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2019

1 FICHA CATALOGRÁFICA

I Seminário Narrativas Seriadas – Ficções Televisivas, Games e Transmídia (2019: Salvador, BA)

Anais [recurso eletrônico] / I Seminário Narrativas Seriadas – Ficções Televisivas, Games e Trans- mídia, 03 e 04 de julho em Salvador, BA. – Salvador, UFBA, FACOM, 2019.

Disponível em: http://www.narrativasseriadas.ufba.br/ Inclui referências

1. Narrativas seriadas – Eventos 2. Games – Eventos 3. Transmídias– Eventos. Título. CDU

2 3 SUMÁRIO

Ficha Catalográfica ...... 2 Estratégias Narrativas para a Construção da Diversidade no Mundo Fic- Financiamento ...... 3 cional de Orange Is The New Black ...... 84 Sumário ...... 4 Bárbara Camirim Ficha Técnica da Equipe ...... 6 Apresentação ...... 8 Outlander: uma Cartografia do Passado a Luz de Foucault ...... 95 Natalia Machado e Arlete Nery ARTIGOS Neblina, Sombras e Milkshakes: a série Riverdale e a Narrativa Policial A Narrativa Transmídia em 13 Reasons Why: Análise do site 13rea- Hard Boiled para Jovens ...... 108 sonswhy.info como um paratexto orientador ...... 10 Lucas Ravazzano Ana Carolina Souza de Oliveira “Quando, Como e Onde Você Quiser”: Múltiplas Temporalidades em A Narrativa Transmídia da Marvel: a fixação da marca através da série “Black Mirror: Bandersnatch” ...... 122 Agents of S.H.I.E.L.D ...... 20 Ítalo Cerqueira Maiara de Oliveira Morais e Mônica de Sá Dantas Paz A Questão da Autoria e o Estilo nas Séries Ficcionais Televisivas: Uma Revisitando The Lizzie Bennet Diaries ...... 33 Análise de Fargo ...... 135 Mariana Castro Dias Ludmila Moreira Macedo de Carvalho

Práticas Transmídia no Campo Publicitário: Explorações para um Es- Excesso e Melodrama no Discurso Ficcional Televisivo: Uma Visão Di- tudo sobre a Netflix Brasil ...... 46 ádica ...... 144 Tatiana Güenaga Aneas Anderson Lopes da Silva

Stories da Seleção: Instaséries e Princípios de Gamificação em Cam- “Comfort Series”: Teoria para Além da “TV de Qualidade” ...... 156 panha da Gol ...... 57 Melina Meimaridis Emilly Belarmino A TV da Nova Era: Como a Rede Globo busca se consolidar no mercado Transmídia como Formato e Engajamento Juvenil na Série Skam .... 70 do streaming através do Google Play ...... 169 Micaelle Lages e Thiago Pontes Carolina Santos Fagundes

44 SUMÁRIO

Versões Televisivas Transnacionais no Leste Asiático: Hana Yori Dango EXPEDIENTE como modelo regional ...... 178 Daniela Mazur AUTOR CORPORATIVO UFBA/EDUFBA Processos Criativos na Interncionalização da Animação Seriada Infan- Universidade Federal da Bahia til: O Caso de ‘Cupcake & Dino’ ...... 192 R. Barão de Jeremoabo, S/N - Ondina Natacha Stefanini Canesso CEP 40170-115, Salvador – BA

1978 vs 2003: dois modelos de televisão em duas encarnações de EQUIPE EDITORIAL ‘’ ...... 204 Lynn Alves Rodrigo Quinan Maria Carmem Jacob de Souza

A Transmedia Literacy na Cultura de Fãs: uma análise do Portal Skam PERIODICIDADE Brasil ...... 213 Publicação bianual. Daiana Sigiliano, Vinícius Guida e Gabriela Borges IDIOMAS As Bolhas na Internet e as Possíveis Influências Algorítmicas nas Ship Língua Portuguesa (Português do Brasil) Wars entre Swan Queen e Captain Swan ...... 225 Enoe Lopes Pontes CONTATO E-mail: [email protected] Casual ou Hardcore? Uma análise das estratégias da Blizzard para o https://estacaododrama.com.br/seminario-narrativas-seriadas/ engajamento dos jogadores de Hearthstone ...... 236 Fabrício Barbosa C. NORMAS DA PUBLICAÇÃO Disponível em Agradecimentos ...... 249

5 FICHA TÉCNICA DA EQUIPE

Coordenação Geral GT 4: Fãs e consumo transmídia em narrativas seriadas Lynn Alves Coordenador: Rodrigo Lessa Maria Carmem Jacob de Souza Pareceristas Comissão Científica Amanda Aouad - Universidade Salvador Christian Hugo Pelegrini - Universidade Federal de Juiz de Fora Presidentes da Comissão Cristiano Figueira Canguçu - Universidade Estadual do Sudoeste Lynn Alves da Bahia Maria Carmem Jacob de Souza Daniele Valois Rios - Pesquisadora independente Emília Galvão - Pesquisadora independente Membros da Comissão Felipe Muanis - Universidade Federal de Juiz de Fora Rodrigo Lessa Guilherme Maia - Universidade Federal da Bahia Maíra Bianchini Iara Sydenstricker - Universidade Federal do Recôncavo da Bahia Marcelo Lima José Benjamim Picado - Universidade Federal Fluminense João Araújo Juliana Gutmann - Universidade Federal da Bahia João Senna Kátia Morais - Universidade Federal da Bahia Luiz Adolfo Andrade - Universidade do Estado da Bahia GT 1: Franquias transmídias e narrativas seriadas Maíra Bianchini - Universidade Federal da Bahia Coordenador: João Senna Maria Cristina Mungioli - Universidade de São Paulo Mayka Castellano - Universidade Federal Fluminense GT 2: Criação e Produção de narrativas seriadas Nelson Zagalo - Universidade de Aveiro Coordenadora: Maíra Bianchini Regina Gomes - Universidade Federal da Bahia Renata Cerqueira - Pesquisadora independente GT 3: Gestão e Mercados de narrativas seriadas Rodrigo Lessa - Universidade Federal da Bahia Coordenadora: Maíra Bianchini Rodrigo Barreto - Universidade Federal do Sul da Bahia

66 FICHA TÉCNICA DA EQUIPE

Valéria Maria Vilas Boas - Centro Universitário Jorge Amado Genilson Alves Victor Cayres - Pesquisador independente Hanna Nolasco João Senna Palestrantes convidados Krystal Baqueiro André Araújo Christy Dena Coordenação de inscrições Cristiano Pinheiro Beatriz Almeida Lucas Paraízo David Lopes Mariana Brasil Marcelo Lima Paula Knudsen Monitores Pedro Curi Felipe Maciel Sérgio Nesteriuk Karine Gama

Mediação das palestras e mesas redondas Identidade visual e design do material gráfico Maíra Bianchini Lara Carvalho Rodrigo Lessa Comunicação e Mídias sociais Ministrante do minicurso Genilson Alves Gustavo Erick Registro fotográfico do evento Coordenação de produção executiva Hanna Nolasco Bruna Gasbarre LabFoto/Facom

Produção executiva Registro audiovisual do evento e transmissão ao vivo Bárbara Vieira João Senna

77 APRESENTAÇÃO

O I Seminário de Narrativas Seriadas em Games, Televisão e Transmí- em suas diversas manifestações, especialmente no audiovisual. dia_ Seriais, promoveu nos dias 3 e 4 de julho, na Faculdade de Comu- Demanda que as instâncias acadêmicas proponentes do evento nicação da UFBA (FACOM/UFBA), intensa reflexão sobre a ficção seriada SERIAIS pretenderam atender. A organização do evento foi realizada as estratégias de serialidade que cada vez mais compõem as histórias pelos grupos de pesquisa: A-Tevê – Laboratório de Análise de Tele- exibidas na televisão, nos games e em outros meios de comunicação, ficção, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação ampliando em certa medida a potência dos usos dos recursos transmí- e Cultura Contemporâneas da UFBA e o Grupo de Pesquisa Comu- dia associados à esses produtos seriados que exploram ambientes de nidades Virtuais, da UFBA/IHAC, vinculado ao Programa de Pós-Gra- imersão e de interação para a audiência consumidora. duação em Ensino, Filosofia e História da ciência. Estes grupos têm Presente de forma sistemática desde a constituição dos folhetins im- se dedicado a compreender o fenômeno da serialidade e dos jogos pressos, no século XIX, a serialidade ganhou destaque com o meio tele- digitais, respectivamente, há mais de dez anos, e suas expertises dis- visivo, tecendo precedentes das radionovelas e do cinema de aventura tintas, mas complementares, estão sintonizadas com as produções das matinês para estabelecer narrativas audiovisuais de longa duração, contemporâneas de narrativas seriadas para distintas plataformas, com grande potencial para o engajamento do público. As telenovelas, contribuindo para a formação acadêmica e profissional do público minisséries e séries de televisão têm sido os produtos mais bem-suce- dedicado ao audiovisual em suas diversas modalidades que atua es- didos, no mercado nacional e internacional, a empregar a serialidade pecialmente no mercado baiano. como estratégia narrativa determinante para seu modo de contar histó- Essa preocupação com as frutíferas interfaces entre as esferas rias. Desde o início do século XXI, os games também têm se apropriado científicas e profissionais alinhou as atividades promovidas pelo da serialização narrativa como modo de potencializar a interação e o evento SERIAIS que reuniu interessados de ambos setores nas me- engajamento dos jogadores com as obras. sas redondas, nas palestras e mostras, assim como, nos fóruns de Atualmente, as indústrias televisiva e dos games movimentam cen- discussão propiciados nos grupos de trabalho. Cada um deles bus- tenas de bilhões de dólares em todo o mundo, e ambas se destacaram cou atentar para aspectos distintos e complementares. nas políticas públicas para o desenvolvimento do audiovisual no Bra- Assim, as produções apresentadas durante os SERIAIS, estão vin- sil até os anos 2018. Pesquisas dedicadas ao estudo de tais fenômenos culadas aos Grupos de trabalho abaixo: também foram observadas. Todavia, era evidente no campo de estudos sobre o assunto no Brasil, a necessidade de um encontro científico no GT 1: Franquias transmídias e narrativas seriadas país exclusivamente dedicado a problematizar a questão da serialidade Ementa: Este grupo de trabalho reúne artigos que desenvolvem

8 APRESENTAÇÃO

teórica e analiticamente os processos de transmidiação existentes na de algo não significa apenas seguir apaixonadamente um produto criação, produção e circulação de games e de séries de televisão (live- monomidiático, como uma série de TV ou um game, por exemplo. -action e animação). Convidamos a todos a interagir com os Anais do evento SERIAIS, GT 2: Gestão e Modelos de Negócios de narrativas seriadas dialogando com os artigos que foram objeto de debates nesses Ementa: Tem como objetivo reúne trabalhos interessados na admi- ambientes frutíferos de reflexão que envolveram pesquisadores e nistração de negócios originados a partir de narrativas seriadas, enten- investigadores e/ou desenvolvedores de conteúdos seriados para dendo-os enquanto empreendimentos audiovisuais, e nos modelos de televisão e games. criação de valor para estes produtos e para as marcas e empresas asso- Esperamos que a leitura desse material incentive o desenvolvi- ciados a eles. mento de pesquisas acadêmicas e o crescente diálogo entre pesqui- sadores e profissionais que se dedicam a promover a aproximação e GT 3: Criação e Produção de narrativas seriadas a discussão crítica entre aqueles que produzem e distribuem obras Ementa: É voltado para análise e discussão do desenvolvimento e seriadas audiovisuais e os que se dedicam a problematizar as diver- realização de produtos seriados ficcionais, em live-action ou animação, sas instâncias envolvidas e as múltiplas questões suscitadas pela lin- prioritariamente voltados para games e produtos distribuídos pelos ca- guagem, modo de criação, modelo de distribuição e financiamento nais de televisão (aberta e pro assinatura) e pelas empresas de Strea- e práticas de consumo, entre outros aspectos, dessas produções. ming.

GT 4: Fãs e consumo transmídia em narrativas seriadas A coordenação Ementa: Este grupo de trabalho reúne artigos que discutem teórica e empiricamente as práticas, produções e modos de consumos de fãs em torno de obras transmídias das narrativas seriadas da televisão e ga- mes. É interesse deste GT discutir, do ponto de vista do polo receptor, os percursos de consumo transmídia daqueles que são fãs de produtos midiáticos que se espalham através de diversas mídias, formatos e lin- guagens. Em um ambiente transmídia e de cultura participativa, ser fã

9 A NARRATIVA TRANSMÍDIA EM 13 REASONS WHY: ANÁLISE DO SITE 13REASONSWHY.INFO COMO UM PARATEXTO ORIENTADOR Ana Carolina Souza de OLIVEIRA (UFS)1

1 A NARRATIVA DE 13 REASONS WHY mento adotado para com Hannah; e questiona- Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar algu- mentos dos pais e demais adultos da série sobre mas potências narrativas transmídia da série 13 Rea- sons Why, através dos paratextos orientadores identi- A narrativa de 13 Reasons Why surge em as causas que sucederam na morte da garota. ficados no site 13reasonswhy.info. Lançada em 2017, a 2007 com o livro publicado por Jay Asher, escritor Diferente do que acontece com o produ- trama seriada provocou grandes debates sobre o sui- norte-americano de ficção juvenil. A trama conta to seriado, o livro não teve a mesma repercussão cídio na adolescência abordado na narrativa. Aplican- do o conceito Orienting Paratexts abordado por Jason a história de Hannah Baker, uma garota que dei- midiática que a série obteve ao ser lançada em Mittell (2015), demonstra-se como a produção da série xou 13 fitas cassetes explicando as razões que a março de 2017, 10 anos após a estreia do livro. utiliza o site para informar os espectadores sobre os levaram a cometer suicídio. Durante a história, al- Após o lançamento, vários debates surgiram so- acontecimentos daquele universo. guns personagens recebem as fitas com mensa- bre a forma que é demonstrado o suicídio, prin- Palavras-chave: Narrativa Transmídia; narrativa gens gravadas pela protagonista, mencionando cipalmente por conter cenas gráficas do ato. No seriada; 13 Reasons Why; suicídio. a relação de cada um dos personagens com os Brasil, por exemplo, o Centro de Apoio Operacio- motivos que a levaram a cometer o fato. A primei- nal às Promotorias de Justiça de Defesa da Criança Abstract: This workpiece intends to analyze some transmedia storytelling potentials found on 13 Rea- ra temporada possui 13 episódios ao total e cada e do Adolescente e da Educação (Caop-CAE), do sons Why, through the Orienting paratexts identified um é dedicado a uma das fitas. Para este trabalho, Ministério Público da Paraíba, recomendou o boi- on the website 13reasonswhy.info. Released in 2017, apenas a primeira temporada será contemplada cote à série, exatamente pela presença de cenas the serial plot provocated large debates about teen- age suicide approached by the narrative. Applying the na análise. impactantes. No Canadá, algumas escolas proibi- Jason Mittell’s (2015) Orienting Paratexts concept, we Apesar do suicídio como clímax da história, ram a discussão da série em ambiente escolar, en- demonstrate how the industry canon uses the website a ficção seriada também dá ênfase aos efeitos psi- viando e-mail aos pais sobre a decisão; e na Nova to inform viewers about the events on that universe. cológicos e consequências do bullying, depressão, Zelândia, a classificação indicativa foi de 18 anos, Keywords: Transmedia storytelling; serial narra- voyeurismo, estupro, abuso/violência sexual na considerada pertinente apenas para adultos. tive; 13 Reasons Why; suicide. adolescência. A junção de todos esses elementos Proibida para menores de 16 anos, a pro- desencadeou na morte da protagonista; na refle- dução da série afirma que procurou ser transpa- 1 Mestranda do Programa de Pós-graduação Inter- disciplinar em Cinema da Universidade Federal de Sergipe xão dos demais personagens sobre o comporta- rente e crua sobre esse momento da vida de um (Ppgcine/UFS). E-mail: [email protected] 10 A NARRATIVA TRANSMÍDIA EM 13 REASONS WHY: ANÁLISE DO SITE 13REASONSWHY.INFO COMO UM PARATEXTO ORIENTADOR Ana Carolina Souza de OLIVEIRA (UFS) adolescente, tratando os espectadores como gens ou com circunstâncias externas. do envelhecimento do personagem. A história finaliza com uma vitória ou Em vez de fazê-lo suportar novas jovens adultos. “Sentimos que poderíamos con- derrota decisivas, a resolução do pro- aventuras (que implicariam na sua tar uma história não apenas com integridade, mas blema e a clara consecução ou não- marcha inexorável em direção à morte) -consecução dos objetivos. O principal faz-se com que reviva continuamente também com a chance de repercutir entre os jovens agente causal é, portanto, o persona- no passado (ECO, 1994, p. 124). que não necessariamente têm acesso à verdade por gem, o indivíduo distinto dotado de um conjunto evidente e consistente de De fato, a utilização de loop em 13 Reasons meio do entretenimento e que fosse uma represen- traços, qualidade e comportamentos tação honesta da experiência deles”, disse o criador (BORDWELL, 2005, p. 278-279). Why, favoreceu ainda mais a possibilidade de ex- da série, Brian Yorkey, para o documentário “Ten- pansão da série, já que a mesma já se encontra Os episódios são narrados por Hannah, tando entender os porquês”, espécie de making na terceira temporada. Apesar de haver apenas a protagonista, a partir do uso de flashbacks. A off do seriado também disponível na Netflix. um único livro, a produção da série optou por dar protagonista já inicia a história informando ao es- Os episódios da série foram disponibiliza- continuidade às histórias dos personagens coad- pectador que cometeu um suicídio e vai contar a dos de uma única vez na plataforma de streaming, juvantes através do aprofundamento de suas his- história de todos os porquês, por isso o flashback atitude comum adotada nas produções originais tórias particulares na trama. Do ponto de vista é imprescindível para a construção da narrativa na Netflix, estimulando práticas debinge watching2. comercial, a possibilidade de continuação é uma perspectiva de Hannah. Nesse formato, Eco (1994) A série é estruturada ao modo da típica narrativa finalidade almejada pela produção serial. explica que o curso do personagem não é seguido clássica hollywoodiana, que, de acordo com Da- no curso linear, encontra-se, no entanto, diversos vid Bordwell (2006), apresenta indivíduos defini- CAMINHOS PARA UMA NARRATIVA TRANSMÍ- momentos da sua vida, revisitados a fim de des- DIA dos e com o o objetivo de resolver um problema cobrir novas oportunidades narrativas. Em termos evidente ou fins específicos. matemáticos, o subtipo da série pode ser caracte- Adentrar no universo da narrativa transmí- dia exige atenção para as complexidades e ampli- Nessa sua busca, os personagens en- rizado como um loop. tram em conflito com outros persona- As séries a loop são criadas tude de conceitos da área. Porém, primeiramente, normalmente por razões comerciais: 2 Assistir a a um programa de televisão compulsiva- trata-se, a fim de continuar a série, é importante enfatizar que este fenômeno se tor- mente. No Brasil, é comum falar que fará maratona de um de prevenir o natural do problema nou possível devido às transformações tecnológi- programa. 11 A NARRATIVA TRANSMÍDIA EM 13 REASONS WHY: ANÁLISE DO SITE 13REASONSWHY.INFO COMO UM PARATEXTO ORIENTADOR Ana Carolina Souza de OLIVEIRA (UFS) cas nos meios de comunicação no final do século de valores que se desenvolvem juntamente com narrativas que surgem neste novo momento. De XX – momento de ascensão das novas mídias di- o crescimento do ciberespaço” (LÉVY, 1999, p. 16). acordo com Marie-Laure Ryan (2006), uma mídia gitais. Nesse contexto, o termo ciberespaço refere-se ao será considerada de acordo com o impacto narra- De acordo com Pierre Lévy (1993), o mun- novo meio de comunicação disponível pela jun- tivo desejado, a depender das oportunidades ofe- do das telecomunicações e da informática cons- ção de rede de computadores, que oferecem uma recidas, seja no rádio, TV, cinema ou outro meio tituiu novas maneiras de pensar e conviver nas infraestrutura de comunicação digital. Esta de- de comunicação. relações entre o homem, o trabalho e a própria signação inclui tanto uma infraestrutura material Ryan explica que o que conta como uma inteligência; com processos em ampla metamor- quanto dos seres humanos que interagem neste mídia é a categoria, fazendo diferença no modo fose nos campos da escrita, visão, audição, criação universo. como as histórias são contadas, apresentadas, e aprendizagem que não podem mais ser expli- O ingresso no mundo em que novas mí- porque elas comunicam, e como são experimen- cados através de antigas divisões entre teoria e dias começam a emergir põe em debate ideias tadas. Para explicar a possibilidades desse encon- experiência. de substituição do antigo pelo novo, do natural tro mídia/narrativa, a autora apresenta os três A partir do século XX, com a ampliação do mundo, a progressiva descoberta de sua pelo técnico, do virtual pelo real. Lévy explica que domínios semióticos da narrativa: sintático, se- diversidade, o crescimento cada vez mais é raro que um novo modo de comunicação ou ex- mântico e pragmático. Na teoria narrativa, sinta- rápido dos conhecimentos científicos e téc- nicos, o projeto de domínio do saber por pressão elimine completamente modelos anterio- xe corresponde ao estudo das formas ou técnicas um indivíduo ou por um pequeno grupo tornou-se cada vez mais ilusório. Hoje, tor- res. De fato, há uma mudança que complexifica o narrativas; semântica corresponde ao estudo do nou-se evidente, tangível para todos que sistema, mas não o faz desaparecer por total. enredo, ou estória; e pragmático corresponde ao o conhecimento passou definitivamente para o lado do intotalizável, do indomável Neste mesmo segmento, o autor comenta estudo de usos da narrativa. (LÉVY, 1999, p. 161). que a fotografia não substituiu a pintura, o cine- Essas divisões da narrativa combinadas ao ma não substituiu o teatro, e a TV não substituiu uso das novas mídias possibilitou a concepção da O autor denomina esse ambiente indo- o cinema; porém, em todas essas modificações chamada “Narrativa Transmidiática”. Segundo Car- mável como Cibercultura, que corresponde ao precisaram se adaptar e coexistir a cada nova rea- los Scolari (2015), a primeira impressão do pesqui- “conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de lidade apresentada. A mesma coisa ocorre com as sador nesta área de estudos da mídia é que há um práticas, de atitudes, de modos de pensamento e

12 A NARRATIVA TRANSMÍDIA EM 13 REASONS WHY: ANÁLISE DO SITE 13REASONSWHY.INFO COMO UM PARATEXTO ORIENTADOR Ana Carolina Souza de OLIVEIRA (UFS) caos semântico, mas os estudos propõem a uni- tudo no estudo das narrativas transmídias, cada para a era da convergência, integrando múltiplos ficação de mídias e linguagens para sua melhor novo texto contribui de maneira distinta e valiosa textos para criar uma narrativa tão ampla que não compreensão. para o todo. pode ser contida em uma única mídia” (JENKINS, Como as NTS propõem um novo 2006, p. 137). Nesse projeto, o jogo transmidiático modelo de narrativa inspirado em Na forma ideal de narrativa trans- é feito pelo lançamento de produtos (quadrinhos, diferentes mídias e linguagens, a in- mídia, cada meio faz o que faz de tervenção científica da narratologia melhor – a fim de que uma história anime, jogo on-line) que estimularam o interesse – uma disciplina nascida com tex- possa ser introduzida num filme, dos leitores por mais informações da saga, insti- tos de Aristóteles e reconstruída no ser expandida pela televisão, ro- gando-os a buscar por mais conteúdo do filme na começo do século XX por Vladimir mances e quadrinhos; seu univer- Propp e o movimento formalista so possa ser explorado em games internet. russo – não deve somente ser con- ou experimentado como atração Para se ter uma noção, Silva (2010) expli- siderada pertinente, mas também de um parque de diversões. Cada ca que, a cada série de televisão bem-sucedida, um campo científico estratégico de acesso à franquia precisa ser autô- inestimável valor para entender as nomo, para que não seja necessário há um sem número de comunidades virtuais que NTs (SCOLARI, 2015, p. 8). ver o filme para gostar do game e agregam os fãs, devido à facilidade de acesso pro- vice-versa. Cada produto determi- De forma inicial, Scolari explica que a Nar- nado é um ponto de acesso à fran- piciado pelo ambiente digital. De diferentes cul- rativa Transmídia é “uma estrutura particular de quia como um todo (...) A redun- turas e localidades, os fãs trocam informações e dância acaba com o interesse do experiências com a criação de fan-art, fanfiction e narrativa que se expande através de diferentes fã e provoca o fracasso da franquia. linguagens (verbal, icônica etc.) e mídias (cinema, Oferecer novos níveis de revelação fanfilm, demonstrando um conhecimento amplo quadrinhos, televisão, videogames etc.)” (SCOLA- e experiência renova a franquia e sobre encenação, diálogos, caracterização dos sustenta a fidelidade do consumi- personagens, desenvolvimento das tramas e a RI, 2015, p.8). Esse modelo não se trata apenas de dor (JENKINS, 2009, p. 138). adaptações de formatos de um meio para outro, montagem das cenas. mas a concepção de histórias que constroem uni- Jenkins aponta Matrix (1999) como um Carlos Scolari, Paolo Bertetti e Matthew versos transmidiáticos. dos primeiros exemplos de narrativa transmídia Freeman (2014) explicam que a presença dos Para Henry Jenkins (2009), pioneiro no es- de sucesso. Para o autor, “Matrix é entretenimento usuários na extensão de uma narrativa transmídia 13 A NARRATIVA TRANSMÍDIA EM 13 REASONS WHY: ANÁLISE DO SITE 13REASONSWHY.INFO COMO UM PARATEXTO ORIENTADOR Ana Carolina Souza de OLIVEIRA (UFS) pode ser descrita através de uma de participação baseando-se nas capacidades diferentes de cada res valorizam este modelo focado na intertextua- e engajamento do usuário: consumidor diante da obra. lidade narrativa (vide fórmula); porém, estudos etnográficos e culturais privilegiam a atividade (...) na base, nós encontramos o Por exemplo, um consumidor oca- consumidor de um produto em dos usuários, que geram conteúdos periféricos sional terá acesso esporádico e uma única mídia (por exemplo, os isolado ao universo de 24 Horas aos produtos e (sub) culturas de fãs. “Neste caso, espectadores de uma série ou os (consumidor textual simples). Um a participação dos usuários na extensão do mun- leitores de um quadrinho); no se- fã dedicado de 24 Horas, contudo, gundo nível o consumidor de di- do narrativo é um componente básico da fórmula irá se movimentar de mídia em mí- ferentes produtos da mídia (isto é, dia, aplicando diferentes habilida- transmídia” (SCOLARI, BERTETTI E FREEMAN, 2014, os consumidores do mundo narra- des para interpretar cada texto mi- tivo transmidiático expressos em p. 3) diático, enquanto reconstrói todo diferentes suportes textuais); no Em um contexto econômico, todos esses o universo ficcional (consumidor terceiro nível, o fã que compartilha transmidiático). No centro, um con- universos são muito rentáveis. Scolari também conteúdos online e participa ativa- sumidor de mídia simples, seguirá mente das conversas ao redor do pontua que, por trás da concepção de narrati- apenas uma vertente específica mundo narrativo; finalmente, no do conteúdo midiático. Esse setor vas transmídia, há uma tradicional estratégia de topo da pirâmide, nós encontramos é composto por leitores de quadri- marketing desenvolvida pelas empresas produto- o prosumer 3:o fã que produz novos nhos, audiência televisivas, navega- conteúdos e expande o mundo nar- ras para fazer com que uma mesma história cir- dores da Web etc. (SCOLARI, 2015, rativo (SCOLARI, BERTETTI, FREE- p. 15) cule em diferentes meios, formatos e linguagens. MAN, 2014, p. 2-3). Dessa forma, Scolari entende que filmes e sagas, Essa definição pode ser revista por dife- como Matrix e Harry Potter (2001) não são meras Scolari compara essa estrutura às camadas rentes perspectivas, já que a narrativa transmídia narrativas para jovens leitores, são marcas que se de bonecas russas (matryoshka) e utiliza como é objeto de pesquisa interdisciplinar, mas a maio- expressam também na área comercial, uma ma- exemplo o universo do seriado 24 horas (2001), ria dos estudiosos compartilham desta filosofia. neira excelente das corporações ampliarem suas Scolari, Bertetti e Freeman comentam que, em bases e captarem grupos diferentes de consumi- 3 Prosumer é a união das palavras produto e consu- midor. Neste caso, o produtor da narrativa transmidiática uma análise de verve semiótica, os pesquisado- dores. também a consome. 14 A NARRATIVA TRANSMÍDIA EM 13 REASONS WHY: ANÁLISE DO SITE 13REASONSWHY.INFO COMO UM PARATEXTO ORIENTADOR Ana Carolina Souza de OLIVEIRA (UFS)

No caso da série 13 Reasons Why, a narra- Geralmente, essas práticas desenvolvem grande aliada no compartilhamento de recursos tiva é baseada no livro homônimo, lançado em mapas, guias, linhas do tempo, recapitulação, si- paratextuais, designando especificamente produ- 2007 por Jay Asher. As temporadas subsequentes tes e listas que auxiliam o espectador a entender o tos que ajudam a orientar os espectadores para ampliaram o potencial narrativo do produto au- mundo narrativo construído, e são um caso a par- séries em andamento. Justamente por causa des- diovisual, pois a história matriz (livro) contempla te dos paratextos transmídias que explicitamente sa facilidade que a internet trouxe, os paratextos apenas a primeira temporada da série. continuam os universos ficcionais através de pla- podem ser desenvolvidos tantos pela produção taformas diferentes. oficial da série quanto pelo espectador/fã que PARATEXTOS ORIENTADORES EM 13 REASONS busca se aprofundar no mundo narrativo. WHY Ao invés disso, práticas de orientação No que concerne especificamente a cate- residem fora do mundo diegético da história, promovendo uma perspecti- goria de acontecimentos nos paratextos orienta- De acordo com Jason Mittell (2015), a in- va para os espectadores que ajuda a dores, pode-se citar as análises e expansão que fazer com que o mundo narrativo te- dústria demanda que a televisão seja fácil o sufi- nha sentindo, olhando para ele de uma conectam as séries com outros domínios textuais, ciente para que seus espectadores entendam os distância (...) Orientação não é neces- intertextuais e extratextuais, que vão além do nú- sariamente para descobrir a verdade seus produtos com facilidade, porém as séries canônica de uma história, pois é mais cleo da obra. elaboradas com um certo grau de complexidade usado para criar uma camada além do programa, para ajudar a entender Expansões do enredo buscam contex- desafiam o público casual a entendê-las. Uma me- como os pedaços fazem sentindo jun- tualizar os eventos de uma série em um tos ou para propor maneiras alternati- dida adotada para desafiar qualquer tipo de com- intertexto web maior, mais tipicamen- vas de ver a história, que pode não ser te conectando o que acontece numa plexidade existente é a criação do que o autor sugerida ou contida no design original ficção seriada com o mundo real. Por da narrativa. O ato de fazer um link en- chama de Orienting Paratexts (Paratextos orien- exemplo, Treme4 retrata a vida após o tre um texto e um paratexto, seja ele furacão Katrina em Nova Orleans, com tadores, em tradução livre). Mittell os classifica a sancionado oficialmente ou criado por muitas versões ficcionais de pessoas um espectador, muda como nós vemos partir de quatro categorias, estratégias organiza- e eventos reais; bloggers e jornalistas, o original (MITTELL, 2015, p. 629-630, das de acordo com aspectos narrativos: tempo, tradução livre). 4 Série ficcional norte-americana da HBO, que foi acontecimentos, personagens e espaço. ao ar de 2010-2013, e retrata o mundo pós-furacão Katrina, O autor exalta o papel da internet como fenômeno que devastou a cidade de Nova Orleans em 2005. 15 A NARRATIVA TRANSMÍDIA EM 13 REASONS WHY: ANÁLISE DO SITE 13REASONSWHY.INFO COMO UM PARATEXTO ORIENTADOR Ana Carolina Souza de OLIVEIRA (UFS)

mais notavelmente Dave Walker do nós também escutamos preocupações Figura 1- Mensagem de di- 5 New Orleans Times-Picayune , catalo- daqueles que sentem que a série pode- vulgação do 13reasonswhy.info ga e analisa as referências culturais do ria ter alertas adicionais. Atualmente os programa, trabalhando para orientar episódios que carregam um conteúdo os espectadores sobre a base factual gráfico estão identificados como tal e dos eventos ficcionais (MITTELL, 2015, a série carrega uma classificação indi- p. 643, tradução livre) cativa. Daqui para frente, nós iremos acrescentar cartazes de alertas adicio- Com essa breve elucidação das caracte- nais antes do primeiro episódio como uma precaução extra para aqueles que rísticas dos paratextos orientadores, neste mo- iniciarem a série e também fortificamos mento busca-se entender de que forma o site a mensagem e recursos de linguagem nos cartazes existentes para episódios 13reasonswhy.info funciona como um paratexto que contém conteúdos gráficos, in- orientador para o tema central (suicídio) da série cluindo o site 13reasonswhy.info – um centro de recurso global que promove Fonte: Netflix (2017) norte-americana 13 Reasons Why. Após a gran- informação sobre organizações pro- de quantidade de críticas preocupantes sobre fissionais que oferecem ajuda sobre problemas sérios abordados pela série” Dentre as categorias abordadas por Mit- o tema, a Netflix divulgou em maio de 2017 um (Netflix, 2017, tradução livre). tell quando descreve os Paratextos orientadores, testemunho ao público, informando que acres- o site melhor se classifica como uma estratégia centaria novos alertas na abertura dos episódios A divulgação deste site aparece na aber- voltada para os acontecimentos. Para melhor en- e materiais adicionais elaborados com a ajuda de tura da série, com a seguinte mensagem: “Essa tender a análise do material disponível no site, organizações profissionais que trabalham com os série ficcional trata de problemas difíceis, incluindo podemos dividi-los em dois tipos: orientação de temas abordados na série: depressão e suicídio. Se você ou alguém que você co- contatos e orientação de recursos. Tem acontecido uma tremenda quan- nhece precisa de ajuda para encontrar recursos de tidade de discussão sobre a nossa série 13 Reasons Why. Enquanto um grande suporte e crises na sua área, vá para 13reasonswhy. Orientação de contatos número de membros acredita que a sé- info para mais informações”. A mensagem aparece rie é um válido impulsionador na aber- Com uma interface simples, o site priori- tura de conversas com seus familiares, da forma a seguir: za na parte central contatos de telefones e aten- 5 Jornal diário da cidade de Nova Orleans (EUA). 16 A NARRATIVA TRANSMÍDIA EM 13 REASONS WHY: ANÁLISE DO SITE 13REASONSWHY.INFO COMO UM PARATEXTO ORIENTADOR Ana Carolina Souza de OLIVEIRA (UFS) dimento on-line de centros de ajuda que fazem A próxima etapa é identificar a orientação consentimento, Abuso de álcool e outras drogas, atendimento imediato para uma crise, com a op- de recursos do site. As informações que caracte- Violência à mão armada). No Brasil, este guia ficou ção de escolher o país a qual se refere. No caso do rizam esses paratextos são materiais mais apro- sob responsabilidade técnica da Associação Brasi- Brasil, a linha de emergência disponível é o Cen- fundados sobre temas que envolvem não só o leira de Psiquiatria (ABP). tro de Valorização da Vida (CVV): “Ligue para 188 suicídio, mas também bullying, depressão, assédio ou peça ajuda por e-mail, chat ou Skype no site sexual, abuso de álcool e drogas, entre outros. Es- Figura 3 – Guia de discussão http://cvv.org.br”. É uma medida que facilita uma ses materiais envolvem: Guia de discussão e Série busca urgente para quem procura o serviço. A op- de Vídeos (Youtube). Assim como acontece com ção está disponível para 62 países, com o texto a orientação de contato, os arquivos disponíveis traduzido para a língua de origem de cada local. estão traduzidos de acordo com a linguagem do país escolhido. Fonte: 13reasonswhy.info Figura 2 – Interface do site 13reasonswhy.info Guia de discussão Além de ser um guia temático, observa- O Guia de discussão corresponde a um ar- -se deste produto uma preocupação de o pú- quivo com extensão .pdf que pode ser baixado blico adolescente assistir a série sem alguém de do site. Funciona como uma cartilha que situa o confiança ao lado, como este trecho induz: “Se espectador sobre os assuntos da série, incluindo alguns momentos da série deixam você pouco a os seguintes tópicos: Sobre a série, Dicas para ver vontade, você pode pular essas cenas. Da mesma a série acompanhado de um adulto de confian- maneira, se achar alguma cena perturbadora, fale ça, Perguntas para iniciar um diálogo ou discus- com alguém - um amigo, um psicólogo, seus pais Fonte: 13reasonswhy.info são em grupo com a presença de um adulto de ou um adulto de confiança”. A cartilha demonstra confiança, Assuntos difíceis (Depressão, Auto- que seu leitor-modelo são adolescentes, um pú- Orientação de recursos flagelação e suicídio, Bullying, Violência Sexual e blico mais vulnerável aos temas.

17 A NARRATIVA TRANSMÍDIA EM 13 REASONS WHY: ANÁLISE DO SITE 13REASONSWHY.INFO COMO UM PARATEXTO ORIENTADOR Ana Carolina Souza de OLIVEIRA (UFS)

Essa abordagem é uma estratégia que de- que alguns dos personagens nem sempre tomam as Série de vídeos (Youtube) monstra aos espectadores que aqueles persona- decisões certas. Se ofereça para assistir com eles. E A Série de vídeos consiste em seis episó- gens acreditam nos problemas da série, inclusive lembre-os de que a série pode não ser indicada para dios, legendados em português, que tratam dos os que de alguma forma provocam o aconteci- todos. Se, em algum momento, for desconfortável seguintes temas: “As muitas formas do bullying”, mento dessas situações na ficção. Dessa forma, os assistir, eles podem parar ou falar com alguém em “Reconhecendo sinais de depressão”, “Entenden- vídeos trazem um tom de realidade, já que não se quem confiam”. As precauções também previnem do o consentimento”, “Falando com alguém sobre trata de uma atuação, mas sim posicionamentos sobre a possibilidade de assistir ou não assistir à o uso de álcool e drogas”, “Levando sinais de pos- oficiais fora do universo ficcional. A série aproxima ficção seriada. síveis danos a sério”, “Falando com seu adolescen- os adolescentes desses personagens, com uma te sobre 13 Reasons Why”. Cada episódio coloca os linguagem verbal simples e com episódios cur- CONSIDERAÇÕES FINAIS personagens da série como enunciadores, porém tos, que duram em torno de um a dois minutos, com seus nomes reais associados ao personagem. também se enquadrando como uma estratégia Cada série emana um tipo de abordagem interessante para simplificar o entendimento de transmídia para a sua narrativa e, no caso deste ob- Figura 4 – Série de Vídeos assuntos difíceis, que talvez a cartilha não poderia jeto, há uma forte tendência para surgimento de suprir. produtos que abordem o tema central e as com- É interessante que há um vídeo dedicado plexidades que o permeiam. Com a observação inteiramente aos pais (Falando com seu adolescente dos paratextos transmídia do site 13reasonswhy. sobre 13 Reasons Why), todas as falas indicam uma info, chegou-se ao entendimento de que há uma conversa com um familiar que assistiu a série com preocupação exclusiva com a temática sobre pro- o filho. Em uma passagem deste episódio, a atriz blemas (acontecimentos) tratados na série, pois Amy Hargreaves, que interpreta a personagem situa o espectador sobre os tópicos tratados na Mrs. Jensen, explica: “Lembre-os de que, apesar narrativa em um contexto do mundo real. Fonte: 13reasonswhy.info de serem problemas reais, as histórias não são. Fale Para tanto, a produção da série buscar co-

18 A NARRATIVA TRANSMÍDIA EM 13 REASONS WHY: ANÁLISE DO SITE 13REASONSWHY.INFO COMO UM PARATEXTO ORIENTADOR Ana Carolina Souza de OLIVEIRA (UFS) locar o site como um catálogo/guia oficial sobre ______. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, o tema. Com um acesso rápido e direto, auxilia o 1999. MITTELL, J. Complex TV: The poetics of contem- espectador com contatos e recursos que explicam porary television storytelling. NYU Press, 2015. o suicídio e demais problemáticas, além de pre- RYAN, M.L. Avatars of story. University of Minne- cauções que indicam se é viável assistir ou não o sota Press, 2006. seriado. SCOLARI, C. A. Narrativas Transmídia: con- sumidores implícitos, mundos narrativos e Na linguagem adotada no conteúdo do branding na produção de mídia contemporâ- site, observamos produtos voltados para três ti- nea. Parágrafo, v. 3, n. 1, p. 7-20, 2015. pos de leitores-modelo: pessoas que buscam con- SCOLARI, C. A.; BERTETTI, P.; FREEMAN, M. Trans- tato de ajuda (adolescentes ou não), mais ligados media archaeology: storytelling in the border- lines of science fiction, comics and pulp maga- à orientação de contato; adolescentes e pais, de- zines. Houndsmill, 2014. vido à linguagem da orientação de recursos (guia SILVA, M. V. B. Cultura das series: forma, con- de discussão e série de vídeos). texto e consumo de ficção seriada na con- temporaneidade. Galaxia (Sao Paulo, Onli- ne), n. 27, p. 241-252, jun. 2014. http://dx.doi. REFERÊNCIAS org/10.1590/1982-25542014115810. Acesso em: JENKINS, H. Cultura da convergência. Aleph, 05 de mar. 2019. 2009. JENKINS, H. Transmedia storytelling. Moving characters from books to films to video games REFERÊNCIA FILMOGRÁFICA can make them stronger and more compelling. 13 REASONS WHY. Criação: Brian Yorkey. EUA. Technology Review. 2003. Disponível em: https:// 2017 – presente. www.technologyreview.com/s/401760/transme- dia-storytelling/ . Acesso em: 05 de mar. 2019. LÉVY, P. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. 19 A NARRATIVA TRANSMÍDIA DA MARVEL: A FIXAÇÃO DA MARCA ATRAVÉS DA SÉRIE AGENTS OF S.H.I.E.L.D Maiara de Oliveira Morais1 e Mônica de Sá Dantas Paz2

12 the TV series “Agents of S.H.I.E.L.D” acts as a point of A exemplo disso, quando se trata do mer- Resumo: A Marvel se apresenta como uma das gran- convergence and also as a starting point for Marvel cado cinematográfico dos super-heróis, a Marvel des produtoras de conteúdos transmidiáticos da atua- productions. Thus, we will present the efficacy of the lidade com o conhecido Universo Marvel. Demons- transmedia narratives as a strategy for the fixation of Entertainment, fundada em 1998 e proprietária traremos como a série para TV “Agentes da S.H.I.E.L.D” the brand and the necessity of a product for which all Marvel Comics e Marvel Studios atingiu as maiores the other stories can converge. Therefore, we analyzed funciona como um ponto de convergência e também bilheterias mundiais. Em 2017, a Marvel emplacou como um ponto de partida para as produções da Mar- all five seasons of the series, drawing the connections vel. Sendo assim, busca-se apresentar a eficácia das between the various productions of Marvel. As a re- os três primeiros lugares em bilheteria mundial narrativas transmídia como estratégia para a fixação sult, we have the production of two timelines: that of com seus filmes: ‘‘Homem Aranha: De volta ao lar’’, da marca e a necessidade de um produto para o qual the series crossing the stories of the productions for em julho de 2017 (US$ 880,1 Milhões); ‘Guardiões todas as demais histórias possam convergir. Para tan- the cinema and the one of the series giving origin to to, foram analisadas todas as cinco temporadas da sé- productions for other medias like comics, games, mov- da Galáxia Vol. 2’, em abril de 2017 (US$ 863,5 rie, traçando-se as conexões entre as diversas produ- ie, animations, webserie and other TV series. Milhões); e Thor Ragnarok em outubro de 2017 ções da Marvel. Como resultado, tem-se a produção de Keywords: Transmission; Multi-media; Branding; Mar- (US$ 841,7 Milhões) (OMELETE, 2017). Enquanto duas linhas do tempo: a da série cruzando as histórias vel Universe; Agents of S.H.I.E.L.D. das produções para o cinema e a da série dando ori- no mesmo ano, a DC, sua principal concorrente, gem a produções para outras mídias como revistas em ficou com o quarto e quinto lugares na bilhete- quadrinho, jogos, filme, animações, websérie e outras A narrativa transmídia tem sido uma estra- ria mundial com os filmes: ‘Mulher Maravilha’ em séries para TV. tégia utilizada por diversas marcas para levar suas Palavras-chave: Transmídia; Multimeios; Branding; junho de 2017 (US$ 821,8) e ‘Liga da Justiça’ em histórias por diferentes mídias, conectando-as e Universo Marvel; Agentes da S.H.I.E.L.D. novembro de 2017 (US$ 633,9 Milhões). Em 2018, promovendo assim o engajamento e a movimen- a Marvel continuou liderando as bilheterias cine- Abstract: Marvel is one of the great producers of tação do público pelos mais diversos produtos e transmedia contents of the present time with the well- matográficas com ‘Vingadores: Guerra Infinita’’ em suportes. Ao que se refere à comunicação, a busca known Marvel Universe. We will demonstrate how abril, ficando em primeiro lugar e ‘Pantera Negra’ Graduanda em Publicidade e Propaganda por estratégias que estimulem a percepção dos 1 em fevereiro, ocupando a segunda colocação. Fil- no Centro Universitário Estácio da Bahia. E-mail: consumidores em relação a marca é essencial e [email protected] mes como ‘Homem Formiga e a Vespa’, produzido isso pode ser alcançado entrelaçando seus senti- 2 Doutora e mestre em Comunicação e pelo mesmo estúdio, ‘Venom’, lançado pela Sony Cultura Contemporâneas (UFBA); professora do Centro dos e fazendo-os interagir de forma diversificada e ‘Deadpool 2’ lançado pela Fox, também esti- Universitário Estácio da Bahia; orientadora do trabalho. com as marcas, seus produtos e serviços. E-mail: [email protected] 20 A NARRATIVA TRANSMÍDIA DA MARVEL: A FIXAÇÃO DA MARCA ATRAVÉS DA SÉRIE AGENTS OF S.H.I.E.L.D Maiara de Oliveira Morais e Mônica de Sá Dantas Paz veram no top 10 de maiores bilheterias do ano rie ‘Agentes da Shield’; a produção cinematográ- cria as condições necessárias para o desenvol- (UOL, 2018). A DC não possuiu nenhuma estreia fica ‘Os vingadores’; a produção televisionada vimento do desejo humano de estar conectado. em 2018. ‘Inumanos’; o jogo mobile ‘MARVEL Torneio de Aproveitando-se desses avanços, fez-se notório a Mas o sucesso da Marvel não se limita aos campeões’; e a animação ‘Marvel Rising’. Portanto, adaptação midiática da Marvel, frente as necessi- cinemas, pois são inúmeras as oportunidades de todos os produtos narrativos identificados como dades do consumidor. veiculação de marcas nos filmes, além da venda tendo uma ligação direta ou indireta com a série No princípio, a empresa foi fundada em de produtos franquiados e da produção de inú- ‘Agents of S.H.I.E.L.D’ (AOS). 1939 como Timely Comics, em 1950, virou a Atlas meros outros produtos culturais veiculados nas Apesar da Marvel ter sido estudo de caso Comics e, a partir de 1961, passou a se chamar mais diversas mídias. de outras pesquisas sob o tema da convergência Marvel Comics, como a conhecemos nos dias Diante desse contexto, o objetivo deste ar- midiática (FONTENELE, 2017; CARDOSO, 2015; atuais. No começo, a Marvel era conhecida por seu tigo é verificar como a Marvel utiliza a narrativa PEREIRA; TESSALORO, 2018; RIBEIRO; GOSCIOLA, conceito enquanto revistas em quadrinhos (HQ) e, transmídia para fixação da sua marca, conside- 2018), consideramos importante manter o olhar hoje em dia, pelo seu sucesso em conectar suas rando a série para TV ‘Agentes da S.H.I.E.L.D’ como sobre suas estratégias de transmídia, contudo, produções cinematográficas em grande escala um importante ponto de conexão para as demais lançando luz sobre um produto que, embora não com jogos, brinquedos, vestuários, entre outros. histórias da franquia no universo transmidiático esteja entre os maiores orçamentos da empre- Pode-se considerando que inúmeros con- da Marvel. A série foi lançada em 2013 nos EUA sa, desempenha um importante papel tanto de teúdos e diversas conexões podem ser vistos, mas com o título original ‘Agente of S.H.I.E.L.D.’ e, além conexão de histórias, quanto de engajamento e que nem tudo será absorvido, inclusive a marca de manter uma história própria, faz conexão com compartilhamento do público entre as mais di- em si e seus valores. Toda informação recebida é o Universo Marvel dos super-heróis. Para tal aná- versas mídias. conectada a uma parte do subconsciente huma- lise, foram analisadas cinco temporadas da série, no, que o sentido humano se ajusta ao modo com lançadas entre 2013 e 2018, identificando-se as MULTIMEIOS E TRANSMÍDIA NA MARVEL que as informações são enviadas e recebidas. Por- suas conexões com: a web série ‘Slingshot’, uma tanto, o modo com que essa informação é com- coleção de 12 volumes da HQ’s inspiradas na sé- Para Lévy (1999), o avanço da tecnologia preendida, também depende do meio que trans-

21 A NARRATIVA TRANSMÍDIA DA MARVEL: A FIXAÇÃO DA MARCA ATRAVÉS DA SÉRIE AGENTS OF S.H.I.E.L.D Maiara de Oliveira Morais e Mônica de Sá Dantas Paz mite a informação (MARTINO, 2014). ‘‘O efeito de meio é a mensagem [...] consequências sociais e de informações e outros conteúdos, enquanto es- um meio se torna mais forte e intenso justamente pessoais de qualquer meio, constituem o resulta- pera um grande lançamento, há o fortalecimen- porque o seu ‘conteúdo’ é outro meio’’ (MCLUHAN, do do novo estalão introduzido em nossas vidas to dos laços e fixação da marca. Principalmente, 2003. p. 33). Por isso, o uso em conjunto das mí- por uma nova tecnologia ou extensão de nós quando tais ações visam inserir o consumidor na dias atuais com o desejo da marca de estar cada mesmos’’. história contada ou manter as comunidades de vez mais presente na vida do consumidor, cada Podemos considerar que estes pensamen- fãs dessa marca (JENKINS, 2009). Partindo do pres- dia vem ganhando mais força e a atenção dos co- tos se completam, pois o consumidor tem o dese- suposto de que a tecnologia está em constante municadores. jo de compreender mais da produção e das novas avanço, os meios de mandar e receber uma men- Contudo, a convergência não ocorre ape- tecnologias e ao consumir tais novidades, é leva- sagem têm que ser adaptáveis às diversas formas nas por meio de aparelhos, por mais sofisticados do a continuar consumindo por outros os meios e veículos de comunicação utilizados pelo consu- que sejam. A convergência ocorre dentro dos cé- também. A tecnologia funciona como uma par- midor que essa marca deseja atingir. Com tantas rebros de consumidores individuais e em suas in- te do sentido do consumidor, quanto mais uma opções, o público se torna disperso, criando a ne- terações sociais. Cada indivíduo constrói a própria marca expande suas narrativas e produtos, mais cessidade de se utilizar a melhor forma disponível mitologia pessoal, a partir de pedaços e fragmen- chances há de aumentar o interesse pessoal e as de captar a atenção e até mesmo levá-lo a visitar a tos de informações extraídos do fluxo midiático buscas por novidades a respeito dessa marca. marca em diferentes mídias. e transformados em recursos através dos quais Então pode-se que há um papel das mídias A utilização da narrativa transmídia, defini- pode-se compreender a vida cotidiana (JENKINS, e não só do conteúdo na influência dos sentidos do por Jenkins (2009) como um modo de contar 2009). humanos, gerando diferentes estímulos, expe- histórias através de várias mídias, é uma forma efi- Jenkins (2009) acredita que grande parte riências e adequando-se às situações e gostos in- caz para uma marca criar uma ligação emocional do que é extraído das produções culturais vem dividuais de forma relevante para a percepção da com seu consumidor. Cada dia é mais comum que do desejo do consumidor de compreender mais mensagem transmitida. as marcas criem seus próprios modelos de comu- sobre o assunto, sendo então a mensagem mais Quando uma empresa dá a oportunidade nicação, introduzindo entre outras estratégias a central que o meio. Para Mcluhan (2003, p. 21), ‘‘o ao seu cliente de acompanhá-la, inclusive através transmídia para estar mais presente no cotidiano

22 A NARRATIVA TRANSMÍDIA DA MARVEL: A FIXAÇÃO DA MARCA ATRAVÉS DA SÉRIE AGENTS OF S.H.I.E.L.D Maiara de Oliveira Morais e Mônica de Sá Dantas Paz e na memória afetiva do seu consumidor. marcaram uma geração e ficaram conhecidas pelo teriormente, deixando a escolha do público sobre Originalmente, segundo Marsha Kinder público, mas que pertencem a um universo com- que obras ele assistirá e se ele seguirá ou não a (1991 apud CARDOSO, 2015), o universo transmí- pletamente diferente do que está sendo exibido. ordem proposta pela produtora. Jenkins (2009) diático foi desbravado com o conceito de inter- Contudo, essa intertextualidade serve para refor- menciona que para utilizar os aspectos da trans- textualidade transmídiatica. A autora explica que çar laços entre consumidores, personagens e a media storytelling, cada plataforma deve possuir é possível contar histórias fora do seu lugar de história em si. O consumidor pode relembrar des- um acesso autônomo. origem, criando histórias diferenciadas, mas que se momento ou situação, mas o que foi proposto No caso da Marvel, não é necessário que fazem alusões a algo externo, que não fizera parte naquela determinada cena não afeta o rumo da se conheçam os gibis para acompanhar as produ- de forma constante da produção e, ainda, que isso história ou personagens e pode ser facilmente es- ções cinematográficas. Da mesma forma, quem não altere a ideia central proposta na narrativa. quecida ao decorrer da narrativa. sempre acompanhou os gibis não necessaria- Um possível exemplo desse caso dentro Indo além do cruzamento de referências, mente precisa acompanhar ou gostar dos filmes do Universo Marvel está no filme ‘Vingadores: há a conexão entre histórias que compartilham ou séries da marca. Porém, consumir em várias Guerra Infinita’ (2018) no qual o Homem-Aranha, personagens, eventos e cenários e também há o mídias, aprofunda o conhecimento no universo, em um diálogo com o Homem de Ferro, mencio- cruzamento de mídias nas quais tais histórias são aproximando-se do que seria um comportamen- na uma cena do filme ‘Aliens, o resgate’ (1986), do contadas. Segundo Jenkins, ‘‘no mundo da con- to típico dos fãs. Para Jenkins (2009, p. 29-30), ‘‘a qual retira um plano para se salvarem de um pe- vergência das mídias, toda história importante é convergência representa uma transformação cul- rigo iminente na nave do vilão Fauce de Ébano. contada, toda marca é vendida e todo consumi- tural, à medida que consumidores são incentiva- Ou quando o Homem de Ferro chama o Fauce de dor é cortejado por múltiplos suportes de mídia’’ dos a procurar informações e fazer conexões em Ébano de Lula Molusco, fazendo uma referência (JENKINS, 2009, p. 29). meios a conteúdos midiáticos dispersos’’. ao desenho animado ‘Bob Esponja’. Segundo Venâncio (2017), cada produção É possível considerar o uso da transmídia, Ao se fazer alusões à cultura pop, men- desenvolvida em torno de uma obra central, pode como um dos maiores fatores de sucesso da Mar- cionando filmes, músicas, artistas, peças, etc. há ser entendida pelo espectador sem que seja ne- vel. Por exemplo, após o sucesso das histórias em a possibilidade de inserção de informações que cessário acompanhar todas as obras lançadas an- quadrinho, lançou-se a sequência dos filmes so-

23 A NARRATIVA TRANSMÍDIA DA MARVEL: A FIXAÇÃO DA MARCA ATRAVÉS DA SÉRIE AGENTS OF S.H.I.E.L.D Maiara de Oliveira Morais e Mônica de Sá Dantas Paz bre o Homem de Ferro (2008, 2010, 2013) e este necessidade desejada por seus clientes. O suces- duções e produtos. O público passa a consumir a personagem surge na sequência dos filmes sobre so adquirido é fruto de um projeto que tem sido marca em diversos canais diferentes, já que existe os Vingadores (2012, 2015, 2018, 2019), também desenvolvido por muitos anos. Atualmente, é im- uma ligação positiva estabelecida entre ambos. A aparece no segundo filme do ‘Capitão Améri- possível não associar a Marvel a diversos tipos de expectativa que passa a existir para o lançamento ca’ (2016) e, ainda, no filme do ‘Homem-Aranha’ produtos e produções. Também é comum tratar de novidades, atinge uma massa que passa a pro- (2017). de um dos seus filmes ou séries e mencionar al- curar qualquer fragmento liberado pela marca em A forma que a Marvel vem empregando ao gum fato ocorrido ou personagem em outra pro- todos os canais disponíveis. conectar suas histórias, criar uma ligação emocio- dução, pois a intertextualidade e a transmídia se Para Kotler (2010), desenvolver o valor da nal com o público e deixar uma expectativa para a tornaram parte do que define a empresa e isso marca junto ao cliente é a maneira mais eficiente continuação das histórias busca causar um maior remete às estratégias de branding. de adquirir um relacionamento duradouro com o impacto no consumidor do que apenas relembrar Branding significa dotar produtos e servi- consumidor. Já Pereira e Tessarolo (2008) ressal- uma cena, um momento passageiro que logo po- ços com o que é característico de uma marca, o tam que a influência da marca só é adquirida pe- derá ser apagado ao longo do consumo da produ- que está relacionado a criar diferenças e se distin- rante a junção de todos seus produtos, serviços e ção. Essa estratégia convida o consumidor a bus- guir no mercado. Para “colocar uma marca em um pessoas. car por mais conteúdo e quiçá buscar por novas produto”, é necessário “ensinar” aos consumidores Para Tavares (2003), o principal objetivo do experiências e habilidades junto a outras mídias, quem ou o que é o produto, batizando-o, utili- branding é agregar valor à sua marca, tornando-a engajando-se, interagindo e compartilhando ex- zando outros elementos de marca que ajudem assim tão ou mais valiosa que suas produções ou periências ao passo que consome os conteúdos e a identificá-lo, bem como indicando ao que este produtos. Seguindo tal conceito, qualquer produ- produtos da empresa e de suas parceiras. produto ou serviço se propõem e porque o con- ção atrelada ao nome de uma marca, já se tornaria sumidor deve se interessar por ele (KOTLER, 2005). automaticamente, uma produção de qualidade A FIXAÇÃO DE MARCA NO UNIVERSO MARVEL Kotler e Keller (2006) conceituam que, até reconhecida. certo momento, o valor que já era agregado a Outra estratégia da Marvel para agregar Ao longo dos anos, a Marvel redefiniu seus marca, agora será passado para suas outras pro- valor e produzir suas histórias é relativa ao licen- aspectos enquanto marca e se adaptou perante a 24 A NARRATIVA TRANSMÍDIA DA MARVEL: A FIXAÇÃO DA MARCA ATRAVÉS DA SÉRIE AGENTS OF S.H.I.E.L.D Maiara de Oliveira Morais e Mônica de Sá Dantas Paz ciamento de seus personagem por diferentes es- A Marvel Comics é considerada a maior de 2013 a 2015; entre 2016 e 2019, a terceira fase; túdios, que apresentam diferentes conceitos, se- editora de histórias em quadrinhos da atualida- e quarta que se inicia em 2019 e que deve ir até guimentos e qualidade, como Disney, Fox e Sony. de (AVILA, 2018), rivalizando com a DC Comics 2022, período para o qual já há filmes planejados Essa multiplicidade gera críticas e debates com- no que se refere à criação de super-heróis e his- e que se conectam a todos os acontecimentos an- parativos entre as obras pelos fãs da marca. Con- tórias interconectadas. Para cativar e fidelizar o teriores. tudo, é importante lembrar que a Marvel passou seu público, a Marvel busca, dentre outras formas, A S.H.I.E.L.D. é uma organização interna- a fazer parte do conglomerado da Disney a partir humanizar seus personagens, com problemas hu- cional fictícia que combate ameaças de qualquer de 2018 (ESTADÃO, 2018). manos e sociais reais; heróis que possuem pontos gênero na Terra e cuja sigla significa Supreme A partir dassas inúmeras parcerias, a Mar- fracos, pensam em trabalho, pagam dívidas, têm Headquarters of International Espionage and Law- vel promove suas estratégias de branding, agre- relacionamentos e família. -Enforcement Division. Ela teve sua primeira apa- gando valor e engajando pessoas aos seus pro- O Universo Cinematográfico da Marvel ini- rição no UCM, no final do filme ‘Homem de Fer- dutos e produções, estreitando o relacionamento ciou-se com a transformação das histórias e per- ro’ (2008), na cena pós-crédito na qual o agente com seus consumidores. Foi o que continuou fa- sonagens que advém das HQ. O primeiro filme a Nicky Fury confronta Tony Stark e menciona pela zendo com o lançamento em parceria com a ABC fazer sucesso e mostrar que era possível ser pro- primeira vez a iniciativa Vingadores. Studios da série Agentes da S.H.I.E.L.D, em 2013, duzido algo maior utilizando as HQ, foi o que co- Após esse pequeno momento no filme, a criando uma ligação direta do Universo Cinema- meçou a trilogia do ‘Homem-Aranha’ (2002, 2004 S.H.I.E.L.D foi ganhando cada vez mais espaço nas tográfico da Marvel (UCM) com a TV. Dessa forma, e 2007). A partir disso, foi possível planejar a co- produções cinematográficas da Marvel. Em ‘Ca- a marca se fez presente semanalmente na casa do nexão de todos os personagens e suas histórias. O pitão América: o primeiro vingador’, foi possível seu público já consolidado e, ainda, tenta alcançar primeiro filme a tornar isso possível foi o ‘Homem conhecer o que seria o início dessa organização, novas fatias do mercado. de Ferro’ (2008). Desde então, a Marvel começou seus primeiros agentes e desafios. Presente nes- a dividir seus filmes por fases: a primeira ocorreu se filme, a agente Paggy Carter ganhou uma série DO UNIVERSO CINEMATOGRÁFICO À ONIPRE- de 2008 a 2012, com ‘Homem de Ferro’, ‘Thor’, ‘Ca- com duas temporadas exibida pela ABC, ‘Agente SENE MARVEL’S AGENTS OF S.H.I.E.L.D. pitão América’ e ‘Os vingadores’; a segunda fase Carter’ (2015), mostrando assim o motivo do sur-

25 A NARRATIVA TRANSMÍDIA DA MARVEL: A FIXAÇÃO DA MARCA ATRAVÉS DA SÉRIE AGENTS OF S.H.I.E.L.D Maiara de Oliveira Morais e Mônica de Sá Dantas Paz gimento de uma organização secreta para a pro- gráficas e televisionadas que compõe a narrativa ‘Homem de Ferro 3’, no qual foi abordada a tecno- teção da população, dando apoio aos heróis. da série para TV “Agentes da S.H.I.E.L.D.” logia Extremis. Ao longo dos anos, foram apresentados Na série, essa tecnologia é utilizada pelo outros agentes da S.H.I.E.L.D que se tornariam im- grupo intitulado Centopeia, se tornando assim a portantes no UCM e para a conexão com a tele- grande ameaça da primeira parte da temporada. visão, tais como a Maria Hill, Natasha Romanoff e Ainda nessa narrativa, é revelado uma parte dos o Phill Coulson. Assim a S.H.I.E.L.D “estende seus acontecimentos que trouxeram o agente Coulson tentáculos”, ou seja, está presente em várias his- de volta a vida. A partir do episódio intitulado O tórias e mídias do Universo Marvel. É importante Poço 1x08 (2013) a série passa a possuir uma liga- alertar que as próximas seções possuem spoiler3 ção direta com o filme ‘Thor: O mundo sombrio’ Fonte: produção de Maiara Morais com o uso de imagens sobre este universo. retiradas de Icons8, Seek logo, Icons Cout, Marvel Rising, (2013). O episódio se passa alguns dias após o ata- Icons, Marvel Wikia. que do vilão desse filme, Malekith, à Londres onde CONEXÕES ENTRE AGENTES DA S.H.I.E.L.D E ocorreu a batalha com o asgardiano Thor. Após a OUTRAS SÉRIES E FILMES DA MARVEL AOS possui como base principal das suas batalha, os agentes são enviados em busca de ar- narrativas, fragmentos de produções cinemato- tefatos asgardianos deixados no local e que dá a Para ter um melhor entendimento das nar- gráficas da Marvel. Em sua primeira temporada, quem o possui, super força e fúria. Na 1º tempo- rativas da Marvel a partir das suas produções cine- foram apresentados acontecimentos subsequen- rada, ainda acontece o início das desconfianças matográficas, foi criada uma linha tempo (Figura tes aos do filme ‘Os Vingadores’ (2012), possuindo sobre a existência de agentes da Hidra infiltrados 1) que apresenta a relação da série com as produ- menções diretas a artefatos contrabandeados da na S.H.I.E.L.D que antecederiam o filme ‘Capitão ções cinematográficas e televisionadas. raça alienígena cibernéticas Chitauri e com parti- América: Soldado Invernal’ (2014) no qual é re- cipações especiais dos agentes: Maria Hill e Nick velado tal infiltração com o fim da organização, Figura 1: Linha do tempo de produções cinemato- Fury, conhecidos nas produções ‘Os Vingadores’; deixando até então, os personagens da série des- e Lady Sif, conhecida no filme ‘Thor’. Também é 3 Spoiler: revelação de fatos e conteúdos confiados, abandonados e sem conhecer de fato sobre uma determinada produção. possível associar parte de sua narrativa ao filme 26 A NARRATIVA TRANSMÍDIA DA MARVEL: A FIXAÇÃO DA MARCA ATRAVÉS DA SÉRIE AGENTS OF S.H.I.E.L.D Maiara de Oliveira Morais e Mônica de Sá Dantas Paz quem é o verdadeiro traidor entre eles. O episódio da Galáxia Vol 1’ (2014). Marvel. A primeira parte desta temporada traz à treze contou com a participação especial do Stan A segunda temporada ainda contou com tona as consequências do arco6 anterior, porém, Lee, criador de vários personagens da Marvel. a introdução de dois personagens já conhecidos possuindo um foco exclusivo na raça dos Inuma- Após a queda da S.H.I.E.L.D, último episó- pelo público que acompanha as HQ’s lançadas nos. É importante ressaltar que o filme ‘Capitão dio da temporada tem a participação de Nick Fury pela Marvel, Bobbi Morse (Harpia) e Hunter, seu América: Guerra Civil’ (2016) é inserido de manei- salvando os Agentes e passando a missão de re- ex marido. O significado do Obelisco5 é revelando ra sutil nessa temporada, no momento em que o construir a S.H.I.E.L.D para o agente Coulson. e associado à aparição da raça que também pro- tratado de Sokovia é citado pelos personagens. Em sua segunda temporada, a série estreia tagoniza ‘Inumanos’ (2017) mais tarde é revelado Também é abordado uma espécie de viagem in- com acontecimentos que advém do série ‘Agente que o Terrigenesis é liberado ao mar, alterando terdimensional para outro planeta, que advém Carter’ (2015). Há uma curta cena para que o pú- o DNA dos peixes que eram consumidos e assim de um objeto de teletransporte espaço-temporal blico entenda o enredo no qual é apresentado o apresentando a explicação para as transforma- conhecido como Monolith, produzidos pela raça objeto conhecido como Obelisco, que havia sido ções que viriam a acontecer no decorrer da série Kree. encontrado pela agente Carter, reencontrado pe- e em Inumanos. Outra ligação ocorre pela más- Com início da sua quarta temporada, a los agentes da S.H.I.E.L.D, porém até então desco- cara tecnológica que permite quem a usa mudar série traz personagens facilmente reconhecidos nhecido. Seguindo os acontecimentos da perda seu rosto e voz, a qual já havia sido utilizada pela pelo público, como por exemplo, o Motoquei- desse objetivo, metade do plot4 seguinte tem foco Agente Natasha Romanoff no filme ‘Capitão Amé- ro Fantasma. O sexto episódio intitulado ‘O bom nas consequências ainda sobre o antídoto aliení- rica: Soldado Invernal’ (2014), além da participa- samaritano’ conta com um easter egg7 de produ- gena que havia sido injetado no agente Coulson. ção da Lady Sif. ções antigas, antes do universo cinematográfico Também houve o descobrimento de uma cidade Iniciando a terceira temporada, ‘Agentes da Marvel ganhar suas conexões. O já conhecido que havia sido sediada por tais alienígenas, os da S.H.I.E.L.D.’ passa a apresentar narrativas inde- Johnny Blaze aparece rapidamente após um aci- Kree, raça que foi apresentada no filme ‘Guardiões pendentes das produções cinematográficas da dente e passa seus poderes ao então Motorista

4 Plot: evento interligado por uma cadeia 5 Obelisco: artefato criado pela raça Kree 6 Arco: uma narrativa contada de forma de causa e efeito que diz respeito a um Personagem ou a milhares de anos, que possuem cristais terrígenos que continua através de vários episódios. Narrativa. causa a transformação de humanos em Inumanos. 7 Easter egg: termo utilizado quando 27 A NARRATIVA TRANSMÍDIA DA MARVEL: A FIXAÇÃO DA MARCA ATRAVÉS DA SÉRIE AGENTS OF S.H.I.E.L.D Maiara de Oliveira Morais e Mônica de Sá Dantas Paz

Fantasma, Robbie Reyes. Essa temporada abor- nagens de volta ao seu tempo atual com a missão dou o lado místico da Marvel introduzindo na sé- de impedir a destruição da Terra. A Hidra volta a rie o Darkhold, livro de magia que havia sido apre- ser uma ameaça. No episódio dezenove da 5º tem- sentada nas HQ’s do Doutor Estranho, o qual teve porada, é mencionado um ataque a Nova York, o seu filme solo lançado em 2016. fazendo referência a luta do Homem de Ferro e A quarta temporada também mostrou o Doutor Estranho com os Filhos de Thanos, dando arco Fremework bem similar ao filme ‘Vingadores: a entender que o decorrer do episódio aconte- Era de Ultron’ (2015) no qual um androide L.M.D cia em paralelo ao começo do filme ‘Vingadores: Fonte: produção de Maiara Morais com o uso de imagens re- tiradas de IMDB, Marvel Contest of Champions e ComicVine. (Modelo de Vida Artificial), conhecida como A.I. Guerra Infinita’ (2018). D.A (Analisador de Dados de Inteligência Artifi- Com base nas narrativas anteriores que cial), passa a se tornar a vilã ‘Madame Hidra’, uma NARRATIVAS DERIVADAS DE AGENTES DA moldaram a construção da narrativa da série, é história que uma mistura o lado místico com o S.H.I.E.L.D possível notar que esses aspectos transcendem lado tecnológico da Marvel. seu objetivo inicial e passa a ser o foco do início A quinta temporada da série abordou um É possível notar que a série ‘Agentes da de novas narrativas. Produtos derivados criados tema novo no universo Marvel, tanto o televisio- S.H.I.E.L.D’ passa a ser um importante ponto de li- para a web, além do uso de características físicas e nado quanto o cinematográfico, a viagem no tem- gação com outras produções mais modestas do voz (dublagem) dos artistas em outras produções. po. Os personagens foram levados a um futuro no que as cinematográficas (Figura 2). Entre o ano de 2014 e 2015, foram lança- qual a Terra havia sido partida ao meio e ninguém dos jogos mobile contendo alguns personagens sabia o que de fato havia acontecido, mas esta- Figura 2: Linha do tempo de produtos e produ- ções lançados a partir da série para TV ‘Agentes da conhecidos da série. Um dos casos que apresen- vam todos em um lugar chamado de ‘Farol’ o qual S.H.I.E.L.D.’. ta a influência da personagem televisionada para era controlado pelos Krees. outros seguimentos é a personagem Daisy John- Os episódios seguintes mostram os perso- son (Tremor), antiga Skye, no qual o jogo aban- alguma cena, personagem ou diálogo tem uma narrativa dona as características físicas da personagem nas escondida e é notado pelos mais atentos. 28 A NARRATIVA TRANSMÍDIA DA MARVEL: A FIXAÇÃO DA MARCA ATRAVÉS DA SÉRIE AGENTS OF S.H.I.E.L.D Maiara de Oliveira Morais e Mônica de Sá Dantas Paz

HQ e introduz ela no jogo baseada na sua imagem posta no primeiro volume das edições. O oitavo Inumana latina, que assim como acontece em transmitida pela série, em prol de haver uma fácil volume acompanha a personagem Daisy Johnson ‘Capitão América: Guerra Civil’ (2016), Yo-Yo, sen- conexão do público com a personagem. e seu pai, o vilão Hyde, essa edição apresenta um do uma pessoa com super poderes, deve assinar Em fevereiro de 2015, foi lançado pela pouco do relacionamento conturbado dos perso- o tratado de Sokovia9 e assim se registrar como Marvel uma coleção de 12 volumes de HQ’s8 con- nagens além da necessidade de Daisy de preci- Inumana. Logo, nessa websérie, podemos acom- tendo personagens inspiradas na série ‘Agentes sar da ajuda do seu pai. O nono volume, lançado panhar narrativas de três grandes produções que da S.H.I.E.L.D.’. No primeiro volume, o agente Coul- como uma edição comemorativa, apresenta os fazem parte da sua composição final. son reúne diversos agentes e heróis para comba- agentes Phil Coulson e Nick Fury, em uma missão Apesar de ser uma produção que não per- ter uma ameaça. O segundo volume, acompanha que une o passado e o presente da S.H.I.E.L.D. No tence ao UCM, sua primeira e única temporada a personagem Jemma Simmons e a Inumana Miss décimo volume, os agentes Coulson e Melinda não faz nenhuma ligação direta ou indireta com Marvel. O terceiro volume conta com Coulson May, juntamente com Howard, o pato, se unem os filmes da Marvel, porém alguns elementos que auxiliado pelo Homem-aranha no combate de para salvar o multiverso. No décimo primeiro vo- compõe a série ‘Inumanos’ já haviam sido apre- ameaças místicas no santuário no qual se encon- lume, Coulson e sua equipe ressuscitam um he- sentados em ‘Agentes da S.H.I.E.L.D.’. A principal tra o Dr. Estranho. O quarto volume, é apresado a rói do passado para poder derrotar um inimigo conexão criada entre ambas as séries é o modo personagem Sue Richards, conhecida como Mu- também do passado. No décimo segundo volume como ocorrem as transições entre um humano e lher Invisível do ‘Quarteto Fantástico’. A persona- e também o último lançado no ano de 2016, os um inumano, o processo da Terrigênesis10, conhe- gem é apresentada como a agente mais secreta agentes enfrentam os asgardianos para conse- cido por despertar o lado inumano em seres hu- da S.H.I.E.L.D. guirem uma chance de voltar no tempo e salvar manos com o DNA modificado. O quinto volume apresenta os agentes en- o mundo. Em AOS, é apresentado o despertar dos frentando uma ameaça mística. O sexto volume, Após os acontecimentos da terceira tem- inumanos, após uma série de acontecimentos. Já conta com o desenvolvimento da ameaça que foi porada de Agentes da S.H.I.E.L.D, a Marvel liberou 9 Tratado de Sokovia: Registro criado pelo governo que consta identidade e o poder de pessoas seis episódios da websérie ‘SlingShot’ no Youtube. 8 Disponível em: https://comicvine. superdotadas. gamespot.com/s-h-i-e-l-d/4050-79159/. Acesso em: 18 nov. A Web série tem foco na personagem ‘Yo-Yo’, uma 10 Terrigênesis: processo em que humanos 2018. passaram ao inalar a névoa obtida com a quebra de cristais 29 A NARRATIVA TRANSMÍDIA DA MARVEL: A FIXAÇÃO DA MARCA ATRAVÉS DA SÉRIE AGENTS OF S.H.I.E.L.D Maiara de Oliveira Morais e Mônica de Sá Dantas Paz na série ‘Inumanos’ (2017), não é apresentado ne- bém o personagem Dentinho a série ‘Inumanos’ Defendeu-se também que ‘Agentes da nhum fato que venha a explicar ao público como além da vilã Hala, a acusadora (Hala, the accuser), S.H.I.E.L.D.’ se tornou a base principal para novas vem acontecendo esse processo de transforma- versão feminina do personagem Ronan, o acusa- produções em diferentes meios de comunicação, ção na Terra. Esse tópico, para quem não acompa- dor, apresentado em ‘Guardiões da Galáxia Vol. 1’ expandido cada vez mais o seu universo trans- nha uma das séries, mas resolveu começar a nova, (2014), que é dublada pela atriz Ming-Na, que dá midiático para fora dos cinemas. A série também deixa uma certa incógnita, sendo necessário a vida a ‘Agente da S.H.I.E.L.D.’, Melinda Mey. passa a ser independente dessas narrativas, mes- busca por mais informações na outra produção mo que ainda cite e relembre fatores e eventos ou mesmo na internet. CONSIDERAÇÕES FINAIS já conhecidos pelo público do Universo Cinema- A animação produzida pela Disney XD em tográfico da Marvel ou dos quadrinhos. Nota-se parceria com a Marvel acaba trazendo de forma A estratégia que a Marvel vem utilizando que, a partir da terceira temporada, a série AOS inesperada uma ligação indireta com parte do para construir suas narrativas só foi possível pelo começou a produzir narrativas que viram base universo da Marvel nas séries. É possível conectar enorme universo que foi construído ao longo dos das conexões transmídias de novas produções da esses fatores no momento em que a personagem anos e pelo engajamento dos consumidores. Para Marvel (Figura 2). na animação, conhecida como Tremor (Quake) é tanto, a empresa conecta suas narrativas utili- Por fim, considera-se que a estratégia da dublada pela mesma atriz que lhe da vida na TV, zando-se do compartilhamento de personagens, Marvel se faz eficaz ao criar ligações para conec- pela série AOS. eventos, objetos, sejam eles originados nas HQ’s, tar uma marca a diversas histórias em diferentes Outra ligação que a animação possui com nos filmes ou em outros suportes de mídia. meios de comunicação disponíveis para, dessa a série é a personagem Aranha Fantasma (Ghos- Neste, trabalho, demonstrou-se como a sé- forma, permanecer no dia-a-dia do seu consumi- t-Spider), que é dublada pela atriz que interpreta rie ‘Agentes da S.H.I.E.L.D.’ é um produto televisivo dor, sendo assim, lembrada constantemente. a vilã Ruby na quinta temporada da série AOS. A criado para ser o ponto de convergência das obras personagem da animação está ainda em uma we- da Marvel para o cinema, expandindo o Universo bsérie para apresentar eventos que antecederam da Marvel tanto em conteúdo como em suporte o filme. Deste produto, podemos associar tam- midiático (Figura 1). terrigen e assim ativar seus genes Inumanos. 30 A NARRATIVA TRANSMÍDIA DA MARVEL: A FIXAÇÃO DA MARCA ATRAVÉS DA SÉRIE AGENTS OF S.H.I.E.L.D Maiara de Oliveira Morais e Mônica de Sá Dantas Paz

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1 1 Introdução (...) o processo em que os elementos que integram uma ficção são disper- Resumo: Este artigo analisa a série transmídia he Li- Como dizia Heráclito, “Não se entra duas zzie Bennet Diaries (2012), uma adaptação atualizada sados sistematicamente, através de múltiplas plataformas, com o propósi- do livro Orgulho e Preconceito, de Jane Austen. A série vezes no mesmo rio”, pois além de não se encon- to de criar uma experiência de entre- foi um case de sucesso precursor de ficção transmídia. trar as mesmas águas, o próprio ser se modifica. tenimento única e coordenada. Ideal- Merece não só ser lembrada por seu pioneirismo, mas The Lizzie Bennet Diaries (The LBD) foi um mente, cada meio deve oferecer sua o estudo dessa experiência ainda é capaz de contribui contribuição para o desdobramento da para o desenvolvimento de projetos transmídia e re- dos objetos estudados em minha dissertação de história (JENKINS, 2011, n.p.). flexões sobre esta forma de narrar. mestrado sobre narrativas transmidiáticas (DIAS, Palavras-chave: narrativa transmídia; ficção se- 2015). Hoje, em 2019, já há um maior consenso en- O autor defende que para uma narrativa riada; adaptação; The Lizzie Bennet Diaries, Orgu- tre os pesquisadores e o mercado do que se trata ser transmídia, é preciso juntar multimodalidade lho e Preconceito. uma narrativa transmídia2. Entretanto, ainda não com intertextualidade radical, com o propósito Abstract: This article analyzes the transmedia series chega a ser um senso comum, sendo conveniente de compreensão aditiva. Ou seja, o texto precisa The Lizzie Bennet Diaries (2012), an updated adaptation definí-la. Contudo, não me proponho a aprofun- estar presente em mais de uma mídia e seus frag- of the book Pride and Prejudice, of Jane Austen. The se- ries was a precursor success case of transmedia fiction. dar essa discussão, pois o objetivo desse artigo é mentos precisam conversar entre si, adicionando It deserves not only to be remembered for its pionee- a análise do objeto. Procurei observar como essa camadas de conhecimento à história (JENKINS, ring, but the study of this experience is still capable of adaptação, no formato transmídia, revisita a obra 2011). contributing to the development of transmedia pro- jects and reflections on this form of storytelling. Orgulho e Preconceito, de Jane Austen (AUSTEN, Podemos resumir, então, uma narrativa Keywords: transmedia storytelling; serial fiction; 1982). transmídia como uma narrativa que se desen- adaptation; The Lizzie Bennet Diaries, Pride and Pre- O conceito narrativa transmídia (Transme- volve em múltiplas plataformas de mídia, cujos judice. dia Storytelling) foi formulado, em 2003, por Hen- conteúdos são complementares. A ideia é que a ry Jenkins como: cada nova mídia haja um prolongamento do uni- Doutoranda em Comunicação Social pela PUC-Rio. 1 verso narrativo de determinada história, e não Mestre em Comunicação Social pela PUC-Rio (2015). E-mail: 2 Hoje uso mais o termo narrativa transmídia, pois se [email protected]. O presente trabalho foi realizado com tornou mais comum seu emprego no Brasil, mas cheguei a uma adaptação do conteúdo presente em uma apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de usar muito narrativa transmidiática, pois em Portugal se usa Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento narrativa transmediática. mídia para outra. Cada plataforma acrescenta ao 001. 33 REVISITANDO THE LIZZIE BENNET DIARIES

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conteúdo o melhor de suas funções. Por exemplo, No caso de The Lizzie Bennet Diaries (The pela presença das outras mídias, onde os outros se uma das plataformas escolhidas é uma rede so- LBD) (2012), sua produtora, Pemberley Digital, personagens podem falar de si. cial, o que se espera é que sejam bem desenvol- criou uma obra atualizada e adaptada do roman- Quem só assiste o vlog da Lizzie recebe vidas as funções de engajamento e identificação ce Orgulho e Preconceito, no formato transmídia. A todo o conteúdo relevante para entender a trama com a audiência. narrativa partiu, desse modo, de uma história úni- narrativa, mas quem acompanha as outras mí- Andrea Phillips acredita que existem duas ca, com começo, meio e fim, que foi fragmentada dias tem uma experiência mais aprofundada, pois formas de estruturar uma narrativa transmidiáti- em diferentes plataformas: youtube, twitter, sites e além da questão do viés, Lizzie também não tem ca: a primeira é partir de uma história única e frag- tumblrs. acesso a tudo que acontece. mentá-la por várias mídias; a segunda é começar Todos os personagens que compõem a Esse modelo de séries transmídia em que a contar uma história em uma mídia e continuá- série foram modernizados, mas o enredo segue acompanhando só uma das mídias é possível -la em outra, adicionando extensões ad infinitum. a história original, de Jane Austen. Na adaptação entender toda a história é conhecido como na- Acredita que ambos os processos podem resultar transmídia, Lizzie Bennet é uma estudante univer- ve-mãe. As demais mídias aparecem como um em narrativas coesas. Independente do caminho sitária, que mora com seus pais e suas duas irmãs. conteúdo adicional, mas não indispensável para a escolhido, o resultado final sempre será a frag- Ela começa a gravar os vídeos em seu quarto, com compreensão da obra. mentação (PHILLIPS, 2012). a ajuda de sua melhor amiga, Charlotte. O produtor The LBD, Bernie Su, considera Poderíamos dizer, também, que o resulta- A plataforma principal é o vlog de Lizzie, essa forma de fazer transmídia como capaz de do final é a serialização, mas diferentemente de em que a protagonista conta grande parte da unir, em um mesmo produto, aqueles que querem outros tipos de narrativas serializadas, sua história história como um diário de vídeo online. Convém ter uma experiência de sofá (lean back experience) se desdobra em diferentes plataformas, podendo destacar que a história narrada é o ponto de vista e aqueles que querer caçar informações por todas usar mídias tais como livros, programas de TV, fil- de Lizzie e esta representa o preconceito, presente as plataformas. Os mais ativos são recompensa- mes, canais de youtube, redes sociais, eventos ao no título do romance, enquanto o seu (futuro) par dos com mais detalhes e histórias paralelas que vivo, jogos, peças de teatro, o que fizer mais senti- romântico, William Darcy, representa o orgulho. complementam a narrativa principal. Bernie Su re- do para a narrativa que se deseja contar. Assim, seu olhar sofre um viés, que é relativizado vela que 50% da audiência assistia apenas aos ví-

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deos de Lizzie, 75% apenas aos vídeos de Lizzie e ciso adaptar seu conteúdo de maneira que ele pu- radas nada respeitáveis, e ainda poderiam colocar de Lydia, não seguindo os personagens nas redes desse fazer sentido em uma realidade completa- em risco a reputação de todas as suas irmãs, o que sociais e apenas 25% ia atrás de uma experiência mente distinta à do século XIX, momento em que lhes trariam menos oportunidades matrimoniais mais aprofundada, concluindo que não era possí- a obra Orgulho e preconceito foi escrita. As ques- e lhes fecharia as portas para o convívio social. vel esperar que todos fossem circular entre plata- tões humanas se mantêm, mas a conjuntura se Na série da Pemberley Digital, sua mãe formas e percebendo que a história sempre preci- transformou. Principalmente no que diz respeito segue obcecada por casar suas filhas, mas para sa vir em primeiro lugar, que o realismo imersivo, à situação de uma família composta só por mu- a Lizzie de hoje, esse comportamento pode ser ainda que importante, tem que estar em segundo lheres que não poderiam herdar nem sua própria satirizado em seus vídeos como exagerado. Essa plano (SU, 2013). propriedade quando o patriarca da família fale- questão não tem mais como ter o peso que tinha Nem todas as franquias transmídia se de- cesse. Na época, as mulheres não podiam herdar na narrativa original, por isso muitos conflitos li- senvolvem nesse modelo nave-mãe. Algumas, ao propriedades, que passavam para o parente mais gados a casamento foram substituídas por aspi- contrário, tornam importante que se consuma próximo do sexo masculino, no caso Mr. Collins. A rações profissionais, sendo o trabalho o caminho todo o conteúdo presente em diferentes mídias família Bennet tinha recursos financeiros restritos, atual para se garantir o sustento e esfera impor- para que, como um quebra-cabeça, possa se en- cinco filhas e nenhum herdeiro. A salvação dessas tante da satisfação pessoal, sem deixar de lado, é tender a história ou participar de um desafio. Esse mulheres era o casamento. Essa era a forma de claro, o amor. modo de projeto funciona mais com produtos de realização pessoal e garantia de uma vida confor- Entre os aspectos mais formais, estão o nicho, que possuem um público suficientemente tável. fato da família Bennet passar a ter três filhas (Kit- engajado a ponto de circular por todas as plata- Por esse motivo, a matriarca da família ty transformou-se na gata de Lygia e Mary, numa formas. tentava desesperadamente casar suas filhas, para prima) e a mudança de distância da vizinhança, que pudessem ter uma vida digna e não depen- no caso da propriedade de Bing Lee, que não po- 2 O tempo como fator que influencia a adap- der da bondade do parente para ter um lar no fu- dia ser mais de 3km, como uma propriedade rural tação turo. Ela se preocupava muito com as atitudes de britânica do início do século XIX. Outras mudan- Trazendo a série para a atualidade foi pre- sua filha mais nova, Lygia, que não eram conside- ças culturais acabaram por alterar o destino de

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alguns personagens. As mulheres, de uma forma casamento. Na adaptação atualizada, a proposta Os vídeos de Lizzie, além do seu ponto de geral, ganharam mais poder de ação na resolução passou a ser uma oferta de trabalho, que Lizzie vista, algumas vezes dão lugar a depoimentos de de problemas. Lydia não teve que casar com Wi- recusou, e que foi aceita por sua melhor amiga sua amiga Charlotte Lu e de suas irmãs, a doce ckhan por ter dormido com ele, e sua humilhação Charlotte, da mesma forma como ocorre no livro. Jane e a doidinha Lydia. Todas possuem twitters e não foi esse ato em si, mas sim ele ter anunciado Charlotte também é uma personagem mais im- algumas tumblrs. Outros personagens, como Bing que publicaria um vídeo dela na internet. No livro, portante na série, inclusive ajudando Lizzie com a Lee, sua irmã Caroline Lee e seu amigo William Lydia precisa se casar com Wickhan não só por ela, edição dos diários. Darcy, também usam o twitter desde o princípio. mas pela reputação e futuro da família, ainda que Lizzie vai trabalhar na Pemberley Digital, É interessante que os tweets mostram o ponto de todos soubessem que ele era péssima pessoa. Na que é a empresa da família Darcy, e não mais vi- vista dos personagens que não estão aparecen- série transmídia, William Darcy, que tinha assun- sitar a propriedade rural dos tios, próxima à casa do no vlog. (Bing Lee, sua irmã Caroline Lee e seu tos passados a tratar com Wickhan e já estava to- dos Darcy, chamada Pemberley, não por acaso o amigo William Darcy). talmente apaixonado por Lizzie, conseguiu evitar mesmo nome da produtora da série. Lizzie é a “dona” do vlog e Charlotte sua que o vídeo entrasse no ar, ao invés de obrigá-lo a editora. Algumas vezes as irmãs a interrompem se casar com Lydia. Wickhan é capitão de um time 3 Orgulho e Preconceito no formato transmídia e, outras vezes, elas são chamadas por Lizzie, so- de waterpolo na adaptação, e não um oficial do Como já foi dito, a história é contada a par- bretudo para ajudar nas encenações caricatas que exército. A personagem de Mary, apesar de passar tir dos diários online de Lizzie, no youtube, e com- usa para contar seu lado da história. de irmã para prima, teve seu arco de evolução do plementada pelo twitter de vários personagens, The LBD era filmado 4 ou 6 semanas em personagem melhor desenvolvido e o fato dos fãs tumblrs, diário online de Lydia (presente no canal avanço para ser adaptável, mas Bernie observou terem gostado muito dela fez com que seu papel de Lydia e lançados já na metade da experiência), que as críticas precisavam ser levadas em conta, fosse ampliado. blog de moda de Jane, site da empresa de Mr. Co- mas não necessariamente acatadas: a persona- Ambos Mr. Collins falam demais, e de for- lins e vídeos-teste da nova plataforma de vídeo da gem de Lizzie foi criticada por ser muito dura nos ma gratuitamente rebuscada. No original, ele fictícia Pemberley Digital, operada por Gigi Darcy, comentários, mas, atenuar isso ou não, era um é um clérigo protestante que propõe Lizzie em irmã de William Darcy, entre outros. ponto que necessitava reflexão, pois tinha a ver

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com seu viés preconceituoso e, sendo uma vlog- são de sinceridade. mesmo caso. ger, é bom que tenha opinião (ROMANO, 2012a). Lizzie tem ciência da subjetividade de sua A série levanta questões totalmente con- O estilo de um vlog é o da intimidade. Ja- narrativa, chega a comentar, em um de seus últi- temporâneas: quando Jane comenta que Lizzie e net Murray comenta que o computador é capaz mos posts no vlog, que as coisas que relata são um Lydia são muito parecidas, surpreendendo Lizzie de criar um espaço que é público, mas que tam- recorte da realidade sob a sua perspectiva, sua com a comparação, ela explica que ambas passam bém aparenta ser privado e íntimo, a tal ponto, opinião pessoal. a vida falando com todo mundo online, mas não que existem pessoas que compartilham online Vera Figueiredo descreve, como um ato uma com a outra. histórias pessoais, que não contam nem para seus comum no romance modernista, atitudes seme- Por ter a possibilidade de oferecer uma amigos (MURRAY, 1999). lhantes às de Lizzie, em que frequentemente o pluralidade de vozes, a transmídia pode relativizar O vlog é contado em primeira pessoa e, narrador se autoparodia, como se estivesse a se a verdade e criar intrigas, a partir de testemunhos ainda que tenhamos a participação de outros per- justificar, pedindo desculpas por ter narrado algo, contraditórios, ou porque alguém está mentin- sonagens, a voz mais forte é a de sua “dona”, Lizzie: relativizando certezas e multiplicando possíveis do ou enganado sobre determinada situação, ou trata-se de um diário ficcional. pontos de vista (FIGUEIREDO, 2010). porque refletem visões de mundo de diferentes No livro Tempo passado, a autora Beatriz Em uma mesma mídia, como no caso do personagens. O princípio da subjetividade está Sarlo cita Arendt (ARENDT apud SARLO, 2007), vlog de Lizzie, é possível ter mais de uma voz: entre as sete características chaves da narrativa que apontou que, apesar do testemunho ser pas- quando narra, por exemplo, fatos ocorridos em transmídia, de Henry Jenkins.3 sível de desconfiança, ele é, ao mesmo tempo, uma festa entre ela e William Darcy ou entre sua É curioso ver como as pessoas “compram” uma instituição da sociedade, tendo a ver com a irmã, Jane, e Bing Lee, ao lado da própria Jane, a realidade das narrativas transmidiáticas de uma esfera jurídica e com um laço social de confiança. que através de suas caretas e comentários vai re- forma natural. No teatro infantil, as crianças rea- Ela acrescenta que, quanto mais detalhes tem o lativizando o testemunho de Lizzie. gem ao que assistem: gritam, aconselham os per- testemunho, mais veracidade a narrativa parecerá Quando sua irmã mais nova Lydia, chatea- 3 As outras características propostas por Jenkins ter. A falta de distanciamento e a abordagem ínti- da com ela, resolve lançar seu próprio vlog, pas- são, além da subjetividade: espalhar conteúdo vs. ir mais fundo na história; continuidade vs. multiplicidade; imersão ma em primeira pessoa nos passam uma impres- samos a ter acesso a mais de uma visão sobre o vs. extratabilidade; construção de universo; serialidade; e performance (criar um conteúdo interessante o suficiente 37 REVISITANDO THE LIZZIE BENNET DIARIES

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sonagens, avisam que o malvado está surgindo to pessimista e desanimada com a vida, e os pró- do seu projeto Better Living, Mr. Collins aproveita por trás. É algo natural para elas, mas, conforme prios viewers, preocupados, começam a pergun- esse gancho para perguntar se Lizzie pode deixar vão crescendo, deixam de se comportar assim. tar via twitter o que ela tinha e se estava melhor. um link desse vídeo junto ao texto de descrição Aprendem que aquilo é ficção, sabem que no caso No tumblr, Jane, que trabalha com moda, do vídeo de perguntas e respostas, para que to- da TV e do cinema o personagem não vai ouví-las, expõe seus lookbooks, abrindo espaço para des- dos pudessem ter acesso. Esse foi um mecanismo ainda que, às vezes, não hesitem em fazer algum tacar patrocínios e apoios, como as roupas usadas criado para chamar a atenção dos participantes comentário em voz alta, principalmente em filmes pelas personagens. para a existência do projeto, do qual a audiência de suspense e thriller, que deixam os nervos à flor No twitter, os fãs também se comunicam poderia participar enviando vídeos, de até no má- da pele. Entendem que, em um teatro não inte- com Lizzie, perguntando sobre acontecimentos ximo dois minutos, demonstrando sua habilidade rativo, não têm influência na narrativa. Mas, no da história ou fazendo comentários sobre temas para passar instruções de forma simples. Mr. Co- caso das ficções participativas, que passam pelo com os quais se identificam. lins também usou seu twitter para divulgar o pro- menos a sensação de influência, são capazes de Quando Lizzie conta a Mr. Collins, que está jeto. Essa forma de participação criada constituiu se relacionar com naturalidade com os persona- fazendo um episódio especial de perguntas e res- uma abertura em um campo totalmente a parte gens, em seus perfis nas redes sociais. Em Perplex postas, no qual responde o que lhe perguntam no ao desenrolar narrativo, mas que foi capaz de en- City, quando a personagem Anna foi encontrada twitter, facebook, etc, ele comenta: “humm, intera- gajar alguns fãs, aumentando seus laços com a morta, uma profusão de cartas foi enviada aos tividade, claro! Uma forma tão progressista e sa- série. demais personagens, para consolo, e origamis fo- gaz de se conectar com a sua audiência. De certa Depois do término inesperado e sem sen- ram mandados para a sede da produtora. É como forma, você está fornecendo um canal para...” Ela tido do relacionamento com Bing Lee, Jane vai o resgaste de uma relação de faz de conta mais interrompe a fala, que de outra forma seria muito para Nova York para trabalhar com produção de visceral. longa, mas é interessante a forma usada para au- moda, com isso saindo dos vídeos de Lizzie. Nesse No episódio 16, Charlotte mostrou-se mui- tocomentário da série. momento Lydia, que já tem o seu próprio vlog, vai para gerar engajamento e oferecer oportunidades para A última pergunta é feita por uma jovem passar uns dias com Jane, de modo que o contato isso). Definições mais detalhadas sobre essas características podem ser encontradas a partir da página 40, da minha que havia trabalhado para Mr. Collins em um vídeo dos fãs com ela é mantido por vídeo. dissertação. Endereço do Link na bibliografia (DIAS, 2015). 38 REVISITANDO THE LIZZIE BENNET DIARIES

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Seguindo a técnica de levantar questões tweetando-os junto a comentários, o que foi uma mas quem circula sabe antes e de forma, algumas para despertar a curiosidade do público, alguns estratégia interessante para trazer público novo. vezes, mais emocionante. eventos ficam um bom tempo em aberto, como Essa personagem só aparece nos vídeos quando Após o final da experiência, um ano de- a mudança inesperada da família Lee, que deixa a Lizzie vai trabalhar na Pemberley Digital, empresa pois, foram publicados dois vídeos bônus, um cidade. Bing vai embora sem nem mesmo se des- dos Darcy, e registra seu cotidiano de trabalho. com Lizzie e outro com Lizzie e Darcy, responden- pedir de sua namorada Jane, e Caroline, que nesse Gigi já sabe de sua história e do amor que o irmão do perguntas como fazendo parte de um semi- momento se dizia amiga de Lizzie e até já sabia da tem por Lizzie, mas mantém-se discreta. nário sobre o tema hypermediation in new media. existência dos diários online, passa um tempo sem No final da narrativa, Gigi tem um papel Lizzie, como colaboradora da Pemberley Digital, dar qualquer notícia. Outro mistério é a carta que fundamental, pois, a partir de suas mensagens de diz que sua empresa busca nos vídeos ponto de Lizzie recebe de Darcy revelando fatos que não vídeo para Darcy e outro parceiro, na plataforma vista e paixão, que é importante que não se esteja podiam ser ditos em público. Domino, ficamos sabendo da investida de Darcy gratuitamente querendo aparecer. E comenta que Lee aparece em um dos vídeos de Lizzie no para salvar a reputação de Lydia. estavam publicando um livro diário secreto, onde começo da série e Darcy só três meses depois, já No vlog de Lydia são desenvolvidas tanto havia uma cópia da carta de Darcy, obviamente no final da série. No entanto, foi sempre possível histórias relevantes para a trama, como sua fuga despertando a curiosidade dos fãs. acompanhá-los no twitter. com Wickhan, quanto histórias adicionais, como No livro em questão, The secret diary of Liz- No episódio 75, de natal, Lizzie pede para as relacionadas à sua prima Mary. zie Bennet, é possível encontrar mais informações os fãs falarem sobre suas formas de celebrar essa Mas, em geral, tudo o que é indispensável sobre o pensamento de Lizzie a respeito de cada tradição ou qualquer outra semelhante, consti- à história aparecerá, em algum momento, no vlog episódio. Pelos comentários, os fãs parecem ter tuindo uma outra participação que não tem qual- de Lizzie, ainda que de forma atrasada em relação gostado do livro, mas esperavam que fosse mais quer relação com o enredo. às outras mídias. Nesses casos, os fatos aparecem profundo nos segredos da personagem. Uma Gigi Darcy, a irmã de William Darcy, que com o mecanismo de recapitulação, narração dos leitora reclamou em seu blog que, na parte cor- só aparece no twitter quando a série já estava no fatos passados. Assim, as pessoas que não mudam respondente aos capítulos 60 e 98, o diálogo do episódio 75, começa a rever os vídeos antigos, re- de meio conseguem ter acesso a toda a narrativa, vídeo foi transcrito em suas exatas palavras, sem

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nenhuma informação extra, o que mostra que pode distrair o leitor pela quantidade de links rem perder nada e dos que querem seguir a his- os fãs esperam encontrar conteúdo diferente em iguais, mas, por outro lado, tem a vantagem de tória de maneira mais fácil. Posteriormente, após cada plataforma (O’CONNOR, 2014). A narrativa diminuir as chances de que a informação se perca o desenvolvimento de outras adaptações de clás- transmídia precisa oferecer compreensão aditi- (LANDOW, 1997). sicos para o formato transmídia, a Pemberley jun- va. Toda mídia precisa contribuir com algo a mais Para guiar a audiência, os produtores cria- tou tudo o que estava no metasite da Lizzie no site para a história. ram um portal, como um meta-site com aparên- da empresa, em uma aba própria, lado a lado com Foi lançado, também posteriormente, li- cia de blog, onde estão organizados todos os links o mesmo modelo aplicado às outras produções. vro The Epic Adventures of Lydia Bennet, mais um postados. Na homepage existiam as opções de Na narrativa hipertextual não existe uma desdobramento da série The Lizzie Bennet Diaries, acessar toda a experiência (onde é mostrada uma única rota possível, logo as pessoas têm acesso que continua a história da irmã caçula Lydia Ben- lista dos posts dos diários online, twitter e tum- a diferentes conteúdos e, sendo assim, sentem- net, incluindo reviravoltas para essa personagem blr, organizados todos juntos pela data de pos- -se motivadas a falar umas com as outras, tanto de The Lizzie Bennet Diaries e seus novos desafios, tagem); ver apenas a coleção dos diários online; para mostrar o que conseguiram descobrir, quan- como a busca de uma carreira. ou escolher uma mídia específica para visualizar, to para colher mais informações, podendo, dessa O facebook da série era uma mídia mais também organizada cronologicamente. Na barra forma, entender melhor o cenário completo, a institucional: permitia saber tudo sobre a série, os lateral era possível ver as postagens, mês a mês, partir dessa inteligência coletiva. Isso encoraja o atores e acessar a loja online para comprar seus e nas categorias de sessões também havia acesso desenvolvimento de foruns e wikis, especialmente produtos. Como a história é disponibilizada gra- para behind the scenes, news e story (que mostrava quando há suspense envolvido. tuitamente, a loja é uma das formas de captação os mesmos posts da experiência completa dispos- Numa entrevista, Bernie Sue contou que, de recursos. tos em um layout de textos e imagens), tumblrs mesmo com todos os episódios e interações dis- Apesar de The LBD ser uma série cheia de (de todos os personagens), twitters (de todos os poníveis, gratuitamente, no youtube e nas redes capilaridades, eles ofereceram um desenvolvi- personagens) e videos. Os personagens ainda po- sociais, os fãs não paravam de perguntar se ao fi- mento narrativo que segue uma linha do tempo. diam ser seguidos diretamente nas redes sociais. nal da experiência poderiam comprar um DVD da A estratégia conhecida como many-to-one linking O portal facilita a vida dos fãs que não que- série (ROMANO, 2012b). Este fato motivou a pro-

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dução do DVD por crowdfunding, levantando os Bernie Su relata que um dos seus maiores trabalho desafiante, mas, em casos como esse, um fundos através do site Kickstarter. Primeiramente, desafios emThe LBD foi pensar em como integrar perfil bem detalhado de cada personagem pode calcularam um orçamento para um DVD de seis a participação, pois, quando são utilizadas mídias resolver esse problema. Em uma série transmídia horas de duração, mas, como alcançaram a meta que abrem espaço para o diálogo, é preciso entrar que desenvolvo, criamos uma planilha no google em apenas um dia, decidiram ampliar o material. nesse jogo de comunicação. drive acessível a todos os envolvidos na criação da O sucesso da coleta foi tanto que conseguiram, Sanditon parece ter sido o projeto esco- série, onde cada personagem ativo nas redes tem não só fazer um DVD com mais elementos, mas lhido com o objetivo de explorar a participação. uma aba com seu nome. Se, a qualquer momento, também dar um bônus, para os atores e para a Foram inteligentes em eleger uma personagem já algum ator responder algo não pensado anterior- equipe, e produzir uma nova minissérie, Welcome querida como protagonista, facilitando para que mente para um fã na interação, ele pode adicionar to Sanditon, para preencher o espaço de tempo as pessoas se sentissem incentivadas a participar, a informação à planilha, garantindo que esta não entre The Lizzie Bennet Diaries e a sua produção como uma forma de prolongar a experiência de se perca e se quebre o pacto da suspensão da des- seguinte, Emma Approved. O projeto todo está The LBD, de que tanto gostaram. crença. detalhado no Kickstarter4. Em uma entrevista para Motherboard, é Outra preocupação de Bernie Su era a de O spin off Welcome to Sanditon, também é possível notar o medo da participação, no caso fazer a adaptação de uma obra canônica preser- uma adaptação de outro romance de Jane Austen, de The LBD. Bernie fala sobre a dificuldade em res- vando seu enredo: “O cânone aqui são as pouco Sanditon, que não foi terminado. Ainda que esse ponder perguntas, contando que, uma vez, um fã mais de nove horas de história, e interagindo com romance não tenha nenhuma ligação com Orgu- perguntou a Lizzie qual era sua cor preferida, coi- os fãs o cânone pode ser quebrado, ou mesmo lho e Preconceito, foi usada uma das personagens sa que parecia simples, mas não era, porque, se o final da história pode acabar sofrendo altera- de The LBD como protagonista, Gigi Darcy. Emma fosse respondido verde, por exemplo, e o fã iden- ções”5. Talvez por isso escolheram o livro Sanditon, Approved também contou com a participação de tificasse nos vídeos que Lizzie usava sobretudo uma obra inacabada, para experimentar partici- Caroline Lee. azul, poderia perguntar por que ela então só usa- pação, pois não haviam rumos a serem tomados, va azul, o que poderia quebrar a história (EÖRDÖ- a fim que se chegasse a um desfecho pré-definido 4 Informações disponíveis em: https://www. kickstarter.com/projects/pemberleydigital/the-lizzie- GH, 2014). Lidar com as interações pode ser um (EÖRDÖGH, 2014). bennet-diaries-dvdand-more/posts/874414 5 Tradução da autora: The canon here is the nine- 41 REVISITANDO THE LIZZIE BENNET DIARIES

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Alexandra Edwards, editora transmídia de interações nas redes sociais sim, estavam também servindo apenas como apoio à memória ou para The LBD, conta que seus fãs eram tão apaixonados online no universo da série. situar o que ocorreu fora da plataforma principal. que iam atrás de toda e qualquer coisa postada, Os mecanismos de indexação estabeleci- O livro The secret diary of Lizzie Bennet foi sendo necessário, assim, oferecer informações dos no metasite também permitiram que as sé- criticado por ter dois capítulos com informação apenas com o ritmo que eles fossem capazes de ries pudessem ser seguidas por aqueles que não redundante, mostrando que esse não é o caminho manter, pois acostumar os fãs com uma quantida- assistiram a narrativa desde o início. Um dos pro- que interessa aos fãs, os quais desejam ir mais fun- de inviável de postagens teria como resultado a blemas de seguir atrasadamente uma série trans- do nas histórias que gostam, conhecendo melhor decepção (ROMANO, 2012b). mídia é que a maioria das redes sociais (para não seus personagens, que precisam ser ricamente Com The LBD, os produtores tiveram al- dizer todas), tem o seu conteúdo disposto a partir construídos, propiciando um alto grau de empa- gumas dificuldades quanto à separação do mun- do mais novo para o mais antigo, sendo assim pra- tia, para, como resposta, gerar engajamento por do real e ficcional. Se Lizzie postava seus vídeos ticamente impossível acompanhar uma rede ten- parte da audiência. online, como os outros personagens poderiam tando ver a sequência narrativa sem ter spoiler. Se O estudo do caso de The LBD, e de outras não ter conhecimento sobre eles? Essa pergunta você vê as postagens como arquivos a partir dos séries da Pemberley Digital, me permitiu pensar fez com que decidissem dividir as interações de links do metasite já consegue, mas claro que per- em estratégias para o desenvolvimento de minha Emma Approved entre in-world e out of the world. dendo a experiência de ver a postagem do per- própria série. Claro que quando passamos da teo- Assim, existiam vídeos que Emma fazia como que sonagem no meio da postagem dos seus amigos. ria para a prática esbarramos em muitos desafios destinados à sua análise pessoal e, portanto, não não planejados. Um exemplo disso foi quando se propunham a estar online in-world, o que sig- 4 Conclusão lançamos os perfis das nossas personagens no nifica que, para a realidade ficcional, eles seriam Com poucas exceções, os conteúdos de facebook. Já no primeiro dia, homens aleatórios mantidos em segredo, mas na nossa realidade, The Lizzie Bennet Diaries nas diferentes platafor- assediaram as nossas personagens e não tivemos out of the world, seriam vistos online (SU, 2013). As mas são complementares e oferecem informação tempo para planejar como lidar com possíveis in- adicional: levantam algumas perguntas e estabe- terações como essas, pois antecipamos a data de plus hours of story, and interacting with the fans can break canon, or even change the outcome of the story (EÖRDÖGH, lecem pequenos mistérios, a redundância é leve, lançamento do projeto porque o mecanismo do 2014, n.p.). 42 REVISITANDO THE LIZZIE BENNET DIARIES

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facebook começou a indicar os perfis das perso- do desdobramento narrativo. EMMA APPROVED. [metasite e blog]. Disponível nagens para nossos amigos reais, o que nos fez te- É possível, usando o formato transmídia, em: . Acesso em: 14 set. 2014. mer que eles pudessem denunciá-los como falsos, criar um diferencial para um projeto, agregando se não soubessem do que se tratava. engajamento e mais canais para identificação, ______. [canal no youtube]. 72 episódios mais extras. Postado por: Emma Woodhouse. Disponí- Outra questão em se usar redes sociais é ainda que tenhamos muitos desafios na prática. vel em: < https://www.youtube.com/channel/UC- que os mecanismos mudam o tempo todo e redes VZ-gtXjbpZkJtybxSnzYcg?spfreload=10>. Acesso caem e crescem, logo precisamos estar sempre 5 Bibliografia em: 14 set. 2014. atentos para rever estratégias. Outra dificuldade AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. Tradução de EÖRDÖGH, Fruzsina. Transmedia Shows are Win- Lúcio Cardoso. São Paulo: Abril Cultural, 1982. para levar o público de uma mídia para outra é ning the Internet. In: Motherboard. 10 abril 2014. Disponível em: . Aces- net>. Acesso em: 7 jun. 2014. que poderiam ser incluídos na definição de trans- so em: 14 set. 2014. FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Narrativas Mi- mídia presente nesse artigo eram do meio publi- COLLINS AND COLLINS. In. The Lizzie Bennet grantes: Literatura, Roteiro e Cinema. Rio de Janei- citário, sendo poucos os exemplos de ficção. Hoje Diaries [canal no youtube]. 7 episódios. Dis- ro: Editora PUC Rio, 7Letras, 2010. já encontramos muito mais exemplos bem-suce- ponível em: < https://www.youtube.com/wat- JENKINS, Henry. Transmedia 202: Further Re- ch?v=D-z6eC9o2uY&list=PL-kgvWgodA8aexGB- didos de séries de ficção transmídia, como Skam, flections. Confessions of an Aca-Fan: the Official QoqNqk8aDZjhjqboV&spfreload=10>. Acesso uma série norueguesa que se tornou um sucesso Weblog of Henry Jenkins, 1 ago. 2011. Disponível em: 23 jul. 2014. em: . Acesso em: 20 jan. tes países. criando histórias na era da convergência dos meios. 2014. A sedimentação do termo permite uma Dissertação de Mestrado em Comunicação Social, LANDOW, George P. Hypertext 2.0: The Conver- melhor comunicação, tanto no meio acadêmico Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, gence of Contemporary Critical Theory and Tech- 2015. Disponível em: http://www.dbd.puc-rio.br/ quanto no mercado, contribuindo, assim, para nology. Baltimore: The Johns Hopkins University pergamum/tesesabertas/1312520_2015_com- Press, 1997. que se pensem projetos que trabalhem no âmbito pleto.pdf MURRAY, Janet. Hamlet on the Holodeck: the Fu- 43 REVISITANDO THE LIZZIE BENNET DIARIES

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45 PRÁTICAS TRANSMÍDIA NO CAMPO PUBLICITÁRIO: EXPLORAÇÕES PARA UM ESTUDO SOBRE A NETFLIX BRASIL Tatiana Güenaga Aneas1

1 and a methodological design derived from this re- 2016). E em 2017 foi premiada com um leão de Resumo: Este trabalho apresenta uma primeira ference, it is intended with this text to illuminate bronze no Festival de Cannes, o maior evento da aproximação das campanhas das séries da Netflix fundamental questions to guide future research. indústria da comunicação mundial, na categoria Brasil de caráter transmídia, bem como sobre as Keywords: transmedia storytelling; transmedia práticas de produção do campo publicitário que advertising; advertising field. Entretenimento. O vídeo foi criado pela agên- dão origem a estes materiais. A partir da apresen- cia Soko, parte da holding Flagcx, uma empresa tação de um levantamento bibliográfico sobre fundada em 2013 que se posiciona no mercado transmídia; de fundamentos teóricos calcados No início de agosto de 2016, um vídeo so- publicitário como uma “plataforma de disrupção sobretudo em Bourdieu, Florida e Dena; e de um bre a série “Stranger Things” foi publicado nas re- desenho metodológico derivado deste referen- criativa”. cial, pretende-se com este texto iluminar ques- des sociais da Netflix. O vídeo mostrava uma cena Este breve relato sinaliza importantes tões fundamentais para encaminhar uma futura de um dos episódios da série em que a person- transformações no que diz respeito à composição pesquisa. agem Eleven se aproxima de uma televisão. Ao li- de materiais publicitários, ao seu consumo e à sua Palavras-chave: narrativa transmídia, publici- gar o aparelho, surge na tela a apresentadora Xuxa produção na contemporaneidade. Frente à dig- dade transmídia, campo publicitário. Meneguel, à maneira do seu programa veiculado italização da cultura e da economia (CASTELLS, na Rede Globo nos anos oitenta, lendo a carta de 2007), os comerciais veiculados na televisão tão Abstract: This work presents a research proposal uma mãe, a personagem Joyce, desesperada pelo presentes outrora dão lugar, processualmente, on the campaigns of the series of Netflix Brasil of sumiço do seu filho, Will. Com elementos que a inserções de outras naturezas - vídeos online, transmydial character, as well as on the practices remetem diretamente ao clássico quadro do “Xou perfis no facebook, threads no twitter, jogos, apps, of production of the field of publicity that give da Xuxa” e outros que pertecem ao imaginário oi- rise to these materials. From the presentation of a plataformas sociais, obras colaborativas construí- bibliographical survey on transmedia; theoretical tentista - como a maldição do disco da apresen- das em ambientes online. No caso de obras narra- foundations mainly in Bourdieu, Florida and Dena; tadora tocado ao contrário - a peça, concebida tivas, como é o caso de “Stranger Things” e dos de- 1 Professora do Programa de pós-graduação como uma ação promocional da série, ganhou a mais produtos da Netflix, observa-se um processo em Comunicação e do Programa de pós-graduação atenção dos fãs e da imprensa. No Youtube, teve de transmidiação - ou seja, o universo ficcional interdisciplinar em Cinema, ambos da Universidade quase 3 milhões de visualizações e 125 mil cur- Federal de Sergipe. Doutora em Comunicação da série transborda os limites da plataforma de (Póscom/UFBA). tidas. Foi pauta da Folha de São Paulo (XUXA…, 46 PRÁTICAS TRANSMÍDIA NO CAMPO PUBLICITÁRIO: EXPLORAÇÕES PARA UM ESTUDO SOBRE A NETFLIX BRASIL Tatiana Güenaga Aneas streaming e aparece em outros suportes midiáti- apreço. Um movimento que pode ocorrer dentro mudanças. A concepção de campanhas transmídia cos, ensejando a extensão do conhecimento e dos limites do “projeto transmídia” (SOUZA et al., ou de conteúdos publicitários para universos fic- da experiência do consumidor sobre a história 2013), isto é, sob controle de uma gestão criativa, cionais transmidiáticos são demandas contem- para além daquilo que assiste nos episódios di- em geral da empresa produtora, ou que pode ex- porâneas da atividade publicitária muito distintas sponíveis. E, neste processo, peças e ações pub- trapolar (ou subverter) os limites da diegese pre- da criação de textos e layouts para anúncios ou de licitárias que em um momento anterior serviriam vistos pelos criadores, como no caso das fan fic- roteiros e storyboards para comerciais veiculados como instrumentos de divulgação das séries, pas- tions. Também aqui as ações reconhecidas como na grade televisiva. Ao profissional ou empresa de sam a fazer parte da ficção e funcionam para en- publicitárias têm papel central, como no caso comunicação que atualmente cria para um cliente riquecer este universo. Há uma virada importante da gestão das publicações e interações de perfis como Netflix é requerido que compreenda, viven- no momento em que, por exemplo, teasers e cam- em redes sociais, tanto das empresas produtoras cie e exercite os ideais da cultura digital - possi- panhas de uma série como “Stranger Things” ou como de personagens das suas histórias, ou de bilidade de produção, compartilhamento e trans- “The Umbrella Academy” passam a ser construídas iniciativas que inserem os fãs como produtores ou formação (LEMOS, 2007). E é, em igual medida, para serem fruídas como extensões da narrativa personagens da história. demandado por conhecimento e habilidades em central. Por fim, e que propõe-se foco deste tra- narração e construção de mundos ficcionais que Tais ações implicam, ainda, em alter- balho exploratório, é mister notar que estas mu- não se comparam às práticas experimentadas no ações no campo do consumo destes produtos, danças implicam em alterações significativas no interior das agências de propaganda até meados em muitos aspectos. Imersos em uma cultura da campo da produção publicitária. Alteram-se os dos anos 20002. O avanço pela fronteira digital e participação (JENKINS, 2006), e diante de narra- perfis profissionais e o trânsito de agentes - cri- o investimento em projetos inovadores dentro tivas transmidiáticas, os consumidores de séries adores, produtores, diretores - implicados na desse escopo, especialmente de natureza trans- (sobretudo os fãs) são incitados a atuar como criação e realização de tais narrativas, as habili- mídia, parecem ser terreno explorado de forma caçadores de informações, em busca de extratos dades requeridas para tal, as competências que sistemática e estratégica por algumas agências e do universo narrativo que lhes permita ampliar a passam a ser valorizadas no interior deste campo 2 Embora não se aprofunde em caracterizá-lo, Murray experiência com suas histórias e personagens de e os intercâmbios de capitais decorrentes destas se aproxima da ideia deste sujeito criador denominando-o “ciberdramaturgo” (2003, p. 243) 47 PRÁTICAS TRANSMÍDIA NO CAMPO PUBLICITÁRIO: EXPLORAÇÕES PARA UM ESTUDO SOBRE A NETFLIX BRASIL Tatiana Güenaga Aneas criadores do campo publicitário brasileiro que são de criação e de reconhecimento social de institu- Entre as motivações deste trabalho está o reconhecíveis, e cujas práticas começam a marcar ições e agentes que operam a partir desta lógica. entendimento de que, na produção de narrativas posições dentro deste espaço. É o caso de em- Diante deste fenômeno, este trabalho bus- transmídia, encontram-se cada vez mais borradas presas como Flagcx, VML, Mutato, AKQA e CP+B, ca problematizar, levantar o estado da arte e esta- as fronteiras entre campos antes relativamente todas fundadas no país nos anos 2010 e que já cri- belecer uma metodologia para dar conta de uma bem delimitadas - tal como o campo da publici- aram em parceria com a Netflix Brasil - diferente- investigação sobre as formas pelas quais institu- dade, do cinema e da televisão, sobretudo das nar- mente da maioria dos anunciantes, a empresa de ições e agentes do campo publicitário brasileiro rativas ficcionais seriadas. Nota-se que, ao se apre- streaming não contrata sempre a mesma agência incorporam os princípios da economia criativa e sentar em diferentes mídias e plataformas, uma para conceber seus projetos de divulgação. É sabi- da cultura digital como estratégia de tomada de narrativa transmídia convoca necessariamente do que o trabalho publicitário sempre teve caráter posição no interior deste espaço, especificamente profissionais oriundos de diferentes campos, ten- interdisciplinar, abarcando profissionais das artes na criação de ações transmídia. Busca-se refletir sionando, neste movimento, as relações de pod- e dos negócios. O que se nota nos anos recentes, sobre o que carateriza estas ações, as empresas e er, as questões de autoria e o reconhecimento entretanto, é a presença cada vez mais intensa os agentes responsáveis por sua gestão criativa, social de quem cria estes produtos. No cenário de profissionais de áreas da tecnologia da infor- em termos de habitus, capitais e posições con- contemporâneo, as produção da Netflix tendem mação ou correlatas, na gestão criativa de proje- struídas/ocupadas no interior deste campo. a apresentar, por um lado, caráter transmídia e, tos como a comunicação das séries da Netflix - o À problematização aqui apresentada sub- por outro, conteúdos que podem ser consider- CEO e fundador da Flagcx, Roberto Martini, é um jazem alguns pressupostos teórico-metodológi- ados como de natureza publicitária que, ao passo exemplo (CASTRO, 2014). Consequências, certa- cos, a saber: o sistema conceitual da teoria dos em que promovem seus produtos, se configuram mente, daquilo que Bell (1976) já sinalizava com campos de Pierre Bourdieu (1996, 2011a, 2011b); como extensões do universo narrativo promovi- o surgimento da era pós-industrial e que atual- a noção de indústria/economia criativas (FLORIDA, do. Trata-se, portanto, de uma perspectiva de pro- mente são reconhecidas como traços da chama- 2011); e o conceito de transmídia, não apenas mas dução audiovisual em que as inserções, encontra- da economia criativa. Sinais que indicam, como centralmente através de uma perspectiva da sua da em plataformas digitais como redes sociais e dito, alterações no que diz respeito aos processos prática (DENA, 2009). plataformas de vídeo online, tornam-se parte da

48 PRÁTICAS TRANSMÍDIA NO CAMPO PUBLICITÁRIO: EXPLORAÇÕES PARA UM ESTUDO SOBRE A NETFLIX BRASIL Tatiana Güenaga Aneas ficção ou, ao menos, fragmentos da narrativa que “nova” forma de fazer publicidade. Uma publici- contribuindo de maneira distinta e valiosa para expandem a experiência do consumidor com o dade que hibridiza conteúdo e entretenimento, o todo” (JENKINS, 2006, p. 107). Desde então, no- universo ficcional, e eventualmente convocam contemplando, na sua construção “capacidade de ta-se que o conceito vem sendo utilizado em dif- sua participação. O que nos conduz a questiona- persuasão, viés entretível, nível de interação e es- erentes frentes de pesquisa. Um esforço consid- mentos sobre porque, num campo de ampla con- tímulo ao compartilhamento” (COVALESKI, 2015, erável neste sentido se encontra na aproximação corrência como o da produção de narrativas se- p. 108). com o campo da narratologia, e da semiótica, que riadas, esta empresa assume este tipo de prática Este texto apresenta, assim, uma primeira podem ser considerados como estudos centra- recorrentemente, e quais os impactos desta práti- aproximação ao fenômeno, bem como uma dis- dos no texto. São pesquisas preocupadas sobre- ca para seu posicionamento dentro deste campo cussão sobre estado da arte, operadores concei- maneira em compreender qual a natureza nar- específico e das formas de fazer publicidade de tuais e métodos possíveis para o desenvolvimen- rativa e como se estrutura um universo ficcional narrativas seriadas audiovisuais. Interessa, sobre- to de uma análise de produções publicitárias de transmídia. Neste grupo pode-se citar um sólido maneira, compreender as práticas e o lugar ocu- caráter transmídia. trabalho por parte de Maure-Laure Ryan (2001; pado pelos agentes e instituições do campo pub- 2002; 2006), além de contribuições importantes licitário associados à Netflix Brasil, responsáveis de Boni (2013), Pearson (2017) e Scolari (2009). BREVE ESTADO DA ARTE pela criação dos projetos de publicização das suas Concernidos centralmente com os aspectos soci- séries no país. Espera-se, com isso, compreender ais e culturais do fenômeno transmídia, no que diz Há vasta literatura sobre o fenômeno as transformações mais amplas do campo pub- respeito à produção, circulação e consumo destas transmídia, desde aquela que se considera obra licitário brasileiro frente às demandas da cultura narrativas, encontram-se as obras do próprio Jen- inaugural, o Cultura da Convergência (JENKINS, digital, no que diz respeito à emergência de novas kins (2007; 2015), Dena (2009), Evans (2011), Long 2006), na qual o autor toma de empréstimo o ter- posições neste campo, vislumbradas e marcadas (2000), Freeman (2013), dentre outros. Não raro, mo cunhado por Marsha Kinder (1991) para de- por empresas e agentes que, de maneira mais ou aspectos textuais e contextuais das narrativas screver o que chama de transmedia storytelling, menos consciente, intentam ser reconhecidos no transmídia se entrecruzam em esforços de pesqui- uma “história que desenrola-se através de múlti- interior do campo como representantes de uma sa para iluminar as diferentes faces do fenômeno, plas plataformas de mídias, com cada novo texto 49 PRÁTICAS TRANSMÍDIA NO CAMPO PUBLICITÁRIO: EXPLORAÇÕES PARA UM ESTUDO SOBRE A NETFLIX BRASIL Tatiana Güenaga Aneas como em Campalans, et al. (2014) ou em Ange- Brasil, especificamente nos artigos de Lopes et al. e Petermann (2011), dentre outras que poderiam lucci (2016). No Brasil, são reconhecíveis grupos (2013), Massarolo (2013) e Souza et. al. (2013). compor esta lista. Não se pôde localizar, no entan- de pesquisa e pesquisadores que se debruçam Todas as referências até então listadas to, pesquisa que se dedique a investigar especifi- sobre o fenômeno transmídia, pelo menos nos tratam-se de pesquisas sobre narrativas ficciona- camente as práticas de criação e produção trans- últimos dez anos, muitos deles representados nas is transmidiáticas, mas que passam ao largo das mídia no campo publicitário. Uma busca em todas publicações do Obitel Brasil (2011, 2013). Neste questões sobre publicidade transmídia e seus as edições de periódicos classificados com Qualis sentido destacam-se, por relevância e aderência à processos criativos. Neste ponto, interessa citar A2 na área de Comunicação e Informação3 com o perspectiva desta pesquisa, os trabalhos de Souza o trabalho de Covaleski (2015), ao discorrer so- termo “transmídia” não retornou nenhum artigo et al. (2013), Fechine et al. (2013), Fechine (2014), bre o que chama de hibridização da publicidade, que tratasse diretamente de questões relativas Pucci et al. (2013) e Massarolo (2013) e Massarolo processo no qual se encontram cada vez mais a produtos ou processos do campo publicitário. e Mesquita (2014). borrados os limites entre conteúdo de marca e Neste sentido, embora certamente ancorado em Não tão abundantes, porém, são as entretenimento, sobretudo na construção de nar- uma tradição de estudos no campo das narrativas pesquisas que adentram nas especificidades dos rativas. A perspectiva do autor, no entanto, recai transmídia, é um trabalho a ser feito a exploração campos de produção das narrativas transmídia. predominantemente sobre a análise de materiais de um fenômeno já presente em espaços de Mesmo quando levam em consideração os aspec- publicitários de natureza transmídia (no artigo debate como Intercom, Comunicon (Congres- tos econômicos implicados na sua criação, como citado, especificamente, sobre a série “The Beauty so Internacional de Comunicação e Consumo) e bem fez o próprio Jenkins, os textos científicos Inside”) e não sobre os processos de criação e pro- PropesqPP (Encontro Nacional de Pesquisadores tendem a adotar categorias como “a indústria do dução. em Publicidade e Propaganda). Ao que tudo indi- entretenimento”, “a televisão” ou “o marketing” Cabe notar que há importantes pesquisas ca, trata-se de um tema premente no campo de para denominar (não sem alguma imprecisão) precedentes que se dedicam a compreender as estudos sobre publicidade, mas que ainda de- os agentes da produção. Empreendimentos que práticas do campo publicitário, tais como o estu- manda pesquisas mais aprofundadas e que pos- procuram superar generalizações neste sentido do pioneiro de Knoploch (1980) e as contribuições sam se tornar referência. encontram-se nas já citadas publicações do Obitel mais recentes de Bertomeu (2010) Hansen (2013) 3 Atualizada em 07/03/2019 50 PRÁTICAS TRANSMÍDIA NO CAMPO PUBLICITÁRIO: EXPLORAÇÕES PARA UM ESTUDO SOBRE A NETFLIX BRASIL Tatiana Güenaga Aneas

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA dos efeitos que estas transformações têm sobre story that the comics tell is not the este tipo de produto: same as that told on television or in cinema; the different media and É notório que, nas últimas duas décadas, A descompressão ocorre no atual ambiente languages participate and contrib- a produção audiovisual no campo da publicidade das mídias digitais, ainda em processo de regula- ute to the construction of the trans- media narrative world. This tex- vem ganhando novas configurações. Das tradi- mentação, em que o audiovisual publicitário volta tual dispersion is one of the most cionais inserções de filmes de trinta e sessenta a assumir, através da prática do branded content, important sources of complexity segundos no intervalo televisivo, as narrativas formatos e linguagens variados, sempre através in contemporary popular culture. (SCOLARI, 2009, p. 587)4 audiovisuais patrocinadas com fins de promoção da apropriação da linguagem dos conteúdos de de produtos, serviços e ideias evoluíram para for- entretenimento. (BOMFIM, 2014, p. 38) Do ponto de vista da recepção, tem-se um mas que vão de séries ficcionais distribuídas em espectador que passa a buscar pela experiência As produções que interessam a esta episódios e temporadas, à construção de univer- de fruição destas peças, antes veiculados de ma- pesquisa são diretamente tributárias desta lógi- sos narrativos que convocam e prevêem a partic- neira algo intrusiva no break televisivo, e mesmo ca, mas utilizam necessariamente estratégias de ipação dos espectadores como atores e person- a ser convocado a participar da sua criação - com transmidiação para ampliar a experiência do es- agens da trama. todos os riscos e tensões que esta participação pectador com este universo ficcional. Em uma Estas mudanças estão relacionadas à pode acarretar, como apontou Jenkins (2006). campanha transmídia, cada meio deverá con- emergência das tecnologias digitais de comuni- 4 Em suma, TS [abreviação para Transmedia cação e, mais importante, às maneiras como as tribuir de maneira particular para sua composição. Storytelling] é uma estrutura narrativa particular que se Sobre isso, Scolari define: expande através de diferentes linguagens (verbal, icônica, potencialidades destas ferramentas são absorvi- etc) e meios (cinema, histórias em quadrinhos, televisão, das por este campo específico e conformam no- Briefly then, TS is a particular narra- videogames, etc). TS não é apenas uma adaptação de vas formas de criar, produzir, distribuir e consum- tive structure that expands through um meio para outro. A história que o comics conta both different languages (verbal, não é a mesma contada na televisão ou no cinema; os ir estas narrativas. Convocamos aqui a ideia de iconic, etc.) and media (cinema, diferentes meios e linguagens participam e contribuem Bomfim (2014), que utiliza a expressão “descom- comics, television, video games, para a construção do mundo narrativo transmídia. Esta etc.). TS is not just an adaptation dispersão textual é uma das mais importantes fontes pressão do audiovisual publicitário” para tratar from one media to another. The de complexidade na cultura popular contemporânea. (tradução nossa). 51 PRÁTICAS TRANSMÍDIA NO CAMPO PUBLICITÁRIO: EXPLORAÇÕES PARA UM ESTUDO SOBRE A NETFLIX BRASIL Tatiana Güenaga Aneas

Uma vez que profissionais da publicidade têm de processos criativos aqui enfocados. Destacam-se a os modelos sociais e laborais, hoje orientados por lidar com esta contingência, são levados a apos- delimitação entre projetos que têm um “conceito um “ethos criativo”. O que faz com que o mundo tar na participação do espectador, que pode ou transmídia” (DENA, 2009, p. 42) de origem, e aque- dos negócios esteja permeado por uma crescen- não ocorrer a contento, e a construir narrativas les que tornam-se transmídia a partir da criação te demanda por criatividade e inovação - e, nesta que prevejam esta participação na sua estrutura, de textos secundários posteriores à existência de lógica, segmentos como o da comunicação pub- alterando as práticas de criação e produção e o re- um produto central. A própria noção de conceito licitária são mais fortemente impactados, já que sultado destas práticas, a composição das peças transmídia interessa aqui, posto que pressupõe seus produtos são de natureza eminentemente em si. que haja “uma relação entre os mundos ficcionais intelectual. Apesar dos desígnios claramente concebidos e os modelos de negócio neles impli- mercadológicos, a criatividade, e a busca por ser No que tange ao entendimento do pro- cados” (p. 43), empreendimento que a autora le- reconhecido como um profissional capaz de in- cesso de concepção de projetos transmídia, cabe vará a cabo ao analisar vários casos de narrativas ovar, são valores compartilhados pelos agentes citar o trabalho de Christy Dena (2009) sobre as transmídia e seus processos produtivos. deste campo, incorporados na forma de um hab- práticas transmídia. A autora procura superar, na No que diz respeito à observação dos itus, e que irão se manifestar de maneira mais ou escolha e análise dos objetos, a dicotomia entre “modelos de negócios”, cabe convocar a literatura menos intensa nos projetos produzidos no seu in- arte e economia, muito presente em pesquisas que vai refletir sobre as chamadas indústrias cri- terior. que adotam a perspectiva da indústria cultural - ativas. Esta perspectiva ajuda a reconhecer que, E no que diz respeito à construção de um que se justifica em outros contextos de análise, mesmo na lógica econômica capitalista, o valor conjunto de operadores metodológicos que nos mas não se aplica neste caso. Tal lente é funda- de qualidade e inovação é constituinte destas in- auxilie a examinar o campo de produção destes mental num estudo que pretende se debruçar dústrias que têm como produto bens culturais, materiais, e a chegar às trajetórias das instituições sobre materiais em que o interesse econômico é e não bens materiais, e que têm como recurso e indivíduos responsáveis por sua criação, são claro e marcado, como é o caso da publicidade. central para sua produção a criatividade (WOOD convocadas as premissas da teoria dos campos de Ademais, a autora apresenta noções e cat- et al, 2009, p. 12). De acordo com Florida (2009), Bourdieu (1996, 2011). Esta perspectiva se apre- egorizações que podem ser úteis na análise dos vive-se sob a égide da “era criativa”, que alteram senta como estratégia para observar e sistematizar

52 PRÁTICAS TRANSMÍDIA NO CAMPO PUBLICITÁRIO: EXPLORAÇÕES PARA UM ESTUDO SOBRE A NETFLIX BRASIL Tatiana Güenaga Aneas a trajetória e a posição dos agentes responsáveis dutivo, das estratégias observável nas empresas e instagram. Entre os casos previamente identifica- pela produção das campanhas sobre as séries dos habitus dos seus gestores criativos. dos, pode-se elencar o já citado “Xuxa e o baixin- da Netflix Brasil. As noções de campo, capitais e ho que sumiu” (Stranger Things, 2016), que teve habitus seriam, assim, a representação deste de- PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS uma continuação no pré-lançamento da terceira terminado olhar, deste modo de compreender temporada da série com o vídeo “Natal invertido as práticas sociais, sobretudo as práticas de pro- Em termos de etapas e métodos, a pesqui- para a Xuxa” (Stranger Things, 2018) e uma out- dução cultural. Nesta perspectiva, Bourdieu indica sa contempla dois movimentos fundamentais. Um ra ação intitulada “Stranger Broadcast” (Stranger que consideremos um campo como um universo primeiro esforço será centrado na sistematização Things, 2018); “Inês Brasil em Litchfield (Orange is à parte, e que suas transformações, assim como das ações, peças e/ou campanhas publicitárias the New Black, 2016); “Márcia Fernandes e o que dos agentes e obras no seu interior, não podem em si, na sua categorização e análise na perspecti- Sense8 diz de 2017” (Sense8, 2017); “Gretchen VS ser explicadas inteiramente por fatores estranhos va nas narrativas transmídia. Cadillac” (Glow, 2017); “Alma Gêmea” (Santa Clari- à sua própria lógica. As premissas de Bourdieu são Assim, o primeiro passo é mapear as pro- ta Diet, 2017); “Tá difícil competir” (House of Cards, então convocadas como operadores para exam- duções da Netflix Brasil que apresentam este as- 2017); “Marta, a número 10 da família” (The Um- inar de quais maneiras a constituição do campo pecto da transmidiação em que outros conteúdos, brella Academy, 2019); “Lucas Jagger - o terapeuta da produção publicitária e as posições dos agen- de caráter publicitário, estão inseridos como ex- de Oitis” (Sex Education, 2019). tes e instituições que os criam, produzem e recon- tensões da narrativa. Trata-se de um movimento Além de ampliar esta lista, exauridas as hecem influenciam as formas com que estas obras inicial de cartografia e sistematização, necessário possibilidades disponíveis nos canais institucio- se organizam estilisticamente e se compõem. Tra- para compreender a lógica de composição destas nais da Netflix Brasil, em um segundo passo da ta-se de uma visada que permite observar e esta- narrativas. Alguns casos já são conhecidos, mas é pesquisa será necessário analisar e categorizar belecer relações entre as peças criadas, seu grau necessário um esforço sistemático para esgotar as produções. Uma observação prévia permite de inovação presente nas estratégias de trans- todas as produções já eventualmente veicula- antever que há diferenças importantes nas es- midiação (relativo àquilo que se produz dentro do das. A coleta dos casos se dará nas plataformas tratégias e nas composições adotadas: muitas próprio campo) e aspectos do seu contexto pro- em que a empresa disponibiliza seus vídeos de são inserções em vídeos, mas algumas são con- divulgação, a saber: youtube, facebook, twitter e 53 PRÁTICAS TRANSMÍDIA NO CAMPO PUBLICITÁRIO: EXPLORAÇÕES PARA UM ESTUDO SOBRE A NETFLIX BRASIL Tatiana Güenaga Aneas versas no twitter institucional da empresa ou de stitucionais, fichas técnicas em que se identificam Propmark e B9); quantitativo e qualitativo do personagens das tramas (caso de House of Cards). como criadoras para Netflix Brasil. No entanto, é reconhecimento do público nas redes sociais (cur- Com recorrência, as peças utilizam celebridades igualmente necessário elevar essa lista a tanto tidas, dislikes, compartilhamentos, comentários) a conhecidas do público brasileiro, mas em alguns quanto possível. respeito dos projetos estudados; retorno finan- casos há uma interação direta das personalidades Após este procedimento, será necessário ceiro (quando disponível) e/ou posição da em- com personagens das histórias (caso de Stranger investir em coleta de informações primárias so- presa do ponto de vista econômico no interior do Things), e em outros há o uso de estratégias típi- bre os processos de criação específicos dos pro- campo (porte da empresa, valores em investimen- cos de remix com a remontagem de cenas das jetos junto às agências e criadores. Neste passo, to de mídia). séries com novas cenas gravadas (caso de Orange a entrevista semi-estruturada, em profundidade, Tal levantamento deverá permitir o desen- is the New Black). deverá ser o método aplicado, por permitir cole- volvimento de indicadores de capitais (simbólico O outro movimento metodológico nor- tar informações passíveis de cruzamento posteri- e econômico) das empresas e seus gestores cria- teador centra-se na análise dos processos criativos or sem, entretanto, engessar a oportunidade de tivos, conduzindo a uma compreensão aprofun- e contextos produtivos que dão origem às peças conhecer as especificidades de cada experiência dada das obras e das práticas que conformam o publicitárias que puderam ser identificadas e anal- de criação. Ainda neste esforço de compreender espaço em que se inserem as empresas de publi- isadas no momento precedente. Para tanto, faz-se as trajetórias e posições destes agentes, deverão cidade que se dedicam a criar ações transmídia no necessário identificar os responsáveis pela criação ser levantadas e sistematizados dados secundári- país. dos materiais junto à própria empresa ou através os igualmente importantes para circunscrever seu das fichas técnicas das campanhas. Assim como lugar no campo estudados, a saber: informações CONSIDERAÇÕES as peças, algumas das empresas responsáveis por bibliográficas sobre a história das empresas e dos sua criação já são também conhecidas. Flagcx, criadores; histórico de premiações (quantitativo Este trabalho buscou problematizar questões rel- Soko, VML, CP+B, Mutato e AlmapBBDO são em- e qualitativo); posição da crítica/imprensa espe- ativas à produção publicitária transmídia, especifi- presas do campo publicitário que já divulgaram, cializada em comunicação sobre os trabalhos camente aquelas vinculadas à Netflix Brasil, bem na imprensa especializada e/ou em seus canais in- analisados (em veículos como Meio&Mensagem, como propor um desenho teórico-metodológico para sua análise. Procurou, ainda, sistematizar 54 PRÁTICAS TRANSMÍDIA NO CAMPO PUBLICITÁRIO: EXPLORAÇÕES PARA UM ESTUDO SOBRE A NETFLIX BRASIL Tatiana Güenaga Aneas uma revisão de literatura acerca dos estudos so- e Consumo. v. 12. n. 34. mai/ago. 2015. p. 107-123. new media collide. Nova Iorque, Londres: New York bre narrativas transmídia, sobretudo na interface DENA, C. 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55 PRÁTICAS TRANSMÍDIA NO CAMPO PUBLICITÁRIO: EXPLORAÇÕES PARA UM ESTUDO SOBRE A NETFLIX BRASIL Tatiana Güenaga Aneas

MASSAROLO, J. C.; MESQUITA, D. Reflexões teóricas brasileira. Porto Alegre: Sulina, 2013. e metodológicas sobre as narrativas transmídia. in SCOLARI, C. A. Transmedia storytelling: implic- Lumina. Revista do Programa de Pós-graduação it consumers, narrative worlds, and branding in em Comunicação da Universidade de Juiz de Fora. contemporary media production. International v. 1. n. 8. jun. 2014. Journal of Communication. n. 3, 2009. p. 586-606. MURRAY, J. Hamlet no Holodeck: o futuro da narra- SOUZA, M. et al. Empresas produtoras, projetos tiva no ciberespaço. Trad.: Elissa Khoury Daher e transmídia e extensões ccionais: notas para um Marcelo Fernandez Cuzziol. São Paulo: Itaú Cultur- panorama brasileiro. in LOPES, M. I. V (org.). Es- al, Unesp, 2003. tratégias de transmidiação na ficção televisiva bra- PETERMANN, J. Do sobrevôo ao reconhecimento sileira. Porto Alegre: Sulina, 2013. atento: a institucionalização da criação publicitária, WOOD Jr., T., BEDASSOLLI, P. F., KIRSCHBAUM, C., pela perspectiva do habitus e dos capitais social, Cunha, M. P. E. Indústrias criativas: definição, lim- cultural e econômico. 2011. 408 f. Tese (Doutora- ites e possibilidades (Creative industries: defini- do). Programa de Pós-graduação em Ciências da tion, limits and possibilities). In: RAE, 49,10-18, Comunicação, Universidade do Vale do Rio Sinos, 2009. São Leopoldo, 2011. XUXA entra na brincadeira em vídeo promo- RYAN, M. L. Avatars of story. Minneapolis: Universi- cional de ‘Stranger Things’. Folha de São Paulo ty of Minnesota Press, 2006. Online. Ilustrada. São Paulo. Ago. 2016. Dis- ______. Narrative as virtual reality. Baltimore, Lon- ponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilus- dres: The John Hopkins University Press, 2001. trada/2016/08/1798877-xuxa-entra-na-brinca- ______. Beyond Mith and Metaphor: Narrative in deira-em-video-promocional-de-stranger-things. Digital Media. in: Poetics Today. vol. 23. n. 4. Porter shtml. Acesso em: 08 mar. 2019. Institute for Poetics and Semiotics, 2002. PEARSON, R. Additionality and cohesion in trans- fictional words. in: The Velvet Light Trap. n. 79. 2017. PUCCI, R. L. Jr. et al. Avenida Brasil: o lugar da transmidiação entre as estratégias narrativas da telenovela brasileira. in LOPES, M. I. V (org.). Es- tratégias de transmidiação na ficção televisiva

56 STORIES DA SELEÇÃO INSTASÉRIES E PRINCÍPIOS DE GAMIFICAÇÃO EM CAMPANHA DA GOL Emilly Belarmino1

1 Abstract das transformações sociais até, enfim, conquistar Resumo With the advent of the internet, coupled with - sua consagração com produções cinematográfi- Com o advento da internet, aliada aos dispositivos mó- le devices, a number of changes have emerged in cas, se estabelecendo como arte. No entanto, esse veis, diversas mudanças surgiram em nossa sociedade our society and have spread through different fields. perpassando assim por diversos campos. No audiovi- In the audiovisual it would not be different. In recent “estabelecimento” não o colocou em uma posição years, productions have undergone significant chan- sual não seria diferente. As produções vêm sofrendo de perfeição e imutabilidade, pelo contrário. Bar- nos últimos anos significativas modificações, desde a ges, from the renovation of technological devices to renovação dos aparatos tecnológicos até os ambien- the environments for diffusion. With regard to serial reiras foram atravessadas, trazendo novas e desa- tes para difusão. No que diz respeito as produções se- productions in social networks, Instagram in particular fiantes experimentações. Refletindo sobre as prin- has been shown as a vast environment for these expe- riadas nas redes sociais, o Instagram em especial vem cipais renovações surgidas nas últimas décadas, é se mostrando como um ambiente vasto para essas riments, classified here as Instaseries. The purpose of experimentações, classificadas aqui como instasérie. this article is to understand the phenomenon through possível notar modificações essenciais nessas pro- O objetivo desse artigo é compreender o fenômeno a language analysis, narrative construction and iden- duções no que diz respeito a produção, distribui- tification of the gamification processes, as well as its através de uma análise da linguagem, construção da ção, projeção e decupagem. Ao debater sobre a narrativa e identificação dos processos de gamificação, use, within the production “National team’s Stories”. bem como seu uso, dentro da produção “Stories da Se- Shared in the function Stories in the Instagram of the “pequena história da fotografia”, Walter Benjamin leção”. Compartilhada na função Stories no Instagram airline Gol that brings together in its five episodes of (1994) afirma que “a câmara se torna cada vez me- da companhia aérea Gol que reúne em seus cinco epi- short duration characteristic elements of the network nor, cada vez mais apta a fixar imagens efêmeras sódios de curta duração elementos característicos da like ephemerality, aesthetic mobile, that is, mobile, rede como efemeridade, estética mobile, isso é, móvel, ubiquitous and hybrid, besides the insertion of gami- e secretas, cujo efeito de choque paralisa o meca- fication processes. ubíqua e híbrida, além da inserção de processos de ga- nismo associativo do espectador”. O fato é que, a mificação. Palavras-chave: Instaseries; Digital Narratives; Gami- compactação dos dispositivos fotográficos é um Palavras-chave: Instaséries; Narrativas Digitais; Gami- fication; Ephemeral. processo que se mantem e esses aparelhos têm ficação; Efêmero. ganhado cada vez mais espaço no panorama so- 1 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação Introdução cial. Com valores de mercado acessíveis e, atrela- em Comunicação da Universidade Federal de dos aos dispositivos móveis conectados à internet Pernambuco (PPGCOM/UFPE). Membro do Grupo e seus adjacentes, eles abriram novos horizontes, de pesquisa Laboratório de Investigação de Sons e O audiovisual carrega consigo uma cons- Imagens (LISIM/UFPE) e bolsista da FACEPE. E-mail: tante de mudanças, acompanhando cada período em relação às tradicionais formas de produção, [email protected] 57 STORIES DA SELEÇÃO INSTASÉRIES E PRINCÍPIOS DE GAMIFICAÇÃO EM CAMPANHA DA GOL Emilly Belarmino consumo e distribuição do audiovisual. conteúdo seriado para a rede, contexto possível voltados para produção audiovisual independen- As redes sociais são um grande exemplo graças a popularização dos smartphones e am- te e até mesmo corporações passaram a pensar disso, principalmente o Instagram. Uma rede pliação da conexão móvel. Ainda em meio ao iní- em conteúdo para esse ambiente. Séries efême- inicialmente pensada para troca de imagens co- cio dessa experiência, uma nova funcionalidade ras com narrativas pautadas pelo humor, cotidia- tidianas, que ao longo de sua existência viu-se é ofertada aos usuários: agora, além do compar- no, impulsionamento de marca ou até mesmo como berço de uma nova experimentação da ar- tilhamento de fotos e vídeos na linha do tempo promoções gamificadas – isso é, uso de técnicas temídia, através da produção de micronarrativas do app, seria possível publicar imagens efêmeras advinda dos jogos com o propósito de enga- seriadas. Isso evidencia que as redes sociais “são através dos Stories, no qual, após 24h, cada uma jar pessoas, motivar ações e comportamentos quase sempre, mutantes e tendem a apresentar delas seria automaticamente excluída. O que anos dentro de um universo que não pertence a esse comportamentos criativos inesperados e emer- atrás poderia ser considerado como algo impro- contexto - como no caso dos “Stories da Seleção”, gentes” (RECUERO, 2009, p.92). Ao observarmos vável resultou em um grande sucesso, desban- produção compartilhada no Instagram da compa- esses ambientes e, focando em sua mutabilidade, cando seu principal concorrente, o Snapchat, app nhia de aviação Gol no fim de setembro de 2017. encontramos uma grande característica: a modifi- com funções similares às recém adicionadas no A série, além da função histórica e documental, cação da usabilidade, que, Bolter e Grusin (1999) Instagram. O sucesso foi tamanho de modo que, trazia, graças a inserção de processos advindos da classificam como “remediação”, que se dá através em uma das atualizações do algoritmo, a taxa gamificação, a possibilidade de participação dos dos processos de renovação e ressignificação nas de entrega das postagens foi alterada, passando usuários em uma caça ao tesouro, que daria a 15 lógicas das mídias. a entregar 100% das postagens dos Stories a au- vencedores passagens e ingressos para um jogo Lançado em 2010 apenas para comparti- diência, enquanto as publicações convencionais do Brasil nas eliminatórias da Copa do Mundo. lhamento de fotos, o Instagram ganhou em 2013 passaram a ter uma taxa de 10%.2 Através de um estudo de caso analisare- uma implementação que possibilitou o comparti- De olho nisso, “usuários comuns”, grupos mos a linguagem, construção da narrativa, além lhamento de vídeos e, pouco a pouco, em meio ao de buscar a compreensão de quais são e como os compartilhamento de partículas do cotidiano, al- 2 Dado disponível em: produção em particular, mas que serve de convite Acesso em: 28 fev. 2019. 58 STORIES DA SELEÇÃO INSTASÉRIES E PRINCÍPIOS DE GAMIFICAÇÃO EM CAMPANHA DA GOL Emilly Belarmino a reflexão das inovações trazidas pelas novas mí- nossa existência. As pinturas rupestres deixadas ckelodeons3. Prática surgida em meio aos centros dias ao audiovisual. Para alcançarmos o proposto, por nossos ancestrais nos mais remotos lugares urbanos, onde o público proletário consumia pe- em um primeiro momento faremos uma reflexão evidenciam que mesmo por meio de desenhos quenos fragmentos dos filmes, maneira encontra- teórica sobre as narrativas seriadas na contempo- simples, já existia o desejo de narrar e registrar da na época de baratear o custo do ingresso e ain- raneidade, seguindo para um debate sobre a con- um fato para os demais. Conforme evoluímos, as da manter um bom índice de retorno financeiro, vergência entre cinema e videogames, a fim de formas de narrar e preservar essas criações nos levando em consideração que o espectador curio- compreender as experimentações praticadas no acompanharam, seguindo modelos serializados e so voltaria para acompanhar todo desenrolar da audiovisual para trazer recursos dos games ao seu utilizando os mais diversos meios para propaga- trama. Essa ação acabou sendo incorporada nas universo. Na terceira etapa, buscaremos entender ção dessas obras: cartas, folhetins, livros e, poste- grades televisivas, também com o filme dividido o que de fato é gamificação e seus subsequentes riormente, a incorporação no rádio, cinema e te- em várias exibições, até que as obras originais processos para enfim realizarmos uma análise da levisão. idealizadas com essa finalidade entraram em pro- série “Stories da Seleção”. A discussão será guiada Na televisão as narrativas seriadas encon- dução. por autores que dialogam com os temas aqui pro- traram seu meio de disseminação mais influente, No livro “Televisão levada a sério”, Arlin- posto como Arlindo Machado (2000, 2004), Vicen- graças à produção de séries advindas principal- do Machado (2000) elucida as características da te Goisciolla (2003, 2016) e Johan Huizinga (2008). mente de canais estadunidenses que, inicialmen- serialização como “apresentação descontínua e te, atraíram a atenção dos adolescentes e agora fragmentada do sintagma televisual” (p.83), trans- Narrativas seriadas na contemporanei- atingem públicos de todas idades a exemplo de mitida em dias ou horários diferentes, através da dade produções como As Aventuras do Superman subdivisão de pequenos blocos intervalados por (1952, Syndication/ABC), A Feiticeira (1964, ABC), comerciais. Essa é uma descrição correta, quando As narrativas seriadas estão cada vez mais Star Trek (1966, NBC), As Panteras (1976, ABC), falamos de produções para TV, mas, na atualidade, presentes em nossas vidas, não importa o meio. Um Maluco no Pedaço (1990, NBC), Friends (1994, em meio ao streaming e broadcasting, uma atua- Mas, apesar de ser um elemento tão visto na atua- NBC) e LOST (2004, ABC). No entanto, essa prática 3 Pequenas salas adaptadas para exibição de lidade, elas nos acompanham desde o início de de serializar obras audiovisuais vem desde os ni- filmes entre 1900 e 1909. O nome origina do níquel, valor cobrado na época pelo ingresso. 59 STORIES DA SELEÇÃO INSTASÉRIES E PRINCÍPIOS DE GAMIFICAÇÃO EM CAMPANHA DA GOL Emilly Belarmino lização se faz necessária. Estar em um ambiente demais. Dentre as várias terminologias4 utilizadas rística de quebrar paradigmas e o que caracteriza ubíquo e pervasivo como os encontrados nessa para classificar esse fenômeno, aqui usaremos ins- um verdadeiro criador é a subversão das funções era da conexão fez essas obras trilharem outros taséries, por acreditar ser a que melhor representa previamente planejadas ou programadas para um caminhos seriados. o objeto em questão. Essas produções começam a aparato técnico. Como Sibilia e Diogo (2011) observam, a surgir nos mais diferentes países, com uma diver- No Instagram, produtores e aspirantes tecnologia digital concede uma maleabilidade às sidade de gêneros, produção e montagem des- vislumbraram a possibilidade de compartilhar imagens graças a conversão delas em dados in- pontando em meio as demais publicações. suas produções, que, apesar de esbarrar com a formáticos, além de proporcionar o surgimento Machado (2004, p. 2) nos traz uma impor- limitação temporal da plataforma, encontraram de novas e impensadas formas de relação com a tante reflexão que dialoga com o fenômeno em na serialização a saída ideal para solucionar o imagem através dos canais interativos encontra- questão: “se toda arte é feita com os meios de “problema”, que se tornou um desafio instigante dos no ambiente. “Ao mesmo tempo, alguns mo- seu tempo, as artes eletrônicas representam a ex- para as obras, indo em uma direção um pouco di- dos mais antiquados de interação estão desapa- pressão mais avançada da criação artística atual e ferente daquela talvez planejada pelos criadores recendo, enquanto outros hábitos parecem ser aquela que melhor exprime sensibilidades e sabe- do app durante a sua concepção. As instaséries reformulados ou mudam radicalmente.” (p.128). res do homem da virada do terceiro milênio.” Nos trazem como principal característica a curta dura- Tais modificações e maleabilidades, encontradas novos ambientes, os produtores não só ganham ção entre 15 e 60 segundos, que vai de encontro na maneira como os usuários interagem e conso- espaço como adquirem maior liberdade criati- com um fator cada vez mais presente do homem mem as produções acabam por refletir na cons- va para se expressar, levando em consideração contemporâneo, de acordo com Cleomar Rocha trução da obra, que passa a ser desafiada a inovar. que as amarras provenientes das mídias conven- (2008, p.128): a “inabilidade do ato contemplati- Diante esse cenário, as redes sociais sur- cionais são inexistentes nas redes. O autor ainda vo” que a autora classifica como “economia estéti- gem como ambiente propício para estimular ain- evidencia que a arte sempre possuiu essa caracte- ca ou uma ecologia estético-perceptiva” onde, em da mais a inovação nas narrativas seriadas. Graças 4 Essas são algumas das terminologias meio a tantas informações e imagens, o homem ao seu caráter imagético, que prioriza fotografias encontradas através da busca pelas hashtags utilizadas procura conhecer o todo da maneira mais breve durante a postagem de algumas séries disponíveis na e vídeos, o Instagram vem se destacando entre os plataforma: Social cinema, Nanoseries, Instaseries, possível. Além da temporalidade, as produções se Microseries, Instafilme 60 STORIES DA SELEÇÃO INSTASÉRIES E PRINCÍPIOS DE GAMIFICAÇÃO EM CAMPANHA DA GOL Emilly Belarmino destacam pelo ambiente de fácil interação entre à produção processos oriundos dos videogames, ximações nos últimos anos. produtor/consumidor, estética mobile e, quando ou gamificação, tornando a produção ainda mais Enquanto o cinema se espalhava pelo inseridas nos Stories, passam a carregar consigo única, singular e relevante dentro do fenômeno mundo, em 19617, nos Estados Unidos, foi criado a efemeridade, levando em consideração que as instasérie. No entanto, é preciso retroceder no um dos games pioneiros: Spacewar. A brincadeira postagens desse ambiente dissipam automatica- curso histórico para compreender que o flerte en- do estudante do MIT Steve Russel, simulava uma mente da rede após 24h. tre cinema, audiovisual e videogames teve início batalha espacial entre naves no computador e, O Instagram já contava com aproximada- a alguns anos. apesar de não ter sido comercializado, inspirou mente 1 bilhão de usuários ativos no final de ja- Nolan Bushnell a criar em 1971 o Pong, um jogo neiro de 20195, onde metade desses perfis fazem Cinema e videogames, caminhos opos- construído com objetos simples, mas que daria uso diário do recurso Stories. Esse número refle- tos ou convergentes? origem à Atari, empresa que alcançou notório su- te também nas produções que cresceram nesse cesso no universo dos games até uma parte dos ambiente. Aqui trazemos a nossa atenção a série O nascimento dos videogames se deu de anos 80. Daí em diante os games passaram por “Stories da Seleção”, uma ação criada pela agência modo similar ao cinema: através do contato do processos de estilizações que acompanharam a Ampfy6, para uma campanha das linhas aéreas Gol homem com uma nova tecnologia. As experimen- evolução dos computadores, levando os jogado- que, durante 5 dias, além de contar a história dos tações feitas nas câmeras fotográficas permitiram res a universos que desafiavam seus imaginários. 5 títulos mundiais do Brasil nas Copas do Mundo o registro de frames que unidos deram origem ao O videogame surgiu em meio a uma era de Futebol através dos Stories, inovou por trazer vídeo, enquanto os computadores, atrelados aos hipermidíatica e isso acabou gerando caracte- códigos e programações, possibilitaram o sur- rísticas bastante intrínsecas a eles. Criação de 5 Disponível em: < https://canaltech.com.br/ gimento dos videogames. Ambos passaram por universos únicos com grande desassociação do redes-sociais/500-milhoes-de-pessoas-ja-usam-os- stories-do-instagram-diariamente-131789/>. Acesso um processo de testes, seguidos de melhorias até realismo, tentado trazer pelo cinema e obras ad- em 02 mar. 2019 chegarem ao estado emergente atual. Inseridos jacentes, além da quebra da temporalidade. Nes- Disponível em:. Acesso similitudes que resultaram em tentativas de apro- br/tecnologia/como-foi-inventado-o-videogame/> em 28 fev. 2019 Acesso em: 01 mar. 2019 61 STORIES DA SELEÇÃO INSTASÉRIES E PRINCÍPIOS DE GAMIFICAÇÃO EM CAMPANHA DA GOL Emilly Belarmino ses ambientes não existe tempo fixo para a con- o ponto de vista do usuário – no cinema é cha- zões para isso são inúmeras, mas talvez a principal clusão da narrativa; cada jogador leva seu tempo mado de câmera subjetiva -, como os chamados delas seja que, durante o jogo você define o que e para explorar e alcançar as metas traçadas pelos “jogos de tiro” [...]. (GOSCIOLA 2003 p.58-59) como será feito pelos personagens, nos filmes as criadores e - em alguns casos - o tempo pode ser Diante dessas pequenas aproximações e decisões são previamente feitas pelos roteiristas. prolongado através de atualizações que inserem do sucesso dos videogames em todo o mundo, Além de claro, a não fidelização ao universo dos novos ambientes e desafios para os jogadores. produtores tentaram unir cinema e videogame games durante a produção dos longas. Tudo isso além de inserir os jogadores na história de alguma forma. Para Lucia Santaella (2004), “do Apesar de tais ações estarem bastante pre- pois, afinal de contas, com os controles em mãos mesmo modo que os games absorvem as lingua- sentes na atualidade, ainda antes, em 1995, uma o indivíduo acaba “encarnando” o personagem e gens de outras mídias estas também passaram antiga experiência foi realizada, na tentativa de guiando suas escolhas dentro daquele mundo. a incorporar recursos semióticos e estéticos que levar a jogabilidade as telas do cinema, durante o Precisamos, porém, nos atentar para o fato são próprios dos games.” A exemplo da trilogia lançamento do filme Mr. Payback: de que, ao longo do surgimento de novas mídias, Matrix que se apropriou de mecanismos advindos considerado o primeiro cinema in- uma série de características daquelas pré-existen- do universo dos jogos. Um outro fator marca essa terativo. Escrito e dirigido por Bob tes são inseridas e adaptadas dentro desse novo tentativa de aproximação: adaptações das histó- Galé, esse filme foi distribuído e contexto. No caso dos videogames não foi dife- rias dos games para o cinema. Vicente Gosciola produzido pela Interfilm, Inc. e pela Sony New Technologies, em 25 salas rente, apesar de algumas discrepâncias encontra- (2016) afirma que isso se dá graças a percepção da Interfilm, cujas poltronas (apro- das em relação com as obras cinematográficas, encontradas pelos cineastas que acreditam que ximadamente 80 por sala) tinham quando existe um desejo de trazer uma aura de ao dar vida a personagens e cenas familiares au- botões e joysticks para controlar a história – que correspondia à deci- realismo as narrativas, novas ferramentas estilís- mentam o número do público. Filmes como War- são da maioria – durante os 20 mi- ticas têm o uso intensificado, como os ângulos craft, Tomb Raider e Assassin’s Creed são resultados nutos da duração da obra, bastante criticada pela completa ausência de de captação de imagem e simulação de uso dos dessa tentativa de unir esses universos que, ape- enredo. (GOSCIOLA, 2003, p.60) equipamentos advindos do cinema como o Stea- sar dos esforços dos produtores, dividem opinião dicam que “é lembrado pelos games que utilizam da crítica e dos fãs quanto a sua qualidade. As ra- Apesar de inovadora a experiência não

62 STORIES DA SELEÇÃO INSTASÉRIES E PRINCÍPIOS DE GAMIFICAÇÃO EM CAMPANHA DA GOL Emilly Belarmino gerou uma boa repercussão. Inovar apenas para entreter através de jogos é algo que nos acom- a obtenção de um feito, sem um bom estudo e Gamificação e seus processos panha desde os mais remotos tempos e que não planejamento acaba gerando momentos como só homens, mas também os animais praticavam esse. Apesar das críticas, podemos notar o desejo Não importa se o ambiente é educacional, atividades lúdicas em um momento de seus dias. de trazer o universo dos games para as narrativas corporativo ou no campo da saúde, a utilização da Sendo assim, a gamificação utilizada na atualida- cinematográficas através da adição da jogabilida- técnica de gamificação vem se mostrando uma de é apenas uma forma de reforçar essa inata “ne- de à obra. tendência promissora nos últimos anos. De for- cessidade” de jogar. Com a emergência de novos ambientes ma resumida, Gabe Zichermann e Joselin Linder São muitos os elementos que podem ser para fruição audiovisual e produções voltadas (2013), definem essa prática como a utilização de inseridos em ambientes gamificados, ainda mais para dispositivos móveis, a união desses mun- game thinking, o pensamento do jogo, através do com a disseminação dessa prática em diversas dos pode ganhar um passo a mais para sua con- uso de mecânicas, dinâmicas e componentes dos áreas, trazendo sempre novos elementos, práti- cretização, graças a inserção de recursos como a games, os usuários são motivados e engajados. Ao cas e impactos. Como apontado por Gabe Zicher- gamificação, prática bastante em alta por levar debater sobre a importância dos jogos na vida do mann e Christopher Cunningham (2011), que são elementos dos jogos aos mais diferentes ambien- homem, Johan Huizinga (2008, p.4) ressalta que: a utilização de elementos dos jogos que estimu- tes. Um grande exemplo disso é a produção mais lam atividades gamificadas, tornando uma prática o jogo é mais do que um fenômeno recente da Netflix, o filme interativo Bandersnatch fisiológico ou um reflexo psicológi- comum em uma atividade lúdica e divertida. Os que funciona como uma espécie de “você decide”, co. Ultrapassa os limites da ativida- autores ressaltam, no entanto que, mesmo recor- onde o espectador escolhe algumas ações a se- de puramente física ou biológica. rendo a táticas oriundas dos jogos, a gamificação É uma função significante, isto é, rem executadas pelo protagonista Stefan que di- encerra um determinado sentido. não transforma o serviço ou produto em um jogo. tarão o rumo da trama, levando a múltiplos finais. No jogo existe alguma coisa “em Apesar das diversas correntes que discu- jogo” que transcende as necessida- A produção chamou atenção do público e crítica tem sobre esse tema, autores como Jesse Schell des imediatas da vida e confere um por permitir a união de elementos dos jogos e do sentido à ação. (2010), Kevin Werbach (2015) Gabe Zichermann cinema em um produto audiovisual. e Christopher Cunningham (2011), Raph Koster O autor ainda aponta que a prática de se 63 STORIES DA SELEÇÃO INSTASÉRIES E PRINCÍPIOS DE GAMIFICAÇÃO EM CAMPANHA DA GOL Emilly Belarmino

(2013), Kevin Werbach e Dan Hunter (2012) apon- ção nos mais diversos contextos, em relação às tam como principais elementos na definição de produções audiovisuais, essa experiência ainda gamificação: pontos, distintivos, recompensas busca seu lugar. Um aplicativo lançado no Brasil e interação divertida. O sistema de pontuação em 2016 tentou mudar um pouco dessa realida- indica como o indivíduo está se saindo no jogo, de. O Moovieplay8 tem o objetivo central de levar a além de identificar vencedor/perdedor da roda- gamificação para as salas de cinema. Antes ou de- da, dependendo da estratégia adotada, dando pois das exibições são projetados quizzes na tela e Fonte: Moovieplay (2018) um rápido retorno para o jogador e gerenciador os usuários são convidados a participar direto de do sistema. As recompensas não só mostram as seus smartphones, ao final da roda de perguntas Inserir elementos da gamificação nas obras conquistas como servem de status social entre os é criado um ranking, onde os primeiros colocados audiovisuais propriamente ditas, se mostra como jogadores, gerando motivação entre os usuários recebem um prêmio. O app, no entanto, apesar de um desafio, pois, a inclusão de pelo menos um participantes da ação. A diversão inserida nes- funcionar através da gamificação entre os dispo- dentre os vários elementos da gamificação nes- ses ambientes aumenta o engajamento entre os sitivos móveis e a tela das salas de projeção, traz se processo requer muito estudo e planejamen- usuários estimulando a participação contínua e conteúdo que em nada se relaciona com as obras to, a fim de evitar a criação de obras com pouca fluída. Resumindo, tais elementos acabam ser- a serem exibidas, além de ter uma forte carga co- relevância para o público. Entretanto, essa expe- vindo como âncora motivacional, instigando os mercial/corporativista, através da divulgação de riência pode ocorrer de maneira mais satisfatória jogadores a permanecerem no ambiente afim de produtos em meio as lacunas do layout. no contexto das redes sociais, como no caso das alcançá-los. É preciso que um processo gamifica- instaséries. Por estar presente em um ambiente do satisfatório vá bem além da inserção de ele- Figura 1 – Imagem digital conectado aos dispositivos móveis, a téc- mentos como esses. Antes se faz necessário ter de divulgação do Moovieplay nica de gamificação se torna algo mais viável para definido público alvo, objetivo da ação para traçar produtores e satisfatória para a audiência, como estratégias bem alinhadas com seu foco. 8 Site do aplicativo . Acesso em 01 mar. 2019

64 STORIES DA SELEÇÃO INSTASÉRIES E PRINCÍPIOS DE GAMIFICAÇÃO EM CAMPANHA DA GOL Emilly Belarmino

Um olhar sob os Stories da Seleção Mais do que criar conteúdo rele- das imagens, quebrando o ciclo de documenta- vante e de qualidade, mantemos o ção. A efemeridade encontrada nesse ambiente foco em estimular a participação. Os Stories da Seleção foram criados e pro- Esse engajamento, aliado a uma pode resultar também no aumento do valor sim- duzidos pela agência Ampfy e levadas ao ar no busca por plataformas que deixem bólico da imagem, se levarmos em consideração a marca cada vez mais próxima dos Instagram entre os dias 25 e 29 de setembro de que os indivíduos fazem uma espécie de corrida clientes, acaba nos levando a solu- 2017. Ao longo desses 5 dias foram postados epi- ções inovadoras, como a criação de para conferir o conteúdo antes do desapareci- sódios que contava a história das copas em que a um game dentro do Instagram. (SI- mento dele. QUEIRA, 2017, apud PRADO, 2017) seleção brasileira de futebol já foi campeã. Divi- A série atua em um caráter híbrido/expe- didos em blocos de 15 segundos, cada episódio rimental de mídias e linguagens fazendo uso das Ainda antes da divulgação dos seus episó- era postado na função Stories do aplicativo. Além possibilidades disponibilizadas pelo ambiente dios, os produtores tinham a opção de comparti- de contar e celebrar as conquistas brasileiras nos em que circula. A transição entre o documental e lhar o material na linha do tempo do aplicativo, mundiais, a série promovia uma espécie de caça ficcional através do uso de imagens de arquivos, onde o conteúdo é fixo ou nos Stories, função ao tesouro, estimulando o público a encontrar animações e filmagens desenvolvidas para a pro- marcada pela efemeridade. Para alguns a segunda letras e números escondidos que, unidos corre- dução, a mescla entre diferentes universos narrati- opção seria impensável, mas, dentro do contexto tamente, formariam o código localizador de uma vos e linguísticos reforça ainda mais o hibridismo em que nossa sociedade se insere nas redes so- passagem aérea e levaria 15 vencedores para o característico do vídeo que, conforme Machado ciais, essa decisão foi certeira. Nathan Jurgenson próximo jogo do Brasil nas eliminatórias da Copa. (apud DUBOIS, 2004, p. 12-13) destaca: (2013) comenta que os conteúdos disseminados A ideia de criar uma série para o Instagram com em ambientes efêmeros caminham na contramão ao contrário de outras formas ex- processos de gamificação embutidos surgiu do da trivialidade encontrada nas formas fixas de pressivas, o vídeo apresenta-se desejo de gerar conteúdo que estimulasse o pú- quase sempre de forma múltipla, compartilhamento, uma vez que, graças ao fluxo blico dentro desse ambiente que cresce cada vez variável, instável, complexa, ocor- constante de informações, os conteúdos duráveis rendo numa variedade infinita de mais, como afirmou Fred Siqueira, CCO da agência acabam caindo no esquecimento e redes efême- manifestações. Ela pode estar pre- Ampfy em uma entrevista para o portal da Gol: sente em esculturas, instalações ras como essa são necessárias para o escoamento multimídia, ambientes, performan- 65 STORIES DA SELEÇÃO INSTASÉRIES E PRINCÍPIOS DE GAMIFICAÇÃO EM CAMPANHA DA GOL Emilly Belarmino

ces, intervenções urbanas, até mes- senhos surgem para remeter ao estilo empregado 2000) pois os fatos e cenário mudam, mas a temá- mo em peças de teatro, salas de na animação. Assim como as cores verde, amarelo, tica continua em torno de uma base, no caso dos concerto, shows musicais e raves. As obras eletrônicas podem existir ain- azul, branco e laranja, que fazem uma clara alusão Stories da Seleção, os campeonatos conquistados da associadas a outras modalidades ao Brasil e à Gol. pelo Brasil. A concepção da trilha flui por um cami- artísticas, a outros meios, a outros nho similar. Conduzida por um narrador fixo que materiais, a outras formas de es- Figura 2 – Screenshots de diferentes episódios dos petáculo. (Machado apud Dubois, Stories da Seleção guia o público pelas histórias, bem como gritos 2004, p. 12-13) de torcida e uma música que remete as canções entoadas por ela durante jogos. Esse conjunto de Graças ao caráter de animação não com- elementos sonoros e visuais resultavam assim em pletamente ficcional, ela pode ser inserida no uma harmonização da história. gênero classificado por Paul Wells (1998) como Apesar de estar presente em um ambien- “animação com tendência documental” pois, ape- te propício para interação direta entre público e sar do estilo adotado na direção de arte remeter criador, a produção em questão optou por desati- mais a abstrações do que a um realismo propria- var esse recurso. Na função Stories geralmente en- mente dito, elas remontam momentos marcantes contramos quatro ferramentas e dentre elas três como comemorações ou jogadas feitas ao longo Fonte: Reprodução Stories do Instagram da Gol (2017) são focadas na interação. A primeira é a câmera, de cada campeonato em que a seleção foi cam- disponibilizada para que os usuários respondam peã. Essa técnica, marcada pelo uso de filmagens Esses elementos trazem à produção uma os Stories de outros através de fotos e vídeos. Em como referência no desenho, é conhecida como unidade visual, gerando até mesmo uma espé- seguida temos a caixa de texto, o direct que pos- rotoscopia, um processo que acabou sendo bas- cie de identidade necessária para a narrativa que, sibilita o encaminhamento do story para uma ou- tante difundido pela Disney que, apesar de não apesar de contar linearmente as vitórias brasileiras tra pessoa e por fim, a ferramenta denunciar. No ser a criadora, utilizava-o bastante. As animações na copa, ilustram anos, personagens e ambientes decorrer de suas exibições apenas duas dessas marcam presença até mesmo em momentos onde diferentes. Podendo ser classificada como uma quatro ferramentas estavam disponíveis: direct filmagens são exibidas, molduras, texturas ou de- “serialização em episódio unitário” (MACHADO, 66 STORIES DA SELEÇÃO INSTASÉRIES E PRINCÍPIOS DE GAMIFICAÇÃO EM CAMPANHA DA GOL Emilly Belarmino e denunciar, as outras duas foram substituídas indícios desse processo podiam ser encontrados distribuição dessas recompensas pode ocorrer de pelo ícone “seguir”, em caso de usuários que não nos segundos iniciais de cada episódio, que conti- maneira inesperada ou esperada. Na série o indi- seguiam o perfil estarem visualizando os episó- nham instruções a serem seguidas. No desenrolar víduo sabe o que deve fazer para recebê-la, por dios e o “ver mais”, disponível apenas para perfis da série, letras e números eram exibidos e a au- tanto ela ocorre dentro do esperado. Dentre os comerciais, que direcionava os indivíduos para diência precisava identificar quais delas forma- princípios básicos, as medalhas podem ser consi- participarem da promoção ou visualizarem infor- vam o código do localizador, similar aos utilizados deradas por alguns como um elemento de gran- mações extras. Com isso, a chance de se conectar nas passagens da companhia aérea. A cada dia, os de importância em um ambiente gamificado, pois ainda mais com a audiência foi descartada. 3 primeiros que enviassem o palpite correto ga- motivam o indivíduo a continuar encarando os nhavam o prêmio de assistir a um dos jogos da desafios propostos. E, levando em consideração Figura 3 – Perfil com ferramentas liberadas nos Sto- ries (cor cinza) eliminatória da copa na Rússia, com tudo pago. o prêmio em questão dessa instasérie, os partici- vs. Perfil da Gol durante exibição da série (cor laranja) Figura 4 – Instruções exibidas no início da série pantes não só permanecem ali, como convidam seus amigos, levando o desafio, a produção e a marca a mais e mais indivíduos.

Considerações finais

Fonte: Reprodução Stories do Instagram da Gol (2017) Através dos autores e das questões levan- A produção foi classificada pelos produto- tadas, torna-se possível compreender o quanto res e noticiários como game, no entanto, ao lon- as novas mídias podem contribuir para o futuro Fonte: Reprodução Stories do Instagram da Gol (2017) go de nossa pesquisa, chegamos à conclusão de do audiovisual, através da inserção de elemen- que ali na verdade estava presente elementos de Diante disso, encontramos um dos ele- tos característicos desses ambientes ou advindos gamificação, que mesmo inseridos na produção mentos da gamificação apontados pelos autores de fora dela, como no caso da gamificação. Essa não a classificavam como um jogo. Os primeiros já citados neste texto: o sistema de medalhas. A técnica tem se mostrado nas mais diversas áreas

67 STORIES DA SELEÇÃO INSTASÉRIES E PRINCÍPIOS DE GAMIFICAÇÃO EM CAMPANHA DA GOL Emilly Belarmino como uma maneira promissora de conquistar au- que não desmerece a obra, pelo contrário, ela ser- dias: do game à TV interativa. São Paulo: Editora diências fiéis e participativas e possibilitando o al- ve como um pequeno recorte das novas possibili- Senac, 2003. _____, Entre game e cinema: um novo gênero? cance de resultado similar nas instaséries. dades que as produções encontradas no fenôme- XXXIX Congresso de Ciências da Comunicação - No entanto, é preciso abrir um parêntese no instasérie podem proporcionar as produções INTERCOM, 39, 2016, São Paulo. Disponível em: quanto a um fato encontrado durante a análise da audiovisuais. Com um pouco de criatividade e ou- série, no que diz respeito à impossibilidade de in- sadia é possível não só experimentar todos os re- HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como teração entre público/produtor. Em um ambiente cursos oferecidos pelas ferramentas, mas ir além, elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2008. pautado pela interatividade, impedir que ela se reconfigurá-la e alcançar resultados significantes, concretize é uma escolha que acaba minimizando mesmo que de uma maneira simples, como na JURGENSON, Nathan. The Liquid Self. Disponível a construção do relacionamento entre esses gru- produção aqui analisada. em: . Acesso em: 01 mar. 2019 pos. O máximo permitido foi a interação entre a Referências audiência a partir do uso das mensagens privadas KOSTER, Raph. Theory of Fun. 2. ed. Canada: O’ no direct que, apesar de ser algo positivo para a Reilly Media, Inc., 2013 BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. série, que tem seu conteúdo propagado, cria uma In: ______. Magia e técnica, arte e política: en- MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. espécie de muro entre quem assiste e quem pro- saios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: SENAC, 2000. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 91-107. (Obras Es- duz. _____, Arte e mídia: aproximações e distinções. colhidas, v.1). Durante a pesquisa identificamos uma Revista Eletrônica E-Compós, edição 1, 2004. possível dificuldade quanto ao uso de termino- BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remedia- PRADO, Laís. Stories da Seleção: Gol apresenta logias nessas recentes experimentações em am- tion: Understanding New Media. Cambridge, MA: game no Instagram. Criação da Ampfy. Disponível MIT Press, 1999. bientes online, uma vez que, em sua divulgação, em: Acesso em: 01 mar. a série foi chamada de game e, no entanto, o que 2019 DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São existia nela era um princípio de gamificação tra- Paulo: Cosac Naify, 2004. RECUERO, Raquel. Redes sociais na internet. Por- balhado de uma maneira bastante simplória. O to Alegre: Sulina, 2009. GOSCIOLA, Vicente. Roteiro para as novas mí- 68 STORIES DA SELEÇÃO INSTASÉRIES E PRINCÍPIOS DE GAMIFICAÇÃO EM CAMPANHA DA GOL Emilly Belarmino

McGraw-Hill, 2013. ROCHA, Cleomar. O imanente e o inacabado: entre as dimensões sensível e pragmática da experiên- ZICHERMANN, Gabe; CUNNINGHAM, Christopher. cia na estética tecnológica. In: SANTAELLA, Lúcia; Gamification by design: Implementing game ARANTES, Priscila. (Org.). Estéticas tecnológicas: mechanics in web and mobile apps. Canada: novos modos de sentir. São Paulo: Educ, 2008. O’Reilly Media, Inc., 2011.

SANTAELLA, Lucia. Games e comunidades virtuais. WERBACH, Kevin. Video 6.5 Self Determination In: Exposição Hiperrelações Eletro Digitais, Ins- Theory. In: Gamificação (Curso online) Filadélfia: tituto Sérgio Motta e Santander Cultural, Porto Coursera, 2015 Disponível em: SCHELL, Jesse. When games invade real life. Las Vegas (Nevada), fev. 2010. Disponível em . Acesso em: 14 jun. 2019. Business. Filadélfia: Wharton Digital Press. 2012.

SIBILIA, Paula; DIOGO, Ligia: Vitrines da intimi- dade na internet: imagens para guardar ou para mostrar? UFF – Universidade Federal Fluminense. Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Rio de Janeiro, 2011.

WELLS, Paul. Understanding animation. London, New York: Routledge, Taylor e Francis Group, 1998.

ZICHERMANN, Gabe; LINDER, Joselin. E-book. The Gamification Revolution: How leaders leverage game mechanics to crush the competition. Mc

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12 gagement tools used in multi platforms to create formule para buscar maior apelo junto ao público, Resumo: Este artigo busca analisar a websérie a link with the spectators, making them almost as principalmente, novos espectadores adolescen- transmídia SKAM, produzida pelo canal público cocreators of the fiction. This article explores the tes multitarefa de atenção cada vez mais dispersa. NRK de TV da Noruega, que buscou atingir jovens process of reformulation in the traditional ways adultos ao abordar temas pertinentes à sua iden- of making television against the changings in the Shirky (2011, p.37) defende que as mí- tidade de forma verossimilhante. O objetivo é en- forms of consumptions of the products by the dias sociais não são uma alternativa para a vida tender as ferramentas de engajamento utilizadas spectators in the contemporaneity. Is theoretical- real, são uma parte dela. Portanto, a saída para em multiplataformas para criar um vínculo com ly based on the transmedia concept as a form for as plataformas ultrapassadas é tentar se renovar os espectadores, tornando-os quase como cocria- the narrative to develop in various medias, each dores da ficção. Este artigo explora o processo ne- one contributing in distinctive and valued ways acompanhando o fluxo ou cair no esquecimento. cessário de reformulação dos modos tradicionais for the final product and generating connection Adequar-se com as novas gerações é desenvolver de produzir televisão frente às mudanças da for- with the public. a possibilidade de acompanhar o cotidiano mo- ma de consumo dos produtos pelos espectadores Keywords: SKAM. Transmedia. Web series. vimentado, e uma alternativa é a possibilidade na contemporaneidade. Baseia-se teoricamente nas narrativas transmídia como a forma de uma de se encaixar nas mais diversas telas, formatos e história se desenrolar em diversas mídias, cada Desde o começo dos anos 2000 que o futu- mídias. De acordo com Evans (2015), nessa nova uma contribuindo de forma distinta e valiosa para ro da televisão tem sido debatido. Cada vez mais tendência da indústria, o que agora se tornou ro- o produto final e gerando conexão com público. tina é a narrativa transmídia, sendo também uma Palavras-chave: SKAM. Narrativas transmídia. novas tecnologias adentram as casas e entram Websérie. Ficção seriada. na competição para serem as mídias de entrete- estratégia das empresas tomarem o controle num nimento de uma geração ávida por mudanças e cenário tão mutável. Abstract: This article analyzes the transmedia web novidades. Como aponta Askwith (2007, p.12), a A narrativa transmídia parte do conceito series SKAM, produced by a Norwegian public de fragmentar o arco dramático convencional e channel, which sought to achieve young adults by prática de consumo de TV está se transformando addressing relevant issues to their identities with de um processo passivo e estático na frente de espalhar esses pedaços por diferentes platafor- verisimilitude. The goal is to understand the en- uma tela para um processo ativo e contínuo que mas, com cada peça contribuindo de maneira dife- 1 Graduanda em Cinema e Audiovisual pela Universidade acontece em qualquer lugar e hora. Sendo assim, rente, mas valiosa para o todo da trama (JENKINS, Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: [email protected]. 2008). Esse método utiliza a força específica de 2 Graduando em Cinema e Audiovisual pela Universidade faz-se necessário que o modelo tradicional se re- Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: [email protected] 70 TRANSMÍDIA COMO FORMATO E ENGAJAMENTO JUVENIL NA SÉRIE SKAM

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cada meio para dialogar e ter pontos distintos de com minorias e ter uma programação de quali- tém mais atraente para as gerações conectadas, acesso à franquia, gerando experiências diferen- dade (PINHEIRO, 2015). Objetivos estes adotados principalmente se permitir flexibilidade e interati- tes e ampliando a narrativa. A transmídia coloca pela emissora de televisão pública norueguesa vidade no uso. Youtube, Vimeo, Instagram e sites o espectador dentro de uma performance que NRK, que em seu próprio site afirma também sua OnDemand5, todos oferecem formas de produzir não depende só da sua capacidade de interpretar fidelidade em produzir conteúdos que agreguem e consumir audiovisual mais diversas, responsável mensagens em vários contextos, mas também da para a vida dos jovens e de refletir a realidade no- pelos jovens assistirem um terço menos de tele- sua participação na obra (SCOLARI, 2016). rueguesa, exaltando a identidade local, os idio- visão tradicional que os adultos (OFCOM, 2017). Sendo assim, esse artigo pretende explo- mas e a cultura do país3, que valoriza a liberdade Talvez o método já ultrapassado de uma história rar como esse conceito de transmídia se relacio- individual, a igualdade de gênero e as políticas tão definida com começo, meio e fim não seja tão na com a criação da série SKAM, exibida dos anos públicas a favor das minorias. A partir disso, nasce atraente quanto um feed se atualizando a cada se- 2015 a 2017, com objetivo de investigar o enga- a necessidade de se estar em pleno diálogo com gundo. jamento gerado pelo seriado, impulsionado pela as camadas que o canal deseja atingir para passar Mas como as transformações da TV não conexão emocional dos espectadores com a tra- sua mensagem. acontecem por conta das meras evoluções tecno- ma por sua verossimilhança e proximidade com Por isso, surge a preocupação com o mode- lógicas, mas sim por uma opção ativa daqueles que temas adolescentes. Ao longo da pesquisa estu- lo convencional de TV que se manteve estável por querem se manter no topo e conquistar novos pú- damos também o papel social desempenhado décadas, mas entrou em decadência na era das blicos (IHLEBÆK, SYVERTSEN E YTREBERG, 2013), pela série e qual seu impacto no público e na for- mídias sociais. Assim como o Spotify4 está para o assim aconteceu com a NRK. Ela, assim como tan- ma de se produzir ficções seriadas como um todo. CD, há vários outros novos formatos de produção tas outras, dentro desse processo compreendeu a audiovisual que estão para a televisão convencio- urgência de expandir os muros de atuação a fim REFORMULANDO A TV TRADICIONAL nal. Uma competição em que, por mais que não de entrar em contato com outras estratégias. É a tenha vencedores, o lado mais moderno se man- chegada da compreensão de que mesmo que o

Entende-se que a televisão pública tem 3 Fonte: https://www.nrk.no/about/a- 5 Termo que se refere às plataformas online por compromissos dialogar de forma afirmativa gigantic-small-broadcaster-1.3698462 que contém catálogos de filmes e séries que 4 Serviço de streaming online de músicas. permitem ser assistidos a qualquer hora e lugar. 71 TRANSMÍDIA COMO FORMATO E ENGAJAMENTO JUVENIL NA SÉRIE SKAM

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modelo de televisão que se conhece atualmente transmídia. cisa ter acesso a todas as plataformas para com- nunca chegue a se extinguir, dificilmente vai atrair Essa narrativa acontece como um processo preender a história completa. novos públicos dessas gerações ávidas por novi- centrífugo, o material principal faz o estouro do Na primeira categoria, o material principal dade e movimento que, dentro de uma gama de big bang narrativo, de onde surgem novos textos em si já é completo, os outros conteúdos chegam novas tecnologias, videogames, computadores e e que vem sucedidos dos conteúdos produzidos para servirem de bônus e informações extras. Mas smartphones, provavelmente vão achar aquela pelos espectadores. Sendo assim, é como se a a proposta diferencial que atraiu tanta atenção tela quadrada de programação engessada menos narrativa transmidiática fosse uma galáxia textual para SKAM e a fez conhecida em diversos países atraente para consumo. (SCOLARI, 2010), cheia de camadas e nuances. pelo mundo foi se encaixar na segunda categoria, Como em um quebra cabeça, as peças da história onde é quase essencial que você navegue nesse NARRATIVA TRANSMÍDIA são espalhadas entre diversas mídias. Dena (2009) mundo ficcional criado para que tenha uma expe- distingue a narrativa transmídia em duas cate- riência mais rica. Nessa série o material principal A estratégia desenvolvida pela emissora gorias distintas: A primeira, intercomposicional, eram as produções audiovisuais, mas para além NRK para se apropriar dos novos meios tecnoló- onde as narrativas abordadas em cada plataforma deles havia Instagram, Youtube e chats de conver- gicos e se aproximar do seu público alvo foi criar do produto são distintas e independentes entre sas por onde os personagens interagiam sempre um modelo de narrativa seriada que transbordava si, mas juntas compõem algo maior. Um exemplo dando dicas sobre os fatos que estavam aconte- para além dos episódios audiovisuais. Postagens disso é o filme e o jogo “Matrix”. A segunda, intra- cendo, acrescentando novos aspectos na narra- dos personagens em redes sociais arquitetadas composicional, onde uma só história se divide por tiva e até mesmo dando a entender mais sobre pelos produtores da série e prints de conversas diversas plataformas, cada uma conta sua parte suas personalidades e história de vida, isso dava falsas eram parte do arsenal de instrumentos uti- de forma consistente, mas não independente e, a oportunidade de os espectadores interessados lizados para esse estilo de contar a história. A essa quando somadas, todas produzem um material terem uma visão mais aprofundada. utilização tecnológica ampla que incorpora várias final com muito mais potência e profundidade. Um exemplo disso foi o questionamen- plataformas com conteúdos girando em torno de Nessa acontece quase uma interdependência en- to levantado acerca da personagem Vilde, pois uma peça principal damos o nome de narrativa tre os conteúdos, sendo assim o espectador pre- conforme o seriado caminha percebemos que

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ela sofre de transtornos alimentares e de diver- novo patamar de compartilhar suas experiências SKAM fazia a série ser bem mais detalhada do que sos problemas familiares e domésticos como uma com outros fãs em fóruns, por exemplo, para com- se consistisse apenas de episódios comuns. Afir- mãe doente. Mas suas redes sociais viviam lotadas plementar as dicas que cada um recebeu e assim mavam também que a experiência parecia mais com as melhores fotos aparentando um estilo de assegurar que todos tivessem a experiência mais real quando consumiam os conteúdos assim que vida sofisticado, tranquilo e divertido. Muitos fãs completa possível. eles eram lançados, e que esse senso de realidade notaram uma crítica social ao se questionarem so- Seguindo essa linha, não demorou muito se perderia se eles assistissem episódios longos e bre essa dualidade. Muito além de uma narrativa para SKAM ter diversos grupos de discussão on- completos uma só vez na semana. Um dos entre- transmídia onde as outras fontes dão aporte para line e páginas fã clube criadas por espectadores vistados declarou que de vez em quando curtia o texto central, para fortalecê-lo ou complemen- ativos e sedentos por aquelas peças interativas. publicações dos personagens no Instagram como tá-lo, essa série tinha a proposta de lançar um de- Esse modelo de narração inovador somado com se fossem de amigos próximos e, como essas pe- safio para o espectador: um jogo de detetive por a temática proposta que tanto foi estudada para ças entravam sorrateiramente no seu feed de no- todas as redes sociais para tentar compreender ser assertiva ao público alvo fez a mistura perfei- tícias, às vezes ele se via pego com a guarda baixa muito mais do que alguns minutos de vídeo po- ta para atrair não só os jovens, mas pessoas das e se sentia genuinamente tocado pelos dramas deriam contar. mais diversas faixas etárias. Quem assistia a série de personagens que nem existiam. Essa conexão Jenkins (2008) afirmou que esse fenômeno se sentia emocionalmente conectado tanto pelos é como uma contaminação emocional, onde o representa uma verdadeira transformação cultu- assuntos abordados e seus personagens tão ve- espectador identifica tanto seu cotidiano com os ral, pois incentiva os consumidores a coletarem rossimilhantes, quanto pelas plataformas onde a acontecimentos e as personagens que começa a informações para fazer ligações entre conteúdos série acontecia pois já estavam inseridas com pro- se sentir parte da trama. de mídia dispersos. Essa proposta retira a passi- ximidade no cotidiano dos adolescentes. Essa conexão também se dá quando a sé- vidade do espectador ao assistir o programa de Em uma pesquisa conduzida por Bengts- rie se formula para se encaixar no cotidiano con- TV, já que agora a proposta é que ele se dedique son, Källquist e Sveningsson (2018) com jovens turbado do público. Como no conceito de assin- a caçar os pedaços de história espalhados pelas entre 16 e 29 anos, vários dos entrevistados enfa- cronia de Ruggiero, que diz que assim como os diversas plataformas e até mesmo chegar em um tizaram que sentiam que a narrativa transmídia de usuários podem controlar o envio de imagens e

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vídeos, por exemplo, também deveriam ter nar- possíveis com o que os adolescentes falariam. A técnica usada para sanar este problema rativas flexíveis que aumentassem seu poder de Esse foi o ápice de SKAM, pois logo ela en- na relação do canal com os consumidores foi con- controle para decidir o quanto e quando as con- trou na proposta de fazer os fãs se tornarem parte vidar a produtora Julia Andem, já conhecida por sumir. Um dos entrevistados pela mesma pesqui- da série. Com tantas nuances de pontos de vista, sua boa relação com essa faixa etária, para con- sa de Bengtsson, afirmou que sentia que SKAM cada personagem tendo sua rede social para se duzir uma pesquisa de mercado realizada com tinha sido especialmente criada para ser consumi- expressar criando personalidades completamen- jovens, a fim de procurar as necessidades desse da durante intervalos na escola, pois suas mídias te tridimensionais e cada espectador juntando público para basear o desenvolvimento de um tomavam o tempo suficiente entre uma ativida- as peças do seu próprio jeito e as interpretando produto que os atrairia e satisfaria. de e outra, possibilitando os espectadores de se com sua individualidade, essa narrativa foi forte A pesquisa de público-alvo foi realizada atualizarem imediatamente. na subjetividade e abriu espaço para as mais di- por meio de vários métodos: 50 entrevistas deta- SKAM utilizou sua repercussão e contato versas opiniões. lhadas com jovens de várias partes da Noruega, com jovens para abrir espaço de diálogo, fazendo 200 entrevistas rápidas, visitas a escolas, análises um papel social de educação e conscientização ENTENDENDO O PÚBLICO de redes sociais, além de estudos de artigos e es- sobre vários assuntos que tangem o cotidiano dos tatísticas sobre a cultura juvenil. (SUNDET, 2019) adolescentes. Como, por exemplo, sobre consumo Segundo a produtora do canal Marian- Essas 50 entrevistas detalhadas foram conduzidas excessivo de álcool quando em uma cena Vilde ne Furevold-Boland, a NRK percebeu que seus conforme o método NABC (Needs, Approach, Be- passa mal em uma festa e é ajudada por Sana e so- espectadores jovens-adultos (em destaque, ga- nefits and Competition), já utilizado pela emissora bre combate à violência sexual, quando em uma rotas) não estavam sendo atingidos, e estavam nos anos 2000, que permitiu estabelecer objetiva- cena Noora explica as leis norueguesas de apoio se esvaindo para outros serviços, como a Netflix mente as necessidades do público-alvo e quais às vítimas para um homem que a tinha abusado. e o Youtube. Diante dessas frenéticas mudanças métodos poderiam ser utilizados para ir ao encon- Julie Andem, inclusive, declarou que produzia os na lógica de consumo dos produtos audiovisuais, tro dessas necessidades. (SUNDET, 2019). roteiros e pedia a opinião dos atores amadores a NRK se preocupou ao ver essa fatia da audiência Diante dos resultados, a equipe da série para tentar fazer os diálogos os mais verossímeis distanciando-se de suas obras. SKAM, ainda em desenvolvimento, identificou a

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necessidade de um produto que ajudasse os jo- ciais e políticos (PAIVA, 2013). distribuição e consumo de produtos. Se a neces- vens a se sentirem menos sobrecarregados e so- A adesão massiva às redes sociais se dá sidade das emissoras de TV é cultuar uma nova zinhos. A partir disso, e também notando o papel pela eficiência, facilidade e comodidade paraaudiência e se aproximar dela, essas novas mídias das redes sociais como um importante elemento conversações e coordenações que já faziam par- vêm para somar, pois, conforme dito por Pearson a qual as vidas sociais desses jovens gravitavam te do cotidiano das comunidades há muito tem- (2010), esse ambiente introduziu, além dos novos ao redor, obtiveram as bases para construir as es- po, como indicam Jenkins, Green e Ford (2014). métodos de sociabilidade, também novos modos truturas da série. (THE NEW YORKER, 2018) Nossa atualidade é marcada por movimentos de de produção de conteúdo entre fãs. proporções nacionais e mundiais que surgiram, Incorporar essas novas mídias é sinônimo A ALIADA INTERNET foram mediados e impulsionados pelas conexões de alargar as possibilidades de criação, visualiza- geradas por essa tecnologia. Como, por exemplo, ção e consumo dos produtos. Além de estreitar A internet, essa grande rede sem fios que as manifestações do 15 de maio de 2019 contra os laços pelo diálogo com os espectadores que conecta pessoas ao redor de todo o globo, per- os cortes da educação pública, organizadas atra- estarão em contato direto, e possivelmente em si- mitiu a proliferação das mais diversas vozes e vés de redes sociais. A internet, com seus modos multaneidade, com as peças, é também estabele- opiniões convivendo juntas construindo uma de interação, nos possibilita ampliar as formas de cer um canal por onde é possível receber um fee- intensa cultura participativa. Se você tiver um administrar as informações e de repassá-las em dback relacionado às experiências individuais. Ao ponto de acesso, tem também as portas abertas um ambiente virtual de circulação instantânea de buscar extrair o que cada meio oferece de melhor, para expressar seus pensamentos e credos junto conteúdo. as emissoras podem utilizar essas tecnologias ao a milhões de outras pessoas, que podem ou não Muitas empresas logo sentiram a urgên- seu favor desde uma propaganda no feed de uma concordar, em uma grande experiência de intera- cia desse novo movimento das tecnologias. Com rede social e exibir sua grade de programas nes- tividade. Nessa onda, com as redes sociais conec- cada pessoa gastando cerca de 24h por semana sas outras plataformas até apostar em um tipo di- tando pessoas, a nova realidade é a de cidadãos dedicados ao uso do celular (OFCOM, 2018), o me- ferente de produção que use essas mídias como tendo a possibilidade de interagir de maneira co- lhor caminho para os empreendimentos seguirem ferramenta. laborativa e até desenvolver laços afetivos, comer- é se adaptar a esses novos meios de produção,

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ESTRUTURA DE SKAM exibição do episódio inteiro pela emissora. Esses trechos eram postados no site da série em ho- De acordo com a percepção de tendên- rários equivalentes aos horários da diegese da cias e com resultados de pesquisas, a estrutura de narrativa. Se no começo da sequência aparecia SKAM foi construída objetivando o fornecimento uma data e uma hora do tempo narrativo, o tre- de uma experiência de imersão dos espectadores. cho era publicado neste mesmo horário e data. O tradicional modelo de TV, de mão única, não é A estratégia foi construir a ilusão de que os fatos mais competente suficiente para sustentar um pú- retratados na série estavam se passando “ao vivo”, blico que nasceu e cresceu em meio a uma guerra conforme os espectadores viviam suas vidas e as- Figura 1. Website onde foram publicados de estímulos. Cada vez mais, como Askwith (2017, sistiam. Por exemplo, cenas dos personagens se os fragmentos de episódios da série. p.12) disserta, a prática do consumo de TV não se arrumando para irem a festas eram publicadas resume apenas à experiência de assistir em frente em um horário muito provável dos espectadores Outra estratégia de estrutura de consumo ao televisor, mas relaciona-se a inúmeros outros da série estarem se arrumando para sair também. adotada foi a integração das redes sociais como processos. Para ofertar tais processos comple- Desse modo, a forma de consumo destes sub-e- meio de veiculação de narrativa, não apenas para mentares da experiência do consumo televisivo, pisódios se assemelha bastante ao modelo de replicação de conteúdo, mas para a composição a equipe de SKAM desenvolveu um formato que consumo de conteúdo pelas redes sociais, tor- de novas perspectivas e camadas ao conteúdo aproveitasse dos benefícios da internet e das re- nando a experiência mais fluida para esse público. televisionado, trazendo até assuntos não trata- des sociais, inevitáveis para a narrativa em si. dos na exibição convencional. A produção da Diferente de uma organização de exibição série criou perfis em redes sociais para os per- convencional de séries, com episódios semanais, sonagens, como canais no Youtube e, principal- os episódios de SKAM, na verdade, eram resulta- mente, contas no Instagram. Nesses veículos, os dos da montagem de fragmentos narrativos que personagens deixavam transparecer mais ca- eram lançados ao decorrer da semana anterior à racterísticas de suas personalidades e tratavam

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de assuntos relevantes à sociedade norueguesa bre quem as temporadas se desdobraram repre- em tempo real. Consequentemente, quem se- sentaram diferentes assuntos, escolhidos a partir guia os personagens da série nestas outras pla- preocupação em criar uma narrativa relevante de taformas tinha uma experiência mais imersa na cunho educativo para a sociedade norueguesa e, narrativa, ao passo que estes perfis criados pela principalmente, para seus jovens. produção se misturaram de forma fluida aos de- A primeira temporada de SKAM trouxe Eva mais perfis de jovens noruegueses, causando (Lisa Teige) como personagem principal, retratan- essa proximidade entre espectador e narrativa. do sua experiência com relacionamentos. A narra- Figura 3. Captura de tela do perfil do per- tiva se desenvolve em torno do confuso namoro sonagem Isak no Instagram. de Eva e Jonas (Marlon Valdés Langeland), que teve início após ele romper o relacionamento com Essas medidas tomadas pela produção a melhor amiga dela. Sendo assim, essa tempora- de SKAM foram, portanto, essenciais para a pro- da se preocupa em tratar assuntos relacionados moção do engajamento do público-alvo da série, a esse conflito, como infidelidade, sexualidade, expandindo a experiência de consumo da expec- bullying, e outros temas abordados nas tramas tação à participação ativa por meio da integração secundárias, como distúrbios alimentares e iden- à lógica cotidiana desses jovens. Porém, essas es- Figura 2. Página do website trazen- tidade. tratégias não seriam tão eficazes se não tivessem do hiperlinks com as contas pessoais dos A segunda temporada da série segue com sido executadas com uma narrativa que se ade- personagens em redes sociais diversas. Noora (Josefine Pettersen), amiga de Eva, como quasse à proposta de consumo. personagem principal, também trazendo um re- Cada uma das quatro temporadas de SKAM lacionamento conflituoso, e tratando de assuntos tem um personagem principal, por quem as nar- relevantes como feminismo, amizade e violência rativas circundam, mas sem deixar de lado outros sexual. Já a terceira temporada foca em Isak (Tarjei personagens importantes. E cada um desses so- 77 TRANSMÍDIA COMO FORMATO E ENGAJAMENTO JUVENIL NA SÉRIE SKAM

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Sandvik Moe), amigo de Eva e Jonas, descobrindo FÃS PROSSUMIDORES criado por Alvin Toffler que indica as novas rela- sua sexualidade, retratando a luta LGBTQ+, este- ções de consumo na pós-modernidade onde os reótipos, aceitação e transtornos mentais. Nesse contexto que exige uma leitura consumidores possuem suas próprias demandas Enfim, a última temporada acompanhou atenta e polissêmica dos espectadores na análise individuais e acabam quebrando sua tradicional dias na vida de Sana (Iman Meskini), uma jovem das postagens e correlação entre elas, o fluxo de submissão no mercado para se tornarem também muçulmana que lida diariamente com intolerân- informação perdeu suas características tradicio- produtores daquilo que consomem. cia religiosa e conflitos internos provocados pelo nais. Antigamente as mensagens eram apenas Os produtores não esperavam tamanho contraste entre sua cultura e a cultura norueguesa transmitidas do emissor ao receptor, mas as no- envolvimento dos fãs com as redes sociais dos representada por seus amigos, sempre tentando vas mídias permitem novas dinâmicos de trânsito personagens, mas assim que notaram isso avan- conciliar esses dois mundos. nesse processo comunicativo (GUIDA 2018), onde çando tomaram vantagem para si na produção. A narrativa de SKAM foi pensada a partir os receptores ressignificam os símbolos recebidos Em uma das cenas Noora discute com seu namo- das pesquisas realizadas com o público-alvo e das e a partir disso conseguem até criar novas men- rado William, e ele some. Com a diegese da série necessidades institucionais da NRK como uma sagens. A dinâmica gerada por SKAM envolvia se apropriando do tempo da vida real, o website emissora de televisão pública. O objetivo, vide a desde a reação dos espectadores ao receberem parou de ser atualizado com novas mensagens extensa pesquisa, foi construir uma narrativa que os conteúdos produzidos, quais significados ex- na tentativa de fazer esse sumiço ser notado por fosse realmente representativa do modo de vida traídos desses conteúdos, quais as conexões es- todos que estavam acompanhando a aflição de dos jovens noruegueses, suas problemáticas, con- tabelecidas entre essas peças, quais as respostas Noora. Quando os produtores viram na seção de flitos e superações. Assim, vemos em tela diversos dadas a cada uma das postagens, quais debates comentários do site uma jovem lamentar dizendo pontos de vista diferentes acerca da experiência geraram, até a produção de outros conteúdos pe- que não conseguiria se concentrar em seus estu- juvenil na Noruega, e pensamentos encorajado- los próprios fãs em interação com a série. dos até que William respondesse, decidiram colo- res sobre como superar o medo e as adversidades Os fãs conseguiram estabelecer uma rela- car isso dentro da série como se fossem palavras de quem está descobrindo a vida. ção com os criadores onde antes só existia uma de uma amiga de Noora em uma mensagem de via de mão única. Prossumidor é um neologismo grupo de conversas. O drama da ficção se tornou

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drama real e depois mudou de volta para o mun- Os produtores de SKAM tinham a intenção do ficcional (NEW YORKER, 2018) de cada vez mais estreitar seus laços com os fãs Uns dos conteúdos produzidos pelos que acompanhavam a série e demonstrar o quan- fãs eram expansões da narrativa, caminhando to se importavam com a participação deles. Parte por onde os escritores da série não exploraram, da produção ficava encarregada de trabalhar ape- criando fanfics6 com histórias originais. Outro nas planejando postagens para os perfis dos per- conteúdo eram fanarts, como montagens de fo- sonagens e navegar por essas redes sociais intera- tos e desenhos dedicados a personagens que gindo com os fãs, identificando seus gostos para eles gostavam e explorando possíveis cenas que incorporar na série. Era um ciclo infindável de fa- as elipses7 da série omitiram ou que poderiam zer os espectadores se sentirem valorizados e as- ter acontecido mas nunca aconteceram. Um sim receber cada mais feedback deles, entenden- desses casos foi o desenho feito pelo usuário @ Figura 4. Ilustração feita pelo fã @elli_skam do onde e como poderiam gerar mais novidades e ellie_skam do Instagram, que postou seu dese- melhorias nos conteúdos produzidos e lançados. nho em homenagem à série em suas redes sociais e os produtores gostaram tanto que transfor- TRANSMÍDIA COMO FERRAMENTA ECONÔMI- maram em uma cena real da quarta temporada. CA

Agora com um público bastante distribuí- do em diversos meios de oferta de conteúdo, a in- dústria da comunicação passa a se preocupar cada Figura 5. Captura de tela de um dos vídeos vez menos com a audiência numérica, voltando 6 Histórias originais criadas por fãs da quarta temporada da série. seus esforços em construir engajamento com os baseadas em personagens das séries. espectadores. Esse é um dos produtos mais va- 7 Omissões de partes da narrativa. 79 TRANSMÍDIA COMO FORMATO E ENGAJAMENTO JUVENIL NA SÉRIE SKAM

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liosos do mundo contemporâneo, medindo a in- expandir o mercado para esse produto pois suas nossa propriedade. (BOLIN, 2015). Os produtores tensidade das relações entre os consumidores e várias plataformas são portas de entrada para atin- da série testavam cada plataforma com suas po- os produtos. Para esse conceito, vale mais que o gir público diversos, de diferentes estilos e faixas tencialidades, e viam quais rendiam mais intera- público-alvo interaja ativamente com o conteúdo, etárias. Nessa era tecnológica de grande competi- ção do público e investiam nessas. Nesse caso, o através de discussões, curtidas em redes sociais e ção o maior desafio, além de alcançar o público, é “Youtube” quase não foi usado, mas o “Instagram” ações ativas, do que quanto tempo passam esta- reter sua atenção para que ele permaneça consu- obtinha muitas atualizações por ser uma plata- belecendo uma relação passiva, como acontece mindo. SKAM com sua narrativa transmídia con- forma de consumo rápido e instantâneo, estando quando assistimos anúncios aleatórios passando seguiu isso através de abrir espaço para interação assim mais alinhada com os interesses de uma ge- na televisão. incessante com o público, com a NRK mostrando ração acelerada. Engajar um público, desse modo, é atribuir que está apta a participar dessas mutabilidades Tratando-se do continente europeu, é a ele um papel importante nessa relação pois a da atualidade nos meios de comunicação para se interessante observar que os setores públicos da audiência contemporânea não deseja mais ape- manter atualizada para seus espectadores. mídia foram os responsáveis por iniciarem uma nas receber informações, mas contribuir na cons- Na mesma pesquisa com Bengtsson, uma produção mais consolidada de conteúdos trans- trução de auto-representações, participando da das entrevistadas disse que quando começou a mídias, apesar de que o interesse em construir criação das narrativas que faz parte. (MAFFESOLI, conviver com pessoas que assistiam e discutiam essas narrativas também partisse de grandes 2004, p. 23). Estabelecida essa nova preocupação a série, acabava se sentindo incentivada a estar forças como a indústria e os consumidores. A mercadológica, foi necessário que a indústria re- em dia com as novidades dos conteúdos. Ou seja, Escandinávia, nesse sentido, foi importante por pensasse as estratégias adotadas para promover SKAM nem precisou fazer muitas propagandas, despontar experimentos nas emissoras públicas seus produtos. A transmídia pode ser importante seu próprio estilo de narrativa já incentivava sua que foram responsáveis pela discussão e surgi- ferramenta nessa nova onda de reformulações de divulgação espontânea nessa geração conectada. mento de vários modelos de comunicação. (BO- modo de oferta e consumo. Estamos, portanto, em constante oscilação entre LIN, 2015) Para além de usar a internet para anunciar as posições de consumidor e produtor, ambas, “SKAM” tomou as táticas de aplicação das produtos online, a transmídia tem a vantagem de muitas vezes, a serviço de uma indústria alheia à narrativas transmídia como característica central

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de seu formato e lógica produtiva. E a transmídia com quem assiste. A expansão da narrativa por mesmo entenderem a si mesmos e faces da sua como ferramenta econômica vai além de usar di- várias plataformas definidas, cada uma com sua identidade, como em questão de sexualidade. ferentes meios para divulgar seus produtos, mas especificidade e linguagem, foram um impulso A ideia de se apropriar dos veículos de in- é criar um vínculo com o consumidor para que para que os fãs embarcassem no universo ficcio- formação que estavam dispersando seu público este tenha o desejo de prosseguir consumindo. nal de forma atenta e crítica na busca por extrair o jovem, se aproveitando das interações propiciadas Além de usar todas essas multiplataformas para máximo da riqueza da produção proposta. pela internet e das infinitas possibilidades de cria- atrair o máximo de público possível e construir Essa expansão do universo ficcional, in- ção dentro das várias plataformas tecnológicas, se canais para se manter em contato com eles, é tê- cluindo as novas formas de ofertar e comercia- provou de grande eficácia. Colocar seus conteú- -los como aliados descobrindo suas necessidades lizar produtos se utilizando das diversas novas dos tão próximo de com quem queriam dialogar e trabalhando para supri-las fazendo os dois lados tecnologias, leva o nome de transmídia e é uma gerou conexão e, logo, engajamento. Com baixo serem beneficiados. ferramenta poderosa de economia. Ao passo que orçamento, a emissora de televisão NRK lançou a emissora propôs um desafio ao público de se o exemplo para emissoras de todo o mundo ao tornar um coletor de fragmentos por várias pla- manter o compromisso com a sociedade, como CONSIDERAÇÕES FINAIS taformas de mídia da trama melhorando suas no- uma televisão pública, de produzir conteúdo que ções de interpretação e colaboração, recebeu em valoriza minorias, dialoga com a juventude e até SKAM foi o exemplo perfeito para ilustrar a troca uma divulgação massiva gerada pela conta- promove educação inserindo ensinamentos de necessidade das televisões se reformularem e das minação emocional que a série gera a partir das utilidade pública entrelaçados na trama. Não é empresas procurarem manter conexões mais pró- temáticas abordadas. As pesquisas conduzidas surpresa saber que o formato acertou tanto que ximas com seus públicos. Os vários meses de pré- com o público alvo ajudaram a escritora da série a série teve seus direitos comprados e foi expor- -produção dessa série demonstraram a preocupa- a tocar em pontos importantes sobre a vida e as tada para diversos países, onde a versão original ção de entender os hábitos de consumo, desejos e dificuldades de ser adolescente, ajudando muitos causou impacto apesar de fugir da cultura do en- necessidade do público alvo, ação necessária para espectadores da série a superarem seus medos, tretenimento anglo-americano. SKAM agora já produzir conteúdo de qualidade que gera ligação aprenderem a conviver com as adversidades e até conta com oito adaptações, uma delas em terri-

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83 ESTRATÉGIAS NARRATIVAS PARA A CONSTRUÇÃO DA DIVERSIDADE NO MUNDO FICCIONAL DE ORANGE IS THE NEW BLACK Bárbara Camirim (UFF)1

1 praised by the critic for the inclusion of “missing transgênero interpretada por uma Resumo: A série Orange is the New Black foi cele- faces” in its narrative, recalling a debate about the atriz transgênero – um conjunto de brada pela crítica ao incluir “rostos ausentes” em need for better gender, race, sexuality and age estranhas eletrizantes, todas elas sua narrativa, remetendo a uma discussão sobre a diversity in television works. The intention of this tão boas que parecia que uma vál- necessidade de maior diversidade de gênero, raça, paper is to understand which narrative strategies vula escondida havia sido drenada, liberando novas histórias e novos sexualidade e etária nas obras televisivas. O obje- were used in order to build a diverse fictional wor- talentos2. (NUSSBAUM, 2014, s/p) tivo deste artigo é entender que estratégias nar- ld in the series. We present concepts concerning rativas foram utilizadas para construir um mundo the structure of serial narratives, through which Com estas palavras, uma das mais impor- ficcional diverso na série. Apresentamos conceitos we unveil the strategies of this particular work. ligados à estrutura de narrativas seriadas, através We were able to identify the elaboration of a ro- tantes críticas de televisão americana, Emily Nus- dos quais desvendamos as estratégias presentes bust and expanding narrative fabric, the use of sbaum, inicia seu parecer sobre a série Orange is nesta obra em particular. Foi possível identificar flashbacks with focus on different characters and the New Black (Netflix, 2013-atual), na ocasião do que a elaboração de um tecido narrativo robus- the shift of character’s level of importance throu- lançamento de sua segunda temporada. O trecho, to e expansivo, o uso de flashbacks focalizando gh the seasons as strategies helping to offer diffe- diferentes personagens e a variação do nível de rent spectator engagements and to build a diver- ao celebrar a inclusão de “rostos ausentes”, remete importância dos personagens ao longo das tem- se fictional world. a uma discussão sobre a presença de minorias nas poradas contribuíram para propor diferentes en- Keywords: Serial Fiction; Narrative Strategies; Di- narrativas televisivas que existe desde o princípio gajamentos do espectador e construir um mundo versity; Orange is the New Black. deste meio (MONTGOMERY, 1989). Essa percep- ficcional diverso na narrativa. ção de Nussbaum é reiterada por outros críticos Palavras-chave: Ficção Seriada; Estratégias Nar- INTRODUÇÃO rativas; Diversidade; Orange is the New Black. Ano passado, quando a série de 2 Tradução nossa para: “Last year, when the presídio feminino “Orange is the women’s-prison series “Orange Is the New Black” Abstract: The show Orange is the New Black was New Black” estreou, na Netflix, pa- débuted, on Netflix, it felt like a blast of raw oxygen. receu uma explosão de oxigênio Part of this was baldly algorithmic: here, at last, were 1 Mestre em Comunicação e Cultura bruto. Uma parte disso foi sim- all those missing brown faces, black faces, wrinkled Contemporâneas pela UFBA e Doutoranda em plesmente algorítmico: aqui, final- faces, butch lesbians, a transgender character played Comunicação no Programa de Pós-graduação em mente, estavam todos estes ausen- by a transgender actor—an ensemble of electrifying Comunicação da UFF com bolsa do Programa de tes rostos marrons, rostos pretos, strangers, all of them so good that it seemed as if some Excelência Acadêmica fomentado pela CAPES. rostos enrugados, lésbicas mais hidden valve had been tapped, releasing fresh stories Contato: [email protected] masculinizadas, uma personagem and new talents.” 84 ESTRATÉGIAS NARRATIVAS PARA A CONSTRUÇÃO DA DIVERSIDADE NO MUNDO FICCIONAL DE ORANGE IS THE NEW BLACK Bárbara Camirim (UFF) televisivos (JONES, 2014; RORKER, 2014). Nos dias eles. Assim, ao discutir um “mundo ficcional diver- ro (FERNÁNDEZ-MORALES; MENÉNDEZ-MENÉN- atuais, a demanda por maior diversidade de raças, so”, não estamos nos referindo à variedade por si DEZ, 2016; MONTORO; DALA SENTA, 2015), de orientações sexuais, gêneros e outras categorias mesma, mas sim à inclusão destes grupos histori- sexualidade (SAN FILIPPO, 2017; SYMES, 2016) e identitárias extrapolou o âmbito do esforço indi- camente invisibilizados, como a população LGBT etária (SILVERMAN; RYALLS, 2016). Parte destes vidual de grupos de pressão localizados e já foi e as minorias raciais. trabalhos vê a inclusão de grupos historicamente incorporada por parte do próprio discurso midiá- marginalizados na obra por uma perspectiva oti- Orange is the New Black tem como pon- tico, através de discursos de celebridades, de cam- mista, enquanto outros problematizam a forma to de partida a chegada de Piper Chapman ao panhas publicitárias e da própria crítica. Neste ce- pela qual isto é feito. Não é parte do escopo deste presídio de Litchfield, para cumprir pena por as- nário, destacamos a série Orange is the New Black, artigo atribuir valor à qualidade da representação sociação ao tráfico internacional de drogas anos por perceber que a diversidade de personagens ou analisar as personagens individualmente, mas antes. Livremente baseada no livro de memórias foi celebrada na recepção da série e identificada sim decompor seu tecido narrativo para entender homônimo de Piper Kerman, a série traz uma como uma das marcas que a diferencia da maior como sua estrutura permite que tantos grupos protagonista branca, de classe média alta e en- parte do conteúdo televisivo ficcional, o que tam- sociais convivam no mesmo mundo ficcional e volvida em um triângulo amoroso do qual fazem bém já foi apontado pela criadora e showrunner convoquem engajamento no público. Para isso, parte sua ex-namorada Alex e seu atual noivo (no Jenji Kohan (2013) como um de seus objetivos primeiramente apresentaremos alguns conceitos início da narrativa) Larry. Com o desenrolar dos com a obra. Este artigo visa entender que estra- relacionados à estrutura das narrativas seriadas, episódios, porém, o público tem acesso à história tégias narrativas foram utilizadas para construir através dos quais poderemos analisar a série. de outras presidiárias, com experiências bem dis- um mundo ficcional diverso na série. É importan- tintas da personagem principal, dentre as quais ESTRUTURA NARRATIVA DAS SÉRIES TELEVISI- te ressaltar que o entendimento de diversidade há personagens negras, latinas, idosas, lésbicas, VAS ao longo deste artigo passa pela compreensão transgênero, e de classes sociais mais baixas. Aca- histórica que certos grupos são sistematicamen- Para entender a estrutura por trás de uma demicamente, a obra já foi analisada pela forma te excluídos ou marginalizados na representação narrativa, Wolf (2012) sugere sua decomposição como trabalha questões raciais (ENCK; MORRISEY, midiática o que afeta os imaginários sociais sobre em fios, tramas e tecido narrativo. O autor define 2015; BELCHER, 2016; MILLETTE, 2015), de gêne-

85 ESTRATÉGIAS NARRATIVAS PARA A CONSTRUÇÃO DA DIVERSIDADE NO MUNDO FICCIONAL DE ORANGE IS THE NEW BLACK Bárbara Camirim (UFF) fio narrativo como uma cadeia de eventos ligados nha particular importância3. pal cronológica, com inserções pontuais de even- por relações causais que giram em torno da ex- tos passados ou futuros. O enredo pode contar os eventos exata- periência de um personagem, local ou até objeto mente na ordem em que aconteceram na fábula, Um recurso em que o enredo altera a or- inanimado em particular ao longo do tempo. Dife- o que Genette (1995) chama de coincidência tem- dem em que a fábula é contada, relativamente rentes fios podem se entrelaçar mantendo como poral de grau zero, ou modificar esta ordem, o que comum em obras audiovisuais e amplamente ponto de união um tema, evento ou personagem, o autor chama de anacronia. Dependendo da for- utilizado em Orange is the New Black, é o flashba- formando assim as tramas. Já o tecido narrativo ma como isto é feito, diferentes efeitos podem ser ck. Este pode ser definido como uma inserção de é formado pelo entrelaçamento de fios e tramas, criados. Assim, uma narrativa de assassinato pode um acontecimento anterior ao ponto em que a quando o material narrativo do mundo ficcional ser contada toda de trás para frente, por exemplo, narrativa principal se encontra. Para Gaudrault e se torna mais complexo. de forma que o espectador vá descobrindo aos Jost (2009), os flashbackspodem cumprir a função Outra forma de compreender uma estru- poucos os eventos que antecederam e levaram a de completar uma lacuna deixada pela narrativa tura narrativa, que complementa esta primeira, este crime. É possível utilizar as anacronias de ma- principal ou de criar uma suspensão, atrasando é observar como seus eventos dramáticos estão neira mais sútil, mantendo uma narrativa princi- certos acontecimentos. distribuídos. Para observar as relações temporais, 3 Em relação às outras, resumidamente pode-se Além desta dimensão ligada à temporali- é importante entender a diferença entre fábula dizer que a dimensão de frequência se refere à relação dade da obra, devemos explorar também o con- e enredo: a primeira se refere à história em si, a entre a quantidade de vezes que um acontecimento se dá na fábula e no enunciado. Assim, algo que aconteceu ceito de serialidade, que se refere à “apresentação sucessão dos acontecimentos como teriam acon- apenas uma vez na fábula pode ser contado diversas descontínua e fragmentada do sintagma visual” tecido naquele mundo ficcional, e o segundo se vezes no enredo, algo que acontece diversas vezes na fábula pode ser contado apenas uma vez no enredo ou o (MACHADO, 2000, p. 83, grifos do autor). Diferen- refere à forma como a fábula é contada. Fábula e número de vezes que algo acontece na fábula e é contado temente dos conceitos abordados anteriormente, enredo podem se relacionar temporalmente nas no enredo pode coincidir. Já a dimensão de duração se refere à relação entre a extensão de tempo que um a serialidade está especificamente ligada às narra- dimensões de frequência, duração e ordem (Ge- evento leva na fábula e no enunciado. Basicamente, tivas seriadas. Para Buonanno (2008), embora as nette, 1995). Para a nossa análise, esta última ga- eventos que têm uma determinada duração na fábula podem ser suprimidos do enredo (elipse) ou ter uma narrativas seriadas já existissem antes da televisão duração menor, igual ou maior no enredo. 86 ESTRATÉGIAS NARRATIVAS PARA A CONSTRUÇÃO DA DIVERSIDADE NO MUNDO FICCIONAL DE ORANGE IS THE NEW BLACK Bárbara Camirim (UFF) e não sejam exclusivas desse meio, no mundo de ra estas classificações sejam formas de esquema- dários, personagens recorrentes terciários, perso- hoje, a televisão se tornou a fortaleza da serialida- tizar as tendências apresentadas pelas narrativas nagens convidados não recorrentes e figurantes4” de narrativa. A autora traça uma tipologia binária seriadas, tanto Buonanno (2008) quanto Esque- (MITTELL, 2015, p. 123). Já o alinhamento pede entre fórmulas narrativas estruturais, que com- nazi (2011) admitem a possibilidade de fluidez e que o espectador tenha ligação espacial com o preendem o serial e o series. Assim, o primeiro tra- hibridismo entre estas fórmulas. Nesse sentido, as personagem, podendo ver o que acontece com ria segmentos não finalizados que estabelecem séries de televisão contemporâneas são marcadas este ao longo da narrativa, e acesso a seus esta- uma estrutura sequencial entre si e o segundo tra- pela construção de arcos de diferentes amplitu- dos mentais. A aliança, por sua vez, seria o último ria segmentos autônomos e conclusivos que não des (Vieira, 2014) e pelo equilíbrio mutável entre estágio da estrutura do engajamento, quando o necessitam de uma estrutura sequencial. Esque- o episódico e o evolutivo (Mittell, 2015). espectador se sente envolvido emocionalmente nazi (2011) propõe uma tipologia similar, na qual com a narrativa daquele personagem. Somado às questões relacionadas ao teci- introduz os conceitos de séries evolutivas e séries do narrativo, às relações temporais e à serialida- Estes quatro conjuntos de conceitos po- imóveis. Nas séries evolutivas há o envelhecimen- de, a estrutura narrativa abarca também a forma dem ser utilizados como operadores analíticos to do mundo ficcional da série a cada episódio, como a obra convoca o espectador a se engajar que guiam nosso olhar sobre a obra e nos permi- enquanto nas imóveis a mesma estrutura seria re- com os personagens. Mittell (2015), baseando-se tem apreender sua estrutura geral, desvendando petida a cada episódio, negando a passagem do no conceito de Murray Smith, sugere que o envol- então que estratégias narrativas foram utilizadas tempo histórico. Ainda em relação às séries evolu- vimento com os personagens está ligado a três para criar um mundo ficcional diverso. tivas, o autor percebe duas tendências: nas séries práticas: reconhecimento, alinhamento e aliança. corais fragmentos de vida de uma comunidade e A CONSTRUÇÃO DA DIVERSIDADE EM ORANGE O reconhecimento inclui diferenciar entre perso- seus membros são apresentados a cada episódio, IS THE NEW BLACK nagens e outras figuras, além de categorizá-los enquanto nas séries folhetinescas as relações de em níveis. Para o autor, nessa fase de engajamen- causa e efeito são mais fortes e há a promessa de 4 Tradução nossa para: “characters are to, “personagens são posicionados em camadas que a ação continuará do ponto em que parou no positioned in fluid but meaningful tiers of primary lead fluidas, mas significativas, de personagens princi- characters, secondary supporting characters, tertiary episódio anterior. É importante frisar que, embo- pais primários, personagens coadjuvantes secun- recurring characters, nonrecurring guest characters, and background extras”. 87 ESTRATÉGIAS NARRATIVAS PARA A CONSTRUÇÃO DA DIVERSIDADE NO MUNDO FICCIONAL DE ORANGE IS THE NEW BLACK Bárbara Camirim (UFF)

Quando se observa Orange is the New Black bela abaixo. pela perspectiva da criação de um mundo ficcio- Fio Conteúdo Temporadas 1 Vida de Piper na prisão 1, 2 e 3 nal diverso, é possível perceber que três estraté- 2 Vida amorosa de Piper 1, 2 e 3 3 Romance entre Daya e Bennett 1, 2 e 3 gias narrativas se articulam para fomentar esta 4 Rivalidade pelo controle do contrabando entre Red e Mendez 1 construção: a elaboração de um tecido narrativo 5 Império de contrabando de Vee 2 6 Privatização da prisão 3 robusto e expansivo, o uso de flashbacks foca- 7 Relação entre mãe e filha das detentas Daya e Aleida Diaz 1, 2 e 3 8 Relação afetiva entre Nicky e Morello 1, 2 e 3 lizando diferentes personagens e a variação de 9 Revisão de caso de Miss Claudette 1 10 Atração do supervisor Joe Caputo pela guarda Susan Fischer 1 e 2 nível dos personagens ao longo das temporadas, 11 Privação de medicação adequada para a detenta Sophia Burset 1 12 Liberação e posterior volta de Taystee 1 propondo novos engajamentos. 13 A vida familiar de Mr Healy 1, 2 e 3 14 Conflito e posterior amizade entre as detentas Janae Watson e 1 A primeira estratégia que identificamos Yoga Jones 15 Gravidez e maternidade da detenta Maria Ruiz 1, 2 e 3 como criadora da diversidade no mundo ficcional 16 Vício em drogas de Tricia Miller 1 17 Tratamento de câncer de Miss Rosa 2 de Orange is the New Black é a construção de um 18 Mr Healy tentando ser um profissional melhor 2 e 3 19 Perseguição de Morello a Cristopher 2 e 3 tecido narrativo robusto (muitos fios e tramas) e 20 Dificuldades de adaptação de Soso 2 e 3 expansivo (novos fios e tramas vão sendo acres- 21 Greve de fome 2 22 Batalha de Nicky contra o vício em heroína 2 e 3 centados com o passar dos episódios e tempora- 23 Ameaças de morte a Alex 2 e 3 24 Liberação por compaixão da detenta idosa Jimmy 2 das). Através da decomposição das três primeiras 25 Detenta Norma Romano como líder de um novo agrupamento 3 temporadas da série5, foi possível identificar 33 religioso 26 Alcoolismo de Poussey 3 fios narrativos, como pode ser observado na ta- 27 Chegada de uma nova conselheira prisional 3 28 Correspondências de Morello com homens de fora da prisão 3 29 Conflito entre as detentas Sophia e Gloria 3 5 Até abril de 2019, a série já havia exibido 30 Contos eróticos de Suzanne Crazy-Eyes 3 31 Conversão ao judaísmo de Black Cindy 3 seis temporadas, com a sétima e última prevista para 32 Julgamento de Judy King 3 estrear neste mesmo ano. Apesar disso, consideramos 33 Caso de estupro da detenta Tiffanny Doggett 3 que com a análise das três primeiras temporadas já é Neste conjunto de fios narrativos há des- possível observar como as estratégias narrativas da série se estabeleceram. de os que duram toda a extensão analisada e 88 ESTRATÉGIAS NARRATIVAS PARA A CONSTRUÇÃO DA DIVERSIDADE NO MUNDO FICCIONAL DE ORANGE IS THE NEW BLACK Bárbara Camirim (UFF) apresentam desenvolvimento em quase todos os John Bennett. A presença desse fio é um pouco episódio, o surgimento de um princípio de barba episódios até os que ocupam apenas cenas pon- menor do que a dos dois anteriores, porém é inte- mostra que a privação da dose adequada de com- tuais em um número restritos de episódios, com ressante perceber que, apesar de não contar com plementação hormonal está interferindo no pro- a maioria dos fios estando em algum ponto deste o envolvimento da protagonista e nem ter vínculo cesso de transição de Sophia. Este fio narrativo vai continuum6. forte com a premissa da série, ele se prolonga pe- ser retomado no quinto episódio, no qual Sophia las três temporadas analisadas e está presente em busca se aproximar da detenta idosa Irmã Ingalls, Os dois primeiros fios, por exemplo, estão uma grande parte dos episódios. interessada nos hormônios que esta recebe para fortemente ligados à premissa da série e se en- lidar com a menopausa. Apesar da estratégia não trelaçam formando a trama de Piper, a persona- Além disso, há fios narrativos de extensão funcionar, as duas se tornam amigas. Por fim, o gem principal. Eles perpassam as três temporadas e presença menores, mas que ao se destacarem fio narrativo será concluído no nono episódio da analisadas e estão presentes em quase todos os pontualmente, contribuem para a percepção da temporada, quando devido a uma mudança na episódios. O primeiro deles, a vida de Piper na diversidade neste mundo ficcional. O fio 11, por equipe médica do presídio, Sophia volta a rece- prisão, acompanha a protagonista enquanto ela exemplo, acompanha a luta da detenta transgê- ber a dose adequada de hormônios. Apesar da descobre as novas regras daquele lugar, entra nero Sophia Burset para conseguir sua dose ade- amplitude relativamente curta deste fio narrativo, em conflito com outras detentas e forma novas quada de medicamentos hormonais. Este fio se ele permitiu a colocação pontual da personagem amizades. Já o segundo envolve a protagonista e desenvolve em apenas três episódios da primei- Sophia em destaque, recebendo reconhecimento seus pares românticos ao longo das temporadas, ra temporada. No terceiro episódio da tempora- por trazer a questão das mulheres trans em priva- a saber, Alex Vause, Larry Bloom e Stella Carlin. Já da, Sophia vai buscar sua dose de hormônios na ção de liberdade, algo que foi considerado inova- o terceiro fio se refere à relação amorosa que se enfermaria do presídio, como faz normalmente, e dor nas narrativas televisivas. desenvolve entre a detenta Daya Diaz, que che- percebe que esta foi reduzida sem nenhuma jus- ga à prisão no mesmo dia que Piper, e o guarda tificativa. No decorrer do episódio, a personagem Esta quantidade de fios, de diferentes ex- 6 Vale dizer que desconsideramos arcos manifesta seu descontentamento aos adminis- tensões, demonstra a robustez do tecido narrati- narrativos puramente episódicos, isto é, todos os fios tradores da prisão, além de buscar outros cami- vo da série, com arcos protagonizados por dife- narrativos identificados se desenvolvem ao longo de nhos para conseguir seus hormônios. Ao fim do rentes personagens, possibilitando que a posição episódios diferentes. 89 ESTRATÉGIAS NARRATIVAS PARA A CONSTRUÇÃO DA DIVERSIDADE NO MUNDO FICCIONAL DE ORANGE IS THE NEW BLACK Bárbara Camirim (UFF) de destaque se desloque em muitos momentos, bem diferentes dos encontrados em Orange is the sam ser produzidas naquele conjunto. não sendo exclusiva da protagonista ou apenas New Black, na qual uma parte dos fios e tramas A segunda estratégia para criar um mundo de um grupo restrito de personagens. Além da não conservam qualquer relação com a premissa ficcional diverso identificada foi a forma como a robustez, destacamos também a característica da série ou sua protagonista. série utiliza os flashbacks. Como já dito, flashba- expansiva do tecido narrativo, com novas perso- Há de se observar, por outro lado, que esta cks são recursos usados em algumas narrativas nagens sendo introduzidas ao longo das tempo- característica não é exclusividade de Orange is the audiovisuais, nos quais um evento passado é in- radas e trazendo consigo novos fios narrativos e New Black. Percebemos, na estrutura desta série, serido na narrativa principal, desenvolvida em temas a serem abordados. muitas similaridades com o que Esquenazi (2011) ordem cronológica. Em Orange is the New Black, a Poderia ser argumentado que esta carac- chamou de séries corais. Para o autor, este tipo de cada episódio, com raras exceções, conhecemos terística é comum a qualquer série televisiva de série acompanha a vida de uma comunidade, que o passado de uma personagem diferente através longa duração, já que estas pedem que novas his- pode se renovar, com personagens evoluindo, de- dos flashbacks. Ao longo das três primeiras tem- tórias venham preencher este tempo e renovar o saparecendo e sendo substituídos por outros. Per- poradas, verificamos que 29 personagens tiveram interesse do espectador. No entanto, este contra- cebe-se então séries construídas narrativamente alguma parte de seu passado retratada através -argumento não se confirma empiricamente. Há de modo a se aproximar dos atributos da corali- deste recurso, incluindo desde a protagonista até séries que ficam no ar por anos sem que seu teci- dade catalisam o processo de criação de mundos personagens com presença mais pontual. O uso do narrativo se amplie substancialmente. Ao ana- ficcionais diversos. Isto não significa estabelecer dessa técnica permite que uma variedade de per- lisar as cinco temporadas da série Breaking Bad uma relação determinista entre estes dois ele- sonagens ganhe destaque, mesmo que alguns só (AMC, 2008-2013), por exemplo, Araújo (2015) ob- mentos, uma série pode apresentar uma grande em caráter episódico, permitindo o acesso a suas serva uma condensação do enredo, caracterizada quantidade de fios narrativos e tramas e ainda sim experiências, e assim estimulando o engajamen- pelo número reduzido de fios narrativos longe- constituir um grupo homogêneo de personagens. to do espectador. Muitas vezes essa estratégia vos e pelas tramas secundárias próximas a trama No entanto, a tendência é que com mais perso- está associada à anterior: no episódio em que o central, compartilhando diversos acontecimentos nagens, mais diferenças de gênero, sexualidade, fio narrativo descrito acima se inicia, acompanha- dramáticos. Como se pode perceber, atributos raça, origem nacional, idade, dentre outros, pos- mos também o processo de entendimento de sua

90 ESTRATÉGIAS NARRATIVAS PARA A CONSTRUÇÃO DA DIVERSIDADE NO MUNDO FICCIONAL DE ORANGE IS THE NEW BLACK Bárbara Camirim (UFF) própria transgeneridade por parte de Sophia e de vessia. Ao crescer, ela passa a gerenciar uma em- cendo assim a percepção de um mundo ficcional sua decisão de fazer a transição de gênero, através presa de faxina e, quando percebe que uma das diverso. Relembrando as questões sobre persona- de flashbacks. Esse tipo de engajamento faz com jovens que empregava estava sendo agredida gens levantadas por Mittell (2015), o espectador que se possa perceber particularidades de dife- pelo cliente, mata-o, motivo que a levou à prisão. posiciona as figuras reconhecidas na tela em ca- rentes personagens, tornando a heterogeneidade Além disso, descobre-se que ela conserva um madas, desde personagens centrais até figuran- do conjunto mais concreta. A mudança de per- amor platônico por Baptiste, o homem que a le- tes. No entanto, estas camadas são fluidas e obras cepção causada por essa técnica é que ao invés vou aos Estados Unidos e se tornou amigo dela ao seriadas nos parecem lugares propícios para ex- de termos um elenco de apoio heterogêneo que longo da vida. Ou seja, ao ter flashbacksdedicados plorar tal fluidez, o que é feito regularmente em serve apenas como um pano de fundo para a per- à sua história de vida, Miss Claudette deixa de ser Orange is the New Black. sonagem central, é construído um conjunto de apenas a companheira de cela da protagonista e Isso pode ser percebido ao observar a tra- personagens com passado e narrativas singulares, passa a ser uma personagem com mais conteúdo. jetória da personagem Miss Rosa, por exemplo. nos quais pessoas diferentes da audiência podem As duas estratégias elencadas até agora Miss Rosa é apresentada, desde o primeiro epi- encontrar distintos pontos de identificação. se relacionam com a estrutura do engajamento, sódio da série, como uma mulher idosa e com Isso pode ser verificado, por exemplo, no na medida em que ao protagonizarem fios nar- câncer e é uma das primeiras detentas com quem caso de Miss Claudette. Até o quarto episódio da rativos próprios e terem seu passado explorado Piper tem contato. No entanto, no decorrer da pri- temporada, o que se conhece em relação a esta por flashbacks, diferentes personagens convocam meira temporada ela só aparece pontualmente personagem é que ela é a senhora solitária e de não só o reconhecimento, mas também o alinha- em cinco episódios, e essas são as únicas informa- regras rígidas que divide a cela com Piper. Porém, mento e possivelmente aliança, a depender da ções que sabemos dela. Devido a sua pouca rele- através de quatro momentos de flashbacksao lon- inclinação subjetiva de cada espectador. Por fim, vância na trama, podemos entendê-la como uma go do episódio, descobre-se que Miss Claudette é identificamos a variação de importância de perso- personagem que tem como única função compor uma imigrante haitiana que chegou ilegalmente nagens ao longo das temporadas como mais uma o pano de fundo daquele mundo ficcional. Na se- nos Estados Unidos na adolescência e teve que estratégia da série a reforçar o engajamento do gunda temporada, ela aparece em oito episódios, trabalhar desde cedo para pagar a dívida da tra- espectador para além da protagonista, estabele- em uma quantidade maior de cenas, protagoni-

91 ESTRATÉGIAS NARRATIVAS PARA A CONSTRUÇÃO DA DIVERSIDADE NO MUNDO FICCIONAL DE ORANGE IS THE NEW BLACK Bárbara Camirim (UFF) zando um fio narrativo (articulação com a primei- quantidade de personagens e aprofunde as in- incluir personagens de grupos historicamente ra estratégia narrativa identificada) e tendo seu formações que o espectador recebe em relação a marginalizados e invisibilizados na história das passado apresentado em cenas de flashbacks no elas, tornando esta construção mais complexa e narrativas midiáticas. Neste caso, os três recur- oitavo episódio da temporada (articulação com reforçando a ideia de um conjunto heterogêneo sos identificados possibilitaram que diferentes a segunda estratégia narrativa identificada). A convivendo naquele mundo ficcional. O tecido personagens fossem colocados em evidência partir daí o espectador passa a saber que ela é de narrativo robusto, os flashbacks focalizando dife- em momentos diferentes, compondo então o origem latina e que fazia parte de uma quadrilha rentes personagens e a variação de importância mosaico de identidades que caracteriza a série de assalto a bancos antes de ser presa e que atual- de personagens ao longo da trama são estraté- (MAVIGNIER; SILVA; TARAPANOFF, 2016). Uma vez mente lida com um câncer em estágio avançado gias que operam em conjunto e se complemen- que essa demanda social existe desde ao menos que não está sendo tratado do jeito ideal devido à tam, uma vez que permitem colocar um grande o estabelecimento da televisão como meio e foi escassez de recursos da penitenciária. Embora ela número de personagens em destaque em algum em certa medida absorvida pelos discursos das continue não fazendo parte do grupo principal de momento da narrativa, dando ao espectador próprias empresas, acreditamos que a análise da personagens, o espectador já a posiciona de for- acesso a todas essas vivências ficcionais. Embora a estrutura de Orange is the New Black contribui ao ma diferente, identificando ali uma personagem investigação da estrutura narrativa já nos aponte apontar algumas estratégias narrativas possíveis coadjuvante com relevância no tecido narrativo alguns caminhos para compreender este fenôme- para a construção de um mundo ficcional diverso. da obra. no, um entendimento mais completo deve passar REFERÊNCIAS também pela análise aprofundada da construção CONSIDERAÇÕES FINAIS ARAÚJO, João Eduardo Silva de. Crystal Blue Per- de personagens particulares, o que está fora do suasion: A construção do mundo ficcional no Neste artigo, investigamos como a diver- escopo deste artigo, mas já foi feito em outra oca- seriado televisivo Breaking Bad. 2015. 167f. Dis- sertação (Mestrado em Comunicação e Cultura sidade percebida em Orange is the New Black foi sião (LOPES, 2018). Contemporâneas). Universidade Federal da Bahia, construída narrativamente. Como se pode per- Essas estratégias não são suficientes para Salvador, 2015. ceber, as três estratégias narrativas identifica- BELCHER, Christina. There is no such thing as a garantir a construção da diversidade, mas criam das permitem que a obra apresente uma grande post-racial prison: Neoliberal multiculturalism condições favoráveis caso se faça a escolha de and the White Savior Complex on Orange is the 92 ESTRATÉGIAS NARRATIVAS PARA A CONSTRUÇÃO DA DIVERSIDADE NO MUNDO FICCIONAL DE ORANGE IS THE NEW BLACK Bárbara Camirim (UFF)

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93 ESTRATÉGIAS NARRATIVAS PARA A CONSTRUÇÃO DA DIVERSIDADE NO MUNDO FICCIONAL DE ORANGE IS THE NEW BLACK Bárbara Camirim (UFF)

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94 OUTLANDER: UMA CARTOGRAFIA DO PASSADO A LUZ DE FOUCAULT

Natalia Machado1 e Arlete Nery2

1\2 the mid-18th century. Through the understanding of vingança do soberano; o poder clerical em torno Resumo: Entender o presente, visitando o passado, historical fiction, we can understand the relationship da lei e das vontades do monarca e do clero; as para que possamos compreender o futuro é um dos between the narrative proposal of the series and the objetivos de Outlander. A série, baseada no romance philosopher Michel Foucault. The methodology used formas simbólicas de poder na sociedade ociden- de Diana Gabaldon, busca relatar os costumes e cren- was the analysis of the narrative from the choice of five tal. Para tal, abarcaremos obras como Vigiar e Pu- scenes of the first two seasons and the bibliographical ças europeias em meados do século XVIII. Através do nir, Arqueologia do Saber, O nascimento da Clínica, entendimento de ficção histórica, podemos entender research to support our study on historical fiction. Our a relação existente entre a proposta narrativa da série objective is to show through some scenes of the first A Verdade e as Formas Jurídicas, entre outras, para e o filósofo Michel Foucault. A metodologia utilizada and second season how it is possible to perceive the entender como o pensador é percebido durante foi a análise da narrativa a partir da escolha de cinco Foucauldian philosophy in several episodes of the se- o percurso narrativo da série e de que forma as cenas das duas primeiras temporadas, além de pes- ries, in which questions such as witchcraft, the place of quisa bibliográfica para amparar o estudo sobre ficção the woman in century XIII and the transition between cenas ilustram as teorias apontadas. histórica. O objetivo é mostrar, através de algumas ce- the societies of sovereignty to discipline, a temporal Outlander é mais do que simples entreteni- nas da primeira e segunda temporadas, como é possí- passage of behavior. vel perceber a filosofia foucaultiana em diversos epi- mento. A série possibilita entender o presente visi- sódios da série, nos quais se abordam questões como Palavras-chave: Outlander; narrativa; ficção histórica; tando o passado para que se possa compreender bruxaria, o lugar da mulher no século XIII e a transição saber; poder o futuro. Baseada no romance de Diana Gabaldon, entre as sociedades de soberania para disciplinar, uma Keywords: Outlander; narrative; historical fiction; passagem temporal de comportamento. knowledge; power busca relatar os costumes e crenças europeias em meados do século XVIII. A personagem principal da trama é Claire Randall, enfermeira de guerra Abstract: Understanding the present by visiting the past so we can understand the future is one of Outland- INTRODUÇÃO que vive em 1945. Durante uma viagem à Escócia er’s goals. The series, based on the novel by Diana Gab- O objetivo deste trabalho é analisar algu- com seu marido Frank Randall, em um passeio no aldon, seeks to relate European customs and beliefs in mas cenas da série Outlander e seu percurso nar- alto de uma montanha, Claire descobre um con- 1 Mestranda do curso de Comunicação Social rativo com base em algumas premissas foucaul- junto de pedras que ao tocar transforma-se em da PUC-Rio, e-mail: nataliadossantosmachado87@ tianas: o início da migração do saber pastoral para um portal que a transporta diretamente para o gmail.com o saber científico; a exposição dos antigos siste- século XVIII, no ano de 1743. Em uma nova rea- 2 Mestranda do curso de Ciência da Informação IBICT/ECO-UFRJ e-mail: arletenery@gmail. mas penais em um suplício público por ato de lidade de uma terra inóspita, a personagem vive- com 95 OUTLANDER: UMA CARTOGRAFIA DO PASSADO A LUZ DE FOUCAULT

Natalia Machado1 e Arlete Nery2 rá grandes aventuras em um país desconhecido. mesmo no século XX uma inglesa a frente do seu torno das temáticas observadas ao longo da pes- Nesse ambiente conhece um novo homem que tempo. Transportada para um país completamen- quisa. A observação foi feita a partir de cinco ce- desperta seu interesse. Diferente dos padrões do te diferente do seu, em um século apenas visto nas, sendo quatro da primeira e uma da segunda. século XX, Jamie Fraser conquista Claire com sua nos livros de história, a Escócia de 1743 foi seu A escolha se deu através da adequação da temá- maneira peculiar de ser, combinado aos padrões local de ancoragem em uma serialização densa e tica abordada, visto que à luz de Foucault pode- de seu tempo. Ao se envolver com Jamie, Claire marcante. Afinal, são mais de 200 anos de diferen- mos encontrar diferentes elementos simbólicos descobre ao longo da trama um antepassado de ças. Embora a série seja guiada por um romance, que representam, de forma empírica, suas teorias. seu marido Frank, o capitão inglês Jack Randall. a produção desenrola para temáticas relevantes Além deste método, contamos com o recurso da Entretanto, o mergulho no tempo guiará a his- como a política da época com as guerras, os clãs, pesquisa bibliográfica para amparar a nossa pes- tória de uma forma surpreendente e inesperada. a presença da mulher da sociedade e, fundamen- quisa no que diz respeito a ficção histórica. Vale dizer que devido ao grande sucesso da ficção talmente, os hábitos da cultura escocesa. Assim, o canal estadunidense Starz já anunciou contrato podemos ver em cena suspense, drama, ação e DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM AO HOMEM DA para a quinta e sexta temporadas. romance com muitas histórias paralelas contem- CIÊNCIA Ficção histórica combinada a misticismo plando uma narrativa guiada pelo descobrimento e realismo fantástico fazem de Outlander um su- de um novo século. Um dos inúmeros aforismos do filósofo cesso internacional (MORISAWA, 2018). Temos em Outlander traz uma narrativa que, a des- alemão Friedrich Nietzsche foi “O Homem Satis- jogo uma narrativa que possui tensões focadas peito de pertencer ao campo da ficção histórica, feito Repousa” (1882). Não poderia ser, portanto, em diferentes temporalidades combinadas a vá- se apresenta como importante suporte no escla- diferente a função do filósofo a de tirar da inér- rios fatores, como a diversidade cultural de am- recimento do surgimento da filosofia da ciência e cia e propor incômodo ao pensamento humano. bos os protagonistas, o realismo contado através de reflexão para a epistemologia da comunicação. Nietzsche é a referência para o que se entendeu da história da Escócia e o romance entre Jamie e Por isso, entendemos que metodologia da análise como um novo modelo de se contar e entender a Claire. Foi assim que a enfermeira de guerra provi- narrativa e pesquisa bibliográfica apresentam me- história a partir do século XIX. Desconstruiu a mo- da de vários predicados, poderia ser considerada lhor aderência para apresentação e discussão em ral e os valores estabelecidos pela filosofia grega,

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Natalia Machado1 e Arlete Nery2 sendo o primeiro a interromper o modelo de com- do Saber (1969), livro no qual lançou um olhar crí- didatismo oportuno para entender o processo preensão do mundo proposta por Sócrates, Pla- tico ao modo como o Positivismo fixou um novo embrionário na gestação do Sujeito da Ciência. tão e Aristóteles. Ao sentenciar a morte de Deus, modelo dogmático, protagonizado pela ciência. Aos observadores do campo da narrativa, torna- Nietzsche demarca o nascimento do homem da A autora Diana Galbadon, possivelmente, pela -se curioso notar que, enquanto a personagem ciência e cria um novo establishment acerca da- acurada pesquisa permeada pela experiência do viajante do tempo luta por uma interlocução com quilo que passa a ser considerado conhecimento modus operandi acadêmico que possui3, utilizou- a sociedade, a vigente classe médica busca o dis- ou verdade, a ciência empírica. -se da visão foucaultiana acerca do saber e poder tanciamento. Trabalha-se em silêncio, e sem troca Em Outlander, é possível observar o início para modelar sua narrativa. Vê-se, por exemplo, e de informação. deste rompimento. O poder soberano da igreja possivelmente não por acaso, a obra O Nascimen- O contexto de Outlander ilustra um cenário é sepultado, e demarca-se uma nova era de po- to da Clínica (1963) no segundo episódio analisa- no qual a informação ganha um viés der, no qual o construto do saber se sobrepunha do da série, trazendo o novo olhar do médico, ob- cientificista formando/valorizando novos tipos de ao individualismo da salvação, purgada nos so- servador agora mais da doença do que do doente, saberes e criando outras dimensões de frimentos do mundo. A partir do século XVIII, o apresentando novas verdades e desnudando as poderes. E há um percurso histórico retroativo que sofrimento ganha contornos terapêuticos, e se a verdades tardias vigentes até o iluminismo. Um permite observar mais acuradamente a proposta morte ainda é uma verdade inexorável, amenizar 3 Diana Galbadon nasceu no Arizona, EUA. Bacharel narrativa da ficção. Para melhor compreensão da seus sofrimentos condutos, ou até mesmo atrasá- em ciência da zoologia pela Universidade do Norte do presente análise, propõe-se retroagir no tempo. Arizona, com Mestrado em Ciência em Biologia Marinha, -la, passa a ser uma realidade tangível pelas mãos pela University da Califórnia, e Doutorado em Ecologia Em meados do século XIX, a proposta que de uma recém-nascida medicina. O embrião, do Comportamental também pela Universidade do Norte do reduzia conhecimento em seu sentido mais am- Arizona, Galbadon é uma pesquisadora acadêmica por que se chamaria mais tarde de Sujeito do Conhe- natureza. Trabalhou no Centro de Estudos Ambientais da plo à Ciência encontrou seu ponto mais alto, esta- cimento, ou o Sujeito da Ciência, começa a tomar Universidade Estadual do Arizona e foi a editora fundadora belecendo novas configurações e novos modelos do Science Software Quarterly em 1984 e deu aulas de ciência seus primeiros contornos, ganhar corpo e espaço. comportamental na Universidade Estadual do Arizona de produção de verdade, no qual a última palavra O chamado Sujeito do Conhecimento começa a por 12 anos. Além da experiência acadêmica, escreveu era atribuída à ciência. Esse novo sistema rompe, artigos de ciência popular e histórias em quadrinhos para ser tratado por Michel Foucault em Arqueologia a Walt Disney, o que despertou interesse por trilhar outros definitivamente, com o modelo teocêntrico, que caminhos, como a literatura de ficção. 97 OUTLANDER: UMA CARTOGRAFIA DO PASSADO A LUZ DE FOUCAULT

Natalia Machado1 e Arlete Nery2 teve a sua pujança na alta idade média. Mas seu der a esta demanda. Mas, a esta altura, a ciência já mento de todas as formas de punição e repressão percurso construtivo passa pelo destrato com ou- havia vencido a religião. Este é o cenário da série pública aliados ao método coercitivo das insti- tras formas de saberes, como o conteúdo e trans- Outlander. tuições, de acordo com o Estado. A obra aborda missão da linguagem oral, a memória social e os Vale lembrar que o desenvolvimento aqui o enfrentamento à criminalidade como forma de saberes locais. Esse processo se inicia já no século proposto é de cunho unicamente descritivo, não preocupação na sociedade moderna. O suplício, XVI, com o Renascimento, fervilhando durante o havendo pretensão de se desenvolver novas teses a punição, a disciplina e a prisão são vistas como século XVII, quando o regime de verdade vigente acerca dos possíveis efeitos de mobilização, refle- dispositivo de poder em uma sociedade que res- é posto em xeque, sendo questionado através da xão ou qualquer mudança que esta obra de ficção ponde a um regime punitivo contemporâneo. Revolução Científica, com Galileu, Kepler, Newton, poderia, eventualmente, causar em seus expecta- Por isso, tais práticas reverberam a assinatura da assumindo outros modos de estabelecer verda- dores. época e as consequências de um sistema de cos- des, que não necessariamente passavam pela reli- tumes penais severos. Assim, sugere a mudança Meu objetivo será mostrar-lhes gião. Entre a Bíblia e experimentos, entre a palavra como as práticas sociais podem do ponto de vista narrativo das histórias contadas de Deus e a palavra da Ciência existia uma clara chegar a engendrar domínios de por uma determinada parcela da população em confrontação. saber que não somente fazem apa- uma história do povo. O olhar por dentro de uma recer novos objetos, novos concei- Assim, chegamos ao século XVIII com o tos, novas técnicas, mas também estrutura de poder tomou conta de sua obra ao Iluminismo, que apresenta a proposta deste novo fazem nascer formas totalmente longo da dolorosa leitura a respeito das maldades novas de sujeitos e de sujeitos de modelo de conhecimento já amadurecida, e o e atrocidades humanas. conhecimentos. O próprio sujeito conteúdo dogmático da Igreja resistindo às mu- de conhecimento tem uma história, O filósofo procurou entender o percurso danças, e exercendo uma ação que visava des- a relação do sujeito com o objeto, pelo qual o ocidente, em especial na França, le- ou mais claramente, a própria ver- merecer tanto o próprio conhecimento científico, dade tem uma história. (FOUCAULT, vou o sistema jurídico a mudar o modelo de exe- quanto suas possibilidades de tornarem-se aces- 2002, p. 8) cuções públicas, tornando-as menos espetáculo, síveis a grupos não religiosos. Acusar alguém de e preferindo a prisão. A resposta se dá de acordo bruxaria era uma poderosíssima arma para aten- Em Vigiar e Punir, Foucault faz um levanta- com as transformações da sociedade francesa en-

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Natalia Machado1 e Arlete Nery2 tre os séculos XVII e XIX. Foucault nos traz a com- homem e a verdade que merecem possibilitando o espraiar de um novo modelo ba- preensão de que o poder não é verticalizado atra- ser estudadas. (FOUCAULT, 2002, p. seado na constituição da verdade científica. Vê-se 11) vés das instituições, mas sim horizontal ao dar voz ainda outras novas configurações de verdade sur- aos personagens “esquecidos” da história. A forma gidas durante o Iluminismo, num processo pelo A condução da narrativa feita por uma mu- de poder mudou atravessando assim cada espa- qual os saberes locais começam a ser ignorados lher merece destaque, por se tratar de uma con- ço das relações no interior da sociedade. Por este em prol de conteúdo dogmático, protagonizado dição inconcebível no século XVII. Vemos, com motivo, as relações são mediadas pela microfísica agora pela ciência, incontestável e altamente au- isso, pretensões embutidas neste cenário com o dos tratos sociais e não mais pela ordem do poder toritária. propósito de reflexão da mudança tangencial do público institucionalizado. A primeira temporada é iniciada com uma lugar do sexo feminino como detentor de saberes viagem romântica do casal Claire e Frank em In- As práticas jurídicas - a maneira pela para um despertamento da sociedade. A perso- verness, nas Ilhas Britânicas. Durante a viagem, qual entre os homens, se arbitram nagem poderia ser considerada naquele contexto os danos e as responsabilidades, o Claire é atraída por um antigo círculo de pedras, uma mulher à frente de seu tempo. Dotada de di- modo pelo qual na história do oci- palco de rituais celtas. Ao tocar em uma das pe- dente, se concebeu e se definiu a ferentes hábitos e provida de um conhecimento dras é, misteriosamente, enviada para o século maneira como os homens podiam médico, a série ilustra um cenário no qual a infor- ser julgados em função dos erros XVII. Entre um passeio pelo antigo castelo do clã que haviam cometido, a maneira mação ganha um viés cientificista formando/va- dos Mackenzie, as memórias históricas do capitão como se impôs a determinados in- lorizando novos tipos de saberes e criando outras divíduos a reparação de algumas de cavalaria do exército britânico Jack Randall e as dimensões de poderes. de suas ações e a punição de ou- antigas batalhas entre ingleses e escoceses, a nar- tras, todas essas regras ou, se quise- rativa é perpassada pela historiografia dos perso- rem, todas essas práticas regulares, ANÁLISE DA NARRATIVA é claro, mas também modificadas nagens. Esta fase é marcada pela tentativa de fuga A narrativa de Outlander explora a consti- sem cessar através da história – me constante da personagem para seu tempo de ori- parecem uma das formas pelas tuição de um novo sujeito, cujo empoderamen- gem, o início do romance com Jamie Fraser, a ba- quais nossa sociedade definiu tipos to está em vias de abandonar o modelo pastoral de subjetividade, formas de saber talha entre Fraser e Randall e o desenvolvimento e, por conseguinte, relações entre o - oblativo e individualizante (FOUCAULT, 2014), 99 OUTLANDER: UMA CARTOGRAFIA DO PASSADO A LUZ DE FOUCAULT

Natalia Machado1 e Arlete Nery2 de suas habilidades medicinais como curandeira deada de negociações políticas e negócios. Vale Claire descobre a causa, o antídoto e acaba desa- no século XVII. Além disso, algumas cenas mar- dizer que, pare ajudarem a rebelião liderada pelo fiando o poder pastoral do clérigo local. Em pri- cantes que envolvem o poder clerical e suas con- príncipe Charles Stuart, Jamie e Claire precisaram meiro plano temos o padre com uma expressão sequências na sociedade como o retrato empírico se infiltrar na alta sociedade parisiense e lá reali- assustada olhando para Claire, repudiando suas da sociedade disciplinar serão vistos ao longo da zarem altas relações estratégicas. Consequente- atitudes. trama. mente, diante desta trama podemos perceber em Ao longo do primeiro episódio, Claire, em cena a influência da transição entre os saberes e um diálogo com seu esposo, comenta sua nova das tecnologias dadas pela simbologia dos dispo- paixão pela botânica no uso de plantas e ervas sitivos da época. para fins medicinais e a do marido a genealogia pessoal. Já neste momento notamos que a fala no roteiro não deve ser mera coincidência com as afi- OBSERVANDO O UNIVERSO DE OUTLANDER nidades teóricas foucaltianas. A série, no decorrer de seu percurso, passará por vários momentos de Veremos, a seguir, as imagens retiradas da tensão entre o que podemos chamar de socieda- série como entendimento para tais teorias. Cena 1 - temporada 1 - episódio 3 - Fonte: de de soberania e sociedade disciplinar, além da A primeira cena narra uma série de acon- Netflix marcação na segunda temporada do Nascimento tecimentos envolvendo o adoecimento de jovens da Clínica com a abordagem de algumas temáti- rapazes, supostamente por uma possessão. Intri- Nesta segunda cena temos um menino no alto de cas. gada, Claire Randall investiga e descobre que se um pelourinho, rodeado por pessoas Já na segunda temporada após salvarem tratava da consequência de uma espécie de ritual gritando a sua condenação em público. O menino Jamie Fraser das mãos do maldoso Jack Randall, de passagem, no qual jovens comiam uma erva é levado pelo padre publicamente para ser puni- o casal embarca para a França. O país escolhido daninha nas ruínas de uma igreja, adoeciam, e do por roubo e apesar de ter confessado, a justiça pelos protagonistas embala uma temporada ro- o fato era atribuído à “maldição da igreja negra”. decretou uma hora no pelourinho e uma orelha pregada. Na segunda imagem desta cena pode- 100 OUTLANDER: UMA CARTOGRAFIA DO PASSADO A LUZ DE FOUCAULT

Natalia Machado1 e Arlete Nery2 mos ver que durante o ato o padre põe a mão sob tando o clero. Segundo a justiça elas infringiram a cabeça do menino e diz: agora você está absol- dor e morte aos cidadãos de Cranesmuir através vido. da prática de artes profanas. Estão sendo acusa- das por atos condenáveis pois naquela época ser curandeira e ter acesso a saberes medicinais, tal como ervas de cura e chás, era aceito somente se não houvesse contestação de tais saberes pela igreja. A partir do momento em que a igreja era contrariada, as tensões se iniciavam, caso da cena em questão. Nota-se ainda a intenção do diretor em filmar as personagens julgadas no alto de seus Cena 3 - temporada 1 - episódio 11 – fonte: Netflix acentos, de forma que fiquem acima do clero, cuja intercessão de forma punitiva foi intensa contra Os escoceses sofreram as consequências hostis ambas no ato do julgamento. Desta forma, vimos da ocupação inglesa no território. Durante uma uma tensão entre diferentes saberes em cheque, manhã soldados ingleses foram em busca de co- de um lado o saber rudimentar da ciência, de ou- midas, cavalos para transporte e derivados do gê- tro o tradicional poder clerical. nero, porém o pai da família não se encontrava no recinto, com isso a família recebeu uma punição. Cena 2 - temporada 1 - episódio 3 - Fonte: Netflix Esta é mais uma cena que reflete a realidade pu- nitiva do século XVIII com a imagem de Jamie Fra- Esta próxima cena ilustra o julgamento de Geillis ser sendo açoitado pelo capitão inglês Jack Ran- Duncan e Claire Fraser, ambas perante o tribunal dal. Para que a irmã não fosse abusada, Jamie se de justiça acusadas pelo crime de bruxaria, enfren- rendeu às chibatadas do capitão. Contudo, diante

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Natalia Machado1 e Arlete Nery2 das enormes maldades do capitão, mesmo tendo estratégico nos espaços de circulação. Nas últimas negociado a liberdade de sua irmã, Jack levou sua décadas do século XX, a ficcionalização da história irmã. recebeu um forte destaque na produção roma- nesca (WEINHARDT, 2015). Devemos considerar que a literatura é uma forma de conhecimento e, especialmente, que as genealogias do passado (FOUCAULT, 2007) entre as práticas discursivas consideram uma linha frequente de intercambia- mento entre várias áreas do saber promoverem o próprio conhecimento. Este recorte dado por ro- Cena 5 - Episódio 3 - Temporada 2 - Fonte: Netflix mances que ficcionalizam o passado histórico faz sentido em qualquer época da história do roman- Cena 4 – temporada 1 – episódio 2 Fonte: Netflix OUTLANDER: UMA OPÇÃO PELA FICÇÃO SERIA- ce, já que possuímos uma temporalidade presen- DA HISTÓRICA te nos ditos literários. A aventura se passa na Paris clássica, com o luxo Marilene Weinhardt, em seu estudo sobre da monarquia em contraponto com a miséria do O deslizamento entre ficção seriada e his- a relação entre ficção e história, detectou que povo. A enfermeira Claire Fraser trabalha num tória no cenário audiovisual vem ganhando novas apesar do sucesso como potência no gênero e a hospital, e vê técnicas rudimentares de medicina, proporções de debate diante das múltiplas for- normalidade deste tipo de romance, no cenário com profissionais como açougueiros e marcenei- mas de abordagem em suas temáticas. Diante da contemporâneo, reconheceu que é necessário ros atuando a serviço do entendimento do que é ampliação dos formatos e da eloquência de gêne- encontrar brechas para darmos sentido à novas doença. Até um cachorro é utilizado como tecno- ros complexos (MITTELL, 2006), fomentados pela formas de produção em outros contextos, como logia diagnóstica. É através do faro que o animal hibridização de narrativas na ficção, devemos des- é o caso do realismo fantástico histórico encon- consegue descobrir uma infecção secundária no tacar a ficção histórica como um tipo de narrativa trado em Outlander. “No caso da ficção narrativa homem. eloquente na contemporaneidade, tal o destaque 102 OUTLANDER: UMA CARTOGRAFIA DO PASSADO A LUZ DE FOUCAULT

Natalia Machado1 e Arlete Nery2 qualificada como histórica, o caráter intertextual é dução merece um esclarecimento a respeito do se das grandes narrativas, havendo na série uma específico, definindo a condição inscrita no adje- interesse do público em relação as temáticas en- proposta diferente. tivo. Nas camadas desse palimpsesto, algumas ou volvidas. Alguns historiadores contemporâneos es- muitas comportam textos históricos, quando não tão seguindo uma nova estratégia inspirada nos Verifica-se, na crítica que vem se os próprios documentos”, disse Weinhardt. dedicando à contemporaneidade, processos internos dos fatos vividos por uma de- O critério estabelecido para o entendi- tendência à percepção de que o terminada sociedade. Debruçados sobre os do- mento de quais dados tornavam significativos presente é a ponto de influxo da cumentos historiográficos e nas considerações produção ficcional hoje (CARNEIRO, tal setorização no mercado editorial foi incluir 2005). Mas constata-se também a como sujeitos que habitavam o cotidiano social, no estudo os romances que ficcionalizam o pas- multiplicidade como constante, o os apontamentos se dão a partir deste olhar pau- sado histórico, buscando o esclarecimento no convívio de temas, formas e recur- tado para o interior das situações, em que as nar- sos (RESENDE, 2008). Nessa varie- âmbito da narrativa sobre acontecimentos que, dade, parece que o espaço da fic- rativas são contadas por quem viveu tais situa- de alguma forma, produziram alteração, não ape- ção histórica é bastante distendido. ções e não de um olhar submerso, como é o caso (WEINHARDT, 2011, p.33) nas no presente, e sim no passado, através do al- da maior parte dos livros de história que estamos cance do modo de vida de uma comunidade, con- habituados. Este deslizamento torna-se motivador dição essa que deve estar perceptível na instância Na interação entre ficção e história, diante desta forma híbrida de encarar temáticas narrativa. No que tange a ficção seriada histórica, é preciso considerar a mudança no a partir de novos recursos dentro da produção padrão dessas relações decorrente percebemos o recurso das repetições com o re- das teorias da história que sucede- ficcional. Tornar o romance histórico palatável e torno de personagens, de temas e de situações ram a reviravolta cujo ponto de in- acessível para quem não é historiador e motivar flexão é representado pela História redundantes de diálogos e da banda sonora com o interesse do público através da base fundante Nova. Noções encontradas na Nova a imagem, aliados ao revisionismo histórico e a História Cultural e na microhistória, que são as comprovações históricas foi uma das ficcionalização da própria história literária (WEI- além de modos de entender a His- premissas de Outlander. Vimos na trama um des- tória cuja sugestividade mostra-se NHARDT, 2015). lizamento no ato de contar histórias, antes con- no complemento nominal – histó- O destaque ao sucesso deste tipo de pro- ria das imaginações, história das duzidos pelo olhar eurocêntrico e estaduniden- ideias, história do cotidiano, histó- 103 OUTLANDER: UMA CARTOGRAFIA DO PASSADO A LUZ DE FOUCAULT

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ria de longa duração – permitem a períodos distintos. pesquisador Marcel Silva fomenta uma discussão percepção de modos de interação A produção de Outlander contou com um a partir do que o conceito de cultura das séries, re- da história com a ficção que não es- tavam em pauta antes das últimas roteiro bem serializado, com o objetivo de prender sultado dessas novas dinâmicas espectatoriais em décadas do século passado (WEI- a atenção do público para que sejam motivados a torno das séries de televisão, notoriamente, as de NHARDT, 2010, p. 123) dar continuidade aos episódios. Entretanto, o que matrizes norte-americanas (SILVA, 2014, p. 243). notamos no roteiro são as variedades temáticas Silva destaca três formas de análise das séries Diana Gabaldon busca através do conceito para que o público não se canse. Enquanto na pri- neste contexto cultural nas últimas duas décadas da microhistória, por meio de uma narrativa arti- meira temporada temos o início do desenrolar do como forma de entender a reconfiguração deste culado dentro das situações, transformar a Escócia romance, na segunda já presenciamos as parce- cenário televisivo. A primeira visa a forma relacio- em um personagem ao longo da trama. Logo, his- rias e intrigas políticas. Já na terceira encontramos nada tanto ao desenvolvimento de novos mode- tórias do cotidiano (HELLER, 1972) e da dimensão a aventura como pano de fundo e na quarta te- los narrativos, quanto à permanência e à reconfi- privada como aspectos da vida social moldam a mos a filha de Claire e Jamie como precursora de guração de modelos clássicos, ligados a gêneros visão da nova história, como o alicerce da autora, uma nova história. Assim, cada temporada possui estabelecidos como a sitcom, o melodrama e o para compor os elementos desta ficção. sua característica e as demais se conectam através policial; a segunda aborda o contexto tecnológico A série inicia com a passagem de tempo da de ganchos com o objetivo de prender a atenção em torno do digital e da internet, que estimulou protagonista para 200 anos antes e a partir de en- do público dando continuidade a uma história re- a circulação das séries em nível global, para além tão percebemos um realismo na série com temáti- cheada de diferentes formas e usos do poder. do modelo tradicional de circulação televisiva; e cas bastante presentes na sociedade. As ações são Este tipo de estratégia seriada nas novas a terceira o consumo desses programas (MITTELL, críveis e nos fazem realmente acreditar que po- formas de ver, ganham cada dia mais espaço en- 2006). demos acessar dois mundos diferentes através de tre os telespectadores pela facilidade ao acesso à As séries televisivas nascem e se estabe- um portal. Com o desenrolar dos episódios perce- produção via plataformas de streaming. É sobre lecem como gêneros contemporâneos constituí- bemos a dualidade entre dois universos opostos, este cenário atual, portanto de ampliação das for- dos e bem estabelecidos no interior do universo o século XX e o XVIII e de que forma a sociedade mas de produção e consumo audiovisual, que o da narrativa popular, apoiadas muitas vezes em desempenhava diferentes formas de poder em

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Natalia Machado1 e Arlete Nery2 convenções genéricas e adaptadas ao contexto a intimidade é o trabalho contínuo pessoa. E esta realidade em Outlander é travestida industrial e cultural, no qual apresentam como de coordenação entre imagem através do realismo fantástico perpassado pelos pública e presença de uma conti- característica o gosto pelo íntimo, isso é, as par- nuidade pessoal. A possibilidade fatos históricos que circundam a história. ticularidades do indivíduo no ambiente social. de oferecer o espetáculo da inti- O sucesso narrativo da série está ligado midade de outrem é uma das mais Este gosto pelo íntimo, citado por Jost, demanda a uma ritualidade serial em que é absolutamen- extraordinárias da ficção: está na os numerosos processos no interior de uma nar- origem de numerosos processos, te necessária a exploração dos enredos de cada rativa que provocam o interesse do público em como a voz interior ou a narração episódio. Em Outlander podemos perceber a se- subjetiva. (ESQUINAZI, 2011, p. 139) estabelecer um elo afetivo com a série. Desta for- rialização de cada temporada bem delimitada, ao ma, temos alguns elementos na narrativa que im- passo que os recortes determinam as diferenças Esta subjetividade dentro da ficção é conduzida pulsionam o sucesso da série em suas respectivas de enfoque realistas dentro da ficção. Na visão de pela protagonista da série, Claire. Na voz do inte- temporadas: perspectiva temporal espacial entre François Jost (2011), o sucesso das séries norte-a- rior da narrativa temos engendrado em sua cons- dois territórios distintos, a história de amor sobre- mericanas se explica menos por sua capacidade ciência uma chave de sucesso de um forte roman- vivente à distância entre Jamie e Claire, temáticas de espelhar de maneira realista nosso mundo do ce cheio de surpresas, rumo ao descobrimento de delicadas porém necessárias de serem abordadas que por sua disposição de fornecer uma com- um novo mundo. Esta estratégia em produzir uma como as funções da mulher na sociedade, o ma- preensão simbólica. Assim, é preciso vê-las como história de amor com outras temáticas adjacentes, chismo, a bruxaria, e o realismo com pitadas de sintomas de nossas aspirações e por aquilo que baseada na historiografia dos personagens, deno- fantasia. Tudo isso faz da série um ponto alto en- elas dizem de nós. Segundo Silva e Fontenele ta um tom realista e impactante da ficção, permi- tre os fãs. (2017), o pressuposto ainda se aproxima do que tindo ao público ser o verdadeiro voyeur da trama. Segundo Jean Pierre Esquinazi, Jost (2012) discute sobre realismo nas séries de Por isso, podemos dizer que o modelo ficcional A conversa fio condutor de muitas ficção norte-americanas. De acordo com o autor, séries surge como um transforma- serial se adapta a diversas tentativas de aprofun- o realismo é um discurso que não se orienta pela dor das imagens que formamos de damento. O seu filtro traveste os diferentes tipos nós próprios. É uma expressão ime- precisão com o mundo histórico, mas sim pela de interpretação da ficção para podermos enxer- diata das diferenças criadoras de impressão que causa no espectador ao seguir as consciência. Daí a nossa definição: gar de acordo com o repertório individual de cada

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Natalia Machado1 e Arlete Nery2 regras estabelecidas por essa prática. Com isso, consequência, as marcas consagradas das séries latável, representando e ofertando entendimento enxergamos as fronteiras existentes entre realida- contemporâneas convergem com a estética cine- para os expectadores. Um instrumento a serviço de e ficção, a partir do recorte dado pela série e o matográfica como é o caso do roteiro e da filma- da comunicação, que pode, e deve ser utilizado desencadeamento da narrativa. gem, não é à toa que Outlander, aclamada pela crí- na formação de novas concepções de saberes, tica, ganhou vários prêmios, incluindo de Melhor configurações de verdades, e estímulo ao pensa- CONSIDERAÇÕES FINAIS Série de Fantasia da Televisão (2016) e Série Nova mento crítico. O objeto empírico deste estudo, Outlan- Mais Emocionante (2014). der, flagra novas estratégias narrativas e estéticas A série traz uma narrativa que, a despeito REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS da indústria audiovisual contemporânea. A ade- de pertencer ao campo da ficção, se apresenta ESQUINAZI, Jean Pierre. As séries televisivas. Tra- quação à ficção histórica traz à luz uma narrativa como importante suporte no esclarecimento do dução Pedro Elói Duarte. Editora Texto & grafia, provocativa em torno de assuntos delicados e surgimento da filosofia da ciência e de reflexão so- 2011. polêmicos, sem perder a veracidade dos fatos da bre as questões propostas por Michel Foucault no FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 24ª edi- época. Desta forma, a escolha por um país pouco que concerne às questões de saber e poder. E que ção. São Paulo: Graal, 2007. explorado na Europa, como é o caso da Escócia, demonstra o percurso histórico que vai do cog- palco de cenas em que podemos notar a transição nitivismo para o pragmatismo. Todos os recursos ______. A Verdade e as Formas Jurídicas. entre as diferentes formas de sociedade: da sobe- didáticos utilizados pela escritora Diana Galbadon Tradução: Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais et al J. Rio de Janeiro: NAU rania para a disciplinar, uma passagem temporal também contribuem para o próprio processo de Editora, 2002 de comportamento que demonstrou ser mais efi- informar o expectador acerca da história, abor- caz “vigiar” do que “punir”. dando questões geopolíticas, filosóficas, religio- ______. O nascimento da clínica. In: Col. A sofisticação do texto, capaz de fugir dos sas, entre outras, com grande responsabilidade e Campo Teórico. Rio de Janeiro: Forense Universi- tária, 2011. clichês e das formas já consagradas, descortinou qualidade de produção. É, sem dúvida, uma alter- uma história híbrida entre uma escolha por uma nativa de aliar entretenimento com conhecimen- ______. O sujeito e o poder. In: FOUCAULT, M. estética e narrativa de sucesso entre o público. Por to. Um passado explicado de forma bastante pa- Genealogia da Ética, Subjetividade e Sexualidade. Coleção Ditos e Escritos, v. IX. Rio de Janeiro: Fo- 106 OUTLANDER: UMA CARTOGRAFIA DO PASSADO A LUZ DE FOUCAULT

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SALDANHA, Gustavo Silva. Entre a retórica e a fi- WEINHARDT, Marilene et al. Literatura crítica

107 NEBLINA, SOMBRAS E MILKSHAKES: A SÉRIE RIVERDALE E A NARRATIVA POLICIAL HARD BOILED PARA JOVENS Lucas Ravazzano1

1 INTRODUÇÃO Scooby Doo ou Os Mistérios de Frajola e Piu Piu Resumo: O presente trabalho visa analisar a primeira (1995), Pistas de Blue (1996-2007), ou The Hardy temporada da série Riverdale, do canal estaduniden- se CW, de modo a demonstrar como a série revisa o Quando se fala em narrativas policiais, nor- Boys/Nancy Drew Mysteries (1977- 1979). O suces- universo dos quadrinhos do personagem Archie com malmente há na mente do público uma expectati- so de Scooby Doo inclusive levou os estúdios à sua trama que se apropria de temas, convenções, esté- va muito clara do que será encontrado nesse tipo criação de várias outras séries no mesmo formato, tica e arquétipos de personagem típicos das narrativas policiais hard boiled, apresentando esses elementos a de produto: uma trama contendo a investigação no qual um grupo de jovens acompanhados por um novo público, mesclando esses elementos com es- de um crime, normalmente um crime violento, e um mascote que servia de alívio cômico viajava truturas típicas de um drama colegial adolescente que o seu eventual desenlace através do trabalho de resolvendo mistérios, algumas dos próprios estú- tem sido uma constante na produção de ficção seriada do CW. um personagem investigador astuto. É um gêne- dios Hanna/Barbera, criadores do Scooby Doo. En- Palavras-chave: ficção seriada, gêneros narrativos, ro longevo, com teóricos como Paulo de Medei- tre esses produtos similares é possível destacar Tu- narrativa policial ros e Albuquerque (1979) ou Sandra Lúcia Reimão tubarão (1976-1978), Bicudo: O Lobisomem (1978), Abstract: The present work aims to analyze the first (1983) identificando suas origens na literatura do Capitão Caverna e as Panterinhas (1977-1980) ou season of the series CW Riverdale, in order to demons- século XIX a partir dos contos escritor por Edgar Josie e as Gatinhas (1970-1972), sendo que a per- trate how the series revises the comic universe of the Allan Poe e protagonizados pelo personagem C. sonagem Josie e sua banda também compõem o character Archie with its plot that appropriates the- mes, conventions, aesthetics and character archetypes Auguste Dupin. universo da série Riverdale, objeto deste artigo. typical of hard boiled detective fiction, presenting the- Por serem narrativas que quase sempre Até mesmo produtos infantis que não con- se elements to a new audience, joining these elements with structures typical of a teenage high school drama envolvem crimes violentos, talvez a ideia de pro- sistem em narrativas policiais ocasionalmente re- that has been a constant in CW’s serial fiction produc- dutos do gênero feitos para um público infantil metem a obras conhecidas desse gênero. A ani- tion. ou jovem soem estranhos, mas produções como mação As Aventuras do Gato Felix (1995-1997), por Keywords: serial fiction, narrative genres, detective fiction Riverdale não são novidade no contexto de pro- exemplo, tem um episódio intitulado O Milkshake dução dos Estados Unidos. O público contempo- Maltado2, que reproduz a trama de O Falcão Mal- râneo já é exposto às narrativas do gênero desde 1 Doutor em Comunicação e Cultura 2 The Maltese Milkshake, no original em Contemporâneas, professor da FTC Salvador. Contato: a infância, em séries como as muitas versões de inglês, um trocadilho com o título original de O [email protected] Falcão Maltês, The Maltese Falcon. 108 NEBLINA, SOMBRAS E MILKSHAKES: A SÉRIE RIVERDALE E A NARRATIVA POLICIAL HARD BOILED PARA JOVENS Lucas Ravazzano tês (1941), de John Houston colocando o Gato familiarizar os jovens com as estruturas narrativas A primeira temporada de Riverdale, criada Felix como um detetive particular incumbido de deste tipo de produto. Isso é feito tanto em jogos por Roberto Aguirre-Sacasa, estreou em 2016, e encontrar um cobiçado objeto, apenas substituin- que trazem personagens famosos da literatura, acompanhava um grupo de adolescentes da pe- do a estátua de falcão do filme de 1941 por um cinema e televisão, como Holmes, Poirot, Nancy quena cidade de Riverdale que se envolvem na milkshake. Drew ou Miss Marple, como também em produtos investigação da morte de uma colega de escola, De maneira semelhante, a animação Tico que não são baseados em obras existentes, como cujas evidências apontam para assassinato. Antes e Teco: Defensores da Lei3 (1988-1990) possuía um é o caso de L.A Noire, que coloca o usuário como de partir para a análise da série, é necessário pri- episódio chamado The Pound of Baskervilles, cuja um detetive na Los Angeles dos anos de 1940, meiro conceituar o que será compreendido como trama colocava os protagonistas para investiga- ou os games da franquia Ace Attorney4, no qual o narrativa policial. rem uma criatura fantasmagórica que assombrava jogador controla um advogado que precisa reali- uma mansão, apresentando muitas similaridades zar investigações por conta própria para provar a A NARRATIVA POLICIAL com a trama de O Cão dos Baskervilles, de Arthur inocência dos clientes e apontar o verdadeiro cul- Conan Doyle, inclusive reproduzindo frases co- pado, apresentando uma estrutura narrativa que Tanto no cinema quanto na televisão, a nhecidas de Sherlock Holmes. A série animada remete às histórias do personagem Perry Mason. produção de narrativas policiais historicamente Tiny Toons (1990- 1995), por sua vez, reproduzia os Desta maneira, é possível perceber como tem um diálogo bastante próximo com a produ- embates entre Holmes e o professor Moriarty no as narrativas policiais para o público infantil ou jo- ção literária do gênero, seja adaptando direta- episódio And All That Rot. vem ocupam um considerável e constante filão na mente seus personagens de sucesso como Sher- Videogames também trabalham estrutu- produção televisiva dos Estados Unidos. Analisar lock Holmes, Hercule Poirot ou Miss Marple, seja ras típicas do gênero e são outro meio comum de as maneiras como esses produtos são construídos buscando inspiração nessas obras literárias para e dialogam com os cânones do gênero contribui- criar novos personagens. Um exemplo disso é o 3 Até mesmo o figurino dos dois protagonistas referencia personagens conhecidos de narrativas policiais ria para entender esse largo segmento produtivo. personagem Gregory House, protagonista de e filmes de aventura. O Tico se veste de modo similar ao House (2004-2012), série de investigação médica aventureiro Indiana Jones, enquanto Teco usa uma camisa 4 A franquia Ace Attorney já teve oito jogos havaiana muito similar ao detetive particular interpretado diferentes lançados, entre continuações e spin-offs, no na qual o protagonista precisa desvendar os mis- por Tom Selleck na série Magnum P.I. período de 2001 a 2013. 109 NEBLINA, SOMBRAS E MILKSHAKES: A SÉRIE RIVERDALE E A NARRATIVA POLICIAL HARD BOILED PARA JOVENS Lucas Ravazzano teriosos problemas de saúde que afligem seus de Poe não foram as primeiras histórias literárias dos mais famosos o detetive Sherlock Holmes, pacientes. Tal como Sherlock Holmes, House é a trazerem crimes ou sua solução, mas foram as criado por Arthur Conan Doyle, que, assim como o brilhante, perspicaz, dotado de extrema acuida- que estabeleceram o formato que o gênero pos- personagem de Poe, é um detetive consultor que de mental, viciado em drogas, misantropo, possui teriormente viria a seguir, uma vez que “Chevalier ajuda a polícia por meio de deduções e inferências um único melhor amigo que constantemente se C. Auguste Dupin foi o primeiro investigador fictí- produzidas por longas cadeias de pensamento. O envolve em problemas amorosos e até mora no cio a confiar primordialmente na dedução a partir detetive Hercule Poirot, criado por Agatha Chris- mesmo número que o detetive britânico, 221B. de fatos observáveis” (JAMES, 2012, p. 35). tie, é outra famosa reprodução deste arquétipo. É, portanto, inevitável não falar a respeito Acerca disto, Reimão (1983) afirma que o As afirmações acerca da origem do gêne- do gênero na literatura para compreender seu contexto contribuiu para que o detetive Dupin ro com Poe também destacam a centralidade do funcionamento, afinal, muitas das estruturas, te- fosse concebido ao falar da influência do pensa- pensamento dedutivo nas investigações apresen- mas e arquétipos de personagens trabalhados mento Positivista que tinha como crença básica a tadas nas narrativas, nas quais um detetive, dota- pelo audiovisual foram transpostos do meio lite- afirmação de que os fenômenos são regidos por do de habilidades de raciocínio acima da média, rário. Inclusive, a série Riverdale, como será expli- leis e a crença que a “mecânica mental obedece a consegue resolver situações complexas, tidas por cado mais adiante, é também uma adaptação de certos princípios gerais e em que quem dominar muitos como insolúveis. um produto literário, especificamente de histórias estes princípios saberá usá-los em cada cadeia de Paulo de Medeiros e Albuquerque (1979), em quadrinhos. ideias, de cada homem particular” (p. 15). inclusive, consideram que foi esse elemento da Há um consenso entre os autores e pesqui- Poe teria criado em seus contos aquilo que racionalidade e da lógica que marcou a separação sadores que lidam com este gênero que seu início Reimão (1983, p.18) entende como um arquétipo entre a narrativa policial e as narrativas de aven- se deu a partir da publicação do conto Os Crimes literário, “o detetive amador, o homem que cole- tura e as de espionagem. A narrativa policial viria da Rua Morgue, de Edgar Allan Poe, em 1841. No ciona enigmas como os outros colecionam obje- daquilo que ele chama de romance de aventura, e conto, Poe “introduziu o que viria a se tornar um tos”. Apesar da vida curta do personagem36, mui- o advento da imprensa inicialmente “ampliou seu repertório de recursos de trama das primeiras his- tas narrativas que seguiram o trabalho do escritor campo de ação” (ALBUQUERQUE, 1979, p.3) tor- tórias de detetive” (JAMES, 2012, p. 35). Os contos usavam o arquétipo surgido em Dupin, sendo um nando-o ainda mais difundido. Depois, um segun-

110 NEBLINA, SOMBRAS E MILKSHAKES: A SÉRIE RIVERDALE E A NARRATIVA POLICIAL HARD BOILED PARA JOVENS Lucas Ravazzano do movimento de transformação no romance de que Merrill (1997) identifica em Agatha Christie, Nesse processo investigativo, segundo Al- aventura deu origem ao romance de espionagem, ao apresentar vários suspeitos com motivações e buquerque (1979), uma narrativa policial respon- e por fim, um terceiro movimento introduziu a de- oportunidades palpáveis para o crime, desafian- de ao menos uma de três perguntas. A primeira dução e o raciocínio lógico “suplantando a força do o espectador a apontar a resolução. Isso tam- dá ênfase na descoberta da identidade do crimi- e a ação” (p. 3). Deste modo, entre o romance de bém poderá ser percebido durante a análise da noso, aquilo que se convencionou a chamar de aventuras e o de espionagem “a semelhança é, às primeira temporada de Riverdale, que também dá “quem foi?”. A segunda volta a sua atenção ao mo- vezes, tão acentuada que se confundem, ao pas- ao seu espectador um largo plantel de possíveis dus operandi do crime, isto é, o chamado “como so que como romance policial tal não ocorre, pois suspeitos para o crime cuja investigação serve de foi?”. A terceira tem ênfase na motivação do crime, ele veio, com seu elemento lógico, criar uma nova fio condutor da temporada. criminosa, isto é, ‘Por que foi cometido o crime?’. modalidade narrativa” (p. 3). Walter Benjamin (1989), por sua vez, com- Para Todorov (1980), o conhecimento seria O manejo do mistério e da intriga envol- preende que neste tipo de narrativa o “interesse a força motriz da narrativa policial, pois gera as vendo a investigação também são centrais ao reside numa construção lógica” (p. 40). Já James transformações da narrativa a partir das informa- gênero. Robert Merrill (1997), no campo da lite- (2012) e Tzvetan Todorov (1980) corroboram a na- ções oferecidas, que produzem uma reinterpreta- ratura, ou Thomas Elsaesser (2009), no campo do tureza racional do gênero, concebendo essas nar- ção dos fatos já ocorridos levando, assim, a história cinema, afirmam que muitos produtos do gênero rativas como “celebrações da razão e da ordem, para frente. Isto é, as narrativas policiais não ape- manipulam esses aspectos de modo a criar um em nosso mundo cada vez mais complexo e de- nas usam esse pensamento racional e dedutivo tipo de jogo narrativo. Essa estrutura convida seu sordenado” (JAMES, 2012, p. 171). Todorov (1980) como um mecanismo narrativo para desenvolver espectador a participar do processo investigati- e posteriormente autores como John G. Cawelti suas tramas, como também encerram produzindo vo ao lado dos personagens, no qual diferentes (1997), defendem a noção de que a narrativa poli- a impressão de que esse método racional é capaz possibilidades de resolução vão se apresentando cial traz uma dupla história, a primeira diz respeito de compreender e analisar a realidade, dando ao ao leitor, que tenta chegar à resolução antes da à observação do processo investigativo e a segun- seu público a segurança de que existem respostas própria narrativa. A narrativa policial constante- da seria a do crime em si, a ser desvendada pelo e resoluções para qualquer mistério que se apre- mente utiliza de mecanismos similares, como os detetive. sente.

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Nem todos os detetives que protagonizam equipe de peritos criminais liderados por Gil Gris- tagonizadas por investigadores particulares como esse tipo de narrativa usam os mesmos métodos som na série CSI: Crime Scene Investigation. Philip Marlowe e Sam Spade. Na televisão, é possí- ou os encadeamentos de deduções de Sherlock Diante disso e de trabalhos de autores vel encontrar esse tipo narrativa policial em séries Holmes ou Dupin, visto que a própria natureza como Peter Messent (2013) ou John Scaggs (2005) como Mike Hammer (1958-1959), Philip Marlowe dos gêneros requer um certo grau de variação nas é possível perceber três grandes subcategorias de (1959-1960), The Equalizer (1985-1985) ou Veroni- fórmulas e arquétipos. Em uma narrativa policial, narrativas policiais. A primeira é aquilo que Mes- ca Mars (2004-2007). cujo eixo central da trama é a investigação de al- sent (2013) chama de narrativa policial clássica, A terceira seria aquilo que Scaggs (2005) gum acontecimento, o detetive possui um modo popularizado na literatura através das histórias de define como o police procedural e, segundo o au- específico para analisar as evidências encontradas Sherlock Holmes ou Hercule Poirot, apresentando tor, começou a se desenvolver a partir da segunda e explicar as relações causais que existem entre detetives geniais e excêntricos com um agudo ra- metade do século XX, com autores como James elas sob um ponto de vista lógico. ciocínio dedutivo. Na televisão estadunidense é Ellroy e Thomas Harris se destacando em narrati- Isso se aplica tanto às longas cadeias de de- possível perceber a produção de narrativas poli- vas nas quais os protagonistas eram membros das dução de Sherlock Holmes ou Philo Vance, que já ciais deste tipo desde a minissérie Sherlock Holmes forças policiais, como Clarice Starling e Alex Cross. foram levados ao cinema desde o início do studio (1951), passando por séries como The New Adven- Na televisão é possível ver a ocorrência de proce- system, em filmes como A Volta de Sherlock Holmes tures of Charlie Chan (1957-1958), Assassinato Por durals desde Dragnet (1951-1959), a qual Jason (1929), de Basil Dean, como à sabedoria das ruas Escrito (1984-1996) ou produções mais contem- Mittel (2004) considera como a primeira série po- e do submundo possuída por detetives particu- porâneas como Monk (2002-2009), House (2004- licial de grande sucesso na televisão estaduniden- lares como Sam Spade, de obras como O Falcão 2012) ou Elementary (2012-Ainda em exibição). se, Adam-12 (1968-1975), Hill Street Blues (1981- Maltês: Relíquia Macabra (1941), de John Houston. A segunda, que será o foco deste estudo é 1987), Nova Iorque Contra o Crime (1993-2005) ou Do mesmo modo, também se aplica aos manuais a chamada narrativa policial hard boiled que deri- CSI: Investigação Criminal (2000-2015). institucionais e científicos seguidos por policiais e va das histórias literárias publicadas a partir do fi- Tendo explicado em linhas gerais as prin- agentes do FBI como Clarice Starling, de O Silên- nal da década de 1920 por autores como Dashiell cipais correntes de narrativas policiais, este tra- cio dos Inocentes (1991), de Jonathan Demme ou a Hammett e Raymond Chandler, com histórias pro- balho irá se deter em conceituar de modo mais

112 NEBLINA, SOMBRAS E MILKSHAKES: A SÉRIE RIVERDALE E A NARRATIVA POLICIAL HARD BOILED PARA JOVENS Lucas Ravazzano elaborado as noções que envolvem as narrativas tilo de vida dos protagonistas deste tipo de ficção. mett a quem Scaggs (2005) credita a hard boiled, já que é com as tradições desta cate- De acordo com Scaggs (2005), essa desig- fundação de um tipo de ficção que foi caracte- goria que a primeira temporada Riverdale parece nação viria do modo como o autor Dashiell Ham- rizada, entre outras coisas, pela figura dura e tei- dialogar mais. mett descrevia o detetive da agência Continental, mosa do investigador particular. Messent (2013) protagonista de seu romance Seara Vermelha, identifica que até mesmo outros autores da nar- O HARD BOILED publicado em 1929. No entanto, aponta que esse rativa hard boiled reconhecem a centralidade de tipo de detetive particular já tinha aparecido por Hammett neste modelo narrativo. Entre aqueles Se a narrativa policial clássica era centrada volta de 1880 na forma do investigador Nick Car- que identificam a influência de Hammet, o mais na figura do detetive diletante que resolvia crimes ter, criado por John R. Coryell, mas que o perso- célebre é o também icônico autor hard boiled Ray- graças a sua excepcional acuidade mental, a nar- nagem geralmente reconhecido como o primeiro mond Chandler, que também começou escreven- rativa hard boiled, por sua vez, se volta para a figu- detetive hard boiled é Race Williams, criado por do contos para a revista Black Mask. ra do detetive particular durão e bruto. Enquanto John Daly no conto Knights of Open Palm, publica- Em seu seminal ensaio The Simple Art of os principais expoentes do movimento anterior do em junho de 1923 na revista Black Mask5 pou- Murder, Chandler argumenta como Hammett es- eram de origem britânica, o modo hard boiled é cos meses antes do detetive da agência Continen- tabeleceu os fundamentos narrativos e temáticos majoritariamente dominado por autores de ori- tal de Hammett estrear em outubro do mesmo para o hard boiled. Histórias permeadas por um gem estadunidense. Scaggs (2005) afirma que o ano no conto Arson Plus. cenário urbano perturbador e alienante, violência termo hard boiled, significando durão ou astuto, Apesar de não ter sido o pioneiro, é a Ham- constante e diálogos rápidos que visavam repro- passou a descrever o investigador do tipo de nar- 5 A Black Mask era uma conhecida revista pulp do duzir a linguagem das ruas. Sobre este ambiente, período, de qualidade barata e que traziam histórias de crime rativa policial que se desenvolveu nos Estados e violência. O nome vinha do papel de baixa qualidade em Chandler (1988, p.18) fala: Unidos no período entre as duas guerras mun- que eram impressas. As pulps eram consideradas herdeiras das penny dreadfuls surgidas na Grã-Bretanha no fim do diais. Messent (2013) exibe concordância com “descendo por estas ruas perigosas um século XIX e das dime novels que emergiram no período homem precisa seguir sem ser maligno, essa perspectiva ao dizer que o termo se refere a da Guerra Civil Americana, ambas exemplares de literatura sem ter nem mácula nem temor. O de- barata e popularesca, e todas estas, segundo Scaggs (2005), um estilo de escrita, mas também representa o es- tetive deste tipo de história precisa ser tiveram um enorme papel na criação dos gostos populares este homem. Ele é o herói, ele é tudo. de literatura nos Estados Unidos. 113 NEBLINA, SOMBRAS E MILKSHAKES: A SÉRIE RIVERDALE E A NARRATIVA POLICIAL HARD BOILED PARA JOVENS Lucas Ravazzano

Ele precisa ser um homem completo e vam diretamente ligadas ao contexto de seu pe- salvaguardar a sociedade, como a polícia ou os um homem comum e ainda assim um homem fora do comum. Ele precisa ser, ríodo. José Arbex Jr (1995) concebe essa mudança representantes políticos, são aqueles responsá- para usar uma frase relativamente anti- de abordagem da narrativa policial por parte dos veis por sua decadência, criando um ambiente de quada, um homem de honra6”. autores estadunidenses do período como fruto da pouca clareza moral. Assim, Chandler insiste que a narrativa desilusão da sociedade americana com a Grande Essa impressão de uma sociedade deca- hard boiled possui um caráter mais realista que Depressão, provocada pela quebra da bolsa de dente, corrompida, é também transmitida na ma- a narrativa policial clássica, em especial, como Nova Iorque em 1929, além da promulgação da neira como muitos ambientes são filmados, com aponta Messent (2013, p.35), “seu distanciamento Lei Seca, que proibia a comercialização de bebi- contraste entre luzes e sombras, escuridão e cores das complicações barrocas de uma classe média- das alcoólicas. Segundo Ernest Mandell (1988), fortes ou planos com angulação do eixo da câme- -alta ou aristocrática7” e seu movimento em dire- nessa época aumentaram e intensificaram-se os ra que distorcem as formas, dando a impressão de ção às ruas. O que se vê neste tipo de narrativa delitos cometidos nos Estados Unidos, como a que tudo está inclinado ou cheio de superfícies é que o crime não é mais um fenômeno exótico venda ilegal de bebidas, exploração do jogo e da angulosas. Essas estratégias visam dar um aspec- ou excepcional, mas parte do cotidiano urbano e prostituição, assaltos a banco, guerras de quadri- to não natural a paisagens urbanas que remetem diretamente conectado a problemas econômicos, lhas, subornos e chantagens envolvendo policiais, a lugares do mundo real, fazendo esses espaços sociais e políticos de seu tempo. políticos e outras figuras da alta sociedade. parecem um pesadelo sombrio ou corrompido da As ideias trazidas por essas narrativas esta- A paisagem urbana da narrativa hard boi- vida real. led é, como aponta Scaggs (2005), um terreno O investigador do hard boiled não é uma 6 Tradução nossa para o original em inglês: "down devastado por drogas, violência, poluição, lixo e calculadora humana com amplo estudo e boas these mean streets a man must go who is not himself mean, who is neither tarnished nor afraid. The detective in this kind uma infraestrutura física decadente. O investiga- maneiras como os detetives amadores e consulto- of story must be such a man. He is the hero, he is everything. dor caminha sozinho por ruas perigosas nas quais res da narrativa policial clássica, e suas investiga- He must be a complete man and a common man and yet an unusual man. He must be, to use a rather weathered phrase, é impossível saber em quem confiar, já que muitas ções são mais permeadas por violência e desafios a man of honour" vezes as vítimas também são algozes, os contra- físicos. A maioria dos protagonistas das narrativas 7 Tradução nossa para o original em inglês: "his move away from the baroque complications of an upper tantes são os criminosos e aqueles que deveriam deste ciclo exercia a função de detetive particular, middle class or aristocratic world". 114 NEBLINA, SOMBRAS E MILKSHAKES: A SÉRIE RIVERDALE E A NARRATIVA POLICIAL HARD BOILED PARA JOVENS Lucas Ravazzano mas o exercício dessa profissão não é algo comum heterogêneos, como dramas, narrativas policiais Nesse sentido, este artigo não irá tentar a todos os protagonistas durões que caminham e filmes de gângster. Tanto que teóricos como definir o que é o noir, visto que este não é o foco por ambientes sombrios de incerteza moral. Um Steve Neale (2000, p.173) afirmam que “enquanto deste trabalho, mas o termo é mencionado aqui exemplo são os protagonistas das três tempora- fenômeno único, o noir, em meu ponto de vista, por reconhecer, como faz Neale (2000), que aquilo das da série True Detective (2014-2019), a maioria nunca existiu”8, justamente pelo termo designar que se convencionou a chamar de noir usou mui- deles membros de forças policiais, mas que tran- obras tão diferentes entre si. Fernando Mascarello tos elementos da narrativa policial hard boiled em sitam por esses mesmos espaços sombrios, deca- (2006) reconhece que “o noir como gênero nunca seus filmes, embora nem todonoir seja necessa- dentes, tomados por corrupção, com imagens que existiu” (p. 179), afirmando que sua concepção foi riamente uma narrativa policial. Maia (2007) reco- remetem a delírios febris, exibindo um constante retrospectiva, tratando-se de uma categoria lavra- nhece que sob o termo podem ser abrigados fil- desencanto quanto aos rumos da sociedade. Nas da a posteriori. Por sua vez, Guilherme Maia (2007, mes de natureza muito diferente, como O Falcão três temporadas da série, inclusive, a resolução e p. 261) compreende a complexidade de discutir Maltês (1941), O Homem Errado (1956), O Destino explicação dos crimes não leva à prisão de todos o noir e questiona as múltiplas possibilidades de Bate à Porta (1946) e Crepúsculo dos Deuses (1950) os culpados, criando a impressão de que os ricos enquadramento do fenômeno: “Série, estilo, esco- que são considerados “como obras noir clássicas” e poderosos continuarão inatingíveis em suas po- la, gênero, movimento, ciclo ou tudo isso ao mes- (MAIA, 2007, p. 262). sições de privilégio. mo tempo?”. Outros como Alain Silver e Elizabeth Isso implica em considerar que, embora Nos meios audiovisuais estadunidenses, Ward (1992, p. 398) falam em uma “série” noir ao a narrativa policial esteja associada ao noir, nem a narrativa hard boiled está comumente associa- dizerem que “parece claro para todos que exis- tudo considerado noir é passível de ser enqua- da às produções do movimento conhecido como te uma ‘série’ noir entre os filmes produzidos em drado enquanto narrativa policial. Deste modo, film noir, que se deu a partir do final dos anos de Hollywood. É outra questão definir suas caracte- é preferível para esta pesquisa não usar o termo 1940. A designação de noir em termos acadê- rísticas essenciais”9. noir, dada a sua abrangência, para se referir às micos é comumente algo bastante difícil de ser 8 Tradução nossa para o original em inglês: "As a narrativas policiais desta subcategoria. Para fins realizada, já que sob essa tipologia, criada pelo single phenomenon, noir, in my view, never existed". de clareza na manutenção do escopo deste traba- 9 Tradução nossa para o original em inglês: “It seems francês Nino Frank, são abrigados filmes bastante apparent to all that has been a noir ‘series among the films lho, o termo narrativa policial hard boiled se mos- produced in Hollywood. It is another matter to define its essential traits” 115 NEBLINA, SOMBRAS E MILKSHAKES: A SÉRIE RIVERDALE E A NARRATIVA POLICIAL HARD BOILED PARA JOVENS Lucas Ravazzano

tra mais adequado ao recorte aqui feito. Uma vez imprensa especializada11 como voltada para um natural, passando pela ação e a ficção científica. tendo definido as noções centrais do hard boiled público jovem, na faixa entre 18 e 34 anos. Desde Não é de estranhar, portanto, que essa demanda o artigo passará para a análise da série Riverdale, sua estreia em 2006, o canal produziu séries de su- constante de apresentar gêneros conhecidos ao iniciando com uma breve contextualização sobre cesso junto a esse tipo de público como Gossip Girl público jovem, o canal tenha também recorrido o canal CW, que produz a série. (2007-2012), um drama ambientado entre jovens às narrativas policiais, um dos gêneros mais lon- da alta sociedade de Nova Iorque, Diários de Um gevos e constantes da televisão estadunidense O CANAL CW Vampiro (2009-2017), uma série sobre vampiros como afirma Mittel (2004). com elementos de romance, 90210 (2008-2013), Na verdade, Riverdale sequer marca a pri- O canal CW começou sua operação nos Es- remake da famosa série adolescente dos anos 90 meira vez que narrativas para o público jovem e tados Unidos no ano de 2006, nascendo como um Barrados no Baile, além de séries de ficção científi- narrativas policiais hard boiled se mesclam em um empreendimento conjunto entre a CBS Corpora- ca, como The 100 (2014 – Em exibição) e super-he- produto dessas corporações. Antes da fusão que tion e a WarnerMedia, uma subsidiária da Warner róis como Arrow (2012 – Em exibição) e The Flash originou o canal CW, o canal UPN produziu a série Bros. Com esse empreendimento, as duas empre- (2014 – Em exibição). Veronica Mars (2004-2007), criada por Rob Tho- sas combinaram os canais United Paramount Ne- Desta maneira, é possível compreender mas, que era centrada em uma estudante colegial twork (UPN), que pertencia à CBS, e The WB Chan- que o canal está em constante produção de ficção que trabalhava como detetive particular ao lado nel, que pertencia à Warner, para criar o CW, cujo seriada para o público jovem e, assim, está cons- do pai e resolvia crimes envolvendo os colegas de nome deriva da junção das primeiras letras das tantemente trazendo diferentes gêneros para escola. duas empresas, CBS e Warner, tal como é revelado dialogar com esse público, do drama, ao sobre- Veronica morava em Neptune, uma pe- pela reportagem da Variety de 201610. quena cidade na costa da Califórnia cuja popula- A programação do CW é considerada pela 11 Como mostram matérias dos LA Times e ção era composta por algumas das pessoas mais canal KQED. Disponíveis em: https://www.latimes.com/ entertainment/envelope/la-xpm-2013-mar-26-la-et-fi- ricas do estado. Essa população rica controlava ct-the-cw-20130326-story.html e https://www.kqed. praticamente toda a cidade, subornava a polícia 10 Disponível em: https://variety.com/2016/tv/news/ org/pop/14608/all-hail-the-cw-how-the-youth-geared- cw-wb-network-upn-merger-announcement-10-years- network-became-one-of-the-best-on-tv. Acessados em em e ficava impune com todo tipo de crime. Veronica ago-1201687040/. Acessado em 14 de abril de 2019. 14 de abril de 2019. 116 NEBLINA, SOMBRAS E MILKSHAKES: A SÉRIE RIVERDALE E A NARRATIVA POLICIAL HARD BOILED PARA JOVENS Lucas Ravazzano era uma das poucas pessoas da cidade interessa- personagens como Betty Cooper, Veronica Lodge quando o corpo do jovem estudante Jason Blos- das em tentar romper com a lógica de desigualda- e Jughead Jones. som, filho de uma das famílias mais ricas da cida- de e corrupção, investigando os crimes dos pode- Publicados desde a década de 1940, ori- de, é encontrado na margem de um rio. Archie, rosos. As temporadas alternavam entre um crime ginalmente as aventuras da turma de Archie nos um dos protagonistas, ouviu um tiro ser dispara- principal, cuja a investigação levava a temporada quadrinhos apresentavam histórias leves, bem do próximo ao local em que Jason foi visto pela inteira e crimes menores, autocontidos em episó- humoradas e que mostravam uma vida idílica e última vez, mas teme ir à polícia porque ele estava dios específicos. Veronica era uma detetive parti- idealizada da classe média interiorana estaduni- acompanhado de sua professora, Geraldine Grun- cular bastante semelhante às figuras do hard boi- dense. dy, com quem tem um romance secreto. Simulta- led, caminhando em um ambiente corrompido e O tom dessas histórias, no entanto, come- neamente, a vizinha de Archie, Betty Cooper, e o opressor, tentando manter a honra e justiça em çou a mudar por volta de 2014 quando Roberto melhor amigo dele, Jughead, decidem investigar um lugar de pouca clareza moral. Muitos desses Aguirre-Sacasa foi nomeado diretor criativo da o crime para o jornal da escola. Ao curso da inves- elementos também estarão presentes na primeira franquia de quadrinhos12 depois que ele obteve tigação o grupo descobrirá que muitos habitantes temporada de Riverdale. sucesso em colocar o personagem em histórias de Riverdale escondem terríveis segredos. mais maduras e violentas, como o arco Afterlife É uma premissa típica de narrativas po- ASSASSINATO E INVESTIGAÇÃO EM RIVERDALE with Archie em 2013, que colocava a turma de Ri- liciais, com um crime rompendo a sensação de verdale para lidar com elementos de horror como ordem de uma pacata cidade e uma investigação Criada em 2016 pelo produtor Roberto zumbis e demônios. Ao assumir a direção criativa, que revela que esses cidadãos aparentemente Aguirre-Sacasa, Riverdale é baseada no universo Aguirre-Sacasa relançou esse universo de quadri- bondosos não são tão inocentes. A ambientação dos quadrinhos adolescentes da Archie Comics, nhos em um formato um pouco mais próximo do também remete a séries de drama adolescentes que se passava na cidade fictícia de Riverdale, si- que a série Riverdale viria a ser. como Dawson’s Creek (1998-2003), apresentando tuada no interior dos Estados Unidos, e acompa- A primeira temporada de Riverdale começa o cotidiano de jovens em uma pequena cidade in- nhava o cotidiano do estudante colegial Archie 12 Como mostra reportagem do portal Fast Company. teriorana e suas aventuras amorosas. Disponível em: https://www.fastcompany.com/3028694/ Andrews e sua turma de amigos composta por how-archie-comics-new-chief-creative-officer-is- A temporada se desenvolve nessa tenta- reimagining-riverdale. Acessado em 21 de abril de 2019. 117 NEBLINA, SOMBRAS E MILKSHAKES: A SÉRIE RIVERDALE E A NARRATIVA POLICIAL HARD BOILED PARA JOVENS Lucas Ravazzano tiva de equilibrar o componente investigativo do ele enxerga na cidade. Com um pai presidiário, lí- tradicionais da ficção adolescente e o esforço de assassinato de Jason Blossom com intrigas de co- der de uma gangue de motoqueiros, e uma mãe subvertê-los também é percebido no casting dos legial, como a disputa envolvendo Betty, Veronica ausente, Jughead é tão cínico e endurecido pela personagens adultos. Fred, o pai de Archie, um Lodge e Cheryl Blossom, irmã do falecido Jason, sua vivência cotidiana de pobreza e crime quan- pequeno empresário do ramo da construção que pelo comando das líderes de torcida da escola, to qualquer detetive particular do hard boiled, in- tenta manter seu negócio de maneira honesta, ou o “quadrado amoroso” entre Archie, Betty, Ju- clusive recorrendo ocasionalmente a expedientes evitando acordos escusos com as famílias pode- ghead e Verônica. ilegais para obter as provas de que precisa. rosas da cidade, é interpretado por Luke Perry, Alguns episódios também apresentam ca- Os demais personagens também não são famoso galã da década de noventa por conta da sos investigativos isolados, como o terceiro episó- típicos adolescentes inocentes, apesar de inicial- série Barrados no Baile. Molly Ringwald, famosa dio, intitulado Body Double, no qual as persona- mente parecerem tipos comuns em dramas jo- nos anos oitenta com filmes adolescentes como gens Veronica e Ethel Muggs investigam quem é vens. Archie inicialmente parece o arquétipo do Gatinhas e Gatões (1984), O Clube dos Cinco (1985) o autor de um caderno que pratica body shaming mocinho e atleta popular da escola, mas a narra- ou A Garota de Rosa-Shocking (1986) interpreta nas meninas do colégio, enquanto paralelamente tiva subverte isso ao inserir um romance proibido Mary, a ausente mãe de Archie. Os personagens Betty e Jughead avançam em sua investigação da com uma professora, algo fruto do mal resolvido dos dois são pessoas cheias de falhas, que tentam morte de Jason ao tentarem descobrir o paradeiro Complexo de Édipo que Archie tem em relação fazer a coisa certa, mas cometem erros e decep- de Cheryl na noite do crime. à mãe que o abandonou. Betty pode soar como cionam os filhos, estando longe de remeter à ima- Os episódios são todos narrados por Ju- o arquétipo da “garota da casa ao lado”, mas de- gem romantizada de juventude que esses atores ghead, que executa as principais funções inves- monstra uma faceta traumatizada através de seu um dia representaram. tigativas na trama. Tal qual investigadores do hábito e ferir as próprias mãos quando fica ner- Ao longo da investigação são revelados movimento hard boiled, Jughead exibe um certo vosa e da conflituosa relação que ela tem com a segredos de muitas das famílias tradicionais da desencanto e fatalismo em relação à vida, algo re- mãe controladora, revelando uma vulnerabilida- cidade. A mãe de Betty esconde casos extracon- fletido em suas narrações, ou à possibilidade de de emocional na personagem. jugais e uma possível relação incestuosa entre a romper com as opressivas estruturas de poder que Esse diálogo com tipos de personagem filha mais velha, Polly, e o falecido Jason Blossom.

118 NEBLINA, SOMBRAS E MILKSHAKES: A SÉRIE RIVERDALE E A NARRATIVA POLICIAL HARD BOILED PARA JOVENS Lucas Ravazzano

A rica família de Veronica está ligada a negócios char e tomar milkshakes, para produzir um con- se juntando à mesma gangue de motoqueiros do imobiliários escusos, comprando secretamente traste com essas sombras, criando imagens dota- pai, representando o comprometimento moral do terrenos de áreas pobres da cidade para desen- das de aspecto não naturalistas. personagem. Ao mesmo tempo, na última cena volver empreendimentos de luxo, tentando iniciar São imagens que apresentam uma típica da temporada, Archie e o pai são vítimas de um um processo de gentrificação na cidade. A família cidade interiorana sob uma abordagem visual assalto na lanchonete do Pop que termina com o Blossom, cuja fortuna depende da produção de que faz esse lugar parecer fruto de um delírio fe- pai de Archie sendo baleado pelo ladrão, termi- xarope de bordo, está secretamente falida e recor- bril ou um pesadelo. Ao invés de uma reprodução nando a temporada em um gancho narrativo para rendo ao tráfico de drogas para se reerguer. naturalista desse espaço urbano, a série opta por a próxima. O final evidencia como o crime e a vio- Desta maneira, a primeira temporada da uma estética que, de certo modo, distorce o na- lência permanecem presentes na cidade à despei- série constrói um universo cheio de personagens turalismo da imagem para funcionar como um to da resolução do crime inicial que interrompeu de moral ambígua, indivíduos corruptos e uma reflexo da pouca clareza moral e corrupção dos a ordem em Riverdale. cidade na qual os poderosos tentam manipular personagens que habitam este espaço, um tipo o destino das pessoas através das sombras e de de escolha estilística que também é bastante pre- CONSIDERAÇÕES FINAIS uma fachada de honestidade, dialogando direta- sente em produtos audiovisuais do hard boiled. mente com o tipo de história contada pelas narra- O desencanto quanto à possibilidade de O presente artigo recorreu às teorias so- tivas policiais hard-boiled. extinguir o crime e a corrupção também se apre- bre narrativas policiais bem como a uma análise Essa impressão de uma cidade sombria e senta em Riverdale e é evidenciado pelo desfecho imanente e contextual da primeira temporada da corrompida é também transmitida pelas escolhas da primeira temporada. Ao apresentar o desenla- série Riverdale para demonstrar como o produto da fotografia. A cidade de Riverdale é constante- ce do crime, revelando o pai de Jason como o cul- se apropria das convenções da chamada narrativa mente tomada por neblina, suas imagens notur- pado pelo assassinato, os personagens parecem policial hard boiled recontextualizando esse mo- nas são cheias de sombras e há um uso constante retomar as suas vidas. O final, no entanto, deixa delo narrativo dentro de um esquema de ficção de iluminação neon, como a da lanchonete do claro que o crime e a corrupção ainda estão pre- seriada juvenil. Pop, na qual os personagens se reúnem para lan- sentes na cidade. Jughead termina a temporada A partir do que foi observado ao longo do

119 NEBLINA, SOMBRAS E MILKSHAKES: A SÉRIE RIVERDALE E A NARRATIVA POLICIAL HARD BOILED PARA JOVENS Lucas Ravazzano exame teórico e analítico do fenômeno, foi possí- atenção de sua audiência para estruturas de po- ro: Francisco Alves, 1979. vel depreender que a combinação desses dois ti- der e privilégio que essa audiência talvez ainda ARBEX JR, José. A Outra América - Apogeu, Cri- pos comuns de ficção seriada no contexto da tele- não tenha tido contato. Essa mescla também tra- se e Decadência dos Estados Unidos. São Paulo: visão estadunidense serve às demandas do canal balha para quebrar uma certa imagem idílica e ro- Moderna, 1995 de exibição, o CW, oferecendo algo que se adequa mantizada de juventude criada por muitas séries ao seu nicho de audiência ao mesmo tempo que adolescentes, nas quais os jovens não tem muito BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, possui elementos que diferenciam da série de ou- com o que se preocupar além de romances ou 1989. tros produtos do canal dando uma variação sufi- passar de ano, confrontando-os com dificuldades ciente para que o produto possa ser atrativo ao e dissabores da vida adulta e a impressão de que CAWELTI, John G. Canonization, modern litera- seu público ao invés de algo similar demais às ou- nem sempre tudo acaba bem ao final. ture and detective story. In: DELAMETER, Jerome H.; PRIGOZY, Ruth (Org.). Theory and practice of tras séries do canal. Através desse exercício analítico o presen- classic detective fiction. New York: Greenwood A análise imanente da temporada con- te texto busca elucidar como a produção de ficção Press, 1997. p. 5-16. tribuiu para que fosse possível compreender de seriada televisiva dos Estados Unidos constante- que maneiras a primeira temporada de Riverdale mente recorre a gêneros longevos e reconhecí- JAMES, P. D. Segredos do romance policial: his- torias das histórias de detetive. São Paulo: Três dialoga ou reverbera com os elementos típicos do veis, modificando ou amalgamando estruturas Estrelas, 2012. hard-boiled, revelando como a série se apropria conhecidas, operando em uma constante tensão de elementos temáticos, de estrutura narrativa e entre conformidade aos elementos típicos destes MAIA, Guilherme. Elementos para uma poética estéticos desse tipo de narrativa ficcional. gêneros e a busca por novos elementos de modo da música no cinema: ferramentas conceituais e metodológicas aplicadas na analise da musica dos Ao inserir o fatalismo e desencanto típicos a manter o interesse da audiência. filmes Ajuste Final e O Homem Que Não Estava Lá. do hard-boiled em uma trama juvenil, esse olhar 2007. 283 f. Tese (Doutorado em Comunicação e sobre a desigualdade e corrupção inerentes à so- REFERÊNCIAS Cultura Contemporâneas) – Faculdade de Comu- ciedade estadunidense funciona para seu público nicação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007. jovem como uma educação moral que chama a ALBUQUERQUE, Paulo de Medeiros e. O mundo emocionante do romance policial. Rio de Janei- 120 NEBLINA, SOMBRAS E MILKSHAKES: A SÉRIE RIVERDALE E A NARRATIVA POLICIAL HARD BOILED PARA JOVENS Lucas Ravazzano

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121 “QUANDO, COMO E ONDE VOCÊ QUISER”: MÚLTIPLAS TEMPORALIDADES EM “BLACK MIRROR: BANDERSNATCH” Ítalo Cerqueira (UFBA)1

1 Keywords: netflix; television; narrative; seriality; experiências diferenciadas para cada telespec- Resumo: Através do Mapa das Mediações de Jesus time. tador, já que sua condução é determinada por Martin-Barbero, esse artigo tem como objetivo ma- pear questões que problematizam as diversas tempo- quem assiste a partir de opções ofertadas. ralidades através do filme “Black Mirror” derivado da De forma hegemônica, as narrativas ficcio- A sinopse base do filme conta a história de série antológica “Black Mirror”. A nossa proposta pos- nais televisivas se constroem de forma fechada Stefan Butler, um jovem programador, que está sui um caráter exploratório, a fim de entender como o com início, meio e fim. Entretanto, há na história tempo é um ativo importante à Netflix e, por isso, con- empenhado em adaptar o livro “Bandersnatch” figura boa parte de suas ações e relações com os assi- movimentos que buscam quebrar com esse mo- para videogames de aventura, na empresa Tu- nantes, ao considerar não só as estratégias de cons- delo, como é caso das narrativas interativas. Nelas ckersoft. Seu chefe designa o desenvolvedor de trução narrativa, mas também como o discurso da é dado ao telespectador a chance de escolher os empresa perpassa o produto e se articula com o jogos Colin Ritman como seu tutor. Em quadros cotidiano do telespectador rumos de determinados personagens e a reso- secundários, o filme ainda aborda os transtornos Palavras-chave: netflix, televisão, narrativa, serialida- lução de conflitos, enquanto o final se abre para psicológicos enfrentados por Butler decorrentes de, tempo possibilidades alternativas. Seguindo esse mode- da morte precoce de sua mãe em um acidente lo, em 2018, a Netflix lançou em seu catálogo de Abstract: Through the Map of Mediations by Jesus de trem, além dos problemas gerados na relação Martin-Barbero, this paper aims to map issues that programação o filme “Black Mirror: Bandersnatch”, com seu pai. problematize the various temporalities in the film derivado de sua série “Black Mirror”. A obra original em que se baseia o jogo “Black Mirror” derived from the anthological series “Black Mirror”. Our proposal has an exploratory char- A série é uma antologia, cujos episódios de Butler foi criada pelo escritor fictício Jerome F. acter in order to understand how time is an important possuem histórias independentes um do outro, Davis, que enlouqueceu ao pensar em toda a in- asset to Netflix and, therefore, it constitutes a good mas tem no fio condutor de suas narrativas a re- part of its actions and relations with subscribers, when teratividade e caminhos possíveis que o leitor po- considering not only the strategies of narrative con- lação da sociedade moderna e sua relação impre- deria experenciar dentro de sua narrativa. Ou seja, struction, but also how the company’s discourse per- visível com a tecnologia. O filme opera narrativa- o filme foi pensado em oferecer ao telespectador meates the product and articulates with the daily life mente na mesma condução temática e apresenta of the viewer. a mesma experiência que o personagem principal um recurso técnico pouco explorado pela Netflix, 1 Mestrando em Comunicação e Cultura Contemporâneas, bolsista teve ao ler o livro. Capes, membro do Centro de Pesquisa em Estudos Culturais e que é a interatividade na decisão dos rumos de Tranformações na Comunicação (TRACC/Póscom-UFBA). E-mail: A construção de nossa análise busca ma- [email protected]. suas histórias. Desta forma, sua narrativa oferece 122 “QUANDO, COMO E ONDE VOCÊ QUISER”: MÚLTIPLAS TEMPORALIDADES EM “BLACK MIRROR: BANDERSNATCH” Ítalo Cerqueira (UFBA) pear questões que problematizam as diversas servar “Bandersnatch” atravessado por distintas O Mapa foi desenvolvido através de um temporalidades através do filme “Black Mirror: temporalidades tanto em sua concepção narra- esquema que se move a partir de dois eixos. O Bandersnacth”. Aqui não há como desconsiderar tiva, como também no desenvolvimento e apli- eixo diacrônico ou de longa duração, conecta de que forma o produto se localiza nas lógicas de cação de seus atributos técnicos. Nosso lugar de as Matrizes Culturais aos Formatos Industriais, produção da Netflix e nas competências de recep- mirada parte para pensar o filme articulado a sua cuja formação revela as distintas temporalidades ção de seus assinantes. Para isso, consideramos plataforma de transmissão, através da ideia de que atravessam os produtos culturais. Para sua não só as estratégias de construção narrativa, mas tecnicidade pensada por Martín-Barbero (2009), a compreensão, é necessário recorrer à Raymond também como o discurso da empresa perpassa qual nos ajuda a entender o fenômeno não ape- Williams (1979), que busca nos conceitos de arcai- o produto e se articula com o cotidiano do teles- nas pela ideia de tecnologia enquanto meros ar- co, residual, dominante, emergente e novo para pectador. Nosso fenômeno nos convoca a pensar tefatos técnicos, como também nos faz superar entender de que forma os processos culturais são a partir do Mapa das Mediações de Jesús Martín- a concepção de novidade tecnológica enquanto constituídos a partir de elementos provenientes -Barbero, pois queremos analisar de que forma ruptura dos tecidos temporais, responsável por de diferentes temporalidades (GOMES, 2011). É todas essas nuances se articulam com os campos inaugurar novos tempos a partir de sua criação através deste eixo que podemos observar como das mediações e nos colocam a pensar sobre pas- (ANTUNES; GUTMANN; MAIA, 2018). “Bandersnatch” convoca e se articula com as diver- sados, presentes e futuros. A nossa proposta tem Ao pensar o Mapa das Mediações, Mar- sas matrizes culturais e/ou midiáticas. um caráter muito mais exploratório por entender tín-Barbero (2009) busca analisar a articulação O eixo sincrônico, por sua vez, conecta as que o tempo é um ativo caro à Netflix e, por isso, constitutiva entre cultura, comunicação e política lógicas de produção às competências de recep- configura boa parte de suas ações e relações. através de suas complexidades. A proposta do au- ção. É através dele que é possível compreender tor é partir para o campo das mediações, lugar de como as estruturas e as dinâmicas do processo MEDIAÇÕES, MATRIZES E MÚLTIPLAS TEMPO- enfrentamento e relação entre os receptores e os produtivo se articulam com as competências cul- RALIDADES meios, assim, ele se distancia da prática comum turais de grupos sociais (Idem). As relações tem- Apesar de ter sido recebido enquanto uma de analisar apenas as lógicas da produção ou da porais sincrônicas têm representação no tempo grande novidade pelo seu público, é possível ob- recepção (GOMES, 2011). presente do processo comunicativo.

123 “QUANDO, COMO E ONDE VOCÊ QUISER”: MÚLTIPLAS TEMPORALIDADES EM “BLACK MIRROR: BANDERSNATCH” Ítalo Cerqueira (UFBA)

A institucionalidade conecta as matrizes (ANTUNES; GUTMANN; MAIA, 2018). Os recursos tempos históricos são apropriados coletivamente culturais às lógicas de produção, que diz da regu- de medição de tempo em nosso objeto de análi- (ANTUNES; GUTMANN; MAIA, 2018). Em “Banders- lação dos meios, até as políticas e discursos ado- se não se dão pela contagem cronometrada, mas natch”, o âmbito da socialidade é similar ao fenô- tados institucionalmente por empresas. A Netflix, a partir dos momentos específicos e delimitados meno observado pelos conteúdos audiovisuais responsável pela produção e distribuição de “Ban- na narrativa, o que desloca a responsabilidade do na internet, entre o público, há um imperativo da dersnatch”, adota um discurso em que são dadas cronômetro em balizar inícios, meios e fins, para imediatez em compartilhar impressões sobre os todas as possibilidades de liberdade ao seu assi- as marcas na memória da narrativa. produtos nas redes sociais e apresentar em pri- nante, no sentido dele se sentir à vontade para Na instância do consumo, ressaltamos pri- meira mão achados que podem ter passado des- decidir o que ele deve fazer dentro da plataforma. meiramente a Ritualidade, responsável por me- percebido por muitas pessoas. Lógico, este é um certame com limites bem defini- diar os Formatos Industriais às Competências de dos. Em uma perspectiva temporal é possível ob- Recepção. Ela diz sobre as gramáticas de leituras AS MATRIZES DE “BANDERSNATCH” servar como a empresa consegue se articular com ligadas às “condições sociais do gosto, marcadas Por conta da grande quantidade de histó- discursos construídos pelo mercado televisivo ao por níveis e qualidade de educação, por posses rias publicadas e avolumadas sobre seus heróis longo do tempo, a fim de se diferenciar como algo e saberes na memória [...]” (MARTÍN-BARBERO, há muito tempo, a editora de quadrinhos e mí- novo, inusitado, diferente de tudo aquilo que já 2009, p. 19). No nosso caso, essa medicação diz dia Marvel Comics recorreu à ideia de multiverso foi visto. muito sobre o que e como o uso das novas telas para tentar reparar as quebras cronológicas e os Localizado entre as Lógicas de Produção sensíveis e portáteis reorganizam o nosso cotidia- diversos erros de continuidade percebidos pelos e os Formatos Industriais, a mediação da Tecni- no e como a marcação do tocar passa a constituir fãs em suas narrativas. No início de 2019, a em- cidade diz não de tecnologias, mas do modo de nosso modo de ler e se relacionar com os conteú- presa lançou nos cinemas o longa-metragem de fazer. Sua perspectiva temporal possibilita entre- dos audiovisuais. animação “Homem-Aranha no Aranhaverso”, cuja ver os movimentos de transformações de mate- Por fim, a Socialidade, que liga as Com- premissa principal do filme confluía diversos ho- rialidades e sensibilidades associadas a formas petências de Recepção às Matrizes Culturais, diz mens-aranhas de mundos e tempos distintos expressivas e percepções sociais das tecnologias sobre como os processos comunicacionais e seus em um mesmo universo. A ideia construída aqui

124 “QUANDO, COMO E ONDE VOCÊ QUISER”: MÚLTIPLAS TEMPORALIDADES EM “BLACK MIRROR: BANDERSNATCH” Ítalo Cerqueira (UFBA) considera que o Homem-Aranha exista e viva de íntima relação com a construção narrativa de uni- que compete aos programas denominados inte- formas diferentes, em outros tempos e universos versos múltiplos observados nas HQs há algum rativos2. Antes de mais nada, cabe aqui destacar possíveis. tempo, entretanto elas não se esgotam apenas que ao inferir sobre as matrizes culturais, Martín- Em nosso objeto de análise, a construção por aqui. -Barbero as localizam fora da cultura midiática, do multiverso não se dá a partir de realidades pa- O filme é uma metalinguagem, pois o te- entretanto, acreditamos que as matrizes também ralelas que transcorrem ao longo do tempo, mas lespectador sente “estar jogando” em um filme so- se constituem na mídia, justamente a partir da sim de realidades abertas e construídas a partir bre videogames. Além disso, toda a operaciona- consolidação da cultura midiática (GOMES, GUT- das decisões e caminhos tomados por seu per- lização sobre qual a decisão o personagem deve MANN, VILAS BÔAS, 2019). É neste sentido que sonagem principal. Desta forma, o filme assistido tomar remete aos primeiros jogos, como Ping- podemos observar que o público brasileiro que por uma pessoa não foi o mesmo assistido por ou- -Pong de 1967, em que duas raquetes de tênis cresceu e consumiu televisão durante a década tra, porque todo o universo construído foi pauta- localizadas em lados opostos da tela respondiam de 90, deve reconhecer nas estratégias narrativas do a partir das decisões individuais e disponíveis aos comandos de subir e descer, enquanto tenta- de “Bandersnatch” a mesma utilizada no programa aos telespectadores. A utilização de multiversos vam tocar uma bola que se movia para um lado e “Você Decide” da Rede Globo de Televisão. A cada por “Bandersnacht” provoca uma construção de para o outro. Mas, em “Bandersnatch”, os dois co- semana, um programa novo apresentava uma his- tempos, que não se fecham em si (MANNA; GO- mandos são responsáveis por decidir o trajeto da tória diferente com finais alternativos, cuja deci- MES, 2018). história e a escolha deve ser dada em um tempo são era tomada pela maioria dos telespectadores Em uma cena onde Butler está sentado na de 5 segundos, caso contrário, a narrativa segue através do telefone. O final preferido era apresen- sede da Tuckersoft para acertar sua forma de pres- o caminho que o algoritmo da plataforma decidir tado logo depois do encerramento das votações. tação de serviço à empresa, o telespectador pode ser o mais adequado. Em seu episódio de estreia, o público precisava escolher uma das duas opções possíveis (presen- Se está tão evidente que nosso objeto decidir se um delegado denunciaria ou não seu cial ou remota) e, seja ela qual for, duas realida- possui inspirações nos videogames, indicamos 2 O termo “programa interativo” não nos parece o mais adequado des distintas já estão construídas transcorrendo que são nas produções televisivas que estão suas para denominação desse tipo de produção audiovisual, pois sua semântica faz sugerir que a interação do telespectador com o em tempos paralelos. Essas estratégias possuem principais matrizes midiáticas, principalmente ao conteúdo só se faz diante de suas lógicas. Entretanto, como não possuímos um termo equivalente, utilizaremos esse com ressalvas. 125 “QUANDO, COMO E ONDE VOCÊ QUISER”: MÚLTIPLAS TEMPORALIDADES EM “BLACK MIRROR: BANDERSNATCH” Ítalo Cerqueira (UFBA) filho pego em filmagens de um assalto. A votação opções possíveis e pré-determinadas de escolhas, bo dialogaria com as matrizes midiáticas de seus era apenas pelo sim ou pelo não (COSTA, 2018). ou seja, os rumos possíveis de cada história já es- produtores. Assim, ao imaginarmos formas de in- Dada às devidas proporções e disponibi- tão traçados: teratividade utilizada pela televisão, conseguimos lidades tecnológicas de cada época, percebe-se Afinal, nem mesmo a ampla gama acessar os reality shows3 enquanto um gênero de narrativas disponíveis nos mais simetrias entre as estratégias utilizadas: apenas complexos jogos de computador que possui em sua trajetória o voto popular como duas opções dadas, decisões de cunho moral pos- ou nas mais intricadas obras de hi- estratégia de construção de suas narrativas. Big tas e os caminhos a serem seguidos já estavam perliteratura pode escapar dos limi- Brother, The Voice e Survivor são alguns formatos tes previamente definidos pelas es- previamente definidos. Entretanto, há também colhas a partir das quais o próprio mundialmente populares que solicitam semanal- mudanças nessa relação: com o “Você Decide”, ao sistema que as enuncia foi configu- mente de sua audiência a decisão de manter ou rado. A aparente imprevisibilidade telespectador, era dado apenas o final como op- eliminar seus participantes e, a partir de então, se- dos resultados de interação com ção de escolha, enquanto que em “Bandersnatch”, estruturas interativas bem planeja- guir com suas competições. É interessante ressal- as opções são apresentadas ao longo de toda a das decorre do poder quantitativo tar que esses programas são considerados jogos das tecnologias digitais. Afinal, tra- narrativa; a televisão via radiodifusão é um meio ta-se sempre de selecionar informa- com narrativas abertas (ou aparentemente sem de transmissão espectatorial coletivo e por isso ções de um banco de dados finito, scripts). Então, nosso filme em questão ao tentar o final era escolhido através de uma maioria sim- recombinando elementos para for- emular para o telespectador que é dele a decisão mar textos que, mesmo não tendo ples, enquanto via streaming na Netflix as deci- sido necessariamente previstos, de abrir portas para mundos e tempos possíveis, sões são individuais, realizadas dentro da própria terão sido sempre previsíveis (FRA- não só convoca as marcas do videogame, mas traz plataforma, instantaneamente, sem a necessida- GOSO, 2006, p. 20). consigo a narrativa fortuita dos reality shows, em de de ligações. que a cada escolha elementos inesperados po- Evidentemente que o “Você Decide” só Os programas interativos trazem consi- dem ocorrer. apresenta marcas das matrizes televisivas junto à go uma promessa de que o telespectador possui Ao deixar que o telespectador escolha o “Bandersnatch” se considerarmos o contexto bra- o poder de determinar os rumos da narrativa. A sileiro, entretanto o filme é de origem inglesa e 3 A literatura também possui livros que se constroem a bem da verdade, o que estão postas são apenas pouco ocasionalmente o programa da Rede Glo- partir de narrativas interativas, entretanto, não vamos abordá-los neste artigo. 126 “QUANDO, COMO E ONDE VOCÊ QUISER”: MÚLTIPLAS TEMPORALIDADES EM “BLACK MIRROR: BANDERSNATCH” Ítalo Cerqueira (UFBA) caminho que deva seguir, a Netflix radicaliza para A NOÇÃO DE LIBERDADE ENQUANTO MODO burocracia processual das demais empresas de TV a narrativa de suas produções seu modus operandi. DE FAZER por assinatura mais “tradicionais”. Todo o conceito Consagrada pelo vasto catálogo de programação A construção desse discurso em torno da de adesão, permanência e cancelamento de as- que possui, que rende memes e brincadeiras na experiência de liberdade perpassa todo o modo sinatura na Netflix passa pela noção da vontade internet sobre passarmos mais tempo escolhendo de fazer da Netflix. Enquanto produtora de con- imperativa do consumidor, mas não só. algo para assistir do que realmente assistindo, a teúdo, a empresa faz questão de se dizer diferente Há advérbios de modo, lugar e tempo que empresa parece testar formas de incorporar essa de outros estúdios, pois ela alega que promove o nos parece ser a chave para compreendermos a sua marca também em seus produtos. A estraté- exercício da liberdade criativa ao não interferir no construção discursiva de liberdade pela Netflix. gia é dizer para o seu assinante que ele pode exer- conteúdo de suas séries e filmes. Essa liberdade Logo quando chegou ao Brasil, um de seus prin- cer sua liberdade da forma que bem quiser dentro de produção é deveras questionável, pois a sele- cipais slogans era: “assista quando, como e onde da plataforma. Entretanto, em um dos caminhos ção por si só atesta os limites dessa política. quiser”, através dele já podíamos ter a dimensão da narrativa de “Bandersnatch”, em que uma das Sobre o consumo, ao acessar a página de que é a vontade do assinante que determina opções é a própria Netflix, Butler, ao perceber principal da Netflix Brasil, deparamo-nos com a a relação com a plataforma. Entretanto, neste ar- que estava sendo controlado por alguém do fu- seguinte mensagem: “filmes, séries e muito mais. tigo, interessa-nos principalmente o emprego do turo através da plataforma, profere a sua psicólo- Sem limites. Assista onde quiser. Cancele quando advérbio “quando”, que nos parece ser a chave ga: “eles têm a ilusão do livre-arbítrio, mas sou eu quiser”. Com um olhar despretensioso, imagina- para compreendermos a questão em torno da li- quem decide o final”. Talvez, essa seja uma frase mos que se trata apenas de um informativo pro- berdade proferida pela Netflix na sua relação com emblemática e faz com que o personagem verba- mocional, convocando àqueles que não são assi- o tempo. lize uma das propostas da empresa: a de oferecer nantes a ingressarem em sua base. A Netflix tenta “Quando” representa o repentino momen- toda liberdade ao seu assinante dentro de limites contrapor a simplicidade de contratar seus servi- to de desejo em realizar qualquer ato: “se eu que- impostos pela própria Netflix. No final das contas, ços que não precisam de nenhum outro interme- ro assistir a um filme, eu faço agora”, ou “não quero é ela quem decide até onde vai essa tal liberdade. diário que não seja um pequeno cadastro, um car- mais manter minha assinatura, eu cancelo”. Essa é tão de crédito e uma conexão na internet, a toda uma relação forte estabelecida com o presente,

127 “QUANDO, COMO E ONDE VOCÊ QUISER”: MÚLTIPLAS TEMPORALIDADES EM “BLACK MIRROR: BANDERSNATCH” Ítalo Cerqueira (UFBA) em que a imediatez deve ser uma regra pautada importante ao produzir per- seu início e término. Ela permite que o tempo da na relação instantânea entre a vontade e a con- manentemente certo tipo narrativa se entrelace, ou seja, o que já passou e de equivalência entre tempo cretude da ação. Essa é uma percepção bastante presente e atualidade. O “pre- o que ainda estar por vir podem ser acessados a inerente à modernidade, cuja a ênfase colocada sentismo” assim teria raízes qualquer momento. A linearidade de transmissão na percepção difusa da dimi- no presente achata passado e futuro no agora, a é apenas uma condição dada a priori, pois os sal- nuição do sentido histórico experiência e a expectativa já não são mais con- em favor de um horizonte tos no tempo narrativo podem conformar outros sideradas por conta do “presentismo” (HARTOG, restrito somente ao presen- aspectos de não-linearidade. te (RIBEIRO; LEAL; GOMES, 2013). Construir esse valor de que tudo opera a 2017, p. 38). Em “Bandersnatch”, não é possível acom- partir do atendimento imediato dos desejos rees- panhar o tempo de transmissão através de uma creve como a vida cotidiana se relaciona com a O retorno e o avanço são também marcas barra linear, pois ela nem sequer existe. Em uma produção, apagando formas passadas e emba- dessa percepção, tudo pode ser posto no presen- narrativa que se expande para outros tempos e çando possibilidades de mudança. te, o passado e o futuro podem ser acessados pelo mundos possíveis, faz sentido a inexistência de Nessas reflexões, desenvol- agora. Uma das características desenvolvidas pe- um instrumento que possa medir o tempo, mas ve-se tanto uma percepção de um “presentismo” (ou las plataformas de streaming ao assistir qualquer isso não quer dizer que não haja essa medição. “presenteísmo”) cotidiano conteúdo é: iniciar sua execução no momento Nesse sentido, as escolhas lançadas nas telas se quanto a sua crítica. A partir que preferir, poder também pausar, avançar ou tornam as marcadoras temporais, ou seja, ao invés da crise da ideia de uma clara inteligibilidade do regime de retrocedê-la, o que representa o domínio do te- da cena que aconteceu aos 32 minutos do filme, experiência temporal alicer- lespectador sob a progressão do conteúdo que nosso referencial se torna a cena que aconteceu çado em uma compreensão após a escolha do café da manhã. Ainda mais, os de que o passado ilumina- está sendo transmitido. Se fôssemos considerar va o futuro ou que o futuro a TV por radiodifusão, esse recurso só estaria dis- recursos de retroceder e avançar só se tornam como promessa justificava ponível com auxílio de um gravador. A sua bar- possíveis também a partir das escolhas: se a opção as coisas presentes (HARTOG, 2005), teríamos um regime ra de progresso tem como função manter uma eleita for a incorreta, o resultado será Game Over, de apologia do instante, no marca cronológica de cada conteúdo, balizando a partir daí você escolhe se quer ir para os crédi- qual a mídia joga um papel 128 “QUANDO, COMO E ONDE VOCÊ QUISER”: MÚLTIPLAS TEMPORALIDADES EM “BLACK MIRROR: BANDERSNATCH” Ítalo Cerqueira (UFBA) tos ou tentar mais uma vez; caso a opção eleita for que as atrações têm um prazo determinado de lidade “própria de uma estéti- possível, você segue no fluxo da narrativa. Com disponibilização e que há a necessidade de lança- ca em que o reconhecimento embasa parte importante do ou sem barra de progressão, o tempo está sendo mentos periódicos, ou mesmo quando a narrativa prazer e é, em consequência, contabilizado, mas com referenciais distintos. dispensa o tempo cronometrado, os recursos de norma de valores dos bens simbólicos (MARTÍN-BARBE- É curioso notar que a depender das esco- mediação, aferição, estão operando o tempo todo. RO, 2006, p. 298). lhas feitas por cada telespectador, a experiência pode ter sido a de um média-metragem, com no A RENTABILIZAÇÃO DO COTIDIANO “Bandersnatch” se realiza na construção de mínimo de 40 minutos, ou de um longa-metra- Compreender essa liberdade enquanto uma gramática não só do ver, do ouvir, como tam- gem como máximo de 90 minutos (TOMÉ, 2018). forma configuradora das plataformas televisivas bém do tocar. A nossa relação com as telas sensí- Apesar dessa variação entre o tempo de consumo de streaming é entender que essa construção se veis possibilitou que muitas frentes fossem explo- do filme, é claro que o padrão da indústria foi to- articula com nossa cotidianidade, com os ciclos radas nesse sentido e o nosso filme analisado se mado enquanto norteador de sua produção, ape- de nossas vidas. A televisão opera a partir da ra- encontra em uma delas. Não que o toque do con- sar de haver cinco horas de material gravado dis- cionalização do tempo, muito próprio do sistema trole remoto já não fazia parte dessa construção, ponível e a ser explorado. produtivo e que precisa ser medido. Desta forma, mas algumas relações mudam com as novas te- A nossa análise nos aponta que, apesar das o tempo da televisão se insere no tempo cotidia- las. A televisão enquanto meio espectatorial que possibilidades que se abrem com os usos tecnoló- no, no mesmo movimento em que leva a rotina, ocupa a centralidade de grande parte das casas gicos, há uma percepção de que marcas construí- a cotidinanidade, ao tempo de mercado (VILAS do mundo inteiro, passa agora a disputar sentido das por processos históricos permanecem, mas BÔAS, 2012). com telas menores, portáteis e individuais, sendo Assim, o tempo do seriado são ressignificadas por novos atores, novos meios que o ato de segurar e tocar a tela para acessar o fala a língua do sistema pro- e novas relações. Apesar de não se pautar em dutivo – a da estandartização conteúdo passa a ser o elemento de reconfigura- uma grade institucionalizada de programação, -, mas por detrás também se ção. o tempo é um ativo bastante caro para Netflix. A podem ouvir outras lingua- gens: a do conto popular, a Atualmente, para as métricas do merca- sua ideia de um catálogo infinito não demonstra canção com refrão, a narrati- do não é mais suficiente o quanto de tempo foi va aventuresca, aquela seria- 129 “QUANDO, COMO E ONDE VOCÊ QUISER”: MÚLTIPLAS TEMPORALIDADES EM “BLACK MIRROR: BANDERSNATCH” Ítalo Cerqueira (UFBA) desprendido para assistir determinado canal e/ou Caso seja decidido continuar a assistir mesmo as- segmento de filmes e séries dos anos 80 e 90 pode conteúdo, mas também quais são suas escolhas, sim, uma opção linear do filme será apresentada. ter vindo do forte interesse de seus assinantes por em que opção o telespectador tocou. O consumo conteúdo dessa época, uma tendência que pode de “Bandersnatch” gera um banco de dados que é A NOSTALGIA NA PARTILHA SOCIAL ter sido captada e analisada pelo seu algoritmo. muito caro para a Netflix, já que ele diz sobre não Na Netflix, “Black Mirror” se constituiu en- O catálogo da plataforma aparenta manter uma só comportamentos, mas também de decisões de quanto uma série antológica que conta a história mescla entre produtos mais antigos e atuais, po- cunho psicológico (JONES, 2019). Toda a liberda- de um presente alternativo ou de um futuro dis- rém os últimos lançamentos de séries e filmes pro- de proporcionada pela Netflix vem tutelada pela tópico. Na realidade não é muito fácil identificar duzidos por ela indica uma tendência ao nostálgi- prática contínua da vigilância, controle e da renta- em que tempo e lugar suas histórias são narradas, co. “Stranger Things”, “ Everything Sucks” e “Wet Hot bilização do tempo cotidiano. porém cada episódio traz como tema central uma American Summer: First Day of Camp” são alguns Ao tentarmos assistir ao conteúdo pela sociedade que precisa lidar com as consequências exemplos de series produzidas na atualidade, mas televisão, nos foi apresentada a seguinte men- imprevistas de uso das tecnologias. Entretanto, o com ambientação dos anos 80 ou 90. Não somen- sagem: “Não é possível reproduzir este episódio. filme “Bandersnatch”, que é derivado da franquia, te isso, mas séries que foram consagradas nessas Você precisa assistir a este episódio especial em apresenta um movimento contrário e inédito ao décadas ganharam novas temporadas, como: “Full uma tela touchscreen para escolher opções na considerar todo o conjunto da obra, pois sua nar- House” e “Gilmore Girls”. tela. Assista na TV, celular ou tablet”. Apesar de rativa é ancorada e localizada no ano de 1984, na Esse sentimento de vivenciar novamente o haver uma explicação sobre questões técnicas, é Inglaterra. Desta forma, o problema apresentado passado através de seus elementos e formas pa- curioso nessa mensagem que há um acento so- não é com possíveis tecnologias que poderiam rece ser a tônica dessa nostalgia que atravessa os bre as telas touchscreen que são bem comuns a existir no presente ou no futuro, mas com artefa- assinantes da Netflix e a fazem perceber que esse aparelho portáteis, ou seja, o consumo do filme tos tecnológicos que de fato existiram: os video- é um segmento interessante para investir. Nesse aponta para a ordem do individual, com escolhas games populares dos anos 80. sentido, a nostalgia passa a não ser apenas um personalizadas, ao que aparenta não é um espaço Acontece que essa é uma estratégia adota- sentimento, mas também um elemento de parti- para discutir a melhor opção em pares ou grupos. da de maneira reiterada pela Netflix. A aposta no lha, em que esse público se reconhece enquanto

130 “QUANDO, COMO E ONDE VOCÊ QUISER”: MÚLTIPLAS TEMPORALIDADES EM “BLACK MIRROR: BANDERSNATCH” Ítalo Cerqueira (UFBA) pertencente a determinada época e lugar, através uma listagem reiterados vídeos que nem sequer tempo que “Bandersnatch” apresenta em articula- de marcas vividas e com potencial de senti-las no- considera o aspecto da nostalgia como algo mar- ção com a Netflix, plataforma responsável não só vamente no presente. Entretanto, o tempo linear cante dentro da narrativa. Importa mais explicar por sua produção, como também distribuição e e ascendente estabelece com a nostalgia uma re- e traçar as possibilidades de finais, os caminhos transmissão. Entretanto, as questões identificadas lação problemática, pois o que se observa na pro- possíveis, ao invés de comentar elementos que não se restringiram apenas às lógicas de produ- dução televisiva é que o sentimento nostálgico ajudaram a construir a ambiência dos anos 80. A ção, mas também se revelou no âmbito do consu- não é apenas um apego acrítico ao passado, nem interatividade é o que se sobressai. mo. Por isso, o Mapa das Mediações foi articulado uma forma de escapar do presente. Seus tensio- Apesar da Netflix se empenhar em tratar ao nosso problema de pesquisa enquanto refe- namentos também se encontram no tempo futu- a nostalgia como elemento potencializador da rencial teórico-metodológico, a fim de investigar ro, a partir de uma relação com a memória e um socialização da série entre seus assinantes, as di- através das mediações como o tempo se apresen- potencial criativo (GOULART; LEAL, 2018). versas entradas narrativas ocupam a centralidade ta em nosso fenômeno não enquanto uma ques- A Netflix construiu em “Bandersnatch” essa das apropriações e afetos. Junto a isso, soma-se tão específica, mas diversas. ambiência de nostalgia para apresentar um novo o elemento da instantaneidade mais uma vez, No processo de investigação, surgiram no- recurso técnico, confrontando sentimentos rela- através de algumas ações: assistir ao filme em ções e dimensões diferentes do tempo que per- cionados ao passado através de uma experiência sua primeira hora de lançamento, ser o primeiro passam pela plataforma, narrativa e cotidiano, por que aponta para um possível futuro da platafor- a desvendar as pistas deixadas pelos produtores conta disso abrimos diversas frentes de análise. ma. “Nessa perspectiva, o passado não pode ser e diretores, traçar logo todos os caminhos narra- Entretanto, acreditamos que em pesquisas futu- experenciado através da memória a não ser como tivos possíveis e ter a primeira opinião/impressão ras cada uma dessas nuances possa ser bastante objeto de consumo rápido, como um constructo sobre o filme. produtiva em trabalhos focados em especifici- fragmentado e espectacularizado” (Idem, p.72 e dades temporais, por exemplo: como o conceito 73). CONSIDERAÇÕES FINAIS de presenteísmo se apresenta na Netflix, como Entretanto, ao digitar “Bandersnatch” na O esforço empregado nesse artigo foi de a nostalgia é convocada nas produções próprias opção de busca do Youtube é possível observar compreender as problemáticas em relação ao da plataforma, ou até mesmo como a articulação

131 “QUANDO, COMO E ONDE VOCÊ QUISER”: MÚLTIPLAS TEMPORALIDADES EM “BLACK MIRROR: BANDERSNATCH” Ítalo Cerqueira (UFBA) entre cotidianidade e o mercado televisivo possui passado, mas ainda opera no presente; e os emer- mo, são apenas reiterações de práticas já realiza- movimentos de transformações e reiterações. Ou- gentes, que são novos elementos alternativos ou das por outros programas televisivos. tro caminho que pode ser experimentado é traba- opostos aos dominantes e lhes tensionam. Já os Na televisão via radiodifusão é comum per- lhar mais efetivamente com as figuras de histori- elementos novos, são novidades dento da estru- cebermos que o “ao vivo” é uma marca geralmen- cidades. Aqui reconhecemos que nosso trabalho tura hegemônica, enquanto que os elementos ar- te presente em programas interativos, entretanto renderia também ao explorar o gênero de filmes caicos são marcadamente vinculados ao passado o recurso inexiste até então quando nos referimos de ficção científica ou a experiência junto às telas (GOMES, 2011). à Netflix. Isso não quer dizer que haja seu apaga- sensíveis. Percebemos que o discurso construído em mento total na relação com a plataforma, pois sua Em última instância, ao considerarmos as torno da marca Netflix gira em torno da novidade força aparece ainda de modo residual. A instanta- distintas temporalidades previstas por Raymond e da diferenciação com os padrões televisuais já neidade e o direto são características que confor- Williams (1977) em sua hipótese cultural de estru- existentes, convocando a ideia de liberdade, sim- mam nossa relação com o “ao vivo”, então, apesar tura de sentimento podemos identificar quais os plicidade e livre-arbítrio. Entretanto, a empresa de não ter o selo na tela, nem um mediador que elementos que tensionam mudanças e continui- opera dentro de uma cadeia produtiva e lógicas faça a simulação do agora, é através do toque na dades em nossa relação na produção e consumo dominantes de mercado, que passa desde os con- tela, em um ato que dispara em imediato a ação, de filmes pela televisão. Primeiramente, ele des- tratos firmados, a produção de seus filmes, até dis- que suas nuances ficam evidentes. creve o dominante, o residual e o emergente en- tribuição de seus produtos. Tudo que se apresen- Os elementos emergentes e arcaicos não quanto categorias importantes para descrição de ta enquanto novo, não passa de rearranjos dentro foram identificados, pois como muito ainda está temporalidades distintas dos processos culturais. da lógica e estrutura já construída. A duração do em processo de transformação, fazer essa qual- A análise cultural não deve, portanto, restringir-se filme e o padrão narrativo com uma apresentação, quer defesa nesse sentido pode nos levar ao erro, aos elementos dominantes de um determinado clímax e desfecho são práticas hegemônicas da como identificar a novidade, ao invés da emer- processo cultural, pois elementos historicamen- indústria televisiva e cinematográfica. Já os recur- gência ou acreditar que processos que já não exis- te variáveis e variados também se articulam ao sos interativos, apesar de serem apresentados e tem mais, ainda possuem força residual. processo, como os residuais, que se formou no avaliados como uma grande novidade no consu- “Black Mirror: Bandersnatch” é um produto

132 “QUANDO, COMO E ONDE VOCÊ QUISER”: MÚLTIPLAS TEMPORALIDADES EM “BLACK MIRROR: BANDERSNATCH” Ítalo Cerqueira (UFBA) que suscita bastante a discussão em torno das pro- servatoriodatelevisao.bol.uol.com.br/historia- tros tempos possíveis: disputas de valores e blemáticas do tempo, aqui rastreamos algumas e -da-tv/2018/08/os-18-anos-do-final-do-voce-de- convenções do jornalismo em Tempos Fantás- cide-interativo-pioneiro-da-tv-brasileira> Acesso ticos. Contracampo, Niterói, v. 37, n. 03, pp. 169- apontamos para possíveis desdobramentos. em: 05 de mar. 2019. 190, dez. 2018/ mar. 2019. FERREIRA, T. Os multiversos da Marvel. Saraiva. GUTMANN, J.; VILAS BÔAS, V.; GOMES, I. Teste- São Paulo, 20 de agosto de 2012. Disponível em: munha, vivência e as atuações do repórter na REFERÊNCIAS https://blog.saraiva.com.br/os-multiversos-da- TV brasileira. Significação: Revista de Cultura 10 séries recentes que resgatam o melhor dos -marvel/ Audiovisual, v. 46, n. 51, 31 jan. 2019. anos 70, 80 e 90. Guia da Semana, 2018. Dispo- FRAGOSO, Suely. Reflexões sobre a convergên- HARTOG, François. Regimes de historicidade: nível em: Acesso GARRET, Filipe. Lista reúne os primeiros jogos em: 03 de mar. 2019. lançados no mundo, de SpaceWar a Tank. JONES, R. Netflix está armazenando todas suas Techtudo. São Paulo, 23 de janeiro de 2016. escolhas em Black Mirror: Bandersnatch para ANTUNES, E.; GUTMANN, J. F.; MAIA, J. P. No Tem- Disponível: https://www.techtudo.com.br/listas/ uso futuro, diz pesquisador. Gizmodo, 2019. po do Zoio: Matrizes midiáticas, temporalida- noticia/2016/01/lista-reune-os-primeiros-jogos- Disponível em: Acesso em: 03 de mar. 2019. como categoria cultural: um lugar no centro CHACON, J. Fãs mapearam Black Mirror: Ban- do mapa das mediações de Jesús Martín-Bar- LEAL, Bruno Souza; RIBEIRO, Ana Paula Goulart. dersnatch para mostrar onde leva cada esco- bero. IN: Revista Famecos. Mídia, cultura e tecno- Em busca do tempo: memória, nostalgia e uto- lha. Garotas Geeks, 2019. Disponível em: Acesso em: 05 de mar. 2019. a hipótese cultural da estrutura de sentimen- MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às media- ções. Comunicação, Cultura e Hegemonia, 4ª, COSTA, F. Os 18 anos do final do Você Deci- to. IN: GOMES, Itania e JANOTTI JR., Jeder (Orgs). Rio de Janeiro, ed.UFRJ, 2006. de, interativo pioneiro da TV. Observatório Comunicação e Estudos Culturais, Salvador, Edu- fba, 2011. da Televisão. 2018. Disponível em:

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134 A QUESTÃO DA AUTORIA E O ESTILO NAS SÉRIES FICCIONAIS TELEVISIVAS: UMA ANÁLISE DE FARGO Ludmila Moreira Macedo de Carvalho1

1 Keywords: television style; authorship; television 2015); Jane Campion, autora de O Piano (1993), Resumo: Através da análise da primeira temporada series; Fargo; Coen brothers. que criou a série Top of the Lake (2013-2017) para da série de ficção Fargo (2014-2015), criada pelo roteirista e produtor Noah Hawley a partir do filme o canal Sundance, entre outros. de longa-metragem homônimo dos diretores Ethan INTRODUÇÃO e Joel Coen (1996), buscaremos verificar em que Embora o trânsito de profissionais de um medida a noção de autoria nas séries de ficção Em 2014, o jornal The Guardian publicou campo para outro não seja em si nenhuma novi- televisivas contemporâneas possui duas dimensões dade no mercado de bens simbólicos (BOURDIEU, inter-relacionadas: contextualmente, ela atua como uma reportagem com a seguinte pergunta: “por- uma construção social no campo de produção; que diretores de cinema estão dominando a tele- 2002), ele nos parece relevante em suas peculiari- textualmente, ela corresponde ao conjunto de marcas visão?” (HELMORE, 2014). A matéria observava a dades atuais na medida em que chama a atenção estilísticas impressas nas obras. quantidade de realizadores e realizadoras consa- para dois fatores: o primeiro deles é o reconheci- Palavras-chave: estilo televisivo; autoria; séries grados no campo do cinema que têm se associa- mento da televisão como um meio com possibili- televisivas; Fargo; Joel e Ethan Coen do, com certa frequência, à séries televisivas, seja dade de trabalhos autorais - e, consequentemen- na condição de diretores, roteiristas, criadores te, dignos de investigação meticulosa por parte Abstract: Through the analysis of the first season of Fargo (2014-2015), a ficcional television series ou produtores. Como exemplos são citados Da- de pesquisadores -, e o segundo é a importância created by screenwriter and producer Noah Hawley vid Fincher, autor de Clube da Luta (1999), A Rede do reconhecimento das marcas autorais e estilísti- based on the 1996 feature film from directors Ethan Social (2010) e Garota Exemplar (2014), que diri- cas para a manutenção e perpetuação de narrati- and Joel Coen, this paper will investigate the notion of authorship in television studies. We consider the giu episódios das séries da NetflixHouse of Cards vas seriadas de longa duração. concept of authorship to be twofold: on the one part, (2013) e Mindhunter (2017); Guillermo del Toro, di- it acts as a social marker of creative autonomy and Se, há algumas décadas, a televisão era retor de O Labirinto do Fauno (2006) e A Forma da legitimacy in the field; on the other, it corresponds to considerada uma etapa indesejada a ser cumprida the group of stylistic marks expressed in the text of the Água (2017), que em 2014 criou e dirigiu a série na trajetória ascendente de diretores e diretoras series. televisiva de horror The Strain: Noite Abosulta para iniciantes até chegar ao patamar de maior reco- o canal FX; Steven Soderbergh, autor de Sexo, nhecimento e autonomia criativa proporcionado 1 Doutora em Literatura Comparada e Cinema (UdM), mentiras e videotape (1989) e Traffic (2000), que professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia pelo cinema, agora temos o movimento contrário: (UFRB). E-mail: [email protected] dirigiu vinte episódios da série The Knick (2014- 135 A QUESTÃO DA AUTORIA E O ESTILO NAS SÉRIES FICCIONAIS TELEVISIVAS: UMA ANÁLISE DE FARGO Ludmila Moreira Macedo de Carvalho os autores citados acima e muitos outros alegam aí, a possibilidade de autoria)? Como e onde se ve- Enquanto categoria teórica, porém, a que é justamente na televisão que estão conse- rificam essas marcas autorais em produções seria- autoria é uma das questões mais complexas desde guindo manter ou mesmo ampliar o grau de au- das altamente colaborativas e de longa duração? a sua origem nos estudos literários até a teoria tonomia e controle criativo e estético sobre suas Com o intuito de lançar luz sobre estas e outras contemporânea de cinema e dos demais media. obras. Da mesma forma, nas últimas duas déca- questões, este trabalho pretende, num primeiro Desde que apareceu no Romantismo, o Autor das, com a aparição de série televisivas de inegá- momento, tecer algumas considerações a respei- (como o conhecemos hoje) já foi criado, exaltado, vel qualidade e mérito artístico, passou-se a se to do lugar da autoria na televisão, compreendi- assassinado e trazido de volta inúmeras vezes, falar em produtos televisivos com estilo cinema- da como algo socialmente construído dentro do por inúmeras teorias e motivos diferentes. Não tográfico, aproximando-se à ideia de que técnicas campo de produção e responsável por estabele- entraremos neste momento numa genealogia e aparatos tecnológicos do cinema estariam pre- cer um lugar de fala aos autores e indicadores de pormenorizada do conceito de autoria, mas é sentes na produção dos programas televisivos. O qualidade aos produtos. Num segundo momento, importante lembrar que a ideia de autoria nasce adjetivo cinematográfico se aplicaria, portanto, “a promoveremos uma análise da série de ficção Far- da tradição clássica dos estudos literários do programas que priorizam o visual mais do que é go (2014-2015), criada pelo roteirista e produtor século XIX, que reconhecem a obra de arte (o aceito como típico para a televisão, oferecendo Noah Hawley a partir do filme de longa-metra- romance, neste caso) como a expressão máxima à audiência tanto significado narrativo quanto gem homônimo dos diretores Ethan e Joel Coen de um espírito criativo humano (COMPAGNON, prazer visual nas imagens que aparecem na tela” (1996), com o intuito de verificar de que modo as 2001). Trata-se do estabelecimento de uma (MILLS, 2013, p.58). marcas estilísticas criadas pelos autores de cine- postura positivista em relação à autoria, que antes ma se reproduzem, se adaptam e se expandem no era tida como de ordem divina e então passa Quais são as implicações estéticas, narrati- formato seriado. a ser humana, ancorada na subjetividade e no vas e poéticas deste movimento de “redescober- conhecimento, inaugurando um individualismo ta” ou de “revalorização” da televisão por parte de que culmina com os valores burgueses de autores estabelecidos no campo do cinema? O AUTORIA NA TELEVISÃO: LEGITIMIDADE E ES- indivíduo e propriedade (inclusive intelectual). que significa dizer que as séries contemporâneas TILO A relevância do indivíduo passa a ser, ao mesmo tem qualidades cinematográficas (incluindo-se, 136 A QUESTÃO DA AUTORIA E O ESTILO NAS SÉRIES FICCIONAIS TELEVISIVAS: UMA ANÁLISE DE FARGO Ludmila Moreira Macedo de Carvalho tempo, a relevância da escrita, uma vez que é cinema, ou seja, aqueles realizadores que, segun- vivido pelo cinema e pela literatura. Lavery apon- nos registros de si mesmo, nessa escritura, que do eles, eram capazes de utilizar toda a linguagem ta que o reconhecimento da autoria no campo da a própria noção de subjetividade se constrói. da sétima arte em prol de uma expressão pessoal, televisão demorou cerca de cinquenta a sessen- Por conta disso, a literatura atinge um patamar mesmo (ou especialmente) em meio a um sistema ta anos em relação ao campo do cinema - o que altíssimo de reconhecimento, de valor cultural e altamente industrial de produção e distribuição. justifica dizer que o que muitos autores chama de social no século XIX, transformando o escritor em Segundo o pesquisador David Lavery “era de ouro da televisão” corresponde a um pro- Autor. (2010), a televisão demorou um pouco mais a al- cesso de legitimação do campo televisivo e tam- cançar o mesmo tipo de legitimação associada à bém do estudo aprofundado de obras e autores É exatamente essa relação entre autoria e figura do autor-criador por causa, entre outros fa- deste campo. legitimidade, reconhecimento e valor social que tores, das complexidades tecnológicas e das pró- É importante notar, no entanto, que a au- move os primeiros movimentos teóricos de au- prias lógicas industriais do meio. Afinal, se no ci- toria no meio televisivo possui algumas particu- toria no cinema, num primeiro momento, e pos- nema isso já era complicado, como então conciliar laridades importantes impostas pelo próprio for- teriormente na televisão. Não podemos esque- a ideia romântica do autor-criador literário com a mato serial. A primeira delas é que a autoria em cer que no cinema, a questão da autoria esteve realidade extremamente comercial e colaborativa televisão esteve historicamente mais associada à ligada, desde o seu princípio, à legitimação do do meio televisivo? A televisão, até recentemen- figura do roteirista do que do diretor, tendo em próprio meio enquanto arte. No famoso texto “A te, era vista mais como algo que era produzido vista, entre outros fatores, uma suposta centrali- câmera-caneta”, de 1948, Alexandre Astruc com- do que criado, afastando a possibilidade de cria- dade dos diálogos em relação a outros elementos para o cinema à literatura, atribuindo ao primei- ção dos produtos (CARDWELL, 2003). Portanto, se estéticos (visível no próprio volume de texto en- ro o mesmo grau de prestígio conquistado pela compreendemos autoria como uma função ou, volvido na produção de uma série de longa dura- segunda. A defesa do cinema como forma de ex- para usar os termos de Pierre Bourdieu (2002), ção). Enquanto diretores são geralmente contra- pressão pessoal (mesmo sendo produzida coleti- uma posição criada social e discursivamente, per- tados para rodar uma série já em seu estado de vamente), norteou também os autores franceses cebemos que trata-se do mesmo processo histó- produção, os roteiristas estão mais comumente da Cahiers du Cinéma nas décadas de 60 e 70, an- rico de legitimação e autonomização do campo já associados às fases de concepção e aprovação do siosos para encontrar os verdadeiros autores de 137 A QUESTÃO DA AUTORIA E O ESTILO NAS SÉRIES FICCIONAIS TELEVISIVAS: UMA ANÁLISE DE FARGO Ludmila Moreira Macedo de Carvalho projeto original junto às emissoras. Mais recente- unidade, um conjunto coerente de características até o presente, três temporadas de dez capítulos mente, a autoria vem sendo associada à figura do mesmo no interior de um modo de produção que cada, exibidas em 2014, 2015 e 20172 pelo canal showrunner ou “criador”, posição diretamente as- pode se estender por décadas e envolver a con- norte-americano FX3. Neste artigo, nos deteremos sociada à criação e produção da série e que pode tribuição de centenas de profissionais diferentes. numa análise da primeira temporada da série em incluir, mas não obrigatoriamente, as instâncias Tais características equivalem à ideia de estilo relação ao filme no qual ela se baseia. de roteiro e direção. Para Jason Mittel (2015), a desenvolvido por autores como Bordwell (2009), Séries adaptadas a partir de filmes, assim autoria atribuída ao showrunner possui uma fun- Mitry (1990) e Bellour (1979), um certo modo de como filmes derivados de séries, não são nenhu- ção menos associada à ideia de criação e mais à conduzir histórias, de compor situações e perso- ma novidade no campo do audiovisual. O que de administração das diferentes funções: afinal, nagens, de manipular a economia narrativa e o parece interessante notar a respeito dessa série numa série diferentes episódios podem estar em uso dos recursos técnicos e estéticos de forma em particular é que ela não consiste exatamente distintos estágios de pré-produção, produção e que as obras ofereçam, em seu conjunto, um uni- numa refilmagem, e tampouco numa continua- distribuição ao mesmo tempo, sendo que ao pro- verso, onde singularidade e diversidade convivem ção dos eventos narrados no longa, uma vez que dutor-criador é atribuída a responsabilidade de com um número de permanências e semelhanças o enredo da série é a princípio completamente gerenciar todos estes processos para garantir a que dão ao grupo uma identidade coesa e con- novo, com personagens distintos do filme (o fil- unidade do produto final. gruente. me narra eventos ocorridos em 1987, e a série se Tal observação nos leva à segunda parti- passa em 2006). Da mesma maneira isso ocorre na cularidade da autoria no campo televisivo, que EXERCÍCIO DE ANÁLISE: FARGO série de temporada a temporada, ou seja, a cada é a estreita e direta associação entre autoria e a temporada de dez episódios nos é apresentado manutenção da integridade estética da obra. O Como exercício de análise, propomos uma um enredo aparentemente fechado e indepen- lugar da autoria, neste caso, é visto como o ponto breve investigação a respeito de Fargo, série de dente, com personagens, elenco, narrativa e linha de ancoragem da obra, ou seja, o centro ao redor ficção televisiva criada pelo roteirista e produtor A quarta temporada está em processo de do qual a obra pode se constituir enquanto um Noah Hawley a partir do longa-metragem ho- 2 produção com estreia prevista para 2020. agrupamento de textos que mantém uma certa mônimo lançado nos cinemas em 1996 e realiza- 3 Em 2017 as três temporadas da série foram do pelos irmãos Ethan e Joel Coen. A série teve, adicionadas ao catálogo do serviço de streaming Netflix. 138 A QUESTÃO DA AUTORIA E O ESTILO NAS SÉRIES FICCIONAIS TELEVISIVAS: UMA ANÁLISE DE FARGO Ludmila Moreira Macedo de Carvalho temporal próprios. O roteirista Noah Hawley acumula os noir e do thriller de suspense, criada a partir de créditos de criador, produtor executivo e roteirista crimes brutais que irrompem bruscamente na pa- Há, no entanto, uma associação clara en- da série, condizente com a posição de showrunner cata rotina invernal de cidades pequenas norte-a- tre as duas obras, a começar pelo nome (e pela enquanto autor responsável pelo gerenciamento mericanas. Mais do que simplesmente seguir a in- identidade visual, como pode-se ver nos posteres da obra. Hawley é autor-roteirista de formação, vestigação de um crime, no entanto, o que chama e material de divulgação da série), que já indica com quatro livros publicados antes de escrev- a atenção é a maneira como a história é contada, um horizonte de expectativas ao espectador, so- er para o cinema a partir de 2006. Na televisão, misturando personagens comuns e eventos ordi- bretudo aquele familiarizado com a obra dos ir- já havia atuado como roteirista das séries Bones nários do dia a dia de uma cidade interiorana com mãos Coen. Estes, os autores do filme, atuam na (também da FOX) e The Unusuals, ambas com situações surreais e crimes brutais, num falso tom série apenas como produtores executivos. Ou enredos detetivescos. Em Fargo Hawley assina de realismo que brinca com o horizonte de expec- seja, há uma clara estratégia de associar os nomes todos os episódios como roteirista principal, em- tativas do espectador. dos autores consagrados como mecanismo de bora divida os créditos de alguns destes episódios legitimação da série enquanto produto de qua- Situando esse universo narrativo, podemos com outros roteiristas secundários4. lidade. Estratégia que pode ser atribuída ao pró- dizer que ambas as narrativas apresentam casos prio FX, canal por assinatura da FOX. A exemplo O que a série Fargo nos promete, portan- de investigações policiais ocorridos no inverno de de canais como a HBO, desde os anos 2000 a FX to, é um retorno, uma continuidade e em certa pequenas e aparentemente pacatas cidades dos tem procurado lançar conteúdos originais como medida uma expansão do universo narrativo cria- estados de Minnesota e Dakota do Norte. No fil- estratégia de valorização dentro do segmento da do originalmente no premiado filme dos irmãos me, temos o enredo do fracassado vendedor de TV a cabo, com séries como The Shield, Rescue Me, Coen. Esse universo, descrito por um biógrafo dos carros Jerry Lundegaard que, numa tentativa de Nip/Tuck e American Horror Story, a experiência realizadores como um “sentimento”, não é algo extorquir dinheiro de seu poderoso sogro e pa- mais bem-sucedida do canal até então, e que tem de definição simples. Fargo traz uma atmosfera trão, contrata dois criminosos para sequestrar sua uma estrutura de antologia semelhante à de Far- de crime e mistério que remete ao gênero do film própria esposa. Já na série, somos apresentados go (com cada temporada curta independente das a Lester Nygaard, um frustrado vendedor de se- demais). 4 Hawley atuou também como diretor em dois guros que termina travando uma íntima conversa episódios na segunda e terceira temporadas de Fargo. 139 A QUESTÃO DA AUTORIA E O ESTILO NAS SÉRIES FICCIONAIS TELEVISIVAS: UMA ANÁLISE DE FARGO Ludmila Moreira Macedo de Carvalho com um assassino profissional. Este, então, decide uma facilidade enganadora, muitas vezes a des- Minnesota em 1987 (2006 na série). A pe- fazer o favor de matar o homem que humilhava peito das trapalhadas de seus parceiros e superio- dido dos sobreviventes, os nomes foram alterados. Por respeito aos mortos, todo Lester, colocando o pacato vendedor na rota de res homens. o resto foi contado exatamente como investigação da polícia. Vale mencionar que a caracterização des- ocorreu.

Desta forma, é possível perceber uma se- tes personagens está diretamente relacionada ao Sabe-se, no entanto, que tal aviso nada melhança na construção do protagonista - ho- local onde ocorrem as histórias do filme e da sé- tem de verdadeiro, uma vez que as histórias da sé- mens mundanos, ordinários, simplórios até de- rie. As pequenas cidades na região dos estados de rie e do filme foram criadas pelos roteiristas (os ir- mais, embora não necessariamente bondosos ou Minnesota e Dakota do Norte são marcadas, além mãos Coen ganharam inclusive o Oscar de roteiro inocentes, que são envolvidos numa espiral de da forte presença da neve no inverno, pelo que se original). Podemos interpretar tal estratégia como crime e violência da qual não conseguem sair sem costumou chamar de “Minnesota nice”, referindo- uma espécie de ironia, uma vez que ela solicita ao causar cada vez mais danos. Este espelhamen- -se não apenas ao sotaque bastante característico espectador uma postura diante da narrativa que to encontra-se também em outros personagens, da região, mas também ao jeito de falar e de se será inevitavelmente frustrada. Ao colocar perso- como é o caso das investigadoras de polícia. No comportar extremamente dócil, suave, que por nagens ordinários envolvidos em crimes brutais, filme, a atriz Francis McDormand interpreta uma vezes parece estar alheio à magnitude ou gravi- e ações absolutamente mundanas que desembo- detetive que assume a investigação mesmo es- dade dos acontecimentos à sua volta. Outro ele- cam nas situações mais surreais (muitas delas de- tando nas últimas semanas de gestação; e no fil- mento estilístico que chama a atenção, neste as- rivadas cruelmente do acaso), atinge-se um efeito me temos a policial Molly Solverson que, apesar pecto, é a tentativa de aproximação a um registro que se aproxima mais talvez do humor e da ironia de menos experiente, também lidera a investiga- realista dos fatos narrados. Além da apresentação do que do suspense ou da comoção diante dos ção dos crimes ocorridos. São estas duas mulhe- de personagens, no extrato da fábula também se fatos narrados. res que, mesmo sem abandonar completamente verifica essa preocupação, visto que tanto o filme a esfera do “pacato” e do “doméstico” (vide a ges- como a série começam com um aviso que diz: Por outro lado, se no âmbito da apre- tação de Marge e a relação de Molly com seu pai sentação da fábula a narrativa se afasta de uma Esta é uma história real. Os eventos nar- criação de suspense, em outros aspectos estilísti- e seu mentor), conduzem as investigações com rados neste filme/série ocorreram em 140 A QUESTÃO DA AUTORIA E O ESTILO NAS SÉRIES FICCIONAIS TELEVISIVAS: UMA ANÁLISE DE FARGO Ludmila Moreira Macedo de Carvalho cos ela se aproxima fortemente deste efeito. É o são do universo autoral criado pelos irmãos Coen mações: Lester, inclusive, influenciado pela frieza caso, por exemplo, da construção visual/espacial, para o formato seriado na obra de Noah Hawley. e impunidade de Malvo, torna-se gradativamente que explora bastante os grandes espaços vazios, Fargo se aproxima do que Jason Mittel (2015) ca- mais ardiloso e malicioso; e a detetive Molly tam- as estradas desertas destas cidades pequenas, a racteriza como narrativa complexa, ou seja, obras bém passa por uma grande mudança, indo de de- imensidão do espaço coberto de neve. A neve é seriadas contemporâneas que exploram de modo tetive inexperiente e dependente de seu mentor à um elemento estilístico importantíssimo aqui: expressivo o caráter serial, combinando a unidade líder confiante e chefe de polícia da cidade. no filme, ela é manchada de sangue e também de cada episódio com grandes arcos dramáticos o local onde o dinheiro do resgate é escondido; que se acumulam no tempo. Na série é possível do mesmo modo, na série, ela é elemento crucial perceber que os arcos dramáticos que envolvem CONSIDERAÇÕES FINAIS na criação de suspense no sexto episódio, numa os personagens são bem mais longos do que os sequência onde o assassino Lorne Malvo tenta do filme, permitindo, entre outras coisas, a explo- Podemos afirmar que no campo da televi- escapar de dois perseguidores durante uma for- ração de desdobramentos de ações secundárias, são, as discussões de autoria partilham muitas das te tempestade de neve. Nesta mesma sequência, o uso de flashbacks e antecipações temporais, a questões já levantadas a respeito do cinema: a pro- por sinal, podemos perceber a utilização da trilha introdução de personagens secundários que ga- blemática de uma prática em equipe, numa plata- sonora de forma expressiva, de maneira a intensi- nham importância na trama e, principalmente, forma que possui interesses comerciais que mui- ficar os momentos de suspense da trama. permitindo uma maior e mais convincente trans- tas vezes divergem dos desejos artísticos, e com formação nos personagens principais, algo que práticas, agentes, instâncias de reconhecimento Até o momento, nossa análise teve como certamente se beneficia do maior tempo de exi- e consagração diversas. Partimos do pressuposto, foco os principais pontos de espelhamento entre bição do formato seriado. Enquanto no filme os portanto, que compreender o lugar da autoria ao o filme e a série. Neste momento, porém, torna-se destinos de Jerry e de seus improváveis compar- mesmo tempo dentro e fora do texto, enquanto preciso levar em consideração o formato da série sas no crime são selados sem que haja grandes 1) agente (s) social(is) implicado(s) no contexto e suas particularidades narrativo/estilísticas, com mudanças em suas personalidades, na série os de produção das obras, suscetível(is) e ao mesmo o intuito de verificar de que modo estas especi- protagonistas passam por importantes transfor- tempo responsivo(s) às transformações ao longo ficidades contribuem para o processo de expan- de sua(s) trajetória(s), e 2) ponto de ancoragem 141 A QUESTÃO DA AUTORIA E O ESTILO NAS SÉRIES FICCIONAIS TELEVISIVAS: UMA ANÁLISE DE FARGO Ludmila Moreira Macedo de Carvalho estilística de uma obra coesa e ao mesmo tempo Autores podem, inclusive, mobilizar comunida- gitimação e de qualidade - e podem ficar na série dinâmica, definida através do uso sistemático dos des de fãs e apreciadores tanto quanto os astros pelo modo como as particularidades do formato materiais da linguagem audiovisual, nos oferece e estrelas nas telas, tornando-se verdadeiras ce- serial permitiram uma expansão das marcas esti- uma via de entrada para a análise e compreensão lebridades. Vale lembrar que isso certamente não lísticas dos Coen. aprofundada das obras seriadas. passa despercebido pelas instâncias de produção que, ao invés de cercear a autonomia criativa dos Através da breve análise da série Fargo, REFERÊNCIAS autores, como se pensa comumente, pode justa- percebemos, ainda, o que Mittel (2015) diz a res- mente fomentar essa autonomia como estratégia ASTRUC, Alexandre. Naissance d’une nouvelle peito da autoria enquanto enquadramento da ex- de divulgação e criação de prestígio. avant-garde: La câmera-stylo. L’écran Français. periência do espectador. Sabemos que a autoria Paris, n. 144, 1948. perpassa a atividade cotidiana de apreciadores de Em Fargo, a associação com uma obra BARTHES, Roland. “A morte do autor”. In: O rumor cinema e de televisão tanto quanto os de literatu- já existente e consolidada enquadra o modo de da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2012. ra: assim como o gênero (no sentido dramático), o recepção dos espectadores - tanto os que já co- BAZIN, Andre. La politique des auteurs. Paris: nome do autor imediatamente atribui à obra um nheciam a obra anterior quanto os novos. Os que Cahiers du Cinema Livres, 1984. conjunto de características previamente reconhe- já são familiarizados com o universo ficcional dos BELLOUR, Raymond. The Analysis of Film. Bloo- cidas e codificadas que o apreciador, por sua vez, é Coen certamente irão procurar elementos que mington: Indiana University Press, 2001. capaz de reconhecer e decodificar. Naturalmente, remetam a essa experiência (e, como vimos, ele- BORDWELL, David. Figuras traçadas na luz. A en- não se trata de conceber o autor empírico na sua mentos não faltam, tanto contextualmente, na cenação no cinema. São Paulo: Papirus, 2009. visão romântica como fonte única de explicação estratégia de divulgação e circulação, quanto na ____. Sobre a história do estilo cinematográfi- da obra, mas, por outro lado, não se pode ignorar própria tessitura da obra, na forma de persona- co. Campinas: Unicamp, 2013. que agentes humanos funcionam como autores, gens, objetos, fatos narrativos etc.). Os novos es- BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte. São Paulo: indivíduos implicados no contexto de produção petadores, que não conhecem o filme original no Cia das Letras, 2002. das obras, suscetíveis e ao mesmo tempo respon- qual a série é baseada, podem ser levados a ela sivos às transformações ao longo da sua trajetória. pelo processo de autoria enquanto marca de le- CALDWELL, John T. Televisuality: Style, Crisis and 142 A QUESTÃO DA AUTORIA E O ESTILO NAS SÉRIES FICCIONAIS TELEVISIVAS: UMA ANÁLISE DE FARGO Ludmila Moreira Macedo de Carvalho

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11 e qualitativa (do acabamento estético formal) good taste and that would “exceed”, therefore, Resumo: Este artigo discute as possibilidades das obras melodramáticas estudadas no cam- a supposed and required sobriety. But, on the de compreensão do excesso (enquanto ele- po televisivo. contrary, the excess is re-classified as an aes- mento estético) dentro das teorias narrativas thetic and qualitative characteristic (of the for- e estilísticas sobre melodrama e ficção seriada. Palavras-chave: Excesso, Melodrama, Estudos mal aesthetic finish) of the melodramatic works Dessa forma, a centralidade do trabalho se dá Televisivos, Estilo, Estética. studied in the television field. pela oposição-complementaridade entre: 1) o excesso como um modo da imaginação melo- Keywords: Excess, Melodrama, Television Stud- dramática; e 2) o excesso como um elemento Abstract: This article discusses the possibilities ies, Style, Aesthetic pervasivo dos modos melodramáticos. Assim, of understanding the excess (as an aesthetic por uma visão diádica, o excesso é relido aqui element) within the serial fiction and melodra- INTRODUÇÃO ora como essencializador do melodrama, ora ma’s narrative and stylistic theories. In this way, como relativo ao melodrama, mas não exclusivo the centrality of the article is given by the oppo- A ideia superficial de um produto audiovisual a ele apenas. Por último, como consideração fi- sition- complementarity between 1) excess as a ser lido como “brega”, de “mau gosto”, tratar-se nal, destaca-se que, a partir de uma visão que o mode of the melodramatic genre; and 2) excess de “uma obra menor” e, por isso, não ser “dig- entenda enquanto parte da estética televisiva as a pervasive element of melodramatic modes. na” de merecer uma reflexão mais aprofunda- e do estilo televisivo, o excesso coloca-se en- Thus, by a dyadic vision, the excess is re- read da é frequentemente associada ao melodra- tão como configurador central das obras tele- here as either an essential part of melodrama ma quando uma perspectiva sobre “televisão visivas melodramáticas. Ou seja, não como um and otherwise as a relative part of melodrama, de qualidade” é colocada como tópico central elemento que fugiria à norma do bom gosto e but not exclusive to it alone. Finally, as a final de uma conversa cotidiana (Thorburn, [1972] que “excederia”, por isso, uma suposta e exigida consideration, it is emphasized that, from a vi- 1976, p. 595). Ainda no campo das ordinarie- sobriedade. Mas, ao contrário, o excesso é re- sion that understands it as part of the televi- dades diárias, é curioso perceber como essa enquadrado como uma característica estética sion aesthetic and the television style, the sur- questionável pressuposição (a “inferioridade” plus then becomes the central configurator of das obras melodramáticas na TV) pode ser ob- 1 Doutorando em Ciências da Comunicação (PPGCOM / ECA USP). Professor dos cursos de graduação e pós-gradua- the melodramatic television works. That is, not servada justamente quando o termo “exces- ção em Comunicação do Senac Lapa Scipião. Bolsista da as an element that would escape the norm of sivo” entra em cena para justificar a afirmação Capes. E-mail: [email protected]. 144 EXCESSO E MELODRAMA NO DISCURSO FICCIONAL TELEVISIVO: UMA VISÃO DIÁDICA Anderson Lopes da Silva de juízo de gosto. Tal designação opera como zação que tem, entre outros pontos, uma base às discussões do senso comum, muitas vezes um adjetivo pejorativo dado o fato de que calcada justamente no acesso ou sua ausência as reflexões acadêmicas sobre o melodrama telenovelas, minisséries, soap operas e afins da à uma ideia (já desgastada) de “baixa” e “alta” audiovisual são também ligadas aos termos TV aberta, por exemplo, são entendidas como cultura como demarcador de diferença social. “excesso” e “excessivos” em um prisma que nem melodramas “excessivos” em oposição às obras E, por fim, tal categorização é diretamente liga- sempre privilegia tal característica como ele- tidas como mais “realistas”, “verdadeiras”, “mais da à popularização e ao juízo de gosto pela mento configurador qualitativo da obra. Até sofisticadas” ou de “maior qualidade” (como al- (sensação) de exclusividade do consumo de mesmo percepções sobre a televisão não ser gumas séries do prime time televisivo de canais determinadas obras. E, mesmo muito antes de considerada “séria o bastante” impossibilitam, fechados e plataformas de streaming frequen- surgirem outros meios como o microcasting não raras vezes, discussões e pesquisas mais temente são apontadas). Assim, não se torna das plataformas de streaming, outra afirmação constantes sobre o que há de peculiar em sua muito difícil perceber que um dos aspectos pre- semelhante é trazida por Thorburn (1976, p. estética com base em uma teoria imagética que sentes na construção do termo excessivo tem 606) ao comentar como o caráter popular da a privilegiasse como um meio narrativo-técni- como padrão a sintetização (e eufemização) televisão e do melodrama televisivo não os en- co- estético sui generis que ela indubitavel- de uma certa visão de qualidade pouquissima- quadravam como elementos estéticos dignos mente é (Fahle, 2006, p.190; Fahle, 2018). mente associada às produções referidas como de apreciação da crítica justamente porque “exageradas”, “histriônicas”, “hipersensíveis”, “co- uma questão de classe, novamente, perpassada Por outro lado, há também um cenário in- moventes demais” e “emocionalmente inebri- por uma ótica conservadora, é o que que define ovador de visões que tomam uma via opos- antes”. o que é de bom gosto ou não. Por fim, o mes- ta à simplista leitura pejorativa do excesso no mo autor relembra que melodrama televisivo melodrama e que pode ser visto em trabalhos Vale destacar desde já como a questão de tornou-se um fórum público significativamente que relacionam, por exemplo, o telejornalis- classe social (em relação ao poder econômico peculiar, complexo e imensamente enriquec- mo a partir de modos melodramáticos da con- de aquisição de bens) se mostra muito pre- edor justamente porque o seu discurso é es- strução noticiosa (Coutinho, 2012) ou mesmo sente e oportunista para definir/separar produ- teticamente abrangente e popular (Thorburn, documentários nos quais a realidade e variados tos televisivos tidos como de menor qualidade 1976, p. 597). engajamentos afetivos são colocados em con- (broadcasting) e maior qualidade (narrowcast- junção pela imaginação melodramática (Freire, ing e microcasting). Ou seja, uma categori- Com igual importância, e em caminho paralelo 2007). Todavia, os campos mais prolíficos de

145 EXCESSO E MELODRAMA NO DISCURSO FICCIONAL TELEVISIVO: UMA VISÃO DIÁDICA Anderson Lopes da Silva um pensamento teórico-prático sobre excesso eratura científica sobre audiovisual ao propor e melodrama encontra-se justamente nos es- uma discussão acerca das possibilidades de Analisando obras de autores como Balzac e tudos fílmicos (Elsaesser, [1972] 1987; Gledhill, compreensão do excesso (enquanto elemen- Henry James, o pesquisador estadounidense 1987; Landy, 1991; Oroz, 1999; Singer, 2001; to estético configurador) dentro das teorias Peter Brooks (1995) discute o conceito de imag- Mercer, Shingler, 2013; Gledhill, Williams, 2018) narrativas e estilísticas sobre o melodrama e inação melodramática fazendo um minucioso e também nos estudos televisivos sobre ficção ficção. Por isso, a centralidade do trabalho se resgate epistemológico acerca da definição de seriada (Ang, 1985; Leal, 1986; Martín-Barbero, dá pela oposição-complementaridade entre: melodrama e do contexto histórico que, de cer- [1987] 2009; Mumford, 1995; Allen, 1995; Mat- 1) o excesso como um modo da imaginação to modo, o rodeia desde o teatro dramático da telart, Mattelart, 1998; Huppes, 2000; Balogh, melodramática (Brooks ([1972] 1995); e 2) o ex- Grécia Antiga. Entretanto, seu foco detém-se 2002; Mittell, 2004; Jost, 2007; Rincón, 2007; cesso como um elemento pervasivo dos modos a partir “melodrama clássico francês”, passan- Fuenzalida, 2007; Sadlier, 2009; Motter, 2009; melodramáticos (Williams ([1991] 2004; 2018). do pela modernização do conceito no cinema Esquenazi, 2011; Zarzosa, 2013; Stewart, 2014). Como consideração final, destaca-se que, a e chegando às telenovelas (e soap operas) da partir de uma visão que o entenda enquan- atualidade que possuem fortes traços em co- Mais do que uma mera relação de casualidade to parte essencial da estética televisiva (Fahle, mum. isolada, é possível falar de como a alta produ- 2006; Muanis, 2018) e do estilo televisivo (But- tividade do assunto na literatura acadêmica ler, 2010; Rocha, 2016), o excesso então pode O melodrama visto neste trabalho como uma audiovisual denota um contexto onde melo- ser visto como constituidor central das obras das matrizes que fazem parte dos processos drama e discursos ficcionais são extremamente televisivas melodramáticas. Ou seja, não como de produção de sentido no discurso ficcion- relevantes para a apreensão dos processos de um elemento que fugiria à norma do bom gos- al televisivo, também é marcado por visões e sentido que circundam as realidades culturais e to e que “excederia” uma suposta e exigida so- condições compósitas que deram sua forma ao sociais de países e indivíduos tão diferentes en- briedade, mas, ao contrário, o excesso é reen- longo dos séculos. Por isso, à primeira vista o tre si como os apresentados nos(as) autores(as) quadrado como uma característica qualitativa adjetivo melodramático pode evocar significa- acima. do acabamento estético formal de tais obras. dos pejorativos. Ou como sustentam as fórmu- las de roteiro já há muito realizadas no melo- Dessa forma, a estrutura argumentativa desse O EXCESSO COMO UM MODO DA IMAG- drama televisivo e na ficção seriada, o adjetivo artigo também se coaduna ao campo da lit- INAÇÃO MELODRAMÁTICA melodramático já denota possivelmente a es-

146 EXCESSO E MELODRAMA NO DISCURSO FICCIONAL TELEVISIVO: UMA VISÃO DIÁDICA Anderson Lopes da Silva trutura que se espera de uma “trama padrão” rearranjos narrativos possam gerar sempre a tor aproxima muito sua visão acerca da imag- teledramatúrgica. Ou seja: personagens bem mesma “trama padrão”. Porém, de igual im- inação melodramática desta mesma definição. delineados em seus respectivos caracteres, re- portância, outra característica essencial do A ela, o pesquisador acrescenta a “polarização viravoltas na história, pouca profundidade ou melodrama televisivo é a presença da estrutura absoluta da moralidade” e o “maniqueísmo táci- densidade de temas, redenção ou punição do arquetípica do quadrilátero melodramático que to”, além da ideia da moral oculta (moral occult) mal, vitória do bem, entre outras características compõe, isto é, na narrativa existe a presença e do modo do excesso (mode of excesso) como geralmente previsíveis. Ou nas palavras do au- do Justiceiro (herói), do Traidor (vilão), da Víti- partes do entendimento de uma imaginação tor, o uso do termo melodrama, como um rótu- ma (mocinha) e do Bobo (bufão) (Martín-Bar- melodramática (Brooks, 1995, p. 4). Elementos lo que traz em si “má reputação” e “usos pejora- bero, 2009, p. 168). E partindo dos sentimentos extremamente perceptíveis no modelo de tele- tivos”, precisa de uma explicação sobre o que é básicos de medo, entusiasmo, dor e riso, estes novela produzido no Brasil e América Latina. o entendimento tido como mais comum sobre quatro personagens formam o quadrilátero o assunto, a saber: melodramático produzindo, assim, um misto Assim, sendo o modo do excesso “localizada e de quatro gêneros: o romance de ação, a epo- regulada” pela moral oculta na ficção, segundo a indulgência de um forte emocional- peia, a tragédia e a comédia. Brooks ([1995, p. 5), faz-se importante observar ismo; polarizações e esquematizações nas próximas discussões quais as similaridades morais; estados extremos do ser, de Por outros caminhos teóricos (e localizações e diferenciações entre cada um destes dois con- situações, de ações; vilania evidente, geográfica e culturalmente distintas) dos de ceitos bipartidos. Brooks explica que a moral perseguição do bem e recompensa Martín-Barbero, Brooks define a imaginação oculta pode ser entendida como a reordenação final pela virtude, expressões inflacio- melodramática pensando o melodrama não do mundo moderno (desinteressado pela re- nadas e extravagantes, tramas obscu- apenas como gênero, mas como uma imag- ligião e ciência, mas apegado ao melodrama e ras, suspense e reviravoltas de tirar o inação transgenérica que ultrapassa barreiras às suas representações). O “reino da moral ocul- fôlego (Brooks, 1995, p. 11-12). de formatos e escolas, além de transgredir a ta” não é nitidamente visível e precisa ser de- demarcação entre a alta cultura e o popular scoberto, registrado e articulado no plano real Novamente: essa é uma visão cristalizada sobre entretenimento. Entendendo o drama como para operar na “consciência individual” das pes- o melodrama televisivo, o que não quer dizer uma “história parabólica, excitante e excessiva soas, afirma Brooks (1995, p. 21). Seria então, que todas as múltiplas combinações desses a partir de coisas banais da realidade”, o au- uma moral da história com a função de “separar

147 EXCESSO E MELODRAMA NO DISCURSO FICCIONAL TELEVISIVO: UMA VISÃO DIÁDICA Anderson Lopes da Silva aquilo que lhe pode ser bom ou mau” (Brooks, na intensidade e na polarização dos sentimen- dramáticos e escolhas são construídas nas for- 1995, p. 15). tos (Brooks, 1995, p. 4). Nada é desnecessário mas extremas do tudo ou nada”. Ou seja, aqui o ou não “passível de discussão”: modo do excesso se manifesta também pela via O princípio básico da moral oculta é trans- do maniqueísmo como maneira de colocar a parecer de modo sutil algum “ensinamento” O desejo de expressar tudo parece polarização máxima em cena (seja na formação no campo ficcional. Neste campo, o chamado ser uma característica fundamental das sequências cênicas ou na atuação histriôni- “quadrilátero melodramático” composto por da imaginação melodramática. Nada ca de alguns autores). um vilão, por um herói, por uma mocinha e por é poupado porque nada é passível de um bufão produz uma das mais marcantes lin- ser “não dito”; os personagens estão Por essa via, ao conceituar a estética do melo- guagens do folhetim. São as inter-relações entre no palco a proferir o indizível, dá-se drama como “maravilhosa”, de “extrema sur- os quatro que dão o aspecto melodramático de voz aos seus sentimentos mais pro- presa” ou “impactante”, numa tradução livre qualquer estrutura narrativa e que pressupõem fundos, dramatiza-se através de suas de aesthetics of astonishment, Peter Brooks papeis diametralmente distintos e superficiais intensas e polarizadas palavras e ges- chama a atenção para a retórica da narrativa a cada um deles (reservando ao final da trama tos que dão conta de toda a lição de melodramática no que tange aos usos da lin- um destino já pré-concebido). Por isso a afir- seu relacionamento. (Brooks, 1995, p. guagem. Ele afirma que as típicas figuras do mação de que o melodrama não é apenas um 4). modo do excesso são as hipérboles, as antíte- drama moralizante, mas um “drama da moral- ses e os oximoros. Destas figuras de linguagem, idade” (Brooks, 1995, p. 20), torna-se sugestiva Além disso, um ponto de força da questão do as hipérboles são tidas como uma “forma natu- para a compreensão da teledramaturgia, por excesso na construção da imaginação melo- ral de expressão” (Brooks, 1995, p. 40) do melo- exemplo. Ou seja, é através da “moral oculta” do dramática está centrado na maneira como a dramático. Com diferenciações expressivas melodrama que a ordem social é purgada e o estrutura do melodrama é trabalhada pelo entre a telenovela produzida no Brasil e outras imperativo ético consegue se fazer claro à so- maniqueísmo ou, nas palavras de Brooks (1995, da América Latina, o pesquisador chileno Edu- ciedade (Brooks, 1995, p. 17). Sobre o modo do p. 36), um “senso de confrontação e contraste ardo Santa Cruz (2002, p. 28) - sob influência de excesso na imaginação melodramática, Brooks fundamentalmente bipolar”, pois o “mundo Martín-Barbero - diferencia o modelo brasileiro afirma que nada escapa à ela no melodrama, segundo o melodrama é construído sob um de produção televisiva como um modelo mod- seja na dramatização das palavras e gestos, seja irreduzível maniqueísmo [...]. Dilemas melo- ernizante em oposição ao mexicano, usado

148 EXCESSO E MELODRAMA NO DISCURSO FICCIONAL TELEVISIVO: UMA VISÃO DIÁDICA Anderson Lopes da Silva como exemplo, tido como tradicional/clássico. 2018, p. 211). É justamente a partir da autora idense é que o melodrama é o “bode expi- Entre ambos os modelos – moderno e clássico – britânica que Williams amplia a compreensão atório” justamente porque nele é alocado tudo o espaço para a ocorrência do modo do excesso do excesso nos estudos sobre o melodrama e aquilo que aparenta ser ilegítimo, antiquado é extremamente fértil, tendendo muitas vezes a o audiovisual como algo que precisa ser visto e cansativo (Williams, 2018, p. 213-214). E, no tornar-se mais explícito nas tramas tradicionais. pela ótica da fluidez e da contaminação recípro- caso das pioneiras pesquisas de Gledhill (1987) ca entre os mais possíveis gêneros e formatos e Mumford, (1995), é notadamente claro que O EXCESSO COMO UM ELEMENTO PERVA- narrativos. as relações de gênero perpassam e muito essa SIVO DOS MODOS MELODRAMÁTICOS construção de demérito em relação às pro- Um ponto interessante - e em comum acordo duções melodramáticas já que elas foram vis- A discussão empreendida por Linda Williams com a fala trazida por Brooks - é o que Williams tas por muito tempo – em um raciocínio hoje (2018) é extremamente reconhecedora dos (2018, p. 207) aponta como uma percepção possível de ser questionado - como obras di- trabalhos de Peter Brooks, Thomas Elsaesser e histórica de se olhar o excesso do melodrama recionadas majoritariamente ao feminino, ao Ben Singer (nominalmente citando) a herança como algo desagradável, opositório à ideia de ambiente doméstico, ao espaço da ausência e relevância das pesquisas desses autores para bom gosto ou moderação nas produções e de reflexão e puramente entendidas como ob- o campo do audiovisual melodramático. En- expressões audiovisuais (essencialmente cin- jetos de alienação e entretenimento barato às tretanto, é Christine Gledhill o nome mais rev- ematográficas, no caso da fala da autora). Em mulheres. E, ainda que a autora não entre no erenciado na fala de Williams justamente por, outras palavras, o excesso do melodrama vem mérito da questão, não é absurdo propor uma segundo ela, Gledhill conseguir dar um passo sendo comparado contrariamente à uma ideia reflexão (já ensejada por Martín-Barbero (2009) adiante na discussão sobre o entendimento do de perda de proporção (Williams, 2018, p. 207). e Martín-Barbero e German Rey (2001)) de melodrama não como um gênero estanque, Mas qual é o ponto de referência estabelecido como uma justifica possível para esse caráter mas como algo dotado de certa fluidez, mod- para se compreender uma produção como “ex- designatório de “antiquado” ao melodrama tem ulação, permeabilidade capaz de transformar cessivamente” melodramática (logo, despro- que ver com as relações de classe envolvidas e “contaminar” vários outros gêneros que, a porcional) em relação ao mundo da sobriedade no processo de construção das audiências e de princípio, nunca seriam tidos como dotados de e qualidade artística? suas gramáticas televisuais de compreensão uma melodramaticidade porque são vistos ain- das obras. E aí, de maneira análoga, o excesso da como obras “clássicas” e “realistas” (Williams, A resposta dada pela pesquisadora estadoun- (pela via das “lágrimas femininas” ou do “escra-

149 EXCESSO E MELODRAMA NO DISCURSO FICCIONAL TELEVISIVO: UMA VISÃO DIÁDICA Anderson Lopes da Silva cho e riso popularescos”) certamente encontra gênero stricto sensu em caráter distintivo ou ver o melodrama como algo velho e regressivo, guarida como um elemento de desagravo con- exclusivo a outros gêneros. ao invés de um meio envolvente e que conti- trário ao intelecto, ao bom gosto e a tudo que nua relativamente novo” (Williams, 2018, p. é comedido (e, por conseguinte, de qualidade). A pervasividade do excesso e as modulações 214). E o que talvez faça passar despercebida possíveis do melodrama realocam a discussão a qualidade de bons melodramas televisivos, Todavia, o centro da argumentação postulada para entender como qualquer tipo de obra, como afirma a pesquisadora (Wiliams, 2018, p. por Williams está em compreender o excesso produção e gênero podem imiscuir- se, con- 216), que agora não precisam mais recorrer ao como um elemento estético pervasivo dos mo- taminar-se e interagir com o excesso nos mais famigerado “final feliz” dada a complexidade de dos melodramáticos. A autora joga luz sobre a variados níveis. Por esse caminho, é possível suas produções, especialmente, pelos formatos discussão ao trazer o melodrama não mais en- dizer que os modos melodramáticos são per- de longa duração que permitem um trabalho tendido como um gênero, mas, sob outra ótica, meados pelo excesso, mas em si mesmo eles mais denso na construção dos personagens e ela propõe pensar em “modos de melodrama” não são o excesso essencializado. É isso que dos arcos dramáticos3. (Williams, 2018, p. 214). Modos esses que po- leva, em outros termos, a pergunta colocada dem estar presentificados em outras obras, out- pela autora sobre tentar descobrir o porquê sivelmente, também se encaixaria nessa crítica já que sua ras produções e mesmos outros gêneros que, de, por definição, os estudos acadêmicos enx- leitura acerca do melodrama também se volta ao enten- em um primeiro momento, pudessem “não dia- ergarem quase sempre o melodrama como dimento deste termo como algo de extremo emocionalis- logar” tão tradicionalmente com o melodrama. inerentemente excessivo (Williams, 2018, p. mo e sentimentalismo. E fazendo uso da visão de Brooks, o pesquisador chega a comentar que o: “Melodrama supera Logo, seria possível compreender modos de 214). Nesse ponto, Williams critica diretamente a repressão, dando plena expressão das paixões ampliadas, melodrama que enfatizariam ora o pathos, ora Brooks ao comentar que a leitura do autor - as intensidades de amor e ódio profundo (ou não tão pro- a ação ou mesmo as sensações de repressão e acerca da imaginação melodramática conter fundo) que reside dentro de todos nós” (Singer, 2001, p. 51). sublimação em narrativas infinitamente difer- inalienavelmente o “modo do excesso” em si 3 Um debate produtivo poder ser colocado em questão se for levado em conta como a temporalidade elástica e a entes entre si. Isso demonstra como o caráter - é uma das maiores contribuições para a ma- duração das obras promovem novos rearranjos narrativos pulverizante e modular do excesso está atrela- nutenção desse pensamento, segundo ela, às produções melodramáticas mais contemporâneas em do também a um entendimento de melodra- problemático2. Por isso, afirma Williams (2018, relação ao excesso presente nestas mesmas ficções seriadas. Nesse sentido, em contraposição à afirmação de Williams, ma não mais apenas como um rígido conjunto p. 214) é que existe ainda uma “tendência de vale destacar a afirmação – escrita mais de 40 anos antes de elementos que o configurariam como um - do pesquisador estadounidense D. Thorburn acerca de 2 Ben Singer (2001), mesmo não citado por Williams, pos- uma “pequena” complexidade das narrativas melodramáti- 150 EXCESSO E MELODRAMA NO DISCURSO FICCIONAL TELEVISIVO: UMA VISÃO DIÁDICA Anderson Lopes da Silva

Complementar a isso, o que se intenta trazer uma nova ótica de compreensão sobre o termo as ideias de excesso como elemento pervasivo à reflexão neste trabalho, em contraposição à surge e o desloca para um viés estetizante. Tal e de melodrama como modo não abandonam ideia do excesso como algo que pode ser joga- viés diz respeito à uma leitura do conceito na de todo o caráter moralizante do melodrama do fora (o “excedido”) em função de uma “so- qual ele pode propor modulações eficazes do propostos por Brooks na discussão já apresen- briedade” ou de algo “idealizado sem excesso” excesso por meio de intensidades e recorrên- tada anteriormente quando da discussão da é colocada, agora, uma noção de excesso como cias distintas. Um excesso presentificado que imaginação melodramática e da mora oculta. conceito estético pulverizado em vários usos e pode ser encontrado com modulações pulveri- É aí talvez que tanto Williams quanto Brooks momentos de uma obra também (para além de zadas e variáveis em outros discursos e gêneros parecem se encontrar novamente em acordos outras obras, gêneros e formatos distintos). As- que não somente a tríade inicial apontada por potencialmente compatíveis ao ver na morali- sim, para além de pensar o excesso como um Williams (2004). dade uma característica essencial para se pen- conceito apreendido e restrito somente em sar a relevância do melodrama às sociedades narrativas que dialogam diretamente com os Assim, deslocalizando a essencialização iner- que o vivenciam ficcionalmente: gêneros do corpo4 (melodrama, horror e por- ente do excesso como algo sempre atrelado ao nografia), como antes apontava Williams (2004), melodrama, é possível perceber que os modos Melodrama é a forma como os prob- cas da televisão de então. Ele comenta isso ao dizer que, melodramáticos podem participar de outros lemas sociais e as controvérsias de por excelência, o melodrama televisivo trata do banal e do campos audiovisuais e transitar por outros mo- cada época podem ser abordados [...]. ordinário encontrado no real, porém, sua forma de repre- sentar moral e emocionalmente o ordinário estão fora do dos tidos ora como mais realísticos, ora mais O melodrama é um aliado dos sonhos “mundo real”, (em grande virtude) pela presença do exces- cômicos, por exemplo (Williams, 2018, p. 214). E, de revolução. [...] O melodrama tem so como um elemento motivador dessa exponenciação na mesmo deixando de lado o caráter essencialista, estado ao lado dos oprimidos, e por abordagem do ordinário (Thorburn, 1976, p. 603). Ou seja, melodrama e novas temporalidades narrativas parecem es- do horror e no da pornografia. Williams o toma emprestado isso, parece também estar ao lado das tar bem atrelados como fatores que determinam a alta ou e o amplia para incluir também o melodrama, pois entende mudanças sociais e mesmo das rev- que a mobilização característica desse gênero é uma dup- a baixa complexidade do produto televisivo e a visão – de oluções (Williams, 2018, p. 215). demérito ou não - da presença do excesso nestas (a de- la articulação do excesso em termos de êxtase e de espe- pender, claro, do período sócio-histórico de onde se obser- táculo. Assim, embora não exclua a possibilidade de outros gêneros também serem pensados como “do corpo” (como Por isso, taxativamente, ela encerra sua dis- va). o musical e certo tipo de comédia), Williams, em artigo de 4 Segundo Freire (2012, p. 127): “O termo “gêneros do corpo” 1991, põe-se a trabalhar os aspectos estilísticos e políticos cussão de maneira límpida ao deixar clara é na verdade uma formulação de Carol Clover para o tipo de desse elemento, usado de modo estruturante, comum aos sua posição no entendimento de que: “Nem a relação que se estabelece entre obra e público no gênero três gêneros [melodrama, horror e pornografia]”. 151 EXCESSO E MELODRAMA NO DISCURSO FICCIONAL TELEVISIVO: UMA VISÃO DIÁDICA Anderson Lopes da Silva música excessiva e nem a derrota do mal pelo ma como modo já denotam a possibilidade de bem é essencial ao melodrama”. Na verdade: “O Mais do que contrapor duas visões diametral- perscrutar zonas intercambiáveis de formatos, que é essencial, eu afirmo, é o reconhecimen- mente opostas sobre o entendimento de ex- zonas de contatos entre os gêneros, outros mo- to dramático do bem e do mal e que, toman- cesso e melodrama no contexto do discurso dos e outras infinidades de leituras no campo do consciência disso, ao menos a esperança de ficcional televisivo, o que este trabalho tentou audiovisual. Porém, em ambos os casos, o melo- que a justiça possa ser feita (Williams, 2018, p. produzir foi uma reflexão que apontasse como drama não é visto como um mero gênero. Ele é 215). Ou seja, é possível encontrar em Williams a leitura diádica trazida por Brooks (1995) e Wil- mais do que isso: para um autor ele é a imag- mais afinidade entre sua obra e a de Brooks a liams (2018) podem ser úteis a depender do inação melodramática (na lógica de um melo- partir da moral oculta do que propriamente ponto de vista de onde se escolhe trabalhar o drama tido como transgenérico) e para a outra pela leitura do modo do excesso ou estética do objeto a ser analisado. Em outros termos, se a autora ele é visto como ainda mais fluído, mais maravilhamento. Ainda assim, é possível refletir opção por pensar o excesso em Brooks é colo- pervasivo e mais penetrável, isto é, como uma que para Brooks a discussão da moral oculta é cada em destaque, deve-se se considerar que modulação melodramática nada essencialista, fortemente levada para o campo da orientação o foco das discussões pressupõe pensar o ex- mas potencialmente muito circulante nos pro- de uma moral que direcione os saberes, corpos cesso como um elemento contido na imag- cessos de apreensão das produções de sentido. e ações acerca do bem e do mal em um mundo inação melodramática, algo inerente à ela e em que necessita de (uma suposta) ordem no caos comum diálogo de dependência com a moral Nesse sentido, a leitura empreendida aqui (e que é a vida social e, por outra via (talvez) mais oculta e a estética do maravilhamento também tensionada, particularmente, com Brooks e Wil- emancipadora, vê-se que Williams entende a trabalhadas pelo autor. Já se o olhar teórico de- liams) tem a tese de que o excesso não deve ser moral do melodrama como uma perspectiva cide tomar caminho pelas afirmações de Wil- encarado como categoria antonímica à “boa me- que denota potencialmente usos sociais e ap- liams, o entendimento de excesso e melodrama dida” (ao “comedido” bom gosto) em compara- ropriações de leitura da audiência sobre o mun- devem se flexibilizar a ponto de compreender ção rasteira com outras produções tidas como do ficcional para o mundo real a fim de dese- que os dois podem agir em conjunto (como “menos excessivas” e, logo, mais bem-acabadas, struturar o status quo de uma determinada elementos intercambiáveis), mas não há uma sofisticadas. Nesse caso, o excesso pode (e pre- tempo-espaço de vida. hierarquia conceitual que demonstre pertenci- cisa) ser lido como elemento composicional da mento exclusivista de um ao outro, ou seja, o estética e da estilística das obras melodramáti- CONSIDERAÇÕES FINAIS excesso como elemento pervasivo e o melodra- cas (seja pela via de compreendê-lo como um

152 EXCESSO E MELODRAMA NO DISCURSO FICCIONAL TELEVISIVO: UMA VISÃO DIÁDICA Anderson Lopes da Silva

“modo do excesso” preponderante, fundacion- melodrama é entendido como imaginação ou London: Routledge, 2010. al, inalienável e inerente da “imaginação melo- como modo: o excesso – para além de um mero dramática”; mas também pela compreensão juízo de gosto - é parte simbiótica de sua com- COUTINHO, Iluska. Dramaturgia do telejornal- dos “modos melodramáticos” permeados pelo posição e merece ser examinado como tal). ismo: a narrativa da informação em rede e nas excesso, permeados pela “pervasividade do ex- emissoras de televisão de Juiz de Fora - MG. Rio cesso” que não se restringe pura e somente ao de Janeiro: Mauad X, 2012. melodrama, mas que pode encontrar nele um REFERÊNCIAS espaço prolífico de produção de sentido). ELSAESSER, Thomas. Tales of Sound and Fury: ALLEN, Robert C. To be Continued... Soap Op- Observations on the Family Melodrama. In: Por fim, a leitura do excesso precisa ser realo- eras Around the World. London/New York: GLEHDILL, Christine. Home is Where the Heart cada para um viés que o retrate como carac- Routledge, 1995. Is: Studies in Melodrama and the Woman’s terística qualitativa do melodrama e não como Films, 43-69. London: BFI, 1987. elemento definidor de uma presumida ausên- ANG, Ien. Watching Dallas. Soap Opera and the cia de qualidade. Por quê? Porque o excesso Melodramatic Imagination. London: Methuen, ESQUENAZI, Jean-Pierre. As séries televisivas. não é um demérito. Pelo contrário: o excesso, 1985. Lisboa: Texto & Grafia, 2011. quando analisado no contexto do melodrama televisivo, pode ser um referencial teórico, on- BALOGH, Anna Maria. O discurso ficcional na FAHLE, Oliver. Apresentação. In: MUANIS, Felipe. tológico, epistêmico, metodológico e analítico TV: sedução e sonho em doses homeopáticas. A imagem televisiva: autorreferência, temporal- que indica um traço estético indelével das ma- São Paulo: EDUSP, 2002. idade, imersão. Curitiba: Appris, 2018. trizes constituintes do ser melodramático de uma produção. Traços estes que são fortemente BROOKS, Peter. The melodramatic imagination: FAHLE, Oliver. Estética da televisão: passo rumo apreensíveis empiricamente desde a vinheta Balzac, Henry James, Melodrama, and the Mode a uma teoria da imagem da televisão. In: GUIM- de abertura até à construção dos personagens, of Excess. New Haven and London: Yale Univer- ARÃES, César; LEAL, Bruno S.; MENDONÇA, Car- de sequências cênicas, dos leitmotive, da misè- sity Press, 1995. los C. Comunicação e experiência estética. Belo en-scene e da mise en phase televisivas de uma Horizonte: Editora UFMG, 2006. obra melodramática (isto é, não importa se o BUTLER, Jeremy. Televison Style. New York &

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155 “COMFORT SERIES”: TEORIA PARA ALÉM DA “TV DE QUALIDADE” Melina Meimaridis (UFF)1

1 sure of this experience lies in the fact that these das produções continua reproduzindo fórmulas Resumo: Este trabalho busca iniciar uma discus- productions present the world in an orderly way consagradas do passado. Exemplos notáveis in- são em torno das Comfort Series, séries que, a by triggering hegemonic myths and mythologies cluem: dramas policiais, Law in Order: SVU (NBC, despeito de suas elevadas audiências, têm sido in the American society and also by the organi- pouco exploradas pela literatura acadêmica. Essas zational presence of fictional social institutions. 1999-Presente) e NCIS (CBS, 2003-); médicos, Grey’s produções se tornam importantes devido a capa- Thus, we reinforce a certain quality or sociological Anatomy (ABC, 2005-Presente), e The Good Doctor cidade de fornecer ao espectador uma experiência de seguran- value that exists in Comfort Series and its poten- (ABC, 2017-); jurídicos, The Good Wife (CBS, 2009- ça que será traduzida como conforto. Defendemos que o prazer tial for the study of television fictional series. 2016) e Suits (USA, 2011-); e familiares, Brothers and desta experiência reside no fato de que essas produções apre- Keywords: Television; TV Series; Comfort Series; sentam o mundo de forma ordenada por meio do Myth. sisters (ABC, 2006-2011) e This is us (NBC, 2016-); ou acionamento de mitos e mitologias hegemônicos as comédias de amigos, Friends (NBC, 1994-2004) na sociedade americana e, também, pela presen- e The Big Bang Theory (CBS, 2006-2019); de família ça organizadora das instituições sociais ficcionais. INTRODUÇÃO Reforçamos, assim, certa qualidade ou valor sociológico que existe Em 2019 a previsão da indústria televisiva Modern Family (ABC, 2009-) e Black-ish (ABC, 2014- nas Comfort Series e seu potencial para os estudos da ficção seriada ) e de trabalho The Office (NBC, 2005-2013) e Parks televisiva. americana é que serão produzidas aproximada- Palavras-chave: Televisão; Ficção Seriada Televisi- mente 530 séries2, muito mais do que as 210 pro- and Recreation (NBC, 2009-2015). Séries como va; Comfort Series; Mito. duzidas nos dez últimos anos3. O momento atual essas ocupam as posições mais altas da lista das foi descrito por John Landgraf, CEO do canal FX, mais assistidas na televisão nas últimas décadas, Abstract: This work seeks to initiate a discussion por que isso acontece? about Comfort Series, series, which, although como a era da “Peak TV”, ou seja, da abundância de reaching high ratings, have been overlooked by conteúdo. É interessante notar que a despeito da Na maior parte dos casos, as respostas the scholarly literature. These productions be- ampla concorrência e promessas de “liberdade” fornecidas são variações de um mesmo postula- come important because of their ability to provide autoral para os criadores das séries, a maior parte do paradoxal: o sucesso dessas séries se explica the viewer with an experience of security that will Neste número está somado todas as produções roteirizadas justamente pelas qualidades que lhes faltam. Por be translated as comfort. We argue that the plea- 2 da televisão aberta, a cabo e dos serviços de streaming já trás desse argumento se esconde uma premissa 1 Doutoranda em Comunicação no Programa de Pós-Graduação existentes. Para maiores informações ver: https://www. da Universidade Federal Fluminense e graduada em Estudos de hollywoodreporter.com/live-feed/fx-chief-scripted-originals- elitista, de que as massas abominam ou pelo me- could-top-530-2019-1170259 Acessado em 04 de março de 2019. Mídia pela mesma Universidade. Membro do projeto Série Clube nos são incapazes de apreciar obras de “boa qua- (UFF), dedicado ao estudo da ficção seriada televisiva e do grupo 3 http://www.btlnews.com/news/73461/ Acessado em 04 de de pesquisa TeleVisões (UFF). [email protected] março de 2019. 156 “COMFORT SERIES”: TEORIA PARA ALÉM DA “TV DE QUALIDADE” Melina Meimaridis (UFF) lidade”. Aqui, defenderemos que essas produções da arte dos estudos de televisão, com foco na lite- existência da TV. Contraditoriamente, a televisão se encaixam na categoria de análise das Comfort ratura sobre as séries televisivas americanas. De- foi vista com entusiasmo em seus primeiros anos Series e, alternativamente, sugerimos que o suces- pois, examinamos o conceito de “entretenimento de existência, entretanto o período de ânimo com so delas deve ser explicado pelas qualidades que consolatório” proposta por Ellis (2007) e a noção o meio rapidamente se esgotou com pesquisado- elas possuem. Há algo que faz delas mais atraentes psicologizante de “feel-good television” na análise res de diferentes áreas propondo críticas a televi- para mais pessoas, em comparação com aquelas das séries televisivas, entretanto argumentare- são. Estabeleceu-se, assim, entre as elites culturais de narrativa mais sofisticada. Para tal, abordamos mos que estes dois conceitos são insuficientes no e políticas de países ocidentais4, a concepção de essas séries sob uma perspectiva fundamental- estudo destes produtos e, portanto, propomos que a televisão seria um “objeto ruim” (HILMES, mente sociológica, antes que estética. Nosso ar- examinar as séries por meio da categorização teó- 2005). Muito da crítica direcionada ao meio tele- gumento é que essas séries respondem a neces- rica das Comfort Series. Para tais fins, nos utiliza- visivo foi influenciada pelo pensamento oriundo sidades existenciais dos seus espectadores de remos de alguns exemplos pontuais. Gostaríamos da Escola de Frankfurt, que possuía um olhar crí- um modo que aquelas mais sofisticadas não são de reforçar que este é um primeiro passo numa tico à Cultura de Massa. Para os frankfurtianos, a capazes de fazer, na medida em que atendem às discussão maior sobre a teorização das Comfort televisão representaria um perigo, uma vez que o suas demandas de segurança ontológica, isto é, a Series e das instituições sociais ficcionais. aparelho televisivo “invadiria” o espaço doméstico percepção de que vivem em um mundo social or- de milhares de lares, espalhando as ideologias das denado. Em particular, sugerimos que as Comfort ESTADO DA ARTE E DESAFIOS NO ESTUDO classes dominantes e reforçando o capitalismo Series possuem características que as aproximam DAS SÉRIES AMERICANAS para centenas de milhares de pessoas de uma vez dos mitos, servido, dessa maneira, como mecanis- Apesar do forte estigma que circunda a só. Concomitantemente, outros teóricos critica- mos de propagação da fala mítica sobre conflitos televisão, o meio não surgiu na sociedade sendo vam a televisão pelo viés tecnológico: entendia-se existenciais, anseios da vivência humana ou pro- visto como um mal a ser enfrentado, muito menos 4 Devido às limitações espaciais para a produção deste artigo, blemas pertencentes ao dia-a-dia dos sujeitos. como uma mídia de “menor qualidade”, essas opi- optou-se por utilizar de forma geral uma literatura sobre o campo de estudos da televisão oriunda de países ocidentais, e particularmente, Para melhor apresentar nosso argumento, niões, e consequentes discursos, sobre ela foram do contexto americano. Ressalta-se, entretanto, a importância de se começamos apresentando brevemente o estado construídos ao longo das primeiras décadas de olhar para as construções discursivas em torno do meio televisivo além do Ocidente, de modo a compreender se a construção do olhar estigmatizado da televisão também se reproduziu em países orientais. 157 “COMFORT SERIES”: TEORIA PARA ALÉM DA “TV DE QUALIDADE” Melina Meimaridis (UFF) que a televisão possuiria uma qualidade “viciante” conteúdo televisivo seria criado de forma indus- utilizada para redimir o meio, ou seja, apontam- (CAVELL, 1983), capaz de colocar seus especta- trial, os programas seriam elaborados através de -se programas televisivos merecedores de receber dores em uma espécie de “transe hipnótico” que, modelos pré-estabelecidos, produzidos em série atenção, produtos de destaque dentre o restante paradoxalmente, encorajaria certa passividade ao para uma grande audiência, que era considerada da programação televisiva, a qual era considerada mesmo tempo em que também era capaz de le- como uma “massa” monolítica. Essa homogenei- pejorativamente como um “vasto deserto”5. var a atos de violência e comportamento agressi- zação da produção acarretaria em consequências Em parte, a construção da televisão como vo. Contudo, as críticas direcionadas a influência na natureza artística dessas obras, que perderiam uma mídia “menor” também se deve a associação negativa da televisão não se limitam ao seu con- elementos fundamentais das obras de arte, como entre a massa e a mulher. Petro indica que en- teúdo, mas também a própria natureza da expe- a “autenticidade” e a “originalidade”. quanto as discussões sobre a arte tendem a ser riência televisiva (WINN, 1977). A visão negativa da indústria cultural con- acompanhadas por “metáforas de gênero que li- Além dessas críticas, popularizaram-se os tribuiu para que a pesquisa acadêmica focasse no gam valores ‘masculinos’ de produção, atividade e ataques a natureza artística do meio televisivo. cinema, particularmente aquele de caráter “artís- atenção” o debate sobre a cultura de massa acio- A televisão e seus produtos foram vistos com um tico e autoral”, em detrimento das produções tele- nam valores “‘femininos’ de consumo, passividade olhar negativo pelo viés estético. Inicialmente, as visivas, consideradas massivas e excessivamente e distração” (1986, p.6, tradução nossa). Por outro produções televisivas não foram reconhecidas “repetitivas”. Nesse sentido, a televisão foi cons- lado, a aproximação da televisão nos Estados Uni- como expressões artísticas por causa da dicoto- truída como um meio inferior as outras formas dos ao feminino ocorreu por conta de diversos mia que separa a arte da mercadoria. De acordo já legitimadas de arte, como o cinema e a litera- fatores, dentre eles ressaltamos a domesticidade com a teoria crítica, os produtos massivos, basea- tura (SCHWAAB, 2013). Devemos atentar ao fato atrelada ao meio, a programação inicialmente di- dos em torno de fórmulas, prejudicam a experiên- de que as críticas feitas a televisão tendem, com recionada ao público feminino (SPIGEL, 1989), e a cia estética do indivíduo ao lhe proporcionar um raríssimas exceções, a denegrir e rebaixar o meio 5 Em 1961, o presidente da Federal Communications Commission, Newton N. Minow realizou o discurso intitulado “Television and the “encontro textual facilitado [...] passivo e cooptado como um todo, ao contrário de focarem em casos public interest”. Dentre suas falas Minow se referiu a programação televisiva como um “vasto deserto”. Essa visão pejorativa da televisão pela ideologia dominante” (KLINGER, 2006, p.153, específicos, gêneros e produtos inferiores. Este impactou a forma como o meio foi abordado na sociedade americana. tradução nossa). Na lógica da indústria cultural, o fato contribui para que a estratégia oposta seja Para acessar o discurso original em inglês: http://time.com/4315217/ newton-minow-vast-wasteland-1961-speech/ Acessado dia 05 de março de 2019. 158 “COMFORT SERIES”: TEORIA PARA ALÉM DA “TV DE QUALIDADE” Melina Meimaridis (UFF) aproximação com a 2ª onda do movimento femi- Esses produtos culturais, oriundos dos canais a Television”, que limita os objetos a um grupo se- nista, em que muitas pesquisadoras do movimen- cabo, são frequentemente direcionados a um pú- leto de treze8 produções que representariam essa to batalharam para que os estudos de televisão blico diferente que não era tradicionalmente rela- “nova televisão”. Notadamente todas são produ- fossem colocados na agenda acadêmica dentro cionado ao meio televisivo, definido por Newman ções que aderem a categoria dos “dramas de qua- dos estudos de cinema (HILMES, 2005). como “mais masculino, adulto e sofisticado em lidade”. A tendência de rebaixar a televisão como comparação com aqueles associados com a tele- Ao percorrermos todo este processo de forma artística começou a ser progressivamen- visão comum, concebida como cultura de massa estigmatização da televisão chegamos à conclu- te revertida a partir das décadas de 1980 e 1990, feminizada, endereçada ao menor denominador são de que essa construção não se refere somente quando algumas produções televisivas começa- comum” (2016, p.3, tradução nossa). Dessa forma, ao seu conteúdo, sua estética, ou até mesmo sua ram a ser exaltadas pela qualidade estética e nar- ao reiterar esse discurso reforça-se a equivoca- forma tecnológica, mas, sim a disputas em outros rativa, sendo por vezes julgadas em função de sua da concepção de que a televisão foi se tornando campos simbólicos, como no campo dos estudos suposta aproximação com uma estética “cinema- “boa” a medida em que foi “melhorando” o seu pú- de gênero e classe. Observamos que, enquanto a tográfica” (SEPINWALL, 2012). Essa redenção está blico: antes “feminino” e “desatento”, e agora “mais televisão “ordinária”, como é chamada, é associada associada ao surgimento e difusão de canais de masculino” e “exigente”. com um público de classe mais baixa e a grupos televisão fechada, principalmente premium cable, Com o surgimento de novos panoramas sociais subordinados, como mulheres e crianças, que reivindicaram para si um status de “cinema- teóricos, a televisão de maneira geral e as séries as hierarquias culturais são frequentemente uti- tográfico”6 (cinematic) para ressaltar a qualidade em particular, começam a ser redimidos por pes- lizadas para valorizar determinadas formas e ex- (“superior”) dessas produções em relação à tele- quisadores, entretanto observa-se que apenas periências televisivas, principalmente, aquelas as- visão tradicional e, desse modo, configurar um um pequeno grupo de produções são considera- sociadas ao gênero masculino e/ou ao gosto das produto adequado a um público de nicho, mais das “redimíveis” dentre toda a produção televisiva elites (LEVINE, 2016). elitizado, que podia pagar a assinatura mensal. considerada “convencional”. Um exemplo disso é Acessado dia 05 de março de 2019. a recente chamada para o dossiê da revista Cana- 8 As produções são: The Sopranos, The Wire, Six Feet 6 Deve-se ter cautela ao atribuir o status de “cinematográfico” para as dian Review of American Studies7, intitulado “New Under, Deadwood, Breaking Bad, Better Call Saul, Mad Men, True séries televisivas, pois a expressão perpetua uma antiga e já obsoleta Detective, House of Cards, Weeds, Veep, Transparent, and High hierarquia de mídia audiovisual. (JARAMILLO, 2013). 7 Para mais informações ver: https://www.utpjournals.press/loi/cras Maintenance. 159 “COMFORT SERIES”: TEORIA PARA ALÉM DA “TV DE QUALIDADE” Melina Meimaridis (UFF)

Ao longo da história da televisão se popu- que essas séries que passam quase despercebidas “passar despercebidos”, porém estão presentes no larizaram perspectivas e discussões que tentam no nosso cotidiano exercem um papel sociológico nosso cotidiano, propagando mitos e exaltando legitimar o meio como um aparato importante significativo, como argumentaremos a seguir. os valores e a moral da sociedade americana. Nes- no cotidiano ou focam em determinados progra- te sentido, um estudo focado nas Comfort Series mas que seriam singulares, inovadores e se dis- POR UMA TEORIA DAS COMFORT SERIES é em primeira instância uma análise do popular. tanciam do restante da programação tradicional. A expressão Comfort Television, uma de- Propomos, então, uma reflexão que rompe com o Neste processo, muito do discurso utilizado para rivação do termo Comfort Food9, começou a ser preconceito intelectual para com estes produtos se exaltar essa “programação distinta” é embasa- utilizada para se referir a um determinado tipo em particular e com a televisão em geral. do em uma retórica que tende a denegrir a pro- de programação televisiva que proporciona certo A despeito do enorme sucesso junto ao gramação televisiva considerada “ordinária”, dessa conforto à luz das ansiedades e do caos da vida público (ou talvez por causa dele) séries como maneira reforçando que apenas alguns produtos contemporânea. Devido às limitações espaciais Grey’s Anatomy, The Big Bang Theory e NCIS se si- e/ou experiências televisivas são merecedoras de deste artigo, não iremos ponderar sobre as di- tuam em um buraco negro na pesquisa sobre te- atenção e, mais que isso, validação. De maneira versas formas de produtos que podem se inserir levisão. Supostamente desprovidas de um valor geral, uma “boa televisão” seria uma “não-televi- na categoria de Comfort Television, mas daremos de distinção artístico, julgadas como de pouco são” (ELLIS, 2007; NEWMAN, 2016). Entendemos atenção para as produções ficcionais seriadas, es- valor educacional e distantes de uma função cla- que esta noção é um dos principais fatores por pecificamente, as séries e os seriados. Cunhamos, ramente informativa, caem na categoria restante trás da invisibilidade das Comfort Series nas pes- assim, a categoria teórica das Comfort Series. En- de “entretenimento”, julgada como banal demais quisas e nos debates acadêmicos. Contudo, é esta tendemos que a importância dessas produções para merecer um esforço de investigação acadê- programação “normal” que está sendo consumida deriva justamente da banalidade desses produtos, mico consistente. John Ellis propôs o termo “en- cotidianamente. São essas as séries que ficam dé- que ao serem consumidos diariamente, chegam a tretenimento consolatório”, definido como “en- cadas no ar e, consequentemente, são as que mais tretenimento que fornece conforto e liberta das 9 A expressão Comfort Food é usada para se referir a algum alimento contribuem para moldar a forma como enxerga- ou prato que possui um valor nostálgico, muitas vezes receitas simples tensões da vida mundana” (2007, p.13, tradução mos o mundo a nossa volta. Aqui, entendemos e saborosas que nos remetem a boas experiências ou lembranças do nossa), para abordar diversos formatos de progra- passado e que têm a capacidade de melhorar o estado de espírito (LOCHER, 2002). 160 “COMFORT SERIES”: TEORIA PARA ALÉM DA “TV DE QUALIDADE” Melina Meimaridis (UFF) mas, como sitcoms, dramas de mistério, talk shows, diocridade, condição na qual não há como elevar Sheldon (CBS, 2017–Presente), como “feel-good te- game shows, programas de variedade, dentre tan- seu status cultural dentro ou fora da Academia. levision”10, ou “televisão para se sentir bem”. O ar- tos outros. Porém a visão de Ellis sobre esta forma A problemática noção do conteúdo “pouco gumento se baseia na equivocada noção de que de entretenimento é parcial, visto que para ele as exigente” se deve principalmente ao fato destas são narrativas emocionalmente pouco desgastan- produções pertencentes a categoria do “entrete- produções serem baseadas em fórmulas já consa- tes e são “leves”. Isto ocorre porque estes produ- nimento consolatório” são uma forma de entrete- gradas, se tornando, assim, familiares e previsíveis tos se aproximam de gêneros “menores” como o nimento “pouco exigente” (p.14) a qual se encon- aos espectadores. É comum se deparar com o ar- melodrama ou a comédia. Entretanto, a associa- traria fora da categoria da “boa televisão”. O autor, gumento da “baixa qualidade” para explicar o su- ção destas narrativas com a noção de “leveza” é assim, associa este tipo de entretenimento a um cesso duradouro de séries como Friends, The Men- insustentável. Em primeiro lugar, a “leveza” é uma consumo que, muitas vezes, conduz o espectador talist (CBS, 2008-2015) e Supernatural (CW, 2005-). característica pouco precisa. O que pode ser con- a se sentir “culpado”, os chamados guilty pleasures. Por trás deste argumento reside a controversa e siderado “leve” em uma narrativa? E, mais impor- Entretanto, devemos questionar e problematizar popular noção de que um determinado conteú- tante, quem determina quais são estes elemen- a noção de um consumo “culpado”. O indivíduo do televisivo “é bom porque é ruim”. O argumento tos? Sendo, assim, é uma atribuição pouco útil na sente culpa por estar consumindo um produto tem como fundamento a preconceituosa noção análise das séries televisivas. Em segundo lugar, a que ele considera inferior aos seus padrões de de que estas produções são “pouco exigentes” e categorização de uma narrativa “leve” parece não gosto? Ou sente culpa porque está consumindo demandam pouca atenção/engajamento de seus ser adequada para se referir a um grande núme- algo que a sociedade (e a Academia) tem consi- espectadores. Também está alicerçada na já defa- ro de produções pertencentes as Comfort Series, derado como um produto cultural de baixo valor? sada visão de um espectador passivo e distraído principalmente, aquelas mais próximas do drama. Seriam necessárias outras pesquisas para respon- que busca na experiência televisiva apenas um Tomemos Grey’s Anatomy como exemplo. der tais questionamentos, mas o que queremos “entretenimento descomplicado”. O drama acomanha o dia-a-dia de um grupo de apreender aqui é que ao associar a categoria do Ao mesmo tempo, a indústria audiovisual profissionais de saúde que tenta salvar as vidas de “entretenimento consolatório” a do “guilty pleasu- americana tem nos últimos anos se referido a pro- seus pacientes. O seriado é visto como uma ver- res” Ellis condena estes produtos a esfera da me- duções como The Good Doctor, This is Us e Young 10 https://www.vulture.com/2017/10/fall-tv-2017-lessons-for- network-tv.html 161 “COMFORT SERIES”: TEORIA PARA ALÉM DA “TV DE QUALIDADE” Melina Meimaridis (UFF) são “feel-good” de outro drama médico, especifi- conforto aos seus espectadores, no entanto, não televisão (DAYAN & KATZ, 1994), no telejornalis- camente, ER (NBC, 1194-2009)11. No entanto, ao é simplesmente por ser uma narrativa “leve”, mas, mo (GAUNTLETT & HILL, 2002) e nos reality shows longo de suas temporadas os episódios apresen- sim, uma narrativa ordenada. (CAMPANELLA, 2010). Gostaríamos de levar esse taram diversos conflitos e momentos de grande Ao examinarmos uma variedade de Com- argumento um passo adiante e sugerir que ela tensão em que os espectadores temem pela vida fort Series pertencentes a gêneros distintos, pro- também se aplica às narrativas ficcionais seria- de seus personagens favoritos, dessa forma, afas- duzidas por canais da TV aberta, fechada e dos das televisivas. As Comfort Series apresentam um tanto a produção da categoria de “entretenimen- serviços de streaming, observamos que essas mundo imaginado que compartilha elementos to leve”, como por exemplo, uma bomba no hos- produções possuem características que as aproxi- com o mundo cotidiano dos espectadores. Dessa pital (“It’s the End of the World”, 2x16; “As we know mam dos mitos. Duas delas nos interessam espe- maneira, elas são uma representação do social, it”, 2x17), um atirador andando pelos corredores cificamente aqui. A primeira tem a ver com o que porém, de forma ordenada e se configuram como e matando cirurgiões (“Sanctuary”, 6x23; “Death elas oferecem aos espectadores: uma experiência um tipo de “porto seguro” para seus consumido- And All His Friends”, 6x24), médico atacado por um ordenada do mundo. Esse aspecto já foi desta- res, ao incessantemente reassegurar que o mun- paciente em um estado de surto (“The Sound of Si- cado por diversos autores, no que diz respeito à do ficcional, por meio de suas instituições sociais lence”, 12x9) e assim por diante. televisão. Segundo eles, a televisão, junto de ou- ficcionais, é organizado e contínuo. Com isto posto, entendemos que enquan- tros meios de comunicação, como, os jornais e o Para entendermos como essa lógica opera to a designação de “Feel-good television” é uma rádio, ocupa um lugar importante na formação do no contexto específico das Comfort Series, temos abordagem individual e psicologizante, a propos- cotidiano de seus consumidores, principalmente, que considerar um segundo aspecto do fenôme- ta das Comfort Series é uma abordagem social, re- devido a sua forte presença caseira que a torna no, relativo à natureza da narrativa mítica. Como lacionada a hábitos e familiaridade. Porém, nota- inseparável da rotina dos sujeitos contemporâ- muitos autores já ressaltaram, a narrativa mítica se -se que este argumento parece se aproximar mais neos. A maior parte dos trabalhos que exploram caracteriza por uma lógica caracterizada pela cir- do problema do que o anterior, ao revelar que essa perspectiva têm focado a análise na televi- cularidade (ELIADE, 1998[1986]) e repetição (BAR- existe algo nestas narrativas capaz de fornecer são entendida de maneira geral (SILVERSTONE, THES, 2001[1957]; LÉVI-STRAUSS, 2008[1958]) de 1994), em eventos cerimoniais transmitidos pela temas fundamentais que se apresentam em uma 11 https://www.vulture.com/2016/05/greys-anatomy-is-a-better- show-than-it-gets-credit-for.html Acessado em 10 de maio de 2019. 162 “COMFORT SERIES”: TEORIA PARA ALÉM DA “TV DE QUALIDADE” Melina Meimaridis (UFF) determinada sociedade. Por outro lado, a repeti- da realidade, dotando-os de uma justificativa na- amor e sucesso profissional, por meio de mitos e ção também tem sido destacada como uma carac- tural (BARTHES, 2001). No processo da fala mítica, as encaminhe para uma (pseudo)resolução a cada terística intrínseca da televisão (KOMPARE, 2006) as contradições são reprimidas em vez de resolvi- episódio. Assim, essas produções são capazes de devido as imposições do seu modelo de econo- das e os ideais dominantes de uma sociedade são traduzir sentimentos e anseios mais complexos mia política (grade de programação) e, também, idealizados. Barthes nos alerta que o processo da de uma forma simplificada semanalmente. por conta das demandas de formato e/ou narra- naturalização torna os mitos quase que invisíveis As Comfort Series não são, portanto, nar- tivas de seus produtos. Embora originadas na ló- para nós. rativas utópicas em que seus personagens não gica da televisão aberta, autores têm observado As Comfort Series como modelo narrativo, enfrentam dificuldades. Nessas narrativas os per- que essa lógica se conserva ainda nas produções servem como um produtor e propagador ideal sonagens enfrentam adversidades e as superam oriundas dos serviços de streaming, como a Net- para a fala mítica, tanto devido as demandas e a cada episódio. Seja após a perda de um empre- flix (JENNER, 2018). Para além disso, cabe destacar imposições pertencentes a economia política do go (Friends, “The one with t five stakes and an eg- que a dimensão mítica da televisão tem sido re- meio, quanto por causa das necessidades da estru- gplant”, 2x5), término de um relacionamento (Gil- correntemente sublinhada por diversos pesquisa- tura narrativa dramática das séries televisivas, que more Girls, “Say Something”, 5x14) ou até mesmo a dores, que indicam a presença de mitos em uma é organizada em torno de uma dinâmica repetiti- morte de um ente querido (How I Met Your Mother, variedade de produtos, gêneros e formatos televi- va que intercala momentos de equilíbrio/desequi- “Last Words”, 6x14), a dimensão mítica das Comfort sivos, desde os noticiários até as novelas e séries líbrio/reequilíbrio da ordem existente (TODOROV, Series conduz as dificuldades enfrentadas pelos (KELLNER, 1982; SILVERSTONE, 1994). 1977). Ao passo em que esta repetição fornece à personagens a uma resolução bem definida. Es- A discussão sobre mito e mitologia é ex- narrativa certa previsibilidade (característica me- sas soluções, no entanto, podem ser consideradas tensa e o conceito já foi definido de diversas for- nosprezada pelo olhar estético direcionado as (pseudo)resoluções ou resoluções simplistas, que mas. Aqui entendemos os mitos como um sistema produções televisivas), essa qualidade possibilita “magicamente harmonizam fenômenos conflitan- de significação, que, por meio do caráter ideológi- que as Comfort Series apresentem histórias em- tes” (KELLNER, 1982, p.136, tradução nossa). Sob co das imagens e das histórias apresentadas, ser- basadas em controvérsias, anseios existenciais ou outra perspectiva, enquanto Lévi-Strauss (2008) vem para camuflar a natureza de vários aspectos conflitos cotidianos, como a busca pela felicidade, indica que os mitos apresentam contradições que

163 “COMFORT SERIES”: TEORIA PARA ALÉM DA “TV DE QUALIDADE” Melina Meimaridis (UFF) irão resolver oposições binárias, nas séries as con- sua família (“The One Where Underdog Gets Away”, não sofre as consequências e nem enfrenta as di- tradições mais comumente trabalhadas são de 1x09) e ir a um show do Hootie and the Blowfish ficuldades que muitas mulheres têm que lidar ao cunho social. E essas serão resolvidas de forma (“The One with Five Steaks and an Eggplant”, 2x05). tentar conciliar o trabalho com a maternidade. Ela mítica. Cansada de seu trabalho humilhante e das gorje- consegue facilmente garantir sua licença materni- Como forma de ilustrar este argumento, tas baixas, Rachel pede demissão (“The One Where dade e, por conta de um desentendimento com iremos examinar brevemente a trajetória profis- Rachel Quits”, 3x10), porém, no mesmo episódio, Joey, consegue um mês a mais de licença (“The sional/financeira de Rachel (Jennifer Aniston) em já consegue outro emprego por meio de indica- One with the Tea Leaves”, 8x17). A série termina Friends. A personagem começa a série se mudan- ção do Joey (Matt Leblanc). O novo trabalho tam- com Rachel sendo demitida da Ralph Lauren e no- do para Nova Iorque após deixar seu noivo no bém é degradante, todavia, no episódio seguinte vamente “esbarrando” ao acaso com Mark e con- altar e ela, sem grandes habilidades profissionais (“The One Where Chandler Can’t Remember Which seguindo um emprego na Louis Vuitton em Paris e dependente financeiramente de seu pai, con- Sister”, 3x11), Rachel conhece por acaso Mark (Ste- (“The One with Princess Consuela”, 10x14). Rachel segue um emprego quase que imediatamente ven Eckholdt), um funcionário da Bloomingdale’s aceita prontamente a proposta, sem grandes em- no Central Perk (“Pilot”, 1x01). Embora Rachel re- que consegue pra ela um emprego na empresa, pecilhos, apesar de dividir a custódia da filha. Des- clame do seu baixo salário (“The One with George mesmo a personagem não tendo nenhuma ex- se modo, podemos perceber que Rachel raramen- Stephanopoulos”, 1x04), a personagem não sofre periência profissional ou formação no ramo da te passa por insegurança financeira, mesmo nos grandes consequências, continua morando no moda, apenas um interesse pessoal por compras. episódios em que pede demissão ou é demitida apartamento estiloso com Mônica e saindo com Desse momento em diante, ela se estabiliza pro- ela sempre consegue outro emprego no mesmo seus amigos. Em duas ocasiões a questão é levan- fissionalmente indo da Bloomingdale’s para um episódio, assim, não criando muitos conflitos ao tada novamente, porém sua dificuldade financei- emprego na Ralph Lauren em que, eventualmen- longo prazo, apenas tensão dramática suficiente ra nunca a impossibilita de continuar vivendo seu te, é promovida para a gerência (“The One With Ra- dentro da estrutura narrativa do episódio. estilo de vida, apenas afeta determinadas ativida- chel’s Assistant”, 7x04). Com isso em mente, observa-se que, em- des custosas que ela gostaria de fazer caso tivesse Até mesmo na oitava temporada, quando bora os dilemas da personagem encontram (pseu- recursos suficientes, como uma viagem de ski com Rachel engravida e opta por ser mãe solteira, ela do)resoluções, a dimensão da narrativa é marcada

164 “COMFORT SERIES”: TEORIA PARA ALÉM DA “TV DE QUALIDADE” Melina Meimaridis (UFF) pela desordem e pelo caos, ou seja, é uma histó- sonho americano, a cidade em que Lorelai mora dica, policial e jurídica, com incontáveis dramas ria guiada por pequenas ou grandes dificuldades com sua filha também ecoa as aspirações do mito institucionais. que simbolizam as adversidades enfrentadas co- com praticamente todos os personagens coadju- Ao propor que as Comfort Series se confi- tidianamente pelos indivíduos. Alternativamente, vantes sendo proprietários de seus próprios ne- guram como um “porto seguro” defendemos que as questões financeiras e dificuldades de se morar gócios, como a lanchonete do Luke Danes (Scott essas produções atendem a uma demanda espe- em uma cidade grande, ao serem apagadas da sé- Patterson), a padaria da Fran Weston (Linda Por- cífica: a necessidade de se ver o real apresentado rie, contribuem para reforçar uma certa narrativa ter) ou o supermercado do Taylor Doose (Michael de forma ordenada. Neste sentido, ao contrário de de sucesso que se aproxima do mito do American Winters), dentre outros (BUCKMAN, 2010). enquadrar Grey’s Anatomy e outras Comfort Series, dream, o “sonho americano”. Dessa maneira, as Comfort Series reduzem como Criminal Minds (drama policial focado em Similarmente, na dramédia familiar Gilmo- conflitos em símbolos e mitologias mais sim- encontrar psicopatas e serial killers) e Law in Or- re girls (The WB, 2000-2006/ The CW, 2006-2007) a plificados que reforçam, assim, valores e ideais der: SVU (drama jurídico-policial focado na reso- trajetória da personagem Lorelai Gilmore (Lauren hegemônicos da sociedade americana, como o lução de crimes direcionados a vítimas “especiais” Graham) pode ser considerada um reflexo do so- American Dream supracitado, a ética trabalhista [mulheres, crianças e adolescentes]), como nar- nho americano: ela engravidou aos 16 anos, saiu (Charlie’s Angels [ABC, 1976–1981] e Parks and Re- rativas “leves”, defendemos que essas produções, de casa e começou um emprego como uma em- creation) e os valores cristãos12(7th Heaven [The mesmo movidas por tensão dramática, centradas pregada em uma pequena pousada. Com o pas- WB, 1996–2006/ The CW, 2006–2007)] e Touched em embates de vida e morte e focadas nas mais sar dos anos, sua autoconfiança e determinação by an angel [CBS, 1994–2003)]. Simultaneamente, diversas camadas da perversidade humana, con- para garantir tudo que sua filha necessitasse, jun- essas narrativas reforçam instituições, como a fa- seguem fomentar por meio da ficcionalização de tamente com seu trabalho duro, a levam a ascen- mília (This is Us e Brothers and Sisters), o casamento instituições sociais o senso de segurança ontoló- der na pousada até ela assumir a gerência. Com o (Mad about you [NBC, 1992–1999) e Dharma and gica (GIDDENS, 1991) dos sujeitos. Para Giddens, tempo, Lorelai consegue ser dona de sua própria Greg [ABC, 1997–2002)], além da instituição mé- segurança ontológica refere-se: pousada. Mas não é só na história da protagonis- 12 Nos Estados Unidos a maior parte da população se identifica com a ta que observamos elementos relacionados ao fé cristã. Especificamente 70,6% da população. Para mais informações à crença que a maioria dos seres ver: http://www.pewforum.org/religious-landscape-study/ Acessado humanos têm na continuidade de dia 13 de março de 2019. 165 “COMFORT SERIES”: TEORIA PARA ALÉM DA “TV DE QUALIDADE” Melina Meimaridis (UFF)

sua auto-identidade e a na constân- variados (GIDDENS, 1991). Gostaríamos de propor lhos futuros devem se concentrar em ampliar este cia dos ambientes de ação social e que as Comfort Series podem se configurar como debate em busca de respostas para compreen- material circundantes. Uma sensa- ção da fidedignidade de pessoas e um desses mecanismos. Assim, entendemos que dermos como os imaginários das instituições so- coisas, tão central à noção de con- essas séries, ao ficcionalizarem instituições sociais ciais são construídos através das Comfort Series e fiança, é básica nos sentimentos de e apresentarem as mesmas como sendo organi- como os dramas institucionais podem ser utiliza- segurança ontológica; daí os dois serem relacionados psicologica- zações funcionais (FOSS, 2011) e importantes na dos como instrumentos capazes de naturalizar e mente de forma íntima. (1991, p. sociedade (JENKINS, 2016), contribuem na cons- propagar ideias e mitos sobre as instituições ame- 84) trução social da confiança. As instituições sociais ricanas. ficcionais são responsáveis por ordenar e pro- Em outras palavras, uma pessoa ontológi- porcionar ritmo a narrativa. Isso ocorre de forma CONSIDERAÇÕES camente segura não tem sua existência colocada similar aos processos de ordenação das próprias Enfatizar a importância das Comfort Series em risco pelas circunstâncias cotidianas da vida. instituições sociais ao nosso redor. Neste sentido, foi o objetivo central deste artigo. Ao as exami- No contexto da modernidade tardia, Giddens indi- essas produções se tornam mais do que apenas narmos como uma categoria composta por uma ca que as mudanças proporcionadas à sociedade produtos capazes de “consolar” ou “amenizar” as variedade de produtos, somos capazes de encon- pelas revoluções industriais e tecnológicas con- dificuldades cotidianas, mas desempenham um trarmos questões até então invisibilizadas, mas tribuíram para um ambiente repleto de perigos e papel na construção dos imaginários associados que são essenciais para compreender as ficções marcado pelo risco. Para o autor, modificaram as a estas instituições. seriadas televisivas contemporâneas e sua po- relações humanas, que passaram de interações Infelizmente, as limitações espaciais des- pularidade. Estamos propondo, dessa forma, que essencialmente face-a-face, para interações de- te trabalho não nos permitem avançar mais nes- uma Comfort Serie é uma narrativa que se utiliza pendentes e mediadas por sistemas de confiança. ta discussão, porém ressaltamos que a discussão da fala mítica para abordar temas existenciais e Essa confiança não é gratuita, mas estabelecida em torno das instituições sociais ficcionais ainda é contradições cotidianas por meio de uma estru- através da vivência dos indivíduos em uma socie- pouco explorada na literatura acadêmica13. Traba- tura narrativa repetitiva. Essa motivação faz parte dade que constantemente os lembra de que os sis- mesmas como elementos significativos nas narrativas. Não estamos 13 Estamos nos referindo a falta de trabalhos que abordem considerando as pesquisas sobre a representação de determinadas temas peritos funcionam através de mecanismos as instituições ficcionais e os processos de ficcionalização das instituições e ou profissionais na ficção. 166 “COMFORT SERIES”: TEORIA PARA ALÉM DA “TV DE QUALIDADE” Melina Meimaridis (UFF) de um esforço maior de propor novos caminhos Por fim, ressaltamos que este trabalho é CAVELL, S. The fact of television. Daedalus, outo- para o debate da ficção seriada televisiva a partir apenas um olhar introdutório sobre as Comfort no, p. 75–96, 1982. de um possível valor sociológico associado a estas Series. Apontamos que análises mais sistemáti- CAMPANELLA, Bruno. Os olhos do grande irmão: produções. cas são necessárias para podermos aprofundar os uma etnografia dos fãs do Big Brother Brasil. Ao focarmos na dimensão da narrativa, en- estudos da ficção seriada televisa americana. En- Editora Sulina, 2012 contramos que ela é baseada na desordem e no tende-se que as Comfort Series abrem espaço para DAYAN, D.; KATZ, E. Media events. harvard univer- risco à manutenção da ordem, ou seja, a narrativa outras discussões dentro do campo dos estudos sity press, 1994. das Comfort Series é responsável pelos elementos de televisão e, especificamente, nos trabalhos que de insegurança (dilemas e conflitos) que encon- abordam a ficção seriada televisiva, deslocando o ELIADE, M. Myth and reality. Waveland Press, tram resolução ao longo dos episódios e/ou das foco da discussão sobre as séries de “qualidade” 1998. temporadas, dessa forma, se aproximando da vi- para produções que desempenham um papel so- ELLIS, J. TV FAQ: Uncommon answers to com- são de mito proposta por Lévi-Strauss. No entan- ciológico importante no cotidiano dos telespec- mon questions about TV. IB Tauris, 2007. to, suspeitamos que é na dimensão da metanarra- tadores. tiva que a ordem e a segurança são reforçadas. A FOSS, K. A. “When we make mistakes, people die!”: Constructions of responsibility for medical errors metanarrativa das Comfort Series é o pano de fun- REFERÊNCIAS in televised medical dramas, 1994–2007. Commu- do que muitas vezes passa despercebido, porém, BARTHES, R. Mitologias. 11ª Edição. Rio de Janei- nication Quarterly, v. 59, n. 4, p. 484-506, 2011. é nele que o mito revela algo sobre a natureza da ro: Bertrand Brasil, 2001. sociedade e naturaliza um certo sentido de ordem GAUNTLETT, D.; HILL, A. TV living: Television, culture and everyday life. Routledge, 2002. através das instituições sociais ficcionais. Espera- BUCKMAN, A. R. You’ve Always Been the Head Pilgrim Girl: Stars Hollow as the mos que trabalhos futuros foquem nessa presen- . As consequências da modernida- Embodiment of the American Dream. GIDDENS, A de. São Paulo: Editora da UNESP, 1991. ça estruturadora das instituições sociais ficcionais In:DIFFRIENT, D. S.; LAVERY, D. (Ed.) que são responsáveis pela ordenação da fala míti- Screwball Television: Critical Perspec- HILMES, M. The bad object: Television in the Amer- ca nas Comfort Series. tives on Gilmore Girls. Syracuse University ican Academy. Cinema Journal, 2005, v. 45 n.1, p. Press, 2010. 167 “COMFORT SERIES”: TEORIA PARA ALÉM DA “TV DE QUALIDADE” Melina Meimaridis (UFF)

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168 A TV DA NOVA ERA: COMO A REDE GLOBO BUSCA SE CONSOLIDAR NO MERCADO DO STREAMING ATRAVÉS DO GOOGLE PLAY Carolina Santos Fagundes (UFS)1

1 broadcaster. However, despite maintaining the hege- paixões do público brasileiro, as telenovelas. Resumo mony on the big screen, Rede Globo has also sought Dessa forma, pode se falar que a Rede Ao longo dos anos, a Rede Globo se consolidou como to consolidate itself in the streaming market through o principal expoente do mercado brasileiro de tele- the Globoplay platform, renewing its productions and Globo alcançou o que o sociólogo francês Pierre visão, acumulando capital econômico e simbólico also its image before the public. The objective of the Bourdieu chama em sua obra As Regras da Arte present work is to understand how Rede Globo has através de suas produções ficcionais originais. As te- de uma posição de vanguarda dentro do campo lenovelas com o famoso “padrão Globo de qualidade” bet on the production of original content as a strategy tornaram-se os produtos mais bem-sucedidos e reco- to consolidate in the streaming market. do entretenimento. Além disso, ao longo de sua nhecidos da emissora. Entretanto, apesar de manter a história, a emissora foi capaz de acumular capi- hegemonia nas telinhas, a Rede Globo tem buscado se Keywords: Rede Globo; Streaming; Broadcasting; tal econômico, tornando-se assim um dos maio- consolidar também no mercado de streaming através Television; Convergence. da plataforma Globoplay, renovando suas produções res conglomerados de mídia da América Latina e também sua imagem perante o público. O objetivo INTRODUÇÃO e também capital simbólico, expresso através do do presente trabalho é buscar entender como a Rede reconhecimento das produções originais da emis- Globo tem apostado na produção de conteúdo origi- nal como estratégia para se consolidar no mercado de Com mais de cinquenta anos de existência, sora em premiações de prestígio internacional, streaming. a Rede Globo acumula prestígio e a responsabili- como o Emmy Internacional. Palavras-chave: Rede Globo; Streaming; Broad- dade de ser considerada a maior emissora de TV Com seu nome consolidado no mercado casting; Televisão; Convergência. de Brasil. Muito desse reconhecimento deve-se do entretenimento brasileiro, através do modelo Abstract a capacidade da empresa em produzir conteúdo de produção e distribuição tradicional usado pe- Over the years, Rede Globo has consolidated itself as com o já famoso ‘padrão Globo de qualidade’, des- las emissoras de TV, abertas e fechadas, o broa- the main exponent of the Brazilian television market, 2 accumulating economic and symbolic capital through de transmissões esportivas e entretenimento até dcasting , a Rede Globo tenta agora se consoli- its original fictional productions. The telenovelas with conteúdo jornalístico. Porém, há de se destacar dar em mais uma tendência dentro da indústria the famous “Globo quality standard” have become que parte desta jornada bem-sucedida que leva the most successful and recognized products of the a emissora criada em 1965 no Rio de Janeiro a ta- 2 Usando os conceitos dos autores Jenkins, Ford e Green 1 Graduada em Comunicação Social com habilitação em manho acúmulo de influência e reconhecimento, (2014), podemos entender o broadcasting como um Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal de está ligada a tradição da mesma em criar uma das modelo de transmissão, que tem como bases um modelo Sergipe (UFS), atualmente mestranda da mesma instituição. financeiro que possibilita a inserção de anúncios que darão Email: [email protected] suporte financeiro às emissoras. 169 A TV DA NOVA ERA: COMO A REDE GLOBO BUSCA SE CONSOLIDAR NO MERCADO DO STREAMING ATRAVÉS DO GOOGLE PLAY Carolina Santos Fagundes (UFS) audiovisual, o streaming3 através do aplicativo streaming está ligada a forma como o sucesso de balho, sugerimos fazer uma pesquisa bibliográfica Globoplay, lançado em outubro de 2015. Se ini- empresas como a Netflix tem sido capaz de pro- e discorrer acerca da literatura do sociólogo fran- cialmente a plataforma servia como suporte ao mover profundas mudanças na forma como a au- cês Pierre Bourdieu, que traz em sua obra concei- conteúdo exibido em sua programação, posterior- diência consome este tipo de conteúdo e na for- tos capazes de nos ajudar a entender o campo no mente, a estratégia e o potencial se expandiram, ma como as empresas buscam inovar as diversas qual o objeto está inserido, além de provocarem fazendo com que se possa encontrar um catálogo lógicas de licenciamento, produção, divulgação e uma reflexão acerca do papel desempenhado recheado e diversificado com produções seriadas distribuição de conteúdo audiovisual dentro da pelo mesmo neste espaço. nacionais originais, séries e filmes internacionais indústria, além de considerar que essas mudan- “O campo do poder é o espaço das relações de força entre agentes ou licenciados, conteúdo voltado ao público infantil. ças impactam diretamente o funcionamento de instituições que têm em comum “Pense nas consequências de um um modelo de distribuição já consolidado como possuir o capital necessário para programa de televisão transmitido ocupar posições dominantes nos o broadcasting. Sendo assim, O objetivo do presen- sob a forma de dados e contendo diferentes campos (econômico uma descrição de si próprio que um te trabalho é buscar entender como a Rede Globo tem ou cultural, especialmente). Ele e computador possa ler. Você pode- apostado na produção de conteúdo original como es- o lugar de lutas entre detentores ria gravar tais programas orientan- tratégia para se consolidar no mercado de streaming de poderes (ou de espécies de ca- do-se por seu conteúdo, e não pela pital) diferentes que, como as lu- hora, dia ou canal em que eles pas- através da plataforma digital Globoplay, levando tas simbólicas entre os artistas e sam.” (NEGROPONTE, 1995, p. 23) em consideração a posição que a emissora ocupa os “burgueses” do século XIX, tem no campo do entretenimento audiovisual brasi- por aposta a transformação ou a A importância de se estudar o fenômeno conservação do valor relativo das leiro, utilizando como base a literatura do soció- de consumo de conteúdo audiovisual através do diferentes espécies de capital que logo francês Pierre Bourdieu, além de conceitos determina, ele próprio, a cada mo- 3 “Podemos definir streaming como uma forma de voltados ao a cibercultura e indústria criativa. mento, as forças suscetíveis de ser distribuir informação multimídia numa rede através de lançadas nessas lutas.” (BOURDIEU, pacotes. Em streaming, as informações da mídia não são 1996, p. 244) usualmente arquivadas pelo usuário que está recebendo METODOLOGIA o stream, mas sim a mídia geralmente é constantemente reproduzida à medida que chega ao usuário se a sua banda De acordo com estudos de audiência rea- for suficiente para reproduzir a mídia em tempo real. ” Para atingirmos o objetivo do presente tra- (CARDOSO, p.1, 2010) 170 A TV DA NOVA ERA: COMO A REDE GLOBO BUSCA SE CONSOLIDAR NO MERCADO DO STREAMING ATRAVÉS DO GOOGLE PLAY Carolina Santos Fagundes (UFS) lizados pelo Kantar Ibope Media4 no ano de 2018, co.”(BOURDIEU, 1992, p. 246) peração entre múltiplos mercados apesar de apresentar os menores números de A partir dessas considerações, podemos midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios audiência nos últimos anos, a Rede Globo ainda refletir sobre a forma como a Rede Globo vem de comunicação, que vão a quase apresentava os melhores índices de audiência tentado lidar com alterações dentro do campo qualquer parte em busca de expe- riências de entretenimento que de- em comparação às outras emissoras de TV aber- da televisão brasileira, e as sucessivas quedas de sejam” (JENKINS, 2008, p. 29) ta como Record, SBT, TV Bandeirantes e RedeTV. audiência que as emissoras vem enfrentando ao Desta forma podemos considerar que a emissora longo dos últimos anos. Neste ponto, investir em Enquanto busca atingir levar seus pro- que carioca se encontra em posição dominante, uma tendência mundial como o consumo através gramas para o público que consome através do enquanto os demais agentes dentro do campo do streaming incorpora uma enorme importân- streaming, a empresa busca ainda inovar e atrair buscam alcançá-la. cia, a fim de entender e atingir as novas e diferen- uma audiência diferenciada, que busca conteúdo “Segundo o princípio de hierarqui- ciadas demandas do público. É importante neste zação externa, que está em vigor exclusivo, dessa forma torna-se natural observar momento observar como o objeto tem buscando nas regiões temporalmente domi- o investimento que a emissora tem feito nos últi- nantes do campo do poder (e tam- se inserir dentro da chamada Cultura de Conver- mos dois anos, não apenas para licenciar produ- bém no campo econômico), ou seja, gência, a qual Jenkins (2008) define como um es- segundo o critério do êxito tempo- tos internacionais, como também produzir algo paço onde velhas e novas mídias são capazes de ral medido por índices de sucesso inédito, feito especialmente para sua plataforma, comercial (tais como a tiragem dos colidir. Podemos observar este movimento acon- livros, o número de representações movimentando assim também o mercado de pro- tecendo com a Globo através da plataforma Glo- das peças de teatro etc.) ou de no- dução seriada e a chamada classe criativa. toriedade social (como as condeco- boplay, onde a emissora vem disponibilizando o “O simples fato de uma organiza- rações, os cargos etc.), a primazia conteúdo de sua programação para o público que ção existir há muito tempo ou estar cabe aos artistas (etc.) conhecidos envolvida em negócios duradouros e reconhecidos pelo “grande públi- não tem a possibilidade de acompanhar nos horá- não a torna parte da “velha econo- rios definidos pela emissora. mia” e, portanto, obsoleta. O ponto 4 Globo registra menor índice de ibope no país dos últimos “Por convergência, refiro-me ao central é: organizações de todos os três anos. Pode ser visto em: https://tvefamosos.uol.com. fluxo de conteúdos através de múl- tipos e portes têm diferentes pa- br/noticias/ooops/2018/11/29/globo-registra-pior-ibope- tiplas plataformas de mídia, a coo- péis a desempenhar numa econo- nacional-dos-ultimos-tres-anos.htm?cmpid=copiaecola 171 A TV DA NOVA ERA: COMO A REDE GLOBO BUSCA SE CONSOLIDAR NO MERCADO DO STREAMING ATRAVÉS DO GOOGLE PLAY Carolina Santos Fagundes (UFS)

mia criativa. ” (FLORIDA, 2011, p. 28) dices de audiência. Nas décadas são brasileira e também para a emissora carioca. de 1970 e 1980, consolidou-se a Anderson (2006) fala sobre a importância dos hits fórmula brasileira: colaboração de A partir deste momento, podemos discu- grandes novelistas e poetas, maior na economia do entretenimento no século XX, tir o papel da Rede Globo dentro desta cultura de aproximação da época contempo- que em sua visão “é produto de uma era em que rânea, desmistificação do passado, convergência, observando os motivos que levam não havia espaço suficiente para oferecer tudo a linguagem coloquial e regional, a emissora a adentrar no mercado do streaming e apresentação de fatos reais, influên- todos”. Ainda podemos usar a lógica de Anderson quais as estratégias a empresa vem usando para cia do teatro de vanguarda, apare- sobre hits no século XXI, em especial, ao se pensar obter êxito. cimento do anti-herói mentiroso, corrupto e de figuras femininasnas novelas de horário nobre como um produto originais, finais abertos, elaboração potencialmente feito para se tornar um grande A REDE GLOBO E AS PRODUÇÕES FICCIONAIS sutil da comédia e da tragédia.”. (RE- hit, atraindo assim a atenção do público e dos BOUÇAS, 2009, p. 5) anunciantes. Neste ponto, podemos novamente Ao longo dos anos, a Rede Globo conse- trazer o exemplo da novela global Avenida Brasil, guiu consolidar-se no posto de maior emissora Capazes de apresentar os mais altos ín- que em seu último capítulo teve a maior audiên- do país, através da sua grade horária variada que dices de audiência no Brasil em seus horários, as cia do ano de 2012, com 50,9 pontos e 53,8 de conta com programas de entretenimento e varie- telenovelas globais conseguiram adentrar merca- pico, e teve 500 anunciantes em sua exibição nas dade, jornalismo e transmissões esportivas. Po- dos internacionais, sendo licenciadas para países afiliadas da Globo em todo o Brasil, ainda que o rém ao adentrar na história da emissora carioca, da América Latina, Europa e África. Em um dos preço para o último capítulo seja mais elevado.6 podemos observar a importância da produção casos mais emblemáticos da década, o fenômeno 5 Além da audiência, as telenovelas globais de conteúdo audiovisual ficcional, através de seu Avenida Brasil , trama veiculada no ano de 2012, foram eficazes para trazer reconhecimento atra- produto mais notável: as telenovelas. chegou a ter seus direitos licenciados para mais “Atenta às mudanças, a Globo lan- de 130 países, tornando-se um marco na televi- vés de premiações significativas como o Emmy çou-se numa bem-sucedida estra- 5 "Avenida Brasil", licenciada para 130 países, é a mais 6 “Último capítulo de Avenida Brasil terá 500 anunciantes”. tégia de renovação temática e téc- exportada da Globo. Pode ser visto em: http://televisao. Pode ser visto em: http://g1.globo.com/economia/ nica. A novela entrou de verdade uol.com.br/noticias/redacao/2014/07/08/vista-por-130- noticia/2012/10/ultimo-capitulo-de-avenida-brasil-tera- no mercado, movimentando altas paises-avenida-brasil-e-a-novela-mais-exportada-da-globo. 500-anunciantes.html cifras publicitárias e atenta aos ín- htm?cmpid=copiaecola 172 A TV DA NOVA ERA: COMO A REDE GLOBO BUSCA SE CONSOLIDAR NO MERCADO DO STREAMING ATRAVÉS DO GOOGLE PLAY Carolina Santos Fagundes (UFS)

Internacional, onde até o ano de 2018 a emisso- sua capacidade de levar um progra- brasileira está buscando se consolidar em uma ra já havia conseguido a expressiva marca de seis ma a milhões de pessoas com efi- tendência cada vez mais consolidada, a fim de ciência sem igual. Mas não é capaz prêmios na categoria de “Melhor Telenovela”. É im- de fazer o oposto — levar um mi- manter sua posição dentro do mercado brasileiro portante ressaltar que além de tal gênero narrati- lhão de programas para cada pes- de entretenimento, o streaming. 8 soa. No entanto, isso é exatamente vo, a Rede Globo também é reconhecida por ou- “Algumas transformações na o que a Internet faz tão bem. A eco- indústria midiática, nas tecno- tros produtos ficcionais como séries, minisséries e nomia da era do broadcast exigia logias e no comportamento programas de grande sucesso — filmes, o que mostra a força da produção original do público coincidiram com o algo grandioso - para atrair audiên- da empresa brasileira. cias enormes. Hoje, a realidade é a surgimento da complexidade Entretanto, a edição do Emmy Internacio- oposta. Servir a mesma coisa para narrativa sem, contudo, oper- arem como razão principal de nal 2018 7 serviu para expor um cenário atípico milhões de pessoas ao mesmo tem- po é demasiado dispendioso e one- tal evolução formal. Mas certa- para a emissora carioca, onde suas produções roso para as redes de distribuição mente possibilitaram o floresci- são ignoradas pela academia. O sinal de alerta destinadas a comunicação ponto a mento de suas estratégias cria- também foi ligado em contexto nacional, onde, ponto.” (ANDERSON, 2006) tivas. Embora consideremos que haja muito mais a ser examinado apesar de ainda manter sua hegemonia frente às Então estaria a hegemonia da Rede Globo no desenvolvimento desses con- concorrentes, a Globo vem enfrentando o desgas- textos, traçando um panorama te de alguns de seus programas e novelas, além como conhecemos sendo ameaçada ou tendo a das principais mudanças ocor- do crescimento da concorrência em alguns horá- oportunidade de se renovar? A segunda hipóte- ridas na prática televisiva dos anos 1990, observamos tanto rios. A combinação entre esses fatores tem como se parece óbvia, e é o que se tem observado nos últimos anos, a questão a ser analisada está mais como essas transformações im- resultado um momento de crise nos números da pactaram as práticas criativas e audiência e reformulação da programação. voltada às mudanças que tal nova lógica de con- como os aspectos formais sem- “A grande vantagem do broadcast é sumo promove nesse campo e em outros como a 8 Globo se desgastou em vespertinos e novelas e sofre 7 Novelas da Globo perdem reinado no Emmy publicidade, o campo tecnológico, o campo polí- queda de audiência. Pode ser visto em: https://www1.folha. Internacional. Pode ser visto em: https://veja.abril.com.br/ tico e até mesmo o campo sociocultural. Aqui po- uol.com.br/ilustrada/2019/02/globo-se-desgastou-em- entretenimento/novelas-da-globo-perdem-reinado-no- vespertinos-e-novelas.shtml emmy-internacional/ demos falar sobre como essa gigante da televisão 173 A TV DA NOVA ERA: COMO A REDE GLOBO BUSCA SE CONSOLIDAR NO MERCADO DO STREAMING ATRAVÉS DO GOOGLE PLAY Carolina Santos Fagundes (UFS)

pre se expandem para além das na indústria audiovisual que tem a Netflix como também possam vir a atrair o público que ainda fronteiras textuais.” (MITTELL, maior agente. Agora o conteúdo do “Plim Plim” consome as produções da emissora através da 2012, p. 33) está disponível para todas as telas, do celular às televisão, para isso, uma das estratégias usadas é SmartTVs. Em nota oficial, a emissora afirma que a divulgação do serviço de streaming durante a O GLOBOPLAY o Globo Play permite que a Globo possa experi- programação da emissora, algo inédito no mer- O Globo Play é um produto do Grupo Glo- mentar com a distribuição de seus conteúdos, en- cado brasileiro. Além disso, algumas produções bo de Comunicação lançado em 2015, e tem como tender e acompanhar novos hábitos do público. feitas para ocupar a programação da emissora são proposta ser uma plataforma de streaming que Em artigo publicado em 2016 pela Meio e Men- disponibilizadas primeiramente na plataforma de atenda às demandas do público que consome o sagem, o jornalista e autor Thell de Castro afirma streaming. conteúdo com “padrão Globo de qualidade”. Nele que a emissora segue as tendências e busca o Podemos também discutir acerca do con- podemos encontrar todas as produções realiza- público especialmente jovem, que assiste séries e teúdo produzido pela empresa para cada meio, das pela TV Globo, um acervo formado por pro- filmes pela internet ao invés da televisão. uma vez que, se na televisão as novelas ocu- duções recentes e títulos que já foram exibidos Para se consolidar entre esse público, a pam um local de destaque na programação e na pela emissora, além de conteúdo jornalístico e Rede Globo tem buscado investir na plataforma preferência dos telespectadores, na plataforma todos os programas de sua grade, além de ofere- de forma a oferecer um catálogo cada vez mais di- online podemos observar que grande parte das cer transmissões ao vivo, mediante assinatura que versificado e atraente, que conta com produções produções são de produções seriadas, disponibili- custa R$19,90 mensalmente ao consumidor e já seriadas e filmes internacionais, sucessos do cine- zadas através de temporadas. Desta forma, a títu- possui mais de dez milhões de downloads. ma nacional, produções seriadas feitas com exclu- los originais do Globoplay conseguem abarcar e Disponibilizar vídeos de suas produções sividade para a plataforma, além dos títulos que se inserir em um comportamento típico da era do na online não é novidade para a Globo que já o já recheiam a programação da emissora na TV. consumo através do streaming, o binge-watch- fazia em seu site Globo.com, entretanto o lança- Nota-se neste momento uma preocupação com ing. 9 mento do GloboPlay nos diz algo sobre o posi- a produção de narrativas que possam não ape- Em entrevista à revista EXAME, o dire- cionamento da emissora frente ao impacto que o nas satisfazer os assinantes da plataforma, como 9 “binge significa “farra”, um comportamento de fenômeno da cultura de convergência vem tendo excessos em um curto período de tempo, enquanto watching 174 A TV DA NOVA ERA: COMO A REDE GLOBO BUSCA SE CONSOLIDAR NO MERCADO DO STREAMING ATRAVÉS DO GOOGLE PLAY Carolina Santos Fagundes (UFS) tor-geral da Globo, Carlos Henrique Schröder, petição — e encaramos isso como algo saudável. gração.” (BOURDIEU, P. 292) explanou sobre a naturalização do cada vez mais Vencerá essa competição quem for capaz de contar Assim, é possível se falar que, uma vez con- as melhores histórias. O diferencial competitivo estará comum consumo através de plataformas de no conteúdo. Por isso sou tão confiante.”. (SCHRÖDER, solidada no campo televisivo através do broad- streaming, ressaltando que o diferencial compet- 2017)10 casting, a Rede Globo abre a possibilidade e dispõe itivo entre as opções do consumidor será a dis- É válido ressaltar que a hegemonia que a de recursos necessários para ter sucesso também ponibilização de “conteúdo de qualidade”. Rede Globo adquiriu ao longo de sua história é ca- no modelo do streaming, usando sua plataforma “A experiência de assistir à TV numa tela grande, no paz de colocar a emissora em uma posição domi- como espaço de inovação e experimentação, tan- sofá de casa, é insubstituível. O que veremos é uma evolução da oferta digital. O número de smartTVs nante dentro do campo televisivo e de produção to em suas produções originais, como também vem crescendo. De acordo com projeções, elas já de conteúdo audiovisual no Brasil, detentora de na escolha dos conteúdos que empresa escolhe devem representar mais de 50% das vendas de tele- capital econômico e simbólico (composto por licenciar. visores em 2017. Mas também acreditamos que a TV estará ainda mais presente nos smartphones e tab- capital cultural e social). lets. Ter bons aplicativos para essas plataformas será “É com relação aos estados corre- CONCLUSÃO fundamental. Uma nova fronteira nesse campo é o spondentes da estrutura do cam- dos assistentes pessoais. Você poderá chegar em casa po que se determinam em cada Podemos observar que apostar em diver- momento o sentido e o valor social e, por exemplo, pedir para assistir ao capítulo mais sas frentes midiáticas é o caminho que empresas recente de A Força do Querer. Ou então pedir uma dos acontecimentos biográficos, sugestão ao Globo Play de uma nova série. Nós já entendidos como colocações e de- conhecidas através de segmentos tradicionais no slocamentos nesse espaço ou, mais começamos os trabalhos de pesquisa nessa frente, es- mercado, como a televisão, têm usado para en- tamos falando de um futuro de curto prazo. O público precisamente, nos estados suces- tender e se adaptar às novas tendências de con- terá cada vez mais liberdade de escolha, alternando sivos da estrutura da distribuição momentos em que vai desejar ver a programação ao das diferentes espécies de capital sumo e demandas de um público que não está to- que estão em jogo no campo, cap- vivo com outros em que o conteúdo será consumido talmente disposto a se submeter ao que Jenkins, sob demanda. Acreditamos que haverá mais com- ital econômico e capital simbólico como capital específico de consa- Ford e Green (2014) chamam de um “modelo de significa assistindo. Assim, teríamos o significado próximo compromisso” proporcionado pelo broadcast- de assistir compulsivamente. A mesma composição é 10 Globo se prepara para a luta no digital. Pode ser utilizada, em outros campos, ao descrever comportamentos visto em: https://exame.abril.com.br/revista-exame/globo- ing. Investir em plataformas de streaming vem se como bingeeating ou binge-drinking, comer ou beber em se-prepara-para-a-luta-no-digital/ tornando uma forma de renovar a imagem das excesso” (SACCOMORI, 2016, p. 26) 175 A TV DA NOVA ERA: COMO A REDE GLOBO BUSCA SE CONSOLIDAR NO MERCADO DO STREAMING ATRAVÉS DO GOOGLE PLAY Carolina Santos Fagundes (UFS) empresas perante o público e também uma opor- que busca traçar uma trajetória bem-sucedida VÍDEO. Itatiba: Universidade São Francisco, 2010. tunidade que as próprias tem de experimentar e no campo do streaming, de forma a se consolidar JENKINS, H. Cultura da Convergência. Editora Aleph, 2008. reinventar seus produtos. neste novo mercado diferente e desafiador. “Ao mesmo tempo, novas sementes Entretanto, neste ponto é seguro dizer que começaram a brotar no campo JENKINS, H; FORD, S; GREEN, J. Cultura da con- das mídias com o surgimento de ainda que enfrente desafios para se mostrar como exão: criando valor e significado por meio da equipamentos e dispositivos que uma concorrência forte para empresas já consol- mídia propagável. São Paulo: Aleph, 2014. possibilitaram o aparecimento de idadas no segmento, como a americana Netflix, a uma cultura do disponível e do FLORIDA, R. A ascensão da classe criativa: e seu transitório: fotocopiadoras, video- Globo é capaz de sair na frente em relação a suas papel na transformação do trabalho, lazer, co- cassetes e aparelhos para gravação concorrentes do campo da televisão brasileira, munidade e cotidiano. Tradução de Ana Luiza de vídeos, equipamentos do tipo pois busca inovar, não apenas na forma em que se Lopes. Porto Alegre: L&PM Editores, 2011. walkman e walktalk, acompanha- apresenta ao público, buscando estratégias que dos de uma remarcável indústria MITTEL, J. Complexidade Narrativa na Televisão de videoclips e videogames, junta- possam unir sua força na televisão com todo seu Americana Contemporânea. Revista Matrizes, mente com a expansiva indústria de filmes em vídeo para serem potencial na internet e, acima de tudo, prezando São Paulo, vol. 5, n°2, 2012. alugados nas videolocadoras, tudo pela criação de conteúdo original o já conhecido NEGROPONTE, N. A Vida Digital. 2 Ed. São Paulo: isso culminando no surgimento da “padrão Globo de qualidade”. TV a cabo. Essas tecnologias, equi- Companhia das Letras, 1995. pamentos e as linguagens criadas REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS para circularem neles têm como REBOUÇAS, Roberta de Almeida e. Telenovela, principal característica propiciar a historia, curiosidades e sua função social. For- ANDERSON, C. A Cauda Longa. Rio de Janeiro: escolha e consumo individualiza- taleza – CE: VII Congresso Nacional de História da Editora Campus, 2006. dos, em oposição ao consumo mas- Mídia, 2009. sivo. ” (SANTAELLA, 2003, p. 26) BOURDIEU, P. As Regras da Arte. 1ª Ed. São Paulo: SANTAELLA, L. Da Cultura das Mídias à Cibercul- Companhia das Letras, 1992. Há de se observar quais estratégias a em- tura: O advento do pós-humano. Revista FAME- presa irá utilizar para manter sua posição dom- COS, Porto Alegre, nº 22, dez. 2003. CARDOSO, F. C. CONCEITOS DE REDE VIRTU- inante no campo televisão, ao mesmo tempo AL PRIVADA PARA STREAMING SEGURO DE 176 A TV DA NOVA ERA: COMO A REDE GLOBO BUSCA SE CONSOLIDAR NO MERCADO DO STREAMING ATRAVÉS DO GOOGLE PLAY Carolina Santos Fagundes (UFS)

SACCOMORI, C. Práticas De Binge-Watching Na pertinos-e-novelas.shtml> Acesso em: mai. 2019. Era Digital: Novas Práticas De Consumo De Seri- REDAÇÃO Veja. Novelas da Globo perdem reina- ados Em Maratonas Do Netflix. 2016, 246 f, Dis- do no Emmy Internacional. Local desconhecido, sertação (Mestrado pelo Programa de Pós-Grad- 27 set. 2018. Pode ser visto em: Acesso do Sul). Disponível em: < http://tede2.pucrs.br/ em: mai. 2019. tede2/handle/tede/6726#preview-link0 >. Acesso em: mai. 2018. SALGADO, Eduardo. Globo se prepara para a luta no digital. Local desconhecido, 7 set 2017. Pode WOLFF, M. Televisão é a nova televisão: O trun- ser visto em: Acesso em: mai. 2019. Cunha, 1. Ed. São Paulo: Globo, 2015. VALOR ONLINE. Último capítulo de Avenida Bra- INTERNET sil terá 500 anunciantes. Local desconhecido, FELTRIN, Ricardo. Globo registra menor índice 18 out 2012. Pode ser visto em: em: Acesso em: mai. 2019. ses, é a mais exportada da Globo. São Paulo, 08 jul 2014. Pode ser visto em: . ser visto em:

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1 values that circulate easily in different cultures in the globais. O momento agora é mais complexo e Resumo: Japão, China e Coreia do Sul são alguns dos region, such as Hana Yori Dango, an example of the apresenta novos polos de produção cultural que polos em ascensão e notáveis em meio ao cenário da narrative potential of dialogue in the East Asian mar- cultura pop asiática, tornando este mercado regional ket. With multiple television versions in different coun- desafiam e desmascaram a lógica antiga e gene- em uma intensa arena de trocas de influências. Os pro- tries and times, it resists the time and the great flow ralizante de que apenas um fluxo totalizava a in- of television narratives in the market, pointing out the dutos televisivos, com seu forte potencial midiático, fluência global (KEANE, 2006; YANG, 2007). Países se destacam entre outros artefatos culturais em razão strength of cultural representation in this regional cir- de suas versões que são reimaginadas dentro desse cuit. como Brasil, México e Japão já possuem história de cenário efervescente. Algumas narrativas apontam Keywords: TV Dramas; East Asia; Adaptations, luta periférica em resistência às forças globalizan- tamanha afinidade cultural com os valores asiáticos Hana Yori Dango. tes da produção televisiva advindas do “centro”. que circulam com facilidade em diferentes culturas na região, como Hana Yori Dango, um exemplo do po- Agora, outros países periféricos que não possuem tencial narrativo de diálogo no mercado leste-asiático. essa mesma tradição estão surgindo no cenário Com múltiplas versões televisivas em diferentes países INTRODUÇÃO e épocas, resiste ao tempo e ao grande fluxo de nar- global como polos em ascensão de produção de rativas televisivas no mercado, apontando a força da A atual ordem global não é a mesma que conteúdos culturais, focando especialmente em representação cultural nesse circuito regional. antes alimentava a ideia “do Ocidente para o res- mercados regionais. Uma dessas regiões, onde Palavras-chave: Dramas de TV; Leste da Ásia; muitos países periféricos se destacam por seus Adaptações; Hana Yori Dango. to” (HALL, 1992), de um fluxo único de influências culturais do Estados Unidos e Reino Unido para rápidos progressos econômicos e culturais nas úl- Abstract: Japan, China and South Korea are some of os outros países do mundo. A forte presença de timas décadas e por suas indústrias televisivas, é the rising and notable poles amidst the Asian pop o Leste Asiático: China, Coreia do Sul, Taiwan e Ja- culture scene, making this regional marketplace an in- Hollywood e da programação televisiva estaduni- tense arena of influence trading. Television products, dense no mercado global, assim como o impacto pão se destacam, liderados historicamente nesse with their strong media potential, stand out among histórico da BBC como um canal modelo para o mercado televisivo pelo último. other cultural artifacts because of their versions that Por mais que exista a influência ocidental are reimagined within this effervescent setting. Some mundo, são inegáveis, contudo, outros modos de narratives point to such cultural affinity with the Asian pensar televisão têm surgido de países conside- nessas indústrias televisivas e os Estados Unidos 1 Doutoranda e Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós- rados como de “fora do eixo” e vêm conquistando mantenham seu incontestável potencial de dis- Graduação da Universidade Federal Fluminense. Coordenadora do projeto Série Clube e membro fundadora do MidiÁsia. forte espaço em meio aos fluxos e contrafluxos tribuição e influência em nível global, a indústria [email protected] 178 VERSÕES TELEVISIVAS TRANSNACIONAIS NO LESTE ASIÁTICO: HANA YORI DANGO COMO MODELO REGIONAL Daniela Mazur (UFF) estadunidense ainda falha em se manter relevan- preender que parta de um deles uma das maiores debate da transnacionalização televisiva e do re- te em mercados com forte tradição em conteúdo e mais rentáveis narrativas televisivas do Leste gionalismo em um dos espaços mais efervescen- televisivo local (KEANE; FUNG; MORAN, 2007). Por Asiático: “Hana Yori Dango (花より男子)”, original- tes em cultura pop no mundo atualmente: o Leste essa razão, hoje em dia o mercado regional do les- mente japonesa e se expandiu como formato de da Ásia. te-asiático, aparado por suas forças nacionais em roteiro pelo mercado regional. Essa narrativa sur- produção televisiva, não cede totalmente à im- giu como mangá (história em quadrinhos japone- DRAMAS DE TV: UM FORMATO INTER-ASIÁTI- portação de programação estadunidense, e dessa ses) e avançou, dentro do próprio país de origem, CO forma se criou um espaço relevante de trocas que para outras plataformas midiáticas, como a tele- fortalecem o espectro regional. Os dramas de TV visão e o cinema, se destacando especialmente Para iniciar o debate sobre as versões de são uma parte essencial e sintomática desse uni- no formato de drama de TV. Contudo, o poten- Hana Yori Dango, partimos do recorte televisivo verso porque, além de serem um formato televi- cial narrativo de Hana Yori Dango foi e ainda vai com foco nos dramas de TV, já que essa narrativa sivo desenvolvido na região, também dialogam além: possui adaptações televisivas na Coreia do se estabeleceu como transnacional através des- com as questões culturais que mantêm esse mer- Sul, China, Taiwan, Tailândia, Índia, Indonésia e Es- se formato televisivo. Por essa razão é necessário cado regional relevante e em constante expansão. tados Unidos, sem contar com as versões atuali- compreender como o formato surgiu e se estabe- De fato, a produção de dramas de TV na China, zadas em diferentes décadas. É um produto que leceu como uma das plataformas midiáticas mais Coreia do Sul, Taiwan, Japão e Tailândia movimen- admira pela longevidade, versatilidade e pelo importantes para a comunicação de questões cul- tam essa parte do mundo, tanto através da venda potencial de dialogar com diferentes culturas, turais nessa região do mundo. O Japão é o ponto de formatos televisivos, quanto de produtos licen- sendo reimaginado em contextos distintos, mas inicial do desenvolvimento do formato Drama de ciados. mantendo a essência da narrativa. O que faz dela TV. O país, inspirado em influências das produções A Coreia do Sul e o Japão se destacam tão interessante ao ponto de ser repetida há déca- seriadas televisivas desenvolvidas pelo mundo na atualmente como grandes polos de exportação das em diferentes países? O que ela indica sobre época, começou a pensar sua serialidade ficcional e, por essa razão, são mediadores centrais das in- o mercado regional do qual faz parte? São essas televisiva em meio aos primeiros passos da indús- fluências que geram esse mercado. Não é de sur- as perguntas que regem esse artigo em meio ao tria da televisão no país. A primeira indicação do

179 VERSÕES TELEVISIVAS TRANSNACIONAIS NO LESTE ASIÁTICO: HANA YORI DANGO COMO MODELO REGIONAL Daniela Mazur (UFF) desenvolvimento deste formato se deu em 1953, RollerCoster Drama3 e Cartoon Drama4 deram res- cado de trabalho, então os trendy dramas foram no período pós-guerra, logo após a fundação da paldo para o desenvolvimento do gênero mais concebidos com o ideal de representar e atrair emissora NHK (Nihon Hoso Kyohai, ou Japan Broa- importante e influente para as configurações do essas jovens mulheres que viviam a modernidade dcasting Corporation). Os dramas de TV entraram formato atualmente: Trendy Drama. Este último foi e tinham adquirido poder de consumo, tal públi- na grade de programação do canal e se difundi- essencial para a evolução dos Dramas de TV como co-alvo trouxe novas possibilidades de narrativas ram pela televisão japonesa através do surgimen- um formato de forte presença no circuito televi- e expandiu a consciência do poder econômico in- to de novas emissoras pelo país e fortaleceram a sivo leste-asiático e como uma alegoria cultural e trínseco a esses produtos. televisão como meio de comunicação. Junto aos da vida cotidiana que representasse a multiplici- Os trendy dramas são crônicas baseadas na dramas de TV, desabrochou, então, a própria ideia dade em ser um indivíduo asiático (DISSANAYAKE, vida acelerada dos japoneses e nas mudanças de de televisão no país. Essas produções ficcionais se 2012). uma sociedade em desenvolvimento, somadas a preocupavam em apresentar a realidade cultural e Hoje, os dramas de TV são termômetros elementos refinados de cenário, elenco e música, social do Japão e desenvolver questões cotidianas sociais, que apresentam questões que refletem, e, é claro, com a presença central de uma história nas suas narrativas, apresentando para o seu pró- mesmo que ficcionalmente, o cotidiano da socie- de amor. Narrativas mais rápidas e cosmopolitas, prio povo as mudanças que estavam acontecendo dade em que se estabilizam. Os trendy dramas fo- abordando temas como relacionamentos afetivos na sociedade em geral. Portanto, com a expansão ram os primeiros exemplos dessa influência social e vida sexual em meio a uma sociedade urbana e televisiva e de suas tecnologias de difusão nas dé- direta no desenvolvimento do formato, surgiram moderna que estava em desenvolvimento na épo- cadas seguintes, abriu-se espaço para o desenvol- em meio aos anos 1990 e são os grandes influen- ca. Refletiam a vida “real”, demonstrando como os vimento de diferentes gêneros dentro do formato ciadores dos dramas de TV como conhecemos japoneses estavam vivenciando as influências in- televisivo, que ajudaram a desenvolver e apurar hoje. Na época, a parcela feminina da sociedade ternacionais em seus cotidianos e o próprio país as produções e suas abordagens sobre questões japonesa estava conquistando sua independên- em rápido crescimento (OTA, 2004). Uma metáfo- sociais japonesas. Gêneros como Home Dorama2, cia financeira e se posicionando dentro do mer- ra visual e romantizada da modernidade capitalis- ta-consumista (CHUA; IWABUCHI, 2008). A busca 2 Caracterizado pelas relações familiares na intimidade do lar e 3 Caracterizado por abordar a vida amorosa da nova geração de abordava as mudanças ocorridas na sociedade japonesa após o mulheres japonesas. por uma estética refinada da imagem e os elencos fim da guerra. 4 Caracterizado por se basear em narrativas dos mangás. 180 VERSÕES TELEVISIVAS TRANSNACIONAIS NO LESTE ASIÁTICO: HANA YORI DANGO COMO MODELO REGIONAL Daniela Mazur (UFF) focados em uma geração de jovens e belos atores também como ferramenta de difusão cultural e 2007). A incorporação cultural nas narrativas foi também se refletem até hoje nos dramas de TV. política da metrópole. Com o fim da ocupação, essencial para que elas funcionassem em meio ao São exatamente estes aspectos que influenciaram já existia uma estrutura para a produção desses público nacional e também se diferenciassem no e definiram grande parte das indústrias de dramas conteúdos e, mesmo com a proibição federal do mercado regional. Questões como idioma, loca- de TV dentro no Leste e Sudeste da Ásia. consumo de produtos japoneses na Coreia, exis- ções, estética de imagem, tipo de beleza humana O Japão entre as décadas de 1980 e 1990 tiu o consumo ilegal pelos próprios coreanos e representação de características da sociedade era o grande mediador de produtos televisivos que tinham se acostumado com esses produtos se expressam nessas narrativas e caracterizam dentro da sua região. O cosmopolitismo dos tren- culturais. Então, dessa forma, a produção televi- o país. Devido as diferenças nacionais expressas dy dramas cativou as audiências do Leste e Sudes- siva japonesa conseguiu influenciar os países em pelos dramas de TV de cada país, são adotadas te Asiático, especialmente nos países em desen- que seus produtos culturais eram consumidos, denominações específicas que representam as volvimento em que o povo aspirava por melhorias introduzindo, especialmente, os dramas de TV nacionalidades no mercado internacional. Como, na vida material (CHUA; IWABUCHI, 2008). A pre- na região. Esse formato foi largamente adotado por exemplo, os dramas japoneses são conheci- sença dos dramas de TV japoneses no mercado e reproduzido, desenvolvendo um cenário trans- dos como doramas5 ou J-dramas6, os dramas tai- regional era intensa, vários países consumiam nacional de dramas de TV asiáticos, com diversas landeses como lakorns7 e os sul-coreanos, como essas narrativas e tinham contato direto com as indústrias televisivas nacionais produzindo suas K-dramas8. A partir dessas denominações, cria- influências desse formato. No caso da Coreia do próprias narrativas ficcionais que refletiam ques- ram-se imaginários nacionais sobre esses produ- Sul, a ocupação japonesa na península coreana tões caras ao público local. tos, já que cada país imprime suas características entre 1910 e 1945 introduziu influências cultu- As indústrias televisivas sul-coreana, taiwa- a eles. Como foi expresso por Wimal Dissanayake rais do Japão e promoveu o desenvolvimento nesa, tailandesa e chinesa se inspiraram nos dra- (2012) no trecho a seguir: dos primeiros programas de rádio sul-coreanos e mas japoneses para desenvolverem suas próprias As distâncias culturais entre, diga- mos, China e Índia, ou Japão e In- a transmissão de dramas fonográficos, que eram produções e incorporaram especificidades cultu- donésia, ou Coreia e Tailândia, são direcionados especialmente para o consumo dos rais e nacionais para que as narrativas dialogas- 5 Termo em japonês para “drama”. 6 O sufixo “J” indica Japan ou Japão. próprios japoneses que moravam na colônia e sem diretamente com os públicos locais (YANG, 7 Termo em tailandês para “drama”. 8 O sufixo “K” indica Korea ou Coreia do Sul. 181 VERSÕES TELEVISIVAS TRANSNACIONAIS NO LESTE ASIÁTICO: HANA YORI DANGO COMO MODELO REGIONAL Daniela Mazur (UFF)

imensas. Portanto, os dramas de TV líbrio entre entretenimento e valores éticos da uma fórmula narrativa, que mesmo se repetindo de cada país possuem a sua própria cultura a fim de que essas narrativas se encaixem ao longo dos anos, atualiza-se sempre produzin- identidade cultural. No entanto, apesar de reconhecer essas diferen- ao interesse do público e apresentem questões do novos sentidos na vida de diferentes públicos ças, também é possível identificar que reflitam e reafirmem a sociedade sul-coreana e contextos culturais. O melodrama se utiliza de algumas características comuns. (p. (DISSANAYAKE, 2012). algumas características universais que compõem 192-193, tradução nossa) A fórmula, utilizada até os dias atuais, se o gênero, como a dicotomia entre bem e mal e a Por mais que esses países compartilhem baseia largamente em histórias de casais apaixo- qualidade moral, além de ser comumente carac- de diversas características culturais pela sua pro- nados e as dificuldades que eles passam até con- terizado por um certo excesso de sentimentalis- ximidade cultural e geográfica, é o que os distan- seguirem ficar juntos, com a recorrente presença mo (ANG, 1985), por essa razão o tema central da ciam culturalmente que fica em destaque nessas de um triângulo amoroso como fator de dramatici- grande maioria dos produtos influenciados por produções televisivas, especialmente em favor da dade. Em grande parte, essas histórias se utilizam essa matriz é o amor romântico (BALDACCHINO, comercialização. Em meio a diversidade de nacio- de paisagens e localidades nacionais como pano 2014), e o dramas de TV não fogem à regra. Atra- nalidades no mercado dos dramas de TV no Leste de fundo e trilhas sonoras marcantes preenchidas vés do melodrama que essas narrativas dialogam e Sudeste Asiáticos, a produção televisiva de cada por músicas do pop local. Cosmopolitas e urba- com questões nacionais e internacionais. país se caracteriza especialmente por seus códi- nas, grande parte dessas histórias se desenvolvem Com o desenvolvimento tecnológico dos gos sociais e culturais representados nas narrati- nas grandes capitais, apresentando a modernida- aparatos de produção somado aos fluxos de in- vas, que revelam um pouco do cotidiano social e de e desenvolvimento desses países. Narrativas fluências entre esses países, hoje esse formato moral dessas sociedades, ao mesmo tempo que simples, mas com forte apelo emocional, são até televisivo faz parte do dia a dia das grades de criam imaginários nacionais atualizados, apresen- mesmo previsíveis, causando no telespectador programação das emissoras dos países do Leste e tando a modernidade, tradição e relevância des- certo sentimento de familiaridade e antecipação Sudeste Asiáticos (CHUA; IWABUCHI, 2008), além ses países. No caso dos K-dramas, por exemplo, com a narrativa (CHAN; WANG, 2011). São inten- de estar se expandindo como produto de expor- pelo fato de serem produtos de cultura de massa samente influenciadas por matrizes melodramá- tação global. Ademais, os grandes produtores e no país, eles prezam especialmente pelo equi- ticas, que, segundo Martín-Barbero (1997), são exportadores atuais desse formato dentro da Ásia,

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Coreia do Sul e Japão, se estabeleceram como os conteúdos estrangeiros pudesse deturpar as cul- trocas de produtos culturais, formatos televisi- provedores dos ideais que estão conceitualizan- turas locais. O caráter protecionista local inibia o vos e influências. O Japão já tinha forte presença do o imaginário de uma “cultura pop leste-asiáti- mercado regional (SHIM, 2008). Como os produ- nesse universo, porém outros agentes nacionais ca” (IDEM). Este imaginário circula principalmente tos ocidentais (em especial os estadunidenses) começaram a conquistar seu espaço, como a Co- através dessas narrativas, que prezam pelo equi- eram vistos como as maiores ameaças globali- reia do Sul, que atraiu suas primeiras audiências líbrio da tradição cultural, em favor de dialogar zantes existentes, apenas os produtos culturais estrangeiras para o consumo de dramas de TV sul- com os países vizinhos e suas multiplicidades japoneses e honcongueses conseguiam circular -coreanos nessa mesma época. O país iniciou sua compartilhadas regionalmente, e a modernidade em meio essa região nas décadas de 1980 e 1990 expansão cultural pelas nações da esfera chinesa, advinda de influências ocidentais, concebendo, (IWABUCHI, 2004), porém ainda em meio a um como China continental, Hong Kong e Taiwan, assim, produtos televisivos híbridos que interes- mercado transnacional muito limitado. Contudo, além do Sudeste da Ásia, para depois conquistar sam especialmente os jovens públicos. É em meio paradoxalmente, a globalização encorajou a cul- o Japão e outros países mais distantes geografi- a esse fervilhar de fluxos e influências de um mer- turas locais e periféricas a se posicionarem a fim camente. O contato com os programas de TV de cado em ascensão em nível regional e global, que de se diferenciar em meio a homogeneização das países vizinhos, que foi possibilitado por essas localizamos este artigo. forças culturais do centro (SHIM, 2006) e se apro- trocas mercadológicas, fortaleceu as indústrias ximarem aos mercados locais. Então, somente em televisivas e incentivou as produções locais, espe- MERCADO TRANSNACIONAL TELEVISIVO DO meados dos anos 1990, que o levante democráti- cialmente através da compra e cópia de formatos. LESTE DA ÁSIA co e a liberação midiática se alastraram pela Ásia, A familiaridade e, ao mesmo tempo, o estranha- abrindo os mercados nacionais e dando espaço mento causado por esses produtos no mercado Até o final dos anos 1980, a lógica de um para movimentações mais intensas dentro do regional incentivaram o interesse pelo consumo mercado de produtos e formatos televisivos den- mercado televisivo regional (IDEM). desses produtos que dialogavam com a cultura tro da região do Leste Asiático ainda era muito Foi a partir desse cenário de abertura de pop leste-asiática. incipiente. Isso se dava especialmente porque as mercados que os países começaram a construir A capacidade de transação de serviços e nações se preocupavam que a importação desses um mercado transnacional, através também de produtos entre esses países facilitaram a interna-

183 VERSÕES TELEVISIVAS TRANSNACIONAIS NO LESTE ASIÁTICO: HANA YORI DANGO COMO MODELO REGIONAL Daniela Mazur (UFF) cionalização midiática regional, as trocas culturais heterogêneo, não temos aqui nenhum interesse através deles. através especialmente de coproduções e vendas de homogeneizar a ideia de cultura pop regional, É o equilíbrio entre o tradicional (influên- de formatos ajudaram a diminuir as barreiras re- contudo buscamos os pontos de interseção que cias culturais seculares que circulam na região) gulatórias entre os mercados nacionais, assim auxiliaram o diálogo cultural entre esses países e o moderno (influências culturais estrangei- como a Web 2.0 facilitou o acesso e circulação de ao ponto de construir um senso de proximidade ras) que forma a estratégia em meio à região do conteúdo (KEANE; FUNG; MORAN, 2007). As leis e que facilitou o desenvolvimento desse mercado Leste e Sudeste Asiático. A Proximidade Cultural estratégias protecionistas acabaram se tornando transnacional. Um detalhe relevante que rege tra- (STRAUBHAAR, 1991) é um conceito que funcio- um estímulo para a compra de formatos e desen- dicionalmente a familiaridade entre grande parte na em meio aos fluxos inter-asiáticos (IWABUCHI, volvimento de adaptações locais, já que, dessa desses países, especialmente daqueles que foram 2002). Segundo Straubhaar, as audiências prefe- forma, a identidade cultural do país se manteria (e ainda são) submetidos às forças chinesas, é a rem produtos que dialogam com a sua própria protegida de quaisquer influências (WAISBORD, influência confucionista que ainda está presente cultura e buscam neles traços de familiaridade 2004). Um equilíbrio entre a proteção do capital no dia a dia desses povos. A herança do Confucio- e representação de seu cotidiano. A existência nacional e o interesse na exoticidade e moder- nismo9, que ainda se perpetua na região, aponta do imaginário de uma “identidade leste-asiática” nidade do estrangeiro, com a estratégia de ligar alguns caracteres culturais que dialogam entre (CHUA, 2004) abarca traços relacionáveis entres os interesses econômicos internacionais com o sen- as nações, como valorização da família, senso de países do Leste da Ásia por serem culturalmente timento nacional de pertencimento (IDEM). Além coletivismo, disciplina e hierarquia. Essas caracte- próximos, resultado de interações históricas, da disso, a expansão da capacidade tecnológica da rísticas possuem forte poder moral e cultural na bagagem confucionista, memórias coletivas com- produção televisiva nessas indústrias culturais região, por isso os produtos culturais, especial- partilhadas e pela própria cercania geográfica. Por nas últimas décadas ajudou no desenvolvimento, mente os audiovisuais, que dialogam com essas essa razão, o diálogo regional dá abertura para as distribuição e reconhecimento desses conteúdos vertentes encontram públicos de diferentes paí- trocas especialmente de produtos televisivos, já (KEANE; FUNG; MORAN, 2007). ses que se veem representados culturalmente que essas narrativas apresentam uma comunhão O Leste da Ásia, em sua pluralidade de 9 Sistema ético, religioso e filosófico baseado nos ensinamentos cultural genérica em meio as diferenças existen- do filósofo chinês Confúcio (551AEC – 479AEC). Suas lições países e culturas, é um território extremamente abordavam ética social, ideologia política e colocavam a família tes. As audiências leste-asiáticas se apresentam como centro da sociedade. 184 VERSÕES TELEVISIVAS TRANSNACIONAIS NO LESTE ASIÁTICO: HANA YORI DANGO COMO MODELO REGIONAL Daniela Mazur (UFF) receptivas a produtos próximos culturalmente apresenta como essencial para o consumo desses de popularidade na Ásia e, mais recentemente, (KEANE; FUNG; MORAN, 2007), criando-se, assim, produtos tanto em nível nacional, quanto regio- em países ocidentais. Esses fenômenos lideram interconexões culturais entre essas nações e facili- nal, a resistência não está só na nação diretamen- o mercado regional, criando espaços de trocas e tando o fluxo regional do mercado. te apresentada, mas também nas outras culturas influências diretas, além de serem uma arena de A premissa básica da globalização apon- que dialogam com ela e criam sentidos atualiza- cópias e adaptações de programações televisivas ta para o imperialismo cultural e da mídia como dos do que é ser periférico aos fluxos globais. de sucesso. força de dominação do Ocidente sobre o Não- É em meio a essa estrutura do mercado re- Variações regionais impulsionam a dispersão de ideias. Ironicamen- -Ocidente (centro versus periferia), resultando na gional, que os fenômenos culturais surgiram e se te, enquanto a mídia global está homogeneização das culturas e na imposição de estabeleceram como fontes da cultura pop do les- se consolidando através de fusões valores globais em desfavor aos locais. Contudo, te-asiático. Como já afirmado, o Japão e a Coreia e alianças, o conteúdo está sendo trocado ou clonado tão rapidamen- o processo globalizante também cria resistências, do Sul são atualmente os grandes polos de pro- te que há uma crescente sensação as culturas locais não se perdem, mesmo em fren- dução, exportação e circulação de produtos cul- de conectividade. O sucesso em um mercado é transferido muito te aos aspectos que irremediavelmente acabam turais na região, e se destacam como alternativas rapidamente para outro. Isso não se tornando semelhantes através do contato com periféricas ao processo globalizante (YANG, 2007), se aplica apenas à venda de progra- as forças globais. E os formatos televisivos, por desafiando a hegemonia do centro (JIN, YOON, mação “finalizada”, mas também à transferência de modelos e técni- mais que sejam grandes arquétipos da globaliza- 2017). O Japan Mania é o fenômeno transnacional cas. É este o novo modelo de glo- ção e se caracterizem pela uniformidade, são ape- que abarca a força da exportação e da represen- balização (KEANE, FUNG, MORAN, nas formas, o conteúdo, que é o mais importante tação nacional dos produtos culturais japoneses, 2007, p. 24, tradução nossa). e significativo, é adaptável aos interesses culturais alavancado especialmente pelos mangás, animês, Como debatido por Keane, Fung e Moran, do local (KEANE; FUNG; MORAN, 2007). Novamen- doramas e J-pop, já a Hallyu é o levante cultural da as práticas regionais de luta em resistência às for- te, a ideia de proximidade cultural de Straubhaar Coreia do Sul através do intenso fluxo de produ- ças globalizantes apresentam novas formas de se (1991) se faz válida, já que a familiaridade do pú- tos culturais, como os K-dramas, K-pop, cinema, produzir sentido e modelos que funcionam den- blico com o que está representado na televisão se moda e cosméticos, que tem conquistado gran- tro de regiões específicas. É com isso em mente

185 VERSÕES TELEVISIVAS TRANSNACIONAIS NO LESTE ASIÁTICO: HANA YORI DANGO COMO MODELO REGIONAL Daniela Mazur (UFF) e em meio a essa discussão que analisamos Hana quantidade de produções televisivas em desta- dução oficial para o inglês da adaptação chinesa, Yori Dango. que no cenário atual. E, assim como o caso de Yo já na Coreia do Sul teve outro título, assim como soy Betty, la fea (RCN Televisión, 1999–2001), em na Indonésia. A destacada pelo jornal é a décima HANA YORI DANGO, UMA NARRATIVA INTER-A- que uma narrativa se transforma em um formato sexta adaptação audiovisual produzida a partir do SIÁTICA através do potencial de seu roteiro em circular e original do mangá shoujo12 e consegue manter o ser adaptado em diferentes culturas e indústrias seu sucesso no mercado transnacional do leste e O estudo de caso aqui apresenta Hana Yori televisivas (MIKOS; PARRETA, 2012), também é sudeste asiático, mesmo a narrativa sendo basi- Dango, uma narrativa considerada como inter- Hana Yori Dango, que se apresenta não só como camente a mesma e se repetindo todas as vezes. -asiática porque navega por diferentes culturas um produto finalizado/licenciado, mas também A história original se concentra na protagonista dentro do Leste da Ásia. Originária de mangás como formato de roteiro circulante em meio ao Makino Tsukushi, uma garota simples, pobre e japoneses e com uma longevidade no mercado mercado televisivo regional. com personalidade muito sorte, que consegue televisivo por mais de 20 anos, foi readaptada di- É julho de 2018 e a chamada do jornal The entrar em uma escola de elite, onde se depa- versas vezes em diferentes países e em diferentes Jakarta Post anuncia: “‘Meteor Garden 2018’: Mes- ra com um quarteto de garotos que dominam o épocas. Primeiramente lançada nos quadrinhos e ma velha receita, mas as garotas ainda amam is- lugar, o Flower Four (F4). Eles conquistaram esse depois adaptada ao animê, ao cinema e a multi- so!”10, mais uma versão de Hana Yori Dango estava poder através de suas belezas, inteligências e for- plicidade de versões nacionais dos dramas de TV. no ar na China e conquistou até mesmo a Netflix, tunas, se dando o direito passar por cima de tudo Data do início da década de 1990, contudo até que comprou os direitos de exibição na sua pla- e todos na escola. Contudo, Makino resiste à im- 2019, essa história ainda se mantem relevante taforma global e está atualmente disponível no ponência dos garotos e conquista a atenção de- para o público leste-asiático, com novas adapta- site como “Original Netflix” (no catálogo brasilei- les, que começam a persegui-la, se utilizando até ções sendo produzidas e conquistando diferentes ro, “Jardim de Meteoros”11). Meteor Garden é a tra- mesmo de atos de violência para manter o poder públicos. Hana Yori Dango apresenta um caso de 10 Tradução nossa de “Meteor Garden 2018: Same old recipe do quarteto na escola. Então, o que começa como but girls still love it!”, do jornal The Jakarta Post em 19/07/2018, sucesso de formato de roteiro que atraiu o merca- também disponível pelo link: http://www.thejakartapost.com/ um problema entre a garota e o F4, acaba gradati- life/2018/07/19/meteor-garden-2018-same-old-recipe-but-girls- do regional mesmo através dos anos e da grande still-love-it.html 12 Categoria de histórias de mangá com público alvo focado em 11 Disponível em https://www.netflix.com/title/81005504 garotas adolescentes. 186 VERSÕES TELEVISIVAS TRANSNACIONAIS NO LESTE ASIÁTICO: HANA YORI DANGO COMO MODELO REGIONAL Daniela Mazur (UFF) vamente se tornando em amizade e romance. recente a fim de apresentar a relevância dessa nar- A história original do mangá de Hana Yori rativa ainda no presente, contudo um longo cami- Dango foi lançada em outubro de 1992 e encerra- nho foi percorrido até chegar nessa décima-sexta da em setembro de 2003, pela autora Yoko Kamio, adaptação. A primeira adaptação audiovisual foi porém, em 2015 foi anunciada a sequência da his- produzida no Japão em versão cinematográfica tória, Hana Yori Dango 2, que está sendo produzi- lançada em 1995 e a primeira versão para a tele- da e distribuída atualmente no Japão. A primeira visão foi através do formato animê, entre 1996 e série desses mangás, publicada até 2003, conquis- 1997, pela ABC (Asahi Broadcasting Corporation). tou o recorde de mangá shoujo mais vendido na Já em 2001, o formato de roteiro foi adaptado história do país13. O sucesso dessa narrativa no pela indústria televisiva taiwanesa e chamado de papel incentivou a migração para outras platafor- Meteor Garden, que logo depois, em 2002, lançou mas midiáticas, a fim de estender o potencial da também uma segunda temporada pela mesma história através, especialmente, do audiovisual. emissora CTV (Chinese Television System). En- A partir de então, a televisão e o cinema viraram tre a primeira e a segunda temporada da versão partes inerentes da construção do impacto cultu- taiwanesa, foi lançado também um mini-drama ral e mercadológico de Hana Yori Dango tanto no para interconectar as duas temporadas, que teve Japão, quanto em outros países. o título de Meteor Rain. Também em 2002, foi a vez da Indonésia lançar sua primeira versão des- sa história, intitulada de Siapa Takut Jatuh Cinta, Cartaz oficial de “Meteor Garden 流星花园( )” e a miniatura que, em 2017, teve seu remake pelo mesmo ca- de “Jardim de Meteoros” no catálogo da Netflix Brasil. Fon- nal (Surya Citra Televisi). Então, em 2005, chegou te: Pinterest e captura de tela feita pela autora. a vez do Japão transformar seu produto cultural do papel para a telinha, com o J-drama Hana Yori 13 Até 2015, mais de 61 milhões de cópias foram vendidas, fazendo Começamos a discussão pelo caso mais dele o mangá shoujo de maior sucesso da história. 187 VERSÕES TELEVISIVAS TRANSNACIONAIS NO LESTE ASIÁTICO: HANA YORI DANGO COMO MODELO REGIONAL Daniela Mazur (UFF)

Dango, que dois anos depois teve a sua segunda a versão mais recentemente licenciada, Meteor temporada Hana Yori Dango Returns e, em 2008, Garden 2018, produzida pela China continental e um filme Hana Yori Dango Final. Na sequência, foi exibida pela emissora Hunan TV (e com a distri- adaptado, em 2009, para o mercado sul-coreano buição global pela plataforma Netflix), e, também, no formato de K-drama e intitulado de Boys Over a adaptação para J-drama dos novos mangás da Flowers pela emissora KBS2 (Korean Broadcasting sequência Hana Yori Dango 2, com o dorama Hana System 2). Na mesma época, a China adaptava Nochi Hare: Hanadan Next Season (2018) no canal essa narrativa de forma ilegal, sem comprar os di- TBS. Em resumo, são muitas versões em diversos reitos do formato, na versão conhecida como Me- ambientes nacionais e em diferentes momentos, teor Shower, exibida entre 2008 e 2009 na Hunan onde as adaptações desse formato de roteiro so- TV. freram mudanças não só através dos nomes dos Em 2013, uma produtora independente personagens, cenários e no idioma falado em estadunidense começou o processo de adaptação cena, mas também se submeteram as convenções de Hana Yori Dango para os Estados Unidos, com narrativas e estilísticas de cada país, abordando o título de Boys Before Flowers, porém os primeiros temas e conteúdos caros ao local. Contudo, mes- episódios exibidos online não agradaram o públi- mo em meio a tamanha a pluralidade de produ- co que era majoritariamente formado por ameri- ções através dos anos e culturas, a narrativa base canos-asiáticos que já conheciam e eram fãs de dessa história conseguiu se manter, se repetir e se Fotos de divulgação de Hana Yori Dango (2005) e Boys over Hana Yori Dango, por essa razão, a adaptação oci- recriar nesse mercado televisivo. Flowers (2009), respectivamente as versões em J-drama e K-drama. Fonte: Google. dental nem chegou a ser finalizada. Em 2014, tam- bém sem a licença oficial para o uso do formato, foi produzida a versão indiana intitulada de Kaisi Yeh Yaariaan pela MTV . E, por fim, voltamos

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adaptada, poucas mudanças de grande porte são muito nessa concepção, além da época que tam- percebidas. Contudo, as variações culturais apre- bém dita sobre o que achamos ser bonito ou não, sentam questões que dão tons diferentes a cada através especialmente das modas e tendências de uma dessas versões. Por exemplo, a relação entre beleza. Até o lançamento de Meteor Garden 2018, o casal sul-coreano é bem mais fechada e fria em por exemplo, existia um “consenso” entre os fãs de comparação ao casal das versões taiwanesas. A dramas de TV que o F4 mais bonito era o sul-co- timidez e o senso de intimidade existente nas re- reano, contudo atualmente essa opinião passou a lações românticas sul-coreanas são um fator cul- ser ligada ao mais recente grupo de meninos, que tural nacional que não é igualmente comungado são chineses, já que eles estão em sintonia com a em Taiwan, por isso os atos de amor e os toques ideia atualizada de beleza. Ademais desses deta- entre o casal são mais físicos e claros na tela taiwa- lhes, a presença do bullying como fator narrativo nesa. em ambas as narrativas inter-asiáticas é muito for- Outro fator que abraça questões culturais te, porém, dependendo da época e do país, esse ainda mais profundas é a questão da estética da assunto é abordado de forma mais clara e violenta beleza de cada quarteto F4 nas diferentes adapta- ou não. Em Boys Over Flowers, a versão sul-corea- Quadro de comparação entre o mangá e os protagonistas ções. Partindo do fato que eles são os garotos mais na, a imagens são fortes, envolvendo até mesmo de quatro das 17 adaptações para a TV de Hana Yori Dango. bonitos da escola e que beleza é uma condição tentativas de suicídio e de estupro, mas nas outras Fonte: site Japão Em Foco. entranhada de fatores culturais que constroem a adaptações nacionais esse assunto não ficou tão ideia de belo ou feio, existem até hoje divergências em foco. A premissa da narrativa desse formato Adaptações oficiais (com a licença por entre consumidores locais e estrangeiros sobre se de roteiro se mantém a mesma em todas as suas compra do formato de roteiro) de Hana Yori Dango os atores escolhidos são realmente dignos de se- versões, contudo as abordagens sobre juventude prezaram pela essência dessa história, mudando rem considerados os mais bonitos para represen- e questões ligadas a ela são inerentes às flexões apenas detalhes que ajustavam melhor essa nar- tarem tais papéis. A percepção cultural influencia culturais das indústria televisivas nas quais se en- rativa as realidades culturais às quais estava sendo 189 VERSÕES TELEVISIVAS TRANSNACIONAIS NO LESTE ASIÁTICO: HANA YORI DANGO COMO MODELO REGIONAL Daniela Mazur (UFF) contram, apresentando um pluralismo de pers- televisivas regionais, permanecendo-se relevan- acredito que Hana Yori Dango é um exemplo difícil pectivas asiáticas em uma região que é vista pelo te por mais de duas décadas no Leste-Asiático. de ser repetido na história desse mercado regio- resto mundo, erroneamente, como “homogênea”. Adaptada a diferentes contextos culturais e de nal, já que consegue não só ser incansavelmente E prova como uma mesma narrativa não significa tempo, criou distintos sentidos com a mesma his- relida e consumida, mas também compreendida uma mesma abordagem cultural. Contudo, Hana tória e conquistou gerações de jovens. O mercado nos mais diversos contextos. É um formato de ro- Yori Dango apresenta como uma narrativa conse- ainda aposta nela porque enxerga questões cul- teiro de peso e marcante na história televisiva. gue se manter relevante em meio a um circuito turais que se mantêm relevantes na “cultura pop efervescente e dialogando com as múltiplas au- leste-asiática” e as demandas dos consumidores REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS diências, enquanto o resto do mundo aposta em locais de dramas de TV por histórias de roman- renovações e novas abordagens narrativas, pro- ce “familiares” continuam a existir. Isso também ANG, Ien. Watching Dallas: Soap Opera and the vando que algumas histórias nunca morrem. aponta que o mercado televisivo transnacional Melodramatic Imagination, trans. Della Couling. do leste e sudeste da Ásia continua lidando com London: Methuen, 1985. CONSIDERAÇÕES FINAIS questões narrativas que já funcionavam anterior- BALDACCHINO, Jean-Paul. In Sickness and in Love?. 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O objeto de estudo em foco foi uma narrativa puramente de representação cultural, mas tam- CHUA, Beng Huat; IWABUCHI, Koichi. East Asian inter-asiática que conseguiu passar ao patamar de bém de narrativas familiares que ativam lógicas Pop Culture: Analyzing the Korean Wave. Hong formato de roteiro e se difundiu pelas indústrias culturais compartilhadas. Além disso, também Kong University Press. Hong Kong, 2008.

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1 lable on Netflix, Disney XD and Teletoon. Theoretically de internacionalização de uma obra de animação Resumo: A partir do contexto de produção de uma based on the methodological procedure of Baxandall seriada infantil brasileira. animação seriada infantil, o artigo tem o objetivo de (2006) and the premises of Theory of Organizational apresentar as variáveis identificadas nos processos Creativity (WOODMAN SAYWER, GRIFFIN, 1993), the Para tanto, foi selecionada a produtora criativos de internacionalização da obra ‘Cupcake & analysis starts from three issues of followers of the pro- independente brasileira Birdo e a animação ‘Cup- ducer published in the stories of its Instagram and, in Dino: serviços gerais’ da Birdo, produtora indepen- cake & Dino: serviços gerais’, coproduzida pela dente brasileira, em coprodução com a EOne Enter- sequence, explains the trajectory of the producer and tainment e disponível na Netflix, Disney XD e Teletoon. of the animation. It concludes by indicating peculiari- E-One Entertainment. Em maio de 2019, a produ- Teoricamente fundamentada no procedimento meto- ties in the choices of the producer that potentiate the tora lançou uma questão aos seus seguidores nos dológico de Baxandall (2006) e nas premissas da Teoria creative performance and boost the internationaliza- Stories do Instagram institucional: “Tem curiosida- da Criatividade Organizacional (WOODMAN. SAYWER. tion of the animation. GRIFFIN., 1993), a análise parte de três questões de se- de pra saber alguma coisa da Birdo? O que você guidores da produtora publicadas nos stories do seu Keywords: Serial Animation; Creative Processes; Inter- quer saber sobre a Birdo?” Entre várias perguntas Instagram para, em seguida, explicar a trajetória da nationalization; Birdo; Cupcake & Dino. produtora e da obra. Conclui indicando peculiaridades e respostas, foram selecionadas para este artigo nas escolhas da produtora que potencializam a perfor- três questões relacionadas aos processos criativos, mance criativa e impulsionam a internacionalização A animação seriada infantil é o formato sendo duas sobre internacionalização da obra. da animação. audiovisual de ficção produzido para televisão ou A análise, a partir destas questões, é ba- Palavras-chave: Animação Seriada; Processos Criati- multiplataformas, com o intuito de disponibilizar seada no procedimento metodológico desenvol- vos; Internacionalização; Birdo; Cupcake & Dino. conteúdos educativos ou de entretenimento em vido por Baxandall no livro ‘Padrões de Intenção’ Abstract: The article aims to present the variables linguagem acessível e atraente às crianças. Os (2006) e nas proposições de Woodman; Saywer; identified in the creative processes of internationa- processos criativos para desenvolvimento, produ- Griffin (1993) para a Teoria da Criatividade Orga- lization of the animation ‘Cupcake & Dino: general nizacional. Baxandall, ao estudar a obra de arte, services’ by Birdo, a Brazilian independent producer, ção e comercialização de uma obra desta natureza in co-production with EOne Entertainment and avai- podem se configurar de acordo com o modelo de não a descreve: elabora hipóteses (aqui se propõe negócio adotado pelas produtoras envolvidas no questões de investigação), localiza o conjunto de 1 Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora projeto. Este artigo tem o objetivo de apresentar ações intencionais do artista (neste caso, os agen- Assistente da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia as variáveis identificadas nos processos criativos tes envolvidos – indivíduos, grupo, organização) (FAPESB). E-mail: [email protected] 192 PROCESSOS CRIATIVOS NA INTERNCIONALIZAÇÃO DA ANIMAÇÃO SERIADA INFANTIL: O CASO DE ‘CUPCAKE & DINO’ Natacha Stefanini Canesso no material de pesquisa disponível e reconhece a institucionais das empresas que participaram da de produção para televisão e cinema, distribuição circunscrição da investigação pelo repertório de produção. A partir do conteúdo da narrativa, na e comercialização das obras. No caso da animação quem o analisa. quarta parte, é possível observar o quadro com a infantil, seguindo uma tendência mundial, a pro- Ao aplicar a proposta de Baxandall aos classificação das variáveis dos processos criativos gramação matinal dos canais abertos dedicada às processos criativos de animação seriada infantil no caso específico da animação ‘Cupcake & Dino: crianças iniciou um processo de migração para a brasileira, agregam-se as proposições de Wood- serviços gerais’. televisão fechada, tornando-a cada vez mais di- man; Saywer; Griffin (1993) e apresenta-se um versificada e segmentada em gêneros e faixas quadro de variáveis relacionadas à obra e à pro- 1 O mercado de animação no Brasil etárias. A Disney, por exemplo, segmenta o públi- dutora. O intuito é responder à questão geral que, co em três canais: (pré-escolar / 2 a por sua vez, delimita um contexto, a internacio- O mercado audiovisual brasileiro se de- 7 anos), Disney XD (6 a 14 anos) e nalização da obra: “quais são as variáveis nos pro- senvolveu a partir da Lei no 12.4852, conhecida (geral, com exibição dos clássicos Disney). cessos criativos de internacionalização de uma como Lei da TV Paga, que determina cotas de con- A esses três fatores, acrescenta-se o au- animação seriada infantil brasileira?” teúdo nacional produzido por produtoras inde- mento na oferta de cursos para a formação acadê- O artigo está estruturado em quatro par- pendentes nas grades de programação dos canais mica e técnica e consequente profissionalização tes, além desta introdução e da conclusão. Primei- fechados; e da criação do Fundo Setorial do Au- do mercado. O cenário explica a abertura e expan- ro, contextualiza o aumento da demanda de obras diovisual, com programas de fomento para todos são de produtoras independentes no país, sendo de animação no mercado audiovisual brasileiro e os segmentos da indústria audiovisual, a exemplo algumas dedicadas exclusivamente à criação e detalha o ponto de partida desta pesquisa. Em se- produção de conteúdo de animação para televi- 2 A lei entrou em vigor em 2012 estabelecendo que “os canais guida, apresenta o procedimento metodológico que exibem predominantemente filmes, séries, animação,são e cinema. Segundo o Portal UOL, o número de documentários (chamados de canais de espaço qualificado) aplicado. A terceira parte é dedicada à narrativa passam a ter a obrigação de dedicar 3 horas e 30 minutos semanais produtoras filiadas à Brasil Audiovisual Indepen- sobre a produtora e a obra, construída com infor- de seu horário nobre à veiculação de conteúdos audiovisuais dente (BRAVI) triplicou entre novembro de 2011 brasileiros, sendo que no mínimo metade deverá ser produzida 3 mações disponíveis nas redes sociais da produto- por produtora brasileira independente. Também determina que (151 filiados) e maio de 2014 (465 filiados) . Atual- todos os pacotes oferecidos aos consumidores deverão incluir 1 3 Disponível em https://economia.uol.com.br/empreendedorismo/ ra e dos criadores citados no texto, e nos websites canal de espaço qualificado de programadora brasileira para cada noticias/redacao/2014/05/28/numero-de-pequenas-produtoras- 3 canais de espaço qualificado.” (BRASIL, Ancine) triplica-em-dois-anos-com-lei-da-tv-paga.htm 193 PROCESSOS CRIATIVOS NA INTERNCIONALIZAÇÃO DA ANIMAÇÃO SERIADA INFANTIL: O CASO DE ‘CUPCAKE & DINO’ Natacha Stefanini Canesso mente, de acordo com o histórico da própria BRA- destaca no Brasil pela equipe altamente qualifi- como estabeleceram canais de comunicação para VI4, são 660 produtoras em 21 estados da Federa- cada e pelo diálogo que estabelece com o mer- obterem respostas sobre como trabalhar no mer- ção, sendo que 311 se autodeclaram produtoras cado, incluindo artistas, animadores, apreciadores cado de animação (e, obviamente, na produtora!) de conteúdo de animação5. e curiosos da animação. Também marca presença e sobre os processos criativos das obras. A partir Com relação às políticas públicas para o nos principais eventos nacionais: Rio2C, Anima- de três questões lançadas nos stories da produ- audiovisual, desde 2008, foram lançados pela Se- Mundi, Comic Con Experience (CCXP) e em festivais tora sobre ‘Cupcake & Dino: serviços gerais’, uma cretaria do Audiovisual (SAV) e Agência Nacional internacionais: MIPJunior, Festival de Animação animação que, para o Brasil está disponível na Ne- de Cinema (Ancine) diversos mecanismos de fo- de Annecy, Prêmios Quirinos de Animação Ibero- tflix, iniciou-se a investigação apresentada neste mento para a cadeia produtiva do setor. O Progra- -Latinoamericana. Em 2018, participou da inaugu- artigo. As perguntas lançadas pelos seguidores ma de Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual ração do SESC Avenida Paulista, com a Ocupação com as respectivas respostas da produtora, publi- Brasileiro (Prodav) é direcionado para projetos Birdo, na qual expôs personagens e processos cadas nos Stories do Instagram da Birdo em maio para televisão e impulsionou a produção de obras criativos, dialogou com o público presente e pro- de 2019, são as seguintes (ver também Figura 1): de animação seriada no Brasil nesta última déca- duziu animações ao vivo. A experiência está dis- QUESTÃO 1. Como é o processo de pré-produção dos projetos? da. ponível nos stories do Instagram da Birdo Sudio (@ (Tempo, o que vocês desenvolvem Entre as produtoras que tiveram proje- birdostudio). antes, etc). Depende do projeto! O tos aprovados em um de seus editais, a Chamada mais importante é saber onde quer chegar com a história e também Pública BRDE/FSA PRODAV 01/20126, a Birdo se 2 Procedimento metodológico qual é o coração do projeto. O resto 4 Disponível em http://bravi.tv/bravi/historico/ todo varia de acordo com o projeto 5 Disponível em http://bravi.tv/associados/atividade/animacao/ e parceiros; “Esta Chamada Pública destina-se à seleção, em regime de As redes sociais possibilitaram aos fãs e 6 QUESTÃO 2. A estratégia de criação fluxo contínuo, de projetos de produção independente de obras audiovisuais brasileiras destinadas à exploração comercial inicial ao público com algum nível de interesse em ani- de Cupcake e Dino foi buscando nas janelas de radiodifusão de sons e imagens ou de comunicação mação acompanharem o trabalho da Birdo, assim ter uma melhor aceitação lá fora? eletrônica de massa por assinatura, no formato de obra seriada O Cup e Dino foi desenvolvido e (minissérie ou seriado) do tipo ficção, documentário e animação período de inscrições foi de 18/06/2012 a 31/05/2013 e está produzido em co-produção com a ou de documentários com metragem superior a 52 minutos, aqui mencionada porque o corpus da pesquisa de doutorado /EOne, do Canadá. Então ele sem- visando a contratação de operações financeiras, exclusivamente em andamento, a qual este artigo está relacionado, foi na forma de investimento”. (Portal BRDE/ANCINE/FSA). O seu estabelecido a partir dela. pre foi pensado como um produ- 194 PROCESSOS CRIATIVOS NA INTERNCIONALIZAÇÃO DA ANIMAÇÃO SERIADA INFANTIL: O CASO DE ‘CUPCAKE & DINO’ Natacha Stefanini Canesso

to internacional. Mas não perde o empresa. tempero brasileiro, principalmente A descrição da produtora e da obra, que o afeto entre os irmãos. E também todos os Eaters Eggs7 nos cenários; será realizada na próxima seção, é uma seleção QUESTÃO 3. Como é o processo de (intencional da pesquisadora) de informações, or- coprodução internacional? É a par- ganizada em uma sequência de ações dos agentes tir de edital nacional isso? Não ne- cessariamente. Para o Cup e Dino, envolvidos no processo de internacionalização. levamos o pitch da série para uma Foram investigadas as publicações nas redes so- feira de conteúdo e lá conhecemos a EOne, nossa coprodutora, que fez ciais da produtora e do criador e diretor brasileiro os contratos de licenciamento com Fonte: Instagram institucional da Birdo. Prints captados da animação, além de realizadas buscas de notí- Netflix, Disney e Teletoon. Outros pela autora (2019). cias sobre a produtora, a obra e sobre o criador da projetos podem ter diferentes con- figurações de coprodução. A par- ideia, publicadas nos anos de 2017, 2018 e 2019, ticipação da Birdo também pode As três questões estão relacionadas à per- utilizando o mecanismo de busca do Google8. variar (se vamos animar a série por gunta geral desta proposta: “quais são as variáveis O modo como a narrativa sobre obra e aqui ou fora, por exemplo). nos processos criativos de internacionalização de produtora está organizada baseia-se no procedi- Figura 1. Posts das três questões lançadas por seguidores uma animação seriada infantil brasileira?” As va- mento metodológico que Baxandall adotou no da Birdo no Instagram, respondidas pela produtora e publi- cados nos seus stories em maio de 2019. riáveis encontradas irão classificar as categorias livro ‘Padrões de Intenção’ (2006), no qual faz a ‘indivíduo’, ‘grupo’ e ‘organização’ sob a perspecti- descrição e explicação de quadros de pintores con- va de conceitos da Teoria da Criatividade Organi- 7 O termo correto é ‘Easter Eggs’. Traduzido literalmente como ‘ovos 8 A pesquisadora está ciente de que o mecanismo não é isento de Páscoa’, referindo-se à tradição de esconder ovos de chocolate zacional (WOODMAN; SAYWER; GRIFFIN, 1993). de direcionamentos. Não são utilizadas ferramentas para anular a para as crianças procurarem na ocasião da Páscoa. No audiovisual, ‘Indivíduo’ refere-se aos sócios fundadores da política de privacidade do Google que declara: “o Chrome armazena o termo ‘easter eggs’ é utilizado para denominar os enigmas e os URLs das páginas visitadas, um arquivo em cache de textos, elementos surpresa adicionados às cenas que exigem repertório produtora e ao diretor criativo da obra. ‘Grupo’ é imagens e outros recursos dessas páginas e [...] uma lista de alguns prévio do público. A Disney e a Pixar são famosas por incluírem dos endereços IP vinculados a partir dessas páginas.” Portanto nas animações rápidas passagens de personagens de produções a classificação para a equipe de colaboradores da assume que os resultados são encaminhados pelo mecanismo de anteriores. Os ‘easter eggs’ estão se tornando estratégias para produtora. ‘Organização’ é a produtora enquanto busca do Google baseados no histórico de pesquisa, em tópicos diversificação de público nas animações infantis e fidelização de relacionados por grupos de interesse e no que outras pessoas fãs. estão mais pesquisando no momento. 195 PROCESSOS CRIATIVOS NA INTERNCIONALIZAÇÃO DA ANIMAÇÃO SERIADA INFANTIL: O CASO DE ‘CUPCAKE & DINO’ Natacha Stefanini Canesso sagrados. Os métodos de Baxandall prescrevem o obra que integra o mercado internacional de en- sua diversidade, da estrutura e da cultura partici- campo da história cultural, com a preocupação de tretenimento porque foi pensada como produto pativa e que terá curva criativa relacionada ao seu circunscrever determinada obra do contexto que internacional e, no contexto [interno (produtora) estado de coesão; c. para a organização, que de- a tornou tal qual como se apresenta. A proposta e externo (mercado)] no qual se apresentou na fei- pende do fluxo informacional e comunicacional teórica metodológica deste trabalho não explora ra de negócios, atendeu aos requisitos dos players que estabelece no sistema do qual participa e da a complexidade e conceitos disponibilizados pelo internacionais. A próxima etapa do procedimento disponibilidade de recursos. autor. Apropria-se da noção de ação intencional metodológico é (3) a classificação dos itens para, e, a partir da materialidade disponível (informa- por fim, fazer(4) um exame dos pontos que de- 3 Produtora e obra: agentes envolvidos e in- ções das redes sociais, websites institucionais e vem dar conta das particularidades da obra (Ba- tencionalidades notícias), relaciona uma sequência de ações dos xandall, 2006, p. 49). agentes envolvidos para atingir o seguinte obje- Como já citado, para classificar os itens, A Birdo nasceu em 2005, em São Paulo, tivo da pesquisa: “identificar as variáveis nos pro- foram adotadas as variáveis ‘indivíduo’, ‘grupo’ e com apenas dois computadores e um fax, como cessos criativos da produtora (Birdo) em relação à ‘organização’. Estas são as variáveis da Teoria da projeto de Luciana Eguti e Paulo Muppet que obra (‘Cupcake & Dino: serviços gerais’) em dado Criatividade Organizacional e, com base nas con- decidiram atuar profissionalmente no mercado contexto (internacionalização)”. clusões de Woodman; Saywer; Griffin (1993) após de comunicação com serviços de animação. A As etapas adotadas por Baxandall (2006) ampla revisão bibliográfica dos seus pares, articu- produtora cresceu e hoje conta com mais de 60 para análise das obras são as seguintes: (1) orga- lam-se às seguintes proposições relacionadas à colaboradores (“amazing people”9). O marco de nizar uma narrativa sequencial concomitante à (2) performance da criatividade: a. para o indivíduo, desenvolvimento do negócio foi a criação dos seleção de itens informativos que correspondem pode ter um desempenho criativo melhor se com- Mascotes Vinícius e Tom para os Jogos Olímpicos a um enunciado causal acerca do objeto, que nes- partilhar um sistema de normas com todas as in- e Paraolímpicos de 2016, no Rio de Janeiro: te trabalho está elaborado da seguinte maneira: formações disponíveis e se tiver comportamento Trabalhamos em segredo por mais de um ano em um concurso re- a animação ‘Cupcake & Dino: serviços gerais’ da de risco acolhido pela cultura organizacional; b. cheado de entregas até chegar na Birdo, produtora independente brasileira, é uma para o grupo, que se potencializa em função da 9 Na descrição da empresa no website da Birdo, esta é a maneira como se referem aos colaboradores: “pessoas supreendentes” 196 PROCESSOS CRIATIVOS NA INTERNCIONALIZAÇÃO DA ANIMAÇÃO SERIADA INFANTIL: O CASO DE ‘CUPCAKE & DINO’ Natacha Stefanini Canesso

escolha final dos nossos persona- pera o trabalho com os mascotes na. (Relato de Léo Almeida no Layer Lemonade, gens. Nosso trabalho envolveu os Vinicius e Tom. Nós fomos obriga- 2017) desenhos oficiais dos Mascotes, dos a trabalhar lado a lado com os criação de suas histórias e universo, melhores profissionais do Brasil em personalidades e poderes, 64 poses diversas áreas: desenvolvimento O conteúdo do website da Birdo, em in- esportivas orientadas por especia- de produto, licenciamento, canais glês, indica sintonia com o mercado internacional listas em cada modalidade, mate- de TV, branding, publicidade, de- 15 rial para licenciamento, manuais de sign e muitas outras. Essas pessoas de players do audiovisual. E isso pode ser con- aplicação de marca e várias outras incríveis que nos ensinaram tanto firmado ao verificar os detalhes dos projetos ori- entregas empolgantes [...](Website são muito queridas e próximas até ginais. Dos seis disponíveis, quatro contam com Birdo10) hoje. (MUPPET, Blog Layer Lemona- de, 2017) coprodução internacional: ‘Oswaldo’, ‘Cupcake & Em entrevista para o blog Layer Lemona- Dino: General Services’, ‘Lupi & Baduki’ e ‘Ba-Da de11, Muppet diferencia as experiências que lhes Especializada em animação, o portfólio Bean!’. Os outros dois são ‘Clube da Anittinha’ e ‘Vi- deram o domínio sobre o processo da animação, de obras inclui projetos especiais, a exemplo dos nícius & Tom’ (Figura 2). citando o curta ‘Caixa’12 e o clipe ‘Bonequinha do Mascotes; comerciais e vinhetas; curtas metra- Papai’13, sobre como lidar com prazos em uma es- gens e clipes musicais; terceirização de serviços Figura 2. Cards promocionais dos projetos originais da Birdo. cala maior com a série ‘Mobsquad’14 e a oportuni- de produção e projetos originais. O estúdio tem dade de criação de rede de negócios: uma estrutura dinâmica, interativa e criativa. Em termos de networking nada su- Fui na BIRDO uma vez há alguns anos, rapidamente, 10 Disponível em https://www.birdo.com.br/mascots-rio2016 acompanhando uma amiga que conhecia o Paulo 11 Disponível em https://www.layerlemonade.com/entrevistas/ Muppet. Assim que entrei, vi que era lugar de gente papo-lemonade-com-paulo-muppet-birdo-studio obstinada com arte. Gente organizada. Gente que 12 Curta metragem que tematiza o cuidado com o planeta. cria, gente que gosta do que faz. [...] você não sabe Realizado com recursos da parceria entre Ministério do Meio Ambiente e Ministério da Cultura. Disponível em https://www. nem pra onde olha! Dentro da saleta num bairro pau- birdo.com.br/caixa lista, entre Wacons e miniaturas diversas, [...] um colo- 13 Videoclipe para música eletrônica da ‘Banda Pequeno Cidadão’. rido diferente, animações com movimentos de fazer Disponível em https://www.birdo.com.br/pequeno-cidado inveja aos japoneses, e imprimem um ritmo incrível 15 Players no mercado financeiro são compreendidos como 14 Série animada para a MTV Asia. Demo reel disponível em de produção, contando que são uma equipe peque- investidores. Empresas que atuam no mercado de entretenimento https://vimeo.com/4296320 e canais são exemplos de players do audiovisual. 197 PROCESSOS CRIATIVOS NA INTERNCIONALIZAÇÃO DA ANIMAÇÃO SERIADA INFANTIL: O CASO DE ‘CUPCAKE & DINO’ Natacha Stefanini Canesso

cia no canal Cartoon Network Brasil17, ‘Oswaldo’ mais vistos e foi a animação brasileira mais assisti- conquistou o público infantil. O projeto iniciou da do canal. Também foi o programa favorito dos com o fomento do FSA em 2012, a partir do de- domingos na TV Cultura em 201818. ‘Oswaldo’ con- sejo da produtora de “arriscar em formatos mais ta a história de um pinguim criado por pais huma- longos” (MUPPET, AnimaMundi, 2017). nos que enfrenta o desafio de sobreviver à escola Foi um caminho longo que nos obri- sendo um “cara estranho”. O criador da série é Pe- gou a entender os processos de um tipo de produção que ainda não co- dro Eboli, o mesmo de ‘Cupcake & Dino: serviços nhecíamos a fundo, a de conteúdo gerais’. Oswaldo é simpático, peculiar e engraçado. Fonte: Imagens disponíveis no website da Birdo. Prints cap- original para TV. Levantamos incen- Isso tem um apelo das crianças do mundo todo, o tivo do governo por meio do Fundo tados e adaptados pela autora (2019). Setorial do Audiovisual e buscamos que contribuiu, em termos de narrativa, para a sé- parceria de canais para exibição e rie ser distribuída internacionalmente pela ingle- ficamos muito felizes de fechar com Os seis projetos estão em andamento, sa Jetpack Distribution. O anúncio ocorreu durante o Cartoon Network e a TV Cultura, em fases diferentes. Segundo Eguti, em entrevis- que apostaram no conceito do pro- o MIPJunior 2018, evento do mercado de entrete- 16 ta para a Folha , para manter o fluxo de caixa da jeto, antes mesmo do começo da nimento com foco em conteúdo infantil realizado produtora é necessário ter entre quatro e cinco produção dos episódios. Ao todo, Oswaldo levou 5 anos para ser de- anualmente em Cannes, na França. (BRAVI, 2018) projetos em desenvolvimento já que uma série senvolvido e mobilizou uma equipe Com experiência adquirida em animação de televisão demora de 18 a 24 meses para ficar de 54 profissionais, entre animado- para televisão, rede ampla de negócios, equipe pronta. res, designers e produtores da Bir- do, além deroteiristas convidados. com boas ideias e capacitada, ‘Cupcake & Dino: No Brasil, além da série ‘Vinícius & Tom’, (MUPPET. AnimaMundi, 2017). serviços gerais’ iniciou a participação em pitchin- que chegou a atingir o primeiro lugar de audiên- gs19 e, no Rio Content (atualmente Rio2C), fechou a Em 2017, quando exibido pelo Cartoon 18 Fonte: Kantar IBOPE Media (Brasil 15 mkts); Target: Pay Kids 16 Disponível em https://www1.folha.uol.com. 4-11; 01/01/2017 – 31/12/2017; 24 horas; Mondays to Sundays. br/mercado/2018/09/animacoes-nacionais- Network Brasil, ficou entre os cinco programas Disponível em https://www.birdo.com.br/oswaldo crescem-com-incentivos-e-novas-plataformas. 17 Fonte: Kantar IBOPE Media (Brasil 15mkts); Kids with PayTV 4-11; 19 Defesas orais dos projetos audiovisuais que geralmente shtml?fbclid=IwAR2Jrm8D8cvinPjYFg1CINwoIKrc_ Monday-Sunday; 24 hours; 01/01/2016 - 30/08/2016. Disponível acontecem em eventos de mercado e são realizados pelos omIN0kNswaqBJvbqpOGnu0IRjvUQi4 em https://www.birdo.com.br/vinicius-tom criadores ou produtores da obra com o intuito de divulgá-la, 198 PROCESSOS CRIATIVOS NA INTERNCIONALIZAÇÃO DA ANIMAÇÃO SERIADA INFANTIL: O CASO DE ‘CUPCAKE & DINO’ Natacha Stefanini Canesso parceria com a EOne Entertainment, empresa ingle- dá, país para onde retornou para acompanhar o os personagens mudaram em dois anos de de- sa com unidade no Canadá, para a qual também projeto, que tem como coração a amizade incon- senvolvimento com a parceria criativa de Mark presta serviços de produção para ‘Skelanimals’ e dicional dos irmãos que, completamente diferen- Satterthwaite, da EOne Entertainment. A crítica do ‘So So Happy’, animações para canais de mídias tes, querem consagrar o nome do negócio pró- Interprete-me ressalta a personalidade dos per- sociais. A EOne Entertainment atua globalmente prio de serviços gerais. Segundo a crítica do Blog sonagens como característica marcante no seria- no mercado de mídia, incluindo cinema, televi- Interprete.me, do. Em uma breve análise, pode-se apontar para são, internet, música, gestão de marcas e inova- a série animada Cupcake e Dino: a tendência de licenciamento de produtos fun- Serviços Gerais, à primeira vis- ção tecnológica. ‘The Walking Dead’ e ‘Peppa Pig’, ta, parece ser um desenho com- damentada nos personagens e no conteúdo da entre outros projetos bem sucedidos, compõem pletamente infantil, voltado para animação. A EOne Entertainment entende o licen- o portfólio disponível no website da empresa. Foi este público apenas. Entretanto, ciamento como “frente de negócio”, mas também ao assistir seus episódios percebe- a responsável pelos acordos de licenciamento de mos que o estilo de humor que ela como “programa de construção de marca”. Segun- ‘Cupcake & Dino: serviços gerais’ com a Netflix, Dis- transmite pode agradar também do a publicação Meio & Mensagem, a Netflix vem aos adultos que gostam de traba- ney XD e Teletoon. A série foi exibida como conteú- testando novas fontes de receita com licencia- lhos non-sense e com altas doses do original Netflix para depois veicular nos canais de besteirol. Ou seja: as crianças mentos em um mercado global que teve alta de americano e canadense, respectivamente. ‘Cup- vão se divertir bastante com as co- 5% em 2018 em relação ao ano anterior. (MEIO & res e as trapalhadas da dupla que cake & Dino: serviços gerais’ é anunciada como dá nome à essa série, enquanto os MENSAGEM, 2018) a primeira animação brasileira na Netflix, mas só mais crescidos vão rir bastante com O lançamento de ‘Cupcake & Dino: servi- foi disponibilizada para o público no Brasil em um as sátiras ao mercado de trabalho ços gerais’ contou com as estratégias de comuni- que ela proporciona. (INTERPRETE. momento seguinte e na mesma lógica internacio- ME, 2018) cação da Netflix, incluindo comunicação segmen- nal: primeiro em streaming. é um longo documento que basicamente compreende todas Eboli, que desta vez além de criador tam- as "verdades" com as quais a série e todos que a compram Em seu Twitter, Eboli (@eboli_pedro) "concordam". Ela é usada tanto na venda da série - para que o bém é diretor da animação, já havia participado apresenta a Bíblia20 da obra e explica o quanto comprador consiga visualizar o que ele estará comprando na cauda longa - quanto no decorrer da mesma, para que o time criativo não de um curso de formação em animação no Cana- 20 "Bíblia é o nome que se dá para um documento muito se perca.” Definição disponível em http://www.saladosroteiristas. vendê-la ou buscar parceiros de negócio. importante para a produção serializada de televisão. A Bíblia com.br/2015/12/biblia.html 199 PROCESSOS CRIATIVOS NA INTERNCIONALIZAÇÃO DA ANIMAÇÃO SERIADA INFANTIL: O CASO DE ‘CUPCAKE & DINO’ Natacha Stefanini Canesso tada aos clientes nas redes sociais e backligths21 na gerais’ foi rapidamente reconhecida. Foi nomeada que as variáveis identificadas nas informações Times Square em Nova Iorque, além de mídia es- para o prêmio de melhor série de animação dos disponíveis sobre a obra e a produtora, classifica- pontânea22. Outra estratégia promocional da Net- Prêmios Quirinos de Animação Ibero-Latinoame- das no quadro, compõem um sistema capaz de flix foi aceitar arcar com a produção de videoclips ricana, ao lado de outras duas séries brasileiras: explicar a sua lógica de produção e podem definir para serem exibidos ao término de cada episódio, ‘Irmão do Jorel’(vencedor) e ‘Superdrags’; Eboli a performance criativa de indivíduos, do grupo e apostando na combinação música, imagem e foi nomeado para o prêmio de Melhor Direção de da organização. Respondem, portanto, à questão animação como potencial transmídia no merca- Animação pela Academia Canadense de Cinema e geral proposta para este artigo, configurando- do audiovisual para público infantil. Os videoclips Televisão; o ator de voz Mark Little venceu o prê- -se como as variáveis dos processos criativos de são obras dentro das obras que reforçam o caráter mio ACTRA de melhor performance de voz como internacionalização de ‘Cupcake & Dino: serviços inovador do projeto, pois possibilitam a inserção Dino; em 2018, figurou no New York Times entre os gerais’ da Birdo. de outra estética narrativa sem afetar a unidade dez melhores programas para se assistir no final Para um estudo mais detalhado, conside- e identidade da obra de origem. Para os roteiris- de semana (Facebook Birdo Studio, 2019). ra-se importante a compreensão das etapas técni- tas e fãs, extras das narrativas, a exemplo dos vi- cas da produção de uma animação, mas este não deoclips, são um deleite. Para as crianças, bônus 4 Seleção e classificação das variáveis de pro- é o objetivo do trabalho. Da mesma forma que a no entretenimento. Como produto transmídia dução descrição do mercado e dos agentes que o com- podem circular individualmente em outras plata- põe merecem a atenção da pesquisadora e serão formas digitais, reforçando a animação e os seus A análise da narrativa sequencial gerou tratados em trabalhos futuros. personagens como marcas, além de cumprirem itens que compõem o quadro a seguir (Figura 3). sua função primeira de promoção da obra. Estes itens foram denominados ‘variáveis’ e estão Após veiculada, ‘Cupcake & Dino: serviços relacionados ao que foi definido como categorias: 21 Painéis com retroiluminação. Com fins publicitários, geralmente ‘indivíduo’, ‘grupo’ e ‘organização’ (WOODMAN; são em grandes formatos e distribuídos em locais de alto fluxo nos centros urbanos. SAYWER; GRIFFIN, 1993). 22 Estadão, R7, OGlobo, Folha, Gazeta Digital são exemplos de mídias brasileiras de notícias que publicaram alguma informação A proposição desta investigação é a de positiva sobre a animação nos anos de 2017 e 2018. 200 PROCESSOS CRIATIVOS NA INTERNCIONALIZAÇÃO DA ANIMAÇÃO SERIADA INFANTIL: O CASO DE ‘CUPCAKE & DINO’ Natacha Stefanini Canesso

Figura 3. Quadro de classificação das variáveis da lógica de Fonte: Narrativa sequencial do artigo. Elaborado pela auto- produção da animação ra (2019).

CATEGORIA AGENTES DESTA INVESTIGAÇÃO VARIÁVEIS Empreendedorismo; Conhecimento técnico de animação; Fundadores da produtora Conhecimento em gestão de negócios; Disponibilidade para o diálogo; INDIVÍDUO Rede de negócios. Formação específica e sólida na área; Certificação Internacional: Film School, Canadá, 2008. Diretor criativo (brasileiro) da obra Conhecimento do mercado de animação internacional; Rede internacional de contatos; Experiência anterior bem sucedida como criador; Disponibilidade para construir o projeto a partir de uma ideia inicial pessoal. Tecnicamente qualificada; Diversas habilidades; GRUPO Equipe (pessoas que trabalham na obra) Comprometimento; Entrosamento; Disponibilidade para formação e capacitação; Disponibilidade para diálogo; Localização estratégica no país – São Paulo; Capacidade de entrega – rigor com prazos e com as especificações técnicas; Investe em tecnologia; Investe em capacitação; Trajetória reconhecida em animação seriada infantil; Portfólio de obras coproduzidas internacionalmente; ORGANIZAÇÃO Produtora (empresa) Mantém elementos de identidade da produtora nas obras; Cultiva canais de interação com o público; Fomenta oportunidades de experimentação; Conhece a lógica de programação dos canais; Mantém diálogo com o mercado internacional de entretenimento de mídia; Participa de feiras de negócios nacionais e internacionais; Inscreve-se nos maiores festivais mundiais de animação.

201 PROCESSOS CRIATIVOS NA INTERNCIONALIZAÇÃO DA ANIMAÇÃO SERIADA INFANTIL: O CASO DE ‘CUPCAKE & DINO’ Natacha Stefanini Canesso

5 Conclusões seriada que inicialmente contou com recursos da diversos mercados, integra e dirige uma equipe política pública brasileira para o audiovisual, en- de profissionais com diversas habilidades, dialoga Três questões publicadas no Instagram tendeu que a viabilização financeira do projeto com profissionais de outras empresas. Também da Birdo suscitaram a investigação sobre as variá- e da empresa depende da performance criativa, representa a produtora no contexto de copro- veis dos processos criativos de internacionaliza- da capacidade de entrega da produção e da rede dução internacional e essa posição foi galgada a ção da obra de animação seriada ‘Cupcake & Dino: de negócios. No contexto de mercado, a Birdo partir do acolhimento/diálogo dos seus projetos e serviços gerais’. Questionam sobre o processo de pode ser considerada uma produtora internacio- ideias pessoais. Com relação à organização, as pro- pré-produção de uma animação, se as estratégias nal devido às variáveis relacionadas à organização posições acerca do desempenho criativo são: 1. o adotadas nesta obra visam a internacionalização apresentadas na Figura 3. Desta forma, desloca- fluxo informacional e comunicacional é presente, e como acontece este processo. Dadas e classifica- -se o olhar da obra para um sistema orgânico que inclusive com o diálogo com o público de admi- das as variáveis da questão geral de investigação produz processos criativos de internacionalização radores de animação, críticos, imprensa e pesqui- (Figura 3), as respostas específicas serão retoma- como condição atual de existência. sadores. A facilidade de localizar informação para das com base nas informações apresentadas ao A partir da narrativa sequencial desen- esse trabalho também é um indicativo para esta longo do artigo. O coração do projeto ‘Cupcake volvida neste artigo é possível afirmar que este afirmação; 2. a capacidade de localização e inte- & Dino: serviços gerais’ é a amizade incondicional sistema orgânico preserva as condições de per- gração de recursos humanos, financeiros e pro- de dois irmãos completamente diferentes. A am- formance criativa do indivíduo e reforça as da mocionais pode ser identificada nos projetos; 3. pla distribuição da obra no mercado internacional organização. Quanto às condições do grupo, exis- o reconhecimento no mercado de animação. Por pretende a construção da marca e o licenciamento tem apenas indicações nas informações obtidas fim, no caso estudado, as peculiaridades identifi- de produtos. Foi pensada como produto interna- de que a diversidade e a cultura participativa são cadas estão relacionadas a estes três fatores: fluxo cional porque participa desta lógica: integra um preservadas. Com relação ao indivíduo, o diretor intenso de comunicação, recursos disponíveis e portfólio de obras prioritariamente coproduzidas criativo é exemplo de profissional que comparti- reconhecimento internacional. internacionalmente. lha regras, normas, tensões, expectativas e riscos, Referências bibliográficas A Birdo, através da trajetória na animação já que detém conhecimento técnico, transita em

202 PROCESSOS CRIATIVOS NA INTERNCIONALIZAÇÃO DA ANIMAÇÃO SERIADA INFANTIL: O CASO DE ‘CUPCAKE & DINO’ Natacha Stefanini Canesso

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203 1978 vs 2003: DOIS MODELOS DE TELEVISÃO EM DUAS ENCARNAÇÕES DE ‘BATTLESTAR GALACTICA’ Rodrigo Quinan (PPGCOM-UFF)1

1 ries, seeking to understand the reasons behind ocorreram durante a década de 1990, com uma Resumo: Este artigo realizará uma análise the different reception each one received with série de projetos frustrados para sua volta (SEPIN- comparativa das duas edições da série de ficção how they connect to real world elements and to WALL, 2013). the narrative possibilities offered by each era of científica Battlestar Galactica, a primeira lançada Enfim em 2003, Battlestar Galactica voltou em 1978 e a segunda em 2003. Compreendemos television. ao ar, desta vez no canal de tv a cabo Syfy, para que as disparidades entre as duas versões pos- KEYWORDS: Remake, Science Fiction, Series, uma minissérie de 2 episódios de 1:30h que se- suem importantes contrapontos que represen- Television tam a profunda transformação que meio televi- ria renovada por mais 4 longas temporadas mais sivo sofreu na virada do milênio. Faremos uma convencionais, durando até 2009 e estendendo análise da construção de universo de cada uma INTRODUÇÃO o seu universo em três filmes, websódios e uma das séries, buscando compreender as razões por prequel chamada . Com Richard D. Moore, Battlestar Galactica é uma bastante discutida trás da contrastante legitimação de cada uma roteirista de Star Trek; Deep Space Nine (1993- franquia de ficção científica, originalmente criada através da forma como dialogaram tanto com el- 1999) a frente da nova produção, BSG sofreu uma para o canal americano ABC em 1978. Cancelada ementos do mundo real quanto com as possibi- profunda reimaginação, com drásticas mudanças lidades narrativas oferecidas de acordo com sua após apenas uma temporada devido ao seu altís- em tom, estética, temas e formato. Apenas Hatch época. simo custo de produção (ROSE, 2015), recebeu foi mantido do elenco produção original, mas em um curto spin-off chamado “Galactica 1980” dois PALAVRAS CHAVE: Remake, Ficção Cientifi- um papel diferente: ao invés do herói americano anos depois, não sendo mais tocada por duas dé- ca, Séries, Televisão Capitão Apollo (que seria feito pelo ator Jamie cadas. Apesar de uma infame reputação como Abstract: This article will compare both edi- Bamber), agora ele interpretaria o vilão terroris- uma cópia pouco inspirada de Star Wars, o que tions of sci-fi television series Battlestar Galactica, ta Tom Zarek. Tantas eram as diferenças entre as gerou uma ação legal acusando os criadores de released originally in 1978; then remade in 2003. duas encarnações da série que muitos críticos e plágio (TRANTER, 2007), a série manteve o status We understand that the differences between the fãs se perguntaram porque os produtores sequer two versions have important counterpoints that cult tanto graças à boa audiência que teve na sua mantiveram o nome Battlestar Galactica. (ROSE, represent the deep transformation the television única temporada quanto às reprises que passaram 2015) medium suffered in turn of the millennium. We em vários canais da TV americana (ROSE, 2015). will analyse the universe construction of each se- Graças a isso, movimentações de produtores, ex- As mudanças surtiram efeito: de uma pou- 1 Mestrando em Comunicação pelo PPGCOM-UFF, rodrigo- ecutivos e do próprio ator principal Richard Hatch co respeitada curiosidade cult, BSG passou a ser [email protected] 204 1978 vs 2003: DOIS MODELOS DE TELEVISÃO EM DUAS ENCARNAÇÕES DE ‘BATTLESTAR GALACTICA’ Rodrigo Quinan (PPGCOM-UFF) a ser constantemente destacada como uma das uma vez que não apenas BSG teve sua reputação confederação espacial composta por 12 planetas melhores séries da sua época e de todos os tem- completamente oposta a sua versão de 30 anos chamados de “colônias”. Após um ataque nuclear pos (TRANTER, 2007) na sua reimaginação, sen- antes, mas a própria televisão também, cada vez surpresa de uma raça de robôs chamada cylons, do aclamada por retratar tópicos complexos na mais legitimada desde a virada do milênio como todas as colônias são destruídas e os últimos so- sua narrativa. Este interesse em complexidade um meio produtor de narrativas sérias, respeita- breviventes da humanidade (no remake contabi- é também compartilhado por acadêmicos, com das e capazes de abordar temas difíceis com com- lizados como cerca de 50 mil) fogem para áreas inúmeras produções acadêmicas falando sobre plexidade. não-exploradas do espaço em uma frota de naves questões como política, terrorismo, luto, sexuali- Neste texto faremos uma análise comparati- liderada pela nave que dá o nome a série, a última dade, tortura, religião, reprodução, pós-humanis- va da Construção de Universo, das Represen- nave militar deste porte a sobreviver ao genocí- mo, representação de gênero, legislação e ciência, tações de Gênero e da Tecnologia e Antago- dio. Sob constante ataque dos cylons, que os todos estes retratados na reimaginação (NEU- nismo entre as duas edições da série; concluindo perseguem por toda a galáxia afim de extinguir a MANN, 2011). No entanto, há pouco interesse em o texto analisando as Mudanças na Televisão humanidade, a última esperança da humanidade falar sobre a série original, ainda tratada como ocorridas entre um e outro e como e elas expli- é encontrar a lendária 13ª colônia, com a suposta desimportante, sendo ela brevemente menciona- cam as lógicas por trás das radicais mudanças na existência apenas mencionadas em textos religio- da nestas análises sobre o BSG reimaginado. reimaginação e as diferenças drásticas da reputa- sos, chamada Terra. Ainda mais importante: esta radical transição ção das duas séries. O BSG original enfatiza mais seus elementos entre as duas encarnações da série foi pouco dis- de space opera do que sua parte pós apocalípti- cutida academicamente com a atenção tão dire- ca, controversamente tentando repetir elemen- cionada para os tópicos abordados na reimag- CONSTRUÇÃO DE UNIVERSO tos que tornaram Star Wars e Star Trek populares inação; esta é a lacuna que este artigo pretende A premissa básica de Battlestar Galactica é a poucos anos antes. O holocausto que acontece preencher. Aqui faremos uma análise comparati- mesma em ambas versões. Um drama de ficção na narrativa é tratado de forma pouco dramáti- va entre o Battlestar Galactica de 1978 e o que se científica que mistura elementos pós-apocalípti- ca; personagens perdem entes queridos, mas o reinicia em 2003; argumentamos que as drásticas cos e de space opera2 (TRANTER, 2007), o univer- luto é curto, sem lágrimas; dramas envolvendo o mudanças entre as duas edições são evidências so de BSG mostra a humanidade vivendo em uma bem-estar da frota são poucos explorados e a série de transformações maiores ocorridas no meio é mais dedicada em mostrar batalhas espaciais, televisivo durante o intervalo entre uma e outra, 2 Subgênero da Ficção Científica que enfatiza aventuras exploração espacial e um entusiasmo com tecno- pelo espaço sideral 205 1978 vs 2003: DOIS MODELOS DE TELEVISÃO EM DUAS ENCARNAÇÕES DE ‘BATTLESTAR GALACTICA’ Rodrigo Quinan (PPGCOM-UFF) logia e misticismo. Os personagens não mostram morais claramente definidas na sua narrativa, com esperança da série original dão lugar uma narra- sinais de estresse ou danos psicológicos devido a seus protagonistas sendo indivíduos inquestiona- tiva pessimista, depressiva e desencantada; desta situação extrema que enfrentam, sendo heróis ca- velmente bons e seus antagonistas - os cylons e vez, os últimos integrantes da humanidade estão rismáticos e bem-humorados. Estes incluem a du- Baltar, homem que traiu a humanidade sem mui- visivelmente perturbados psicologicamente não pla de pilotos formada pelo bravo herói Apollo e tas explicações - são invariavelmente corruptos e apenas pelo genocídio, mas pelos constantes o insubordinado Starbuck; o comandante Adama, mal-intencionados. O bem sempre triunfa contra ataques cylons cada vez mais próximos de extin- pai de Apollo, maior autoridade militar, mas tam- o mal e há um clima de otimismo e celebração a guir a espécie. O estresse pós-traumático cria uma bém uma autoridade política e religiosa na série; moral e aos bons homens durante os episódios atmosfera de transtorno, onde os pilotos parecem sempre acompanhados dos sidekicks, o piloto da série; problemas graves e questões de vida ou estar no limite o tempo todo com cada vez mais Boomer e o coronel Tigh – únicos personagens morte são inconveniências que pouco afetam o ataques surpresas; recursos são escassos e revol- negros na série. Apollo assume a figura paterna humor dos personagens, dando um ar de leveza tas e rebeliões logo acontecem pela frota; há uma de uma criança chamada Boxey; ele também tem a narrativa. Richard D Moore, apesar de admitir cena onde Adama admite mentir sobre a existên- uma irmã chamada Athena, também pilota. desconhecer a teologia mórmon, manteve várias cia da Terra, apenas para criar algum tipo de espe- referências a entidades e simbolismos da religião rança para os sobreviventes; o mesmo, uma figu- Esta versão da série é fortemente influenciada na reimaginação, afirmando intenção apenas ra quase santa na série original, seria antagonista pela teologia mórmon; o criador Glenn A Larson em construir em cima do material original; desta em um plot envolvendo um golpe militar. era integrante da Igreja de Jesus Cristo dos Santos forma, a relação com mormonismo é um dos as- dos Últimos Dias e incorporou várias menções a Ele não é mais figura única no topo do poder pectos mais estudados por acadêmicos da série sua religião na obra, como o Quorum of Twelve, político da frota: , secretária de edu- (NEUMANN, 2015). um órgão governamental que conta com um in- cação das 12 colônias é promovida a presidente tegrante de cada colônia, espelhando a hierarquia A reimaginação de BSG constrói a sua narra- após a morte de todos os sucessores ao cargo, máxima também da igreja mórmon. Mais do que tiva de uma forma precisamente oposta ao orig- sendo a 42ª na linha de sucessão. Ela é autoridade referências diretas, a série compartilha o ideal inal: em uma narrativa pesadamente dramática, mais alta da frota e logo tensões entre poder civil mórmon de que arte deve ser feita apenas para os elementos pós-apocalípticos são ressaltados e militar surgem entre ela, que ainda luta contra propósitos educativos (NEUMANN, 2015), consid- em relação a space opera; ou, nas palavras de um câncer, e Adama. Religião ainda é parte crucial erando-a improdutiva quando expressas pontos Moore, a série é mais sobre o “opera” do que so- da narrativa desta versão de BSG, mas ela é ini- de vista pessoais. Desta forma, tem definições bre o “space” (SEPINWALL, 2013). O otimismo e cialmente desprovida de qualquer poder político. 206 1978 vs 2003: DOIS MODELOS DE TELEVISÃO EM DUAS ENCARNAÇÕES DE ‘BATTLESTAR GALACTICA’ Rodrigo Quinan (PPGCOM-UFF)

Personagens são complexos, e especialmente sob mundo de Battlestar Galactica, Apesar da recepção muito superior, a reimag- a pressão da situação, estão sujeitos a ser falhos tudo é conduzido por mulheres. inação de BSG encontrou resistência vocal dos fãs e problemáticos; o sidekick Tigh, coronel braço Os personagens masculinos, de antigos da série original. Críticas pelas drásticas direito de Adama nas duas séries, tem problemas Adama para baixo, são confu- diferenças e uma desconfiança a “cultura de re- graves com alcoolismo; Apollo enfrenta um dile- sos, fracos e indecisos enquan- makes” eram feitas, mas boa parte da ira girava ma moral onde explode uma nave com milhares to as personagens femininas entorno da mudança de gênero do personagem de inocentes; Starbuck segue sua rotina de insub- da série são decisivas, fortes e Starbuck (ROSE, 2015). Provavelmente o mais ordinação, apostas, bebidas, charutos e promis- raivosas, colocando cigarros na querido da série original, ele era gloriosamente cuidade – só que dessa vez Starbuck é uma mul- boca e não levando desaforos representado como promiscuo, entusiasta de her, em uma das transições mais ricas para análise pra casa. [...] Mulheres são de apostas, rebelde, insubordinado, o melhor piloto da franquia. Vênus, homens são de Marte. da frota e sempre com um charuto na boca. Kara Hamlet não é Hamletta. Nem Thrace, com o nome de pilota Starbuck, manteve Han Solo é Han Sally. Faceman estas mesmas características na reimaginação, REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO não é Facewoman. E “Stardoe” também mantendo por boa parte da série um não é Starbuck. Homens fumam corte de cabelo parecido com a do personagem cigarros. Mulheres tem bebês. E de 1978, sendo estilizada como um tomboy. A é assim que o mundo tem sido diferença entre as duas gerações de Starbuck é há milhares de anos. [...] 40 anos que, enquanto a masculina carrega o otimismo da de feminismo funcionaram. A série original, sempre bondoso de coração e rara- guerra contra a masculinidade mente pagando por suas inconsequências, a fem- foi vencida. Tudo virou ao con- inina é raivosa, tantas vezes injusta ou detestável, trário. [...]” - Dirk Benedict, ator transtornada psicologicamente e nesta versão do responsável por Starbuck no universo de BSG, insubordinação pode trazer con- Figura 1: Starbuck (1978); Starbuck (2003) Battlestar Galactica original3 sequências pesadas. “[...]Uma coisa é certa. No novo Ainda assim, a narrativa não constrói as falhas desimaginado reimaginado 3 http://www.dirkbenedictcentral.com/home/arti- de caráter de Kara como resultado da sua recusa cles-readarticle.php?nid=5 Acesso: 05/02/2019 207 1978 vs 2003: DOIS MODELOS DE TELEVISÃO EM DUAS ENCARNAÇÕES DE ‘BATTLESTAR GALACTICA’ Rodrigo Quinan (PPGCOM-UFF) em corresponder expectativas de gênero, deixan- Ainda assim, é um retrato radicalmente difer- série ao ser morta por um cylon, deixando Apollo do claro que ao longo da história que vários dos ente da série original. Dominada por personagens para criar Boxey sozinho. personagens principais, homens ou mulheres, masculinos, incluindo a figura patriarcal militar/ BSG reimaginado usa visão de maternidade tem desvios e transtornos similares ao lidar com política/religiosa de Adama, o homem tradicional tradicional como elemento de horror em dois eventos tão traumáticos. A série parece construir Apollo e o próprio Starbuck, basicamente todas plots envolvendo Starbuck; em um ela é seques- uma sociedade pós-feminista, onde há igualdade as personagens principais femininas introduzi- trada por cylons e levada para um hospital onde de gênero e questões sexistas não são sequer das no BSG original tem alguma relação român- eles mantêm mulheres vivas, fazendo experiên- mencionadas (TRANTER, 2007); não só Starbuck tica com algum personagem masculino. Athena é cias com gravidez para realizar a uma necessidade é considerada a melhor pilota da frota, mas boa uma pilota competente, mas é construída como que os cylons acreditam ser divina da reprodução; parte da força militar é composta por mulheres, um dos muitos interesses românticos de Starbuck em outro ela é sequestrada por um modelo cylon como Boomer (outra mudança de gênero), Athe- e também como irmã/filha de Apollo/Adama; Ser- obcecado por ela, que a força a ser dona de casa na (irmã de Apollo no original; modelo cylon que ina, jornalista, forma um breve casal com Apollo, em uma família tradicional com uma criança que acaba aliado na reimaginação) e personagens que assume o papel paterno para seu filho Boxey. ele afirma desonestamente ser filha dela. Em am- secundárias como Kat, Racetrack, Kendra Shaw e A série retrata a necessidade de uma figura pater- bas situações Starbuck escapa de forma destruti- Admiral Cain, que quando é introduzida na série nal para criação, com Serina recorrendo a Apollo va, quase como uma fuga da maternidade tradi- toma a frente da parte militar da frota pois tem constantemente para ajudar a criança. Há um plot cional proposta na primeira série. Ainda assim, a a patente superior a Adama. Há mulheres engen- onde, com grande parte dos pilotos masculinos série tenta balancear sua visão mostrando Sha- heiras (Cally), presidentes (Roslin), líderes espiri- abatidos por uma doença, Apollo e Starbuck tem ron, modelo cylon que tem uma filha híbrida com tuais (Elosha), modelos cylons (5 dos 12). A série que treinar mulheres (inicialmente apenas pilotas o piloto humano Helo, sendo uma mãe dedicada apenas se subverte a representações femininas de naves de transporte, à exceção de Athena) para e passional sem negligenciar suas obrigações mais conservadoras em Dualla (especialista em pilotarem naves militares; elas fazem um bom tra- militares, continuando a ser uma das pilotas mais comunicações), o modelo Six dos cylons (uma balho, mas tutoradas e lideradas pelos homens respeitadas da frota. A ausência de qualquer dis- femme fatale; mas em tantas aparições uma espé- todo o caminho. O casamento de Serina com curso contra o sexismo, inexistente no universo cie de alucinação dos personagens) e mais prob- Apollo é mostrado como momento de glória es- da série, certamente afasta o BSG de 2003 de ex- lematicamente em Ellen Tigh (esposa manipula- piritual, com mais referências a teologia mórmon plorar profundamente questões relacionadas ao dora, vista negativamente como promíscua). (NEUMANN, 2015); mas Serina é logo removida da feminismo, mas mulheres são mais bem represen- 208 1978 vs 2003: DOIS MODELOS DE TELEVISÃO EM DUAS ENCARNAÇÕES DE ‘BATTLESTAR GALACTICA’ Rodrigo Quinan (PPGCOM-UFF) tadas na série do que não só o BSG de 1978, mas claustrofóbicas que possuem aberturas manuais, revival, mas uma cylon), o que causa um clima de grande parte da ficção científica militar (KUSTRIZ, computadores pouco evoluídos e uso de papel paranoia na frota uma vez que qualquer um pode 2012). Como a agressiva citação de Dirk Bene- (TRANTER, 2007). A fotografia da série é mais es- ser um terrorista inimigo. Esta versão de BSG foi dict sugere, o retrato masculino também foge cura, e esta claustrofobia é aumentada pela músi- profundamente analisada por representar o mun- do tradicional: homens são tantas vezes falhos, ca atmosférica e pelo som ambiente opressor das do pós 11 de Setembro (KUSTRIZ, 2012), com a corruptos, traumatizados, incapazes de exercer o naves. Na bíblia da série é especificamente re- atmosfera de perseguição e descriminação insta- patriarcado e só são redimidos quando se abrem querido aos roteiristas que o espaço sideral seja lada na frota após a descoberta da existência de para o diálogo (geralmente com as personagens um lugar vazio, perigoso e que a maior parte da cylons com aparência humana replicando situ- mulheres) e mostram sensibilidade ou um forte narrativa passe dentro das naves (MOORE, 2003). ações similares vividas no ocidente em relação compasso moral; nunca com a violência e mascu- Enquanto a série original tinha outras formas de a figura do “Outro” violenta (especialmente ára- linidade tradicional. vida pelo espaço, nesta ele é habitado apenas por bes) e associada ao terrorismo. E apesar da série humanos e cylons. abordar ataques terroristas suicidas e sabota- gens por parte dos cylons infiltrados, ela mostra Os antagonistas são o principal ponto de TECNOLOGIA E ANTAGONISMO modelos que foram mandados como agentes ou mudança da série. Criados por uma raça extinta espiões que acabaram se apaixonando por hu- O novo BSG produz um desencantamento de alienígenas na série original, os cylons foram manos que conviveram juntos, mudando de lado com a tecnologia pouco usual na ficção científica. criação da humanidade na reimaginação, em uma na causa. Monoteístas fanáticos em contraste Enquanto tecnologia para no espaço sider- rebelião das máquinas que evoca trabalhos de com o politeísmo mais casual humano (embora al existe, o estado de praticamente todo o resto ficção científica como os do autor Philip K Dick. uma das colônias seja descrita como fanática re- da tecnologia é similar ao do mundo real. Cânc- Mas a grande reviravolta é o fato de que os cylons ligiosa); com visões peculiares sobre amor, corpo er mata – não há gadgets médicos que curam evoluíram e podem ter a mesma aparência física e sexualidade; os cylons ganham pathos na re- doenças como na série original, naves de batalha dos humanos dessa vez – repetindo lógicas dos imaginação e muitas vezes sua perseguição pela requerem manutenção constante, não há arma replicantes do filme Blade Runner (1982). Há 12 humanidade (e vice-versa) é construída com ana- de laser, equipamentos apresentam defeitos; a es- modelos deles, e a frota inicialmente desconhece 4 logias ao racismo, xenofobia e fundamentalismo tética cassette futurism é empregada, com naves a maioria (grande parte do suspense da série gira religioso. 4 Uma estética onde o futuro é representado não por tecno- entorno desta tensão, como por exemplo a rev- logias modernas, mas por máquinas analógicas estilizadas elação de que Boomer não só é uma mulher no Baltar é a maior evidência da complexificação como computadores dos anos 70 e 80. 209 1978 vs 2003: DOIS MODELOS DE TELEVISÃO EM DUAS ENCARNAÇÕES DE ‘BATTLESTAR GALACTICA’ Rodrigo Quinan (PPGCOM-UFF) dos personagens, que ao contrário do original, entre as duas edições da série exemplificam a cias menos dedicadas, novas séries inclusas em não podem ser mais definidos simplesmente em transformação da linguagem da ficção seria- um modelo descrito por acadêmicos como “nar- heróis e vilões. Enquanto o cientista traiu a hu- da televisiva ocorrida entre 1978 e 2003. Vamos rativa complexa” (MITTEL, 2006) passam a buscar manidade na série original acreditando que ia analisar a seguir as mudanças na configuração do elementos como grandes elencos (por vezes mul- dominá-la junto com os cylons, o reimaginado Dr. meio televisivo ocorridas nesta época e como um tiétnicos), abordagem de temas complexos (soci- nunca quis entregar os códigos de novo tipo de consumo pode explicar a diferente ais, políticos, raciais, filosóficos, etc), ambiguidade defesa das 12 colônias para os robôs, sendo en- legitimação de cada BSG. narrativa e uma negociação da serialidade. Novas ganado por um modelo cylon que esteve envolvi- séries como The X-Files (1993), Buffy: the Vampire do romanticamente por dois anos (a mencionada Slayer (1997), Oz (1997), The Sopranos (1999), Six femme fatale “Six”). Quando é levado a julgamen- MUDANÇAS NA TV Feet Under (2001), The Wire (2002), Lost (2004) e to, Baltar é tratado como bode expiatório, de Durante as décadas de 1980 e 1990, novas o próprio Battlestar Galactica (2003) fazem suas forma similar a figuras como Sadam Husseim ou produções começam a mudar drasticamente próprias negociações destes elementos identifi- Bin Laden: inimigo público número 1, alvo da cul- a forma como a ficção seriada televisiva é pro- cados como “complexos” com a linguagem mais pa e raiva coletivas por todas as falhas humanas duzida. Tradicionalmente articulada em cima do tradicional da televisão episódica, todas bus- (KAPICA, 2012). Ele também exemplifica a am- formato de episódio semanal, com serializações cando produzir engajamento – a criação de um biguidade narrativa da série: apesar de morta no acontecendo casualmente e pouco se estenden- público leal, capaz não só de ligar a televisão holocausto, Six continua aparecendo para Baltar do por mais de duas semanas, séries como Hill semanalmente, mas de continuar falando sobre em uma espécie de alucinação. Se é um chip na Street Blues (1981) e Twin Peaks (1990) passam a a série durante a semana, seja debatendo sobre cabeça de Baltar, um anjo, ou manifestação de in- experimentar com modelos majoritariamente se- por exemplo, racismo em Oz ou o significado dos sanidade, fica aberto a interpretação do especta- rializados, dotados de estratégias inovadoras para sonhos de Tony Soprano – mas cada uma lidando dor. Sonhos, alucinações e visões são recorrentes a construção do seu universo, abrindo caminho da sua forma como não comprometer o público na série, a exemplo de várias outras narrativas de- para uma série de experimentações entre o mod- casual, aquele que sintoniza mesmo sem assistir sta época (MITTEL, 2006) como Sopranos, Buffy: elo episódico e serializado (BOURDAA, 2011). religiosamente e precisa de um mínimo entendi- the Vampire Slayer e Six Feet Under que flertam mento da narrativa para continuar no canal. Enquanto o modelo convencional busca ex- com surrealismo e metalinguagem. plorar situações semanais com um elenco fixo Novas tecnologias incentivam esta direção: a Não é coincidência: muitas dessas mudanças mais enxuto, de fácil entendimento para audiên- Internet passa a ser o espaço principal do engaja- 210 1978 vs 2003: DOIS MODELOS DE TELEVISÃO EM DUAS ENCARNAÇÕES DE ‘BATTLESTAR GALACTICA’ Rodrigo Quinan (PPGCOM-UFF) mento televisivo, com páginas de fãs dedicadas buck no centro) bem definidos, episódios quase em fins de temporadas ou pontos importantes a desvendar mistérios, debater temas, produzir sempre com resoluções semanais, uma casuali- da história; há um anseio de tratar assuntos com- conteúdo fã, criar enciclopédias sobre o universo dade na repetição onde o bem sempre vence no plexos que espelham imediatamente grandes narrativo de suas séries (JENKINS, 2008). A maio- final, um afastamento de sentimentos ruins do es- problemas do mundo real; de fazer uma crítica ria das narrativas televisivas continua no modelo pectador mesmo quando a história trata de even- progressista; a série é muitas vezes deprimente, convencional (BOURDAA, 2011), mas mais e mais tos traumáticos e uma despreocupação com orig- pessimista e por vezes também desconfortável produções arriscam construir grandes mitologias inalidade, verossimilidade e com fazer qualquer de assistir, dando imprevisibilidade ao plot pela em ficções seriadas preparadas para este tipo crítica ao status quo, reproduzindo estereótipos possibilidade de acontecimentos negativos estar de consumo, que traz uma nova audiência, mais e representações problemáticas do mundo real. no ar a todo momento (quando encontram o pla- masculina e escolarizada, para o ambiente televi- Este tipo de modelo é muitas vezes visto como neta Terra, ele está destruído e inabitável há anos; sivo, de interesse de anunciantes, e tanto a crítica inferior pela sua previsibilidade, embora seja des- no spin-off Galactica 1980, que continua a série quanto o público passam a perceber estas pro- considerado o foco em uma experiência mais ca- de 1978, eles enfim encontram uma Terra con- duções como obras artísticas de valor superior a sual. O máximo de serialidade encontrada no BSG temporânea, normalmente habitada), enquanto televisão convencional5, que é geralmente trata- original são episódios de 2 ou 3 partes; alguns as poucas vitórias são mais valorizadas e fazem da como vaga distração pela falta de urgência ao deles foram editados para serem lançados no a audiência senti-las como merecidas após tanto tentar construir engajamento e por ter um con- cinema como longa metragens, mostrando uma sofrimento. A série usa ativamente ambiguidade forto maior com a posição de simples entreteni- tentativa de convergência com uma mídia muito através de sonhos, alucinações e pontos em aber- mento. popular da sua época6. to no plot, ganhando ao gerar discussões (“o que é Six na cabeça de Baltar? A nave que Apollo atir- Cada uma das encarnações de Battlestar Ga- A reimaginação de BSG vai pelo outro camin- ou realmente tinha civis? O que é a visão da Pres- lactica se encaixa precisamente em um desses ho e é construída como uma narrativa complexa: idente Roslin na Casa de ópera?”) ; ela também é modelos, e a percepção pública entorno de cada desta vez há um grande elenco multiétnico onde consideravelmente mais imersiva, apesar de pro- um deles explica a reputação de cada edição da muitos personagens são explorados; há um for- porcionalmente ter orçamento bem mais baixo série. A original de 1978 tem um elenco enxuto, mato híbrido que usa de ambos plots semanais em 2003 do que a de 1978, os avanços tecnológi- com personagens principais (Adama, Apollo, Star- e plots seriais, se tornando totalmente serializada cos possibilitam que ainda assim a série tenha um 5 https://www.metacritic.com/feature/best-tv-of-2009-and- 6 https://www.metacritic.com/feature/best-tv-of-2009-and- aspecto mais realista e cinematográfico ao, já em the-decade Acesso: 05/02/2019 the-decade Acesso: 05/02/2019 211 1978 vs 2003: DOIS MODELOS DE TELEVISÃO EM DUAS ENCARNAÇÕES DE ‘BATTLESTAR GALACTICA’ Rodrigo Quinan (PPGCOM-UFF)

2003, ser filmada em alta definição com equipa- refletem tanto seu meio quanto sua época e que o NEUMANN, I. 2011. ‘Religion in Sort of Glob- mento superior e efeitos especiais mais realistas, choque que ocorre dos dois lados com a oposição al Sense’: The Relevance of Religious Practices for mesmo sem um grande orçamento. de fãs para cada BSG representa dois tipos de ex- Political Community in Battlestar Galactica and pectativas – entorno de televisão convencional e Beyond. Journal of Contemporary Religion, Vol. Dessa forma, a reimaginação é vista como televisão complexa – se desajustando ao experi- 26, No. 3, October 2011. 387-401 NEUMANN, I. produto cultural superior em qualidade artísti- enciar dois produtos diferentes feitos para épocas 2015. Unexpected enchantment in unexpected ca e relevância social graças a esse afastamen- diferentes. places: Mormonism in Battlestar Galactica. Euro- to da simples posição de entretenimento para pean Journal of Cultural Studies 16(2) 226-243 trabalhar pesadamente em valores dramáticos, ROSE, M. 2015. Cyborg selves in Battlestar Galac- mitológicos e convergentes - o desejo por con- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS tica and Star Trek: The Next Generation: Genre, vergência é exemplificado em 3 temporadas de Hybridity, Identity. The Journal of Popular Culture, websódios, pequenos episódios exclusivos para a BOURDAA, M. 2011. Quality Television: con- Vol 4 8, No.6. Internet, enquanto a posição confortável do origi- struction and de-construction of seriality nal como leve, descompromissado entretenimen- JENKINS, H. 2008. Cultura da convergência. SEPINWALL, A. 2013. The Revolution Was Tele- to é vista de forma pejorativa como uma falha da São Paulo: Aleph. vised. Touchstone Books Tranter, K. 2007. “Frak- construção do universo do produto. king Toasters” and Jurisprudences of Technology. KAPICA, S. 2012. “What a glorious moment in Law & Literature. 19:1, 45-75 Jurisprudence: Rethoric, Law and Battlestar Galac- CONCLUSÃO tica”. Law, Culture and the Humanities. 0(0) 1-23 Analisamos aqui a construção narrativa das KUSTRIZ, A. 2012. Breeding Unity: Battlestar’s duas encarnações de Battlestar Galactica e tenta- Galactica Biracial Reproductive Futurity mos argumentar como elas representam dois mo- MOORE, R. 2003. Battlestar Galactica: Series mentos distintos da produção televisiva e duas Bible intenções completamente diferentes de produzir MITTEL, J. 2006. Narrative Complexity In Con- uma obra de ficção seriada televisiva. Concluímos temporary American Television. The Velvet Light apontando que ambos produtos são objetos val- Trap. Number 58, Fall 2006. orosos de estudo, recheados de significâncias que 212 A TRANSMEDIA LITERACY NA CULTURA DE FÃS: UMA ANÁLISE DO PORTAL SKAM BRASIL Daiana Sigiliano1, Vinícius Guida2 e Gabriela Borges3

123 Palavras-chave: Ficção seriada; transmídia; trans- gramas engendram novos modos de ver. Como Resumo: Discutida por Scolari (2016, 2018) a trans- media literacy; TV pública. explica o autor, media literacy abrange tanto o consumo quanto a As pessoas dizem, por exemplo, “eu produção de conteúdos no ambiente da cultura da Abstract: Discussed by Scolari (2016, 2018), transme- vejo Lost” ou “eu vejo Big Brother”, convergência. O autor destaca, por exemplo, com- dia literacy covers both consumption and content pro- mas esse “ver” é, em muitos casos, petências relacionadas à resolução de problemas em duction in the culture environment of convergence. radicalmente diferente do velho videojogos, ao compartilhamento de mensagens em The author highlights, for example, skills related to “ver” televisivo. Hoje, “ver Lost” ou redes sociais e a leitura polissêmica das narrativas e problem solving in videogames, sharing of messages “ver Big Brother” inclui práticas dos universos ficcionais. A partir deste contexto, este in social networks and the polysemic reading of nar- como navegar na web, fazer down- artigo tem como objetivo analisar as dimensões da ratives and fictional universes. From this context, this load de capítulos de forma ilegal, transmedia literacy, propostas por Scolari (2018), que article aims to analyze the dimensions of transmedia consumir vídeos no YouTube ou estão operação nas práticas dos fãs do site Portal Skam literacy, proposed by Scolari (2018), which are opera- discutir sobre o programa em uma Brasil. Produzida pela NRK, a websérie Skam (2015- tion in the practices of fans of the website Portal Skam rede social ou fórum (2011,p.128) 2017) mobilizou jovens de diversos países em torno de Brasil. Produced by NRK, the Skam web series (2015- suas ações transmídia. Conclui-se que os conteúdos 2017) mobilized young people from various countries produzidos pelos fãs brasileirossão norteados não só around their transmydial actions. It is concluded that Essas mudanças na experiência televisiva ficam pela compreensão crítica, mas pela produção criativa, the content produced by brazilian fans are guided not ainda mais nítidas no âmbito das narrativas ficcio- em que a trama é ressignificada e ampliada. only by critical understanding, but by creative produc- nais. De acordo com Rose (2011), as tramas con- 1 Doutoranda e mestre em Comunicação pela Universidade tion, in which the plot is renified and amplified. Federal de Juiz de Fora. Membro do grupo do Grupo de Pesquisa Keywords: Serial fiction;transmedia; transmedia temporâneas têm como ponto central a deepme- em Comunicação, Arte e Literacia Midiática da Universidade literacy; public TV. dia4. O autor pontua que este formato narrativo Federal de Juiz de Fora e do Grupo de Pesquisa em Tecnologia, Comunicação e Ciência Cognitiva da Universidade Federal abrange histórias que estimulam a imersão do pú- do Amapá. Pesquisadora do Observatório da Qualidade no blico e tem o seu universo ficcional aprofundado Audiovisual e Rede brasileira de pesquisadores de ficção televisiva INTRODUÇÃO (Obitel). E-mail: [email protected] em distintas plataformas.Porém, conforme ressal- 2 Graduando em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Pesquisador do Observatório da Qualidade no Audiovisual – A televisão contemporânea é norteada por ta Rose (2011), ao contrário das tramas que vão se FACOM/UFJF. E-mail: [email protected] expandido à medida que o público se engaja, este 3 Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação desdobramentos inéditosna criação, produção, da Universidade Federal de Juiz de Fora. Coordenadora do distribuição e engajamento das atrações (LOTZ, formato narrativo (deepmedia) é projetado, desde Observatório da Qualidade no Audiovisual e integrante da Rede Euroamericana de Alfabetização Midiática, sendo coordenadora 2010; SCOLARI, 2011). Para Scolari (2011) os pro- a sua criação, para transitar por várias linguagens da equipe brasileira. E-mail: [email protected] 4 Profundidade midiática (livre tradução). 213 A TRANSMEDIA LITERACY NA CULTURA DE FÃS: UMA ANÁLISE DO PORTAL SKAM BRASIL Daiana Sigiliano, Vinícius Guida e Gabriela Borges e plataformas. “Esta é a deepmedia: histórias que va transmídia emerge do ambiente da cultura 2013-atual), LovLeg12 (2018- 2019) e Skam13 (2015- não são apenas entretenimento, mas universos da convergência. Para o autor uma “[...] história 2017). Apesar de abordarem diferentes assuntos transmídia desenrola-se através de múltiplas pla- e pespectivas, as webséries da NRK integram o imersivos, indo além de um drama televisivo de taformas de mídia, com cada novo texto contri- Double Storyttelling. O movimento europeu, que 5 uma hora ou de um filme de duas horas [...]” (livre buindo de maneira distinta e valiosa para o todo” começou na década de 1990na Dinamarca, tem tradução dos autores). (JENKINS, 2008, p. 138). Este modelo de produção como objetivo central a produção de séries tele- Os estudos sobre a deepmedia estão dire- é composto pelo conteúdo de referência, isto é, a visivas com base nos preceitos do serviço público tamente ligados a narrativa transmídia (JENKINS, mídia principal (nave mãe), e a partir dela são con- de televisão. Como explica Redvall (2018) as emis- 2011; BORGES; SIGILIANO, 2017; BRASWELL, cebidas as estratégias transmídia (FECHINE, 2016). ssoras buscam histórias que vão além de um en- 2017). Em entrevista a Jenkins (2011), Rose afir- redo divertido, que somente entretenha os teles- As questões pontuadas por Jenkins (2008) ma que os conceitos são intercambiáveis e funda- pectadores, mas que explore de alguma forma os e Rose (2010) podem ser observadas em algumas mentais para compreendermos o entretenimento princípios éticos, sociais e culturais relacionados webséries exibidas pela NRK (Norsk Riks Krin- contemporâneo. De acordo com o autor, [...] “esta- ao serviço público de televisão. gkasting AS). Desde de 2008 a empresa pública mos em um momento de transição de nossa cul- de emissão de televisão e rádio da Noruega8, que tura, e termos como ‘deepmedia’ e ‘transmídia’ são Os universos ficcionais das tramas são ela- pertence à União Européia de Radiodifusão, tem necessários para descrever estes novos modos, borados, desde sua criação, para se expandirem se dedicado a produção de narrativas ficcionais ainda em transformação, de contar histórias” 6 (li- em múltiplas plataformas. As histórias têm como seriadas transmídia voltadas para o público infan- vre tradução dos autores) (JENKINS, 2011, Online). mídia principal vídeos de curta duração que são to juvenil e adolescente. Discutido7 por Jenkins (2008), a narrati- disponibilizados no site da NRK ao longo da sema- na14. Os arcos narrativos explorados nestas pílulas 5 This is ‘deep media’: stories that are not just entertaining, but Entre as tramas de sucesso estão Sara9 são aprofundados em blogs, nas redes sociais immersive, taking you deeper than na hour-long TV drama or two- (2008-2009), Mia10 (2010-2012), Jenter11 (NRK, hour movie [...]. (Instagram, Snapchat, etc.), no YouTube, no Spo- 6 [...]we're at an incredibly transitional point in our culture, and tify e, em alguns casos, até no bloco de notas do terms like "deep media" and "transmedia" are needed to describe a new, still-evolving, way of telling stories. plataformas e narrativas. celular dos personagens. De acordo o diretor da 7 As discussões de Jenkins (2008) apresentam uma certa 8 Disponível em: . Acesso em: 21 mai. 2018. 12 Disponível em: . Acesso em: 8 similaridade com os estudos de Marsha Kinder (1991) sobre a 9 Disponível em: . Acesso em: 8 mar. 2019 intertextualidade transmídia (transmedia intertextuality). Em mar. 2019 13 Disponível em: . Acesso em: 8 PlayingWith Power in Movies, Television, and Video Games: from 10 Disponível em: . Acesso em: mar. 2019 Muppet Babies to Teenage Mutant Ninja Turtles, publicado em 8 mar. 2019 14 Em alguns casos tais como LovLeg e Skam os vídeos de curta 1991, Kinder introduz o conceito para refletir sobre os sistemas de 11 Disponível em: . Acesso duração são compilados em um episódio de em média 20 minutos, super-entretenimento que emergem da combinação de distintas em: 8 mar. 2019 que é exibido pelo canal nos fins de semana. 214 A TRANSMEDIA LITERACY NA CULTURA DE FÃS: UMA ANÁLISE DO PORTAL SKAM BRASIL Daiana Sigiliano, Vinícius Guida e Gabriela Borges

NRK, Håkon Moslet, a escolha das plataformas é em operação nos conteúdos produzidos pelos fãs colaborativas, etc. De acordo com Potter (2016) pautada no perfil e nos hábitos de consumo do brasileiros da série Skam, postados pelo Portal a revisão bibliográfica do conceito ressalta uma público alvo, que são jovens de 14 a 20 anos (TE- Skam Brasil16. pluralidade epistemológica em diversas áreas do DXARENDAL, 2017). conhecimento, tais como a Comunicação, a Edu- Produzida em 2015, a websérie Skam se cação e a Sociologia. Scolari (2016, p.4) pontua tornou um fenômeno mundial, engajando fãs APONTAMENTOS SOBRE A TRANSMEDIA LITE- que a literacia midiática é “[...] um conceito flexí- em diversos países (SUNDET, 2017; GUIDA et al. RACY 2018; SIGILIANO; CAVALCANTI; BORGES, 2019). A vel que evolui e se adapta as transformações do terceira temporada, por exemplo, foi assistida por ecossistema midiático e às diferentes perspecti- 1,2 milhão de pessoas semanalmente (SIGILIANO; De acordo com Potter (2016) e Borges vas teóricas17” (livre tradução dos autores). Neste CAVALCANTI; BORGES, 2018). A popularização da contexto, a constante atualização do termo se dá websérie se deu, em parte, graças à mobilizaçãoe (2014) os debates acadêmicos sobre a literacia mi- a produção dos fãs nas plataformas e redes sociais diática ganharam força em meados da década de pela necessidade dos pesquisadores em acompa- digitais. O público traduzia os conteúdos e dis- 1980. No âmbito europeu, vários projetos e ações nharem as transformações da comunicação con- ponibilizava no Facebook, Twitter e Instagram, e têm sido desenvolvidos, desde 1980, com o obje- temporânea (SCOLARI, 2016). O conceito busca também em sites especializados. Além da versão refletir as características, as possibilidades e os escandinava, a trama foi adaptada na Alemanha, tivo de estabelecer uma agenda comum de pro- na Espanha, na França, na Holanda, Bélgica, na moção da literacia midiática (BUCKINGHAM, 2003; desdobramentos do ambiente midiático no qual Itália e nos Estados Unidos. A atração é composta BORGES, 2014). está inserido. 15 por quatro temporadas , cada uma delas prota- Inicialmente as pesquisas sobre a literacia Os pontos destacados por Scolari (2016) gonizada por um personagem diferente e aborda midiática eram direcionadas para os meios de co- estão presentes nos levantamentos realizados temas distintos. municação de massa, mas atualmente englobam por Potter (2016). A revisão bibliográfica feita pelo A partir deste contexto, este artigo tem também os fenômenos contemporâneos como a autor apresenta cerca de 40 definições do con- como objeto analisar as dimensões da transme- cultura participativa, a transmídia, as redes sociais ceito. Entretanto, apesar da complexidade epis- dia literacy, proposta por Scolari (2018), que estão digitais, a produção de conteúdo em plataformas temológica os estudos sobre a literacia midiática 15 A primeira temporada (2015) foi composta por 11 episódios, a 17 Se trata de un concepto flexible, que ha ido evolucionando y segunda (2016) por 12 episódios, a terceira (2016) e quarta (2017) 16 Disponível em: . Acesso em: 12 mar. adaptándose a las transformaciones del ecosistema de medios y a por 10 episódios. 2019. las diferentes perspectivas teóricas. 215 A TRANSMEDIA LITERACY NA CULTURA DE FÃS: UMA ANÁLISE DO PORTAL SKAM BRASIL Daiana Sigiliano, Vinícius Guida e Gabriela Borges convergem para a combinação de conhecimentos vinculada aos meios impressos e as capacidades nectividade. Por isso, o autor propõe a transmedia e de práticas políticas, sociais e culturais que ha- se limitavam, basicamente, em ler e a escrever. literacy, que engloba o bilitam os cidadãos a pensar criticamente sobre Como pontua Trinta (2018, p. 35), “Em língua in- [...] consumo de media digitais in- os meios de comunicação (BUCKINGHAM, 2003; glesa, no século XVIII, literacy quer dizer “alfabe- terativos, que vão desde processos LIVINGSTONE, 2007; POTTER, 2016). Neste artigo tismo” ― conceito contraposto ao de numeracia de resolução de problemas em vi- deojogos até a produção e partilha iremos adotar a definição de Livingstone (2007, (ing. numeracy), que designava capacidade e ha- de conteúdo em plataformas web e p.27), segundo a autora a literacia midiática se re- bilidade em proceder a cálculos numéricos e a redes sociais. A criação, produção, fere “[...] a capacidade de acessar, analisar, avaliar operações de aritmética fundamental”. A partir partilha e consumo crítico de nar- rativas (fanfiction, fanvids, etc.) por e criar mensagens através de uma variedade de dos anos 1960, com a popularização da televisão, adolescentes também fazem parte contextos diferentes” 18 (livre tradução). Como re- o conceito é ampliado. De acordo com Scolari deste universo (SCOLARI, 2018, p.8). força Borges (2014, p.183) a literacia midiática “[...] (2018) num segundo momento, as discussões so- Segundo Scolari (2018) a transmedia litera- deve habilitar os cidadãos para o pensamento crí- bre o campo se direcionam não somente para o cy é composta por nove dimensões. São elas: pro- tico e a resolução criativa de problemas a fim de texto escrito, mas para a linguagem audiovisual. dução, prevenção de risco, performance, gestão que possam ser consumidores sensatos e produ- As reflexões ressaltavam a importância da leitura de conteúdo individual e social, mídia e tecnolo- tores de informação”. Isto é, abrangendo tanto o crítica das mensagens dos meios de comunicação gia, ideologia e ética, e narrativa e estética. Estas consumo dos conteúdos quanto a produção dos de massa e, eventualmente, a ascensão da produ- capacidades propostas pelo autor englobam tan- mesmos pelos sujeitos midiáticos. ção crítica. Por fim, o terceiro momento é marca- to a produção quanto a criação de conteúdos na Para Scolari (2018) os estudos sobre a li- do pelo ambiente da cultura da convergência e a contemporaneidade. 19 teracia midiática podem ser divididos em três emersão do prossumidor . Para Scolari (2018)as momentos, são eles: a literacy, a medialitercy e a discussões presentes na literacy e na media litera- Gráfico 1: A transmedia literacy é com- cy não abarcavam a complexidade e as práticas de posta por nove dimensões, cada uma delas está transmedia literacy. De acordo com o autor inicial- relacionada com a forma como as pessoas rece- mente, em um primeiro momento,a literacia era produção e consumo do atual ecossistema de co- bem e interagem com os conteúdos midiáticos. 19 “[...] momento em que as pessoas, além de consumirem as 18 the ability to access, analyse, evaluate and create messages mensagens de outrem, passam também a produzir e disseminar as across a variety of contexts. suas próprias mensagens” (FERRÉS; PISCITELLI, 2015, p.5) 216 A TRANSMEDIA LITERACY NA CULTURA DE FÃS: UMA ANÁLISE DO PORTAL SKAM BRASIL Daiana Sigiliano, Vinícius Guida e Gabriela Borges

Isto é, a dimensão não se restringe apenas aos SKAM E OS FÃS âmbitos técnicos e tecnológicos relacionados ao acesso dos jovens, mas tem como ponto central a promoção da compreensão crítica e a produção A produção de narrativas transmídia está criativa. Em outras palavras, ao se tornarem cria- frequentemente ligada ao âmbito comercial tan- dores de conteúdo os jovens terão a oportunida- to pelo custo de desenvolvimento quanto pelas de de refletir sobre suas experiências e percep- múltiplas possibilidades de exploração econô- ções do mundo. mica de um mesmo universo ficcional. Conforme A dimensão da narrativa e estéticaestá re- aponta Scolari (2011, p.134), “A globalização ou o lacionada com a capacidade de apreciar os valores poder econômico de um grupo de comunicação Fonte: Scolari (2018)20. estéticos, reconhecer gêneros, reconstruir mun- evidentemente facilita a produção de narrativas dos narrativos e comparar histórias e expressar transmidiáticas, mas não é a condição fundamen- Neste artigo iremos focar em duas dimen- identidades e perspectivas da sociedade através tal”. sões: a produção e a narrativa e estética. A dimen- de uma narrativa (GUERRERO-PICO; LUGO, 2018). Em contraponto, Skam foi desenvolvida são da produção abarca três capacidades: o aces- Para Guerrero-Pico e Lugo (2018), esta dimensão no âmbito do serviço público de televisão. Borges so, o entendimento crítico e a análise e a criação e fica ainda mais nítida se observarmos a relação ressalta que o serviço público de televisão tem produção de conteúdos (PEREIRA; MOURA, 2018). que os jovens têm com os conteúdos audiovi- obrigações e funções intrínsecas e deve ter como Conforme ressaltam Pereira e Moura (2018), no suais, especificamente, as séries ficcionais televisi- princípios amanutenção das garantias democráti- ambiente da convergência midiática algumas vas. Os autores destacam a navegação e a ressig- cas;a pluralidade de ideias;a independência pro- competências que integram essa dimensão são nificação de mundos transmídia em que os jovens fissional; a promoção da diversidade de gêneros, inatas aos jovens, neste sentido é fundamental acessam distintas plataformas correlacionando os assuntose pontos de vista;premissas culturais, so- a implementação de projetos transdisciplinares arcos narrativos e exploram novas perspectivas da ciais, educativas e políticas; e o estímulo à parti- que estimulem o empoderamento dos cidadãos. trama através de memes, remix e fanfics. cipação cidadã. Desse modo, Sundet (2017, p. 5) 20 Disponível em: . Acesso em: 29 abr. 2019. pontua que o seriado não buscava criar uma base 217 A TRANSMEDIA LITERACY NA CULTURA DE FÃS: UMA ANÁLISE DO PORTAL SKAM BRASIL Daiana Sigiliano, Vinícius Guida e Gabriela Borges leal de consumidores, mas jovens cidadãos enga- Ao buscar o desenvolvimento multiplata- Conforme discutido por Herrero-Diz (2017), jados. forma, na Web e em sites de redes sociais, a es- Sigiliano e Borges (2018) e Scolari (2018), as práti- Segundo o diretor da NRK, Håkon Mos- trutura narrativa de Skam demandava do público cas dos fãs estão relacionadas a novos modos de let, o intuito de produzir o seriado foi recuperar maior envolvimento com as diversas partes da aprendizagem. O ambiente da convergência mi- o interesse da audiência jovem na emissora (TE- trama. Por exemplo, a lógica de distribuição em diática, com múltiplas formas de conectividade, DXARENDAL, 2017). A equipe, coordenada pela tempo real de pílulas audiovisuais partia da roti- carrega consigo a potencialidade de imersão no produtora Julie Andems e mais sete pessoas, era na dos telespectadores (os horários que estavam universo narrativo e, desse modo, de esmiuçar e estruturada como uma startup dentro da empresa na escola ou momentos de lazer), mas também compreender em diferentes níveis o conteúdo pública e o processo de pesquisa e pré-produção exigia um acompanhamento mais próximo para assim como expressar-se a partir dele (SIGILIANO; teve início oito meses antes da estreia (MEDIA- estar sempre atualizado. BORGES, 2018). MORFOSIS, 2017). O modo de produção foi capaz de atrair a Skam e seu modo imersivo de contar his- Com essa nítida preocupação de realoca- atenção de jovens de todo mundo que se enga- tórias ocasionou em um enorme envolvimento ção da NRK como um espaço de fruição dos jovens, jaram no desenrolar da produção televisiva e se dos fãs na redistribuição e ressignificação do con- a série foi desenvolvida seguindo os preceitos da identificaram fortemente com os personagens. teúdo. Sundet (2017, p. 10) pontua que a publi- televisão pública e adequando-se aos hábitos de Como pontua Jenkins (2015, p. 73), assistir ao con- cação de novas informações era irregular e sem consumo dessa parcela do público. Nesse sentido, teúdo televisivo como fã implica em uma série de indicações de quando estariam disponíveis no- além das plataformas escolhidas, os próprios ato- habilidades e um envolvimento emocional muito vas informações demandando, desse modo, um res foram selecionados com o intuito de servir de maior com a história e personagens do que de es- acompanhamento contínuo. Conforme pontua consultores das necessidades de sua faixa-etária pectador casual. O engajamento dos fãs está liga- Mari Magnus, produtora de conteúdo online da e as temporadas ser alteradas de acordo com as do a propagação e ressignificação do conteúdo, série, “quando a dramaturgia se torna intensa e demandas dos espectadores (SUNDET, 2017; GUI- superando o âmbito da produção institucional e você não liga de verdade se Isak é um persona- DA et al. 2018; SIGILIANO; CAVALCANTI; BORGES, transformando o público em produtores (LOPES gem ficcional ou um amigo que você segue online 2019). et al, 2015; SIGILIANO; BORGES, 2018). é quando se consegue um engajamento único21” 21 Transcrição do áudio original (SUNDET, 2017, p. 11). 218 A TRANSMEDIA LITERACY NA CULTURA DE FÃS: UMA ANÁLISE DO PORTAL SKAM BRASIL Daiana Sigiliano, Vinícius Guida e Gabriela Borges

(SUNDET, 2017, p. 11) (tradução dos autores). no Facebook, durante a exibição da terceira tem- dios, Sobre e Galeria. A aba de Notícias é atuali- A partir da terceira temporada, o número porada. O Portal Skam Brasil permitia que o públi- zada com menos frequência, mas engloba desde de grupos de fãs em diversos países se tornou ex- co brasileiro acompanhasse não somente a we- entrevistas traduzidas a enquetes. Em Episódios, pressivo. Mesmo com a limitação linguística, os fãs bsérie, através do processo de legendagem, mas estão centralizadas as produções televisivas de fizeram uso de diversas plataforma como Google também as ações transmídia por meio da tradu- Skam (páginas Noruega – em que estão localiza- Drive, grupos no Facebook, perfis no Twitter, etc. ção dos conteúdos que estavam disponíveis no dos os episódios da série original; França; Itália; para distribuir episódios legendados; traduções site da emissora. Espanha; NL – versão holandesa; Druck – versão de mensagens, informações de redes sociais, con- Com o lançamento das versões, o grupo alemã; WTFock – versão belga e Lovleg – outro se- teúdos extra-narrativos (como entrevistas com o organizou um website. O registro do domínio do riado jovem da NRK). A página Sobre se subdivide elenco); discutir e reorganizar a narrativa além de portal foi realizado no dia 27 de janeiro de 201822 em Contato, Equipe e Redes Sociais. Em Equipe, criar novos produtos midiáticos como, por exem- e a partir desse momento, os episódios legenda- encontram-se as funções de cada envolvido no plo, memes. dos estariam centralizados no endereço. Na sim- portal descrito apenas pelo primeiro nome (Laris- ples atitude de criar um espaço para redistribui- sa; Samuel; Mylena; Derick; Lucas e Pedro). Já em ção, os fãs desenvolvem habilidades relacionadas Galeria há seis categorias que prometem englo- PRODUÇÃO, NARRATIVA E ESTÉTICA NO POR- a dimensão da produção ao conceber, planejar, bar desde capturas de tela até as postagens feitas TAL SKAM BRASIL escrever, revisar e organizar os conteúdos (PEREI- em redes sociais. No entanto, somente a subseção RA; MOURA, 2018; SCOLARI, 2018). SKAM - Fotos dos Bastidores, Promocionais, Fotos e Conforme apontamos, a partir da deman- O portal é atualmente mantido por seis Mensagens divulgadas no site, etc contém de fato 23 da de consumo, diversos grupos de fãs se orga- pessoas distribuídas entre as seguintes funções: imagens postadas até o presente momento. Di- nizaram como produtores recontextualizando webdesigner, social media, tradução e adaptação daticamente, a estrutura do portal reflete também as tramas e suas extensões em outros idiomas e e legender, e está organizado em quatro seções a lógica da produção e colabora para a compreen- redistribuindo os conteúdos. No Brasil, um dos (além a página inicial). São elas: Notícias, Episó- são inicial da narrativa através dos ícones que re- direcionam o usuário para cada temporada e que maiores grupos foi criado em dezembro de 2016, 22 Disponível em . Acessoem: 20 jan. 2019 23 Se refere ao dia 29 de abril de 2019. 219 A TRANSMEDIA LITERACY NA CULTURA DE FÃS: UMA ANÁLISE DO PORTAL SKAM BRASIL Daiana Sigiliano, Vinícius Guida e Gabriela Borges se referem àquele personagem principal. A ação do Portal Skam Brasil no Twitter nos permite refletir sobre esse âmbito a partir de al- Figura 1: Fotos dos personagens principais como hiperlink gumas perspectivas. Por exemplo, a versão alemã, das temporadas de Skam France. Druck (2018-atual, ZDF) apresenta o ator transe- xual Lukas Alexander no papel de David Schreib- ner. A questão da identidade de gênero foi incor- porada à narrativa e David revela a seu par Matteo (Michelangelo Fortuzzi) ser um homem transe- Fonte: Portal Skam Brasil (2019)24 xual. A cena é transposta para o Twitter através de captura de tela com o reconhecimento da im- Além do website, o Portal Skam Brasil tam- portância social deste arco narrativo. O tuíte inicia 25 bém mantém páginas no Facebook e no Twitter. uma série de discussões entre os telespectadores O microblogging, foco de análise deste artigo, é uti- interagentes26 ao transpor o tópico para um espa- lizado de diferentes formas pelos fãs. Abrangendo ço de conversação (Figura 2). desde o aviso da publicação de novos episódios legendados até comentários sobre a narrativa e Figura 2: Postagem do Portal Skam Brasil. ressignificação de conteúdos.Conforme apontam Guerrero-Pico e Lugo (2018), a dimensão da nar- rativa e estética está relacionada às habilidades de interpretar, reconhecer e descrever, comparar, avaliar e refletir além de agir e aplicar.

24 Disponível em: Acesso em: 29 abr. 2019. 26 O termo telespectador interagente é usado, neste artigo 25 Disponível em: para designar o público que interage (propaga, retuíta, produz Acesso em: 29 abr. 2019. conteúdo, responde às enquetes, etc.) com o universo ficcional das séries televisivas (SIGILIANO; BORGES, 2016). 220 A TRANSMEDIA LITERACY NA CULTURA DE FÃS: UMA ANÁLISE DO PORTAL SKAM BRASIL Daiana Sigiliano, Vinícius Guida e Gabriela Borges

série de capturas de tela dos episódios que corro- citada. No tuíte lê-se, “Não foi baseado em tem- boram o apontamento e fortalecem o argumento, porada específica, e sim em todos os episódios e permitindo perceber a capacidade de avaliação e acontecimentos que os mesmos tiveram partici- contextualização. pação”. Além disso, os personagens são represen- tados apenas por imagens estimulando a cogni- Figura 3: Postagem do Portal Skam Brasil refletin- ção dos interagentes ao buscar correlações. do a estética da produção.

Figura 4: Tabela criada pelo Portal Skam Brasil avaliando a construção dos personagens.

Fonte: Captura de Tela, Twitter. Fonte: Captura de Tela, Twitter. A composição estética do programa tam- Fonte: Portal Skam Brasil. bém estimulou a reflexão dos fãs do Portal Skam Em outra publicação, os fãs postam uma Outro ponto interessante está relacionado Brasil. Em uma postagem, é abordada a questão tabela que representa a avaliação feita por eles do a produção de memes que estão ligados direta- que Matteo está sempre triste e fumando, o fato modo de construção dos personagens, em cinco mente à diegese. Uma cena especifica pode ser está relacionado às características psicossociais níveis de inaceitável a excelente. A metodologia ressignificada com diversos propósitos como, por do personagem. Ao texto, são incorporadas uma usada para a construção desse referencial é expli- exemplo, acrescentar um alívio cômico a uma se- 221 A TRANSMEDIA LITERACY NA CULTURA DE FÃS: UMA ANÁLISE DO PORTAL SKAM BRASIL Daiana Sigiliano, Vinícius Guida e Gabriela Borges quência dramática. e a produção criativa dos fãs. A partir da capacida- CONSIDERAÇÕES FINAIS des de avaliação, filtragem e reconstrução do uni- Figura 5: Postagem do Portal Skam Brasil e resposta de verso ficcional, os fãs desenvolvem também habi- interagente. A análise do Portal Skam Brasil ressalta a lidades psicossociais que podem ser aplicados em importância da aproximação dos campos da lite- diferentes contextos diversos da fruição da ficção racia midiática e da cultura dos fãs na discussão televisiva. do ambiente da cultura da convergência. Os pon- tos refletidos chamam a atenção não só para habi- Referências lidades técnicas dos fãs, isto é, na organização dos BORGES, G. Qualidade na TV pública portu- conteúdos, edição, tradução e distribuição, mas guesa: análise dos programas do canal 2. Juiz de para a ampliação do universo ficcional de Skam. Fora: Editora UFJF, 2014. Os tuítes analisados neste artigo além de ______; SIGILIANO, D. A qualidade na ficção reforçarem os elementos narrativos da trama da seriada lusófona. In FERIN, I; CASTILHO, F; GUEDES,A (Orgs.). Ficção seriada NRK ressignificam a história. Nesse contexto, no- no espaço lusófono. Covilhã: Labcom, 2017, p. vas camadas interpretativas são inseridas nos 183-202. conteúdos do cânone. Outro ponto importante é BRASWELL, G. The Evolution of Narrative and Fonte: Captura de Tela, Twitter. colaboração dos fãs, a comunidade formada pelo Spectatorial Agential Allocation in Immersive Twenty-First Century Entertainment. 158 p. público na rede social ajuda na divulgação e na Na primeira temporada da websérie original (ver- Dissertação de Mestrado - University of Colorado construção de sentido das postagens, em que at Boulder/ Theatre and Dance Graduate The- são norueguesa), Eva (Lisa Teige) é consolada por cada telespectador interagente contribui de uma ses eDissertations, Colorado, 2017. Disponível um colega após uma briga com seu namorado. Na forma para a expansão dos arcos narrativos. em: . Acesso em: 28 abr. 2019. Em suma, a análise das dimensões da nada ao título de um vídeo pornográfico conca- BUCKINGHAM, D. Media Education: Literacy, transmedia literacy abrange a compressão crítica Learning and Contemporary Culture.Cambridge: tenando humor com questões reais da narrativa. Polity Press, 2003. 222 A TRANSMEDIA LITERACY NA CULTURA DE FÃS: UMA ANÁLISE DO PORTAL SKAM BRASIL Daiana Sigiliano, Vinícius Guida e Gabriela Borges

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223 A TRANSMEDIA LITERACY NA CULTURA DE FÃS: UMA ANÁLISE DO PORTAL SKAM BRASIL Daiana Sigiliano, Vinícius Guida e Gabriela Borges

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224 AS BOLHAS NA INTERNET E AS POSSÍVEIS INFLUÊNCIAS ALGORÍTMICAS NAS SHIP WARS ENTRE SWAN QUEEN E CAPTAIN SWAN Enoe Lopes Pontes1

1 the digital environment is also a meeting point contou com um público ativo nas redes, que mos- Resumo: Diante das possibilidades de interação, ad- for fans of media and cultural productions. This trava seu interesse pela trama, buscava ter seus vindas das inovações tecnologias contemporâneas, environment resides the communities and indi- pedidos atendidos e criavam comunidades entre o ambiente digital também se tornou ponto de en- viduals voltages to the act of twisting by couples contro entre fãs de produções midiáticas e culturais. of fictional narratives. The discontins presents on si. A quantidade de seguidores é um dos sinais Neste ambiente residem as comunidades e indivíduos the internet, they have a dream of the pair of the desta participação intensa. No Facebook, o perfil voltados para o ato de torcer por casais de narrativas romantic and admire are unique and special. If ficcionais. Em seus discursos presentes na internet, chega a seis milhões de seguidores, dois milhões so, could the algorithm system be useful for this eles passam a ideia de que os pares românticos que no Twitter e um milhão no Instagram. Assim, com “uniqueness” function on the social networking admiram são únicos e especiais. Contudo, em que me- temáticas diversas, mas todas focadas na série, os dida o sistema de algoritmos poderia contribuir para pages of groups, message groups and discussions esta sensação de “exclusividade” temática nas páginas between them? Through postings from Face- espectadores interagiam e criavam relações. das redes sociais destes grupos, causando embate e book groups, this article will be analyzed as text discussões entre eles? O presente artigo irá analisar2 calls as timelines and may spark discussions, us- Apesar das grandes conexões estabeleci- como as chamadas “Bolhas” afetam as timelines e po- ing as study object the members of Swan Queen das, as comunidades também possuíam entraves dem provocam discussões, utilizando como objeto and Captain Swan. These are viewers of the series que se transformavam em tensões, debates e até de estudo os espectadores do seriado Once Upon a Once upon a Time and love for the Emma and Time, que torcem para que as duplas Emma e Regina e Emma Regina and Emma and Captain Fictitious mesmo ofensas. O principal motivo dos embates Emma e Capitão Gancho. Hook together romantically within the plot of the eram as torcidas pelos casais românticos perten- series. centes ao enredo do seriado. Durante as suas exi- Palavras-chave: Algoritmos; Bolhas; Fandom, Shi- bições semanais, Once Upon a Time trazia aventu- pper; Narrativas Seriadas. Keywords: Algorithms; Bubbles; Fandom; Ship- Abstract: Given the possibilities of interaction, per; Serial Narratives. ras, mistérios e também questões sentimentais e coming from contemporary digital technologies, amorosas. Contudo, enquanto o episódio passava 1 Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação INTRODUÇÃO e depois dele, os fãs se dedicavam mais explicita- e Cultura Contemporâneas, da Universidade Federal da Bahia (PÓSCOM/UFBA). mente a falar dos seus casais preferidos, os entra- 2 Através de observação participante em três grupos de Facebook: Em 2011, entrou em exibição o seriado ves e ganhos relacionados a eles. Igreja Swan Queen é o Amor, Captain Swan Crew e Once Upon a Time BR. A análise foi realizada durante a realização da pesquisa Once Upon a Time, na emissora ABC, nos Estados Mas, o carinho e devoção pelos pares para a feitura da dissertação de mestrado da autora, entre os anos Unidos. Durante os sete anos no ar, a produção de 2015 e 2018. 225 AS BOLHAS NA INTERNET E AS POSSÍVEIS INFLUÊNCIAS ALGORÍTMICAS NAS SHIP WARS ENTRE SWAN QUEEN E CAPTAIN SWAN Enoe Lopes Pontes não ficavam somente naquelas duplas que eram dos e são frequentados por membros brasileiros. Para realizar tal intento, o presente artigo é propostas pelos autores da obra. Em 2015, uma O parâmetro utilizado para as escolhas voltadas dividido em alguns tópicos. Inicialmente, pontos fã da série contabilizou em seu Tumblr3 um total para o objeto de estudo estão relacionadas à ligados aos grupos de fãs e às torcidas por casais de 160 torcidas para casais nas comunidades de quantidade de discussão presente nas redes e o em narrativas ficcionais são esclarecidos. Em se- espectadores da série. Alguns deles mais ou me- fato dos embates dentro e fora da comunidade de guida, traça-se uma explicação sobre o universo nos expressivos nas redes sociais. Desta manei- fãs estarem ligado a protagonista da história. dos espectadores de Once Upon a Time, do plot do ra, é possível notar que esta comunidade possui seriado e seu desenvolvimento, bem como as es- A partir destas afirmações, surge a per- segmentações e que elas possuem importância colhas dos autores e as interações entre os usuá- gunta: de onde começa a interpretação destas entre eles de tal forma que isto se transforma em rios na internet moldaram as características que comunidades de sentido? Por que lhes parece tão conflito ou união. Por esta razão, a partir de uma definem o público da produção. absurda a ideia de que outra torcida para a per- observação geral de páginas da internet foram se- sonagem principal exista? Em seguida, é possí- No terceiro momento deste trabalho se- lecionados grupos de Facebook que continham os vel chegar a conclusão de que se eles utilizam os rão expostas breves explicações voltadas para os enaltecedores dos casais formados pela protago- ambientes digitais e aparelhos tecnológicos para aparatos tecnológicos, no que se refere aos algo- nista, Emma Swan. As principais diferenças entre se comunicarem, o sistema de algoritmos está ritmos, a teoria do “Filtro-Bolha” (PARISER, 2011) e eles é que um aconteceu dentro da narrativa, o envolvido. Desta maneira, partido do ponto dos como estes fatores podem ter influenciado as tor- outro não. Um é formado por uma mulher e um questionamentos aqui citados, inicia-se uma ex- cidas por casais deste seriado. Ao final do texto, homem, o outro por duas moças. ploração e uma busca pelo entendimento da ca- o leitor também poderá encontrar um glossário, Para completar a investigação, uma ter- pacidade deste aparato. Seria ele é capaz de criar realizado com intuito de esclarecer dúvidas possí- ceira página entra na análise, pois conta com o uma espécie de bolha entre os usuários? Por con- veis sobre as principais nomenclaturas utilizadas público geral da produção. Sendo assim, serão ta dele, os usuários estariam conhecendo apenas pelo público deste universo midiático e conecta- vistos: Igreja Swan Queen é o Amor, Captain Swan a realidade do que mais acessam? Quais ruídos e do. Crew e Once Upon a Time Br. Todos eles foram cria- interferências isto pode causar entre os fãs?

3 Página intitulada ObisGirl (obisgirl.tumblr.com). 226 AS BOLHAS NA INTERNET E AS POSSÍVEIS INFLUÊNCIAS ALGORÍTMICAS NAS SHIP WARS ENTRE SWAN QUEEN E CAPTAIN SWAN Enoe Lopes Pontes

1. O ATO DE SHIPPAR E AS COMUNIDADES criaram os termos ship e shipper5. As nomencla- páginas privadas e públicas da internet, como o DE FÃS turas têm origem na palavra inglesa relationship Facebook, por exemplo6. que, em português, quer dizer relacionamento. Durante ou após a exibição de um episó- Sendo assim, quando se fala nos dois termos, dire- Termos específicos, relações construídas dio, o espectador pode contar suas impressões, ciona-se o olhar para as duplas e seus torcedores, e desfeitas, tem­po longo empregado. Estas ca- seus desejos para o futuro da produção, suas respectivamente. No presente artigo, o foco serão racterísticas são algumas das mais importantes frustrações e empolgações. Redes como Twitter, os casais de narrativas seriadas televisivas ficcio- para descrever comunidades de fãs, os chamados Tumblr, Reddit e Facebook são utilizadas para tais 4 nais, mais especificamente Emma com Regina e Fandoms . Assim como explica Hills (2002), o fato funções. Além disso, os fãs também podem aces- com Emma com Capitão Gancho, ambos casais de um indivíduo gostar de um produto ou uma sar outras plataformas que deem a possibilidade presentes na série de TV Once Upon a Time, como pessoa, não faz dele um fã. Para que tal título pos- deles criarem conteúdos novos e os divulgarem, será explicado mais adiante. sa ser ofertado, é preciso que haja intenso engaja- como é o caso do FanFic.Net e o Youtube. mento, uma conexão forte com a figura e/ou ob- A partir deste universo, que envolve pes- A partir da produção original, os fandoms jeto de admiração e grande dedicação. soas de lugares, personalidades, acessos e carac- podem realizar materiais como Fan Fictions (Fan terísticas de vida diferentes, existe algo que as Dentro deste contexto, existe uma parce- Fic/Fics), que são obras ficcionais que recriam ou ligam, um objetivo em comum. Ter seu casal favo- la dentro de fandoms organizados que foca a sua trazem outros caminhos para as trama canôni- rito representado na tela passa a ser a meta prin- atenção para um par de personagens, seja ele ro- ca que o fã acompanha; fan arts, que seguem o cipal destas comunas e os indivíduos que a habi- mântico, de amigos e/ou de grande afetuosidade mesmo princípio das Fics, porém no formato de tam podem ocupar lugares com mais visibilidade dentro e fora das narrativas ficcionais. Para falar de 6 Ainda que o Facebook seja uma rede social que pretende ou não, sendo mais ativos ou mais silenciosos nas casais e dos grupos que voltavam seu olhar para mostrar perfil e na qual as pessoas podem mostrar suas vidas, os conteúdos podem ser limitados, sendo mostrado apenas para os eles, os usuários de internet, na década de 1990, 5 De acordo com, Wooley (2002), na década de 1990, os fãs da série amigos mais próximos para alguma comunidade específica ou até Arquivo-X participam de fóruns online ,e dentro deles, acabaram mesmo aparecendo apenas para o criador da publicação. Existem se dividindo em dois grupos: “shippers” e “No Romance”. A autora também três tipos de grupos: secretos, privados e públicos. O afirma em seu artigo que a criação da terminologia “shipper” por acesso vai variar da autorização que cada indivíduo possui, se ele 4 Fandom: A palavra vem do inglês e é uma junção de fan e fãs deste seriado não é oficial, porém a autoria ficou para o fandom foi ou não convidado para acessar um dado conteúdo ou se aquilo kingdom, que quer dizer “reino de fãs” em português. entre os consumidores deste tipo de produção. está aberto de forma ampla. 227 AS BOLHAS NA INTERNET E AS POSSÍVEIS INFLUÊNCIAS ALGORÍTMICAS NAS SHIP WARS ENTRE SWAN QUEEN E CAPTAIN SWAN Enoe Lopes Pontes ilustração; Manip, que uma abreviação de mani- Para Dalmonte, (2015) existem alguns elemen- produção que será consumida. Para Dalmonte: pulação e são todas as imagens modificadas em tos-chave que marcam essa transformação. O pri- aplicativos e programas de edição de fotos; e, por meiro seria a perda do controle sob os horários e Cada vez mais os produtos são fim, os fan vídeos e fan films, que são produtos au- locais de transmissão. Na contemporaneidade, o idealizados para essa nova forma diovisuais, de menor ou maior qualidade de pro- espectador pode escolher onde, quando e como ‘barulhenta’ de consumir, pois interessa que sejam consumidos dução que recontam ou contam histórias ligadas vai assistir a um programa, não precisando mais em vários níveis – síncrona e as- ao universo do filme, livro, série etc. esperar, por exemplo, para estar em frente da te- sincronamente. Como ressaltam levisão em um dia e momento exatos, sob pena Jenkins, Ford e Green (2013), os Esta comunicação e troca de informações de perder um programa ou episódio que queira produtos midiáticos passam a é fomentada por um fenômeno intitulado por ser concebidos segundo a lógi- acompanhar. Jenkins et al (2014) de “Mídia Espalhável”. Há, as- ca do ‘espalhamento’ midiático. (2015, p. 101) sim, espaço para a resposta mais clara e rápida da O segundo elemento destacado pelo au- recepção. As pessoas têm a chance de conhecer, tor é a importância que os consumidores ganha- de maneira mais ampla, indivíduos que conso- ram no que se refere à divulgação dos produtos Esse “barulho” ao qual o autor se refere diz mem e pensam de forma semelhante, assim como midiáticos. A vontade de agregar seguidores e respeito às interações, discussões, envios e posta- debater opiniões divergentes sobre determina- que eles interajam com o conteúdo postado nas gens de materiais e links. Há, circulando nos meios dos produtos. Existe a possibilidade maior de tro- redes sociais mostra a necessidade dos produto- digitais, uma gama infinita de conteúdo que é ca de informações, conversas e materiais, através res e empresas de encontrar um público ativo e acessado e divulgado o tempo inteiro. Essa possi- das ferramentas e aplicativos oferecidos pelas tec- participativo. O último aspecto, e o que mais se bilidade aproxima o público dos produtos midiá- nologias contemporâneas. aproxima da temática deste trabalho, é o da lógi- ticos e das comunidades que interagem com eles. ca de “espalhamento”7 com uma interferência na Dentro deste contexto que estão os Swan Queen e O que anteriormente ocorria como um 7 Media espalhável ou propagável é um conceito retirado do Captain Swan, torcedores pertencentes à comuni- processo de mão única se converte em caminhos livro Cultura da Conexão (2016) e criado pelos autores Jenkins, dades de fãs de Once Upon a Time. Ford e Green. Eles afirmam que as inovações tecnológicas e a múltiplos, vindo de diversos formatos e estilos. possibilidade de escuta da voz do público de forma mais ampla criadores oficiais de conteúdo e dessem também esse poder de fizeram com que as informações fugissem do controle dos realização para o espectador. 228 AS BOLHAS NA INTERNET E AS POSSÍVEIS INFLUÊNCIAS ALGORÍTMICAS NAS SHIP WARS ENTRE SWAN QUEEN E CAPTAIN SWAN Enoe Lopes Pontes

série e é um dos pontos que os shippers do par tos pautados nas aventuras e mistérios da obra, 2. SWAN QUEEN X CAPTAIN SWAN dizem ser o principal para a torcida. Os chamados mas eles também estão ligados ao enaltecimen- Swan Queen enxergam os três como uma família to do amor. Na série, há um lema que diz “Amor completa e um símbolo de representatividade. verdadeiro é magia9”. A partir disto, maldições são Criada por Adam Horowitz e Edward Ki- quebradas e vilões vencidos. Este fator faz com tsis e produzida pela ABC Studios, Once Upon a que a questão de torcer por pares românticos seja Time (2011-2018) possuía como enredo principal mais forte dentro do fandom da produção. Assim, a atuação de personagens dos contos de fadas as resoluções e escolhas possíveis dos roteiristas no “mundo real”, para o qual foram transportados 8 eram lidas pelos shippers a partir de seus casais por magia. A partir desse plot, subtramas são de- preferidos. senvolvidas e é possível acompanhar aventuras Contudo, apesar das expectativas das tor- pautadas na luta entre o bem e o mal, assim como cedoras de Emma e Regina para que as duas fi- Analisando o comportamento e fragmen- o desenvolvimento de enlaces amorosos e parce- cassem juntas, desde o primeiro ano do seriado, tação entre os fãs de Once Upon a Time, é possí- rias, no cotidiano de uma cidade fictícia, chamada na segunda temporada de Once Upon a Time, os vel dividir estes grupos no que Fish (1992) intitula de Storybrooke, que, teoricamente ficaria situada autores começam a dar indícios de que iriam for- como Comunidades Interpretativas. Para o autor, no estado do Maine (EUA). mar um casal heterossexual e Swan faria parte a recepção de uma obra por parte de um indiví- dele. No terceiro ano da produção, esta teoria se duo está diretamente ligada ao grupo de que ele A protagonista, Emma Swan, precisa que- confirma e Capitão Gancho e Emma Swan passam faz parte. Logo, ao assistirem ao seriado e formu- brar uma maldição que a Rainha Má, da Branca a ser um par romântico e assim permanecem até larem ideias sobre a narrativa, pondo os pares de Neve lançou nos seres da Floresta Encantada. a última cena do seriado. românticos como foco, eles fariam parte de uma No entanto, as duas acabam descobrindo que são comuna que produz sentido, a partir de uma obra. mãe do mesmo filho, uma biológica e a outra ado- Enquanto os relacionamentos de ambas as Desta maneira, os shippers seriam, teoricamente, tiva, respectivamente. Este detalhe acaba unindo duplas vão se desenvolvendo, existem os confli- tendenciosos, pois estariam com seus olhos de as duas, lentamente, durante as temporadas da 8 Print da tela retirado do Twitter em 28 de agosto de 2015, às 14h30 9 True Love is Magic, em inglês. (Tradução nossa). 229 AS BOLHAS NA INTERNET E AS POSSÍVEIS INFLUÊNCIAS ALGORÍTMICAS NAS SHIP WARS ENTRE SWAN QUEEN E CAPTAIN SWAN Enoe Lopes Pontes

Swan Queen e Captain Swan. acompanhadas de tecnicalidades, sistemas, sof- na timeline. A partir desta observação, restou pen- twares, aparatos técnicos e digitais, sendo um sar: Qual a função dos algoritmos? Eles podem Contudo, a tecnologia tem seus aparatos deles os algoritmos. A partir dele, pode-se, talvez, afetar de fato este processo de engajamento do e as redes sociais não possuem dentro delas ape- pensar: Os shippers de Once Upon a Time, princi- público? As “Bolhas” são reais? O ator de shippar nas fenômenos “humanos”, por assim dizer. Apps, palmente os de Emma e Reina e Emma e Gancho, estaria sendo influenciado por este sistema? sites, gadgets. Estas inovações interferem em al- estariam fomentando suas certezas por estarem guma medida, seja ela mais ampla ou reduzida, sendo bombardeados de informações sobre seus nas interações e relações pessoais, dando voz aos ships? Quanto mais eles praticavam o acesso da- usuários e mudando a forma com que os mesmos queles materiais, mais entravam no que Pariser enxergam e vivem suas vidas. De acordo com LE- (2011) vai chamar de “Filtro-Bolha”? MOS (2005): Nas imagens a seguir, se vê dois vídeos da Trata-se de transformações nas práticas sociais, na vivência do mesma cena de Once Upon a Time, porém com Na imagem 01, vê-se a descrição da cena feita espaço urbano e na forma de títulos distintos. No primeiro, está escrito, numa por uma torcedora de Swan Queen produzir e consumir informação. tradução nossa: “Emma se sacrifica por Regina”. A cibercultura (Lemos, 2002) sol- No segundo, “Emma/Hook ‘Eu te amo’”. O vídeo ta as amarras e desenvolve-se de forma onipresente, fazendo foi encontrado numa busca espontânea sobre com que não seja mais o usuá- os casais do seriado, na plataforma YouTube. Já o rio que se desloque até a rede, segundo, foi descoberto apenas depois de uma mas a rede que passa a envolver garimpada mais extensa. Durante o tempo assis- os usuários e os objetos numa conexão generalizada. (LEMOS, tindo a produção, a busca por material de Swan 2005, p.2). Queen era mais intensa. Posteriormente, fatos Na imagem 02, vê-se a descrição da mesma cena, como este relatado insistiam em acontecer e cada agora feita por uma shipper de Captain Swan. E é por isso também que as inovações são vez menos materiais de Captain Swan apareciam 230 AS BOLHAS NA INTERNET E AS POSSÍVEIS INFLUÊNCIAS ALGORÍTMICAS NAS SHIP WARS ENTRE SWAN QUEEN E CAPTAIN SWAN Enoe Lopes Pontes

3. ALGORITMOS E BOLHAS cida na sociedade em relação a efetividade dos al- e materiais que entrem em divergência com suas goritmos, como se os mesmos fossem infalíveis e ideologias, gostos e vontades. Quando os algorit- 3.1. ALGORITMOS incapazes de direcionar o público para coisas que mos passam a selecionar o que aparece mais ou não sejam do interesse deles. Conforme aponta menos na tela do usuário, ele estaria, assim, fil- De acordo com Finn (2017), os algoritmos Finn (2017), esta ferramenta é passível de erros, trando o que os indivíduos consomem nas redes. são um sistema que resolvem questões de forma desajustes e caminhos opostos aos do usuário. Desta forma, pensamentos, notícias, grupos e etc prática e através de repetições. Existem mitos que Além disso, ele não puramente uma máquina, estariam todos centrados no tipo de acesso reali- correm na sociedade que engrandecem o poder como já foi comentando anteriormente no pre- zado. desta ferramenta, colocando-a quase como uma sente artigo. O autor aponta que “Vieses e valores Deixados à própria sorte, os fil- entidade mágica, mas que, na verdade, não dei- humanos são incorporados em cada passo do de- tros de personalização servem xam de ser um trabalho humano também. senvolvimento. A informatização pode simples- uma espécie de autopropagan- mente direcionar a discriminação para este cam- da invisível, doutrinando-nos De acordo com a empresa Google, os “al- com nossas próprias ideias, po11”, (FINN, 2017, p.21). goritmos são os processos e fórmulas computa- amplificando nosso desejo por coisas que nos são familiares e cionais que pegam suas perguntas e transformam Ao notar e avaliar a existência e performi- deixando-nos indiferentes aos 10 em respostas” , (FINN, 2017, p. 18). Assim, as in- dade deste sistema surgiu a pergunta: Os algorit- perigos que espreitam no terri- formações dos usuários vão sendo depositadas mos levariam o público a entrar em uma espécie tório sombrio do desconhecido. nas redes. O que eles gostam e tem mais interes- de bolha? (PARISER, 2011). se, quantas horas passam olhando um assunto ou 3.2. FILTROS-BOLHA O tom de Pariser pode soar demasiada- consumindo uma produção midiática. mente alarmante. No entanto, ao utilizar as suas De acordo com Pariser (2011), as pessoas No entanto, também há um aura estabele- teorias para buscar compreender como os torce- possuem uma resistência em buscar informações dores para casais de narrativas ficcionais – princi- 10 Original: “Algorithms are the computer processes and formulas 11 Original: Human biases and values are embedded into each palmente daqueles que ainda não ocorrem na tra- that take your questions and turn them into answer”. (Tradução and every step of development. Computerization may simply drive nossa). discrimination upstream. (Tradução nossa). 231 AS BOLHAS NA INTERNET E AS POSSÍVEIS INFLUÊNCIAS ALGORÍTMICAS NAS SHIP WARS ENTRE SWAN QUEEN E CAPTAIN SWAN Enoe Lopes Pontes ma, os chamados ships fanon – chegam a se ligar fis das Redes Sociais, como Facebook e Twitter, tinadas a falar de uma produção como um todo. profundamente com essas duplas e, muitas vezes, que muito antes de pares se tornarem românti- Neste ambiente, os shippers acabam deparando- passarem o foco completo para elas. A existência cos já existe um público na expectativa de que -se com outros estilos de indivíduos e subgru- dos “Filtros-Bolhas” dentro das redes poderiam ser isto aconteça, como é o caso de Swan Queen pos que pertencem ao mesmo fandom que ele. uma explicação plausível para tal fenômeno. - que jamais ocorreu efetivamente em Once Upon a Time. Porém, seus fãs permaneceram no

3.3. ALGORITMO COMO POSSÍVEIS aguardo até o último episódio. O ar esperanço- 13 INFLUENCIADORES DOS SWAN QUEEN E CAPTAIN SWAN so deles é exemplificado na ilustração a seguir. É possível refletir como estão sendo uti- lizadas as redes destes integrantes do fandom. De acordo com Pontes (2018), os membros Pensando nos algoritmos, volta-se a atenção de de fandoms organizados que se unem para acom- que podem existir experiências múltiplas na rede panhar, defender e discutir sobre os destinos de e basta que o usuário adentre em múltiplos uni- seus casais preferidos fariam parte de Comunida- 12 versos ou não. “O fato de que existe um algorit- des Interpretativas. A partir deste conceito de Fish mo, um significado pretendido pelo código, às (1992), a autora explica que devido a este fator, as Ao falarem de seus ships, os fãs parecem vezes estrutura nossa experiência com progra- pessoas olham para os enredos de maneiras se- demonstrar a certeza de que o foco da narrativa mas”14, (FINN, p.35, 2017). melhantes e se tornam uma comuna a partir disto, é o seu par escolhido. Sendo assim, eles passavam e, com um líder, uma dada forma de ver a trama a se surpreender quando encontravam alguma A partir das pontuações de Finn (2017) era disseminada. oposição. Esta situação fica mais clara ao se aden- e Pariser (2011) se liga os pontos em relação às trar grupos de Facebook, distribuindo a análise na interações dos torcedores de Swan Queen e Cap- Contudo, paira uma questão central: onde entrada em comunas exclusivas para cada dupla ou quê seria o start para a ideia da existência de 13 Print retirado do grupo Once Upon a Time Br, no dia 12 de janeiro e em comunidades interpretativas coletivas, des- de 2019, às 22h20. dado casal em uma narrativa ficcional para além 14 Original: The fact that there is an algorithm, a meaning 12 Tweet da shipper Luiz Yalle, Rio de Janeiro, Brasil. Print retirado no intended by code, sometimes structures our experience with dela mesmo? É notável dentro de grupos e per- dia 18 de julho de 2016. Imagem autorizada. programs. (Tradução nossa). 232 AS BOLHAS NA INTERNET E AS POSSÍVEIS INFLUÊNCIAS ALGORÍTMICAS NAS SHIP WARS ENTRE SWAN QUEEN E CAPTAIN SWAN Enoe Lopes Pontes tain Swan. Caso admita-se que existam de fato os Swan, da série Once Upon a Time, é possível notar indivíduos. Além disso, como aponta Finn (2017), filtros-bolhas, é possível afirmar que quanto mais que eles se apresentam como Comunidades In- apesar de interferir no que tangem questões cog- os fãs procuravam informações sobre seus ships, terpretativas, que se portam como defensores de nitivas, ele não é fixo, precisa ser explorado e é mais recebiam e encontravam conteúdos da te- seu casal preferido e entram em disputas de senti- necessário que se leve em consideração questões mática. do quando seus olhares são questionados. culturais.

Desta forma, uma ideia de que seu “time” Dentro deste contexto, existem os algorit- Sendo assim, os pesquisadores da área estava dominando os ambientes digitais se ins- mos que vão montando uma espécie de padrão, poderiam pensar de que forma iriam propor es- talava e, quando a série ia ao ar, ficava uma sen- a partir dos acessos dos usuários. Desta maneira, tudos voltados para disputas de sentido, a partir sação ainda maior de certeza para os torcedores compreendo o que se é explicado como proces- dos acessos da internet, não apenas no que se re- de Captain Swan e de engano para o Swan Queen. so deste aparato, entende-se que quanto mais os ferem aos embates entre shippers, mas também Com este quadro posto, os embates nos locais fãs procuram conteúdos nas redes sobre seu ship, no que tangem todos os conflitos ideológicos, so- que abordavam a produção nu contexto mais ge- mas eles aparecem em suas timelines e os mate- ciais, culturais etc que estejam presentes em am- ral aconteciam em todas as postagens que falas- riais sobre outros pares e assuntos divergentes bientes digitais e criar um método de análise para sem sobre romance. Como Once Upon a Time foca vão diminuindo. Assim, cria-se a impressão de tais grupos. De onde começa esta interpretação? nas relações de amor como resolução para maldi- que aquele casal tem ganhado muita atenção e, Quem inaugurou e quantas vezes ocorreu o aces- ções e mistérios, o fandom do seriado passaria a provavelmente, será brindado com um final feliz so de dado conteúdo antes dele passar a reinar ter estas disputas de sentido como centro de suas dentro da trama. em cada rede social? características. No entanto, como a lógica dos algoritmos de cada rede não é tão clara, não se pode con- GLOSSÁRIO CONCLUSÃO firmar este fenômeno seja também uma conse- quência sua. Analisa-se, no presente artigo, o fator Brothers True Pairing (Brotp) – Em português que A partir da observação dos grupos de Fa- dizer uma irmandade única. O termo denomina humano e como a questão tecnológica afeta estes cebook dos shippers de Swan Queen e Captain aquelas duplas que são perfeitas, porém não no 233 AS BOLHAS NA INTERNET E AS POSSÍVEIS INFLUÊNCIAS ALGORÍTMICAS NAS SHIP WARS ENTRE SWAN QUEEN E CAPTAIN SWAN Enoe Lopes Pontes

sentido romântico. Pode ser irmãos, amigos, fami- imagens. Ship – É uma abreviação de relationship, relaciona- liares. mento em português. A palavra é usada para de- Fanvideo – Tem o mesmo princípio da fan fic, mas nominar algum relacionamento dentro ou fará da Canon – A palavra é usada para denominar acon- é um produto audiovisual com base na manipula- ficção. tecimentos que ocorrerão de fato dentro da nar- ção (manip) de vídeos . rativa. Shipper – Aquele indivíduo que torce por um ship. Manip - Vem da palavra manipulation, que quer di- End Game – Quando no final da trama o casal fica zer manipulação. São fotografias alteradas por fãs Shipping/Shippando – Denomina o ato de shippar. junto. Pode também ser utilizado para fatos que em plataformas de edição de imagem. Não confundir com o estudo de recepção do shi- permaneceram sem mudanças depois do encer- pper. Está shippando é a ação contínua do shipper, ramento de uma história. One True Pairing (OTP) – Um par único. O termo é em relação ao seu ship. usado para denominar pares românticos que são Fan Art – Material artístico produzido por fãs. Nes- especiais e perfeitos um para o outro. Bibliografia te caso, podem ser desenhos ou tirinhas. Queerbaiting – Numa tradução literal, isca para LGB- FINN, Ed. What algorithms want: imagination Fandom – O termo é a junção de fan e kingdom TQ+. Acontece quando os criadores de uma ficção in the age of computing. Cambridge: MIT Press, que, em português, que dizer reino de fãs. A pla- dão a entender que um par do mesmo gênero irá 2017. vra é usada para se referir aos grupos de fãs. ficar junto romanticamente, porém o fato nunca FISH, Stanley. “Is there a text in this class?”. Tradu. ocorre. Dessa forma, o produto atrai um público Rafael Eugênio Hoyos. Revista Alfa, v. 36, p. 189- Fan Fic – textos ficcionais criados por fãs, podendo homossexual, mas não perde o heterossexual. 206, São Paulo, 1992. recontar um fato acontecido na narrativa original HILLS, Matt. Fan Cultures. Londres e Nova Iorque: ou projetar acontecimentos futuros Review – São textos feitos pelo espectador que re- Routledge, 2002. sumem o que aconteceu em um episódio, com JENKINS, Henry; FORD, Sam; GREEN, Joshua. Cul- Fanon – Um casal ou acontecimento que é apenas pequenos trechos opinativos no meio. tura da Conexão: criando valor e significado por é desejo dos fãs, contudo ainda não está presente meio da mídia propagável. São Paulo: Aleph, 2014. dentro da obra original. Slash/Femlash Pairing – Os dois termos servem para, JENKINS, Henry. Textual Poachers: television respectivamente, falar sobre casais entre homens fans & participatory culture. New York: Routledge, Fan Film – Produto audiovisual produzido por e entre mulheres. 1992. equipe de fãs (implica, portanto, na captação de LEMOS, André. Cibercultura e Mobilidade. A Era

234 AS BOLHAS NA INTERNET E AS POSSÍVEIS INFLUÊNCIAS ALGORÍTMICAS NAS SHIP WARS ENTRE SWAN QUEEN E CAPTAIN SWAN Enoe Lopes Pontes da Conexão. XXVIII Congresso Brasileiro de Ciên- cias da Comunicação. Rio de Janeiro, 2005. MITTEL, Jason. Complexidade narrativa na televi- são americana contemporânea. Matrizes, Ano 5, nº 2, p. 29-52, São Paulo, 2012. PARISER, Eli. The Filter Bubble. What the Internet is Hiding from You. The Pinguim Press. New York. 2011. PONTES, Enoe Lopes Pontes. Os shippers de Once Upon A Time: disputas interpretativas e comunidades de recepção. Dissertação (Mestra- do em Comunicação) – Faculdade de Comunica- ção, Universidade Federal da Bahia. Bahia, 2018. WOOLEY, Christine. Visible Fandom: Reading The X-Files Through X-Philes Illinois: .University of Illinois Press, 2002.

235 CASUAL OU HARDCORE? UMA ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS DA BLIZZARD PARA O ENGAJAMENTO DOS JOGADORES DE HEARTHSTONE Fabrício Barbosa C.1

1 to promote the engagement of the players of one of its mais recorrente – e que é relevante para a análi- franchises, the Hearthstone card game. We start from Resumo: Considerando a expansão do mercado de vi- se proposta neste artigo – é a divisão entre jogos the identification and discussion of two of the main deogames, destacamos, no presente artigo, o caso dos motivations mentioned by the public of this game: casuais e jogos hardcore. Conforme sinalizado por jogos casuais, que recorrem ao modelo “free-to-play” e competitiveness and immersion. From the analysis procuram atingir uma audiência mais ampla. Dentro Juul (2010), uma tentativa inicial de definição des- of the Hearthstone case, it is observed and discussed desse nicho, analisamos as estratégias utilizadas pela ses termos aparece na Computer Game Developers recurrent practices in the contemporary production Blizzard Entertainment para promover o engajamento culture of video games. We argue that those practices Conference de 1998, quando o designer de que- dos jogadores de uma de suas franquias, o card game encourage the creation and the dialogue between dif- Hearthstone, a partir da identificação e discussão de bra-cabeças Scott Kim falou sobre as disposições ferent titles, at the same time that they allow the con- duas das principais motivações mencionadas pelo tinuous updating - and consequent pricing - of these dos jogadores casuais, afirmando que “as pessoas público dessa obra: a competitividade e o desejo de cultural artifacts. jogam diferentes jogos por diferentes razões”. imersão. A partir da análise do caso de Hearthstone, são observadas e discutidas práticas recorrentes na Keywords: casual games; competitiveness; Hearth- Para Kim, “os jogadores experientes jogam pelas cultura de produção de videogames contemporânea, stone; immersion; production culture. recompensas de longo prazo da competição e que incentivam a criação e o diálogo entre diferentes obras, ao mesmo tempo que possibilitam a contínua dos rankings, enquanto os jogadores casuais jo- atualização – e consequente precificação – desses ar- gam pelas recompensas de beleza e distração a tefatos culturais. INTRODUÇÃO curto prazo” (JUUL, 2010, p.34, tradução nossa).

Palavras-chave: competitividade; cultura de produ- Um dos fatores considerados durante a Chess (2012, p.84, tradução nossa) pro- ção; Hearthstone; imersão; jogos casuais. análise de videogames diz respeito às possíveis põe uma definição de jogos casuais como sendo classificações desses artefatos: jogos digitais, as- “aqueles que são simples de aprender e de jogar, Abstract: Considering the expansion of the video sim como outras mídias, possuem uma grande viciantes o suficiente para que se possa jogá-los game market, we highlight in this article the case of variedade de gêneros e carregam consigo uma casual games, which use the free-to-play model and em curtos períodos de tempo ou pelo tempo que seek to reach a wider audience. Within this niche, we série de particularidades, como a plataforma para for permitido, e que sejam baratos ou gratuitos”. analyze the strategies used by Blizzard Entertainment a qual são idealizados (consoles, computador, mo- Muitos dos jogos mobile, projetados para smar- 1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação bile), se são cooperativos ou single-player, online e Cultura Contemporâneas – PósCom/UFBA e bolsista CAPES, tphones e outros dispositivos móveis, por exem- desenvolve pesquisa na área de narrativas em jogos digitais. ou offline, entre outros. Uma das categorizações plo, são jogos casuais: idealizados para serem jo- Contato: [email protected] 236 CASUAL OU HARDCORE? UMA ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS DA BLIZZARD PARA O ENGAJAMENTO DOS JOGADORES DE HEARTHSTONE Fabrício Barbosa C. gados em qualquer local, em qualquer janela de tão diverso. Em outras palavras, os jogos casuais das empresas pioneiras nesse sentido é a Blizzard tempo disponível, sem grandes exigências para acabam “desafiando as concepções sobre para Entertainment que, desde o início de suas ativida- com o jogador. quem são direcionados os videogames” e alteram des, tem investido na ramificação e expansão de as estratégias da indústria para com seus produ- suas propriedades intelectuais, criando grandes Considerando que os dispositivos móveis tos e seus respectivos consumidores. universos ficcionais que estimulam e permitem a já são responsáveis pela metade da arrecadação constante atualização e rentabilidade de seus jo- da indústria de videogames como um todo2 e Os jogos digitais lançados mais recente- gos. que, dentro desse segmento, os jogos casuais e mente já incorporaram em seus modelos de ne- hipercasuais tem demonstrado um crescimento gócio a prática de atualizações recorrentes, como No presente artigo, analisamos as estraté- massivo3, um dos aspectos fundamentais para a o lançamento de conteúdos adicionais (DLCs, ex- gias adotadas para o engajamento dos jogadores manutenção desse mercado e de seu sucesso eco- pansões, passes de temporada, etc.) e a venda de de uma das franquias da Blizzard, que se vale do nômico está, justamente, em fidelizar esse público itens premium ou cosméticos; e não são poucas modelo de transmidialidade desde sua concep- – em teoria – menos dedicado, e garantir seu inte- as discussões acerca dos limites aceitáveis para ção: o jogo de cards digitais Hearthstone: Heroes resse continuado por esses produtos. A esse res- tais estratégias. Entre os muitos desafios envolvi- of Warcraft (2014). Hearthstone é um jogo casual peito, Howard (2018, p.02, tradução nossa) aponta dos nessa constante atualização das obras está, para computadores e dispositivos móveis e foi que, uma vez que os jogos casuais são populares no entanto, o de oferecer um conteúdo que seja, construído tomando como base a ambientação junto a audiências mais amplas, não necessaria- em primeiro lugar, atrativo, e que promova o en- e os personagens de outro jogo de sucesso da mente constituídas por jogadores hardcore, os de- gajamento continuado do público consumidor. desenvolvedora, World of Warcraft. Além disso, signers precisam se desdobrar para produzir obras Para tal, muitas empresas tem recorrido à criação segue um padrão de atualizações recorrentes, que consigam capitalizar e agradar um público de grandes franquias transmidiáticas, voltadas a que permite não só a relação com outras mídias envolver o público nos mais variados suportes e da empresa, como também a expansão de um 2 Fonte: https://newzoo.com/insights/articles/global-games- market-reaches-137-9-billion-in-2018-mobile-games-take-half/ fomentar a expansão do mundo de suas obras, ao universo ficcional do qual, a princípio, era apenas (última consulta em 25/04/2019). 3 Fonte: https://venturebeat.com/2018/06/10/hypercasual-is- mesmo tempo que abrem precedentes, dessa for- um derivado. Ao longo do trabalho, discutimos, a mobile-gamings-new-dominant-force-as/ (última consulta em ma, para o lançamento de novos produtos. Uma partir de um estudo de caso do jogo menciona- 25/04/2019). 237 CASUAL OU HARDCORE? UMA ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS DA BLIZZARD PARA O ENGAJAMENTO DOS JOGADORES DE HEARTHSTONE Fabrício Barbosa C. do, questões relacionadas ao 1) modelo econô- do com um comprometimento de tempo casual”. mobile de maneira geral, sejam eles casuais ou mico de produção e venda de jogos casuais free- Shaw (2010, p.09, tradução nossa), complementa hardcore. Tomando Hearthstone como exemplo -to-play, categoria da qual Hearthstone faz parte; esse ponto de vista, destacando que “a cultura de jogo free-to-play4, nota-se que tal título pode 2) motivações dos jogadores ao interagir com a dos videogames também é definida em termos ser instalado gratuitamente e oferece um conjun- obra, em especial a competitividade e a imersão; de quantidade de tempo que as pessoas gastam to de cartas básicas para todos os jogadores, com e 3) estratégias para a manutenção do modelo de fazendo isso” e sugerindo que o jogador hardcore as quais já é possível começar a jogar de imedia- negócios da Blizzard a partir do uso de projetos é aquele que passa muito tempo jogando o jogo. to; no entanto, para aumentar essa coleção, se faz transmidiáticos, destacando, especificamente, o Dessa forma, nota-se que as definições de hardco- necessário comprar mais pacotes de cartas utili- conteúdo single-player de Hearthstone, na forma re e casual ainda estão bastante ligadas à quanti- zando a moeda ganha dentro do jogo ou dinheiro de Aventuras. dade de tempo exigida dos jogadores pelas obras real. ou pela quantidade de tempo que os jogadores Essa estrutura de preços adiciona um ele- permanecem jogando as mesmas. mento econômico significativo às distinções entre JOGOS CASUAIS E SUA RELAÇÃO COM O Conforme descrito por Howard (2018, p.03), jogos casuais e hardcore, principalmente quando PÚBLICO CONSUMIDOR muitos jogos casuais são oferecidos aos jogado- analisamos jogos free-to-play, uma vez que joga- Ao tratar das distinções entre jogos casuais e res de maneira gratuita e, para se tornarem lucra- dores mais dedicados (que investem mais tempo hardcore, Juul (2010, p.12, tradução nossa), desta- tivos, contam com “microtransações”, nas quais os para coletar recursos ou que gastam mais dinhei- ca que uma característica significativa dos casuais jogadores podem comprar uma grande variedade ro real no jogo) acabam tendo acesso a mais con- é a sua flexibilidade, já que eles não exigem um de conteúdo adicional in-game pagando uma pe- teúdo. Howard (2018, pp 02-03, tradução nossa) investimento expressivo de tempo, ao contrário quena taxa – são os chamados jogos “free-to-play” argumenta que, apesar de se apresentarem como de sua contraparte. Para o autor, um jogo casual “é (gratuitos para jogar). Esse modelo é muito bem- jogos casuais, que exigem pouco do jogador, jo- suficientemente flexível para ser jogado com um -sucedido economicamente e é amplamente ado- gos free-to-play, como Hearthstone, são estrutu- comprometimento de tempo hardcore, mas um tado por publishers, tornando-se uma das estrutu- rados de forma a “promover uma jogabilidade ras de preços mais comuns na indústria de jogos 4 Hearthstone está disponível gratuitamente para dispositivos jogo hardcore é inflexível demais para ser joga- Windows, Mac, iOS e Android. 238 CASUAL OU HARDCORE? UMA ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS DA BLIZZARD PARA O ENGAJAMENTO DOS JOGADORES DE HEARTHSTONE Fabrício Barbosa C. hardcore – e, por extensão, gastos hardcore” – ao a aplicação de questionários em grupos de joga- disposição e o utiliza de maneira estratégica para encorajar jogadores casuais a gastar cada vez mais dores de ambos os jogos e posterior análise dos reduzir os 30 pontos de vida de seu oponente a no jogo a fim de ter acesso a mais conteúdo e/ou dados coletados, os pesquisadores concluíram zero. O primeiro a conseguir isso é o vencedor da progredir competitivamente. que o ambiente competitivo e a possibilidade de partida. Sendo assim, é esperado que a competi- imersão em um universo ficcional eram as duas tividade seja uma das principais motivações dos Nesse ponto, nos deparamos com um aspec- principais motivações apontadas, que faziam com jogadores, uma vez que ela é diretamente incenti- to crucial para a compreensão do fenômeno dos que os participantes da pesquisa continuassem a vada pelo gênero do jogo em si. jogos casuais free-to-play, que diz respeito à mo- jogar esses dois títulos. Tais motivações são discu- tivação dos jogadores para realizar investimentos Hearthstone atingiu recentemente a marca tidas adiante. de qualquer tipo no jogo – sejam eles de tempo de 100 milhões de jogadores no mundo todo5 e é ou de dinheiro – e cruzar a linha do que diferen- um jogo que já está no seu quinto ano de existên- ciaria um jogador casual de um jogador hardcore. cia, com grandes investimentos em campeonatos MOTIVAÇÕES DOS JOGADORES DE HEAR- Ainda que possam existir as mais variadas razões regionais e mundiais (o torneio mais recente teve THSTONE: A COMPETITIVIDADE para engajamento com uma determinada obra, premiação total de US$1 milhão6) e com uma po- destacamos, neste artigo, duas que possuem fun- Apesar de possuir uma ambientação narra- lítica de constante atualização – a cada ano, desde damental importância para o entendimento do tiva bem-desenvolvida, com modos single-player 2017, pelo menos 400 novas cartas são disponi- modelo de negócios da Blizzard Entertainment, e conteúdos de história que fazem referência ao bilizadas ao público. Considerando que, apesar especificamente: a competitividade e a imersão. universo de World of Warcraft, Hearthstone é, em de ser um jogo gratuito, os recursos in-game pre- Essas duas categorias foram definidas tomando sua essência, um jogo competitivo. Inspirado cisam ser adquiridos pelos usuários, é razoável como base os resultados da pesquisa desenvol- no sucesso de outros card games originalmen- afirmar que o jogador que busca manter um alto vida por Turkay e Adinolf (2018), que se dedica- te físicos, como Magic: The Gathering e Pokémon, nível competitivo terá que fazer investimentos de ram a investigar as motivações dos jogadores de Hearthstone se organiza, em termos mais básicos, 5 Fonte: https://playhearthstone.com/pt-br/blog/22636890/ card games online a partir do estudo de caso de como um duelo de cartas, no qual cada jogador (último acesso em 09/05/2019). dois jogos do gênero, Hearthstone e Eternal. Após 6 Fonte: https://playhearthstone.com/pt-br/esports/programs/ monta um baralho (deck) com os recursos à sua championship-tour (último acesso em 09/05/2019). 239 CASUAL OU HARDCORE? UMA ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS DA BLIZZARD PARA O ENGAJAMENTO DOS JOGADORES DE HEARTHSTONE Fabrício Barbosa C. alguma ordem (tempo/dinheiro) para conseguir rão comprar novas cartas, uma vez que a moeda introduzem um conjunto de 135 cards inéditos e acompanhar o ritmo de atualizações implemen- do jogo é mais rapidamente obtida vencendo alteram a dinâmica do cenário competitivo. Dessa tado pelo jogo. partidas, e uma coleção maior de cartas permite forma, o jogo atende aos anseios por atualização a construção de decks mais bem-sucedidos e que oriundos de uma parcela de jogadores hardcore Conforme citado anteriormente, um con- ganham com mais frequência – é por tal razão (que gastam mais e/ou que jogam mais) ao mes- junto de cartas básicas é oferecido gratuitamente que esses jogos muitas vezes são chamados de mo tempo que exerce uma pressão sobre aqueles a todos os jogadores; no entanto, caso se deseje “pay-to-win” (“pague para vencer”). jogadores que ainda não investem no jogo, para atingir níveis mais altos competitivamente, se faz que o façam, se atualizem, e consigam competir necessária a compra de novos pacotes de cartas, Segundo argumenta Koster (2004), o acesso no mesmo nível que os demais. a fim de melhorar os seus decks e se ajustar às a mais conteúdo melhora a experiência de jogo do estratégias utilizadas por outros jogadores. Cada jogador, pois oferece a ele mais variedade; no en- Aqui entra em cena o fenômeno do power um desses pacotes vem com cinco cartas aleató- tanto, algo tão simples quanto divertido é afetado creep: apenas adicionar novas cartas ao jogo não rias e pode ser comprado por 100 moedas de ouro pela estrutura de preços – um jogador que tem seria suficiente para fazer com que os jogadores – o dinheiro que se ganha dentro do próprio jogo, acesso a um conjunto limitado de recursos muito abandonassem os decks e estratégias que já co- ao vencer partidas – ou por R$ 6,90 (dois pacotes, possivelmente se sentirá frustrado ao não poder nhecem e possuem para investir no novo conteú- quantidade mínima para a compra com dinhei- competir em pé de igualdade com aqueles que do; esse conteúdo precisa ser forte o suficiente, ro real)7. Comprando com dinheiro real, quanto gastaram mais; já aqueles que gastaram e tiveram numa medida que se torne indispensável para maior a quantidade de pacotes adquiridos, mais acesso a tudo que o jogo pode oferecer logo fi- que os jogadores se mantenham competitivos. baratos eles ficam – outro incentivo para que os carão entediados e esperarão por novas atualiza- Graças a isso, estabeleceu-se um calendário de jogadores acabem gastando mais. Na prática, ções – afinal, “quando você está jogando, você só rotações: a cada novo ano, os três conjuntos mais conforme apontado por Howard (2018, p.04) os joga até dominar o padrão; depois de dominá-lo, antigos (cerca de 400 cartas) deixam de ser váli- jogadores que quiserem ter sucesso em jogos o jogo se torna chato” (KOSTER, 2004, pp.14-18). dos no formato padrão (o formato competitivo como Hearthstone muito provavelmente precisa- No caso de Hearthstone, especificamente, a cada oficial), forçando os jogadores a adquirirem e uti- 7 Preços consultados em 25/04/2019, na loja online: https:// quatro meses são lançadas novas expansões, que lizarem as cartas mais recentes que, por sua vez, us.shop.battle.net/pt-br/product/hearthstone-rise-of-shadows 240 CASUAL OU HARDCORE? UMA ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS DA BLIZZARD PARA O ENGAJAMENTO DOS JOGADORES DE HEARTHSTONE Fabrício Barbosa C. procuram sempre trazer novas mecânicas de jogo e de consumo relacionadas ao entretenimento MOTIVAÇÕES DOS JOGADORES DE HEAR- e possibilitar estratégias inéditas (muitas vezes contemporâneo”. No presente trabalho, não aden- THSTONE: A IMERSÃO mais poderosas que as já existentes anteriormen- tramos especificamente nessa discussão8, mas A questão da imersão em jogos digitais é te), despertando, dessa forma, o interesse e a ne- tomamos a noção de power creep como uma das tema recorrente na área dos game studies, com cessidade dos jogadores em possuí-las. Conforme instâncias envolvidas na elaboração do projeto diferentes definições disponíveis, embora nenhu- apontado por Falcão e Marques (2018, p.11), o transmidiático de Hearthstone, conforme discuti- ma delas seja universalmente aceita (TANSKA- power creep se assemelha à ideia de obsolescência mos mais adiante. NEN, 2018). Conforme indica Tanskanen (2018, programada, ao transformar o jogo num produto Paralelamente à necessidade de atualização pp.10-11), a palavra imersão origina-se do latim de uso contínuo e a experiência de jogo não em recorrente forçada pelo sistema de expansões de do final do século XV, derivada da palavra “im- um momento de consumo, “mas em uma expe- Hearthstone, é importante ressaltar que a chega- mersio” e, antes disso, “immergere”, que significa riência longitudinal na qual um jogador está, de da desses novos conteúdos não se dá num vácuo “mergulhar em algo”. Trazida para o contexto dos certa forma, sempre em diálogo com o produto”. e atende, também, à outra das principais motiva- jogos digitais, a imersão estaria relacionada com O power creep possui uma série de impli- ções dos jogadores: o desejo de imersão no uni- o envolvimento do jogador, fazendo-o permane- cações na indústria dos videogames, de maneira verso do jogo. No caso de Hearthstone, especifica- cer dedicado ao jogo e motivado a retornar a ele. mais geral, e pode ser a chave de leitura para um mente, a busca por imersão foi a motivação mais Para Nordin (2014, p. 27), apesar de existirem difi- fenômeno mais amplo: como sugerem Falcão e citada pelos jogadores entrevistados por Turkay e culdades em identificar a experiência exata, exis- Marques (2018, p. 03), ele “emerge como conse- Adinolf (2018), seguida de perto pela competitivi- tem várias denominações bem conhecidas, como quência direta do processo de midiatização expe- dade. Ou seja, mais do que apenas serem compe- fluxo, presença e o próprio conceito de imersão, rimentado pelos jogos atuais” e sua compreensão, titivos, também é de interesse dos usuários mer- que tentam dar conta das experiências envolven- como efeito colateral de uma estratégia de seria- gulhar no mundo ficcional apresentado pelo jogo. tes proporcionadas pelos videogames. No presen- lização, “não é apenas um problema de ordem Discutimos a imersão na seção seguinte. te artigo, adotamos o mesmo posicionamento de econômica, mas implica numa rede mais ampla Tanskanen (2018, p.10) e consideramos imersão, [...] que nos ajuda a discutir as dinâmicas sociais 8 Para uma discussão mais aprofundada sobre a questão do em sua dimensão mais básica, como sendo a ex- power creep, ver Howard (2018) e Falcão e Marques (2018). 241 CASUAL OU HARDCORE? UMA ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS DA BLIZZARD PARA O ENGAJAMENTO DOS JOGADORES DE HEARTHSTONE Fabrício Barbosa C. periência de engajamento com um determinado para funcionar, acabam recorrendo às narrativas sa forma, mesmo um jogo primariamente compe- jogo. e as utilizando em meio às diferentes estratégias titivo poderia atuar, também, em níveis narrativos para engajar os jogadores. Como indica Tanska- visando a atingir um público mais amplo. Ao tratar de imersão em videogames, é fun- nen (2018), os jogos podem ser utilizados como damental reconhecer que ela é construída a partir Tal qual apontado por Krzywinska (2008), o um veículo para contar histórias, com efeito sig- de muitas instâncias. Alguns autores da área dos storytelling e a consequente criação de mundos nificativo no envolvimento do jogador; ou, como game studies indicam algumas possibilidades para ficcionais tem se tornado característica central complementa Skolnick (2014), o storytelling é uma a análise de tais elementos, como Ryan (2009), que de muitos dos jogos digitais mais recentes. Para ferramenta poderosa, que pode ser utilizada para propõe três tipos de imersão narrativa, bem como a autora, é possível dizer que os jogos, enquanto melhorar toda a experiência de jogo. uma imersão epistêmica; Ermi e Mäyra (2005), que artefatos culturais populares, dependem de ca- descrevem três tipos de imersão – sensorial, ima- Ao tratar de jogos digitais em um contexto racterísticas intertextuais para gerar significado e ginativa e baseada em desafios; e Calleja (2014), transmidiático, Christy Dena (2008, p.02) propõe reconhecimento. Para melhor descrever essa rela- que expande o conceito ainda mais ao propor o conceito de níveis (tiers) para descrever os va- ção de intertextualidade, Krzywinska se apropria seis tipos de imersão: cinestésica, espacial, com- riados pontos de entrada em uma obra. Para a e expande o conceito de “texto grosso” (thick text), partilhada, narrativa, afetiva e lúdica. No entanto, autora, os níveis fornecem conteúdo separado utilizado originalmente por Roz Kaveney (2005). independentemente da classificação adotada, é para diferentes audiências e, ao fazê-lo, possibili- Para ambas as autoras, alguns gêneros especí- notável que um dos aspectos da imersão regular- tam experiências distintas com as obras. Em con- ficos, como, por exemplo, a ficção científica e a mente citado, em variados estudos, é aquele rela- trapartida, esses mesmos níveis também fariam fantasia, apresentam um texto grosso – em outras cionado à narrativa. referência às necessidades e preferências de dife- palavras, um texto ricamente preenchido com vá- rentes públicos – por exemplo, “a necessidade de rias alusões, correspondências e referências. De fato, um dos elementos que atuam mais um conteúdo que permita a casualidade, ou que recorrentemente na imersão em videogames é o Krzywinska (2008) ressalta que, ao lidar com forneça uma forma de entretenimento passivo, ou storytelling. Mesmo jogos como Hearthstone, que os aspectos intertextuais de um jogo, torna-se [ainda] que possibilite experiências narrativas par- não necessariamente dependem de uma história evidente que a presença de intertextos múltiplos ticulares” (DENA, 2008, p.11, tradução nossa). Des- 242 CASUAL OU HARDCORE? UMA ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS DA BLIZZARD PARA O ENGAJAMENTO DOS JOGADORES DE HEARTHSTONE Fabrício Barbosa C. e deliberadamente acionados encoraja um certo Marsha Kinder (1991), que afirma que os video- desenvolve extensamente em sua produção o “tipo de envolvimento profundo com o jogo” – em games integram aquilo que a autora chama de conceito de convergência midiática, definindo a outras palavras, de imersão – que se estende para supersistemas de entretenimento: sistemas de in- cultura da convergência como sendo “o momento além de uma determinada obra. Retomando mais tertextualidade transmídia através de diferentes em que vivemos, em que velhas e novas mídias uma vez o trabalho de Kaveney (2005), a autora mídias narrativas, incluindo filmes, televisão, jo- colidem, mídias empresariais e alternativas se indica que certos tipos de texto encorajam ativa- gos, entre outros, que objetivam a criação de uma cruzam, e poderes do produtor e do consumidor mente um consumo de fãs por meio do uso de in- nova geração de consumidores capitalistas, com interagem de formas imprevisíveis com seus dife- tertextos conscientemente implementados, uma um grau avançado de letramento midiático, que rentes interesses” (JENKINS, 2008, p. 29). vez que sua presença incentiva uma leitura mais consomem não apenas o jogo digital, mas ainda Retornando ao caso da Blizzard Entertain- atenta e um envolvimento pessoal mais profundo: as mais variadas formas midiáticas disponíveis ment, nota-se que a franquia Warcraft é ampla e “o entusiasmo de um fã por um determinado tex- dos produtos culturais de seu interesse. continuamente expandida, seguindo o modelo to ou franquia é marcado por um amplo conhe- Ao considerar videogames como parte de de um supersistema de entretenimento trans- cimento das ressonâncias genéricas e dos deta- supersistemas de entretenimento mais amplos, midiático; de fato, tal qual indicado por Falcão e lhes narrativos de um texto” (KRZYWINSKA, 2008, torna-se possível localizar referências de recursos Marques (2017), título após título, independente- p.133). Ou, como proposto por Kaveney (2005), de outras mídias que são facilmente e recorren- mente do gênero de cada jogo, a companhia per- esses textos podem ser considerados como que temente incorporados na construção dos jogos manece recuperando temáticas e performances pertencentes a uma “estética geek”, não em um digitais com fins narrativos, com a certeza de se que já foram utilizadas anteriormente e que são sentido pejorativo, mas sugerindo que determi- estar lidando com um público familiarizado e le- referenciadas em um movimento de apelo à nos- nados textos são expressamente projetados para trado dentro das premissas narrativas mais comu- talgia, seja ela temporal ou estilística, trazendo de atrair a um público específico, que aprecia um mente difundidas pelos produtos midiáticos de volta certas temáticas, mesmo que elas não sejam tipo de envolvimento mais detalhado e ampliado. sua época. Posteriormente à criação do conceito necessariamente essenciais à experiência central As noções de texto grosso e de estética geek de supersistemas de entretenimento por Kinder da nova obra. Em Hearthstone, especificamente, dialogam diretamente com as proposições de (1991), Jenkins (2004; 2008), semelhantemente, percebe-se que 243 CASUAL OU HARDCORE? UMA ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS DA BLIZZARD PARA O ENGAJAMENTO DOS JOGADORES DE HEARTHSTONE Fabrício Barbosa C.

“(...) as narrativas e estética do uni- público especializado, conhecedor das premissas dica de inserir novo conteúdo no jogo: ao invés verso de Warcraft se manifestam daquele mundo e interessado em acompanhar a de apenas oferecer novos cards para compra na de diferentes formas: muitas das cartas fazem alusão a personagens trajetória de seus personagens favoritos nas mais loja, Hearthstone ofereceria, ao invés disso, “Alas e eventos da narrativa, enquanto diversas obras. No caso de Hearthstone, a imersão de Aventura”, que são modos de jogo nos quais os cenários em que os combates por meio da narrativa se apresenta, de forma mais o jogador participa de duelos contra os “chefes” são encenados emulam locais re- presentativos desse universo. As marcante, com o conteúdo single-player, discuti- (bosses), controlados por inteligência artificial Aventuras [...] possuem relação do a seguir. (IA). Eles são inimigos especiais, geralmente mais direta com eventos ocorridos em fortes e com habilidades exclusivas, dentro da te- World of Warcraft, por exemplo. Por AVENTURAS EM HEARTHSTONE: NARRATI- outro lado, à medida que Hearths- mática de cada expansão, que devem ser derrota- VAS EM PROL DA ATUALIZAÇÃO RECORRENTE tone se torna um sucesso comercial dos para liberar os cards novos daquele conjunto em si [...], novos aspectos narrativos passam a ser explorados de forma Na ocasião de seu lançamento, em 2014, como recompensa. independente ao universo de War- Hearthstone não oferecia um “modo de história”, craft, embora ainda ambientados Com o crescimento de Hearthstone e a ne- para ser jogado sozinho; estavam disponíveis ape- no universo ficcional de seu prede- cessidade de atualização cada vez maior (influen- cessor” (FALCÃO; MARQUES, 2017, nas um tutorial, que ensinava o básico do jogo, e o ciada diretamente pelo fenômeno do power creep, p.11). modo competitivo principal, de partidas ranquea- mencionado anteriormente), a Blizzard começa a das. É com a necessidade de disponibilizar um Dessa forma, é possível afirmar que um dos alterar a tradição das Aventuras com o lançamento novo conjunto de cartas que os desenvolvedores recursos utilizados pela Blizzard para garantir o da expansão Cavaleiros do Trono de Gelo, em 2017. aproveitam a oportunidade e introduzem, tam- engajamento dos jogadores com suas franquias é O principal problema com as Aventuras é que elas bém, um modo inédito, de jogabilidade single- a aposta na imersão por meio de elementos narra- ofereciam uma quantidade menor de cards novos -player, com foco na narrativa, chamado de Aven- tivos e de storytelling, investindo na criação de um (entre 30 e 45 por conjunto) se comparado com tura – a primeira delas estreou em julho de 2014, texto grosso, remetendo a um universo ficcional as expansões tradicionais (em torno de 130 por sob o título Maldição de Naxxramas. As Aventu- mais amplo que, por sua vez, abrange diferentes conjunto), e tais cards ficavam bloqueados pelos ras foram pensadas como uma maneira mais lú- jogos e motiva um tipo de consumo voltado a um desafios do conteúdosingle-player – mesmo um 244 CASUAL OU HARDCORE? UMA ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS DA BLIZZARD PARA O ENGAJAMENTO DOS JOGADORES DE HEARTHSTONE Fabrício Barbosa C. jogador que não se interessasse por tal modo se sequência, com o último deles sendo sempre es- xa Hagatha, em um novo modo de jogo chamado via obrigado a concluir os duelos das Aventuras pecial e mais poderoso. Ao concluir as sessões de “Caça aos Monstros”. para finalmente ter acesso àqueles recursos. Com masmorra com todas as nove classes disponíveis, Atuando em consonância com a ideia de Trono de Gelo (2017), optou-se por separar esses o jogador desbloqueava um verso de card exclusi- texto grosso, o mundo de O Bosque das Bruxas conteúdos: um conjunto completo de 135 cards vo como prêmio. (2018) foi construído como expansão/adaptação inéditos foi adicionado a Hearthstone de forma Assim, enquanto Trono de Gelo (2017) se direta de uma das regiões disponíveis no jogo tradicional e, paralelamente, um novo modo sin- desvencilhou da obrigação de colocar cards novos World of Warcraft, a cidade de Guilnéas. Os habi- gle-player independente, com os personagens e bloqueados por batalhas contra chefes, Kobolds & tantes dessa cidade são afligidos por uma mal- a temática da expansão, foi disponibilizado com Catacumbas (2017) deu um passo além ao supri- dição e têm a capacidade de se transformar em outros tipos de recompensa, como pacotes com mir a necessidade de seguir um roteiro pré-deter- worgens, criaturas metade lobo, metade humano. cards aleatórios e itens cosméticos. minado em tais batalhas contra a IA, inserindo o Hearthstone expande esse universo inserindo os Por ser a expansão que marcou a transição fator de aleatoriedade e criando um novo tipo de mistérios do Bosque das Bruxas, localizado nos ar- para um novo modelo, o conteúdo single-player jogabilidade que focava na estratégia dos jogado- redores da cidade, que foi corrompido pela bruxa de Trono de Gelo (2017) ainda remeteu bastante res ao melhorar seus decks. No entanto, em rela- Hagatha (personagem inédita e até então exclusi- às antigas Aventuras, com o mesmo padrão de di- ção aos aspectos narrativos, a “fantasia” presente va de Hearthstone) e teve seus seres transforma- ferentes chefes divididos em alas. Apenas com a em tais confrontos ainda era bastante simples, se dos em terríveis monstros. Dessa forma, liderados expansão seguinte, Kobolds & Catacumbas (2017), resumindo a alguns poucos diálogos que reve- pelo governante Genn Greymane, os habitantes viu-se uma transformação mais marcante no con- lavam a identidade de cada um dos inimigos. É de Guilnéas precisam se unir, usar seus poderes teúdo single-player: dessa vez, foi introduzido o apenas a expansão seguinte, O Bosque das Bruxas de worgens e derrotar Hagatha e sua horda de conceito de dungeon run (“sessão de masmorra”, (2018), que parte do modelo das sessões de mas- monstros, garantindo a paz no local. na versão em português), na qual, após o joga- morra e explora suas possibilidades narrativas ao O modo single-player “Caça os Monstros” é dor escolher uma das classes de Hearthstone, era máximo, ao introduzir em seu gameplay a história fortemente construído em torno de seus quatro desafiado a derrotar oito chefes aleatórios em do embate entre os cidadãos de Guilnéas e a bru- 245 CASUAL OU HARDCORE? UMA ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS DA BLIZZARD PARA O ENGAJAMENTO DOS JOGADORES DE HEARTHSTONE Fabrício Barbosa C. protagonistas. Diferentemente das sessões de a opção de alternar entre os protagonistas e uti- sões de masmorra, trazendo a “Sessão no Ringue”, masmorra, em que o jogador escolhia uma classe lizar as diferentes habilidades de cada um deles mas com os oponentes sendo representantes de para começar a montar seu deck e enfrentar a se- para finalmente derrotar a vilã. Mais do que ape- cada uma das classes do jogo, ao invés de chefes quência de oito chefes, dessa vez, se escolhe um nas um duelo contra um adversário difícil, duran- aleatórios, e também com pouco investimento dos heróis de Guilnéas, que irá adentrar o Bosque te tal embate os personagens interagem entre nos aspectos de storytelling. Atualmente, para o das Bruxas para interromper as ações de Hagatha. si conforme vão sendo jogados, com diferentes novo ano de Hearthstone, em 2019, a Blizzard re- Cada um desses quatro heróis tem uma identi- linhas de diálogo, que revelam mais de suas mo- velou estar trabalhando em um conteúdo single- dade e história bem definidas, e são construídos tivações e sentimentos durante o confronto final -player de proporções inéditas, na forma de uma tomando como base uma classe pré-existente no e, por mais que a ordem em que os heróis entrem nova Aventura, chamada “O Grande Assalto a Da- jogo, com as mecânicas e o gameplay sendo ajus- em campo possa ser alterada pelo jogador, ainda laran”, com lançamento previsto para 16 de maio tados para apoiar a construção narrativa de cada assim a última batalha de “Caça os Monstros” con- e que será o primeiro ato de uma grande história um deles. segue produzir uma atmosfera de clímax e encer- a ser contada continuamente, ao longo de todo o ramento para a história de O Bosque das Bruxas ano, com o lançamento das próximas expansões, Outro elemento de suporte ao storytelling (2018). marcando mais um feito inédito na franquia com promovido por O Bosque das Bruxas (2018) se dá relação à narrativa. por meio da figura da vilã, a bruxa Hagatha. Ao Posteriormente ao lançamento de “Caça aos contrário das sessões de masmorra de Kobolds & Monstros”, a Blizzard optou por lançar um novo CONSIDERAÇÕES FINAIS Catacumbas (2017), que terminavam após a con- formato, na expansão seguinte, com desafios em Ao longo do presente trabalho, sinalizamos clusão dos confrontos com as nove classes, em forma de quebra-cabeça, que eram mais condi- o quanto o mercado dos jogos digitais tem se ex- “Caça os Monstros” há um desafio final, que é libe- zentes com a temática da expansão em questão, pandido e como, ao lidar com um público mais rado após derrotar todos os oito chefes com cada apesar de não investirem tanto na narrativa – foi amplo, a indústria de videogames tem buscado se um dos quatro protagonistas. Nesse desafio final, o modo “Laboratório Cabum”, da expansão Projeto adaptar e investir em novas estratégias para ga- os heróis se unem numa batalha definitiva contra Cabum (2018). A expansão posterior, O Ringue do rantir lucratividade e engajamento de seu público Hagatha e, nesse último confronto, o jogador tem Rastakhan (2018) retornou aos moldes das ses- 246 CASUAL OU HARDCORE? UMA ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS DA BLIZZARD PARA O ENGAJAMENTO DOS JOGADORES DE HEARTHSTONE Fabrício Barbosa C. consumidor. No caso dos jogos casuais, especifi- quirir esses novos itens, ao mesmo tempo em que Após essa análise, acreditamos que o caso camente, destacamos o modelo dos jogos free-to- se alteram as estratégias mais comuns presentes da Blizzard Entertainment, com o jogo Hearths- -play, no qual o título é oferecido gratuitamente no cenário competitivo com a inclusão de novas tone, seja indicativo de práticas que se tornarão aos jogadores, mas com a possibilidade de com- mecânicas nas cartas recém-lançadas. cada vez mais comuns dentro da cultura de pro- pra de itens especiais que, de maneira geral, incre- dução de videogames contemporânea, com o es- Quanto à imersão, notamos que a solução mentam e/ou aceleram o desempenho no jogo. tabelecimento de uma estética geek, tal qual pro- utilizada pela empresa foi a inclusão das Aventuras Dentre as empresas que fazem uso de tal modelo, posto por Kaveney (2005), que incentiva a criação no jogo, um modo single-player que explora mais discutimos o caso da Blizzard Entertainment que, e o diálogo entre diferentes obras, sob um viés a fundo a temática de cada expansão ao mesmo em meio a suas estratégias de mercado, recorre à transmidiático, ao mesmo tempo que possibili- tempo que conecta a narrativa de Hearthstone criação de grandes universos ficcionais e à atuali- ta práticas recorrentes de atualização – e conse- com uma mais ampla, oriunda do universo fic- zação recorrente de suas franquias. quente precificação. Ainda que as possibilidades cional de World of Warcraft. Tal modo estimula a criativas e narrativas sejam infinitas dentro desse Considerando o card game Hearthstone, es- criação de um texto grosso e desperta o interesse modelo, faz-se necessário refletir, também, sobre pecificamente, após identificar duas das principais dos jogadores em acompanhar a trajetória desses as consequências junto ao público, decorrentes motivações de seus jogadores – a competitivida- personagens também em outros produtos ofe- de fenômenos como o mencionado power creep de e a imersão – foi possível analisar algumas das recidos pela empresa. Diante das proporções al- que, mesmo camuflados sob o rótulo dos jogos práticas da Blizzard para atender a tais expecta- cançadas pelas franquias em questão, já é seguro casuais, estimulam uma obsolescência programa- tivas desse público. No caso da competitividade, dizer que, juntas, elas compõem um supersistema da das obras e investimentos hardcore por parte nota-se que toda uma estrutura foi construída em de entretenimento (KINDER, 1991), com narrativas dos jogadores, seja de tempo, seja de dinheiro. torno de um sistema de atualização e rotatividade espalhadas nas mais variadas mídias e formatos, de conteúdos: com a inclusão de 400 novas cartas começando nos videogames, mas se estendendo, todos os anos (e exclusão das cartas mais antigas também, a livros, quadrinhos, filmes, música, ani- do formato competitivo oficial), incentiva-se que mações, entre outros. os jogadores invistam mais no jogo a fim de ad- 247 CASUAL OU HARDCORE? UMA ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS DA BLIZZARD PARA O ENGAJAMENTO DOS JOGADORES DE HEARTHSTONE Fabrício Barbosa C.

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Profª. Suzana Barbosa – Facom/UFBA Apoio Prof. Leonardo Costa – Facom/UFBA EDUFBA – Editora da Universidade Federal da Bahia Prof. Wilson Gomes – Facom/UFBA PósCom/UFBA – Comunicação e Cultura Contemporâneas Equipe Gere - Sistema de Gerência de Eventos/ UFBA Comunidades Virtuais/IHAC - Instituto de Humanidades, Artes e Ciên- Labfoto - Facom/UFBA cias Professor Milton Santos Servidores da Faculdade de Comunicação/UFBA UNEB – Universidade Estadual do Estado da Bahia PPGEFHC UFBA/UEFS – Prog. de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e Mostra de Games: História das Ciências AOCA Game Lab Benditas Projetos Criativos Era Game Studio Circuito de Cinema Sala de Arte VAZ Studio Pipocas Magrela RCD Produção de Arte Financiamento Capes

Realização UFBA – Universidade Federal da Bahia A-Tevê – Laboratório de Análise de Teleficção

249 3 e 4 de julho de 2019 Salvador, Bahia

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