to kill it to prove I`m a man. Well, not a man –you`re a man. To prove I`m manly. I don`t want to do it, and yet I know I have to. Paulie says men have to do things to prove they are men.”   muita neve. Esse fato impossibilita o rito funerário, e o sepultamento do pai de Mouse é postergado por conta do gelo. Dupla frieza, inverno e cemitério criam uma ressonância geradora de um endurecimento na garota.

A dupla frieza se transforma em tripla, quando o pai não pode ser enterrado devido à terra estar congelada e é então levado a uma capela de pedra: “Meu tio disse que o corpo de

Morley seria guardado na capela de pedra em frente ao cemitério até que os homens pudessem descongelar a terra com fogo e cavar uma sepultura apropriada.”93 (p.178). Portanto, a tripla frieza é constituída pelo cemitério, pelo gelo excessivo e pela capela de pedras.

A morte do pai e o anúncio de que viverá a partir de então com os tios promovem o que a narradora descreve como uma necessidade de crescimento, como se a morte a tivesse deixado sem pele e exposta. Ou seja, ainda mais fria do que as friezas com que se defrontara.

Mas eu sabia que tinha que agir como um adulto a partir de agora. Eu tinha que fazer coisas para que as pessoas pudessem dizer que Mouse Bradford tem senso comum, desta forma Morley finalmente estaria orgulhoso de mim.94(p.177)

No cemitério, Paulie começa a ver Lewis de outra forma, não mais idealizada e máscula: “Paulie apenas parecia menor e imatura, diferente de como eu lembrava dela.”95(p.178). E, após o funeral, recebe uma carta de sua colega de quarto Tory, expressando os sentimentos pela perda de seu pai e afirmando o apoio de todas as colegas da escola. Mouse retorna a Bath College, projetando a figura do mentor não mais em Pauline, mas na colega de quarto marcadamente feminina, a Tory, de ombros e cabelos perfeitos:

 93“ My uncle said Morley’s body would be stored in the stone chapel at the front of the cemetery until the men could unthaw the earth with the stove and dig a proper grave.” 94 “But I knew I has to act grown-up from now on. I had to do things that made people say Mouse Bradford has common sense, so Morley would finally be proud of me.” 95 “Paulie just looked shorter than I remembered and immature.”  

A beleza da outra garota mais velha me tirou o fôlego. Seu cabelo louro, quase branco, suas bochechas salientes, me fizeram querer entoar a canção preferida de Morley sobre a garota com quem ele desejaria casar, que teria de ser tão rosada e graciosa quanto um recém nascido.96(p.34)

Mas, antes de voltar à escola, Mouse se traveste novamente com o boné e os óculos trazidos por Lewis na ocasião do funeral. Assim travestida, passeia por sua cidade natal pela

última vez, mas vai a esse passeio com uma conclusão que finaliza sua construção identitária:

As coisas de Madoc’s Landing misturadas às coisas de Bath Ladies College? As duas não ficavam no mesmo planeta. E eu tendo que viver nos dois lugares, como um espião que não pertencia a lugar algum. Quando eu colocasse as roupas de Nick, não faria diferença. Mas agora eu sabia que nunca mais gostaria de ser Nick – nem por Paulie nem por mim. Eu estava farta de Kong e de seus testes estúpidos.97 (p.182)

Mouse enfrenta nesse momento da narrativa o início de sua tomada de decisão. Seu processo de formação caminha para o final e vai, assim, descobrindo sua identidade e construindo seu gênero.

3.3.4. O tribunal

No romance, o tribunal unipessoal, por sua composição, é o espaço de questionamento, de indagação, não apenas de Pauline, mas também de Mary Beatrice. É nesse espaço da Justiça que a protagonista repensa sua trajetória e a explica:

Por que eu continuei com Paulie quando os testes ficaram mais sérios? Por que eu continuei fazendo o que ela me pedia? Não era apenas minha

 96 “The beauty of the older girl made me stop breathing. Her milk-blond hair and high, plump cheeks made me want to hum Morley´s favourite song about the girl that he marries having to be as soft and as pink as a nursery.” 97“ Madoc’s Landing business mixing with the business of Bath Ladies College? The two weren`t on the same planet. And I have to live in both places, like a spy who didn`t belong anywhere. When I`d put on Nick`s clothes, it didn`t matter. But now I knew I`d never wanted to be Nick again – not for Paulie or for me. I was done with Kong and his silly tests.”  

necessidade de aceitação que me fez fazer o que Paulie dizia. Eu estava encantada por sua imaginação – o que a corte tentou negar. (p.165)98

No julgamento, Pauline é apontada como portadora de uma desordem de gênero; uma pessoa psicologicamente incomum. Portanto, o espaço do tribunal é usado como espaço de discussão para os conceitos de gênero. Ao longo da obra, o tribunal aparece nos discursos do psiquiatra Dr. Torval e nos da advogada de defesa de Pauline, Miss Whitlaw. As discussões giram em torno dos seguintes temas: a desordem de gênero, a inveja do pênis Freudiana, a transexualidade e a construção social do gênero. Tal fato elege o tribunal como um espaço essencial para a narrativa do processo de formação de Mouse.

O discurso do psiquiatra traduz a importância desse espaço de discussão no plano narrativo:

Primeiramente, transexualismo não é considerado uma grande doença que afetaria a apreciação da realidade de alguém. É um tipo de desvio sexual. Quando nascemos, a maioria de nós tem um sexo biológico especificado. Se você é um menininho, você tem um pênis e testículos, e se você é uma menininha, você tem uma vagina e ovários. E mais ou menos aos dois ou três anos de idade, nós já conseguimos sentir psicologicamente de forma apropriada ao nosso sexo. Eu quero dizer, Meritíssimo, que se você é um garoto, você faz coisas de garotinho; se você é uma garota, você faz coisas de menininha.99(p.115)

Esse discurso é questionado pela Senhorita Whitlaw:

Além disso, muitas marcas que foram consideradas masculinas, tais como coragem e agressividade mental, são agora vistas como características que podem ser encorajadas em um gênero e desencorajadas em outro. E se eu puder pontuar, Meritíssimo, há psiquiatras que acreditam que a inveja do pênis seja um estágio secundário ao desenvolvimento feminino.100(p.115)  98 “Why did I go along with Paulie when the tests got more serious? Why did I keep doing what she asked me? It wasn’t just my need for approval that made me do what Paulie said. I was enthralled by her imagination – which the court tried to deny.” 

99 “First of all, transsexualism is not considered a major illness that would affect one`s appreciation of reality. It is a type of sexual deviation. When we are born, most of us have a biologically assigned sex. If you are a little boy you have a penis and testicles, and if you are a little girl you have a vagina and ovaries. And at about the age of two or three, we have already come to feel psychologically the way that is appropriate to our sex. I mean, my lord, if you are a little boy, you do little-boy things; if you are a little girl, you do little-girl things.” 100 “Besides, many traits that were once considered masculine, such as courage and mental aggressiveness, are now seen as characteristics that can be encouraged in one gender and discouraged in the other. And of I may point out, my lord, there are psychiatrists who believe penis envy is a secondary stage of female development.”

 

E, ouvindo tais discussões, Mouse, em um de seus devaneios, conversa com Alice, a corcunda, e conclui que não sente inveja do pênis, nem inveja do útero, nem inveja dos seios.

E, devido às implicações em pertencer ao gênero feminino, Mouse quer mais: “Para mim, o que eu queria era algo mais grandioso que um pênis. Eu queria o que meu herói, Presidente

Kennedy, tinha: coragem, estilo próprio, uma vida de ação, e um intelecto. Eu estava pedindo demais para um Rato?”101(p.116)

Pelas considerações expostas, o espaço do tribunal, pelos discursos que engendra e pelas reflexões que provoca em Mouse, é, inegavelmente, um elemento constituinte do seu processo de formação.

Assim, a narrativa escrita exerce a função primordial de reconstruir todo um processo de formação identitária através da plasticidade do espaço vivenciado. Para Pinto (1990), a

“[...] escritura é, portanto, um modo de relembrar o passado, revivê-lo e, desta forma, tentar compreendê-lo.” (p.23).

 101 “As for me, I wanted something more grand than a penis. I wanted what my hero, President Kennedy, had: courage, individual style, a life of action, and an intellect. Was I asking too much for a Mouse?”  

CONSIDERAÇÕES FINAIS  

The Wives of Bath representa uma alternância do gênero no processo de formação, ou

Bildungsroman, uma evolução refutadora das definições tradicionais. A obra contribui para a realização dos anseios da mulher e da afirmação de sua individualidade e, pedagogicamente, aponta para a formação de uma sociedade concretizadora de tal ideário. A definição clara de si mesma, como menciona Pinto (op.cit.p.131), é alcançada por Mouse, mesmo que seus questionamentos permaneçam. Ainda de acordo com os pressupostos sobre o Bildungsroman abordados por Pinto, expostos no capítulo 2 desta dissertação, podemos inferir que

“entretanto, se o final da narrativa indica que a personagem não conseguirá romper com a dependência e passividade, a advertência fica para quem a lê, cumprindo sua função didática do Bildungsroman.”

Nesse sentido, nossa hipótese de leitura – que considera ser a obra em pauta a narração de sua própria formação – sustentou-se também pelo lançamento de The Western Light, em agosto de 2012, portanto, bem depois do romance aqui estudado. Ora, esta obra, antes de ser uma continuação da história de Mouse, expressa os fatos que deram sustentação prévia aos fatos narrados em The Wives of Bath. Em The Western Light, Swan recupera episódios que envolvem a convivência de Mouse com seu pai, Morley.

Voltando a The Wives of Bath, vimos que Mouse se referia às mulheres como se ela própria não pertencesse a esse gênero, ou pelo menos como se não gostasse de pertencer. Por isso, encontrava forças no discurso da personagem Paulie/Lewis, quando esta dizia que os homens deviam enganar as mulheres, aporrinhá-las, pois elas gostavam quando eles as comandavam. A razão para essas considerações de Mouse reside no fato de que ela   acreditava que nunca vivenciaria, como mulher, a liberdade desfrutada pelos homens de seu tempo.

Depois do percurso pelos diferentes espaços, Mouse volta para a escola, diferente, usufruindo de alguns privilégios. Ela está com pernas mais fortes, recebe os cuidados de Tory, alegra-se com os presentes dados pelas colegas de quarto e consegue, como mulher, refletir sobre isso: “Uma coisa boa sobre a morte de Morley: consegui alguns privilégios especiais – por um dia ou mais, de qualquer forma.”102(p.201)

Com o passar do tempo, Mouse cansa-se de Alice. Na noite do assassinato, em um devaneio, após ter abandonado Pauline para sempre, decide também abandonar Alice, a corcunda. O espaço ganha plasticidade e placas com manifestos das garotas começam a ser exibidas pelo antigo espaço com se para reafirmar a novíssima identidade assumida por

Mouse: “Nos exigimos associações dirigidas por estudantes sem o controle dos funcionários!

O espirito da escola e irrelevante! Queremos análise e ação política – abaixo as atitudes burguesas!”103 (p.206)

Mouse se relaciona com um aluno da escola de meninos e conclui que mesmo estando ela com um homem que a ama, isso não mudaria a visão que os homens têm das mulheres.

Mouse quebra o emudecimento que, do ponto de vista dos homens, é característica do gênero feminino, por meio da escrita de sua própria história, o que se evidencia na seguinte passagem citada anteriormente na dissertação: “somos todas Mulheres de Bath [...]” [...] “porque Bath

Ladies College era apenas um feudo no reino dos homens.”104(p.217)

Portanto, a narrativa de Mouse é um ato difícil de ser externado linguisticamente, visto que, de acordo com Cíntia Schwantes (2004) em seu artigo “O autoritarismo em duas iguais”:

 102 “One good thing about Morley’s death: I`d get special privileges – for a day or so, anyway.”  We demand student-run clubs without staff control! School spirit is irrelevant! We want political analysis and action –down with bourgeois attitudes!” 104 “ we were all Wives of Bath” (…) “ because Bath Ladies College was only a fiefdom in the kingdom of men.”  

A narrativização do processo de formação de uma protagonista feminina será, portanto, muito mais tortuosa que a de um protagonista masculino. As formas como as escritoras irão enfrentar os problemas colocados pelo romance de formação com protagonista feminina serão várias: a inclusão de elementos góticos, ou de personagens, geralmente secundários, loucos ou aleijados, respondem pelos numerosos percalços que a tentativa de alcançar independência de uma protagonista feminina encontrará.

Em síntese, com base na pavimentação dos caminhos para uma abordagem de entendimento das relações entre o deslocamento do herói ou de seu próprio espaço como processo de formação, os elementos apontados tiveram a intenção de inserir a personagem

Mouse, do romance The Wives of Bath, em uma perspectiva que denote o Bildungsroman feminino e seu caráter formativo. Esperamos, portanto, ter podido mostrar, com nossas considerações, que os aspectos abordados permitem inserir a personagem em tal esteira. A trajetória de Mouse e a constante busca por sua identidade fazem com que essa personagem não mais negue a si mesma como mulher, o que significa, de acordo com Touraine (2007), que para existir ela precisa primeiramente existir por ela mesma e para ela mesma.

Para Pinto (1990, p.32), “o Bildungsroman contribui hoje para a afirmação da individualidade da mulher e para a realização de seus anseios, assim como para a formação de uma sociedade onde isso possa concretizar-se.”

Consideramos que, com nosso estudo, pudemos entender que o gênero “romance de formação” presta-se à veiculação dos ideais femininos, razão pela qual o romance de formação de autoria feminina constitui uma subversão do gênero tradicionalmente estabelecido.  

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Disponível em: http://www.quillandquire.com/blog/index.php/in-the- magazine/2012/08/21/in-the-september-2012-issue-of-qq-susan-swan-wattpad-and-craig- davidson-at-cannes/

Acesso 07 nov. 2012  



Disponível em: http://www.vancouversun.com/entertainment/books/Community+Voices+Susan+Swan/73825 17/story.html

Acesso 07 nov. 2012  

Anexo B – Acervo Iconográfico

Capas do romance The Wives of Bath

Edição: 31 de Agosto de 1993

Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/The_Wives_of_Bath

Acesso 07 nov. 2012   

Edição: 21 de Novembro de 1998

Disponível em: http://www.goodreads.com/book/show/227789.The_Wives_of_Bath

Acesso 07 nov. 2012   

Diponível em: http://www.picklemethis.com/wp-content/uploads/2012/11/wives-of-bath.jpg

Acesso 04 nov. 2012   

Disponível em: http://mermaidpants.blogspot.com.br/2012/01/my-favorite-reads-of-2011- part-2.html

Acesso 07 nov. 2012   

Anexo C – Capas dos filmes

Lost and Delirious (original 2001)

Disponível em: http://www.tf1international.com/fiche.php?Film=145#photos

Acesso 07 nov. 2012   

Assunto de meninas (versão em Português)

Disponível em:http://www.saudadeeadeus.com.br/filme155.htm

Acesso 07 nov. 2012  

Anexo D – Ficha Técnica do filme Lost and Delirious

Título Original: Lost and Delirious

Título em Português: Assunto de meninas

Direção: Léa Pool

Produção: Greg Dummett

Distribuição: Seville Pictures (Canadá) e Lions Gate Entertainment (USA)

Argumento: roteiro adaptado do romance The Wives of Bath de Susan Swan

Roteirista: Susan Swan

Atrizes: (Pauline), Jessica Paré (Victoria) e (Mary Beatrice)

Estreia: 21 de Janeiro de 2001 (Festival de Sundance)

País: Canadá

Duração: 103 minutos

Gênero: Romance/Drama

Comentário da pesquisadora:

Embora a trama livro seja recheada de elementos góticos e grotescos, além do crime e da extirpação do pênis do zelador da escola, a adaptação fílmica não aborda esses temas. A diferença entre as duas versões está expressa também, e principalmente, pela cena acrescentada na versão fílmica, em que Pauline, em um ato desesperador, joga-se do telhado da escola na tentativa de voar para a liberdade, assim como o falcão que havia adestrado.

Outro ponto que também difere da obra literária é a substituição da figura de King Kong por uma figura do libertador Che Guevara, logo acima de sua cama no sótão. A ênfase como   libertador é dada também à figura do falcão para expressar a ideia de alçar voo novamente e se libertar de seu corpo feminino e não aceito.

Divergente do livro, o início do filme é o caminho de Mary B. até a escola. Mary

Beatrice, que na versão fílmica não apresenta cifose, é apresentada a Victoria e as duas sobem ao quarto do sótão. Só então Paulie entra e, após falarem sobre suas mães, modificam o nome de Mary Beatrice para Mary B. de Mary Brave, ou Mary Corajosa, e não Mouse Bradford.

Muitas vezes Paulie encoraja Mari B. com frases de efeito – Go for it! Brave! Rage more!

Sobre o espaço, as diferenças são muitas. A escola é uma escola sem grades, sem quadros com mensagens de afirmação da imagem de mulher; o quarto no sótão é sem grades e passível de mudanças de móveis. As sombras, o lado escuro e oculto, não são representadas pelo porão, mas aparecem na floresta em que Paulie alimenta seu falcão, local onde um dos ritos acontece. Após a frustração de Mouse com a não presença do pai no jantar da escola,

Paulie, afirmando ser também uma predadora, encoraja Mary B. a alimentar em suas mãos o falcão que esteve adestrando.

O filme apresenta espaços de formação públicos e altos. O espaço de solução encontrado por Paulie, a protagonista do filme, é o do telhado da escola. De lá, alça o voo alto em direção a sua liberdade atrás do falcão, pois mencionara a Mary B. que ele as ensinaria o caminho.

Mouse, narradora do filme, começa a rememorar sua vida enquanto Paulie se arremessa e o falcão alça voo. Consegue então recuperar a imagem da mãe, que havia perdido após a morte da mesma, três anos antes.