UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA MESTRADO PROFISSIONAL EM PSICANÁLISE, SAÚDE E SOCIEDADE

SHEYLA DA CONCEIÇÃO BEZERRA

VINCENT: ARTE E MELANCOLIA

RIO DE JANEIRO 2019.1

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SHEYLA DA CONCEIÇÃO BEZERRA

VINCENT: ARTE E MELANCOLIA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação - Stricto Senso - Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (RJ) como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Área de concentração: Psicanálise e Sociedade.

ORIENTADOR: Prof.ª Drª VERA MARIA POLLO FLORES

RIO DE JANEIRO 2019.1

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AGRADECIMENTOS

A natureza e a Deus por me proporcionarem a vida. A minha família pela educação, permitindo que eu chegasse até aqui. A Dra. Vera Pollo que orientou a elaboração da dissertação. A Dra. Sonia Borges e a Dra. Doris Rinaldi por aceitarem a compor minha banca, contribuindo com considerações e análises significativas sobre meu trabalho. Ao meu esposo pela paciência e estímulo ao meu crescimento. Ao meu incansável amigo, Afonso pelas dedicações e conversas sobre psicanálise, arte, psicologia e visão acerca do Universo. Nós dividimos nossas angústias e alegrias. Ao artista Vincent (in memoriam) que me inspirou em momentos difíceis e conturbados.

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RESUMO

Este trabalho de dissertação investiga a relação do estado emocional e psíquico de Vincent e a produção de sua arte reconhecida como impressionista pelo próprio artista. Utilizamos como constructo teórico a psicanálise. Como método investigativo, foi feita uma correlação entre a biografia do artista e a vasta correspondência com seus familiares, amigos, médicos, em particular com seu irmão Theodorus van Gogh. Os pensadores Freud e Lacan serviram de base para uma compreensão entre arte e psicanálise. Finalmente, através do estudo entre arte e psicanálise, e das respectivas colaborações de Freud e Lacan acerca da melancolia, chegamos à conclusão de que o diagnóstico de melancolia atribuído a não pode ser corroborado, assim como a teoria do suicídio, tornando-se uma incógnita.

Palavras-chave: Vincent van Gogh. Arte. Psicanálise. Melancolia. Suicídio.

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ABSTRACT

This dissertation investigates the relationship between the emotional and psychic states of Vincent van Gogh and the production of his art, which he recognizes as being impressionist. We use psychoanalysis as the theoretical background. The correlation between the artist’s biography and a large number of letters exchanged between him and his family, friends, doctors, especially his brother Theodorus van Gogh, was used as an investigative methodology. The thinkers Freud and Lacan helped to understand art and psychoanalysis. Finally, by studying the relationship between art and psychoanalysis and the respective collaborations between Freud and Lacan regarding melancholy, we can conclude that the diagnosis attributed to Vincent Van Gogh cannot be corroborated, as well as the suicide theory, which makes it a mystery.

Keywords: Vincent van Gogh. Art. Psychoanalysis. Melancholy. Suicide.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 8

CAPÍTULO 1 VINCENT VAN GOGH – O PINTOR DOS GIRASSÓIS...... 12

1.1 A vida e a obra...... 13

1.2 Relacionamento de Vincent com ...... 24

1.3 Sublimação...... 30

CAPÍTULO 2 MÃE – PRIMEIRO OBJETO DE AMOR...... 36

2.1 Vincent e o Outro Primordial...... 40

2.2 O Édipo em Freud e Lacan...... 44

2.3 Imagem no espelho e autorretratos...... 50

CAPÍTULO 3 TRISTEZA...... 58

3.1 Luto e melancolia...... 59

3.2 O objeto perdido...... 65

3.3 Narcisismo e a melancolia...... 68

3.4 O incidente da orelha cortada...... 71

3.5 Asilo para alienados em Saint-Paul-de-Mausole...... 83

3.6 Auvers-sur-Oise – O último lar de um gênio...... 92

CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 103

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...... 107

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APÊNDICE...... 111

ANEXO – PRODUTO DA DISSERTAÇÃO...... 112

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INTRODUÇÃO

“Depois, quando a minha vida acabar, espero partir olhando para trás apenas com amor e melancolia, pensando oh, as pinturas que teria feito!” (Vincent van Gogh)

A presente dissertação é fruto de um grande desejo meu em estudar sobre a vida e a obra de Vincent Willem van Gogh. Esse desejo surgiu em vários momentos, desde a visitação a museus onde suas obras estavam expostas, até a realização de um trabalho para uma disciplina durante meu período de pós-graduação em psicologia clínica na PUC/RJ. Após estudar sua biografia e conhecer sua arte, uma pergunta surgiu e deu origem à presente dissertação: o que teria influenciado Vincent van Gogh a se tornar o artista que conhecemos? A vasta obra de Van Gogh pelo mundo pode nos levar a supor que ele tinha talento para pintar desde sempre, mas não foi bem assim. Toda a obra de Van Gogh foi pintada em 10 anos. Isso porque ele decidiu se tornar artista aos 27 anos de idade. Durante boa parte de sua vida, foi autodidata. Para aprender as tonalidades e a intensidade das cores, ele utilizava uma caixa de madeira onde guardava vários novelos de lãs de diferentes cores e comparava uma cor com a outra fazendo um trabalho de cores complementares. A partir desse estudo, produzia as cores que iria usar em suas telas. Embora encontrasse companhia na arte, nosso artista se sentia solitário e relatou tal sentimento inúmeras vezes em suas cartas. Essa solidão que o acompanhou, tornando-o isolado em seu mundo de pensamentos, bem diferente daquele que o cercava. Tentava encontrar em suas pinturas algo que pudesse fazer sentido numa sociedade que ele não compreendia. Ao longo de sua vida, por vezes não respondia às demandas que lhe eram atribuídas. Além da pintura, era um amante dos livros, da vida ao ar livre, dos campos, das paisagens e tinha um belo apreço pela vida noturna. Em suas cartas, usava passagens e às vezes histórias inteiras da Bíblia; citava muitas passagens de um dos seus leitores favoritos, Jules Michelet. Boa parte das passagens

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em que usava Michelet era para criticar a sociedade em que vivia e acabava colocando sua própria interpretação de uma sociedade que ele não entendia. Esta dissertação tem por objetivo apresentar algumas passagens da vida e da obra do artista Vincent Willem van Gogh, relacionando-as com conceitos psicanalíticos. Em particular, com os conceitos de sublimação, Édipo, narcisismo e melancolia. O método utilizado é a análise biográfica com a coleta de dados a partir das cartas que o artista escreveu. Também foi feita uma pesquisa de campo em algumas cidades onde Vincent morou. Através de sua biografia e de suas cartas, me valho da psicanálise para pensar alguns de seus conceitos. O primeiro capítulo traz um pouco sobre a vida e a obra de Van Gogh, tal como é conhecido em várias partes do mundo e admirado por pesquisadores em seus vários estudos. Na época em que viveu não foi considerado visionário ou à frente de seu tempo; pelo contrário, suas pinturas eram consideradas berrantes e mal proporcionadas, contrapondo o que era considerada a arte bem-feita. Seu modo de pintar não se adequava ao estilo da época. No quadro Os comedores de batatas, de 1885, ele fez um longo estudo, trabalhou vários pontos e sobre essa tela escreveu a Théo o pensamento “[...] temos que pintar os camponeses como se fôssemos um deles, sentindo, pensando como eles mesmos”1. Quando finalmente terminou, ele enviou uma carta, uma cópia do quadro a um crítico de um jornal local e recebeu severas críticas relacionadas ao seu estilo de pintar. O quadro foi considerado escuro demais, sem proporções anatômicas adequadas e, por fim, amador. O artista que apresento transcende a arte, transcende o jeito particular de uma sociedade que não o compreendeu nem como homem, nem como pintor. Procuro apresentar um Vincent, que vai além do Van Gogh. Se pudermos observar, suas cartas eram assinadas por ele como Vincent e alguns de seus quadros também. Isso porque ele não se considerava um Van Gogh, e sim o diferente da família; seu modo de pensar e viver era repudiado pelos pais. Pintor e amante das paletas, tornou-se conhecido por suas pinceladas espessas. Foi também apaixonado pela natureza, pela vida ao ar livre, pela simplicidade dos campos; além disso, foi um homem que decidiu viver da arte, contrapondo-se aos dogmas familiares, criando sua própria técnica, estudando e praticando até a exaustão.

1 Carta 404. 9

Segurando a paleta, ele se fez artista; segurando a caneta, ele se fez escritor. Era apenas em frente ao cavalete, enquanto pintava, que nosso artista sentia um pouco de vida. No primeiro capítulo, busco trazer a visão do próprio Vincent van Gogh acerca de seu trabalho artístico, como ele pensava e o modo como tratava sua arte e as dificuldades que encontrou para se tornar o artista que conhecemos. Ainda neste capítulo, disserto como a psicanálise se posiciona diante da arte e termino expondo o conceito de sublimação. No segundo capítulo é narrada a história da mãe do artista, Anna Cornelia Carbentus, e como a psicanálise se posiciona diante da relação mãe e filho. E já que estamos falando de mãe, é essencial falarmos de Édipo, esse complexo que todos nós somos chamados a viver. Ainda nesse capitulo são tratados a forma como Vincent van Gogh se apaixonou pelo retrato moderno e o que poderia tê-lo influenciado a produzir tantos autorretratos. Nosso artista fazia uso do espelho para produzir seus famosos autorretratos. Faço uma articulação com o texto de Lacan O estádio do espelho (1949). E como a arte se expande, brinco com o conto de Machado de Assis, chamado de O espelho (1882). O terceiro capítulo se intitula Tristeza. Nosso artista relatava inúmeras vezes uma tristeza que o acompanhou durante toda a vida. Esse capitulo é dedicado a seu modo de enxergar a si mesmo. Descrevo desde o significado de tristeza, perda e luto até chegar ao conceito de melancolia desenvolvido por Freud. Coloco a importância do narcisismo para a melancolia usando como autor-base, Sigmund Freud. Relato também o sofrimento de Vincent, “sua melancolia,” como ele denominava. Tento levantar suposições acerca de seu adoecimento usando a leitura de suas cartas. Sobre sua doença, nosso artista recebeu o diagnóstico em vida. Depressão e epilepsia. Um diagnóstico muito vago para uma vida tão complexa. Nesse mesmo capítulo são abordados sua amizade com Gauguin e o famoso episódio da orelha cortada. Escrevo sobre seu ano mais triste, o internamento em um hospital psiquiátrico, e como esse ano mudou nosso artista. Embora tenha sido um ano difícil, ele produziu quadros e telas que podem nos dizer tanto sobre a tristeza como a alegria. O término desse último capítulo se deu a partir de sua biografia, suas cartas, mas a influência predominante se dá pela minha visão sobre o artista e como a cidade de Auvers-sur-Oise, onde foi sua última moradia, o enxergava. No final desse capítulo,

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a visão apresentada aqui mescla entre as informações obtidas na visita à cidade Auvers-sur-Oise, como também os escritos deixados pelo artista. As cartas de Vincent citadas nesta dissertação têm sua origem em duas fontes. A primeira trata-se de uma edição virtual, fruto de 15 anos de pesquisa do museu Van Gogh, facilmente encontrada no endereço http://vangoghletters.org/. Vincent escreveu essas cartas em francês, e a edição apresentada no site é na língua inglesa. As citações feitas nesta dissertação estão escritas em língua portuguesa, e utilizei a tradução livre. Nas notas de rodapé estão as frases das cartas em inglês, como consta na edição virtual pesquisada. A segunda fonte das cartas foi retirada da edição em português Van Gogh - Cartas a Théo, uma publicação pela L&PM POCKET. Nas notas de rodapé as cartas das duas fontes estão enumeradas para facilitar a pesquisa aos leitores.

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1 VINCENT VAN GOGH – O PINTOR DOS GIRASSÓIS

“Sempre que o sol pinta de anil todo o céu o girassol fica um gentil carrossel”. (Vinicius de Moraes)

Van Gogh, um ser expoente entre os artistas com uma expressão ímpar, um girassol, que não apenas acompanha o sol, mas distribui sua luz, manifesta na arte as expressões do inconsciente, vivencia na pintura aquilo que a realidade lhe consome, cria, sublima, vive. Ele foi um artista do século XIX que inquieta os pesquisadores do nosso século pelo seu trabalho. Sua arte faz uma ruptura entre o impressionismo e o pós- impressionismo, como também pelo seu modo de estar no mundo. Vincent nasceu em 30 de março de 1853. Um ano antes sua mãe havia tido um filho que chamara de Vincent Willem van Gogh. Este viveu apenas por seis meses, depois veio a falecer, foi enterrado ao lado da igreja em Zundert, na Holanda, onde o pai de nosso artista era ministro. No ano seguinte, nasceu nosso artista no mesmo dia e mês que seu irmão falecido; seus pais seguiram a tradição do século XIX e o nomearam o filho com o mesmo nome do irmão morto. Seu pai se chamava Theodorus van Gogh, e sua mãe, Anna Cornelia Carbentus. Além do irmão morto, Vincent van Gogh teve cinco irmãos: Anna Cornelia van Gogh, Theodorus van Gogh, Elisabeth Huberta, Wilemina Jacoba e Cornelis Vincent van Gogh. Em sua trajetória, foi chamado de louco, insano, esquisito. Com todos esses adjetivos, nosso artista deixa sua marca para que o mundo a possa decifrar. Suas telas representam as imagens do inconsciente; poderia ser um esforço para colocar nas pinturas sua dor, seu sofrimento. Durante sua trajetória, as demandas do mundo externo apareceram como duras, difíceis, causando pesar, angústia, incertezas, esbarrando na falta que é constituinte do sujeito. Van Gogh não escapa dela, assim como nenhum outro sujeito, pois o sofrimento é inerente ao ser humano. A realidade (mundo externo) está para todos, cada sujeito irá responder às exigências segundo sua passagem pelo Édipo. A psicanálise demonstra como cada sujeito responderá à realidade de um modo diferente. Van Gogh também respondeu de uma maneira muito singular. A resposta que ele deu em relação à castração do Outro poderia ter determinado o desenvolvimento da arte conhecida como 12

“impressionista”? Ele evoluía na arte em paralelo com suas crises que o levaram a um sofrimento inestimável retratado de uma maneira sublime e permanente em suas telas. As crises descritas pelo próprio artista se assemelhavam a crises depressivas. Oriundo de uma família religiosa, o pai de Van Gogh, Theodorus, era pastor; a mãe de nosso artista também seguia esse ideal, era adepta da religião e cheia de manias. A família era regida por regras que ela impunha a todos como costumes da época, porém seu filho Vincent van Gogh fez um furo nesse ideal imposto pela família. Ele tentou até se enquadrar, fazer parte das normas familiares, mas escapou, não conseguiu. Sua obra perpassa entre a tragédia e o belo. A doença esbarra na genialidade do nosso artista, o domina, mas também o enriquece, o desperta e nos fascina. Usarei a “liberdade de escrita” para chamar nosso artista de Vincent; era por esse nome que ele assinava suas cartas e também alguns de seus quadros. Além disso, era assim que gostava de ser chamado. Em uma carta ao irmão Théo, ele ressaltou “[...] no futuro meu nome deve ser colocado no catálogo da maneira como eu o assino nas telas, ou seja, Vincent e não Van Gogh”2.

1.1 A vida e a obra

Nosso artista Vincent viveu em uma época de explosão da arte. Quando ele atingiu a fase adulta, emergiram na Europa novos artistas que vinham de todos os lugares estudar e tentar expor seus trabalhos. O período se situa entre o realismo e impressionismo; esses dois movimentos estavam eclodindo na sociedade contrapondo-se ao movimento romancista. Embora no momento atual Vincent seja conhecido por ter criado um estilo próprio de pintar, na época em que viveu foi um pouco diferente. Mergulhado no pensamento impressionista, acreditava ser um deles. Em uma carta a Théo escrita quando viveu em , ele relata “Eu realmente sou um impressionista do Petit Boulevard e espero manter essa posição”3. Após termos o conhecimento de sua arte através de suas pinturas, percebemos que ele oscilou entre realismo, pontilhismo, impressionismo, pós-impressionismo e chegou a usar a técnica

2 In future my name must be put in the catalogue the way I sign it on the canvases, i.e. Vincent and not Van Gogh. Carta 589.

3 I really am an Impressionist of the Petit Boulevard and that I expect to retain that position. Carta 592. 13

de pinturas japonesas em alguns de seus quadros. “E eu tenho uma ENORME quantidade de desenhos para fazer, porque eu gostaria de fazer desenhos no estilo de impressões japonesas”4. Com esse estilo, ele produziu alguns quadros como o Flowering Plum Orchard. Em um determinado momento, Vincent obteve inspiração nas gravuras japonesas servindo como incentivo para vários trabalhos. Vincent morava na Antuérpia quando comprou sua primeira pilha de gravuras japonesas, as prendeu nas paredes de seu quarto e escreveu “Meu estúdio é bastante tolerável, principalmente porque pendurei nas paredes um conjunto de impressões japonesas que eu acho muito divertidas”5. Ele via essas impressões como um exemplo para a arte, pensava que elas poderiam ser grandes obras-primas da história da arte ocidental. Empolgado com a arte japonesa, escreveu: “A arte japonesa é algo como os primitivos, como os gregos, como os nossos antigos holandeses, Rembrandt, Potter, Hals, Vermeer, Ostade, Ruisdael. Não termina”6. Mais adiante, seguiu uma tela pintada com influência na arte japonesa.

4 And I have an ENORMOUS amount of drawing to do, because I'd like to do drawings in the style of Japanese prints. Carta 594.

5 My studio's quite tolerable, mainly because I've pinned a set of Japanese prints on the walls that I find very diverting. Carta 545. 6Japanese art is something like the primitives, like the Greeks, like our old Dutchmen, Rembrandt , Potter , Hals , Vermeer , Ostade , Ruisdael. It doesn't end. Carta 642.

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Flowering Plum Orchard (after Hiroshige). Paris, 1887.

Enfim, a partir de sua pintura, podemos dizer, não afirmar, que ele poderia ter criado sua própria técnica. A técnica de Vincent, essa que encanta ou desencanta o ser daquele que se submete a olhar. De um modo geral, pode-se dizer que a pintura é a ciência do olhar. Para Vincent, o quadro não é uma imagem, é um deslizamento do olhar. Ao olhar os campos, as paisagens e suas observações na natureza, nosso artista decide eternizar aquelas belas paisagens em sua mente e, mais tarde, em suas telas. E assim o fez. Eternizou o momento em seus quadros, com seu pincel e seu modo único de trabalhar frenético, intenso e agressivo, imortalizou uma arte deslumbrante, que nos deixa estupefatos ao olharmos para ela. Nosso artista tinha um grande apreço pelas paisagens. Desde pequeno, gostava de explorar a natureza e o que ela poderia fornecer; levou seu fascínio por toda a vida e tem papel significativo para as reproduções que viriam a seguir em suas obras. Embora Vincent tivesse começado a pintar já adulto, seu olhar e as pesquisas que ele fazia dos campos eram algo que o acompanhavam desde cedo; ele gostava de ficar horas caminhando sozinho ao ar livre durante o dia ou à noite. Na infância, fez amizades com os filhos de camponeses “Um camponês é mais belo entre os 15

campos em suas roupas de fustão do que aos domingos, quando vai à igreja ridiculamente vestido como um senhor”7. Esse modo de ser era desaprovado pela família que prezava pelos bons costumes da época. A mãe de Vincent, Anna Cornelia Carbentus, queria que os filhos tivessem a mesma educação refinada que ela, por isso colocava-os para pintar, escrever, desenhar. Ela era tida como uma admirável desenhista, diziam que o primeiro desenho que Vincent deu para seu pai foi feito por Anna e não pelo pintor. Ela apresentou a todos os filhos o desenho como atividades a serem seguidas em família, era uma mulher muito dura com a família. A família Van Gogh prezava pelos bons costumes; normas familiares, valores cristãos e cívicos eram tomados como regras a serem seguidas. Vincent escapa a essas regras. Tido como introvertido e revoltado, indiferente às doutrinas que seus pais alimentavam, os pais o põem em um colégio interno aos 11 anos de idade. Aos 16 anos, ele deixa o colégio interno por contra própria sem concluir os estudos. A partir desse momento, os pais, preocupados com o futuro dele, decidem arrumar um emprego para que ele “aprenda” e se enquadre na classe social. O tio de nosso artista, Vincent van Gogh, chamado pela família de Cent, foi um comerciante de uma galeria de artes em Haia, na Holanda, e expandiu o negócio, filiando-se a uma agência holandesa da firma Goupil & Cie. Foi responsável por comprar obras de pintores que tinham chance de serem vendidas. Outro tio de Vincent, Hendrick van Gogh, o tio Hein, também se filiou ao negócio. Nessa época, as pinturas eram decorativas8, a burguesia que mantinha o pintor e a pintura impressionista não estava de acordo com os preceitos da burguesia. Os apartamentos e as casas eram mobiliados com tapeçaria pesada, papéis de parede, móveis de madeira escuros e cortinas de veludo; os quadros impressionistas, as pinturas de ar livre não “combinavam” com o mobiliário. Os pintores impressionistas pintavam à sua maneira, não estavam preocupados com a função decorativa, os artistas que aderiram ao movimento impressionista pagaram um preço alto por essa escolha, sofreram humilhações e ficaram na miséria. O próprio Vincent viveu isso, enfrentou dificuldades em não conseguir ser bem-sucedido através da pintura.

7 Carta 404.

8 As pinturas eram penduradas nas paredes de casas e estabelecimentos, servindo como decoração para o burguês. 16

O tio Cent atendeu o pedido de seu irmão e criou um cargo de aprendiz na loja para Vincent, que começou a trabalhar na loja aos dezessete anos. Sua paixão pela pintura foi acendida nesse período. Depois de um tempo, acabou se tornando o melhor vendedor da loja e devorador dos livros de artes. Ele lia em três línguas, sem descanso, e frequentava bibliotecas. Esse ritmo frenético pela leitura era desde sua infância, quando a mãe impunha para família que não existia nada pior do que o ócio, e Vincent repetia esse mantra de sua mãe. Trabalhando nas casas Goupil & Cie na filial em Londres, aqui Vincent estabeleceu uma grande amizade com o irmão Théo. Nosso artista iniciou uma correspondência com seu irmão em setembro 1872 que duraria até sua morte. Enquanto Vincent trabalhava nas casas Goupil & Cie, os artistas estavam sendo influenciados pelo movimento impressionista. Impressionismo consiste na impressão que o artista tem de um objeto, podendo ser um quadro, uma paisagem. Vincent se encontra no momento que eclode o impressionismo, a revolução impressionista tomando forma e alguns pintores cansados da pintura de ateliê9 que era dominante, começam a pintar os quadros que ficaram conhecidos como “impressionismo”. A técnica de impressão consistia em o artista pintar ao ar livre aproveitando a luz, as posições do sol e as variações de cores na natureza. Os impressionistas usavam cores de tons fortes em contraste com a pintura de ateliê que era decorativa com seus tons de cinza e marrons. Como dissemos acima, era a burguesia que mantinha o pintor, o burguês que comprava as pinturas e pendurava em suas salas, seus escritórios; a pintura impressionista não estava de acordo com os preceitos da burguesia. A dificuldade que os pintores tiveram em vender seus quadros era justamente pela recusa dos burgueses em adquirir os quadros impressionistas com suas cores vibrantes, pois contrastavam com o ambiente de interiores, casas e estabelecimentos em tons sóbrios. Vincent passou por essa dificuldade ao longo de sua jornada, vendeu apenas um quadro em vida e com valor irrisório. Ele recebeu a notícia dessa venda quando esteve internado no asilo em St-Rémy.

Agora devo confessar que, mais tarde, quando minha surpresa diminuiu um pouco, me senti muito encorajado por ela às vezes; ontem, além do mais, Théo me informou que haviam vendido uma das minhas pinturas em Bruxelas por 400 francos. Em comparação com outros preços, incluindo os

9 Os pintores não saíam ao ar livre para pintar, usavam o ateliê para a criação dos quadros. 17

holandeses, isso não é muito, mas é por isso que eu tento ser produtivo para poder continuar trabalhando a preços razoáveis10.

Embora estivesse imerso na cultura da arte desde cedo, Vincent começou a pintar anos depois. O trajeto que fez de encontro com a arte foi crucial e determinante para que ele pintasse à maneira que pintou. Baseando-nos em estudos biográficos, ousamos dizer que nosso artista pintava a partir de impressões do inconsciente, retratava a paisagem com base no que estava ali nesse lugar tão enigmático para qualquer sujeito, mas que, para Vincent, aparecia no ímpeto de seu ser. Estudando sobre os artistas, ele desenvolveu uma paixão pela pintura de Jean François Millet. Vincent desejava ardentemente pintar e demonstrar a arte como Millet mostrava, era fascinado por suas obras e, como este, retratava a dor e a dureza dos campos e dizia a Théo que queria aprender através das telas de Millet.

Caro Théo, se eu não me engano, você ainda deve ter Os trabalhos do campo de Millet. Você poderia ter a bondade de emprestá-lo a mim por algum tempo e de enviá-los pelo correio? Você deve saber que estou rabiscando desenhos grandes a partir de Millet, e que estou fazendo As horas do dia, assim como O semeador...11

Na mesma carta, mais a diante, declarou sua admiração por Millet “[...] sinto a necessidade de estudar o desenho de figuras em mestres como Millet”12. As cópias que Vincent recebia do irmão Théo eram nas cores pretas e brancas; a partir dessas cópias, ele estudava e fazia croquis (esboço ou rascunho). Quando terminava uma série de estudos, ele enviava pelo correio para que o irmão avaliasse. Empolgado com a pintura, começou a trabalhar em um longo estudo sobre os camponeses. Desenhou várias cabeças de trabalhadores do campo. Começou a construir o quadro chamado Os comedores de batatas de 1885. A ideia era usar a técnica do realismo; sua intenção era retratar o que se passava no momento em que ele pintava; tentou passar a dureza dos camponeses, a vida sofrida pelos campos, desejava exprimir com melancolia o que os quadros de Millet retratavam. Nosso artista

10 Now I must confess that later, when my surprise had abated somewhat, I felt very heartened by it at times; yesterday, what's more, Theo informed me that they'd sold one of my paintings in Brussels for 400 francs. In comparison with other prices, including the Dutch ones, this isn't much, but that's why I try to be productive in order to be able to keep working at reasonable prices. Carta 855.

11 Carta 134.

12 Carta 134. 18

tinha uma admiração pela vida nos campos “Ainda acho que tenho uma certa dureza em comum com os camponeses, que também não comem nada de especial e continuam vivendo e trabalhando”13. Mas, se pudermos comparar os quadros, veremos que o de Millet retrata o sofrimento árduo, a inocência dos campos em contraponto com a degradação que o acompanha. Vincent tem algo a mais e diferente da técnica do realismo. Sobre esse quadro menciona:

Apliquei-me conscientemente em dar a ideia de que estas pessoas que, sob o candeeiro, comem com as mãos as batatas que levam ao prato, também lavraram a terra; o meu quadro exalta, portanto, o trabalho manual e o alimento que eles próprios ganharam tão honestamente14.

Vincent estava entusiasmado e feliz com a possibilidade de ser artista. Logo abaixo, seguem duas figuras. A primeira é o quadro de Vincent, em que ele pinta uma família fazendo uma refeição após um dia árduo de trabalho; a cena é serena; as cores profundas e escuras simbolizam a dignidade da terra. Ele pintou dentro da casa dos camponeses. A segunda figura é uma pintura de Millet, em que podemos observar um camponês sentado, exausto pelo trabalho.

Fig.1 Os comedores de batatas, 1885.

13 I still think I've got a certain toughness in common with the peasants, who also don't eat anything very special and still go on living and working. Carta 558.

14 Carta 404. 19

Fig.2 Vineyard Labourer Resting,1869.

Nosso artista não era bem aceito na casa dos pais, o que poderia tê-lo motivado a morar em várias cidades. Sempre com a recusa da família em tê-lo por perto, ele acabou morando em lugares distintos. Por não ser bem aceito na casa dos pais, aos vinte cinco anos, ele foi para a região do Borinage, uma área mineira pobre onde a população vivia do trabalho das minas. Ele acreditava que nesse lugar ele poderia ser evangelista; começou então a desenvolver uma ideia obsessiva de fazer arte para os pobres. Como seus empenhos em se tornar pastor ou evangelista não obtiveram êxito, ele se lançou na pintura e decidiu usar as paisagens e as pessoas que remontassem à pobreza para pintar. Usou o lugar para se inspirar e produziu algumas telas, porém se encontrava com a saúde comprometida. O pai Theodorus entregava uma mesada de cinquenta francos ao filho. Tempos depois, o pai revelou a Vincent que o dinheiro vinha de Théo. O início da ajuda financeira de Théo iria perdurar ao longo da vida dos dois. Vincent escreveu a Théo pela primeira vez em francês, este se encontrava em Paris trabalhando nas firmas Goupil & Cie. Théo convidou Vincent para ir a Paris, onde se encontra o berço da arte, mas ele se recusou a deixar Borinage. Em algumas passagens de suas cartas, Vincent 20

considerava “Théo o coautor de sua obra”15. Quando começou a pintar, nosso artista tentou a arte realista, mas seus contornos considerados imprecisos para o realismo e mal proporcionados, além dos erros de anatomia, o dificultaram nessa jornada. Desejava ser como Millet, retratar a realidade dura dos camponeses, “dos pobres”. Até esse momento, nosso artista era autodidata, estudava as técnicas de pintura sozinho. Empenhava-se em aproximar seus desenhos do realismo, replicava sem sucesso a pintura O semeador de Millet, 1850. O resultado não foi o esperado, sua técnica se diferia da do realismo. Ele tentava se aproximar da técnica do realismo, mas escapava. “É estranho que, quando comparo meu estudo com os de outras pessoas, quase não tem nada em comum com o deles”16. Buscava incessantemente assemelhar sua técnica àquela de Millet. Após algum tempo, abandonou bruscamente a região de Borinage e, aos vinte e sete anos, foi a Bruxelas pintar, alugou um quarto na Boulevard du Midi, 72. Para Vincent, o custo de vida em Bruxelas era alto, ele não conseguia arcar com as despesas mesmo com a mesada de cinquenta francos que seu irmão lhe enviava. Nessa cidade, conheceu e ficou amigo de Van Rappard, também pintor. Em 1888, após uma briga entre os irmãos, as cartas se cessaram por um período de dez meses. Posteriormente, Vincent escreveu a Théo:

É possível que nem mesmo agora eu lhe estivesse escrito, não fosse o fato de eu me sentir na obrigação, na necessidade de lhe escrever; não fosse o fato de você mesmo me fazer sentir esta necessidade. Soube em Etten que você tinha me enviado cinquenta francos. Pois bem, eu os aceitei. Certamente a contragosto, certamente com um sentimento bem melancólico, mas estou numa espécie de beco sem saída ou de atoleiro, como fazer de outro modo?17.

A ajuda financeira de Théo não se limitava apenas aos cinquenta francos; quando Vincent necessitava, enviava cartas pedindo dinheiro ao irmão. Mesmo com a mesada que Théo lhe enviava, se encontrava com a situação financeira prejudicada. Decidiu voltar para a casa dos pais em Etten (Brabante). A vida com os pais era sempre atribulada; a família não aceitava o jeito de Vincent com seu

15 Biografia de Van Gogh por David Haziot, p.86.

16 It's strange that when I compare my study with those of other people, it has almost nothing in common with them. Carta 555.

17 Carta 133. 21

temperamento dito difícil e não cumpridor das regras sociais. Sem escolha, ele teria moradia e comida somadas à mesada de Théo para arcar com as despesas da pintura. Ele não gostava de voltar para a casa dos pais; quando isso acontecia, era de profundo desagrado tanto para nosso artista como para a família. Além do amigo Rappard, o círculo de amizades em torno de Vincent era restrito, ele era exigente, sua fama de temperamental e diferente não lhe atraía muitas amizades. Escreveu a Théo sobre esse assunto: “Se eu tivesse amigos, e se alguns deles fossem conhecidos, sim, seria mais fácil – mas não tenho nenhum e tenho que me tornar conhecido"18. Morando na casa dos pais em Etten, enviou uma carta ao amigo Van Rappard.

Estou ansioso para ouvir sobre seus planos para o inverno. Se for para Antuérpia, Bruxelas ou Paris, venha me visitar no caminho, e se você permanecer na Holanda, eu também não perderei as esperanças; também é lindo aqui no inverno, e certamente poderíamos fazer algo, se não ao ar livre, trabalhando a partir de um modelo na casa de algum camponês ou alguém assim19.

Posteriormente à carta, recebeu a visita do amigo Van Rappard. Nosso artista prosseguiu com o amigo saindo ao ar livre para pintar, escreveu a Théo sobre o encontro: “Enquanto ele estava pintando, eu fiz um desenho de caneta de outro ponto no pântano onde muitos lírios de água crescem. (Perto de Roosendaalseweg)”20. Rappard ficou 12 dias hospedado na casa dos pais de Vincent. Nas cartas, observamos o carinho que Vincent tinha pelo amigo. A convivência com os pais se tornou ácida. Na época das festas do Natal de 1881, Vincent teve uma discussão com o pai, pois se recusou a ir rezar no templo. O pai, como pastor, foi regido pelos dogmas da igreja, e após essa discussão, pediu ao filho que fosse embora. Nosso artista relatou em uma carta a Théo sobre o ocorrido: “No Natal, tive uma discussão bastante violenta com o pai, e os sentimentos ficaram

18 If I had friends, were a little known, yes, then, then it would be easier — but I don't have any and I have to make myself known. Carta 517.

19 I'm very eager to hear about your plans for the winter. Supposing you go to Antwerp, Brussels or Paris, be sure to come and visit us on your way, and if you stay in Holland then I won't give up hope either. it's also beautiful here in the winter, and we surely could do something, if not outdoors then working from a model in the house of some peasant or other. Carta 174.

20 While he was painting I made a pen drawing of another spot in the marsh where many water lilies grow (Perto de Roosendaalseweg.) Carta 168. 22

tão à flor da pele que o pai disse que seria melhor se eu saísse de casa. Bem, ele falou isso tão decididamente que eu realmente saí de casa no mesmo dia”21. Mais adiante, seguiu relatando o porquê do desentendimento:

As coisas realmente chegaram ao ápice, porque eu não fui à igreja, e também disse que se ir à igreja era algo forçado e eu tinha que ir à igreja, eu certamente nunca mais iria, nem mesmo por cortesia, como tenho feito bastante regularmente todo o tempo em que estou em Etten22.

Depois dessa discussão, Vincent teve um rompimento brusco com o pai, saiu de casa e foi a Haia; no entanto, dessa vez como pintor, e não mais como um comerciante de arte. Essa briga e os desentendimentos com o pai o atormentaram por toda a vida. Em Haia, Vincent conversou com seu primo Anton Mauve23. Expôs a situação em que se encontrava e disse que não poderia ficar mais em Etten, dadas as circunstâncias dos últimos acontecimentos com o pai. Mauve emprestou dinheiro a Vincent para que ele pudesse começar a vida em Haia. Com a ajuda de Mauve, nosso artista alugou um estúdio que lhe servia de moradia. “E então eu aluguei um estúdio aqui, ou seja, uma sala e um quarto que podem ser adequadas. Bastante barato, fora da cidade em Schekweg, a cerca de 10 minutos da casa de Mauve”24. Vincent começou a ter aulas com seu primo Mauve, se mostrou grato e animado com essa possibilidade de ensino, se sente estimulado, chegando até a dizer: “Como será meu trabalho daqui a um ano?”25, porém ele se tornou relutante quanto à técnica que Mauve aplicava.

No que diz respeito a Mauve – sim, é claro que eu gosto muito de Mauve, e simpatizo com ele, eu gosto muito de seu trabalho – e me considero afortunado de aprender com ele, mas não consigo me encaixar em um

21 At Christmas I had a rather violent argument with Pa , and feelings ran so high that Pa said it would be better if I left home. Well, it was said so decidedly that I actually left the same day. Carta 194. 22 Things actually came to a head because I didn't go to church, and also said that if going to church was something forced and I had to go to church, I'd most certainly never go again, not even out of politeness, as I've been doing fairly regularly the whole time I've been in Etten. Carta 194. 23 O pintor era casado com sua tia Jet Carbentus.

24 And so I've rented a studio here, namely a room and alcove which can be made suitable. Inexpensive enough, just outside town in Schenkweg, about 10 minutes from M. Carta 194.

25 What will my work be like in a year? Carta 194.

23

sistema ou escola mais do que o próprio Mauve consegue, e além do trabalho de Mauve e de seu trabalho, eu também gosto de outros que são muito diferentes e trabalham de forma muito diferente. E quanto a mim e ao meu próprio trabalho, talvez haja semelhança às vezes, mas certamente também uma diferença significativa26.

Vincent, desde o começo por não concordar que existisse apenas uma única forma de pintar, se diferenciava dos pintores de sua época. Seu modo de pensar sobre o trabalho artístico e de se colocar frente às questões culturais eram vistas como rebeldia e não como características de um pintor que pudesse estar à frente de seu tempo. Ele pintava à sua maneira em seu estúdio. Recebia reprovações do seu professor, o primo Mauve, e ia em direção ao seu desejo. Ele queria que suas paisagens “exalassem a figura”, respirasse a arte27. Por muito tempo, acreditou que pudesse viver apenas da pintura; suas despesas aumentaram enquanto estava morando em Haia. Os custos financeiros recaíam apenas sobre Théo, e nosso artista tinha uma missão de “querer fazer arte para os pobres”. O problema é que tal missão não lhe deixou frutos, pois os pobres não compram obras de arte; os burgueses, sim, mas Vincent parecia não se importar com essa questão. Nosso artista era intenso, sensível. A mesma intensidade com que lidava com a pintura, lidava com relacionamentos.

1.2 Relacionamento de Vincent com Sien

Ele amou várias mulheres, era frequentador assíduo de cabarés, não via diferença entre uma prostituta e uma mulher do campo. As convenções sociais eram ignoradas por ele. No tempo em que viveu em Haia, ele conheceu uma prostituta alcoolista grávida e mãe de uma menina. Sobre esse encontro, ele relatou:

26 As far as Mauve is concerned – yes of course I'm very fond of M., and sympathize with him, I like his work very much – and I consider myself fortunate to learn something from him, but I can't shut myself up in a system or school any more than Mauve himself can, and in addition to Mauve and Mauve's work, I also like others who are very different and work very differently. And as far as me and my own work are concerned, perhaps there's a similarity sometimes, but certainly also a distinct difference. Carta 199. 27 Biografia de Van Gogh por David Haziot, p.102.

24

Neste inverno eu encontrei uma mulher grávida, abandonada pelo homem cujo filho ela carregava na barriga. Uma mulher grávida que, no inverno, vagava pelas ruas, que devia ganhar seu pão você bem sabe como. Tomei esta mulher como modelo e trabalhei com ela durante todo o inverno. Não pude pagar-lhe o salário completo de uma modelo, mas isso não impede que eu lhe tenha pago suas horas de pose, e que graças a Deus, eu tenha podido salvá-la, ela e sua criança, da fome, do frio, repartindo com ela meu próprio pão. Quando encontrei essa mulher, fiquei impressionado por seu aspecto doentio. Eu a fiz tomar banhos, dei-lhe fortificantes tanto quanto pude; ela ficou bem mais saudável28.

Essa prostituta o servia como modelo para pintar. O nome dela era Classina Maria Hoornick, ou Sien. Em algumas de suas cartas, Vincent a chama de Christien. Acreditamos que ele a chamava de Christien quando seu irmão e seus pais não sabiam da procedência de Sien. Após a família ter descoberto que a mulher era uma ex-prostituta, Vincent passou a escrever nas cartas Sien e não mais Christien. Sien tinha uma filha pequena de cinco anos chamada Maria e estava grávida. Ele acolheu Sien em seu estúdio, manteve a relação discreta. Théo, a princípio, acreditava que a relação dos dois fosse apenas profissional. Vários motivos poderiam ter levado Vincent a suprimir essa informação do irmão. Os gastos aumentariam; além de Vincent, teria Sien, sua filha e seu filho prestes a nascer, e também ela era uma ex-prostituta; outro motivo poderia ser a maneira com que Vincent lidava com relacionamentos. Antes do nosso artista conhecer Sien, durante uma visita aos pais em Etten, ele se apaixonou por Kee Vos-Striker, sua prima que tinha acabado de se tornar viúva. Pediu a mão de Kee em casamento, e ela rejeitou dizendo: “não, não, nunca”29. Essa resposta não foi suficiente para ele. Vincent tinha esperanças e acreditava no amor. Foi para Amsterdã, onde Kee morava com seus pais, e ela se negou a vê-lo. Ele foi recebido pelo pai da prima, que disse: “sua persistência é doentia”. Enquanto escutava tal frase, Vincent colocou sua mão esquerda sobre a lamparina e falou: “Deixe-me vê-la pelo tempo que consigo manter minha mão no fogo”30. O pai apagou a chama e pediu que Vincent fosse embora. Com Sien, a convivência foi bastante diferente. Seu relacionamento com ela ficou cada vez mais intenso, e Vincent se disse apaixonado e queria desposá-la. Dizia que a amava, pois ela era tão pobre e mal-afortunada quanto ele. O envolvimento dele

28 Carta 192.

29 Carta 228.

30 Carta 228. 25

com Sien era de profundo desagrado de Théo. As divergências entre os irmãos aumentaram, e Vincent parecia estar querendo salvar Sien de uma sociedade injusta que a colocou nesse caminho. Théo tentou persuadir o irmão a romper esse relacionamento, mas nosso artista se mostrava implacável em sua decisão. Numa carta ao irmão Théo, Vincent tentou explicar o seu novo amor.

Agora, aqui é com Christien e eu vemos isto: ambos queremos ter uma vida bastante doméstica juntos, e precisamos estar todos os dias juntos no trabalho e ficamos juntos diariamente. Nós não queremos ter uma posição falsa e acreditamos que casar é a única maneira eficaz de silenciar o mundo e garantir que as pessoas não possam nos acusar de viver juntos de forma ilícita. Se não nos casarmos, as pessoas podem dizer que isso ou aquilo é de fato falso – se nos casarmos, seremos muito pobres e renunciaremos a qualquer pretensão a uma posição social, mas nossa ação será correta e honesta. Eu acredito que você vai entender isso31.

Théo não aceitou esse comportamento de Vincent, seu primo Mauve rompeu com Vincent, os tios comerciantes de arte não quiseram mais saber dele; a situação se complicou, e antes do nascimento do filho de Sien, nosso artista foi internado com blenorragia (doença sexualmente transmissível). Ele foi amparado por Théo, mas nosso artista manteve a ideia de se casar com Sien. Alugou uma casa maior e se instalou com Sien, sua filha Maria, e seu filho prestes a nascer (quando nasceu, Sien deu o nome de Willem em homenagem a Vincent). Ele viveu com Sien e seus filhos durante quinze meses. Théo e os pais se mostraram insatisfeitos com esse relacionamento. Vincent escreveu ao irmão com argumentos de que sua vida com Sien era apropriada e a não aceitação da família era primitiva.

Não peço nada, nem uma xícara ou prato velho, apenas uma única coisa – que me deixem apreciar e cuidar da minha pobre e fraca esposa atormentada, como a minha pobreza permitir, sem que sejam tomadas medidas para nos separar, nos prejudicar ou nos causar tristeza. Ninguém se preocupava com ela ou a queria; ela estava sozinha e abandonada como um farrapo descartado, e eu a peguei e lhe dei todo o amor, toda a ternura, todo o cuidado que havia em mim. Ela sentiu isso e se tornou mais forte, ou melhor, está em processo de fortalecimento32.

31 Now here's how both Christien and I view this: we both want to have a very domestic life close together, and have need of each other every day in the work and are together daily. We don't want to have anything false in our position, and believe that marrying is the only effective way of silencing the world and ensuring that people can't accuse us of living together illicitly. If we did not marry, people could say this or that is in fact false – if we marry we'll be very poor and shall give up any pretensions to a social position, but our deed will be right and honest. I believe you will understand this”. Carta 227.

32 I ask for nothing, not so much as an old cup or saucer, only one single thing — that I be allowed to cherish and care for my poor, weak, tormented little wife as well as my poverty permits, without steps being taken to separate or hinder us or cause us . No one cared for her or wanted her, she was 26

Sien era uma mulher à margem da sociedade; além de ex-prostituta e com dois filhos, ela não era uma mulher de aparência saudável nem sequer admirada pela beleza; era tida como uma mulher desleixada. O casamento dos dois era desaprovado pela família e sociedade, pois existia o preconceito. A prostituição carregava um estigma na Holanda. O próprio Vincent, numa carta a seu amigo Van Rappard, reconhece que Sien não era uma mulher bela e saudável. O fato de ela ser uma ex- prostituta não era uma questão; ele sabia da vida que essa mulher tinha levado e parecia ter um apreço pela desgraça e miséria humana.

Eu ouço fofocas sobre eu estar o tempo todo com ela, mas por que eu deveria deixar isso me incomodar? — Nunca tive assistente tão boa como esta mulher feia ??? mulher destruída. Para mim, ela é linda, e acho exatamente o que eu preciso nela. A vida deu-lhe uma surra, e a tristeza e adversidade deixaram nela a sua marca – agora eu posso fazer uso disso33.

Essa relação poderia ter dificultado sua entrada no mercado artístico? O modo como Vincent vivia contrariava o estilo de vida burguês, não seguindo as convenções sociais. Contrariava também o estilo de vida protestante seguido por sua família. Esse novo relacionamento, essa nova família, acabou aumentando os gastos financeiros, e Théo se mostrou insatisfeito, pois, além de Vincent, Théo ajudava os pais. Vincent acreditava no amor, não aceitava as reprovações de Théo e escreveu:

Nós gastamos muito juntos? Não, porque eu não tinha muito e eu disse para ela, escuta, você e eu não precisamos ficar bêbados para sentir algo um pelo outro, basta guardar o que eu posso pagar. E eu gostaria de ter conseguido mais, porque valia a pena34.

alone and abandoned like a discarded rag and I picked her up and gave her all the love, all the tenderness, all the care, that was in me. She felt that and has grown stronger, or rather is in the process of growing stronger. Carta 234. 33 I hear gossip about how I'm always together with her, but why should I let that bother me? — I've never had such a good assistant as this ugly??? wasted woman. To me she's beautiful, and I find in her exactly what I need. Life has given her a drubbing, and sorrow and adversity have left their mark on her — now I can make use of it. Carta 232.

34 Did we spend a lot together? No, because I didn't have much and I said to her, listen, you and I don't have to get drunk to feel something for one another, just pocket what I can afford. And I wish I could have afforded more, because she was worth it. Carta 193. 27

A partir daí, Théo entrou em dificuldades financeiras, e Vincent escreveu cartas e mais cartas pedindo dinheiro ao irmão: “Você entende que estou extremamente sem dinheiro?35. Após alguns meses com Sien, o relacionamento começou a se deteriorar. Vincent escreveu falando que a mulher é como uma doença e que havia algo de errado com aquela que ele vivia. As palavras de amor deram lugar às de decepção. Ele terminou seu relacionamento com Sien em setembro de 1883. Decidiu ir embora de Haia, foi para Hoogeveen e agiu da mesma forma de tantas outras vezes. É notório que ele tinha dificuldades de lidar com o discurso do mundo que lhe era apresentado, não respondia às demandas da família, tinha dificuldades de corresponder às exigências da pintura que seu professor Mauve exigia, não obteve sucesso em se tornar evangelista. Poderia ser considerado um homem à frente de seu tempo ou apenas lidava com o mundo externo de forma diferente das pessoas do seu convívio social? Ele tinha sua própria maneira de interpretar o mundo. O modo como interpretamos o mundo é individual. Em psicanálise, o termo realidade psíquica designa uma realidade interna ao sujeito. “Termo empregado em psicanálise para designar uma forma de existência do sujeito que se distingue da realidade material, na medida em que é dominada pelo império da fantasia e do desejo” (ROUDINESCO, 1998, p.646). Cada sujeito irá perceber a realidade de uma maneira diferente, ou seja, a realidade psíquica é a verdade de cada um. Quando um sujeito em uma análise conta uma história, para o analista, não importa se a história é fidedigna, ou se aconteceu realmente, o que importa é que aquela história está sendo contada por aquele sujeito. A realidade é de cada um. O entendimento e os significados e a realidade vivida serão diferentes para cada sujeito. Por exemplo, se um casal é assaltado na rua, o assalto sofrido será vivido de uma maneira para um e de outra maneira para o outro. Assim, como qualquer sujeito, nosso artista tinha sua própria maneira de enxergar a realidade, enfrentou dificuldades por não se adaptar às normas sociais que eram impostas. Tentou, mas a realidade vivida e experienciada com Sien e a tentativa de ter uma família não perduraram por muito tempo. Entre a arte e o amor, teria Vincent escolhido a arte? Ele seguiu sempre acreditando em sua arte mesmo com o estigma que a sociedade à época o colocou

35 You understand that I'm extremely short of money? Carta 205. 28

de ser um homem-artista fracassado. Sua arte exprimindo a alma de nosso artista, rompendo o paradigma da arte bem-feita que era o estilo da época para abrir-se ao infinito da invenção. E disse: “O desenho é como um pouco como arte de escrever”36; era ele que exalava o escritor em suas cartas. Abaixo segue um retrato de Sien, uma das mulheres que Vincent amou. A esse desenho deu o nome de Tristeza. Nele podemos observar uma mulher sentada, com seu corpo nu, com a cabeça apoiada sobre os braços cruzados. Em desespero? Seus cabelos soltos sobre as costas com o corpo magro, que pode nos exprimir um certo sofrimento, com a barriga inchada, que pode nos indicar que está grávida. Queria Vincent passar a mensagem de uma mulher abandonada pela sociedade? Indagou- se diversas vezes como poderia existir no mundo uma mulher sozinha e abandonada. Sien, anos mais tarde, seu filho Willem já estava adulto, casou-se com um marinheiro numa nova tentativa de relacionamento. Ela se suicidou em 1904, se jogando no rio Scheldt, em Roterdã.

Sorrow – retrato de Sien,1882.

36 Biografia de Van Gogh por David Haziot, p.119. 29

Se olharmos seus quadros, vemos um gênio. Se olharmos sua maneira de ser frente ao mundo, vemos um estranho. Se olharmos suas cartas, vemos um escritor. Após a ruptura com Sien, Vincent foi para o mais longe possível, a Hoogenveen, na região de Dentre. Lá ficou três meses, pintou cerca de trinta estudos. Incomodava-se com o fato de que Théo se encontrava em dificuldades financeiras e decidiu voltar para casa dos pais novamente, deixando uma grande quantidade de estudos e desenhos nesse albergue onde estava hospedado, com a promessa de voltar para buscá-los. Ele jamais voltaria para Dentre. A família dona do albergue, para arranjar mais espaço na casa, queimou os estudos de Vincent. Aos trinta anos de idade, seguiu seu caminho em direção à estação de trem; eram seis horas andando a pé até a estação. Muitas dessas caminhadas aconteciam por sua situação financeira; ele seguia a pé no inverno e, como não tinha dinheiro para os meios de transporte, acabava não conseguindo carregar o que produzia, por vezes tendo que deixar suas produções pelo caminho. Munido com a vontade de respirar e viver sua arte, seguiu para a casa dos pais. Voltar para a casa dos pais era sempre frustrante. As explosões na família geralmente eram pela recusa de Vincent em arrumar um emprego enquanto seguia a atividade artística. Nosso artista não conseguia seguir esse ideal imposto pela família. Sem opções, decidiu ir para a casa dos pais que moravam agora em Nuenen, no sul da Holanda. Dessa vez, com a sensação de que seus pais, sua família, iriam compreendê-lo como artista, já que não conseguiram compreendê-lo enquanto filho.

1.3 Sublimação

A sublimação exerce um papel fundamental para a produção artística. Freud tinha um fascínio de como as obras de artes exerciam um efeito sobre ele, como também sobre a teoria psicanalítica.

Mas as obras de arte exercem um forte efeito sobre mim, em especial obras literárias e esculturas, raramente pinturas. Isso já me levou, em oportunidades adequadas, a me demorar longamente diante delas e a querer compreender tal efeito à minha maneira, ou seja, explicar a mim mesmo por quais meios surtem efeito (FREUD, 1914/2015, p.183).

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Freud, como um grande apreciador da arte, dedicou alguns estudos psicanalíticos tendo como embasamento o saber artístico. Teve uma grande admiração por Goethe e Shakespeare. Em Édipo rei, de Sófocles, encontra inspiração para sua teoria do complexo de Édipo, um dos pilares da teoria psicanalítica. No discurso lido por Anna Freud na Casa de Goethe, em Frankfurt, em 28 de agosto de 1930, Freud escreveu:

A psicanálise pode chegar a muitas soluções que não são alcançadas por outras vias e mostram tantas novas relações nas obras-primas do tecelão, tais como as que se estendem entre os investimentos pulsionais, as vivências e a obra de um artista (FREUD,1930/2015, p.314).

Ouso dizer que Freud foi um artista, criou, fez um corte epistemológico com a descoberta do inconsciente, apresentando para o mundo que o ser humano não era regido pela consciência, e sim pelos processos inconscientes, e só através de uma análise que poderíamos ter acesso. Foi médico, pesquisador, criador da psicanálise e, em 1930, no auge dos seus 74 anos, ganhou o prêmio Goethe (prêmio literário) da cidade de Frankfurt. Freud como um grande artista, poderia ter usado também a sublimação? No texto As pulsões e seus destinos (1915), Freud coloca a sublimação como um dos destinos da pulsão, descrevendo “[...] os destinos pulsionais como espécies de defesa contra as pulsões” (p.35). Ao longo de sua obra, Freud atribui diferentes significados ao conceito psicanalítico de sublimação. Esses diferentes significados podem ser justificados pelo fato de que ele estaria elaborando o conceito de sublimação; isso, porém não invalida sua veracidade, pelo contrário, enriquece ainda mais sua teoria. Lamentavelmente, não temos um artigo exclusivamente sobre esse tema, não sabemos se Freud escreveu, e se escreveu, pode fazer parte de seus artigos que foram perdidos. No entanto, o conceito foi trabalhado em vários textos. A primeira vez que esse termo surgiu na teoria psicanalítica foi no “Rascunho L” aparecendo como uma defesa histérica. “Pois as fantasias são fachadas psíquicas construídas com a finalidade de obstruir o caminho para essas lembranças. As fantasias servem, ao mesmo tempo, à tendência de aprimorar as lembranças, de sublimá-las” (FREUD, 1897/2006, p.297). Nesse primeiro momento, o sentido da sublimação não é o mesmo que aparecerá anos mais tarde, ou seja, Freud estava

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construindo o conceito de sublimação. No livro A sublimação no ensino de Jacques Lacan, a autora pontua “De todo modo, certo caráter defensivo da sublimação já estava presente, definindo a tentativa da defesa histérica de embelezar, pela via da fantasia, algum fato ou elemento desagradável” (METZGER, 2017, p.31). Continuando essa evolução, Freud apresenta no segundo capítulo dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), o período de latência em que há uma inibição sexual, surgindo “[...] como entraves no caminho da pulsão sexual e estreitarão seu curso à maneira de diques (o asco, o sentimento de vergonha, as exigências dos ideais estéticos e morais” (FREUD, 1905/2006, p.167). Segue adiante dizendo que a construção desses diques é fruto da educação. No mesmo capítulo, aborda a formação reativa e a sublimação apontando que a energia sexual infantil não cessa, pelo contrário, ela é desviada do uso sexual e voltada para outros fins.

Os historiadores da cultura parecem unânimes em supor que, mediante esse desvio das forças pulsionais sexuais e por sua orientação para novas metas, num processo que merece o nome de sublimação, adquirem-se poderosos componentes para todas as realizações culturais. Acrescentaríamos, portanto, que o mesmo processo entra em jogo no desenvolvimento de cada indivíduo, e situaríamos seu início no período de latência (FREUD, 1905/2006, p.168).

Mais adiante, em seu texto Cinco lições de psicanálise (1909), Freud referindo- se ao destino dos desejos inconscientes libertados durante um processo analítico diz:

Conhecemos uma solução muito mais conveniente, a chamada ‘sublimação’, pela qual a energia dos desejos infantis não se anula, mas ao contrário permanece utilizável, substituindo-se o alvo de algumas tendências por outro mais elevado, quiçá não mais de ordem sexual. Exatamente os componentes da pulsão sexual37 se caracterizam por essa faculdade de sublimação, de permutar o fim sexual por outro mais distante e de maior valor social (FREUD, 1909/2006, p.64).

Numa análise sobre a vida e obra de Leonardo Da Vinci (1910), Freud aborda a sublimação de um modo mais extenso, “[...] texto no qual o termo sublimação aparece nada menos do que oito vezes” (POLLO, 2010, p.41). A partir dos dados da infância de Leonardo Da Vinci até a idade adulta, Freud aborda o processo sublimatório nas criações do artista e redige que “Devido à sua tendência muito precoce para a curiosidade sexual, a maior parte das necessidades das pulsões

37 Onde se lê pulsão sexual na edição pesquisada, leia-se instinto sexual.

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sexuais puderam ser sublimadas numa ânsia geral de saber, escapando assim o recalque38” (FREUD,1910/2006, p.137). Acreditava que toda a criação artística e científica de Da Vinci estava ligada à sublimação, ao ponto de Freud mencionar que o artista chegou “[...] na mais alta sublimação que o homem pode atingir” (FREUD,1910/2006, p.128). Esse mais alto grau de sublimação atingido por Da Vinci não é a regra para a maioria dos sujeitos. A sublimação serve para o desenvolvimento artístico, científico e cultural da humanidade; no entanto, sempre sobra uma energia que não é transformada provocando no homem a angústia necessária para continuar e procurar este algo que lhe escapa, a realização do desejo. É a teoria psicanalítica colocando a criação artística, no campo da sublimação.

No exercício de uma arte vê-se mais uma vez uma atividade destinada a apaziguar os desejos não gratificados – em primeiro lugar, do próprio artista e, subsequentemente, de sua assistência ou espectadores. As forças motivadoras dos artistas são os mesmos conflitos que impulsionaram outras pessoas à neurose e incentivaram a sociedade a construir suas instituições (FREUD, 1913, p.188-189).

A arte (como sublimação) surge como apaziguadora, amortecedora dos desejos sexuais. Sobre o conceito de sublimação de Freud, Vera Pollo afirma o seguinte: [...] Porque o sexual se conjuga diretamente com a morte, a sublimação se faz imprescindível à existência do fator erótico necessário à amizade, ao espírito de grupo e ao amor à humanidade (POLLO, 2010, p.42).

Para a teoria freudiana, a sublimação é necessária ao convívio social. Cada sujeito irá sublimar de uma forma, nem todos terão a mesma aptidão de Leonardo Da Vinci. Como vimos, a contribuição para a cultura só é possível pela sublimação, mas o próprio Freud diz que o analista não deve levar seu paciente a tudo sublimar, pois, se assim o fizesse, não haveria uma tensão necessária para o movimento em busca do desejo, que escapa, e mesmo sem conseguir nomear, estamos buscando. O que sustenta a sublimação na cultura é ser socialmente valorizada. “Numa só palavra, a sublimação é, para Freud, uma autêntica operação de civilização do gozo, sem a qual não há senso de justiça ou qualquer sentimento de solidariedade com o semelhante” (POLLO, 2010, p. 42).

38 Onde se lê recalque na edição pesquisada, leia-se repressão.

33

A sublimação em Freud é ética, cultural e socialmente valorizada. Tomamos como exemplo um artista operando com a sublimação; se for reconhecido socialmente, ele terá seus ganhos através do sucesso, fama, dinheiro, “[...] as satisfações fantasiosas que se encontravam no princípio da tendência, a qual se satisfaz assim pela via da sublimação” (LACAN, 1959-1960/1986, p.180). Assim sendo, o que caracteriza a sublimação é o desvio do investimento libidinal de um objetivo sexual para outro não sexual, um deslocamento do investimento libidinal. Devemos lembrar que mesmo nessa substituição, a sublimação ainda assim é uma satisfação da pulsão. A pulsão encontra satisfação sexual com a atividade artística. Lacan, no seminário 11, comenta sobre a sublimação e diz:

A sublimação não é menos a satisfação da pulsão, e isto é sem recalcamento. Em outros termos – por enquanto, eu não estou trepando, eu lhes falo, muito bem!, eu posso ter a mesma satisfação que teria se eu estivesse trepando. É isto que quer dizer. É isto que coloca, aliás, a questão de saber se efetivamente eu trepo (LACAN,1964/1985, p.157-58).

Sobre a sublimação, Lacan elucida que “[...] sublimação é esta – ela eleva um objeto – e aqui não fugirei às ressonâncias de trocadilho que pode haver no emprego no termo que vou introduzir – a dignidade da Coisa” (LACAN,1960/1988, p.141). Esses objetos seriam objetos imaginários, objetos da fantasia, aqueles objetos possíveis de ocupar o lugar de das Ding, fazendo um semblante, desse lugar impossível que é do das Ding. A sublimação estaria nesse campo. Retomaremos um pouco a noção de das Ding na obra lacaniana. Das Ding ou Coisa é um conceito que Lacan começa a elucidar a partir do seminário 7, A ética da psicanálise (1959-1960). Ele se apropriou da noção de Das Ding a partir do texto freudiano O projeto (1895). Das Ding é colocado como fora da linguagem, mas ao mesmo tempo a fundaria. “Das Ding é originalmente o que chamaremos de o fora-do-significado. É em função desse fora-do-significado e de uma relação patética a ele que o sujeito conserva sua distância e constitui-se num mundo de reação, de afeto primário, anterior a todo recalque” (LACAN, 1959/1988, p.71). Lacan identifica das Ding com o “Wiedrzufinden, a tendência a reencontrar, que, para Freud, funda a orientação do sujeito humano em direção ao objeto” (LACAN, 1959/1988, p.76). Esse objeto que o sujeito tentará reencontrar, Lacan o denomina de objeto perdido. “Mas esse objeto, em suma, nunca foi perdido, apesar de tratar-se essencialmente de reencontrá-lo” (LACAN, 1959/1988, p.76). Lacan então coloca a

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sublimação como a criação em torno do vazio. Segundo Lacan, “[...] nem a ciência nem a religião são aptas para salvar a Coisa, nem a nos dá-la” (LACAN, 1960/1988, p.168). Isso nos levando à dedução de que a arte elucida a Coisa, pois ela mantém o vazio em seu centro, elabora a partir de um objeto que pode ser posto nesse lugar. A arte elevando um objeto à dignidade de Coisa. Lacan também gostava de fazer uso das artes para pensar psicanaliticamente. Ao abordar a obra de arte de Vincent van Gogh, seu interesse era mostrar como esse artista consegue gerar uma sensação estranha no modo como ele apresenta o objeto (sua obra). Devemos lembrar que, na visão lacaniana, a finalidade da arte não é sua representação, pois das Ding é irrepresentável. Dessa maneira, as obras de arte fazem um semblante para os objetos.

Não se deve absolutamente cair na rede. É claro que as obras de arte imitam os objetos que elas representam, sua finalidade, porém, justamente não é representá-las. Fornecendo a imitação do objeto elas fazem outra coisa desse objeto. Destarte, nada fazem senão fingir imitar. O objeto é instaurado numa relação com a Coisa que é feita simultaneamente para cingir, para presentificar e para ausentificar (LACAN, 1959-1960/1986, p.176).

Assim, para Lacan, quando Vincent pinta o quadro Os sapatos, 1886 ele está presentificando os sapatos e os ausentificando ao mesmo tempo, uma vez que eles representam muito mais do que aquilo que é aparente, visto que, no lugar do não dito, do não aparente e do não presentificado, é todo o Outro que é evocado por essa ausência.

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A sublimação é um mecanismo de defesa que opera inconscientemente. Vincent, desde que se tornou artista, não mais parou de pintar. Mais do que na sublimação, sua energia estava voltada para a criação. Existe algo de criativo no sujeito, em particular no artista Vincent, de quem nos servimos como base para esse estudo. Vincent, em suas cartas, relatava que só se sentia vivo pintando. Ele respirava e exalava as telas em seu ser. Podemos indagar se a sua obra extensa e a produção maciça poderiam ser uma possível pulsão desenfreada. A pulsão traz um prazer no corpo do sujeito, é o órgão que goza. Desde seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), embora Freud ainda empregue termos como a “natureza química” da excitação, ele ressalta a parcialidade da pulsão.

Outra suposição provisória da teoria das pulsões que não podemos deixar de fazer, diz que os órgãos do corpo fornecem dois tipos de excitações, fundamentados em diferenças de natureza química. Designamos um desses tipos de excitação como aquela especificamente sexual, e o órgão atinente, como a “zona erógena” da pulsão parcial que dele procede (FREUD, 1905/2016, p.67).

Nesse mesmo texto, esclarece que a pulsão se separa da necessidade, “[...] a pulsão sexual infantil não mostra, de início, ter necessidade”. Ela também é sempre parcial, nunca irá se satisfazer por completo, porque sempre algo irá faltar ao sujeito; é perversa pois não depende do outro. Nosso artista gozava em suas criações, em seus desenhos e telas. Foi justamente no desenho, um ideal perseguido pela mãe, que era uma ótima desenhista e apresentava a todos os filhos o desenho como algo obrigatório e não como passatempo, que Vincent assumiu essa figura de ideal do eu. Ele goza com o prazer pelo tato, desenhando, pintando, para então compensar seu sofrimento. Como a pulsão não cessa, e não pode ser satisfeita completamente, ele não para de pintar.

2 MÃE – PRIMEIRO OBJETO DE AMOR

“Amo-te afim, de um calmo amor prestante, e te amo além, presente na saudade. Amo-te, enfim, com grande liberdade dentro da eternidade e a cada instante”. (Vinicius de Moraes)

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Neste capítulo será abordado um pouco sobre a mãe de Vincent e como a relação mãe e filho poderia ter influenciado Vincent em sua produção artística. Freud afirma que o primeiro objeto de amor para o sujeito é a mãe; “[...] ela continua a sê-lo na formação do complexo de Édipo e, no fundo, por toda a vida” (FREUD,1933/2014, p. 272). Todos nós, homens e mulheres, teríamos como primeiro amor a nossa mãe. Em algumas literaturas, a mãe é sagrada, elevada ao estatuto de um ser maior. A mãe de Jesus para a Igreja Católica assume a posição de Maria, a santa; quando os fiéis estão aflitos, rezam para a mãe de todos, Maria, para que ela atenda seus pedidos e orações. No dicionário da língua portuguesa encontramos o significado para mãe relacionado àquela que gerou, deu à luz ou criou um ou mais filhos ou uma Fêmea de animal que teve crias ou oferece proteção ao filhote que não é seu39. Trata-se de uma figura atrelada ao carinho, amor e cuidado. Para Lacan, a criança se encontra assujeitada ao desejo do Outro primordial, em geral a mãe ou substituto. Em psicanálise, antes mesmo de nascermos, já estamos alienados ao desejo do Outro. Na natureza, somos um dos seres mais dependentes. Uma tartaruga marinha, quando nasce, vai sozinha em direção à água, não precisando de um outro que a conduza. Um cavalo, ao nascer, encontra-se em pé na primeira hora após o nascimento; o humano não, precisa de um outro que cuide dele. Nascemos totalmente dependentes dos cuidados do outro. Freud em Projeto para uma psicologia científica (1895), na parte que se refere à experiência de satisfação, ressalta “[...] e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais” (FREUD,1895/2006, p.370). A partir disso, percebemos que o homem nasce desamparado tanto do ponto de vista físico quanto psíquico. A fragilidade de um recém-nascido frente às ameaças do mundo externo, a imaturidade biológica, coloca o bebê em total dependência do outro. Quando um recém-nascido chora e se agita porque está com fome, essa resposta motora que ele dá à fome é ineficaz para acabar com sua tensão, a conduta de chorar é ineficaz para conseguir o alimento; ele irá precisar de um outro para diminuir ou acabar com essa tensão. Esse choro pode ser interpretado pela mãe (ou seus substitutos), como “ele está com fome” ou “ele fez xixi” ou “ele quer colo”, ou seja, o alívio da tensão só ocorrerá a partir da ação específica do outro. Sozinho, o bebê não conseguirá. Esse choro é ouvido pelo outro como demanda.

39 Dicionário on-line de Português. https://www.dicio.com.br 37

A partir disso, aferimos que o desejo do sujeito é inicialmente nomeado pelo Outro, e estará sempre nessa relação. No seminário 11, Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise (1964), Lacan nos diz que o sujeito surge no campo do Outro, e como efeito de duas operações: alienação e separação. Lacan propõe o sujeito como aquele que se constitui no ato da fala dirigida ao Outro.

ALIENAÇÃO

O ser o O sentido não

(o sujeito) senso (o Outro)

É no campo do Outro que o sujeito se constitui. Na operação aqui apresentada, do lado esquerdo, temos o ser e do outro lado, temos o sentido. Devemos enfatizar que essas operações não são etapas ou fases, elas dizem respeito à constituição do sujeito. Lacan se valeu da teoria dos conjuntos: reunião e interseção para falar dessa operação. Lacan situa o ser de um lado e o sentido do outro. O sujeito tem que escolher entre o ser e o sentido. Temos o sujeito de um lado, no meio há uma interseção, o não sentido. O sujeito nasce numa relação de dependência com o Outro do significante, porque antes mesmo de nascermos somos inseridos no campo do Outro, efeito da ação da linguagem sobre o ser. Vamos imaginar o conceito de Alienação como envolvendo um vel, este seria uma escolha excludente entre duas partes, uma escolha a ser decidida pelo ser ou pelo sentido.

O vel da alienação se define por uma escolha cujas propriedades dependem do seguinte: que há, na reunião, um elemento que comporta que, qualquer que seja a escolha que se opere, há por consequência um nem um, nem outro. A escolha aí é apenas a de saber se a gente pretende guardar uma das partes, a outra desaparecendo em cada caso (LACAN, 1964/1985, p.200).

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Um exemplo que Lacan usa para demonstrar seu vel da alienação é a ameaça do assaltante quando diz: “A bolsa ou a vida!”. Se a pessoa não der a bolsa, vai acabar perdendo a vida; em seguida, ficará sem a bolsa da mesma forma, ou seja, sairá perdendo de qualquer jeito. O que nos interessa neste exemplo dado por Lacan é o sujeito e o Outro, referindo-se ao sujeito na posição de perdedor (como no exemplo citado, já que ele não teve outra escolha a não ser perder). Quando o ser humano nasce, ele já está fadado a morrer, então o sujeito já nasce perdendo. Na alienação, o que está em questão é a escolha forçada entre o ser e o sentido. O bebê, ao nascer, se escolher o ser, ou seja, escolher não se alienar no campo do Outro, não irá se constituir como sujeito, e se escolher o sentido, aceita alienar seu desejo no campo do Outro, assim pode advir como sujeito; logo, é “obrigado” a escolher o sentido perdendo o ser. Por isso, dizemos que, ao nascer, já nascemos perdendo. Isso é castração, é perda. O sujeito já nasce perdendo, pois ele já nasce perdendo algo de si mesmo, porque aponta para a perda do caminho para a morte. O sujeito desde que nasce está alienado ao Outro; antes mesmo de falarmos, somos falados pelo Outro, apontando que o desejo do sujeito é o desejo do Outro sendo o Outro que nomeia para o sujeito o seu desejo. Esse desejo do Outro “[...] é aprendido pelo sujeito naquilo que não cola, nas faltas do discurso” (LACAN, 1964/1985, p.203); encarna-se na experiência da criança ante o enigma que, para ela, representa o desejo dos pais. A falta, que na operação de alienação recaía sobre o sujeito, na separação, é colocada no Outro. A barra sobre o sujeito ($) se dá pela via da alienação, o barra do grande Outro (A) acontece na separação. Esta dialética, chamada por Lacan de “recobrimento de duas faltas”, gera o ponto de interseção do desejo do sujeito com o desejo do Outro. A separação é o modo de resposta do sujeito ao desejo do Outro com o qual ele se relaciona para se constituir como desejante. Lacan (1954/1985) salienta que, na separação, o que está em jogo é o recobrimento de duas faltas: a do sujeito e a do Outro. A separação seria uma tentativa do falante de se separar desse Outro, sair do lugar de objeto, para assumir a condição de sujeito desejante. A separação corresponde à queda do objeto a. Objeto a é o objeto essencialmente perdido, impossível de ser simbolizado, pertencendo ao real. O objeto a instaura a falta estrutural do sujeito, advinda da entrada no campo da linguagem.

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Para Lacan, é da falta que o desejo pode advir, então, este objeto passa a ser o objeto causa de desejo, pois é esta falta fundamental e instituinte que movimenta o ser humano a estar sempre desejando. Há sempre um movimento entre alienação e separação. No decorrer da vida o sujeito neurótico transita por essas posições, onde ora aliena-se ao Outro, ora separa- se do Outro; logo, para a psicanálise, o sujeito é dividido, portanto, nunca irá se individualizar por inteiro. Numa análise, o sujeito pode se desprender do desejo do Outro indo em direção ao seu próprio desejo, mas nunca irá se desalienar completamente do Outro enquanto campo dos significantes. Pois mesmo antes de nascer, somos falados no campo do Outro da linguagem.

2.1 Vincent e o Outro primordial

Anna Cornelia Carbentus era a mãe de Vincent. Oriunda de uma família convencional na Holanda, casou-se com Theodorus van Gogh em maio de 1851. Após o casamento, seguiu com o marido para Zundert, uma pequena aldeia de Brabante. Sobre o casamento, Anna relembra que “A noiva não deixava de se sentir inquieta quanto ao futuro lar”40. A mãe de nosso artista era mais velha que seu esposo; no dia do casamento ela estava com trinta e dois anos; seu esposo, com vinte e nove. Para a sociedade da época, Anna se casou tardiamente. No ano seguinte, em 30 de março de 1852, Anna deu à luz um menino que veio a falecer, seu nome era Vincent van Gogh. Após um ano, em 30 de março de 1953, Anna deu à luz outro filho, que chamou de Vincent Willem van Gogh, o mesmo nome do filho morto. Ela teve outros cinco filhos, era uma mulher dedicada a seus deveres de esposa e cristã, empenhava-se em criar os filhos seguindo o modelo da burguesia e do protestantismo. Sobre a família, disse certa vez: “Somos moldados primeiro pela família e depois pelo mundo”41. Vincent é o único filho de Anna que escapou a esse modelo infligido na família. Desde a infância, nosso artista gostava de fazer caminhadas ao ar livre, pesquisando

40 Biografia por Steven Naifeh e Gregory White Smith, p.39.

41 Biografia por Steven Naifeh e Gregory White Smith, p.45.

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a natureza. Apaixonado pela vida nos campos, fez várias amizades com filhos de camponeses, o que era de profundo desagrado de sua mãe. Vincent era considerado inquieto, esquisito, não seguidor das regras. Anna queria que seus filhos compartilhassem dos mesmos valores que ela. Tais valores incluíam religiosamente fazer caminhadas matinais, ler a bíblia e outros livros, tocar piano, desenhar. Além dessas atividades, Anna cultivava uma horta no quintal de casa, e todos os filhos tinham um pedaço de terra para cultivar e cuidar. Uma verdadeira educação refinada ao estilo de vida burguês. A leitura voraz de Vincent que o acompanhou por toda a vida pode ter sido acendida na infância, quando Anna e o esposo liam para os filhos; a leitura fazia parte do cotidiano dos Van Gogh. Aos olhos da mãe, Vincent era um filho rebelde, esquisito, inquieto e com vontades próprias. E por esses motivos, Vincent foi enviado ao colégio interno para que ele aprendesse os valores de uma sociedade. Aos 11 anos, ele é enviado ao colégio interno, o Provily, em Zeverbergen, uma região afastada de sua casa. “Quando eu tinha 11 anos, comecei a frequentar a escola e fiquei lá até os 16 anos. Na época, eu tinha que escolher uma profissão e não sabia o que escolher”42. Os pais o deixaram nesse colégio e partiram de volta para casa. Esse fato marcou nosso artista. Relembrou a cena anos mais tarde numa carta a Théo.

Era um dia de outono, e eu estava nos degraus da frente da escola do sr. Provily , observando a carruagem afastar-se onde o pai e a mamãe iam para casa. Era possível ver aquela carruagem amarela à distância na longa estrada – molhada depois da chuva, com árvores finas de ambos os lados – correndo pelos prados. O céu cinzento acima de tudo estava refletido nas poças. E cerca de quinze dias depois, eu estava de pé uma noite em um canto do playground quando vieram me dizer que alguém estava perguntando por mim, e eu soube quem era e, um momento depois, passei meus braços pelo pescoço do meu pai43.

Vincent jamais entendeu os motivos que levaram os pais a tomarem tal atitude. Nos anos que ficou no colégio interno, recebeu poucas visitas dos pais. Com

42 When I was 11 years old I started going to school and stayed there until I was 16. At that time I had to choose a profession and didn't know what to choose. Carta 84.

43 It was an autumn day and I stood on the front steps of Mr. Provily 's school, watching the carriage drive away that Pa and Ma rode home in. One could see that yellow carriage in the distance on the long road – wet after the , with thin trees on either side – running through the meadows. And around a fortnight later I was standing one evening in a corner of the playground when they came to tell me that someone was asking after me, and I knew who it was and a moment later I flung my arms round Father's neck. Carta 90.

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saudades dos pais, Vincent deixava o colégio interno e caminhava durante horas até chegar à estação de trem, mas voltava sozinho; seus pais não estavam lá, causando- lhe angústia e decepção. Após alguns anos, não se adaptou à estrutura do colégio interno, a saudade de casa aumentava e, aos 16 anos, ele abandonou o internato por conta própria e foi para a casa dos pais. Ele jamais voltou para esse colégio. De “volta ao lar”, os pais logo ficaram preocupados com o futuro de Vincent e decidiram arranjar um emprego para ele. Vincent não se sentia amado por sua mãe; em suas cartas percebemos que Anna mantinha uma relação distante. Nos lugares em que Vincent morou, não há relatos das visitas de sua mãe; embora Anna visitasse os outros filhos, Vincent não estava entre as visitas que fazia. Raramente escrevia para o filho. Em uma carta à mãe, nosso artista escreveu “Por enquanto, me agradaria muito se eu recebesse uma carta sua em um desses dias”44. Ele iniciava as cartas sempre com a frase: querida mãe. Nessas cartas observamos o carinho de Vincent por sua mãe. Numa ocasião em que nosso artista escreve tardiamente dando as felicitações pelo aniversário de sua mãe, ele termina a carta se desculpando pelo descuido “E agora eu me despeço por hoje, imploro seu perdão por não ter escrito antes, e espero enviar-lhe as pinturas que estou fazendo para você em breve”45. Ele produzia algumas telas e as enviava para a mãe, sempre à procura de uma opinião positiva ou de que sua mãe gostasse de suas pinturas. Anna não se mostrava interessada na arte de Vincent. Quando nosso artista terminou alguns estudos, os enviou para a mãe e redigiu:

Agora posso lhe informar que o que lhe prometi está inteiramente pronto – isto é, cinco dos meus estudos da paisagem e um pequeno retrato de mim mesmo e um estudo de um interior. Eu tenho medo de desapontá-la, e algumas coisas parecem sem importância e feias para você46.

44 Meanwhile, it would please me very greatly if I were to get a letter from you one of these days. Carta 733.

45 And now I bid you goodbye for today, I beg your pardon for not writing before, and I hope to send you the paintings I'm making for you before long. Carta 803.

46 Now I can inform you that what I promised you is entirely ready — that's to say five of my landscape studies and a small portrait of myself and a study of an interior. I'm afraid it will disappoint you, though, and a few things seem unimportant and ugly to you. Carta 811.

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Vincent contrariava o estilo de vida burguês tão preservado por Anna. As expectativas de seus pais eram que Vincent seguisse as normas familiares como os outros filhos. Ele não seguiu e possuía sua própria maneira de enxergar o mundo, bem diferente de seus pais. Em uma carta a Théo, Vincent expõe de maneira muito clara as divergências de pensamentos entre ele e seus pais.

Eu realmente amo papai e mamãe, mas é um sentimento muito diferente do que eu sinto por você ou por Mauve. O pai não pode ter empatia com ou se simpatizar comigo, e eu não consigo me adaptar à rotina do pai e da mãe, é muito controladora para mim – isso me sufocaria. Sempre que digo alguma coisa para o pai, tudo é apenas conversa fiada para ele, e certamente não menos para a mãe, e também acho os sermões e as ideias do pai e da mãe sobre Deus, as pessoas, a moralidade, a virtude, um absurdo quase completo47.

Essas divergências prejudicaram Vincent, ele não se sentia amado por seus pais. Em um determinado momento de sua história, rompeu com o pai. Quanto à mãe, nosso artista sempre estava à procura de uma aceitação, de se sentir amado. Ao se tornar artista e trilhar um caminho diferente do ideal familiar, sofreu. Sofreu por não conseguir responder desse lugar idealizado. Anna desprezava a arte do filho, não conseguia enxergar como uma profissão honrosa; ser artista contrariava a visão de mundo convencional que tanto prezava. Ela era uma ótima desenhista; mesmo assim, não aceitava a escolha da profissão de seu filho. Vincent fez um retrato de sua mãe e comentou sobre essa produção numa carta a Théo: “Eu estou trabalhando em um retrato de nossa mãe porque a fotografia preta e branca estava me deixando impaciente demais” 48.

47 I really do love Pa and Ma , but it's a very different feeling from what I feel for you or Mauve. Pa cannot empathize or sympathize with me, and I cannot settle in to Pa and Ma's routine, it's too constricting for me — it would suffocate me. Whenever I tell Pa anything, it's all just idle talk to him, and certainly no less so to Ma, and I also find Pa and Ma's sermons and ideas about God, people, morality, virtue, almost complete nonsense. Carta 193.

48 I'm working on a portrait of our mother because the black photograph was making me too impatient. Carta 700.

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Retrato da mãe do artista. Outubro de 1888.

Anna morreu aos 88 anos, e entre seus bens foram encontradas poucas obras e cartas que Vincent tinha lhe enviado. Ao contrário de Anna, Théo guardou todas as obras, cartas, rascunhos de Vincent. É possível notar a extensão de sua obra espalhada pelo mundo. Mesmo com as divergências entre mãe e filho, Anna teve um papel significativo na arte de Vincent. Ela ensinou todos os filhos a desenhar, era conhecida por ser uma excelente desenhista, tinha um verdadeiro talento com as mãos. Vincent pode ter aprendido a desenhar com sua mãe na infância, e partir desse primeiro encontro com a arte, começou a produzir seus desenhos anos mais tarde.

2.2 O Édipo em Freud e Lacan

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Na seção anterior, constatamos que a mãe exerce um papel central na psicanálise e, já que falamos de mãe, é essencial falarmos de Édipo, um dos pilares da teoria psicanalítica. Para o pai da psicanálise, Sigmund Freud, o Édipo é o divisor de águas entre a neurose e a psicose. Em algum momento da passagem pelo complexo de Édipo, haverá uma escolha de sujeito desejante, que é inconsciente. Se Édipo é o complexo que todas as crianças são chamadas a viver, assim foi também com nosso artista. Cada sujeito irá passar pelo Édipo de uma maneira singular, a passagem por ele nos faz emergir como sujeitos do desejo. Freud instituiu o complexo de Édipo como uma fase universal na infância do sujeito. Ele teve como base, além dos relatos de seus pacientes, a tragédia grega Édipo Rei, uma peça de Sófocles, durante a qual Édipo comete incesto com sua mãe e assassina o pai. Numa carta a Fliess, Freud escreve:

Cada pessoa da plateia foi, um dia, um Édipo em potencial na fantasia, e cada uma recua, horrorizada, diante da realização de sonho ali transplantada para a realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu estado infantil do estado atual (Carta a Fliess, 15 de outubro de 1897).

O Édipo é um conceito fundamental da psicanálise, uma estrutura que produz sentimentos de amor e ódio direcionados para a figura dos pais. Freud faz uma enunciação da problemática edípica numa carta a Fliess do dia 31 de maio de 1897. Freud tem um sonho erótico com sua filha, escreve a Fliess sobre o ocorrido, esse sonho acaba colocando em dúvida a teoria da sedução, abrindo caminho para o que viria depois como teoria da fantasia. Reclinados no divã, os pacientes de Freud narravam cenas de sedução que acreditavam ter vivido na infância com seus pais. Partindo desses relatos, Freud cria a teoria da sedução, acreditando que a neurose teria sua origem em uma sedução realmente vivida na infância. Após concluir não ser possível dizer que todos os pais seriam abusadores, ele abandona essa teoria, por ter deduzido que se tratava de uma fantasia. “Quando, contudo, fui finalmente obrigado a reconhecer que essas cenas de sedução jamais tinham ocorrido e que eram apenas fantasias que minhas pacientes haviam inventado...” (FREUD, 1925-1926/2006, p.39). Após essa descoberta, percebe-se então que os sintomas neuróticos não estavam apenas relacionados com fatos reais, eventos, mas também, sobretudo com

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fantasias absorvidas de desejos. “[...] no tocante à neurose, a realidade psíquica era de maior importância que a realidade material (FREUD, 1925-1926/2006, p.40). O Édipo é imprescindível na vida do sujeito, é a maneira pela qual nos referimos ao nosso inconsciente; o momento da constituição do sujeito se dá na cena edípica. Ele é diferente no menino e na menina, cada um irá experienciá-lo de uma maneira. O complexo de Édipo tem função normativa e interditória; ele está centrado na fantasia de castração. Esta fantasia proporciona uma resposta ao enigma da diferença anatômica entre os sexos que é colocado para criança, ou seja, a ausência ou presença de pênis. Inicialmente, essa diferença é atribuída à “amputação” de pênis na menina. No menino temos as ameaças de castração oriundas da masturbação infantil. Ele teme ser castrado pelo pai, e a partir daí surge a ameaça de castração. Na menina é diferente; é a partir da “decepção” que a menina tem ao sentir a ausência do pênis que ela entra no Édipo, a fim de buscar no pai aquilo que não tem. O percurso no menino e na menina é distinto, enquanto o menino sai do Édipo pelo encontro com o complexo de castração, a menina entra nele.

O complexo de Édipo do menino, em que ele deseja a mãe e gostaria de eliminar o pai como rival, desenvolve-se naturalmente da sua fase de sexualidade fálica. Mas a ameaça de castração o obriga a deixar essa atitude. Sob a impressão do perigo de perder o pênis, o complexo de Édipo é abandonado, reprimido, no caso mais normal é radicalmente destruído, e em severo Super-eu é colocado como seu herdeiro. O que sucede na menina é quase o contrário (FREUD, 1933/2014).

A partir daí “Enquanto o complexo de Édipo do menino sucumbe ao complexo de castração, o da menina é possibilitado e introduzido pelo complexo de castração” (FREUD, 1925/2013, p.296). Para Freud, a saída do Édipo para a menina é mais enigmática; uma possível saída seria ter um filho. A menina deslizaria num processo simbólico do pênis para o bebê. O complexo na menina culminaria em um desejo de receber do pai um bebê como presente, ou seja, dar um filho ao pai. Durante o atravessamento dessa aventura edipiana, o sujeito irá definir sua estrutura e o modo de relacionar com seu desejo. Lacan, em seu seminário As formações do inconsciente de 1957-1958, propõe que, “[...] para compreender o complexo de Édipo, devemos considerar três tempos, que tentarei esquematizar” (LACAN, 1958/1999, p.197). Ele vem com uma proposta estrutural.

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O primeiro objeto de amor de uma criança é a sua mãe. No primeiro tempo do Édipo, a criança tem uma relação com o desejo da mãe “[...] se identifica especularmente com aquilo que é objeto do desejo de sua mãe” (LACAN, 1958/1999, p.198). Esse objeto Lacan postula que é o falo. “Trata-se do falo como desejado pela mãe” (LACAN, 1958/1999, p.207). A criança imagina que é o falo do Outro. O que a criança busca como desejo de desejo é poder satisfazer o desejo da mãe. Mas a lei desta mãe é uma lei de caprichos: “eu faço com esse filho o que eu quiser”. Nessa lei de caprichos, a criança se esboça como assujeito. Existindo então três elementos: a criança, o falo e a mãe. “Nesse primeiro tempo lógico do Édipo, a mãe é para a criança um Outro absoluto, sem lei” (QUINET, 2014, p.10). O segundo tempo é marcado pela simbolização, quando a criança é capaz de simbolizar a ausência ou presença da mãe. Há uma interdição nesta lei de caprichos da mãe. O pai vem como privador da mãe. “O pai onipotente é aquele que priva” (LACAN,1958/1999, p.200). O que o pai proíbe? O pai proíbe a mãe, ele efetivamente frustra o filho da posse da mãe. O pai barra o desejo da mãe. Sobre isso Quinet ressalta:

No processo de simbolização da mãe existe uma mediação entre a criança e a mãe, que não se reproduz sozinha, sendo necessária a intervenção de um terceiro que introduza a lei de interdição, de proibição, como um não à reintegração da criança pela mãe, um não à criança como objeto de uso da mãe. É aí que aparece a instância paterna como metáfora do Pai, isto é, aquilo que no discurso da mãe representa o pai: o Nome-do-Pai (QUINET, 2014, p.12).

Esse conceito que Lacan chamou de Nome-do-Pai é um significante primordial da metáfora paterna, o significante que irá permitir que o sujeito venha se constituir como sujeito do desejo. Antes da entrada no Nome-do-Pai, Lacan se refere ao sujeito como assujeito. Mas por que pai? Por que o Nome-do-Pai e o que isso significa? Esse pai não é o pai da realidade. Esse pai só pode se fazer valer como pai morto. O pai que promulga a lei é o pai morto, é o pai morto do mito Totem e Tabu de Freud. “Para que haja alguma coisa que faz com que a lei seja fundada no pai, é preciso haver o assassinato do pai. (LACAN, 1958/1999, p.152). A literatura brinca com personagens envolvendo o assassinato do pai. No diálogo do personagem Ivan Fiódorovich, do livro Os irmãos Karamázov, Ivan, diante do juiz, levanta a pergunta “Quem não deseja a morte do pai?” e segue mais adiante “Mataram meu pai e fingem 47

estar aterrados – rangeu Ivan, com desprezo cheio de raiva. – Eles todos representam uma comédia, uns aos outros. Mentirosos! Todos desejam a morte de seus próprios pais” (DOSTOIÉVSKI, 1880/2009, p.801). Esse pai morto que promulga a lei é o pai simbólico. É o que instaura a lei para o sujeito. “Se, no primeiro tempo lógico do Édipo o Outro é a mãe, o Nome-do-Pai é o que vem barrar o Outro onipotente e absoluto, inaugurando a entrada da criança na ordem simbólica” (QUINET, 2014, p.12). O Nome-do-Pai é uma função de significante que vem separar a criança do desejo da mãe. Quem transmite o Nome-do-Pai para o filho é a mãe. Isso acontece no campo da linguagem. O que é tratado nesse tempo do Édipo é a castração simbólica. Durante o atravessamento dessa aventura edipiana, o sujeito irá definir sua estrutura e o modo de se relacionar com seu desejo. É diante da falta do Outro que o sujeito pode advir como sujeito desejante; é o encontro com a castração do Outro, esse encontro que provoca horror; o sujeito irá lidar com a sua própria falta e responderá por meio da castração simbólica. Cada sujeito irá responder de uma determinada maneira. O neurótico nega, o psicótico foraclui e o perverso desmente. Na neurose, o sujeito nega a castração através do recalque (verdrängund). Há um conflito entre o eu e o isso, e ele vai atender ao mundo externo. “No recalque, o que é negado no simbólico retorna no próprio simbólico sob a forma de sintoma: o sintoma neurótico” (QUINET, 2009, p.19). Na psicose, há uma foraclusão do Nome-do-Pai (Verwerfung). O termo “foraclusão” é tradução do termo francês forclusion utilizado no âmbito jurídico para se referir a um processo que foi prescrito. Aqui, o sujeito não passa pela castração, há uma foraclusão no simbólico. “Na psicose, o que é negado no simbólico retorna no real sob a forma de automatismo mental, cuja expressão mais evidente é a alucinação” (QUINET, 2009, p.19). Na perversão, o sujeito desmente a castração (Verleugnung). Há uma recusa, renegação da castração. “No desmentido, o que é negado é concomitantemente afirmado retornando no simbólico sob a forma de fetiche do perverso” (QUINET, 2009). Freud, em seu texto O Fetichismo (1927), elucida que o fetichista escamoteia a castração da mulher. O fetiche seria o substituto do falo da mulher (mãe), no qual a criança acredita e não deseja renunciar. Podemos pensar no fetiche como a substituição do falo materno.

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A partir desses pilares, a relação com os pais, com a castração, o Édipo e a fantasia, o sujeito irá definir sua estrutura, fazendo então a “escolha” de uma das três: neurose, psicose ou perversão. Falamos de dois tempos; no terceiro; o pai pode dar à mãe o que ela deseja e só pode dar porque o possui; se revela como aquele que tem o falo. “É a saída do complexo de Édipo. Essa saída é favorável na medida em que a identificação com o pai é feita nesse terceiro tempo, no qual ele intervém como aquele que tem o falo” (LACAN, 1958/1999, p.200). No final do complexo de Édipo, a criança se identifica com aquele que tem o falo, e essa identificação se chama Ideal do eu. O pai é internalizado no sujeito como Ideal do eu. A criança detém consigo todas as condições de se servir delas no futuro. No desfecho do complexo de Édipo, o menino abandona o objeto mãe. O amor pelo pai se transforma em identificação com aquele que tem o falo. Aquele que tem o falo é aquele que tem a lei. O falo é o objeto metonímico do desejo. A menina não faz essa identificação-pai e nem guarda o título de direito à virilidade. Ela reconhece o pai como aquele que possui o falo. “Ela, a mulher, sabe onde ele está, sabe onde deve ir buscá-lo, que é do lado do pai, e vai em direção àquele que o tem” (LACAN, 1958/1999, p.202). Dado o exposto, o complexo de Édipo tem como função normativa e interditória, não simplesmente na estrutura moral do sujeito nem em suas relações com a realidade, mas quanto à assunção de seu sexo. A virilidade e feminização são os dois termos que traduzem o que é essencialmente a função do Édipo. Falar de Édipo é introduzir como essencial a função de pai, porém foi percebido que um Édipo podia constituir-se muito bem, mesmo com a ausência de um pai. Em famílias em que o pai não está presente ou em que a criança tem apenas a mãe, o complexo de Édipo cumpre seu papel normatizante e neurotizante. Esse papel normatizante e neurotizande fez seu efeito em nosso artista? Através da leitura psicanalítica poderia Vincent em sua passagem pelo Édipo ter “escolhido” a estrutura psicótica? Não sabemos. Nosso artista responde às demandas da sociedade, ora tentando se enquadrar na realidade que lhe é apresentada, ora arranjando meios para lidar com ela. Independentemente de sua estrutura psíquica, o sofrimento não é subtraído de seu ser, mas este não lhe impede de produzir e fazer o que mais ama: pintar. Podemos supor que a criação de Vincent vem do vazio. Sobre

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esse vazio, ele cria. A criação surge como tentativa de tamponar a hemorragia da libido, fazendo uma suplência, mas a criação não faz esse uso, ela é de outra ordem, de outro saber. No lugar onde tem o ralo escoando, a libido se esvaindo, a criação vem apenas aplacar essa angústia, esse vazio. Sendo assim, a criação, para Vincent, conseguiu diminuir seu sofrimento? Sabemos que ele criava, produzia intensa e vorazmente. Em apenas dez anos, deixou um acervo de pinturas extenso. Pintou paisagens, retratou a vida noturna, as pessoas, e tinha um desejo de ser reconhecido como pintor dos girassóis. Produziu também retratos e, para aperfeiçoar essa técnica, produziu seus famosos autorretratos.

2.3 Imagem no espelho e autorretratos

Lacan trabalhou a imagem no espelho de uma forma fenomenal, definindo o estádio do espelho como formador da função do eu. Ele cria o conceito do estádio do espelho a partir da experiência de Henri Wallon (1936) como uma teoria da alteridade centrada no especular e no imaginário. Essa experiência de Wallon consistia em colocar uma criança entre os seis e dezoito meses de vida diante do espelho e observar se a criança passa a reconhecer o seu próprio corpo na imagem refletida deste. O estádio do espelho é o momento de constituição do eu imaginário, a distinção entre o eu e o outro. Também é nele que temos a demarcação e os limites do próprio corpo. O corpo do eu e o dos objetos. Para Freud, o eu não existe desde sempre, ele tem que ser constituído; o estádio do espelho apropria-se dessa perspectiva freudiana. Lacan aborda isso e pronuncia que o eu não se constitui de um amadurecimento biológico, e sim pelo intermédio de uma relação em que o eu se apresenta como precipitado. O olho é nosso primeiro aparelho de contato com o mundo exterior. Tomamos um bebê que ainda não começou a se deslocar fisicamente dado o seu limite fisiológico. Não possui mobilidade no campo do mundo externo, porque nos meses iniciais o sujeito não engatinha, nem anda, precisa do outro para se deslocar, não obstante ele já possui o primeiro aparelho de coordenação no espaço, o olho. Através deste, começa a perceber esse campo do mundo externo, passando a registrá-lo,

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organizá-lo. A leitura proposta sobre a imagem no espelho aqui retratada se refere a sujeitos que possuem visão; aqueles que não a possuem ou são deficientes, deixemos de lado. Para esses sujeitos teríamos que fazer um estudo separado. Como vimos, nosso primeiro aparelho de coordenação do espaço é o olho. A organização do olhar precede o gesto e a palavra e também é o nosso primeiro aparelho de controle e de contato com o mundo. Ele registra um momento fundamental: o estádio do espelho. Nele temos o primeiro momento em que a criança, ao olhar seu reflexo no espelho, não se reconhece; o que surge inicialmente é um outro, ela irá interagir com o que surge no espelho da mesma forma que interage com os outros objetos. É importante ressaltar que, nessa fase inicial, a criança não associa a imagem que vê no espelho à imagem dela. Inicialmente, ali é um outro. Não há uma identificação com a própria imagem. Após esse desenrolar, depois de um tempo que não é cronológico, a criança não mais interage como se a imagem no espelho fosse o outro; ela se reconhece ali. Ela tira os olhos do espelho e olha para o semelhante, que sustenta essa experiência. O que ela busca é o olhar do semelhante procurando uma confirmação de que a imagem que surge no espelho é dela própria. A imagem pertencendo à criança e não a um outro. A criança então se reconhece nessa imagem, que antes ali mostrava o outro. Eis o momento pelo qual a criança antecipa o domínio da sua unidade corporal por uma identificação com a imagem do semelhante (pode ser a mãe ou seus substitutos) e pela sua percepção da imagem no espelho. Sobre essa antecipação, Lacan elucida: A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhada na impotência motora e na dependência da amamentação que é o filhote do homem nesse estágio de infans parecer-nos-á, pois, manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na identificação da dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito (LACAN, 1949/1998, p.97).

Aqui temos uma representação da unidade corporal da criança por identificação com a imagem do outro. A criança, ao se olhar no espelho, se aliena a essa imagem. O outro é quem confirma a imagem refletida no espelho. A identificação se dá através da relação com o outro e é mediada pelo registro do imaginário. “Esse momento em que se conclui o estádio do espelho inaugura, pela identificação com a imago do semelhante” (LACAN, 1949/1998, p.101).

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O estádio do espelho indica uma experiência; o que se passa nesse campo da experiência pode ser percebido ou não, mas ele não se limita apenas a isso. Quando o outro não responde, não corresponde, o que acontece? A imagem identificatória é lugar de desamparo humano, um lugar de horror, de despersonalização. Eis o momento da emergência da angústia. Em Lacan O estádio do espelho (1949) pode ser dito como um momento importante para a compreensão da angústia. Aqui se encontra o período no qual o sujeito não possui uma representação do corpo unificado. É na entrada desse estádio que inaugura um tipo de relação com o outro, em que se toma imaginariamente o corpo do outro enquanto um corpo unificado, uma operação psíquica em que o ser humano se constitui numa identificação com seu semelhante. A identificação com o outro semelhante permite a unificação do eu, apaziguando o sofrimento e fazendo-o retornar à experiência de prazer. Com seu eu, o sujeito pode se defender do desamparo. Machado de Assis, em seu conto O espelho (1882), expõe de maneira sublime essa relação da imagem que olhamos no espelho e o que fazemos dela. O personagem do conto, Jacobina, começa a relatar para quatro cavalheiros que se encontravam com ele a seguinte história: quando Jacobina tinha vinte e cinco anos, oriundo de uma família sem recursos, ou seja, pobre, tinha sido nomeado alferes da Guarda Nacional49, e seu status mudou. Sua mãe ficou extremamente orgulhosa, sua família e amigos passaram a chamá-lo de seu alferes. Uma das tias de Jacobina, D. Marcolina, que morava a léguas de distância, chamou o sobrinho para ir até o sítio onde ela morava e pediu que ele levasse consigo a farda. E assim Jacobina o fez. Ao chegar no sítio da tia, a mesma também o chamou de seu alferes. O personagem do conto diz “Eu pedia-lhe que me chamasse de Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, brabando que não que era o senhor alferes” (ASSIS, 1882/2008, p.157). Ele tinha o melhor lugar na mesa, era querido. E, para recepcionar o sobrinho que tanto orgulhava à família, D. Marcolina colocou no quarto de Jacobina um espelho grande que era uma espécie de herança da família e fora comprado de uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de Dom João VI. Após três semanas, D.

49 A Guarda Nacional, milícia estabelecida em 1831 pela oligarquia escravocrata para se opor à influência do exército, tinha sobretudo um papel de controle social (por exemplo, nas eleições), e era altamente hierarquizada. Seus uniformes eram particularmente vistosos e imponentes. Nota de rodapé extraída do conto (ASSIS, 1882/2008, p.156). 52

Marcolina recebeu uma notícia grave, uma de suas filhas estava muito doente, quase perto da morte. Ela foi ver a filha e pediu a Jacobina que tomasse conta do sítio. Ele ficou apenas com os escravos da casa. Com o passar da noite, os escravos fugiram, e Jacobina se encontra só no sítio. “Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo, nada, ninguém, um molequinho que fosse” (ASSIS, 1882/2008, p.159). Ele passou a semana sozinho, o silêncio do sítio começou a despertar angústia e um pouco de medo em Jacobina, que só sentia um pouco de alívio no sono. “Nos sonhos, fardava-me, orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam de alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver” (ASSIS, 1882/2008, p.160). Enquanto o personagem do conto esteve sozinho no sítio, ele não olhava sequer para o espelho, evitando-o. Passaram- se oito dias, e Jacobina decide olhar para o espelho; ao olhar, não mais se reconheceu, causando-lhe angústia e desamparo. Ao se olhar no espelho, o personagem do conto elucida “Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra da sombra” (ASSIS, 1882/2008, p.161). Para suprir essa angústia, Jacobina vestiu a farda de alferes e olhou-se no espelho. Dessa vez, a imagem refletida era nítida, era o senhor alferes, “[...] o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior” (ASSIS, 1882/2008, p.161). Ele viu um almejado ser, importante para a sociedade, a partir daí, conseguindo contornar seu desamparo. Para produzir seus autorretratos, Vincent recorria a um espelho. Teria Vincent pintado seus autorretratos buscando uma forma de contornar sua angústia, seu desamparo? Nas cartas a Théo, escreve dizendo que quer tentar a arte do retrato com a esperança de ser vendável. “Pelo que escuto sobre o que as pessoas costumam vender, geralmente são retratos”50. Quando esteve morando na Antuérpia se interessou pela arte do retrato.

50 From what I hear about what people sometimes sell, it's usually portraits. Carta 566.

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Eu também só quero dizer-lhe que, dado o meu desejo de estudar a figura – se eu não conseguisse fazê-lo aqui – talvez eu possa ir mais longe em vez de voltar para a Holanda antes de trabalhar em um estúdio por um tempo. E esse lugar mais longe pode ser Paris, sem hesitação51.

Vincent faz uma proposta a Théo de montarem um estúdio “Quanto ao plano em que talvez possamos viver juntos e ter um estúdio relativamente bom onde possamos receber pessoas, se necessário, continue pensando nisso e deixe-me pensar novamente”52. Théo não responde a essa demanda de Vincent, que, inquieto por não receber a resposta, decide ir a Paris onde o irmão está morando. No final de fevereiro de 1886, então com 32 anos, envia uma carta a Théo dizendo que o espera no museu do Louvre: “Meu caro Théo, não fique chateado comigo por ter vindo de repente; refleti muito e acho que dessa maneira ganhamos tempo. Estarei no Louvre a partir do meio-dia ou mais cedo, se você quiser”53. Vincent mora inicialmente no apartamento de Théo em Montmartre em Paris. Meses depois Théo aluga um apartamento na mesma região para Vincent. Ele encontra em Paris uma nova inspiração, “Paris é Paris, só há uma Paris, e por mais dura que a vida aqui possa ser, e mesmo se ficasse ainda pior e mais dura, o ar francês mantém lúcido o espírito e faz-nos bem, infinitamente bem”54. Começa se inspirar em artistas como: Camille Pissarro, Claude Monet, Henri de Toulose-Lautrec, Edouard Manet e Georges Seurat. Com a influência do impressionismo, pinta com cores mais claras, chega a usar em alguns quadros o pontilhismo, mas sempre à procura de um estilo próprio. Tempos depois, ele adota uma paleta mais leve e pinceladas mais soltas dos impressionistas. Ao longo de sua jornada como pintor, vemos sua paleta oscilar de tons escuros para tons mais claros; ele pintava paisagens, naturezas mortas com flores, gostava de registrar a vida cotidiana das pessoas; é possível notar em seus quadros que retratava os cafés que frequentava, os cabarés e a vida noturna.

51 I also just want to tell you that, given my desire to study the figure — if I weren't to manage it here — I might perhaps go further afield rather than go back to Holland before I've worked in a studio for a while. And that further afield — might possibly be Paris, without hesitation. Carta 551.

52 As to the plan that we should perhaps live together and take a relatively good studio where we could receive people if need be, keep thinking about it, and let me think about it again too. Carta 557.

53 My dear Théo, don't be cross with me that I've come all of a sudden. I've thought about it so much and I think we'll save time this way. Will be at the Louvre from midday, or earlier if you like. Carta 567.

54 Vincent ao artista inglês Horace Mann Livens, Paris, setembro ou outubro de 1886. 54

Em Paris, ele começa a trabalhar no projeto do retrato. Durante os dois anos que Vincent viveu em Paris, ele pintou vinte e nove autorretratos, de um total de trinta e cinco. Ele queria se tornar competente na arte do retrato, acreditava que conseguiria ganhar dinheiro através desse tipo de pintura. Sabemos que nosso artista fazia uso de um espelho para produzir seus autorretratos, por isso perguntamos: ao se olhar no espelho, o que teria enxergado? Em suas falas nas cartas que deixou, nosso artista dizia que tinha sua própria maneira de enxergar o mundo. Podemos pensar o corpo como um significante. Ele poderia estar procurando uma imagem, uma borda, um contorno. Uma tentativa de encontrar no retrato algo a que ele pudesse se agarrar, diminuir seu sofrimento, sua angústia. Ao pintar a si mesmo olhando-se no espelho, esse espelho não é apenas o objeto em si, ele é um campo da experiência que possibilita ao sujeito reconhecer-se e se distinguir do outro. Estaria nosso artista em conflito com seu eu-corporal, uma impossibilidade de se reconhecer ali nesse lugar? O que a imagem no espelho poderia estar refletindo? Os 35 autorretratos não seriam apenas uma tentativa de se tornar competente na arte do retrato, mas uma busca do seu próprio eu que se fundia em aflições e desespero, num desamparo quando ele se olhava no espelho e o outro não respondia e não correspondia emergindo então sua angústia assim como no conto de Machado de Assis? Ou seus autorretratos poderiam ser uma forma de mostrar à sociedade que aquele era o Vincent: um artista, um sujeito que viveu toda a sua vida em diversidade social extrema. Os retratos seriam Vincent, com sua melancolia e sua alegria, com seu sofrimento e a dificuldade de ser reconhecido “artista”, o homem que não conseguia ser feliz no amor, mas o era na pintura. Aqueles retratos seriam ele, existindo com suas cores e manchas nas telas, com seus motivos para escolher o caminho que escolheu. Suas cartas não nos direcionam para o significado desses autorretratos, mas temos consciência de que Théo sabia da existência. Alguns de seus autorretratos ele os pintou como camponês, outros como um burguês, outros como um artista, e um como se estivesse doente. Ao observarmos esses retratos, temos sua expressão séria, intensa, seu olhar marcado, fuzilando alguma coisa. Seria o espelho? Embora tenha retratado a si mesmo de várias formas, sua expressão séria e intensa é visível em todas as telas. A maioria desses autorretratos pode ser considerada estudos, como o deste quadro que parece ter sido pintado rapidamente. A obra aqui foi pintada em tons de

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amarelo. Ele se retratou com um chapéu de palha e uma bata de pintor. O chapéu de palha era usado pelos camponeses para se proteger do sol, e ele retratou esse chapéu em outros autorretratos. Considerava-se um camponês.

Self-Portrait with Straw Hat. Vincent van Gogh, 1887.

O corpo para a psicanálise está para além do que a imagem que olhamos no espelho. Ele é imaginário, mas também simbólico e real, por isso costumamos dizer que “temos um corpo”, e não que “somos um corpo”. Ao produzir seus autorretratos, poderia Vincent estar em busca de uma imagem ideal que seu pai impusera a ele durante sua vida? Quando começou a trabalhar na arte do retrato, seu pai, Theodorus, já tinha falecido. Ele morreu no dia 26 de março de 1885, provavelmente por uma apoplexia (acidente vascular cerebral). O dia do enterro também era o aniversário de Vincent (32 anos), 30 de março de 1885. Após a morte repentina do pai, a irmã de Vincent, Anna, pediu-lhe que saísse de casa. Ele, que não era bem aceito pela família, escreve a Théo: “Existe um receio de me ter em casa que é parecido com o de ter um grande cão rude em casa. Vai entrar na sala

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com as patas molhadas – e é tão bruto. Vai incomodar toda a gente. E ladra tão, alto”55. Vincent abordou a questão da morte do pai no quadro Natureza-morta com a bíblia, em 1885. Neste, vemos a bíblia que pertencia ao pai de Vincent, representando a crença do pastor. A bíblia está aberta em Isaías 53, em que o profeta Isaías descreve a crucificação de Cristo. A vela apagada pode representar o pai morto, e o pequeno livro que toca a bíblia é um romance do escritor francês Émile Zola, La joie de vivre; este livro era de profundo desagrado do pai. Os livros parecem simbolizar as visões distintas acerca da vida dos dois. O estilo que Vincent usou nesta pintura foi inspirado por uma visita ao museu Rijksmuseum, em Amsterdã, onde teria ficado maravilhado com a técnica de Rembrandt Van Rijn (1606-1669).

Natureza-morta com a bíblia, 1885.

Com o pai morto, Vincent se dedica ao retrato. A imagem que buscamos para nós mesmos é sempre insatisfatória porque estamos perseguindo um ideal que jamais poderá ser alcançado propriamente. Vincent respondeu por um tempo às demandas de seu pai, quando foi enviado ao colégio interno para aprender a boa educação, o

55 Biografia por Aukje Vergeest, p.26. 57

emprego nas casas Goulpil & Cie, a tentativa desastrosa de ser pastor e logo depois seminarista, até que para de responder desse lugar e decidiu se tornar artista para o desalento do pai. Poderíamos dizer, a partir do exposto apresentado, que Vincent não internalizou o ideal imposto pela sua família, seguindo o que mais amava fazer: pintar. Pintou, pintou e não se cansou. Ou cansou? Até que a tristeza o levou.

3 TRISTEZA “Nossa dor vem da distância entre aquilo que somos e aquilo o que idealizamos ser”. (Friedrich Nietzsche)

Vincent relatou inúmeras vezes uma tristeza que o acompanhou em sua vida, algo de melancólico o consumia; a tristeza relatada nas cartas direcionadas à família se fixava em si mesmo, algo que ele não entende, mas leva, leva essa tristeza consigo, tenta fugir; contudo ela está enraizada em sua alma. Que tristeza era essa de que Vincent não conseguia se desvencilhar? Essa tristeza acompanhou nosso artista até seu último suspiro, aquele do qual ficou marcado sem voltar jamais. No percurso histórico, a tristeza tem seu papel preponderante, e algumas mortes eram atribuídas a ela. No senso comum e no discurso médico considerado científico, por vezes a tristeza é confundida com a depressão; no nosso modelo civilizatório, a tristeza não tem seu lugar, ela é colocada em segundo plano, o sujeito que está triste não é “aceito” pela sociedade; num mundo onde driblamos e escamoteamos o mal-estar, a tristeza atrapalha, não sendo aceita ou entendida por nós. Todo ser humano em um determinado momento se sentiu triste ou passou por situações em que a tristeza era aparente. Essa tristeza pode ser ocasionada por uma perda. A perda é inerente ao homem; diferentes laços são rompidos durante a vida, e cada um terá um jeito particular de lidar com isso. O ser humano enfrenta as perdas passando pelo luto, que surge como processo normal diante da perda de um objeto amado, algo que o sujeito tem de passar para lidar com o sofrimento, mas, afinal, que perdas são essas? Pode ser a morte de um ente querido, a perda de um emprego, perda da saúde comprometida, perda do trabalho, perda de um ideal, ou seja, perda de um objeto importante para a pessoa. A perda leva o sujeito ao luto. Algumas 58

características psíquicas são próprias do luto como: abatimento, perda de interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar e uma diminuição de toda atividade de que a pessoa se liga. A morte de um ser amado pode trazer questões sobre a própria mortalidade da pessoa enlutada. Somos seres finitos; ao nascer, já nascemos perdendo, pois somos inseridos no mundo como seres finitos. Freud, em seu texto Nossa atitude para com a morte (1915), diz que no inconsciente cada um de nós está convencido da sua própria imortalidade.

De fato, é impossível imaginar nossa própria morte e, sempre que tentamos fazê-lo, podemos perceber que ainda estamos presentes como espectadores. Por isso a escola psicanalítica pôde aventurar-se a afirmar que no fundo ninguém crê em sua própria morte (FREUD, 1915/2006, p.299).

O homem nega o aniquilamento. O eu sabe que vai morrer face ao isso que ignora. Não há representação na morte; só podemos representá-la a partir do outro que morre, e quando esse outro (pai, mãe, ente querido) morre, nos defrontamos com nossa própria mortalidade, e cada pessoa irá enfrentar a perda a seu próprio modo, com sua própria subjetividade, e o trabalho de luto será vivenciado por cada pessoa de modo singular; cada um passará pelo luto no seu próprio tempo. Se cada pessoa irá passar pelo luto no seu próprio tempo, existe um tempo cronológico para uma pessoa enlutada? Cada sociedade, cada século irá responder de uma maneira.

3.1 Luto e melancolia

Na Roma antiga, os enlutados vestiam as togas negras, que eram usadas nos períodos de luto, uma representação simbólica do uso de vestes representando o momento do luto. Na Idade Média, diante da perda de um ente querido, a família era posta em reclusão para que pudesse superar a dor da perda, para que o morto não fosse esquecido; essa reclusão era obrigatória, com o tempo passou a ser voluntária, tornando-se um direito da família para vivenciar o luto. Num tempo em que a Igreja Romana não aprovava o segundo casamento, as viúvas permaneciam de luto a vida

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inteira. Tanto na Roma Antiga como na Idade Média, as mulheres eram as representações simbólicas pela passagem do luto, eram responsáveis pelo valor da dor no luto. Em nossa sociedade atual, o luto não entra no discurso capitalista. No estatuto dos trabalhadores, há uma determinação de afastamento do trabalho por sete dias para a pessoa que perdeu algum familiar, impondo a volta ao trabalho após esse período. Questões como angústia, enfermidade e sofrimento são evitadas, sendo a morte afastada do discurso social. Se o inconsciente é atemporal e os conteúdos inconscientes são determinantes da vida psíquica, pensar em um tempo cronológico para o luto é algo mais complicado, haja vista a subjetividade de cada indivíduo. Em Luto e melancolia, Freud (1917) se pergunta em que consiste o trabalho realizado pelo luto. Em um primeiro momento, temos a escolha do objeto amado, podendo ser o amor, emprego, um ideal para o sujeito, existindo um investimento libidinal a esse objeto escolhido. Num segundo momento, temos a perda desse objeto amado; ele não existe mais, exigindo que a libido seja desligada dele; porém o ser humano não gosta de abandonar uma posição libidinal mesmo se outro objeto possa lhe ser anunciado. No luto profundo, há um afastamento da realidade e um apego ao objeto perdido; trata-se de um trabalho doloroso, de sofrimento, havendo uma dificuldade de substituição, que pode ser explicada pelo apego ao objeto perdido. Em um terceiro momento, no luto considerado normal, temos a retirada do investimento libidinal do objeto; esse desinvestimento acontece aos poucos, o investimento retorna para o eu aparecendo novamente a alegria, o interesse pelo mundo externo e a capacidade de amar. O trabalho final do luto consistiria no momento em que acontece uma retirada da libido do objeto perdido, e o eu fica livre para usufruir de novos objetos. Para Freud (1917), o trabalho de luto é um processo normal, tendo início, meio e fim. Aguarda-se que ele seja superado depois de um tempo, não sendo indicado para a clínica. Após a elaboração psíquica em que consiste o trabalho de luto, essa elaboração psíquica é feita aos poucos; a pessoa precisa de um tempo para conseguir compreender essa perda, chorando, falando, sendo necessário viver esse luto; após essa elaboração, a libido fica livre para usufruir de novos objetos, então a pessoa pode reencontrar seu próprio investimento narcisista e a capacidade de amar novamente;

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entretanto, em algumas pessoas, a perda de um objeto amado produz melancolia ao invés de luto. Se no luto, em termos psíquicos, temos um abatimento doloroso, uma perda de interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade, na melancolia temos as mesmas características do luto, exceto por uma: a diminuição da autoestima. Nas palavras de Freud,

A melancolia se caracteriza psiquicamente por um desânimo profundamente doloroso, por uma suspensão do interesse pelo mundo externo, pela perda da capacidade de amar, pela inibição da capacidade para realização [Leistung] e pelo rebaixamento da autoestima [Selbstgefühl] que se expressa em autorrecriminações e autoinsultos, até atingir a expectativa delirante de punição. Para que tal configuração se aproxime melhor do nosso entendimento, precisamos considerar que o luto apresenta esses mesmos traços, menos um: a perturbação do sentimento de autoestima. No resto, ele é o mesmo (FREUD, 1917/2016, p.100).

Inicialmente, Freud trabalhou a melancolia como um estado depressivo que poderia acometer qualquer sujeito. Ele estava estudando, pesquisando em sua clínica e, para ele, a melancolia poderia aparecer em qualquer estrutura. Esta teria algumas nuances, podendo se transformar em mania. Ele não assume a posição de uma bipolaridade, está no começo dos escritos sobre o tema, mas podemos afirmar com base na teoria psicanalítica a existência de dois polos para a melancolia. Vincent, em várias passagens em suas cartas, se intitulava um melancólico. “Em vez de me deixar levar pelo desespero, tomei o partido da melancolia ativa enquanto tinha a potência de atividade ou, em outras palavras, preferi a melancolia que espera e que aspira e que busca, àquela que embota e, estagnada, desespera”56. O que seria essa melancolia. Poderia ser um estado de tristeza? Uma depressão ou uma estrutura melancólica? Não farei nesta dissertação uma psicanálise silvestre. Sabemos que o diagnóstico em psicanálise serve como direção do tratamento para a clínica. A escolha em estudar o artista se apoia na presença da linguagem e no método psicanalítico. Vincent não se reclinou no divã, não entrou em análise. Sua obra, suas cartas, os estudos sobre sua vida serviram como diretrizes para essa pesquisa.

56 Carta 133.

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Sabemos que ele teve dificuldade de manter seus laços sociais, de responder às demandas do Outro; entretanto, não é suficiente para determinar ou diagnosticar um sujeito como psicótico. Após sua morte, existiram vários diagnósticos. Em vida, Vincent recebeu o diagnóstico de epilepsia com propensões a surtos depressivos. Freud, em seu texto Luto e Melancolia (1917), começa a desenvolver o conceito de melancolia. Ele não esclarece como uma estrutura psicótica, apenas delimita o que é propriamente do luto e o que seria da melancolia; ele estava construindo o conceito. Atualmente em psicanálise, podemos afirmar que a melancolia é uma variante da estrutura psicótica, bem diferente da esquizofrenia e paranoia, ainda assim, fazendo parte da psicose. Vincent sofreu em seu âmbito solitário, e a sociedade o classificou como incompreensível, não cumpridor das regras sociais. Era considerado de temperamento difícil e um homem fracassado que não seguia as normas sociais. Mesmo imerso na cultura da pintura, todo o seu talento como artista era esfumaçado pelo seu modo de estar no mundo, de viver a vida, mas o que poderia ser esse “jeito” de lidar com a vida? Ao longo de sua vida, nosso artista alternava entre estados de tristezas chamados por ele de melancolia, mas, enquanto pintava, essa tristeza parecia não existir. “Eu não me sinto abatido enquanto estou pintando, mas, a longo prazo, os períodos no meio às vezes podem ser muito deprimentes”57. Seus estados de tristeza não lhe eram favoráveis no cotidiano e os prejudicavam. Forçado pela sociedade e família, ele tentou em vão se adaptar em vários empregos. Após várias tentativas de conseguir se manter em um trabalho e com dificuldades de adaptação nos ambientes em que frequentava, acabou sendo estigmatizado como fracassado por não se sustentar em nenhum emprego. No ano de 1878, então com vinte cinco anos, ele pediu ajuda ao pai dizendo que queria ser evangelista e nada mais. Desenvolveu uma ideia de que seria feliz se “seguisse o caminho”; por vezes, ele usava essa frase em suas cartas. Seu pai, Theodorus, decidiu ajudá-lo. Após as tentativas do pai, Vincent não conseguiu ser pastor, porém disse ao pai que queria “seguir o caminho”. O pai tentou mais uma vez, pediu ajuda ao irmão Cent, aos amigos e enviou o filho para Bruxelas, no subúrbio em

57 I don't feel dejected as long as I'm painting, but in the long run he periods in between can sometimes be very depressing. Carta 548.

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Laeken, onde existia um curso para formar evangelistas e assim iniciar os estudos. Para se formar evangelista, o pretendente ao cargo precisaria cumprir três anos e alguns requisitos. Pelo histórico de Vincent, o curso mostrou-se conflituoso no começo; o diretor decidiu entrevistá-lo e se sentiu estupefato com sua inteligência, tendo a conversa se desenrolado em inglês, francês e flamengo. Depois desse acontecimento, a direção decidiu então que cumpriria três meses de experiência antes da incorporação ao curso. O candidato a evangelista teria que ser portador de algumas virtudes como submissão e brandura. A direção do curso decidiu enviá-lo a outro lugar, a fim de que o candidato se adaptasse e se adequasse aos preceitos de um evangelista. Era outono de 1878. A direção pediu a Vincent para ir a Borinage, na Bélgica. Se nosso artista conseguisse cumprir os requisitos impostos, lhe forneceriam um cargo de evangelista. Vincent partiu para Borinage, uma região pequena de minas de carvão. A população vivia do trabalho das minas, uma região pobre. Nosso artista reclamou que não há pinturas, nem museus, nem galerias, sentiu-se decepcionado, mas decidiu continuar. Escreveu a Théo no dia 26 de dezembro de 1878: “[...] você deve saber que não há quadros no Borinage, que aqui, em geral, não se tem a menor ideia do que é um quadro”58. É desta região mineira que temos os primeiros quadros de Vincent. Ele se alojou num quarto na casa de um padeiro, da família Denis, começou então sua peregrinação de evangelista: pregava para as pessoas em público, visitava os doentes, cortava sua roupa em tiras para fazer curativos nas pessoas feridas que se machucavam nas minas de carvão. A direção do curso, entusiasmada com sua performance, lhe conferiu o cargo de evangelista. Enfim, Vincent tinha o que tanto desejava: dedicou-se totalmente aos outros, deixou de morar no quarto onde estava alojado e alugou uma cabana59, partindo do propósito de que deveria viver como os mineiros vivem. Seu estado piorou, decidiu não tomar mais banho, não amarrava os sapatos, indo para o extremo. Decidiu fazer uma visita às minas de carvão, desceu em uma mina e ficou perplexo com as condições dos trabalhadores e das crianças localizados a setecentos metros de profundidade, trabalhando em condições sub-

58 [...] you surely understand that there are no paintings here in the Borinage, that in general they haven't the slightest idea of what a painting is. Carta 149.

59 As cabanas eram moradias dos mineiros.

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humanas. A partir desse encontro com as condições em que os trabalhadores eram submetidos, empenhou-se a ajudar todas as criaturas, comprou queijo para os camundongos e comeu pão seco, confeccionou roupas com papel para si. A região o considerava como um louco, ele era motivo de piadas entre os moradores. Com essa má reputação, o curso decidiu expulsá-lo. O que esse cargo representava para o nosso artista? Vincent não conseguiu suportar esse lugar. As ocupações o convocavam a uma posição que ele não sustentava; aceitou a decisão tomada pelo curso e, um belo dia, partiu a pé por dezenas de quilômetros com alguns desenhos de mineiros debaixo do braço para ver o pastor Pietersen, que era um amante da pintura. O pastor o recebeu, avaliou seus desenhos e ficou com um, aconselhando-o a continuar na arte e a trabalhar como evangelista por conta própria. A partir desse encontro, nosso artista se lançou na pintura de uma maneira que jamais irá retroceder. O tempo em que ele viveu no Borinage serviu de inspiração para seus primeiros desenhos. Théo se mantinha afastado do irmão, não concordava com o estilo de vida e os rumos que Vincent seguiu, pois o aconselhara a ter uma profissão que o sustentasse. Com a divergência de opiniões entre os irmãos, as cartas cessaram por um período, e Vincent escreveu a Théo dizendo: “Até certo ponto você se tornou um estranho para mim e eu também talvez o seja para você mais do que você imagina; talvez seja melhor para nós dois não continuarmos assim”60. Eles ficam nove meses sem se corresponder. Este foi um momento solitário e de sofrimento para o nosso artista, pois mantinha um elo muito forte com o irmão. O pai, Theodorus, preocupado com o filho, que estava vivendo como um mendigo, decidiu visitá-lo e o convenceu a deixar a cabana onde estava em condições precárias. Alugou um quarto em uma pensão para o filho e disse que ele poderia usar a cabana como ateliê de pintura. Mesmo com todas as mudanças que seu pai o persuadiu a fazer, um pensamento se fixou em Vincent: ele faria arte para os pobres, “Sendo um operário, meu lugar é na classe operária, nela quero viver e me enraizar cada vez mais”61. Ele evocava sofrimentos de fome, frio e fadiga. Seria uma forma de punir-se por não corresponder aos ideais familiares?

60 Carta 133.

61 Biografia de Van Gogh por David Haziot, p.82. 64

Sabemos que, na melancolia, não há um investimento no próprio corpo; o corpo é como um dejeto. Uma mulher, ao procurar tratamento, relatou para a analista a sua história. Tenho 28 anos; há dez anos fui incumbida de uma tristeza que não sei como apareceu, mas ela não vai embora, não me deixa. Sou casada há 5 anos, e meu esposo me obriga a tomar banho, a comer, a levantar e a caminhar em casa. Não sinto vontade alguma de fazer nada. Os finais de semana que meu esposo trabalha viajando, eu não levanto da cama, não tomo banho, não me alimento. Ele chega em casa, e a primeira coisa que diz é: “essa casa fede, fede a podre, fede à morte”. Essa mulher estava desprovida de qualquer investimento em si mesmo, não havia uma libido sendo investida. A tristeza que os melancólicos nos falam Lacan situa como dor de existir. A tristeza é um sentimento humano, não valorizado em nossa sociedade, mas na melancolia ela é “[...] expressão da dor própria à existência” (QUINET,1997, p.11). Essa dor, que abate o sujeito, paralisando-o, fazendo sucumbir, uma dor que morde a vida. Há uma via de saída, a psicanálise, mas o sujeito precisa se confrontar com sua dor, a ferida de sua existência e, com isso, “[...] fazer da falta que dói, a falta constitutiva do sujeito” (QUINET, 1997, p.11).

3.2 O objeto perdido

Sabemos com Freud que a perda de um objeto pode produzir melancolia ao invés de luto. Mas a que tipo de objeto Freud está se referindo? Em seu texto Luto e melancolia (1917), Freud se refere ao objeto como uma pessoa ou uma abstração, podendo ser um ideal, a pátria, enfim, algo importante para o sujeito. Tanto na melancolia, como no luto, há uma perda do objeto amado, porém na melancolia, o sujeito sabe que perdeu alguma coisa, mas não sabe o que perdeu. Embora existam alguns casos em que a melancolia seja desencadeada após a morte de um ente querido, não há simbolização da perda, “[...] uma vez que essa perda desvela o furo correspondente à foraclusão do Nome-do-Pai” (QUINET,2002, p.133). Em Freud vemos que:

Houve uma escolha de objeto, uma ligação da libido a uma determinada pessoa; em consequência de uma ofensa real ou de uma decepção causada pela pessoa amada, sobreveio um abalo dessa relação de objeto [Objektbeziehung]. O resultado não foi o normal, de uma retirada da libido 65

desse objeto e o seu deslocamento para um novo, mas foi outro, que parece exigir várias condições para a sua realização. O investimento de objeto provou ser pouco resistente, foi suspenso, porém a libido livre não se deslocou para outro objeto, mas se recolheu no Eu (FREUD, 1917/2016, p.106-107).

Na melancolia, o objeto perdido (morto) é introjetado no eu, a sombra cai sobre a pessoa, o investimento que antes era no objeto (fora da pessoa) continua no objeto fazendo sombra. “A sombra do objeto caiu sobre o Eu” (FREUD, 1917/2016, p.107). O investimento continua no objeto perdido que foi introjetado. A libido do sujeito fica impedida de investir em outros objetos, pois ela fica ligada ao objeto perdido que o sujeito introjetou. O objeto perdido, morto, se transforma em perda no seu eu. Para a psicanálise, a melancolia é um tipo clínico de estrutura da psicose; o neurótico tem recurso da função paterna, podendo fazer valer o Pai para se sustentar durante o atravessamento do trabalho de luto, enquanto, na psicose, não temos essa sustentação, o que torna impossível esse atravessamento. A melancolia se constitui de dois estados extremos: a depressão e a mania. O sujeito fica oscilando entre o polo depressivo e o maníaco. No polo depressivo, temos a pulsão de morte (Tânatos); a pessoa está identificada ao objeto perdido, à morte e à destruição. Nessa etapa, a pessoa se autorrecrimina. O doente nos descreve seu Eu como indigno, incapaz e desprezível; ele se recrimina e insulta-se e espera ser rejeitado e castigado. Ele se humilha diante de qualquer pessoa e sente pesar por seus familiares estarem ligados a uma pessoa tão indigna (Freud, 1917/2016, p.102-103).

O quadro é completado com insônia, uma recusa a se alimentar, e a tomar banho, o que desvela a falha narcísica correspondente à ausência de “eu ideal”. Nas palavras de Vincent a Théo,

Você pode não ser capaz de entender, mas é verdade – quando recebo dinheiro, a minha maior fome, mesmo que eu esteja em jejum, não é de comida, mas é ainda mais forte de pintura –, e logo começo a procurar modelos e continuo até que acabe62.

62 You might not be able to understand it, but it's true — when I receive money, my greatest hunger, even if I've fasted, isn't for food, but is even stronger for painting — and I set out hunting models right away, and I carry on until it's gone. Carta 550.

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Vincent pagava as modelos para pintar e se abstinha de comer, e isso prejudicou sua saúde a ponto de perder bastante peso e até alguns de seus dentes. “Estou vendo como colocar meus dentes. Perdi ou estou perdendo pelo menos 10 dentes. E isso é demais e muito desagradável; além disso, parece que tenho mais de 40 anos, o que me deixa em muita desvantagem”63. Tentando passar alguma normalidade para seu irmão Théo sobre seu estado de saúde, Vincent escreve “ Eu sei que Delacroix disse que descobriu a pintura quando ele não tinha dentes e nem fôlego. Mas também sei que ele se cuidou a partir daquele momento. E, sem a sua amante, ele teria morrido 10 anos antes...”64 Na estrutura melancólica, temos o polo depressivo e o maníaco. No polo maníaco, temos pulsão de vida (Eros). Essa pulsão de vida continua sendo investida no objeto introjetado. Aqui temos a euforia de Eros, uma excitação eufórica do humor e agitação motora. As oscilações entre esses dois polos visam a restituir a uma certa normalidade o funcionamento psíquico. Dessa forma, para a psicanálise, o paciente pode estar num polo maníaco ou depressivo com sintomas aparentemente opostos, porém encontra-se na mesma estrutura clínica da psicose. A psicanálise oferece um tratamento para o sujeito que sofre; quando falamos em tratamento, não estamos nos referindo a um tratamento medicamentoso e sim a um tratamento pela fala. Tampouco estamos nos referindo a um tratamento que leve à cura da melancolia; o sujeito não pode se curar de sua estrutura. Houve um tempo em que Freud acreditava que a neurose poderia ser curada, mas, ao longo de sua teoria, percebemos que as estruturas clínicas fazem parte da constituição do sujeito, uma escolha inconsciente feita a partir da passagem pelo Édipo. Na clínica da psicanálise, podemos encontrar dificuldades no diagnóstico diferencial entre o luto e a melancolia, já que reações de luto frente às perdas são ocorrências naturais na vida humana, e as características do luto normal se assemelham muito com as da melancolia. Na psicanálise, o diagnóstico não se dá

63 I'm seeing about getting my teeth put right again. I have no fewer than 10 teeth that I've either lost or am losing. And that's too many and too disagreeable, and besides it makes me look as though I'm over 40, which puts me at too much of a disadvantage. Carta 557.

64 I know that Delacroix said that he had discovered painting when he had neither teeth nor breath left. But I also know that he took care of himself from that moment on. And that without his mistress he would have died 10 years earlier... Carta 557.

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pelo fenômeno como na psiquiatria contemporânea; por isso, é possível um tratamento sem a medicalização maciça que nossa sociedade tanto contempla. O diagnóstico serve como uma direção do tratamento viabilizando uma abertura de escuta para aquele que sofre. A psiquiatria acaba englobando várias doenças mentais relacionadas à psicose – a melancolia fazendo parte do conjunto classificado como transtorno Bipolar. Segundo o DSM-IV (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), “os transtornos de Humor” incluem: o transtorno Bipolar I, que é caracterizado por um ou mais episódios maníacos ou mistos, e o Transtorno Bipolar II, que é caracterizado por um ou mais episódios depressivos maiores. A psicanálise não trabalha com esse sistema classificatório, que é segregatório. Ela não esbarra nesse modelo vigente. A psicanálise trabalha com uma via diferente, de outra ordem, uma via pela escuta. Como vimos, no luto, o sujeito sabe o que perdeu, já na melancolia o sujeito sabe que perdeu alguma coisa, mas não sabe o que perdeu, dificultando que o sujeito tenha um investimento libidinal. Isso porque o objeto morto fica fazendo sombra no eu. Sabemos com Freud, que o narcisismo é importante para a formação do eu, este se constituindo como o “grande reservatório da libido”. O narcisismo é fundamental para a constituição do sujeito do inconsciente.

3.3 Narcisismo e a melancolia

Comecemos pelo mito de Narciso. Narciso era filho do rio Cefiso e da Ninfa Liríope. Seu nome está relacionado com a flor de narciso ou narcissus, a qual floresce na primavera, e cujas cores variam entre o amarelo e o branco. Na mitologia grega, era considerada uma flor bonita e inútil; tinha perfume hipnótico capaz de induzir o sono, era considerada estéril e venenosa, e falecia depois de uma vida curta. Nos contos gregos, essas flores eram plantadas em volta do túmulo representando o sono profundo (a morte). A ninfa Liríope deu à luz um filho que iria chamar de Narciso. Este nasceu com uma beleza incomum. Na cultura grega, a beleza fora do comum sempre assustava, pois, competir com os deuses em beleza era apontado como afronta. Sua mãe, Liríope, preocupada com a situação do filho, decidiu consultar o velho cego Tirésias,

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que possuía o dom da adivinhação. Liríope perguntou ao profeta se Narciso viveria muitos anos. Tirésias respondeu que ele viveria muitos anos com uma condição: “se ele não se visse”. Na juventude de Narciso, várias jovens e ninfas estavam apaixonadas por ele, mas o jovem sempre se mostrava indiferente, permanecia focado em si mesmo, por vezes dando a impressão de estar enamorado de si mesmo. As ninfas, irritadas com o desprezo de Narciso, pediam vingança a Nêmesis que puniu Narciso a “amar um amor impossível”. Narciso seguiu com sua vida e, em um belo dia de verão quente, o jovem, com muita sede, se aproximou da fonte Téspias para beber água. Ao se debruçar sobre as águas, viu sua imagem refletida no espelho d’água. Ao se olhar, deslumbrou-se e se apaixonou pela própria imagem, não conseguindo mais se afastar dali. Ao procurarem o corpo de Narciso, encontraram apenas uma flor amarela: Eis aí o Narciso. Em consequência do mito de Narciso, o termo “narcisismo” denota a forma como o indivíduo trata o próprio corpo, amando-o, desejando-o como se este fosse um objeto sexual. A palavra narcisista muitas vezes é usada coloquialmente. Referimo-nos a ela para denotar uma pessoa que só pensa em si mesma, egoísta ou preocupada com seu próprio ser. Usamos tal palavra em nosso discurso do cotidiano e quase sempre voltada para o sujeito que está preocupado consigo mesmo. É verdade que nos valemos dos mitos para dar sentido e explicar o mundo que nos cerca. Os mitos servem para melhorar a relação entre os homens; eles trazem um direcionamento, e por vezes encontramos respostas nos mitos que não conseguiríamos por conta própria, ou seja, os mitos têm seu valor na sociedade. Em seu estudo sobre o narcisismo, Freud aponta a relação do autoerotismo como um estágio essencial para o advento do narcisismo. Ele traz o narcisismo como um “complemento libidinal” (FREUD, 1914/2013, p.15), como uma forma de investimento libidinal no próprio sujeito. O autoerotismo, as pulsões autoeróticas estão desde o início com o sujeito, mas o eu não, ele não existe desde o começo, só após o surgimento do narcisismo, o eu é investido libidinalmente. “O Eu não existe desde o começo no indivíduo; o Eu tem que ser desenvolvido” (FREUD, 1914/2013, p.18-19). Em um primeiro momento, temos a libido do eu. A libido é investida no eu, e esse investimento é importante para o sujeito; é preciso que ele se ame, que invista em si mesmo. Depois que atinge uma certa quantidade, a libido é investida nos

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objetos. Essa “[...] necessidade surge quando o investimento do eu com libido superou uma determinada medida” (FREUD, 1914/2013, p.29). Esse investimento nos objetos externos é importante para a constituição do sujeito em sociedade, os laços sociais são formados a partir dos investimentos que o sujeito faz no mundo externo. As escolhas de trabalho, amor, filhos, estudos, isso é possível, pois a libido se desliga do eu e se liga a esses objetos. No indivíduo “sadio”, ela não é desligada do eu totalmente, porque é preciso de um mínimo de narcisismo para viver. Quando a libido é toda projetada no objeto, temos um empobrecimento libidinal do eu e, não havendo um equilíbrio, o sujeito certamente adoecerá. Na fase depressiva da melancolia, o sujeito perde todo o investimento libidinal do eu, vai perdendo o interesse por si mesmo e pelo mundo externo, e as coisas e pessoas vão se tornando vazias e sem sentido. Vincent experienciou por vezes a falta de interesse por si mesmo, ou pelo mundo; não podemos afirmar que ele poderia estar numa fase depressiva da melancolia. Em suas palavras, ele diz “Eu mesmo – eu sinto que estou perdendo o desejo de casar e ter filhos, e às vezes eu sou bastante melancólico para quem tem 35 anos, quando eu deveria me sentir de forma diferente. E às vezes eu culpo essa maldita pintura”65. Uma paciente, ao lembrar seu estado depressivo, disse “ficava dias sem tomar banho, não me arrumava, não conseguia levantar da cama, não penteava os cabelos, não me alimentava, parecia que eu estava morta. Me comportava como morta”. Em Uma introdução ao Narcisismo, Freud (1914) indaga sobre o sofrimento humano: É algo sabido, e tomamos por evidente, que alguém que sofre de dor orgânica e más sensações abandona o interesse pelas coisas do mundo externo, [...] ele também retira o interesse libidinal de seus objetos amorosos, que cessa de amar enquanto sofre (FREUD, 1914/2013, p.26).

Em seus períodos de grande sofrimento e angústia, Vincent acabava abandonando o interesse pelo mundo externo. Quando se encontrava em seu estado de tristeza, era difícil para o artista continuar pintando, mas por vezes ele dizia que a pintura o fazia bem nesses momentos. “Diríamos então que o doente retira seus investimentos libidinais de volta para o eu, enviando-os novamente para fora depois

65 Myself — I feel I'm losing the desire for marriage and children, and at times I'm quite melancholy to be like that at 35 when I ought to feel quite differently. And sometimes I blame this damned painting. Carta 572. 70

de curar-se” (FREUD, 1914/2013, p.26). A libido e o interesse do eu andam sempre juntos, inseparáveis, e para Freud, têm o mesmo destino. O investimento no corpo não acontece, o amor próprio parece estar desaparecido, inexistente, não há um investimento em si mesmo. “[...] é o empobrecimento do eu que resulta dos enormes investimentos libidinais dele retirados” (FREUD, 1914/2013, p.46). Na melancolia, o sujeito parece estar incapacitado, há uma inexistência de forças para abandonar o objeto. Quando o objeto é perdido, o sujeito experimenta desprazer e ódio; quando o objeto se aproxima, o sujeito experimenta prazer e amor. Existe então uma ambivalência, que torna o abandono pelo objeto mais doloroso e difícil. Como já dissemos, tanto no luto quanto na melancolia, há uma perda, porém, na melancolia, essa perda se transforma em perda do eu. Na melancolia, o eu é tratado como o objeto morto, um dejeto, introjetado no sujeito. Uma das conclusões que Freud ressalta é que essa identificação (narcísica) com o objeto perdido só foi feita, porque, em um primeiro momento, a escolha de objeto foi conforme o tipo narcísico. Freud aponta dois caminhos para a escolha de objeto, e que uma pessoa ama segundo o tipo narcísico ou de apoio. “Conforme o tipo narcísico: o que ela mesma é (a si mesma); o que ela mesma foi; o que ela mesma gostaria de ser; a pessoa que foi parte dela mesma. Conforme o tipo de apoio: a mulher nutriz; o homem protetor” (FREUD, 1914/2013, p.36). Embora a melancolia seja um dos tipos clínicos da psicose, ela tem um desenrolar diferente da esquizofrenia e da paranoia. A incorporação do objeto morto seria a única saída que o eu encontrou para que não entrasse no total aniquilamento?

3.4 O incidente da orelha cortada

Sabemos que Vincent sofreu e a esse sofrimento deu nomes como: loucura artística, tristeza, melancolia. Perda, dor e sofrimento fazem parte do ser humano, somos seres que em algum momento de nossas vidas, experienciamos esses sentimentos, seja devido a alguma morte de um ente querido, ou à perda de um trabalho, a decepções amorosas, ou até à perda da saúde. Não podemos nos livrar de tais experiências. Essas fazem parte para que possamos de certa forma nos

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constituirmos, humanos. Cada pessoa irá experienciar e reagir de uma forma. Meditação, votos de silêncio, pessoas partindo em busca de um princípio de nirvana e uma homeostase que jamais irá ser alcançada, pois somos seres pulsionais e não instituais. E a pulsão não cessa jamais. Nosso artista sempre foi considerado esquisito, quieto e diferente das outras pessoas que o cercavam. Ele tinha um jeito particular de lidar com o discurso social, não que esse jeito tivesse errado, mas as pessoas a sua volta tinham uma maneira diferente de responder às demandas da sociedade. Na família de Vincent, seus pais esperavam que ele tivesse outro destino que não a pintura. As aflições vividas em casa por nosso artista eram envoltas em sua decisão de se tornar artista e não responder às demandas da família. Nosso artista tentou, contudo nem sempre conseguiu responder desse lugar imposto por seus pais. Ele também tentou a sorte no amor, e a sorte parecia não estar a seu favor, muitas vezes o decepcionando. Tinha um ideal de formar uma família; em seus relatos, dizia ter dificuldades em se relacionar com uma mulher e manter esse compromisso, uma vez que não possuía emprego, ou dinheiro. Ele não era oriundo de uma família rica. Sua família vinha de boa educação, acreditava que uma boa educação iria preparar o sujeito para as adversidades que o mundo oferecesse, porém isso não aconteceu com nosso artista. Enfrentou obstáculos financeiros, dificuldades em se manter em empregos e também, como ele mesmo mencionava, não tinha sorte no amor. Vincent relatou em suas cartas sobre suas decepções amorosas. Após um amor não correspondido por Kee Vos-Striker, e depois a tentativa de uma vida ao lado Sien ter fracassado, ele começou a mostrar sinais de instabilidade mental. Romperam- se propensos surtos depressivos e às vezes acessos de raiva. Esses surtos depressivos consistiam em nosso artista não se lembrar do que ocorria antes de ser tomado por uma angústia muito forte, como se fossem ataques de ansiedade, concomitante com pensamentos depreciativos acerca de si mesmo. Para explicar esses surtos e acessos de raiva, acreditava-se que ele teria se infectado por sífilis em suas idas a bordeis. Antes do advento dos antibióticos, a sífilis poderia levar a um comprometimento mental. Outras suposições de que ele poderia ter sido intoxicado por chumbo (as tintas que ele usava tinham metal tóxico) poderiam de certa forma agravar seu estado de saúde. Várias suposições tentando encontrar respostas para uma possível doença.

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A partir de alguns trechos de suas cartas, trabalharemos com a fala do artista acerca de seu estado mental – sua doença que não foi esclarecida, tornando-se uma incógnita para nós. Apenas podemos pesquisar, levantar suposições, mas sem chegar ao certo à verdade máxima, se é que tal verdade existe. Quando Vincent decide se tornar artista aos 27 anos, ele torna-se financeiramente dependente de seu irmão Théo. Um acordo foi estabelecido entre eles: Vincent produziria os quadros, enviaria pelos correios, e Théo ficaria incumbido na venda deles. Devemos lembrar que Théo trabalhava nas casas Goulpil & Cie como um comerciante de arte, adquiria as obras, era responsável por organizar tais obras para posteriormente serem vendidas ou expostas. Este era o acordo estabelecido entre os dois irmãos. Nosso artista acreditou em sua pintura, foi fiel a seus ideais. Ele foi conhecido por pintar, pintar e pintar, como se fundisse em sua própria arte. Vincent tinha uma produção maciça, uma certa fúria ao pintar. Em suas palavras numa carta a Théo, ele disse: “Você sabe que eu sou mutável no meu trabalho, e essa fúria de pintar pomares não vai durar para sempre, tenho uma fome constante para o trabalho”66. Ele tinha uma produção consistente e feroz pela pintura. Essa fúria ao pintar poderia ser uma possível posição maníaca ou apenas um amor por seu talento? Era intenso, fugaz e isso refletia em seu trabalho. Após uma temporada malsucedida em Paris, onde obteve um vício em absinto, a bebida musa dos artistas visionários, Vincent acabou ficando doente, decidiu deixar Paris e ir para Arles no Sul França, acreditando que o ar fresco dessa cidade Provençal pudesse fazê-lo bem, já que Paris o tinha decepcionado. Sobre Paris, ele falou: “Bem, eu gostaria de conseguir essa autoconfiança que faz uma pessoa feliz, alegre e animada em todos os momentos. Isso pode acontecer mais facilmente no país ou numa cidade pequena do que naquele forno parisiense”67. Ele foi a Arles com um sonho: queria criar uma comunidade de artistas do Sul. Em Arles, foi sua temporada mais entusiasmada. Nessa cidade provinciana, Vincent acreditou ter conseguido a paz e a calma para pintar. Começou a pintar temas da natureza, flores, pomares, paisagens, que aos olhos dele, os deslumbravam e o

66 You know I'm changeable in my work, and this rage to paint orchards won't last forever. I have a constant fever for work. Carta 594.

67 Well, I'd like to be able to attain that self-confidence that makes a person happy, cheerful and lively at all times. That can happen much more easily in the country or a small town than in that Parisian furnace. Carta 691. 73

enriqueciam. Sua sensibilidade com tudo que o cerca é tamanha que é possível senti- la em suas telas. Em Arles, a cor amarela predominava nas telas; ele pintou cerca de 200 quadros e 100 desenhos. Após o período em que Vincent sucumbiu a uma tristeza profunda, conseguiu através da pintura se sustentar nessa realidade que se apresentava como difícil e hostil. Em Arles, tem um desejo e acredita que dessa vez conseguirá ser bem-sucedido através da pintura. Um lugar ideal para nosso artista ser feliz, mas por trás das paisagens lindas e floridas, Arles escondia uma sociedade que se mostraria intolerante após algum tempo. Enquanto aproveitava o ar fresco de Arles, Vincent esperava ardentemente por seu amigo . Nosso artista estava feliz e acreditava que conseguiria criar a comunidade de artistas do Sul. Ele alugou, em maio de 1888, quatro cômodos na casa amarela, na Place Lamartine em Arles, a cor amarela na fachada da casa foi escolhida pelo próprio artista. “Ah, bem, hoje aluguei a ala direita deste prédio, que contém 4 quartos, ou mais precisamente, dois, com duas pequenas salas”68. A casa amarela tinha um significado especial para Vincent, pois ele queria chamar outros artistas, criar um novo tipo de arte. Fazer da casa um estúdio onde os artistas poderiam trabalhar juntos, como uma sociedade. Acreditava que os artistas unidos teriam chances de suas obras serem reconhecidas e vendidas. Essa comunidade também pouparia os artistas de ficarem a mercê dos marchands (responsáveis pelas vendas e negociações das obras). Estariam nessa empreitada artistas como Gauguin, Émile Bernard (amigo de Vincent) e ele mesmo. Théo era marchand e foi responsável pelas obras do irmão por toda a vida; mesmo o irmão sendo marchand, Vincent teve essa ideia de criar uma comunidade, uma sociedade para que os artistas ficassem independentes dos marchands. Morando em sua casinha amarela, ele pintou o famoso quadro A casa amarela. Hoje essa casa não existe mais, foi destruída durante a Segunda Guerra Mundial. O quadro se encontra no Museu Van Gogh em Amsterdã.

68 Ah, well — today I rented the right-hand wing of this building, which contains 4 rooms, or more precisely, two, with two little rooms. Carta 602.

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A Casa Amarela, setembro de 1888.

Neste quadro, ele usou as cores complementares. Sem o azul do céu, o telhado laranja não iria sobressair. Usou pinceladas mais espessas, que, para Gauguin, era um desperdício de tinta. A casa perto da árvore era o restaurante onde Vincent fazia suas refeições. Podemos observar ao fundo uma locomotiva. Em Arles, pintou também uma série de girassóis, uma forma de recepcionar o amigo Gauguin e decorar a casa amarela. Em uma carta a Émile Bernard, comentou sobre a decoração.

Estou pensando em decorar meu estúdio com meia dúzia de pinturas de girassóis. Uma decoração em que os amarelos ásperos ou quebrados explodirão contra vários fundos azuis, do Pérsico Veronese ao azul real, emoldurado com finas tiras pintadas em chumbo laranja. Tipos de efeitos de vitrais de uma igreja gótica69.

69 I'm thinking of decorating my studio with half a dozen paintings of Sunflowers. A decoration in which harsh or broken yellows will burst against various blue backgrounds, from the palest Veronese to royal blue, framed with thin laths painted in orange lead. Sorts of effects of stained-glass windows of a Gothic church. Carta 665. 75

Vincent escreve a Gauguin o chamando para viver na casa amarela com ele. As despesas de Gauguin seriam pagas com seu trabalho, os quadros seriam enviados a Théo como pagamento pela estadia de Gauguin em Arles. Théo não se mostrou muito contente com essa ideia e escreveu a Vincent sobre essa situação: “[...] pode ser ainda mais difícil ter o suficiente para viverem os dois juntos do que um sozinho”70. Théo tinha reais motivos para não gostar dessa “empreitada” de Vincent. Gauguin não pagaria em dinheiro sua estadia na casa amarela, e sim em quadros, porém Théo não conseguia achar vendedores para as obras, e os gastos de Gauguin iriam recair apenas sobre Théo. Gauguin escreveu a Vincent sobre a oferta de ir a Arles: “Gostaria muito de alcançar nossos objetivos, ou seja, ir à Provença. Se não fosse por esse maldito dinheiro, minhas malas logo estariam prontas”71. Por volta do dia 23 de outubro de 1888, Gauguin chegou a Arles no sul da França. Vincent ficou muito entusiasmado com a chegada do amigo. “Por um tempo, tive a leve sensação de que eu ia ficar doente, mas a chegada de Gauguin me tirou isso da cabeça, e eu tenho certeza de que vai passar”72. Ao longo de suas cartas, nosso artista se queixava de se sentir doente, talvez fosse fruto de seu estilo de vida, tinha uma má alimentação, não cumpria horários de sono, isso poderia ter contribuído para seus adoecimentos. Vincent sentia-se doente, como relatou na carta acima descrita, mas, após a chegada do amigo, ele teve uma melhora. Entusiasmado, escreveu a Théo sobre o ocorrido “Como você soube pelo meu telegrama, Gauguin chegou em boa saúde. Ele até me deu a impressão de estar em melhor forma do que eu”73. Nosso artista pintou a cadeira de Gauguin para fazer uma homenagem ao amigo que ele considerava um mestre e detentor de todo o saber. Os dois tinham uma relação de amor e ódio, mas, de certa forma, se entendiam. Vincent não relatava as desavenças que teve com Gauguin nas cartas que escrevia para seu irmão Théo.

70 […] that it may be even more difficult for two together than one alone to have enough to live on. Carta 713.

71 I would very much like it if we were to achieve our aims, that is, my coming to Provence. If it weren't for this damned money, my bags would soon be packed. Carta 646.

72 For a time I had the slight feeling that I was going to be ill, but Gauguin 's arrival has so taken my mind off it that I'm sure it will pass. Carta 712.

73 As you learned from my telegram, Gauguin arrived in good health. He even gave me the impression of being in better shape than me. Carta 712. 76

Sabemos dos relatos da vida dos dois através da fala de Gauguin, que só revelou posteriormente os detalhes da temporada em que viveu em Arles. E fez tais revelações quando estava doente e perto da morte. De fato, Gauguin era um homem de temperamento violento, e a relação dos dois era intensa. As adversidades aumentaram, e os dois amigos tiveram uma briga que culminaria no famoso episódio da orelha cortada. Em dezembro de 1888, Vincent teve uma discussão com Gauguin na casa amarela e, num acesso de raiva, cortou a orelha e a entregou a uma prostituta num bordel. O acontecimento virou notícia no jornal local. O relatório do "incidente da orelha" apareceu na primeira página do Forum Républicain em 30 de dezembro de 1888. A imagem abaixo foi retirada do site do Museu Van Gogh.

Um fato nos chama atenção. Algumas semanas depois do episódio da orelha cortada, Théo anunciou o noivado com Johanna Bonger. O casamento estava marcado para o dia 18 de abril de 1889. Vincent foi para um hospital em Arles tratar do ferimento e foi atendido pelo doutor Félix Rey, médico assistente do hospital. Théo ficou muito preocupado com as condições em que Vincent se encontrou. O doutor decidiu então escrever para Théo sobre o estado de saúde de Vincent a fim de tranquilizá-lo.

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Devo acrescentar algumas palavras à carta do seu irmão para tranquilizá-lo em relação a ele. Fico contente em dizer-lhe que minhas previsões foram confirmadas, e que essa excitação excessiva foi apenas fugaz. Eu acredito firmemente que ele terá se recuperado dentro de alguns dias. Eu queria muito que ele mesmo lhe escrevesse, para lhe dar uma melhor noção de sua condição. Eu o levei até meu escritório para falar um pouco. Isso vai me distrair e fazê-lo bem. Meus mais sinceros cumprimentos74.

Numa carta a Théo, o doutor Félix Rey diz que tentou saber os motivos pelos quais levaram Vincent a mutilar a própria orelha. “Quando tentei fazê-lo falar sobre o motivo que o levou a cortar a orelha, ele respondeu que era um assunto puramente pessoal”75.Vincent não relata em suas cartas o que levou à tal mutilação do próprio corpo; ele guardou esses motivos apenas para si. Depois desse incidente, Gauguin foi a Paris. Relatou sobre o ocorrido anos mais tarde em um romance autobiográfico, escrito entre 1901 e 1902, Antes e Depois, afirmando que Vincent o ameaçou com uma navalha. Preocupado com seu irmão, Théo decidiu ir para Arles, escreveu para sua noiva Johanna Bonger, relatou o ocorrido e se indagou quanto à sanidade de seu irmão.

Encontrei Vincent no hospital em Arles. As pessoas ao seu redor perceberam por sua agitação que nos últimos dias ele estava mostrando sintomas daquela doença mais terrível, da loucura, e um ataque de fièvre chaude, quando ele se machucou com uma faca, foi a razão pela qual ele foi levado para hospital. Ele ficará louco? Os médicos pensam que é possível, mas ainda não dizem com certeza76.

Esse ataque de fiévre chaude é um termo em francês; ele faz referência a uma febre quente. Febre acompanhada de delírio e agitação extrema. Esse acontecimento em cortar a própria orelha o prejudicou em sua vida profissional tornando-se uma tragédia o qual ficou estigmatizado como um artista louco.

74 I shall add a few words to your brother's letter to reassure you, in my turn, on his account. I am happy to tell you that my predictions have been borne out, and that this over-excitement was only fleeting. I strongly believe that he will have recovered in a few days' time. I very much wanted him to write to you himself, to give you a better account of his condition. I have had him brought down to my office to talk a little. It will entertain me and do him good. With my sincerest regards. Carta 728.

75 Félix Rey a Théo, 30 de dezembro de 1888. A carta mencionada encontra-se no site do museu Van Gogh.

76 I found Vincent in the hospital in Arles. The people around him realized from his agitation that for the past few days he had been showing symptoms of that most dreadful illness, of madness, and an attack of fièvre chaude, when he injured himself with a knife, was the reason he was taken to hospital. Will he remain insane? The doctors think it possible, but daren’t yet say for certain”. Theo van Gogh to Jo Bonger, 28 December 1888. Retirado do site do museu Van Gogh. 78

Uma curiosidade acerca desse episódio. Em 1930, o Doutor Ray fez um desenho da orelha cortada de Vincent para o autor Irving Stone, que estava trabalhando num livro sobre a vida de Vincent. O doutor escreveu que a orelha foi cortada com uma navalha. Logo adiante, segue a carta do doutor Félix Rey a Irving Stone com desenhos da orelha mutilada de Vincent. A carta encontra-se disponível no site do Museu Van Gogh.

O doutor prescreveu como tratamento para Vincent brometo de potássio (um sedativo que foi muito utilizado como tratamento no século XIX). Ele passou duas semanas no hospital para se tratar e, quando recebeu alta, nosso artista não era o mesmo. A sociedade de Arles o classificou como louco varrido. O pintor dos girassóis agora era visto como uma ameaça. O estigma de louco tinha sido colocado, e a perseguição começou. Em algumas passagens de suas cartas, após o incidente da orelha, Vincent se queixou de uma possível alucinação ou delírio de que estava sendo perseguido. Mas a sociedade em Arles o perseguiu, os moradores exigiram que providências fossem tomadas, assinaram uma petição para que Vincent fosse tratado de sua doença. E nosso artista escreveu a Théo: “No entanto, as alucinações insuportáveis pararam por enquanto, reduzindo-se a um simples pesadelo por causa

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do uso de brometo de potássio, penso eu”77. Fala de seu sofrimento, dá o nome de loucura artística. “E, na verdade, nossa loucura artística que o resto de nós tem, não digo que eu especialmente não tenha sido atingido em cheio por isso”78. No livro Antes e depois (1901-1902), Gauguin menciona que no fim de sua estadia com Vincent irromperam brigas, e o relacionamento dos dois mudou. Narrou que em uma noite os dois foram a um café em Arles e Vincent, após beber um absinto, teria jogado no rosto de Gauguin um copo. Nas palavras de Gauguin, “Aparei o golpe e, pegando-o forte pelo braço, saí do café, atravessei a praça Victor-Hugo e, alguns minutos depois, Vincent achava-se em sua cama, onde em alguns segundos dormiu para se levantar somente na manhã seguinte”(GAUGUIN, 1901-1902/2011, posição 300)79. No dia seguinte, Vincent não se lembrava do que tinha ocorrido “Meu caro Gauguin, tenho uma vaga lembrança de que ontem à noite o ofendi” (GAUGUIN,1901- 1902/ 2011, posição 309). Na mesma noite, após o jantar, Gauguin foi caminhar pelas ruas de Arles quando foi surpreendido por Vincent andando atrás dele em passos rápidos.

Virei-me no exato momento em que Vincent se precipitava sobre mim com uma navalha aberta na mão. Meu olhar nesse momento deve ter sido muito poderoso, pois ele parou e, baixando a cabeça, retomou correndo o caminho de casa (GAUGUIN, 1901-1902/2011, posição 309).

Segundo as descrições de Gauguin, Vincent teria ido à casa amarela e então cortado a orelha. Não sabemos a veracidade dos fatos, se tal situação aconteceu da maneira que Gauguin narrou em seu livro. Os motivos que levaram nosso artista a se mutilar foram enterrados com ele; só temos acesso através das falas de seus amigos, parentes, médicos. Vincent jamais escreveu sobre o episódio da orelha cortada; tais motivos o guardou apenas para si. Por causa desse acontecimento tão escandaloso para uma cidade provinciana, o pintor de Arles agora estava sendo intimado a se tratar. A sociedade o estigmatizou

77 However, the unbearable hallucinations have stopped for now, reducing themselves to a simple nightmare on account of taking potassium bromide, I think. Carta 743.

78 And really, our artistic madness which all the rest of us have, I don't say that I especially haven't been struck to the marrow by it. Carta 743.

79 Esta citação foi retirada do e-book Antes e Depois, e a contagem de páginas é feita por posições. 80

como louco que precisava ser tratado, que precisava ser banido; o louco é perigoso e precisa ser enclausurado. O sonho de criar uma comunidade de artistas do Sul, a amizade com Gauguin estava se desvaindo na noite estrelada de Arles. Na beleza dessa cidade, suas paisagens lindas, o modo como Vincent retratou a vida em Arles, a alegria e o entusiasmo foram se esvanecendo e dando lugar a um sombrio e angustiante destino: a internação. Os moradores de Arles se mostraram intolerantes e assinaram uma petição solicitando que Vincent deixasse a casa amarela e procurasse um tratamento. Trinta residentes assinaram uma petição para que Vincent fosse admitido em alguma instituição. Nessa petição, os moradores declaravam que o artista estava perturbado mentalmente e gerava perigo e medo para os residentes. Diante das acusações, nosso artista procurou o Reverendo Frédéric Salles e pediu conselhos sobre esse acontecimento, se ele deveria ou não se vonluntariar em uma instituição para doentes mentais. Notamos que Vincent procurou um Reverendo e lhe pediu conselhos. O pai de Vincent era pastor, cresceu sob a fé cristã e, num momento de angústia e perseguição, ele foi ao encontro dessa mesma fé mantida por seu pai. O Reverendo Frédéric Salles, em uma carta a Théo do dia 19 de abril de 1889, escreveu: “Vincent me pediu para fazer as perguntas necessárias para que ele fosse admitido em algum lugar e também para escrever a você a este respeito"80. Théo se mostrou inquieto e preocupado diante dessa possível internação. Ele estava em Paris desfrutando o casamento. O Reverendo se mostrou atencioso e preocupado com nosso artista. Em toda essa história ensandecida de Arles querer a internação de Vincent, o Reverendo pareceu ser um meio-termo tentando acalmar os ânimos dos residentes antes que algo ficasse ainda pior. Num domingo à noite, no dia 5 de maio de 1889, o Reverendo escreveu a Vincent:

Tendo que ir embora amanhã e estando ocupado às terças-feiras, coloco-me à sua disposição para acompanhá-lo a St-Rémy na quarta-feira. Nós sairíamos de trem às 8h51, se for bom para você. Já tendo visto o Sr. Peyron, é apropriado que eu mesmo o acompanhe81.

80 Vincent asked me to make the necessary enquiries for him to be admitted somewhere and also to write to you in this regard’, Salles informed Theo in a letter of 19 April 1889. Retirado do site do Museu Van Gogh.

81 Having to go away tomorrow and being busy on Tuesdays, I place myself at your disposal to accompany you to St-Rémy on Wednesday. We would leave by the 8.51 train, if that suits you. Having already seen Mr. Peyron, it is appropriate that I should accompany you myself. Carta 769. 81

A imagem acima é a petição dos residentes locais em Arles, pouco antes do dia 27 de fevereiro de 1889, e está no Archives communales d’Arles. A petição está disponível no Site do Museu Van Gogh. O chefe de polícia Joseph d'Ornano interrogou quatro residentes locais a respeito da petição. A partir das declarações que obteve, concluiu que Vincent estava sofrendo de insanidade mental e representava perigo para a sociedade, ou seja, nosso artista deveria se comprometer em uma instituição. Com o passar dos dias,

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essa admissão tão involuntária não se tornou necessária. Vincent foi ao asilo Saint- Paul-de-Mausole se internar. Seu sonho em criar uma comunidade de artistas do Sul, a alegria com que ele falava da casa amarela chamada carinhosamente por ele de “minha casinha amarela”, o desejo de ser um artista reconhecido, seus projetos sobre a arte estavam se dissipando por uma sociedade que, por medo devido à ignorância, o julgou a partir de um ato só. Vincent viveu por quase três anos no Sul da França, dois anos em Arles e um ano em Saint-Remy. Toda a região da Provence, dispõe apenas de um quadro do artista, Wagons de chemin de fer à Arles de 1888. No sul da França, ele teve uma produção numerosa. No passado, um dos tratamentos viáveis para um homem que sofresse de alguma doença mental, ou como no caso de Vincent, após um atentado contra si mesmo, não oferecendo perigo para as outras pessoas a sua volta, apenas para si, era o enclausuramento – o tratamento que parecia satisfazer a euforia de uma sociedade. O enclausuramento da loucura, essa deveria estar petrificada e escondida entre quatro paredes. O estigma de louco foi colocado em nosso artista, seu brilhantismo, o entusiasmo e sua genialidade foram abafados por esse estigma. Quanta perseguição e sofrimento! Nosso artista, antes do episódio em cortar a própria orelha, não representava perigo para ninguém. Em seguida a esse episódio desgraçado, seu rumo mudou. Um internamento em hospital psiquiátrico poderia alterar a essência de Vincent? O escritor Antonin Artaud tinha um profundo desagrado quanto a métodos utilizados pela medicina psiquiátrica, dada a sua própria história de internamento. Sobre a doença de Vincent, Artaud colocou a psiquiatria como inimigo do artista e de todo sujeito que a psiquiatria categoriza como louco. E disse: “Em todo psiquiatra vivo, já eu o disse, há um repugnante e sórdido atavismo que lhe faz ver em cada artista, em cada gênio à sua frente, um inimigo” (ARTAUD, 1947/2004, p.26).

3.5 Asilo para alienados em Saint-Paul-de-Mausole

Vincent jamais seria o mesmo novamente; sua saúde mental foi comprometida quando se mutilou. O internamento em Saint-Paul-de-Mausole em Saint-Rémy-de- Provence era de profundo desagrado de Vincent; ele não compreendia os motivos pelos quais Arles o queria num hospital psiquiátrico. Embora tenha se voluntariado a

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ir ao hospital, até o último momento achou que seria possível reverter tal decisão, porém não dependia mais dele. E escreveu para Théo angustiado: “Além disso, eu disse de uma vez por todas, é melhor haver uma decisão a ser tomada no momento em que você e o Sr. Salles decidirem por mim. E fique bem ciente, não vou recusar nada, nem mesmo ir para St-Rémy”82. Conversas com o Reverendo Frédéric Salles e com Théo fizeram Vincent sustentar uma decisão: “Sua amável carta me fez bem hoje, minha palavra – então vamos para St-Rémy”83. Vincent arrumou as malas e decidiu então partir. Nosso artista não estava feliz. Antes da decisão de se internar, cogitou a possibilidade de servir o exército. Ele nunca se mostrou interessado no ofício de ser um soldado, porém preferiu se alistar por cinco anos a ter que ir ao asilo tratar de uma possível doença mental. Quando tratou do ferimento da orelha cortada em Arles, ele foi diagnosticado epiléptico. Sobre o diagnóstico de epilepsia, refutou: “[...] pelo que ouvi dizer, há 50 mil epilépticos na França, dos quais apenas 4.000 estão confinados, e isso, portanto, não é muito”84. Tentou em vão se afirmar como um homem saudável, e que não existia motivos para a população acreditar que ele fosse perigoso. É notório em suas cartas que ele não desejava se internar, lamentava que a situação em Arles tenha se tornado um tormento tanto para ele como para os moradores. O Reverendo acompanhou Vincent nesse momento tão delicado. Ao escrever para Théo, Vincent viu no Reverendo Frédéric Salles uma pessoa importante nesse novo destino: “Você está certo em dizer que o Sr. Salles foi perfeito em tudo isso, e eu sou muito grato a ele”85. No dia 8 de maio de 1889, Vincent chegou com o Reverendo Salles ao Asilo Saint-Paul-de-Mausole. Era um hospital psiquiátrico localizado em Saint-Rémy-de- Provence, um antigo monastério, destinado a tratar pacientes com problemas mentais. Vincent ficou do dia 8 de maio de 1889 até 16 de maio de 1890.

82 Besides, I've said once and for all, better if there's a decision to be made at present that you and Mr Salles decide for me. And be well aware, I won't refuse anything, not even going to St-Rémy. Carta 767.

83 Your kind letter did me good today, my word – let's go for St-Rémy then. Carta 768.

84 […] although from what I've heard tell there are 50 thousand epileptics in France, of whom only 4,000 are confined, and that it's thus not so extraordinary. Carta 767.

85 You're quite right to say that Mr. Salles has been perfect in all of this, I'm much obliged to him. Carta 772.

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O diretor responsável pelo asilo era Dr. Peyron. Ele escutou Vincent com relação aos motivos que o levaram até ali. Nosso artista revelou casos de epilepsia na família materna. Além do relato de Vincent, o diretor do asilo recebeu uma carta do dr. Upar, do hospital em Arles, onde nosso artista foi admitido após o incidente da orelha. Sua entrada no asilo aconteceu sem surpresas; Théo tinha se encarregado de tudo. Nosso artista teria dois cômodos: um como quarto e outro como Ateliê. Ao chegar ao asilo com Reverendo Salles, poderia Vincent ter remetido um acontecimento de sua infância, onde seu pai, também pastor, o levou a um internato, o Provily, quando nosso artista tinha apenas 11 anos? Nosso artista trouxe essa cena em algumas de suas cartas. Eis a cena. Enquanto seu pai se distanciava em uma carruagem amarela, Vincent permanecia em pé na porta do internato, o Provily. Por algum momento, teve a esperança de que seu pai pudesse voltar e desistir de tal atitude. Ele jamais entendeu os motivos que levaram os pais a interná-lo. Nosso artista tinha seus próprios motivos, acreditava que seus pais não o queriam mais como filho. A cena da carruagem amarela indo embora, essa cor amarela perpetuou em suas telas, tão vívida em seus quadros. Algumas semanas se passaram. Vincent permaneceu em seu quarto em Saint- Rémy. Seu quarto era modesto, apenas uma janela pequena com grades indicando que existia um mundo fora daquele hospital. Ao olhar pela janela, era possível ver a natureza, essa que nosso artista tanto amava. Os muros do Hospital pareciam grandes demais, as janelas pequenas demais. Entre as vozes perturbadas das pessoas tidas ali como loucas, o artista escreveu: “Eu queria te dizer que eu acho que fiz bem em vir aqui: primeiro, ao ver a realidade da vida dos loucos ou diversos doidos nesse zoológico, estou perdendo o temor vago, o medo da coisa”86. Comparou o ambiente em que se encontrava com um zoológico. Mesmo nesse ambiente áspero, nosso artista tentava dar significado para aquele momento. Ao perceber a existência de solidariedade e compaixão entre os pacientes comenta “E apesar de ouvirmos

86 I wanted to tell you that I think I've done well to come here, first, in seeing the reality of the life of the diverse mad or cracked people in this menagerie, I'm losing the vague dread, the fear of the thing. Carta 772.

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continuamente gritos e uivos como se fossem animais de um zoológico, as pessoas aqui se conhecem muito bem e se ajudam quando sofrem crises”87. Quando foi admitido no asilo, havia certas regras que os pacientes deveriam seguir, entre elas os horários das refeições, banhos e tratamentos. A rotina em um hospital psiquiátrico é diferente. Existem horários a serem cumpridos, o dia é cronometrado e os pacientes têm que se submeter a esse novo estilo de viver. Não era permitido deixar o asilo para passear ou outras coisas. Nos primeiros meses, Vincent não podia sair do quarto; podemos notar que alguns de seus quadros dizem muito a respeito desse período. Em algumas de suas obras pintadas no asilo, observamos muitas paisagens sem céu. Passados alguns meses, foi permitido que ele saísse do quarto; um guarda o acompanhava quando pintava no exterior do asilo. Nosso artista adota um trabalho com paisagens mais livres e seus famosos redemoinhos. Enquanto esteve internado, pintou um dos seus quadros mais famosos – A noite estrelada, junho de 1889. Nele, o artista coloca a cidade de Saint-Rémy-de- Provence, sob o céu estrelado.

87 And although one continually hears shouts and terrible howls as though of the animals in a menagerie, despite this the people here know each other very well, and help each other when they suffer crises. Carta 772.

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Mesmo confinado, algumas de suas telas são livres e coloridas. Ele adotou uma técnica diferente, abandonou um pouco as cores complementares que tanto usou em Arles. Théo gostou do resultado da nova técnica adotada pelo irmão, todavia ficou preocupado com esse novo modo de pintar de Vincent. Os resultados foram positivos. Théo estava em Paris fazendo a divulgação do trabalho do irmão. Ele convidava algumas pessoas para irem ao seu apartamento, onde se encontravam as obras de Vincent. Alguns artistas como Camille Pissarro, Isaacson e Meyer de Hann disseram que gostaram do que viram. Nesse mesmo período, Johanna escreveu a Vincent dizendo estar grávida.

Vou começar contando uma grande notícia, que tem nos ocupado muito ultimamente. É que, neste inverno, por volta de fevereiro provavelmente, nós vamos ter um bebê, um garotinho bonito, a quem chamaremos de Vincent, se você concordar em ser o padrinho88.

Vincent se alegrou com a notícia, mas declarou que não queria ser o padrinho estando no asilo e que seria melhor dar o nome do pai à criança e não o dele. Nessa mesma carta anunciou que iria a Arles pegar algumas telas que deixara lá. Essas telas seriam enviadas para Théo. Ao voltar de Arles, nosso artista teve uma piora em sua saúde. Ficou mais de um mês sem escrever para o irmão. Théo se mostrou preocupado e exigiu que Vincent lhe desse notícias. Nosso artista escreveu para acalentar o irmão “Essa nova crise, meu querido irmão, veio até a mim nos campos e quando eu estava no meio da pintura, num dia de ventania”89. E continua “Por muitos dias, fiquei absolutamente perturbado, como em Arles, ou ainda pior, e presumo que essas crises ocorrerão no futuro; é ABOMINÁVEL. Eu não consigo comer há 4 dias, pois minha garganta está inchada”90. Durante as crises de Vincent, o doutor Peyron proibia que nosso artista pintasse. Para o médico, a pintura de certa forma o lançava nesse estado. Nosso artista escreveu a Théo pedindo que este interviesse diante da

88 I'm going to begin by telling you a great piece of news which has greatly occupied us lately – it is that this winter, around February probably, we're hoping to have a baby, a pretty little boy – whom we'll call Vincent if you'll consent to be his godfather. Carta 786.

89 This new crisis, my dear brother, came upon me in the fields, and when I was in the middle of painting on a windy day. Carta 797.

90 For many days I've been absolutely distraught, as in Arles, just as much if not worse, and it's to be presumed that these crises will recur in the future, it is ABOMINABLE. I haven't been able to eat for 4 days, as my throat is swollen. Carta 797.

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proibição imposta pelo doutor. “Talvez você faça bem em escrever para o Dr. Peyron e dizer que trabalhar em minhas pinturas é necessário para a minha recuperação”91. Suas crises não são detalhadas nas cartas que envia a Théo, e isso poderia ser uma forma de defesa, pois, se fosse provado que sua situação estivesse piorando, o tempo de internação poderia se estender. Podemos supor que Vincent não queria preocupar Théo sobre seu estado de saúde. Após as crises, nosso artista não conseguia se lembrar delas, tendo uma vaga lembrança do ocorrido. Quando esses sintomas diminuíam, ele era tomado por uma depressão profunda. Quais motivos teriam levado Vincent a essa crise tão forte e longa? Seria a notícia do nascimento de seu sobrinho que se chamaria Vincent? Ou sua viagem a Arles, a cidade que o estigmatizou como louco exigindo sua internação? Ele seguiria nesse asilo perpassando por crises após crises, oscilando entre a saúde e a doença. Entre essas idas e vindas, ele se “libertava” na pintura. Em meio ao confinamento, ele acha na pintura algo que o pudesse libertar. “Além disso, é de se esperar que, se eu me recuperar mais cedo ou mais tarde, até certo ponto, será porque me curei trabalhando, o que fortalece a vontade e, consequentemente, permite que essas fraquezas mentais diminuam”92. Em paralelo a essas crises, um paradoxo, Théo estava recebendo vários visitantes em seu apartamento que iam apreciar a pintura de Vincent. Enquanto nosso artista estava confinado no hospital psiquiátrico, suas telas eram admiradas em Paris. Um renomado do secretário dos XX em Bruxelas, Octave Maus, pergunta a Théo se Vincent participaria da futura exposição de 1889. Os XX ou vintistas eram um grupo de artistas que mantinham um salão em Bruxelas e defendiam a pintura moderna. Vincent estava sendo solicitado para uma exposição oficial. Um ano se passou, e Vincent começou a ter receios de voltar a vida em sociedade, pois temia não ser capaz de produzir e fazer o que mais amava. Ele se sentia receoso. A instituição domou o homem? O internamento em Saint-Rémy teria mudado a essência de nosso artista? O tratamento visando uma cura e as

91 You'll perhaps do well to write a line to Dr. Peyron to say that working on my paintings is quite necessary to me for my recovery. Carta 797.

92 Besides, it's to be hoped that if I recover sooner or later, up to a certain point it'll be because I've cured myself by working, which fortifies the will and consequently allows these mental weaknesses less hold. Carta 798.

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expectativas de não ter mais crises assombravam a mente de nosso artista. Seus medos, seus receios e a inconstância de sua saúde estavam prejudicando os pensamentos de Vincent em relação à pintura. “O trabalho pode ser mais difícil para mim quando eu estiver em liberdade novamente”93, disse ele numa carta à mãe sobre sua saída do asilo. Sua trajetória no asilo é a de um homem “condenado à loucura”; ele recebeu o estigma de louco em Arles. Ao se internar para tratar dessa “loucura”, Vincent mudou, sofreu nesse asilo para alienados. Suas cartas nos mostram a realidade em que viviam esses internos. Nosso artista não discorreu sobre o tipo de tratamento usado com os pacientes; sabemos que esse século foi marcado por tratamentos invasivos usados nas instituições psiquiátricas, tais como: choques elétricos, injeções para acalmar os ânimos dos doentes, confinamento em salas separadas quando um paciente era considerado rebelde, enfim, nenhum tratamento terapêutico que pudesse dar voz ao paciente. Freud foi brilhante ao dar “voz” ao sujeito. A psicanálise oferece uma escuta para aquele que sofre. No caso Anna O, Freud revela “[...] e por fim, seus distúrbios foram removidos pela fala” (FREUD, 1893-1895/2006, p. 70). Freud percebe que a hipnose não é suficiente para remover os sintomas e começa a trabalhar com a associação livre, que consiste no fato de o paciente falar livremente. Somente através da fala é que poderíamos ter acesso ao inconsciente, este se manifestando nos atos falhos, chistes e sonhos. Sendo assim, a escuta e a fala assumem um lugar central na psicanálise. No hospital psiquiátrico, a voz de Vincent e a de todos os doentes mentais era abafada. Podemos supor que ele se fazia ouvir em suas criações, em sua escrita, porque foi através de Théo que nosso artista teve um tratamento diferenciado; por ser artista, pôde levar seu cavalete, suas telas, e a ele foi permitido pintar. Ao entrar nesse asilo para doentes mentais, Vincent acreditava que poderia se curar. Certa vez, nomeou seu sofrimento de loucura artística, outras vezes dizia ser como uma tristeza sem fim. Ao entrar no asilo, seu objetivo era melhorar e voltar à vida em sociedade. Mas, ao fim de um ano, nosso artista relatou em suas cartas um medo de voltar à vida em sociedade; chegou a levantar hipóteses de ficar no asilo em um tempo

93 The work may possibly be more difficult for me, though, when I'm at liberty again. Carta 855.

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indeterminado. Estava com medo de receber alta. Quando Arles pediu seu tratamento, Vincent cogitou a possibilidade de servir ao Exército, tamanha a aversão em se internar. Agora ele se mostrava relutante quanto à sua saída. Sobre a permanência no asilo, nosso artista disse: “E é por isso que – mesmo se eu visitasse você por um tempo – o melhor ainda pode ser continuar o trabalho aqui. Eu não sei – e também é bom para mim –, mas não devemos nos apressar com a mudança”94. Nas cartas seguintes, Théo deixou Vincent decidir se ele deveria deixar o asilo ou não. Théo acreditava que seu irmão estava melhor, não existindo mais a necessidade de internação. Nas palavras de Théo a Vincent:

Eu não ouso tomar uma decisão, e só você, com o conselho do Dr. Peyron, (Théophile Zacharie Auguste Peyron, diretor do asilo em Saint- Rémy) pode assumir essa responsabilidade sobre si mesmo. Sua ida para Arles foi absolutamente desastrosa para você; a viagem não lhe fará mal desta vez? Se eu fosse você, agiria inteiramente de acordo com o ponto de vista do Sr. Peyron e, de qualquer forma, no dia em que você decidir vir para cá, você deve estar absolutamente acompanhado por alguém em quem confie durante toda a estadia. O cansaço da jornada e a sensação de redescobrir lugares que você conheceu podem influenciar sua doença. Se possível, gostaria muito de ter você conosco pelo menos por um tempo, e se você fizer de tudo para cuidar de si mesmo, é muito provável que tudo corra bem95.

Após as cartas do irmão, Vincent sentiu-se encorajado a deixar o asilo; ele ficou um pouco receoso de ter novas crises, mas a vontade e decisão estavam tomadas, e ele deixaria Saint-Rémy. Vincent disse a Théo: “Eu gostaria de aproveitar este período para me mudar – eu quero mudar de qualquer forma, meu desejo de sair daqui agora é absoluto”96. Mais adiante escreve: “[...] eu esperei pacientemente por mais de um ano, eu preciso de ar, eu me sinto prejudicado pelo tédio e pela dor”97. Nessa mesma

94 And that's why – even if I came to you for a while – the best policy might still be to continue the work here.I don't know – and either is good to me – but we mustn't hurry to move. Carta 854.

95 I daren't take a decision, and only you, with Dr. Peyron 's advice, can take this responsibility upon yourself. Your journey to Arles was absolutely disastrous for you, will the travelling not do you harm this time? If I were you I'd act entirely in accordance with Mr. Peyron's view, and in any event on the day you've decided to come here you absolutely must be accompanied during the entire journey by someone you trust. The fatigue of the journey and the sensation of rediscovering places you have known may have an influence on your illness. If possible I'd so much like to have you with us at least for a while, and if you do everything to take care of yourself it's very likely that all will go well. Carta 867.

96 I wish to take advantage of this period to move – I want to move in any event, my desire to leave here is now absolute. Carta 868.

97 I've waited patiently for over a year – I need air, I feel damaged by boredom and grief. Carta 868.

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carta, Vincent falou sobre o período em que esteve no asilo, e como isso o prejudicou nos mostrando uma realidade dos alienados:

[..] desde que eu cheguei aqui, vi pessoas fracassarem ou perderem a cabeça todos os dias – o que é mais sério é tentar levar a desgraça em conta. Garanto-lhe que já é algo para se abdicar de viver sob guarda, mesmo no caso de ser solidário, e sacrificar a própria liberdade, ficar fora da sociedade e ter apenas o próprio trabalho, sem distração. Isso esculpiu rugas que não serão removidas rapidamente. Agora que está começando a pesar muito sobre mim aqui, acho que é certo acabar com isso98.

Com a decisão tomada, começa a questionar Théo. Na carta de 4 de maio de 1890, pediu a Théo que escrevesse para o Doutor Peyron e que sua saída do asilo fosse até o dia 15 de maio. Nesta carta Vincent, tinha receio de que pudesse ser acometido por uma nova crise. Nesse período Théo conversou com Vincent sobre o Doutor Gachet, médico da cidade de Auvers, que tratava de outros artistas. Esse médico usava tratamentos não convencionais a seus pacientes. Nosso artista estava esperançoso e pediu a Théo que conversasse o mais rápido com o Doutor Gachet sobre seu estado de saúde. Porém, muito confuso, queria deixar o asilo, mas temia uma nova crise. Oscilava entre deixar o internato, ir para outro, ou seguir um caminho diferente. Sobre a possibilidade de um futuro onde suas crises pudessem voltar, suas palavras eram tristes e sinceras.

Então, se daqui a pouco a doença voltasse, seria previsto, e de acordo com a gravidade, podíamos ver se posso continuar em liberdade ou se devo me manter em um asilo para sempre. Neste último caso – como eu lhe disse na minha última carta, eu iria para uma instituição onde os pacientes trabalham nos campos e na oficina99.

Tomou a decisão de deixar o asilo, mas algo o perturbava na mente – a preocupação de suas crises voltarem. Ali no asilo de alienados, suas crises eram “tratadas” mesmo que tais tratamentos fossem pouco eficientes. Sobre sua doença,

98 [...] since I've been here I've seen people fall over or lose their mind every day – what's more serious is to try and take misfortune into account. I assure you that it's already something to resign oneself to living under guard, even in the event of it being sympathetic, and to sacrifice one's freedom, to stand outside society and to have only one's work, without distraction. That has carved out wrinkles that won't be rubbed off in a hurry. Now that it's beginning to weigh too heavily upon me here, I think that it's only right to put a stop to it. Carta 868.

99 Then, if in a while from now the illness were to recur it would be foreseen, and according to how serious it was we could see if I can continue at liberty or if I must stick myself in an asylum for good. In the latter case – as I told you in my last letter I would go into an institution where the patients work in the fields and in the workshop. Carta 868.

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nosso artista exprime: “Mas ouso acreditar que minha compostura não me abandonará. Eu tenho tanta angústia em sair assim que a angústia será mais forte que a loucura, então eu terei o ânimo necessário, ouso acreditar”100. Nosso artista acreditou. Deixou o asilo em Saint-Paul-de-Mausole em busca de um lugar onde pudesse ser ele mesmo, em que pudesse pintar à sua maneira, confiou que essa mudança lhe faria bem. Ouvira de Théo sobre um certo doutor que tratava seus pacientes de uma maneira nada convencional, e a maioria desses pacientes era artistas. Vincent foi para Auvers-sur-Oise, uma cidadezinha a 30 quilômetros de Paris.

3.6 Auvers-sur-Oise – o último lar de um gênio

Antes de ir para Auvers, Vincent ficou alguns dias no apartamento de Théo, em Paris. Era a oportunidade de conhecer Johanna, esposa de Théo, a qual nosso artista chamava carinhosamente de Jo. Os dois se conheciam apenas por cartas. Nesses dias em Paris, conheceu o sobrinho que levava o mesmo nome dele, Vincent. Aos olhos de nosso Vincent, Jo era sensata, calorosa e descomplicada. Após esses dias com a família de Théo, nosso artista seguiu seu caminho. Chegou a Auvers-sur-Oise em maio de 1890. Auvers é uma cidade rural pitoresca e parece um vilarejo distante dos costumes da cidade grande, cercada de plantações de trigos, margaridas e montanhas que compõem a cidade. Fica a 30 quilômetros de Paris. Pela proximidade, Vincent conseguiria visitar Théo e sua esposa Johanna. O cenário é muito diferente de Arles e Saint-Remy; nosso artista experimentou a liberdade novamente, longe dos muros cercados do hospital psiquiátrico. Ficou hospedado no , uma espécie de restaurante e pousada. Aqui nesse Auberge, costumava acontecer os encontros dos pintores que trabalhavam nas aldeias e nos arredores. Artistas como Charles-François Daubigny, que morava em Auvers-sur-Oise, onde Paul Cézanne trabalhou por dois anos. Honoré Daumier morou na aldeia vizinha de Valmondois, e Camile Pissarro estava em Pontoise. Além desses, muitos jovens pintores iam de trem para Auvers, para ter aulas e conselhos dos mestres do impressionismo.

100 But I dare believe that my composure won't desert me. I have so much distress at leaving like this, that the distress will be stronger than the madness, I'll therefore have the necessary nerve, I dare believe. Carta 868.

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Auberge Ravoux manteve sua decoração do final do século XIX. Hoje ele funciona como restaurante no primeiro andar; no segundo, ficam os quartos vazios para visitação. O quarto que Vincent viveu é pequeno; nele tem uma claraboia que ilumina o ambiente. Mantido intacto, o espaço nos conecta com o universo de Vincent. Ao entrarmos em seu quarto, em uma das paredes há um espaço no formato de uma pintura. Auvers-sur-Oise espera que algum dia, alguma pintura que Vincent fez enquanto esteve no vilarejo possa voltar. Ao explicar sobre o quarto do artista, a guia declara: “Espero que algum quadro de Vincent possa voltar para casa”. Vincent se instalou no Auberge, e seus dias são produtivos. Todas as manhãs, com suas tintas debaixo do braço e seu cavalete, ia pintar nos bosques ou campos. Estava animado; escreveu a Théo sobre a cidade: “Auvers é decididamente muito bonita”101. Ele ficaria em Auvers cerca de 70 dias e produziu 70 telas. Retratou em seus quadros as belezas da cidade. Pintou a prefeitura, a igreja, fez alguns retratos do doutor Gachet, além de muitos outros quadros. Suas telas sempre muito coloridas. A essência de Vincent estava ali enquanto pintava. Théo, de certa forma, influenciou Vincent a ir para Auvers-sur-Oise, pois ele poderia se tratar, já que existia um médico rural que cuidava das pessoas e tinha uma admiração pelos artistas. Após alguns dias na cidade, nosso artista conheceu o doutor Gachet, e uma relação de amizade nasceu entre os dois. Vincent ia à casa do doutor Gachet para pintar, fez várias telas usando o cenário da casa e o jardim em volta dela; também fez pinturas da filha do Gachet, a senhorita Marguerite, às vezes a usava como modelo. Como o doutor Gachet era um amante das artes, Vincent poderia pagar seus honorários em telas. Nosso artista estava desacreditado quanto a métodos utilizados no asilo em que acabara de sair, mas, ao conhecer o doutor Gachet, se surpreendeu com os métodos utilizados por esse médico. Além de Vincent, o doutor Gachet atendia outros artistas. Sobre o médico nosso artista comenta:

Apesar do fato de que ele é um sujeito estranho, a impressão que ele causou em mim não é desfavorável. Conversando sobre a Bélgica e os dias dos antigos pintores, seu rosto enrijecido voltou a sorrir, e eu realmente acho que

101 Auvers is decidedly very beautiful. Carta 874.

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ficarei amigo dele e vou fazer seu retrato. Ele me disse que devo trabalhar muito, ousadamente, e não pensar em nada sobre o que tive 102.

A primeira impressão que Vincent teve do doutor Gachet foi a sua excentricidade. De fato, Gachet era um médico não convencional, apreciador da arte, e recomendou apenas um tratamento a Vincent: que ele pintasse. Vincent estava feliz, foi muito bem recebido nesse vilarejo, fez amizades, continuou a fazer o que mais amava, que era pintar. Mesmo feliz, nosso artista estava com receio de que pudesse ter novas recaídas e escreveu ao seu irmão Théo sobre as recomendações do doutor acerca de sua saúde.

Ele me disse (o médico) que, se a melancolia ou qualquer outra coisa se tornasse forte demais para eu suportar, ele poderia fazer algo novamente para diminuir sua intensidade, e que eu não deveria ficar envergonhado de me abrir com ele103.

O tratamento de Vincent se dava pelas conversas com o doutor, a pintura e as visitas à casa de Gachet. Nosso artista seguiu animado, feliz e acreditando que sua saúde estaria melhor a cada dia.

Bem, aquele momento em que eu possa precisar dele (Gachet) pode de fato vir, mas até hoje as coisas estão indo bem. E elas podem ficar ainda melhores, eu ainda acredito que é acima de tudo uma doença do Sul que eu peguei, e que o retorno aqui será o suficiente para dissipar tudo isso104.

Numa carta a sua irmã Willemina, Vincent fala sobre o seu médico, diz que ele é um grande apreciador da arte, e que o doutor gostou tanto dos autorretratos de nosso artista que pediu um também. E assim Vincent o fez.

102 Despite the fact that he's an odd fellow, the impression he made on me isn't unfavourable. Chatting of Belgium and the days of the old painters, his grief-stiffened face took on a smile again, and I really think that I'll stay friends with him and that I'll do his portrait. Then he tells me that I must work a great deal, boldly, and not think at all about what I've had. Carta 873. 103 He told me, besides, that if melancholy or something else were to become too strong for me to bear, he could well do something again to lessen its intensity, and that I mustn't be embarrassed to be open with him. Carta 875.

104 Well, that moment when I have need of him may indeed come, however up to today things are going well. And they may get even better, I still believe that it's above all an illness of the south that I caught, and that the return here will be enough to dispel all that. Carta 875.

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Quando construiu o retrato do doutor Gachet, Vincent falou sobre essa tela e disse o que pretendia e como alcançou tais cores e impressões que temos ao olhar para o quadro. Assim, o retrato do Dr. Gachet mostra um rosto da cor de um tijolo superaquecido e queimado pelo sol, com cabelos avermelhados, um gorro branco, nos arredores da paisagem, fundo azul das colinas, seu terno é azul ultramarinho, isso realça o rosto e o torna mais pálido, apesar do fato de que é cor de tijolo. As mãos, mãos de um obstetra, são mais pálidas que o rosto”105

O doutor Gachet gostou tanto do retrato que fez logo uma réplica. Vincent era apaixonado pelo retrato moderno e ao longo de sua carreira como artista reproduziu muitos retratos de pessoas que ele conheceu. Sobre os retratos, ele disse certa vez: “[...] eu gostaria de pintar os retratos como se fossem uma aparição um século depois”106. Ele não pretendia fazer uma cópia da pessoa, pelo contrário, queria

105 Thus the portrait of Dr. Gachet shows you a face the colour of an overheated and sun-scorched brick, with a reddish head of hair, a white cap, in surroundings of landscape, blue background of hills, his suit is ultramarine blue, this brings out the face and makes it paler, despite the fact that it's brick-coloured. The hands, hands of an obstetrician, are paler than the face. Carta 879.

106 […] i would like to do portraits which would look like apparitions to people a century later. Carta 879. 95

expressões apaixonadas, cores intensas, e ali, nesses quadros, percebemos seu estilo de pintar. Ele não conseguiu apenas os retratos como uma aparição um século depois; conseguiu que suas pinturas após um século encantassem ou despertasse curiosidade àqueles que as olham. Vincent recebeu a visita de Théo, de Johanna e do sobrinho, o qual nosso artista chamava de “meu pequeno homônimo”. Nosso artista poderia pensar que o presente e o futuro seriam melhores que o passado. O doutor Gachet julgava-o curado, aconselhando-o a não pensar nas crises passadas, e como recomendação, a pintar. De certa forma, Vincent seguiu tais recomendações. Seu médico era um livre pensador, socialista, partidário do darwinismo e homeopata, também um apreciador da nova pintura. Em sua casa havia uma coleção de Monet, Renoir, Manet, Guillaumin, Courbet, Cézanne, Sisley, Daumier e um Pissarro. Nosso artista estava se adequando ao estilo dessa cidadezinha quando recebeu uma carta no dia 30 de junho de 1890. Nela, Théo informava que o pequeno Vincent estava doente. Johanna não tinha leite o suficiente, e o menino tomou leite de vaca, o que o fez adoecer. Além dessa notícia, Théo fez um desabafo quanto ao trabalho, se dizia humilhado e com vontade de ser apenas um marchand por conta própria; se mostrava esgotado. Vincent respondeu a essa carta do irmão dizendo que ele podia agir da maneira que mais lhe convinha. Nosso artista, tentando uma solução para o momento difícil de Théo, disse que o ar de Auvers faria bem ao pequeno e a Jo e mostrou-se preocupado. Depois desse desabafo de Théo, Vincent começou a se achar um fardo para seu irmão. Johanna, preocupada escreveu para Vincent e, de certa forma, o acalmou em relação ao estado em que Théo se encontrava. Nosso artista escreveu ao irmão “Eu temi – não completamente – achei que eu era um perigo para você, vivendo às suas custas – mas a carta de Jo claramente me provou que você sente que da minha parte eu estou trabalhando e sofrendo como você”107. Nas cartas seguintes, Théo acalmou Vincent dizendo que os problemas estavam se resolvendo, e o pequeno Vincent estava gozando de boa saúde. Entre essas cartas, Vincent pintou seu quadro Campo de trigos com corvos.

107 I feared – not completely – that I was a danger to you, living at your expense – but Jo 's letter clearly proves to me that you really feel that for my part I am working and suffering like you. Carta 898.

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Na carta do dia 10 de julho de 1890, Vincent escreveu sobre um momento de angústia e sofrimento. Ao sair para pintar nos campos, produziu três telas e decidiu então fazer mais uma. Sobre a última tela, ele disse ao irmão: “Eles são imensos trechos de campos de trigo sob céus turbulentos, e eu fiz questão de tentar expressar tristeza, extrema solidão”108. Esse não foi o último quadro de Vincent, ele pintou outras telas como: Jardim de Daubigny, Paisagem com feixes de palha, a Rua em Auvers entre outras... Nas últimas cartas, escreve à irmã Willemina e à mãe bem entusiasmado com as paisagens e as pinturas. De fato, ele temia pelo futuro, as condições financeiras que vivia há uma década o atormentavam, mas seguiu acreditando na pintura.

De minha parte, estou totalmente absorvido na vasta extensão de campos de trigo contra as colinas, grandes como um mar, amarelo delicado, verde pálido delicado, delicado roxo de um pedaço de terra arada e gramada, regularmente salpicado com o verde das plantas da batata florida, tudo sob um céu com tons delicados de azul, branco, rosa, violeta. Eu estou completamente em um clima de quase muita calma, com vontade de pintar isso109.

108 They're immense stretches of wheatfields under turbulent skies, and I made a point of trying to express sadness, extreme loneliness. Carta 898.

109 For my part, I'm wholly absorbed in the vast expanse of wheatfields against the hills, large as a sea, delicate yellow, delicate pale green, delicate purple of a ploughed and weeded piece of land, regularly speckled with the green of flowering potato plants, all under a sky with delicate blue, white, pink, violet tones. I'm wholly in a mood of almost too much calm, in a mood to paint that. Carta 899. Escrita para a mãe e irmã.

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É difícil chegarmos à última moradia de Vincent em Auvers-sur-Oise, sem que toda a sua história não nos toque, não nos faça pensar. Seus últimos setenta dias são quase inadmissíveis para os amantes das artes. Quanta beleza, sensibilidade e paixão podemos pensar sobre esse artista. Quanta alegria e tristeza podemos relembrar de sua história. Vincent acreditou que Auvers fosse um novo caminho, um recomeço. Ficou em um hospital psiquiátrico por um ano e ainda assim conseguiu pintar e colocar nas telas sua alegria e sua dor, e isto não é para qualquer sujeito. Mas Vincent van Gogh não pode ser considerado qualquer sujeito, ou qualquer homem; ele deixou sua marca, deixou suas telas, deixou sua escrita, deixou seu legado para que o mundo pudesse ver, admirar, estudar, pesquisar. Auvers-sur-Oise foi o último lar do nosso querido artista, seus últimos dias foram passados aqui nessa cidade pequena, cercada pelo rio Oise, por vegetações e paisagens que valeram as telas de Vincent. Sobre a morte de Vincent, uma questão: o suicídio. No dia 27 de julho de 1890, Vincent foi aos campos pintar, levou seu cavalete, sua cadeira dobrável, suas tintas e telas, como de costume, mas voltou algumas horas depois, chegou ao Auberge com um tiro no peito. Ele caminhou pelas escadas e foi até seu quarto. O dono do Auberge chamou o doutor Gachet, que permitiu que Vincent fumasse seu cachimbo. Não havia nada que o doutor pudesse fazer, e uma transferência para um hospital não era favorável, uma vez que nosso artista não iria resistir dadas as condições do ferimento. A cidade de Auvers tem sua própria história sobre os momentos finais de Vincent. Os moradores não acreditam que o artista tenha tirado a própria vida; pelo contrário, a população crê que alguém tenha feito, e Vincent, por algum motivo ainda desconhecido, tenha defendido tal pessoa. Théo foi avisado, veio de Paris rapidamente e, ao ver seu irmão sangrando e pálido, perguntou com o coração apertado o que aconteceu. Vincent respondeu que foi apenas um acidente. Os irmãos conversaram em holandês, Vincent se mantém sereno até seu último suspiro. Théo acreditava que o irmão pudesse de alguma forma resistir aos ferimentos, mas isso não ocorreu. No dia 29 de julho, aos 37 anos de idade morreu Vincent van Gogh. Théo jamais seria o mesmo. Como houve a suspeita de suicídio, Vincent não pôde ter um enterro cristão. Nessa época, as pessoas eram enterradas perto das igrejas. O senhor Ravoux

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preparou a sala dos fundos do café e a transformou em capela mortuária. Ali foram colocados os quadros de Vincent, sua cadeira dobrável, velas, e folhagens enfeitam o local para lembrar o amor de nosso artista pelos campos. O doutor Gachet trouxe alguns girassóis. Alguns amigos de Paris levaram flores amarelas. Compareceram ao velório André Bonger (irmão de Johanna), Tanguy, Charles Laval, o amigo Émile Bernard, Lucien Pissarro, representando seu pai, a família Ravoux e outras pessoas desconhecidas. Em uma carta, Émile Bernard escreveu sobre esse último momento.

Às três horas levaram o corpo. Os amigos é que o carregam até o carro fúnebre. Alguns choram na sala. Théodore van Gogh, que adorava o irmão, que sempre o apoiou na sua luta pela arte e pela independência, não para de soluçar de dor. Na rua faz um calor terrível; subimos a colina de Auvers falando dele, do impulso ousado que deu à arte, dos grandes projetos que sempre tinha em mente, do bem que fez a cada um de nós. Chegamos ao cemitério novo, reluzindo de pedras novas; fica no alto da colina que domina os campos, sob o grande céu azul que ele teria ainda amado – talvez. Depois baixam o corpo na cova110.

Após o enterro, Théo avisou aos presentes que eles podiam levar algum quadro de Vincent como lembrança. Ravoux ficou com um retrato de sua filha, Adeline, e uma tela da prefeitura. O doutor Gachet ficou com várias telas de Vincent, e essas obras estão hoje no museu d’Orsay em Paris. Após o enterro, Théo foi juntar os pertences do irmão e encontrou no bolso do casaco uma carta de Vincent. Carta que nosso artista trazia consigo no dia 29 de julho de 1890. Meu caro irmão, Obrigado por sua gentil carta e pela nota de cinquenta francos que ela continha. Já que as coisas vão bem, o que é o principal, por que insistiria eu em coisas de menor importância? Por Deus! Provavelmente se passará muito tempo antes que eu possa conversar de negócios com a cabeça mais descansada. Os outros pintores, independentemente do que pensem, instintivamente mantêm-se à distância das discussões sobre o comércio atual. Pois é, realmente só podemos falar através de nossos quadros. Contudo, meu caro irmão, existe isto que eu sempre lhe disse e novamente voltarei a dizer com toda a gravidade resultante dos esforços de pensamento assiduamente orientado a tentar

110 Esta citação encontra-se no livro de David Haziot: Van Gogh biografia na página 317. O original foi retirado do livro de Jonh Rewald, Le Post-impressionisme, Paris, Hachette-Littératures, 2004, p.408. 99

fazer o bem tanto quanto possível – volto a dizer-lhe novamente que sempre o considerarei como alguém que é mais que um simples mercador de Corots, que por meu intermédio, participa da própria produção de certas telas, que mesmo na derrocada conserva sua calma. Pois assim é, e isto é tudo, ou pelo menos o principal, que eu tenho a lhe dizer num momento de crise relativa. Num momento em que as coisas estão muito tensas entre marchands de quadros de artistas mortos e de artistas vivos. Pois bem, em meu próprio trabalho, arrisco a vida e nele minha razão arruinou- se em parte – bom –, mas pelo quanto eu saiba você não está entre os mercadores de homens, e você pode tomar partido, eu acho, agindo realmente com humanidade, mas, o que é que você quer? E com esse ponto de interrogação termina as últimas palavras escritas de Vincent. Vincent estava morto, e Théo adoeceu, morrendo em decorrência da sífilis no dia 25 de janeiro de 1891, seis meses após a morte de Vincent. Ele foi enterrado em Utrecht, na Holanda. Em 1914, Johanna transferiu os restos mortais de Théo para o cemitério de Auvers-sur-Oise, ao lado do túmulo de Vincent. Johanna estava viúva com seu filho e uma vasta coleção de Vincent van Gogh. Essa mulher continuou a tarefa que era de Théo e começou a expor e a vender algumas obras de nosso artista. Foi responsável por juntar as cartas dos irmãos e publicá-las. Sem sua dedicação, talvez Vincent não teria alcançado tal prestígio. Depois da morte de Johanna, seu filho Vincent Willem passou a cuidar da obra de seu tio. O pequeno homônimo, como nosso artista o chamava, criou em 1962 a Fundação Vincent van Gogh, onde as obras foram emprestadas permanentemente ao governo holandês. Em 1973, Vincent Willem realizou seu sonho e inaugurou o museu Van Gogh em Amsterdã, projetado pelo famoso arquiteto neerlandês Gerrit Rietveld. Nesse museu, há 200 quadros de Vincent, mais de 500 desenhos, quatro cadernos de esboços, e quase todas as cartas do artista, também a correspondência familiar, a coleção de arte de Théo, e alguns objetos da família. Além de 570 gravuras japonesas, 1.500 ilustrações em revistas e obras de artistas amigos, entre eles: Henri de Toulouse-Lautrec, Paul Gauguin e Georges Seurat. Para muitos biógrafos e artistas, Vincent van Gogh conseguiu sua fama tardia, apenas após sua morte. O percurso que foi apresentado aqui sobre esse artista nos

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mostra que seu nome já estava sendo conhecido no meio impressionista em vida, recebendo críticas positivas acerca de seu trabalho. Duas exposições, uma em Bruxelas e outra em Paris, o tinham consagrado como um dos maiores pintores da nova geração. “[...] escreveram artigos sobre minhas pinturas tanto na Bélgica quanto em Paris, onde as expus, e as pessoas estão dizendo muito mais coisas boas sobre elas”111. Não sabemos se ele tirou sua própria vida, ou apenas foi vítima de algum acidente. Sobre a morte e o morrer, uma personagem chamada Dolores da série Westworld, exibida pela HBO, em um diálogo com seu amigo Bernard diz “Você só vive até a última pessoa que se lembra de você”. De fato, através dessa fala de um personagem fictício, podemos refletir que Vincent ainda vive, sua obra perpassou de sua geração para nossa. Ele vive através de suas telas, sua escrita, sua obra. Apresentando uma outra perspectiva sobre a morte, Sigmund Freud, em uma rara entrevista concedida ao jornalista americano George Sylvester Viereck112, em 1926, sobre a morte, a imortalidade e o morrer, nosso autor declara que “é possível que a morte em si não seja uma necessidade biológica. Talvez morramos porque desejamos morrer”. Freud, no texto Nossa atitude para com a morte (1915), diz que no inconsciente cada um de nós está convencido de nossa própria imortalidade. O eu sabe que vai morrer, face ao isso que ignora. Nós, seres humanos, negamos o aniquilamento. O inconsciente não conhece sua própria morte, comporta-se como se fosse imortal. De fato, não temos representação de nossa própria morte, só conseguimos pensá-la a partir do outro que morre. Nessa entrevista, Freud aborda uma outra posição sobre a morte e o morrer.

Biologicamente, todo ser vivo, não importa quão intensamente a vida queime dentro dele, anseia pelo Nirvana, pela cessação da “febre chamada viver”, anseia pelo seio de Abraão. O desejo pode ser encoberto por digressões. Não obstante, o objetivo derradeiro da vida é a sua própria extinção. Isto, exclamei, é a filosofia da autodestruição. Ela justifica o auto-extermínio. Levaria logicamente ao suicídio universal imaginado por Eduard von Hartamann.

111 […] having had articles on my paintings both in Belgium and in Paris where I exhibited them, and people are saying much more good things about them. Carta 851.

112 O valor da vida. Uma entrevista rara de Freud. Tradução de Paulo Cesar Souza – 20 de abril de 2010. Disponível em: http://www.freudiana.com.br/destaques-home/entrevista-com-freud.html

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Baseando-nos nas palavras de Freud acerca desse pensamento perante a morte e o morrer, esta citação poderia ser uma explicação para a serenidade de Vincent ao morrer?

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Temos a arte para não morrer da verdade”. (Friedrich Nietzsche)

A psicanálise desempenha um papel fundamental para a cultura, assim como a arte tem importância na teoria psicanalítica. Freud utilizou da arte e dos artistas para desenvolver conceitos, como, por exemplo, a sublimação. Ao longo da pesquisa adquiri um conhecimento profundo e diferenciado da vida e obra de Vincent. Como teóricos fundamentais para me aprofundar, utilizei Freud e Lacan. Na psicanálise procurei explicações sobre a arte de Vincent; contudo, como diz Lacan, “O modo como uma obra nos toca, e nos toca precisamente de uma maneira mais profunda, ou seja, no plano do inconsciente, decorre de sua composição, de seu arranjo” (LACAN, 1959/2016, p. 295). Dizer que uma obra nos toca no plano do inconsciente significa dizer que ela toca em cada um de uma forma particular, pois não há inconsciente coletivo. Dizer que ela nos toca por sua composição significa dizer que ela nos toca por sua estrutura mais do que por seus conteúdos verbais ou pictóricos. Estudei o artista Vincent, seu sofrimento e sua obra numa tentativa de encontrar respostas acerca do seu trabalho artístico tão denso e intenso. No texto Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância (1910), Freud se mostra audacioso ao buscar a relação da vida e obra de Leonardo da Vinci e o que a psicanálise poderia acrescentar. Aborda a sublimação e a neurose a partir dos diários do artista. Freud acreditava que algo do psiquismo do artista comparecia em sua obra. Com base nesses dois autores, e suas respectivas colaborações acerca da produção artística, foi apreendido que não podemos desvendar o psiquismo de Vincent a partir de suas cartas, de suas telas, enfim, de sua obra, pois estaríamos nos aproximando de uma psicanálise selvagem e, a partir daí, os resultados poderiam ser errôneos. Os sentimentos que surgirem entre a obra de arte e o sujeito que a observa são singulares e intransferíveis. Nós, pesquisadores, não podemos interpretar o sujeito a partir de sua obra; isso seria desastroso, porém podemos fazer estudos e pesquisas como esta.

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Conhecemos um artista através de sua obra. E Heidegger corrobora em sua conferência em 1950 quando afirma que o artista é a origem da obra. A obra é a origem do artista. Nenhum é sem o outro. Poucos artistas conseguiram relacionar a imagem de si mesmos com a própria obra de arte. Nenhum quadro de Vincent pode ser descrito com precisão porque a obra de arte tem para cada sujeito um significado diferente. Antonin Artaud (1947) defendeu esse posicionamento em seu livro O suicidado da sociedade, quando afirma que nenhum quadro de Vincent pode ser descrito ou interpretado. Assim sendo, após obter a maior parte dos dados possíveis sobre a história de Vincent a partir das fontes documentais (cartas, esboços, pinturas), além de ter sido realizada uma pequena pesquisa de campo em algumas cidades onde o artista viveu, pude elaborar a partir de Heidegger que Vincent van Gogh não se faz sem sua obra, e sua obra não existe sem ele. Quanto ao sofrimento de Vincent levantado nesta dissertação, ele pode ser o resultado da percepção que o artista teve do mundo que não compreendia, com dificuldades em responder às demandas que lhe eram atribuídas, causando-lhe angústia. O sujeito estará sempre na dialética do prazer e desprazer, e o sofrimento perpassa por esses princípios freudianos. Vincent sofreu, e a seu sofrimento nomeou de melancolia. Algumas características levantadas por Freud (1917) assumem a posição de uma melancolia, especificamente: desânimo profundo, abatimento doloroso, uma cessação pelas atividades do mundo externo, perda de capacidade para amar, e a perturbação da autoestima, por vezes culminando em autoinsultos. Nosso artista tinha tais características descritas por Freud; no entanto, como não houve análise, não podemos afirmar que Vincent era um sujeito melancólico. Essas características que Vincent apresentou durante um período de sua vida não foram suficientes para sustentar uma hipótese diagnóstica de melancolia, porque não podemos trabalhar com o artista da mesma maneira que num caso clínico, ou seja, não podemos ser assertivos em diagnosticá-lo melancólico. Para a psicanálise, o diagnóstico serve como direção do tratamento para a clínica. Por isso, devemos ter o cuidado em diagnosticar o sujeito. Nosso artista padeceu por ter recebido o diagnóstico social, o de louco. Ao cortar a própria orelha, foi diagnosticado como louco pela sociedade de Arles. Vincent indagou-se sobre esse diagnóstico, mas sua voz foi abafada. Ele tentou em vão se afirmar como um sujeito saudável. Infelizmente, o artista não se beneficiou do

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tratamento analítico; portanto, não posso afirmar que sua criação é oriunda de uma possível estrutura psicótica, a melancolia, ou que tal estrutura possa ter beneficiado ou prejudicado sua vida como artista. Num ato de sujeito do inconsciente, Vincent decide romper com todas as expectativas da família. Para de corresponder ao ideal imposto pelo pai, que era ser marchand ou evangelista, e assume o artista que ele era, indo ao encontro de seu verdadeiro desejo: a pintura. Ao fazer isso, ele mergulha no sofrimento, na dor e solidão. Inconsciente ou não, transforma todo esse sofrimento em arte. Ele vive, chora, ama sua própria arte. Foi um homem solitário e sensível, fez uma escolha de sujeito do desejo e, quando decidiu se tornar artista, abandonou esse ideal imposto por seu pai e assumiu seu próprio desejo. Para a psicanálise, o homem é um ser de linguagem, o sujeito é dividido, barrado pela linguagem. Para Lacan, o sujeito é sua própria divisão. Essa enunciação de Lacan vem afirmar que o sujeito é marcado por sua divisão, pelo conflito, por determinantes inconscientes. Por isso, em psicanálise, não falamos em indivíduo, que remete à noção de consciente; ao contrário, falamos em sujeito do inconsciente, a fim de mostrar que esse sujeito não tem apenas um sentido, fechado, cristalizado. Também falamos em sujeito do desejo para nos referirmos ao sujeito da psicanálise, na medida em que é determinado pelos seus desejos, pelo inconsciente, fundado no e pelo Outro. Isso implica uma alienação, pois todos nós somos chamados a nos alienar no campo do Outro da linguagem; passamos ao longo de nossa jornada de vida entre a alienação e separação. Vincent, ao corresponder ao ideal que seu pai queria, se mortificou diante desse dito vindo do Outro. Após sua decisão em se tornar artista, pôde se desalienar desses ditos vindos do Outro, indo em busca de seu próprio desejo, a pintura. Vincent acabou criando sua própria arte, e deixou um acervo magnífico para a cultura. Sua obra de arte é atemporal, ou seja, pode nos dizer sobre o momento em que ele viveu e a produziu, sem deixar de ser contemporânea ao refletir também nosso momento ao olharmos para ela. A obra de Vincent traz em si uma história, não uma explicação ou interpretação. Ela também pode nos transmitir alguma coisa, nos fazer sentir. Causar algum sentimento ou vivência; pode também estar estampada na parede como um objeto de enfeite num ambiente de um colecionador. A obra de

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Vincent jamais poderá ser interpretada em apenas um significado. Ela pode nos transmutar a diferentes significações, diferentes dimensões de saberes. Constatei, na revisão de literatura, onde se trata da vida e obra do artista, que a maior ênfase dada é em torno da loucura de Vincent. Esse é um conceito oposto que assumo nesta pesquisa. Vincent queria ser lembrado como o pintor dos girassóis, assinava suas cartas e alguns de seus quadros como Vincent, esse nome era de seu agrado; já os Van Gogh nosso artista não aceitava bem. Desde o tema desta dissertação até esse final espero que os leitores imaginem esse Vincent, o artista aqui apresentado, sensível, que sofreu como qualquer sujeito, enfrentou dificuldades como todos nós. E viveu da arte, para ela e com ela. Criou, recriou, pintou e, através da leitura psicanalítica feita ao artista, percebemos que ele e seu desejo estavam juntos. Espero que as laudas aqui apresentadas nos façam lembrar do Vincent, que é também um Van Gogh, mas que escapa a todos os diagnósticos dados, escapa também ao estigma de louco, escapa ao artista perturbado. Que as próximas pesquisas e contribuições acerca desse artista possam ir ao encontro das falas deixadas em suas cartas, e que talvez, com o tempo, ele possa ser reconhecido à maneira que desejava em vida: Vincent, o pintor dos girassóis.

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Anna Cornelia Theodorus van Gogh Carbentus

FILHOS

Vincent Willem Anna Cornelia van Theodorus van van Gogh Gogh Gogh

Elisabeth Willemina Cornelis Vincent Huberta Jacoba van Gogh

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ANEXO – PRODUTO DA DISSERTAÇÃO

Um conto para educação infantil

APRESENTAÇÃO

Este produto tem como proposta apresentar uma pequena parte da história de Vincent van Gogh por meio de um conto ilustrado para educação infantil pública. A ideia da criação deste conto parte de uma técnica muito usada em sala de aula: contar histórias. Sabemos que educadores contam histórias para crianças em sala de aula. Escrevemos histórias, contos e fábulas para ensinar às crianças as lições que aprendemos já adultos e também para estimular a imaginação, a fantasia. O conto irá narrar a história de um homem que se chama Vincent e que tinha um sonho desde a infância: ser pintor. Este homem lutou por esse sonho por toda a sua vida. Ele amava a natureza e tudo que nela existia, como o céu e as plantas, e sempre dizia que sua flor preferida era o girassol. Conseguia ficar horas observando a natureza com bastante entusiasmo. Ele não gostava muito das fotografias, preferia captar o momento em suas telas. Muitas pessoas não acreditavam que ele se tornaria pintor algum dia, mas ele insistiu em seu sonho acreditando que um dia iria realizar esse desejo. Mesmo em meio a pessoas negativas que não acreditavam que ele pudesse pintar, Vincent continuou acreditando que seu sonho iria se tornar realidade. Depois de muita dedicação e persistência, esse homem se tornou um pintor muito famoso, pintou várias telas, e seus quadros estão espalhados pelo mundo inteiro. Muitas pessoas de todas as partes do mundo vão aos museus onde suas telas se encontram para apreciar sua arte. Na educação infantil pública há educadores responsáveis por contar histórias para os alunos, seja para motivá-los, estimulá-los ou para apresentar a realidade do mundo que os cerca em uma linguagem em que os pequenos possam entender. Como se trata de um conto, a história será desenvolvida em torno da vida de Vincent ao persistir e seguir seu sonho.

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Justificativa

A educação infantil pública em nosso país ainda é muito falha, não há investimento suficiente do governo, e algumas escolas perderam a prática de contar histórias. Sabemos que algumas crianças muitas vezes têm dificuldades em casa, algumas moram em lugares de risco, e a violência acaba fazendo parte do cotidiano desses pequenos que desde cedo enfrentam o horror da violência. As histórias contadas na primeira infância transmitem conhecimento e estimulam a imaginação dos alunos. Para as crianças que estão em vulnerabilidade, as histórias estimulam a fantasia, os sonhos e, ao contá-las, somos transportados para o mundo em que determinada história está sendo vivenciada.

Objetivo

Através da proposta de um conto infantil aqui apresentada, existe o intuito de resgatar o contador de histórias em salas de aulas, em específico na educação infantil. É através das histórias, fábulas e contos que podemos, como sujeitos, reinventar as nossas próprias histórias. A criança está em contato com o mundo que, para ela, é novo. E contando histórias, as crianças podem compreender o mundo que as cercam. O principal objetivo do conto é fazer com que as crianças nunca desistam de seus sonhos e, assim como Vincent, que se tornou artista muito famoso, a criança poderá se identificar e fantasiar o que deseja se tornar.

Estrutura do conto ou modelo proposto

 O conto deverá ter até 30 páginas.  O conto deverá ser ilustrado, colorido, pintado à mão.  O conto terá apenas um personagem, o Vincent, contando a história de como conseguiu se tornar pintor.  O conto terá como público-alvo crianças da educação infantil com idade a partir dos 4 anos.

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 A história deverá ser contada por um contador de histórias.  No final do livro haverá um espaço em branco, com desenho de uma página de um livro, para que cada criança conte ou desenhe seus sonhos.  O conto deverá ser iniciado e terminado no mesmo dia.  Depois de terminado, o contador irá distribuir uma folha em branco para que as crianças desenhem seus sonhos.

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